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1. Quadro de Referência
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Artigo publicado originalmente na Série Estudos, Iuperj: Rio de Janeiro, n° 91 / agosto de 1995. Uma versão
bastante ampliada encontra-se em MESSEDER, Carlos Alberto et alli (orgs). Linguagens da violência. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 2000.
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Professora e pesquisadora do Iuperj.
2. Um balanço da literatura produzida nesse período se encontra em Adorno (1993).
3. Os dados foram extraídos do artigo de Coelho (1987), onde o debate sobre a criminalidade violenta é
caracterizado com base em duas concepções distintas de justiça: a distributiva e a retributiva, esta última
voltada para a aplicação de medidas dissuasórias que tornem mais custosa a opção individual pelo crime.
literatura sobre violência urbana vem deslocando o modelo da causação social do crime e
enfatizando, alternativamente, ora o contexto institucional, ora o cultural em que se verificam
oscilações significativas no índice de delitos violentos.
Quero dizer que, durante o regime militar, a sociedade, em geral, parece ter expe-
rimentado um certo afastamento do quadro normativo vigente, isto é, uma recusa latente ou
manifesta às instituições do autoritarismo, desconhecendo restrições muito severas às formas
selvagens ou mesmo ilegais que o “inconformismo dos marginalizados” pudesse assumir. Essa
“desmoralização” da lei, essa “desinstitucionalização”, enfim, traduziu-se numa certa tolerância
para com o que havia de desviante no País,5 contribuindo, inadvertidamente, para a proliferação
de instituições informais e de fatos de violência imputáveis a agentes paraestatais, grupos políticos
armados, contraventores e bandos criminosos, todos eles vivendo à margem da lei e visitando,
freqüentemente, as fronteiras que resguardavam as suas respectivas identidades. Ninguém ignora,
por exemplo, que data daí o fortalecimento organizacional do jogo do bicho e que esse processo
conheceu uma dimensão paramilitar somente atenuada quando suas principais lideranças
estabeleceram influência econômica e, conseqüentemente, controle político sobre as
comunidades onde mantinham seus negócios (cf. Chinelli e Silva, 1993).
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Hoje, porém, as análises “contextualistas” da violência parecem dedicar menor atenção
ao macroambiente político, atendo-se, predominantemente, à microfísica da atividade criminosa e
à sua capacidade de produzir incentivos à delinqüência. Pesquisas nessa direção têm sugerido,
por exemplo, que o padrão organizacional do crime transmutou-se em uma atividade
“empresarial” que alicia novos quadros com base na remuneração, em visível contraste com as
adesões de natureza “pré-moderna”, nas quais estão envolvidos compromissos morais e
personalizados para com as lideranças.6 Têm sugerido também que aspectos como a cultura
organizacional dos agentes policiais em suas rotinas de investigação e na montagem de suas redes
de informantes, o mau funcionamento do aparelho de administração da justiça penal e a
ambigüidade que preside as instituições tutelares dos menores infratores divididas entre a
obrigação de parecerem réplicas de cidades ordenadas e uma prática carcerária sem disfarces
são exemplos de uma permanente tensão entre o quadro legal definido e as “acomodações” em
relação a ele, resultantes, em larga medida, da leniência, da corrupção ou da própria violência dos
gestores dos serviços públicos de segurança (cf. Paixão, 1994).
É, aliás, nesse ambiente institucional situado entre o “bem” e o “mal”, lugar de uma
subcultura repleta de dispositivos autoritários e revanchistas, que operam mais fortemente os
sentimentos sociais de aprovação das práticas violentas, legitimando tanto o aliciamento de jovens
para uma vida à margem da lei, quanto as ações extremistas “em nome da lei e da ordem”, do que
as operações de extermínio, ou de “limpeza social”, são os mais terríveis exemplos (cf. Uprimny,
1993). E é ali que se tem buscado a explicação para a vulnerabilidade dos socialmente indefesos
ao crime organizado, pois, como se sabe, diluídas as diferenças entre comportamentos
transgressores de ambos os lados e ampliados, por isso, os custos sociais da denúncia, estabiliza-
se um padrão de interação de pessoas honestas e infratores que facilita a propagação social do
desregramento, as infrações de oportunidade, e um trânsito, enfim, barato e generalizado entre o
mundo legal e o mundo do crime.7
6. Cf. Coelho (1988, pp. 106-14). Embora o desejo de reconhecimento social possa continuar presente na
decisão de um jovem de aderir ao crime, o autor, nesse texto, detém-se na análise de alguns aspectos
organizacionais do banditismo moderno, destacando a imp essoalidade e a facilidade de reposição dos
quadros “gerenciais” dessas organizações como características de uma “cultura empresarial”, que tornaria
inócuas quaisquer ações espetaculares desfechadas contra as atuais lideranças.
7. Sobre a transitividade e a intermitência que caracterizam um tipo de relação mantida entre os jovens pobres e
o mundo do crime, cf. Alba Zaluar, entre outros títulos (1993, pp. 8-15).
8. A proposição encontra-se em Silva (1991, pp. 22-9).
“variável independente”, indicativa das mudanças estruturais observadas em um país agrário-
exportador em processo de modernização. O urbano, nas análises recentes sobre a violência,
deixa de ser o lugar exclusivamente do moderno e dos comportamentos racionais de tipo
utilitarista, abrindo-se a pesquisas sobre a intensa fragmentação cognitiva e valorativa dos seus
habitantes e sobre os canais de circulação entre os diferentes “mundos” que ali interagem. Nesse
caso, a qualidade “urbana” da violência aponta menos para o repertório clássico da sociologia
com os temas da migração interna e da inadaptação dos migrantes ao universo moderno-industrial
e mais para a tensão constitutiva das cidades contemporâneas, em uma chave, por sua vez,
menos normativa e mais compreensiva.
Representante dessa vertente de investigação, Alba Zaluar (1985), por exemplo, no seu
A Máquina e a Revolta, interpela a historiografia social inglesa para a reconstrução da trajetória
de formação das identidades do “trabalhador pobre” e do “bandido”, no bairro carioca de nome
Cidade de Deus. No centro do argumento, a referência à ausência de sentido religioso da
“redenção pelo sofrimento” que a pobreza conheceu em outras sociedades e a sugestão de que,
na ausência de uma ordem moral compartilhada por todos, o tema da mobilidade social tendeu,
aqui, a se traduzir em estratégias que, no limite, podem incluir a experiência da ilegalidade. O
“bandido”, nesse caso, representaria uma saída individual para a expectativa de mobilidade que se
encontra obstruída, operando como uma metáfora da potencialidade explosiva inscrita na adesão
virtual dos pobres a estratégias imediatistas de inclusão social e busca por reconhecimento.
Enfim, pode-se dizer que a discussão sobre a violência urbana tem abandonado a
preocupação exclusiva com o crime e apontado para questões mais amplas, tais como a da
sociabilidade e seus limites, em grande parte suscitadas pela pressão objetiva da emergência de
novos seres trazidos à tona pelo processo de democratização social verificado nas últimas duas
décadas. De qualquer modo, a tentativa de alinhar cronologicamente alguns esquemas analíticos é
apenas um exercício formal que não deve obscurecer o fato de que eles continuam tendo vigência,
combinando-se ou superpondo-se nas análises contemporâneas sobre o tema.
Com base, então, nesse quadro de referência, sublinharei uma dimensão política do
problema da violência, chamando a atenção menos para os riscos conjunturais que um fenômeno
dessa extensão pode introduzir na condução democrática do governo, e mais para o problema da
autonomização crescente da organização social em relação ao quadro político-institucional. Quero
dizer que a violência nas grandes cidades brasileiras está associada à baixa legitimação da
autoridade política do Estado, cujo privatismo “congênito” estreitou excessivamente a dimensão
da polis, condenando praticamente toda a sociedade à condição de bárbaros. A expressão
“cidade escassa” refere-se a isto, ou seja, à dimensão residual da cidadania e, portanto, à sua
parca competência para articular os apetites sociais à vida política organizada isto que, no
mundo das idéias políticas, caracteriza a “cidade liberal-democrática”.
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pacto estável e universalista , a experiência social se organiza com base em intensa
fragmentação de juízos, o que torna muito frágil até mesmo o reconhecimento da propriedade, já
que ela nada mais é do que um acordo quanto a limites. A violência, assim, não é algo que possa
ser isolado nos interstícios da ordem, pois é uma das formas atuais de organização da sociedade
que, prevista nas teorias sobre a desobediência legítima, se nutre do retraimento do Estado e
mobiliza a cidade para o que não deixa de ser uma forma de sedição.
É claro que essa percepção coletiva de que o Rio se tornou uma cidade pequena em
face de sua população não tem base em critérios demográficos. Uma cidade é pequena, do ponto
de vista político, quando não consegue prover de cidadania as grandes massas, isto é, não
consegue contê-las sob a sua lei e guarda. Um teto, trabalho, saúde e educação são bens de
cidadania porque a sua provisão tem a finalidade de garantir que os segmentos mais pobres da
população possam se manter autônomos, ou se tornar libertos, das inúmeras redes de
subordinação pessoal que se encontram presentes na base da sociedade carioca as da
contravenção, do crime organizado, das máquinas partidárias clientelistas, das igrejas, das
entidades assistencialistas etc. , para, como cidadãos livres, poderem tocar suas vidas privadas,
atendendo apenas às regras impessoais e universais do jogo democrático. Em outras palavras, a
extensão dos bens de cidadania é a forma pela qual as novas “fronteiras sociais” são incorporadas
à vida pública, à esfera política em seu sentido mais amplo.
Luiz Antonio Machado da Silva, analisando a violência no Rio de Janeiro, sugeriu que a
precariedade da institucionalização do trabalho assalariado no mundo urbano brasileiro levou a
que, no atual contexto de crise fiscal do Estado, quando rareiam o assistencialismo e a
distribuição de vantagens corporativas, a ação da população se voltasse para a satisfação de seus
interesses privados, “na direção do consumo”, sem qualquer mediação ou peia institucional (cf.
Silva, 1991). Creio poder acrescentar que, além de desempenhar fracamente as suas funções
econômicas, deixando, portanto, de regular de forma consistente e universalista o mercado, o
Estado brasileiro encerra, desde a origem, uma trajetória de fraca legitimação da sua autoridade,
instrumento, como tem sido, de obtenção de vantagens patrimoniais privadas. Visto do ângulo de
uma cidade como o Rio de Janeiro, esse diagnóstico se torna ainda mais evidente afinal, a
história dessa cidade é rica em sugestões de como uma população criativa, de forte vocação
mercantil e intensa atividade cultural, porém sem a experiência da democracia política, se
degenera em uma imensa multiplicidade de “cidadelas” atomizadas, corrompendo-se em seus
costumes. A título de ilustração, duas referências históricas.
Se, entretanto, essa relação estabelecida entre sociedade e Estado configura uma
paisagem política comum a todo o País, no Rio de Janeiro a expressão da “estadania” é ainda
mais forte, pois aqui a heterogeneidade social sempre foi maior, a vida social mais ativa e a
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“experiência urbana”, em si, menos regulada, quando comparada com a das cidades nordestinas
sob o mando direto das oligarquias ou com a da industrial São Paulo, onde as elites
modernas demonstraram grande capacidade de organização e controle dos mundos operário e
popular. No Rio, muita liberdade social associada à interdição da participação na esfera pública
política emprestaram maior dramaticidade à experiência da “estadania” (cf. Carvalho, 1994).
Nesse sentido, a evolução política carioca e o padrão de ética social que deriva dela
podem ser apresentados como uma história de variados tipos de nexo entre indivíduos e grupos
selecionados e a esfera estatal que, embora mais recentemente tenha propiciado alguma
integração social, não inscreveu a política representativa como a arena privilegiada para a
resolução de demandas. O resultado desse processo se traduz, hoje, em duas práticas facilmente
identificáveis: de um lado, a “apatia” da sociedade em relação ao mundo público, a parcela mais
pobre dela esperando que venha a ser capturada pela malha do clientelismo urbano, agora
exercido não apenas pelos seus agentes tradicionais, mas também por segmentos da burocracia
estatal, igrejas e organizações não-governamentais, cuja ação, em meio à carência, tende a
confirmar estratégias de racionalidade perversa, orientadas para a persistência desses vínculos de
clientela. Além disso é notória a facilidade com que o crime organizado tem se apropriado dessa
função, mobilizando, em grau crescente, recursos e pessoas para esse fim.
9. Cf. Werneck Vianna (1994). Sobre a política social do regime militar, cf. Melo (1993).
às brigas de galeras que indicam um afastamento até mesmo do pacto territorial que serviu à
organização da cidade: as ruas, hoje, têm e proclamam seus donos. Esse, aliás, o aspecto que
desafia o repertório do pensamento político, pois aponta para o fato de que as transgressões à
legalidade existente não são motivadas pelo desejo de alargá-la socialmente. Ao contrário, o
sucesso da democratização social, associado, inclusive, à disseminação de valores participatórios,
parece agravar a autonomização da sociedade em relação ao quadro político-institucional.
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Referências Bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de. (1980), A Construção da Ordem. Rio de Janeiro, Campus.
______. (1987), Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que Não Foi. São Paulo,
Companhia das Letras.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (1994), “A Produção de uma Cidade: O Rio de Janeiro
por seus Autores”, in Quatro Vezes Cidade. Rio de Janeiro, Sette Letras.
CHINELLI, Filippina e SILVA, Luiz Antonio Machado da. (1993), “O Vazio da Ordem:
Relações Políticas e Organizacionais entre as Escolas de Samba e o Jogo do Bicho”. Revista
do Rio de Janeiro, ano I, nº 1, UERJ, pp. 42-52.
______. (1988), “Da Falange Vermelha a Escadinha: O Poder nas Prisões”. Presença, nº 11,
Rio de Janeiro.
SILVA, Luiz Antonio Machado da. (1991), “Violência e Crise Político-Social”. Série Estudos
Rio de Todas as Crises II, nº 81, Rio de Janeiro, Iuperj.
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