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Françoise Dastur
A Morte
Ensaio sobre a finitude
Introdução

A GRANDEZA DA MORTE

Der ToJ ist groβ


Wir sind die Seinen
Lachenden Munds.
Wenn wir uns mitten im Leben meincn
wagt cr zu weinen
Mitten in uns.
Rilke1

“O homem livre não pensa senão que a morte e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a
vida.”2 Parece que com essa afirmação, que retira da filosofia toda vocação de pensar a morte, Espinosa
não fez senão experimentar a tendência básica da metafísica cuja tarefa principal, desde Platão, é nos lembrar a nossa
participação no eterno e nos comidar a superar a contingência e a finitude da vida individual. Vencer a morte, tal é a
proposta não somente da metafísica, que almeja o conhecimento do supra-sensível e do não-corruptível, mas também
da religião, enquanto esta é promessa de sobrevida pessoal; da ciência, que eleva a validade de uma verdade
independente dos mortais que sobre ela refletem; e, de forma mais geral, do conjunto da cultura humana, já que esta se
fundamenta, essencialmente, na transmissibilidade de técnicas que constituem o tesouro durável de uma comunidade,
estendendo-se por várias gerações.
Pois a morte é objeto de espanto e não parece poder ser enfrentada, a não ser na medida em que se vê relati- vizada
e aparenta ter domínio apenas sobre uma parte do nosso ser. É Espinosa, ainda, que declara que “o espírito humano não
pode ser inteiramente destruído com o corpo, mas nele subsiste alguma coisa de eterno ”.3 Ele afirma também que,
embora não se possa deduzir da substância eterna, da essência pensante do espírito, nenhuma imortalidade da alma
enquanto entidade pessoal, “todavia, sentimos e damos prova de que somos eternos”.4 É essa experiência da eternidade
no próprio seio da duração que sempre se opôs ao prazo inelutável da morte como o que seria passível de colocá-la
antecipadamente em xeque.
Não há, entretanto, uma relação que não seja a de evitar um encontro com a morte e não é possível ver na
“eternidade”, da qual vivemos a experiência na qualidade de seres pensantes, menos a prova do fato de pertencermos à
intemporalidade do que uma produção própria de temporalidade em si, que seria, assim, capaz de projetar por si mesma,
no ser humano, o horizonte de sua própria superação?
É neste sentido que o idealismo alemão, de Kant a Hegel, passando por Schelling e Hõlderlin, pôde ver na
imortalidade um “postulado” de uma razão finita no absoluto, o que requer intrinsecamente uma história; no divino
uma criação transcendental; e no infinito o significado do finito. Da mesma maneira, Husserl definiu a intemporalidade
da verdade menos como um elemento fora do tempo desta do que uma “onitemporalidade”, isto é, um modo específico
da própria temporalidade, e Heidegger, em seguida, mostrou que o tempo constituía o horizonte da compreensão da

1 Das Buch der Bilder, Schlu(3stück, Le Livre d'images, Finale (1901): "A morte é grande./ Nós lhe pertencemos,/ Boca sorridente./ Quando nos
acreditamos no coração da vida./ Ela ousa de repente/ Chorar em nós." (N.T.) Na tradução francesa de M. Betz: "La mort est grande. / Nous lui
appartenons, / Bouche riante. / Lorsqu'au coeur de Ia vie nous nous croyons, / El le ose tout à coup/pleurer en nous."
2 Espinosa, Ética, 4° parte, Proposição LXVII. Trad. R. Caillois. Coleção Bibliothèque de Ia Pléiade, Gallimard, 1954.
3
Ibid., 5J parte, Proposição XXIII.
4
Ibid., 5a parte, nota da Proposição XXIII.
própria noção de ser.
Encontrar assim na finitude do tempo, ou seja, na própria morte, o recurso da vida exige entregar-se sem
reserva ao espanto que ela suscita e aceitar permanecer constantemente sob seu domínio. Deixar ao nada que é a morte
o governo da vida não implica, todavia, nem heroísmo niilista nem lamentação nostálgica, mas, na realidade, a
conjugação, na tragicomédia de uma vida que não recua diante da morte, mas, ao contrário, aceita incluir em sua conta
o luto e a alegria, o riso e as lágrimas. Pois, para aquilo que nada mais é além de tempo, não há verdadeiramente bom
humor ou explosão de riso — isto é, segundo a definição espinosista, nesta passagem de uma menor a uma maior
perfeição que é a alegria atribuída ao mesmo tempo ao espírito e ao corpo 5 — que a propósito do que pode ser perdido
e que, esgotando- se no instante, não projeta nenhuma perspectiva infinita de repetição possível, mas, ao contrário, se
ergue sobre a base principal da temporalidade de um ser destinado irrevogavelmente à morte. E é a grandeza da morte,
o que nela se recusa a ser pensado, isto é, considerado segundo algum sistema de equivalência seja qual for, que faz da
nossa finitude menos uma ausência de alguma coisa do que uma capacidade.
Com efeito, poderiamos dizer, da morte, o que a tradição ocidental diz tão bem de Deus: que Ele é “algo cuja
grandeza não se pode conceber”,6 não certamente porque ela seria plenitude de ser e perfeição suprema, mas ao inverso,
porque “é” absoluta anulação, “objeto” impensável, impossível de ser circunscrita, sobre a qual nenhum domínio jamais
foi possível e cuja onipotência sobre nós é semelhante à de um deus único.
Mesmo que se possa reconhecer um “argumento ontológico” na idéia de um ser tão perfeito que só pode existir em
nosso intelecto, mas que deve necessariamente existir na realidade, o que implica que não se pode pensar sem ilogismo
sua não-existência, pode-se aceitar a idéia de um “argumento tanatológico” que faz do saber da morte um saber
absolutamente certo, incomparável às outras espécies de saberes, porque nos deixa propensos para a desmedida daquilo
que não tem experiência possível.
Porque o pensamento não pode senão negar a si próprio ao negar o ato pelo qual ele admite a existência do
absoluto, já que esse ato constitui sua própria essência, deve, todavia, reconhecer previamente que essa posição não tem
lugar a não ser na temporalidade do ser pensante e na base de sua mortalidade. Essa grandeza absoluta que é a da
dimensão do divino empresta então tudo à grandeza absoluta e à total impenetrabilidade da morte, de modo que se
termina por perceber que, em um sentido essencial, o divino e a morte são inseparáveis e que todos os deuses que o
homem foi levado a reconhecer e a nomear no curso de sua longa história não são, talvez, senão deuses da morte — e
aqui o genitivo é unilateralmente subjetivo —, de uma morte capaz de engendrar no homem sua relação com o mais
que humano e que seria, assim, a fonte imorredoura e noturna dessas “luzes” que caracterizam o espírito e a permanência
do homem.
Menos, então, que uma teologia negativa, que pretende colocar Deus tão alto que O situa além do ser, numa
hiperessencialidade que permanece incomensurável ao ser, de tudo o que é, que não é em um sentido nada do que é, há
talvez mais necessidade de um pensamento da morte e do nada a partir dos quais unicamente podem ser vislumbradas
as perspectivas do intemporal e as representações do divino. “Imortais: mortais, mortais: imortais; vivendo os imortais
da morte dos mortais, morrendo os mortais da vida dos imortais” já dizia Heráclito. 7 Os deuses vivem de sua oposição
aos mortais, pois têm necessidade da morte dos homens para se conhecerem como imortais, assim como os mortais
perdem na morte a vida que concedem aos imortais. É nesse sentido, o mais das vezes malcompreendido, que
Heidegger viu no homem o mortal que olha na direção do divino8 e que pôde dizer da morte que ela é o estojo do nada
e ao mesmo tempo o abrigo do existir.9

I
A CULTURA E A MORTE

5
Ibid., 3a parte, Proposição XI, nota.
6
Santo Anselmo da Cantuária, Proslogium, Vrin, 1954, p. 13.
7
Heráclito, fragmento 62 na numeração de Diels-Kranz. Ver o comentário esclarecedor de M. Conche, em Heráclito, Fragmentos, PUF, 1986,
p. 369 s.
8 M. Heidegger, "Le tournant", em Questões IV, Gallimard, 1976, p. 152.
9
M. Heidegger, "A coisa", em Ensaios e Conferências, Gallimard, 1958, pp. 212-213.
3

O homem sabe que deve morrer, e concordamos, habitualmente, em ver nesse “saber” uma das características
essenciais da humanidade, ao lado da linguagem, do pensamento e do riso. Contudo, não é tão certo que o animal não
pressinta, de alguma maneira, sua morte, e que tudo o que vive não tenha, num certo modo desconhecido por nós, uma
relação essencial com seu próprio fim. O que é, em todo caso, certo é que esse fim, que é a própria morte, se apresente,
desde que há pensamento, isto é, representação, como um tema privilegiado para ela, a tal ponto que podemos afirmar
que a humanidade não alcança a consciência de si mesma a não ser através do enfrentamento da morte. Um dos
testemunhos mais antigos que nos foram conservados de nossa própria história, a epopéia mesopotâmica de Gilgamesh,
que remonta ao início do segundo milênio antes da nossa era, conta a descoberta feita por Gilgamesh, rei legendário de
Uruk e semideus da condição mortal no momento da morte de seu amigo Enkidu, o qual tinha, ele próprio, o status
intermediário de um homem-animal, e narra a perigosa viagem que empreende, então, à procura de um remédio que
servisse para evitar a morte. É significativo que a relação com a morte seja descrita, nesse texto que inaugura de alguma
forma toda a literatura, como que diz respeito à morte do outro, como se a humanidade do homem não pudesse ser
constituída senão no quadro de uma comunidade de vida, de um ser-com-os-outros que simboliza aqui a amizade que
liga Gilgamesh e Enkidu.
Porque não há experiência da morte como tal — o que Epicuro expressa perfeitamente ao dizer que, durante nossa
existência, a morte não está e que, quando a morte está presente, não somos mais, e que ela não é, conseqüentemente,
nada para nós10 —, mas somente experiência da morte do outro e instituição, nesta experiência primeira do luto, da
própria referência a si como um mortal. É assim que Gilgamesh, após a morte de Enkidu, ficou obcecado com o que
aconteceu a seu amigo e, temendo sofrer o mesmo fim, se revolta contra esse prazo inevitável que parece, contudo,
inscrever-se na própria natureza das coisas e se põe inutilmente à procura do que lhe permitisse escapar da lei universal
da morte, que os deuses determinaram para os homens, reservando a vida para si mesmos."

1. O luto, origem da cultura

É sem dúvida essa vontade de não se submeter passivamente à natureza das coisas que explica a importância, do
ponto de vista antropológico, dos ritos funerários. Talvez fosse necessário, primeiramente, definir o homem a partir
dessas condutas externas de luto mais do que a partir de um se-saber mortal que permanece completamente interior.
Essas condutas de luto devem, por outro lado, ser encaradas de um ângulo vasto, e seria necessário incluir nelas não
somente os ritos funerários variados que encontramos nas diferentes culturas — sepultamento, mumificação, inumação,
cremação e até mesmo exposição dos mortos, já que esta tem lugar segundo um ritual extremamente refinado 11 12-, mas,
também, outras condutas culturais e, em particular, todas aquelas que têm por função a constituição de uma memória
coletiva. É verdade que a manipulação do corpo do morto é, por si só, freqüentemente considerada como uma prática
impura que não passa do apanágio de seres pertencentes a um grupo visto como indigno pela sociedade dos vivos,
ocupando o cadáver uma posição intermediária inquietante entre a coisa e a pessoa e sendo considerado, por causa de
sua corruptibilidade, como fonte de poluição. Mas a relação do morto com seus próximos se vê, precisa e rapidamente,
“espiritualizada”, consistindo o luto propriamente em um processo de interiorização do defunto do qual o próprio ritual
funerário não é senão uma mediação visível.
Pois o homem não é um animal político, segundo a famosa definição de Aristóteles, a não ser por viver em
comunidade, não somente com seus “contemporâneos”, mas também e talvez mais com aqueles que o precçderam, a
fundação da polis, inscrevendo-a na profundeza de um passado mítico que acrescenta a todo ato político um peso
histórico, ultrapassando grandemente o indivíduo que o realiza. Que a vida do homem seja uma vida “com” os mortos,
eis aí, talvez, o que distingue verdadeiramente a existência humana da vida puramente animal, como sugere um
fragmento de Heráclito, fre- qüentemente citado, o qual diz que “o caráter do homem é seu demônio,” 13 a crença grega
em um daimon pessoal que acompanha cada homem ao longo de sua vida não fazendo senão expressar essa comunidade

TO Epicuro, Carta a Meneceu.


11
Gilgamesh, Documentos acerca da Bíblia. Apresentação, tradução e notas de F. Malbran-Labat, Éd. du Cerf, 1992, p. 59.
12
Entre as culturas que praticam a exposição dos mortos, conhece- se sobretudo a dos zoroastrianos, os quais expõem seus mortos aos
abutres no cimo das famosas "torres do silêncio", lugares que permanecem proibidos a todos, exceto aos coveiros autorizados, e que servem
de ossários, sendo os ossos, em seguida, postos em uma cova escondida na base dessas torres.
13
Heráclito, fragmento 119 segundo a numeração Diels-Kranz.
de vida com o espírito dos ancestrais que é o fundamento unitário de todas as culturas. Com efeito, não há cultura a não
ser quando um certo domínio do escoamento irreversível do tempo é assegurado, o que implica o emprego de um sem-
número de técnicas destinadas a, progressivamente, amenizar a ausência; e a ausência por excelência é a do morto, que
não desaparece momentaneamente, mas absolutamente e de maneira insubstituível. E porque não é ilegítimo ver no
luto, tomado no vasto sentido da aceitação da ausência, a origem da própria cultura.
Se toda cultura é então, num amplo sentido, cultura da morte, o que os ritos funerários manifestam tão bem quanto
a conservação das palavras vivas na escrita, o culto dos ancestrais, os relatos mitológicos e a literatura em geral, é
precisamente porque esse corte radical que é a morte deve ser assumido — o que significa dizer ao mesmo tempo aceito e
negado. Uma antropologia histórica da morte mostra, com efeito, que os homens das sociedades arcaicas repugnavam
a idéia de uma destruição definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida
14
invisível e não cessam de intervir no curso da existência daqueles que chamam a si mesmos de vivos. Aqui a ruptura
entre os mortos e os vivos não é definida, e a morte se vê mais do que integrada ao ciclo da vida, como o atesta a crença
oriental na reencarnação, da qual encontramos ainda os vestígios no mito de Er, o Panfiliano, que está na conclusão da
República, de Platão. Esse mito, que traz revelações sobre a vida após a morte, pode, com certeza e muito justamente, ser
chamado de “escatológico” — do grego eskhatos, “extremo”, “último” —, mas, na medida em que repousa sobre um
esquema de pensamento que privilegia a simetria do nascimento e da morte e que vê nesta última uma regenerescência
e o prelúdio de um novo ciclo de vida, ele se opõe às representações propriamente escato- lógicas, que compreendem a
existência terrena individual conforme o modelo de um devenir linear orientado para o absoluto de um além definitivo.

2. A invenção escatológica

Com efeito, trata-se sempre de dar um sentido ao impensável que é a morte, e é porque temos a tendência a ver
nela uma passagem e não um fim, como o termo trépas, que significa ir além ou transgressão, e décès, que implica a idéia
de partida e de separação, como bem atesta a língua francesa. É possível considerar a morte como uma ruptura interna
de uma vida que prossegue incansavelmente sob formas sempre novas, de sorte que o indivíduo não morre a não ser de
uma certa maneira, já que da perda do eu empírico emerge um “eu sou” incondicionado — e reside aí tanto a lição dos
Upanixades celebrando nas vésperas do século V a.C. a intemporalidade do atman, do si absoluto, quanto a da
fenomenologia husserliana, pela qual só o eu empírico morre, enquanto que o eu transcendental puro não nasce nem
morre.15
Porém, podemos também restituir à existência individual todo seu peso e dar à morte o sentido de uma ruptura
radical entre este mundo e o além. Pois este não é mais simplesmente a triste permanência dos defuntos de que Aquiles
falava a Ulisses que ele preferia, mais do que reinar sobre as sombras, ver-se reduzido, aqui embaixo, à miserável
condição de puxador de arado sob as ordens de um senhor sem recursos,16 mas o reino dos ressuscitados, daqueles que,
tendo sido propriamente recriados, se regozijam na vida eterna que foi prometida aos justos. E nesse ponto que a
escatologia adquire inteiramente seu sentido, com a idéia de um fim dos tempos e de uma ressurreição dos corpos, a
qual rompe definitivamente com a de um retorno eterno e de uma transmigração eterna das almas.
Essa invenção ética de uma temporalidade orientada para um julgamento final, onde cada um deve prestar contas
de suas ações passadas, não se constitui o objeto das únicas religiões que se originam com Abraão. Mas aparece também,
como freqüentemente ignoramos, na Pérsia zoroastriana, à qual se deve, como já era do conhecimento de Renan, 17 a
própria idéia de uma doutrina da salvação, de uma soteriologia (do grego sôtêr, “salvador”). Encontra-se, na verdade, no
monoteísmo maz- deano (de Ahura Mazda, o Senhor Sábio, deus único reconhecido pelo zoroastrismo) não somente a
referência à vinda de um Saoshyant (salvador e benfeitor) que anuncia o Messiah invocado pelos profetas do Antigo
Testamento e o Chnstos dos Evangelhos, termos que em hebraico e em grego têm o mesmo sentido, o de “ungido” (sendo
a unção a sagração dos reis), mas também a idéia de uma ressurreição dos corpos “gloriosos”, que será retomada por
São Paulo,18 assim como as noções de inferno e de paraíso que fazem parte da dimensão cósmica de uma retribuição dos

14
Cf. Edgar Morin, O Homem e a morte, Seuil, 1976.
15
Ver, entre outros, Husserl, Idéias diretrizes para uma fenomenoiogia, livro II, "Pesquisas fenomenológicas para a constituição", Galli- mard,
1982, p. 154 s.
16
Odisséia, Canto XI, passagem citada por Platão na República, 516d.
17 Cf. Ernest Renan, Vida de Jesus, coleção "Folio", Gallimard, 1974, p. 118. Nietzsche também não se enganou a respeito, tanto que soube
ver em Zaratustra o inventor da moral. Cf. Ecce Homo, "Por que sigo um destino?" § 3.
como trouxemos a imagem do que é terreno, traremos também a imagem do celestial" (1a Epístola de São Paulo aos Coríntios, 15, 44, 47,49;
5

atos realizados durante a vida no quadro de um “Julgamento final”, o qual se tornará o tema principal do profetismo
apocalíptico dos tempos após o exílio.19 A mais célebre das palavras persas retomadas no Antigo Testamento é, com
efeito, a de “paraíso” (no persa pairí-daeza, que significa espaço de terreno fechado, jardim, tendo dado em hebraico pardes
e, em grego, paradeisos), que designa a permanência prometida aos justos. Mas este, no mazdeísmo, não pode
verdadeiramente se identificar com o reino divino que a vinda do Salvador torna possível, a não ser no fim dos tempos,
no momento da transfiguração do mundo que advém com a ressurreição geral e que o Novo Testamento nomeia,
também, apokatastasis pantôn, o restabelecimento de todas as coisas.20
Estamos então em presença, em uma tal concepção de escatologia, de um poderoso instrumento de afirmação
incondicional da vida e da derrota da morte, do qual reencontramos o eco nas palavras de Cristo declarando que o Deus
de Abraão, de Isaac e de Jacó é, não um Deus dos mortos, mas um Deus dos vivos, e aconselhando seus discípulos a
segui-10 e deixarem os mortos enterrarem os mortos.21 Há, portanto, na escatologia cristã alguma coisa que a distingue
radicalmente das escatologias zoroastriana e hebraica e que constitui talvez o que Chateaubriand, assim como
Nietzsche, certamente em sentidos diferentes, chamam de “gênio” do cristianismo, 22 como a centralização na morte do
Cristo de uma religião que, contra toda problemática da sobre- vida e da imortalidade, ousa proclamar a morte do
próprio Deus como o elemento que constitui o ponto principal de seu ritual fundador: “Toda vez que comerdes deste
pão e beberdes desta taça, anunciais a morte do Senhor até que Ele retorne.”23*
É com efeito em São Paulo, o “primeiro cristão”, o “inventor da cristandade”, 24 que encontramos, como o jovem
Heidegger25 ressalta com vigor, uma noção inteiramente nova do eskhaton, desta segunda vinda do Cristo em glória, que
não pode mais ter o sentido de um acontecimento futuro que seria necessário esperar, mas, ao contrário, de uma
iminência que não cessa de se fazer presente ao espírito daqueles que já sabem e estão vigilantes: “Quanto aos tempos
e aos momentos, não há necessidade, irmãos, que vos escreva, pois vós mesmos sabeis muito bem que o Dia do Senhor
virá como um ladrão na noite. Quando disserem: paz e segurança, então a perdição se abaterá sobre eles [...]. Mas vós,
irmãos, não estais nas trevas, para que o Dia vos surpreenda como um ladrão [...]. Não somos da noite nem das trevas;
não durmamos então como os outros; ao contrário, permaneçamos vigilantes e sóbrios.” 26 Ter uma relação autêntica
com a parusie,27 no sentido escato- lógico particular do qual se reveste em São Paulo, isto é, com a presença iminente do
Dia do Senhor, é estar vigilante, e esse estar em vigília tem seu fundamento não na busca da segurança, mas, ao contrário,
sobre uma consciência da absoluta incerteza do momento de Sua vinda. Desse modo, para o jovem Heidegger, o
sentimento cristão nada mais é que a experiência da temporalidade finita enquanto esta se baseia na consciência da
incerteza constante, essencial e necessária do momento da morte.
Contudo, o cristianismo afirma com a mesma energia a morte e a ressurreição do Cristo e, embora eleve a seu mais
alto grau o hiato da morte e coloque entre o homem antigo e o moderno menos a continuidade e a permanência de uma
mesma substância do que uma verdadeira recriação pelo ato divino da ressurreição, nela não subsistindo senão a
condição mortal do homem, a qual se vê então, de alguma maneira, “constatada” na pessoa do Cristo ressuscitado, o
que é ainda uma forma, tornando-a muitíssimo problemática, de afirmar a possibilidade de uma sobrevida. É com o
cristianismo que aparece a idéia de um Deus triunfando sobre a morte, e é com ele também que é ressaltado o trágico
da condição humana, sob a forma da morte na cruz de um Cristo abandonado por um Deus que silencia. O paradoxo
do crucificado, que tanto inquietou Nietzsche, isto é, de um deus que, ao morrer, torna-se senhor da morte, que, ao
suportar a prova da agonia, torna-se capaz de “esperar contra toda esperança”28 e, oferecendo-se à morte, tem acesso à
vida e à alegria, é na obra romanesca do católico incondicional que foi Georges Bernanos, que encontraremos, sem

a tradução citada aqui do Novo Testamento é a que apareceu na coleção "Bibliothèque de Ia Pléiade", Callimard, 1971).
19
O acento novo que reveste a literatura profética bíblica na época marcada pelo fim do exílio da Babilônia e o Edito do imperador persa,
Ciro, ordenando a restauração do Templo de Jerusalém (538 a.C.) é bem expresso pela palavra grega apocalypsis ("revelação"), que designa
o gênero literário em que a profecia prevalece sobre a pregação, e as visões, sobre a narrativa.
20
Atos dos Apóstolos, 3, 21.
21
Evangelho Segundo São Mateus, 22, 32, e 8, 22.
22
F. Nietzsche vê na idéia de um Deus se oferecendo a si mesmo em sacrifício para pagar as dívidas do homem "o golpe de gênio do
cristianismo" (A genealogia da moral, 2- dissertação, § 21).
1 Epístola de São Paulo aos Coríntios, 2, 26. Ver a análise muito interessante do cristianismo feita por Roger Mehl em O envelhecimento e
22 â

a morte, PUF, 1956, p. 72 s.


24
F. Nietzsche, Aurora, § 68.
25 Em um curso, não publicado na ocasião, do semestre 1920-1921, cujo tema foi a "Fenomenologia da religião".
26
1- Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses, 5,1-6.
27
Da palavra grega parousia, que significa "presença", e é empregada por São Paulo para designar a segunda vinda do Cristo.
28
Epístola de São Paulo aos Romanos, 4, 18.
dúvida, a melhor ilustração, ele, cujos heróis vencem a morte no mesmo instante em que ela os arrebata. É o caso de
Blanche de la Force nos Diálogos das Carmelitas, que, após ter temido a morte durante toda a sua vida, caminha sem medo
e cantando para o cadafalso, e do cura d’Ambricourt, no Diário de um pároco de aldeia, do qual a última frase é a afirmação,
no final das contas bem nietzschiana, e que resume por si só toda a obra de Bernanos, do qual um dos romances mais
sombrios recebeu, entretanto, o título de Alegria: “Tudo é graça”. “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte,
teu aguilhão?”29 tal é o último grito do cristão. Eis por que se faz necessário buscar em outro lugar a imagem de uma
aceitação da mortalidade.

3. Tragédia e mortalidade

É nesta forma de arte efêmera que foi a tragédia grega que encontramos, na verdade, uma primeira representação
da condição primordialmente mortal do homem. O jovem Nietzsche via neste “jogo do luto” (eis aí, com efeito, o nome
alemão da tragédia, Trauerspiel) a aliança da consciência do horror de uma existência humana destinada à morte e do
sonho de um mundo olímpico povoado de deuses. Pois o grego, segundo ele, é o homem mais sensível ao absurdo da
existência, aquele cujo olhar agudo desvenda o terrível processo destruidor da história universal, que nada ignora das
crueldades da natureza e que não encontra consolo nem na idéia de um mundo após a morte nem na imagem luminosa
dos deuses, mas que unicamente na mentira da arte chega a ser salvo, 30 já que “a criação do poeta nada mais é que essa
imagem luminosa que a natureza nos oferece para nos curar após termos lançado um olhar sobre o abismo”. 31 É, na
verdade, a sabedoria humana, isto é, o saber- se mortal, que constitui essa monstruosidade que vai em sentido contrário
ao curso da natureza, desvendando-lhe o segredo, como demonstra a resposta de Édipo à Esfinge, e que encontra seu
castigo nos decretos implacáveis do destino. O que há de contrário à natureza na existência humana é precisamente que
ela não se constitui uma vida absolutamente viva, mas uma vida que inclui em si a relação com o mundo dos mortos.
É ainda, de uma certa forma, o mundo antigo, ao mesmo tempo visível e invisível, povoado de vivos e de mortos,
apesar de tudo, presentes, que a tragédia grega descreve: vê-se bem, por exemplo, na Antígona, de Sófocles, e na
obstinação que demonstra, ao desprezar sua própria vida para dar uma sepultura ao irmão, a importância que há em
atribuir um sentido à morte elevando o ser singular que desapareceu à universalidade, fazendo dele um daimon, um
espírito. Pois a morte significa, como Hegel ressalta na interpretação que faz dessa tragédia, na
Fenomenologia do espírito,}2 o começo da vida do espírito que constitui a essência do genos e a continuidade da família grega.
Se o indivíduo singular pertence, enquanto viver, à cidade, já que é somente ali que ele encontra seu ser verdadeiro e
substancial, a contingência de sua morte o devolve ao reino da natureza, e é o papel da família que representa essa lei
divina da qual Antígona exige a proteção contra Creonte, restituindo ao morto sua verdade espiritual, assegurando-lhe
uma sepultura, atraindo para si a morte ao arrancar suas raízes da natureza. É porque nada podia ser mais terrível para
o homem da Antiguidade do que privá-lo da honra suprema da sepultura, pois, neste caso, o que é propriamente terrível
é menos a morte em si que o morto, enquanto ele não tiver atingido o processo de interiorização e fixação da memória
que é o luto, última proteção contra o poder exercido pelos mortos sobre os vivos, e enquanto continuar a povoar,
conforme a maneira de inquietante estranheza daquele que retorna do além, que ao mesmo tempo está fora da morte e
fora da vida, a consciência dos sobreviventes.
Todavia, a partir daí, nessa mesma tragédia, no famoso canto do coro celebrando essa aterradora maravilha (o
termo grego que aparece aqui, deinon, tem, com efeito 32, esses dois sentidos opostos) que é o homem, senhor de arte e
de engenho (versos 333 e seguintes), Sófocles reconhece que só contra a morte não soube inventar remédios, que
entretanto soube imaginar contra as mais terríveis doenças. Que não haja remédio para a morte, que a mortalidade seja
a divisão do homem e que este se distinga tão radicalmente dos mortais, dos que não conhecem nem nascimento nem
morte e que, por isso mesmo, não podem mais povoar com sua presença o mundo dos mortais, é também o que, na
tragédia sofocliana, prepara o advento da filosofia.

29
1s Epístola de São Paulo aos Coríntios, 15, 55.
30
F. Nietzsche, O Nascimento da tragédia, Gallimard, 1949, § 7.
31
Ibid, § 9.
32
Hegel, Fenomenologia do espírito, capítulo VI, "O espírito", "A) O espírito verdadeiro, a ordem ética", Aubier-Montaigne, 1939-1941, tomo
II, p. 14 s.
7

Temos, sem dúvida, razão de ver no herói de uma outra tragédia de Sófocles, que é Édipo, o protótipo do filósofo,
daquele que almeja e procura o saber. Pois Édipo é este herói trágico que, ao contrário de Antígona, não morre, mas não
termina, no decorrer de seu longo vaguear sem rumo que aguarda o cego em que ele se tornou, de viver, por assim dizer,
sua própria morte, ele, que o coro chama de atheos (verso 661 de Édipo rei), quer dizer não “ateu” no sentido moderno que
damos a esta palavra, mas “sem deus”, desterrado pelo deus que se separa e lhe volta as costas, abandona-o, deixando-
o, assim, na solidão de sua consciência de estar consagrado a uma morte lenta e que demora a chegar. Hõlderlin, nas
Notas que acompanham suas traduções dessas duas tragédias de Sófocles, distingue duas espécies de morte: a morte
física, que é a morte efetiva de Antígona, e a morte espiritual, que arrebata Édipo e o condena a retornar a este mundo,
em lugar de escapar, na pretensão de governar seu próprio destino, em um além onde pudesse se identificar com os
deuses. Em Édipo em Colona, Sófocles nos descreve esta segunda vida de Édipo, que consiste em assumir o abandono, para
viver, por assim dizer, como um morto-vivo, e vemos aí a antecipação da definição da vida filosófica que Montaigne
dará mais tarde, em uma fórmula chocante retomada de Platão e dos estóicos: “Filosofar é aprender a morrer.” 33
A morte não se torna na verdade o objeto do discurso filosófico a não ser quando ela não se apresenta mais como
“morte em geral”, como “acidente”, sobrevindo a um vivente, nem mesmo como “destino” contra o qual é impossível
lutar, mas como “morte própria”, como “minha-morte”, o que implica considerar, por aquele que pensa, a possibilidade
de seu próprio desaparecimento. O discurso filosófico sobre a morte é então propriamente o discurso sobre a
mortalidade ou o ser- mortal, nesta qualidade.

II
A METAFÍSICA DA MORTE

A filosofia somente surge como forma cultural determinada a partir do momento em que a ligação entre o visível
e o invisível, os vivos e os mortos não é mais evidente, e que a ruptura entre a morte e a vida, entre o sensível e o
inteligível parece intransponível. Mas, ao mesmo tempo, essa separação radical entre o que é mortal e o que é imortal
não permanecerá somente no quadro de uma interpretação global do mundo, mas será igualmente interiorizada e
tornar-se-á o esquema de compreensão de si pelo ser pensante. Pois, o pensamento filosófico se distingue das outras
formas de pensamento que são a mitologia ou a poesia, como Hegel bem o sublinhou, pelo fato de que é livre em relação
a qualquer representação sensível, já que é puramente conceituai e teórico.

Assim, o pensamento filosófico implica por si só a conseqüência lógica da experiência que excede o só-sensível, isto
é, a experiência propriamente supra-sensível de um além da morte no próprio seio da vida de um ser mortal. Por
conseguinte, o pensamento filosófico tem por si mesmo uma estrutura metafísica; em outras palavras, é ao mesmo
tempo pensamento da mortalidade do pensante e da imortalidade do pensado. É possível, a partir do estilo geral do
pensamento filosófico, que possamos caracterizá-lo como estilo propriamente transcendental — no sentido em que
uma tal forma de pensamento implica, necessariamente, ir além de suas próprias condições finitas de se manifestar —
de determinar o quadro de uma “metafísica da morte”, que consiste em reconhecer a condição mortal do homem,
situando-o, contudo, em relação à imortalidade de um absoluto no qual só ela encontra seu sentido.
A filosofia apresenta-se, então, como a tentativa de assumir, ultrapassando-a, em um transcendentalismo a um só
tempo fundamentado e vago, esta “situação-limite” que é a morte. Sem pretender retraçar aqui as grandes linhas do que
podería ser uma história filosófica da morte,34 é contudo possível consultar a esse respeito algumas grandes figuras da
metafísica.

1. A imortalidade platônica

33
Título do capítulo XIX do livro I dos Ensaios.
34
Ver, sobre isso, o estudo de J. Choron, A morte e o pensamento ocidental, Payot, 1969.
É interessante, na verdade, que a filosofia, na qualidade de modo de pensamento determinado, esteja ligada de
maneira íntima, e em seu próprio nascimento, ao acontecimento de uma morte singular, a de Sócrates, que Platão nos
relata no Fédon. A invenção da filosofia coincide, assim, com a de um outro discurso sobre a morte e que é proposto pela
mitologia ou a teologia e que implica desde o início uma correspondência entre morte e filosofia, a qual será o horizonte
de todo o discurso platônico sobre a morte. Há, efetivamente, uma certa identidade entre a morte e a filosofia, já que
ambas têm como resultado destacar a alma do corpo. Encontramos então no Fédon a idéia de que o pensar e o filosofar
são uma morte metafórica, uma vez que supõem a separação entre a natureza corruptível do corpo e o caminho irreal
para a intemporalidade da idéia.
Estar morto, eis em que consiste precisamente a tarefa do filósofo e, como é dito explicitamente por Platão em
uma fórmula que já anuncia Montaigne: “Aqueles que filosofam, no sentido exato da palavra, se exercitam para morrer
e não há no mundo homem que tenha, menos que eles, medo de estar morto” (Fédon, 67e). Trata-se para estes de se
aplicar ao longo de sua vida em separar sua alma de seu corpo, isto é, de se exercitar propriamente para morrer (81a).
Essa preparação para a morte em si já é o acesso à imortalidade. Como Jan Patoêka ressalta em um dos textos em que
desenvolve a idéia de que a preocupação com relação à alma é o começo da filosofia e da história verdadeira: “O filósofo
platônico triunfa sobre a morte no sentido em que não foge diante dela, olhando-a face a face. Sua filosofia é meletê
thanatou, inquietação com a morte. A inquietação com a alma é inseparável da inquietação com a morte, que se torna
inquietação autêntica com a vida; a vida (eterna) nasce desse olhar voltado diretamente para a morte, do triunfo sobre
a morte (talvez não seja ela outra coisa além desse ‘triunfo’).” 35
O medo da morte provém da “crença” (doxa) em uma destruição total entre os que não têm olhos a não ser para o
sensível, enquanto que aquele que faz a experiência do pensamento, morrendo em seu corpo, descobre, nesse exercício,
a imortalidade e o fato de que a alma não pode ser destruída. Nasce, desse modo, para a vida verdadeira; ou, mais
precisamente, como Patoêka sugere com propriedade, é desse olhar, desse “olho a mais”, que ele tem talvez e que
Hõlderlin reconhece em Édipo,36 que nasce a própria vida eterna, produção e obra da “preocupação” com a morte
enquanto se confunde com a “inquietação” com a alma.
Não se trata talvez, com efeito, em todo platonismo senão de uma liberação do olhar, que já é por si mesmo
pensamento do ser, do que escapa à morte e ao tempo. Um tal olhar é, no entanto, menos evasão da doxa que tomada
de consciência dolorosa de um estar-cativo nela. É precisamente o que nos ensina o mito da caverna. Aqueles que ali se
encontram imobilizados em suas correntes de maneira a só enxergar as sombras que se desenham nas paredes do mundo
subterrâneo, sombras como realidade, nada percebem de sua verdadeira condição. Não é senão quando se vêem
misteriosamente libertos de suas amarras e capazes de olhar para trás, depois de ter acesso, após uma longa e difícil
subida à abertura do mundo, onde podem, enfim, perceber o próprio sol, que eles tomam então consciência de seu
antigo cativeiro e da infinita distância que continua a separá-los da fonte da luz. Nesta saída para longe da obscuridade
que os envolvia na origem, eles se vêem menos libertos de seu cativeiro que devolvidos a ele em sua verdade.
Pois, como Platão o enfatiza,37 o filósofo deve, embora a contragosto, descer novamente à obscuridade da morada
comum para tomar parte no governo da polis.
Mas esse retorno é provocado talvez menos por motivos filantrópicos do que requerido pela impossibilidade em que se
encontra o pensador de se estabelecer na morada no eterno e de permanecer por muito tempo na luz. Mesmo o pensador
continua a estar sujeito à mobilidade da doxa e não lhe é mais permitido do que aos outros homens olhar fixamente o
sol. Não há então discursos sobre o ser verdadeiro das coisas ou ontologia possível a não ser a partir de uma situação de
cativeiro na qual se manifesta.38 É pela tomada de consciência dos limites de sua condição que o pensador se abre para
o ilimitado e é então capaz de ver a sombra como sombra sem mais confundi-la com o que é verdadeiramente existente.
Ele pode, então, no máximo, como diz Hõlderlin em um poema justamente intitulado “Grécia”, “lançar um olhar para
fora, para a imortalidade e os heróis”. Mas esse olhar que o eleva acima do finito e da condição mortal do homem não
pode ser definido somente a partir do que ele permite perceber, mas também a partir do lugar onde ele tem origem,
dessa obscuridade que, ao mesmo tempo, o permite e o impede e que, na medida em que é a condição de sua

35 Jan Patocka, Ensaios heréticos, Verdier, 1981, p. 115.


3* Em um poema da "loucura" escrito entre 1806 e 1810, "Em adorável nuance de azul", encontra-se a afirmação: "O rei Édipo tem talvez
um olho a mais", e que termina por uma outra alusão ao filho de Laio, seguida desta frase à qual é fácil dar um sentido platônico: "A vida é
a morte e a morte é também uma vida."
37
Cf. República, VII, 520c-d.
38
Eis aí a interpretação do Mito da Caverna feita por Eugen Fink em Zur ontologischen Frühgeschichte von Raum-Zeit-Bewegung (Nijhoff,.).
9

possibilidade, é também a de sua impossibilidade.


É esse “duplo lago”, essa dupla imposição do pensamento humano que é, a um só tempo, ir além da finitude
e cativeiro em si, que é dito, de diversas maneiras, de uma ponta à outra da história da filosofia e que confere seu estilo
próprio ao enunciado filosófico que, não dependendo nem da positividade científica nem da visão poética, exprime
somente a tensão que opõe e separa ao mesmo tempo o finito e o infinito, o mortal e o imortal e permanece, como tal,
inseparável do testemunho existencial daquele que o formula.
É talvez o que explica que não encontremos no Fédon verdadeiras provas da imortalidade da alma. Nem o argumento
da reminiscência, que não basta para pensar que possamos chegar a uma conclusão sobre a existência da alma antes do
nascimento e sua subsistência após a morte (77a), nem sobre a suposta analogia entre a natureza da alma e o que ela é
suscetível de aprender, isto é, as idéias eternas (79b-84a), não são por si provas demonstrativas. É então através de um
cálculo de possibilidades que o filósofo se resolve, o qual, apostando na imortalidade da alma, ganha a cada vez, pois, se
tem razão, estará bem, e se estiver errado também, apesar de tudo, pois não se entregará a lamentações nesta vida (91b).
A crença na imortalidade da alma é então um risco que vale a pena correr, e o mito escatológico que fecha o diálogo
(114d) e conta a destinação das almas após a morte desempenha o papel de um encantamento com o fim de exorcizar o
medo da morte.
Mesmo que o Fédon não afirme categoricamente a imortalidade da alma, isso não tem conseqüência a não ser que
dela se esteja convicto e que toda a estratégia filosófica consista em substituir o medo “comum” da morte pelo medo da
vida, pois o que o filósofo teme verdadeiramente não é morrer, mas viver excessivamente apegado ao corpo e ao sensível.
O verdadeiro perigo para ele consiste, então, em atribuir à morte um poder demasiadamente grande e, se filosofar
significa ser um morto-vivo, a vida filosófica tem, por conseguinte, o sentido explícito de uma vitória obtida sobre a
morte, que se vê assim despossuída de sua negatividade radical.

2. A “substituição” hegeliana da morte

No outro extremo da história ocidental, encontramos em Hegel e em seu poderoso discurso sobre a morte e a
mortalidade uma estratégia semelhante que visa superar e de alguma maneira “domar”399 a morte. Pois se, como o
expressam as páginas sem dúvida as mais célebres de Fenomenologia do espírito, as que tratam da dialética do senhor e do
escravo, o acesso à humanidade como tal não é possível a não ser pelo enfrentamento da morte, este “senhor absoluto”,
e isto implica precisamente a capacidade que tem o homem de se elevar acima da simples vida animal, de pôr a
integralidade de sua vida em jogo a fim de atingir a consciência de si como ser livre. Reencontramos aqui, então, o
mesmo esquema propriamente metafísico ou transcendental: o homem se eleva acima da vida, que é contudo a própria
condição da emergência do que é mais que um simples vivente.
Todavia, Hegel afirma claramente na introdução da Fenomenologia do espírito: “Aquele que é limitado a uma vida
natural não tem por si mesmo o poder de ir além de seu ser imediato; porém, ele é conduzido além desse ser- aí por um
outro, e esse ser-alijado de sua posição é sua morte.”40 O simples vivente não possui a capacidade de ir além dos limites
impostos pela natureza: é a razão pela qual, como na caverna platônica, ser arrancado de seu imobilismo só pode lhe
ser imposto do exterior, o que somente lhe vem a acontecer por intermédio de um outro. O acesso à consciência de si
tem então o sentido de uma morte somente para o ser vivente de quem constitui o apoio, mas, se essa morte, do ponto
de vista daquele, lhe vem bem do exterior, da ótica da consciência de si, ela é o próprio ato de sua autogeração. Como
Heidegger salienta em seu comentário deste texto: “Nesta morte constante, a consciência oferece sua morte em sacrifício
a fim de ganhar, a partir desse sacrifício, sua própria ressurreição.”41 Morte e ressurreição, eis, na verdade, a “proposta”
do hegelianismo, que eleva, assim, o cristianismo à altura de uma verdade filosófica, já que se trata, para a consciência,
de morrer na natureza que não é, ela mesma, nada além do “cadáver” da idéia, 42 para renascer em espírito na vida pura

39 Eisaf a palavra de Montaigne, que diz, quando de um grave acidente que lhe fez ver a morte de perto que, "para domar a morte [...) só é
preciso dela se avizinhar" (Ensaios, livro II, capítulo VI).
40
Fenomenologia do espírito, op. cit., tomo I, p. 71.
41
"Hegel e seu conceito de experiência", em Caminhos que não levam a parte alguma, Gallimard, 1980, p. 196 (tradução modificada).
42
Na Enciclopédia, no fim da Filosofia da natureza, Hegel chega a afirmar que o objetivo da natureza é atribuir a si mesma a morte a fim de
permitir ao conceito renascer enquanto espírito.
do conceito.
Com Hegel também, trata-se então, para o homem, de ser um morto-vivo, e é mesmo essa capacidade de morte
que é a base de sua liberdade, enquanto que esta consiste na possibilidade de negar a determinação natural. É isto que
explica que a liberdade esteja essencialmente ligada ao Terror, pois “a única obra e realização da liberdade universal é a
morte”.43 Se a ordem humana não advém senão pela negação da liberdade, podemos então afirmar, como Kojève, que “o
homem não é simplesmente mortal; é a encarnação da morte-, é sua própria morte”; o que implica que o ser do homem
“se manifesta como um suicídio postergado”.44 A existência propriamente humana é então uma morte voluntária
continuamente assumida: Hegel junta sua voz à de Novalis, que sem dúvida percebeu com maior acuidade a relação do
idealismo com a morte, como bem o demonstra o fragmento seguinte, escrito entre 1795 e 1797: “O ato filosófico
autêntico é o suicídio; reside aí o começo real de toda a filosofia; é para isso que tendem todas as necessidades do futuro
filósofo; e só esse ato está em conformidade com as condições e as características de uma ação transcendental. ” 45
Pois experimentar a angústia com relação à totalidade de seu ser — isto é, a angústia da destruição total — já
constitui propriamente o acesso à liberdade da consciência de si: a dissolução íntima, a “fluidificação absoluta de toda
subsistência” que gera o temor da morte é por si mesma “o puro ser para si”, esta “absoluta negatividade” que é a
consciência de si.46 O que Hegel demonstra com firmeza é que a angústia da morte é o verdadeiro princípio da
individuação. Mas, ao mesmo tempo, trata-se para ele, segundo o movimento que é o de toda a metafísica, de integrar
à vida essa ruptura radical, já que como o atestam as duas figuras antitéticas e inseparáveis do senhor e do escravo, a
negação da vida (o domínio) supõe como sua condição a própria positividade vital (a escravatura que é sempre a
escravatura da vida).
Trata-se, na verdade, do enfrentamento das consciências, em que cada uma tende à morte da outra, de mostrar a
cada uma sua liberdade, isto é, seu desprendimento em relação à vida natural, e de revelar, desse modo, a diferença da
consciência de si e do ser imediato; em outros termos, da simples presença de um dado. Mas isto de que fazem a
experiência tanto o senhor quanto o escravo é que a morte nada pode “revelar”, pois, na qualidade de negação de
qualquer dado em geral, ela anula a própria consciência de si. Pois a morte nada mais é do que uma negação natural de
que não tem em si o poder de manifestação e não pode fazer surgir nenhuma verdade. Eis por que não podemos nos
contentar aqui, como na tragédia, com a luta mortal que o herói trava contra o destino, “a fim de testemunhar, até na
perda de sua liberdade, desta mesma liberdade e de sucumbir sempre proclamando sua livre vontade”.47 Um tal combate
não permite, na verdade, senão deixar entrever, na luz clara e instantânea que é o momento da morte, a reconciliação
da liberdade e da necessidade no espetáculo artístico que é a representação trágica. Para que a liberdade não desapareça
instantaneamente em seu testemunho, é necessário que o combate não oponha mais o homem ao conjunto da natureza,
porém dois indivíduos um ao outro. É necessário, como Hegel salienta, que a apresentação de si como consciência livre
seja uma dupla operação, ao mesmo tempo operação do outro e a operação por si mesma, morte de cada um desejada
pelo outro, mas também pôr em risco sua própria vida e morte, exposta ao perigo por cada um. É preciso, então, um
testemunho recíproco da liberdade que, para sobreviver à sua operação, não seja a negação abstrata da natureza, mas
uma negação que conserve e retenha o que foi extinto, o que implica que a consciência de si não possa ser posta em
relação com ela mesma a não ser pela mediação de uma outra consciência que aceite reconhecer que a vida natural lhe
é tão essencial quanto a consciência de si. Essa consciência é aquela do escravo que, experimentando o temor da morte,
teve acesso à absoluta negatividade da consciência de si e que, pelo trabalho, vai poder dar a seu ser a permanência do
ser em si, já que será capaz, ao contrário do senhor, de encontrar a si próprio em suas obras. É então pelo trabalho, pela
transformação do ser objetivo da natureza em objetos de cultura, que advém a reconciliação da liberdade e da
necessidade.
Permanecer viva, eis o que é necessário a fim de que a consciência de si se veja revelada. Mas não pode sê-lo a não
ser em um outro: a verdade do senhor, ou seja, que é uma pura negatividade, é a consciência “reprimida” do escravo
para a qual ela contribui. Com efeito, o escravo que recuou diante da morte teve que refrear seu desejo de ser
imediatamente reconhecido como consciência de si e se viu forçado a retardar o momento da negação abstrata da

43
Fenomenologia do espírito, op. cit., tomo II, p. 136.
44
A. Kojève, Introdução à leitura de Hegel, Gallimard, 1947, pp. 569-570.
45
Novalis, Fragmentos, Aubier Montaigne, 1973, p. 44 (tradução modificada).
46
Fenomenologia do espírito, op. cit., tomo I, p. 164.
47
Schelling, "Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo", em Primeiros Escritos, PUF, 1987, p. 209.
11

natureza. O trabalho que, na qualidade do desejo refreado e desaparição retardada, consiste em dar forma ao ser objetivo
faz da negação alguma coisa de permanente que nada mais é que o objeto cultural enquanto, nele, o para si se exterioriza.
Recuo em face da exposição da vida ao perigo, diante da negatividade abstrata que é a morte, o trabalho não é senão
uma economia da vida que atesta que a consciência de si não se liberta dela a não ser a ela se submetendo. É nesse ponto
que a tragédia transforma-se em comédia, e nasce o riso, como Bataille salienta. É risível, com efeito, a tentativa de dar
um sentido à morte e amortizar o que é gasto a fundo perdido que é a vida humana. Há, na verdade, para ele uma alegria
ligada à afirmação da morte que, longe de ser o oposto da angústia, constitui, ao contrário da seriedade do trabalho que
é um meio de escapar dela, a única maneira de ali permanecer.4»
Hegel conclui, assim, pela idéia de uma negação somente “espiritual” da vida, de uma “substituição”, de uma
Aufhebung que conserva a vida enquanto a nega: e como ele sublinha no Prefácio da Fenomenologia do espírito, “a energia
do pensamento, do puro eu” que permite 48 “atribuir uma existência própria e uma liberdade separada” ao acidental, ao
que não existe a não ser em sua ligação com um outro, isto é, com o próprio conteúdo do pensamento, com a Idéia, que,
contudo, só existe em sua relação com o ser pensante. Essa separação, que resulta do trabalho do entendimento e
manifesta o poder absoluto deste, só advém através do pensamento e da linguagem, que são como o entendimento das
potências da morte, pois, nelas, é a própria efetividade do real que se vê exposta à morte. É então, enquanto ser pensante
e falante, que o homem se vê levado a “afirmar o que é a morte”. A vida propriamente humana, em vez de se opor à
intangibilidade da morte, deve então compor “interiormente” com ela: “Não é a vida que recua aterrorizada diante da
morte e se preserva pura da destruição, mas a vida que resiste à morte e nela está contida que é a vida do espírito. O
espírito conquista sua verdade somente quando encontra a si mesmo na divisão absoluta.”49 Trata-se de olhar a morte
de frente, não de voltar-lhe as costas, e de permanecer em sua negatividade, o que só é possível se, pela “magia” do
espírito, o negativo se veja convertido em ser. A morte se apresenta, então, como alguma coisa a realizar, a fazer
acontecer no mundo através do trabalho “formador”: a magia da dialética do discurso não faz senão reproduzir aqui a
que é empregada em toda cultura, já que esta nada mais é que o poder capaz de fazer “ser” a morte ao anular a natureza.

3. A metafísica do devenir

A oposição da morte e da vida serve, portanto, de modelo operatório ao discurso hegeliano que descreve,
recorrendo a metáforas, a mobilidade do absoluto em contraste com a fixidez das coisas finitas. Que o absoluto não
possa advir a não ser se manifestando na história, que o infinito tenha necessidade de passar pela prova da fini- tude e
da morte para se revelar, eis aí o que Hegel nos ensina. Podemos indagar todavia que, em um pensamento que chega a
converter o negativo em positivo e o nada em ser, há verdadeiramente lugar para a “intangibilidade” que é a morte. Não
é por acaso, com relação a isso, que a Enciclopédia das ciências filosóficas termine com a citação de uma passagem da
Metafísica de Aristóteles, na qual diz que a inteligência em ato é vida e que Deus, aquele que vive eternamente, é este
próprio ato.50 Aristóteles reconhece, assim, no pensamento do homem, a presença do divino. Mas a vida de Deus é isenta
de todas as imperfeições que são o destino da vida humana: vida superior, não conhece nem o envelhecimento, nem a
morte. É então nessa vida superior que os humanos têm parte, mas somente por breves momentos, quando sua atividade
admite seu fim em si mesma, como é o caso quando eles pensam. Pois a contemplação, a teoria, que não busca nenhum
objetivo fora de si mesma e que almeja um prazer perfeito, constituiría a perfeita felicidade, a eudaimonia, se pudesse se
prolongar por toda a duração da vida. Na contemplação o homem não vive mais uma vida humana, mas participa de
uma vida verdadeiramente divina. Não é preciso, segundo Aristóteles, sob o pretexto de que somos mortais, pensar
somente nas coisas humanas e renunciar às coisas imortais, mas devemos, ao contrário, na medida do possível, nos
tornar imortais.si Esse athanatizein, essa capacidade de escapar da morte, não é, contudo, senão a possibilidade que têm
os thnetoi, os mortais, de se tornarem, por instantes, semelhantes aos deuses e de serem, por breves momentos, o que
eles são sempre. Para Aristóteles também, o filosofar consiste em se elevar ao ponto de vista divino, mas sem poder
jamais permanecer por muito tempo nesse nível.

48
Ver o comentário de J. Derrida em "Da economia restrita à economia geral. Um hegelianismo sem reserva", em A Escritura e a diferença,
Seuil, 1967, p. 376 s.
49
Fenomenologia do espírito, op. cit., tomo I, p. 29.
50
Metafísica, livro Lambda, capítulo 7,1072b 15 s.
Contudo, tem-se o hábito de considerar Aristóteles como opositor ao idealismo platônico e à separação que este
último instala entre o sensível e o inteligível, e como aquele que tenta demonstrar a mudança elaborando uma física,
51
enquanto esse domínio permanece rigorosamente ignorado no platonismo. Ninguém duvida, no que a isso se refere,
que a Física de Aristóteles não constitua, como Heidegger o proclama,52 53 o livro fundamental da filosofia ocidental, pois,
embora precedendo ao que mais tarde será chamado de metafísica, não contém somente uma elucidação propriamente
ontológica da mobilidade e do devenir, não se situando o ser precisamente para Aristóteles “além” do sensível. É certo
que Aristóteles critica a doutrina platônica das formas separadas, porém, para tanto, não renuncia à noção de forma em
si, embora esta não seja mais a única a definir o ser sensível que contém também predicados acidentais. É o que explica
que seja necessário proceder a uma análise do devenir no momento mesmo em que é abordado de frente o problema
do ser e da substância (ousia), como é o caso no livro Z da Metafísica, cujos capítulos 7 a 9 são dedicados a uma evocação
da teoria do movimento exposta na Física. A geração (genesis) é na verdade a base da composição dos seres sensíveis nos
quais a forma não pode inteiramente demonstrar a matéria acidental. É a razão pela qual, falando dos seres em devenir,
Aristóteles sublinha seu caráter contingente: “Todos os seres que são gerados, seja pela natureza, seja pela arte, têm uma
matéria, pois cada um deles é capaz de, ao mesmo tempo, ser e não ser, e essa possibilidade é a matéria que está neles.” 52
A distinção da matéria e da forma não basta, contudo, para abranger a idéia do devenir. O que caracteriza o devenir
em geral é que tudo o que se torna torna-se a partir de alguma coisa.54 O postulado fundamental da pesquisa aristotélica
sobre a phjsis, que não é de forma alguma equivalente à “natureza” no sentido moderno, mas compreende o conjunto do
cosmos, os elementos, as plantas, os animais e os seres humanos com o conjunto de suas obras, é que todos os seres da
natureza têm seu lugar, na totalidade, ou em parte, no movimento (kinêsis).55 Mesmo aqueles que, entre os predecessores
de Aristóteles, chegam a negar a existência do movimento, como Eleatas, reconhecem, todavia, nos contrários, tais como
o frio e o quente, os princípios da natureza: “Se isto então é verdade, diremos que a geração de tudo o que é gerado e a
destruição de tudo o que é destruído têm como ponto de partida e como termo os contrários.” 56 Mas, se o devenir
consiste verdadeiramente em uma passagem de um contrário a outro, é necessário “um estudo dos contrários”, 57 como
o afirma Aristóteles na passagem do livro 1 da Física, em que determina os princípios do devenir. Na verdade, é necessário
que alguma coisa permaneça (a matéria ou o sujeito) enquanto que alguma coisa muda (o predicado ou a forma).
Vejamos o exemplo tomado por Aristóteles, o homem que se torna letrado:58 o homem serve de sujeito nas
oposições iletrado-letrado. Ora, o que se torna é também, necessariamente, o que era e não será mais (o iletrado que se
torna letrado) e o que será ainda quando o que era não será mais (o homem que se torna letrado). É preciso, então,
reconhecer não somente uma duplicidade, mas, na verdade, uma triplicidade de princípios do devenir: pois se
chamamos de forma o que acontece no devenir, isto é, aqui o predicado letrado pode ser oposto tanto ao sujeito como
matéria do devenir (aqui o homem), quanto ao sujeito como ausência desta forma (aqui iletrado) e é esta não-forma
que Aristóteles chama de sterêsis, privação. É fácil mostrar que essa estrutura diferenciada do devenir tem um sentido
temporal: sendo a forma aquilo que será, indica o futuro, a privação que não é jamais, na qualidade de ausência
determinada, a qual, descoberta retrospectivamente, assinala para o passado, a matéria é o sujeito que permanece e não
cessa de estar presente. Assim se expressa a explosão do ser sensível em uma pluralidade de direções que podemos
considerar como outros encantamentos temporais, já que é o próprio Aristóteles que afirma que o movimento faz sair
de si aquilo que é59 e da transformação que se dá pela natureza estática.60
Os seres da natureza estão, desse modo, em movimento, e o movimento é definido como mudança a partir dos
contrários. Todavia, Aristóteles distingue, de um outro ponto de vista, de maneira incisiva, “movimento” e
“transformação”, kinêsis e metabolê. Quando uma coisa recebe atributos contrários (sendo contrários os atributos que
constituem a diferença da maior parte no mesmo gênero; por exemplo, letrado e iletrado), ela se torna outra — e aqui a
alteração (alloiôsis) parece bem ser o paradigma do que Aristóteles chama de kinêsis, movimento, o qual compreende

51
Ética de Nicômaco, livro X, capítulo 7.
52 Cf. Questões II, Gallimard, 1968, p. 183.
53Metafísica, Z, 7,1032 a 19 (trad. Tricot, Vrin, 1970).
54 Ibid. Z, 7,1032b 30.
55 Física, I, 2,185 a 12.

56 Ibid., I, 5, 188b 21 (trad. H. Carteron, Budé, 1961).

57 Ibid., I, 7,191 a 4.
58 Ibid., 1,7,190b s.
59 Ibid-, IV, 12, 221 b 3.
60 Ibid., IV, 13, 222b 16.
13

contudo ao lado da alteração, que é um movimento do ponto de vista da qualidade, o acréscimo e o decréscimo (auxêsis
e phtisis), que são movimentos sob a ótica da quantidade e a transferência (phora), que é um movimento relativo ao lugar.
Mas se ela recebe atributos contraditórios (reconduzindo a gêneros opostos, por exemplo, homem e não-homem), ela
se torna outra coisa, é destruída e, em seu lugar, outra coisa se produz: temos, assim, a relação com o que Aristóteles chama
de metabolê, significando esse termo mudança no sentido contundente de “reviravolta”, “inversão”.
É a metabolê que ele considera como o que pode expressar o conceito mais vasto do devenir, o que implica que, se
todo movimento é uma mudança, pelo contrário, toda mudança não é um movimento. A metabolê corresponde, na
verdade, à geração no sentido mais simples (genesis aplôs), o que reconduz ao movimento segundo a substância, isto é, a
simples passagem do não-ser ao ser, à própria genesis, e a seu contrário, a simples passagem do ser ao não-ser, à
destruição ou phthora, enquanto o movimento (kinêsis) é uma geração determinada (genesis tis) que tem lugar em um
objeto (hypokeimenon) e que corresponde às mudanças segundo a quantidade, a qualidade e o lugar.
No pensamento do devenir que permanece canônico para toda a metafísica ocidental, é notável que Aristóteles
tente enfrentar não somente o enigma da genesis, da passagem do não-ser ao ser, que corresponde à forma sob a qual se
representa freqüentemente o devenir (o qual se diz em grego gignomai, verbo que tem a mesma raiz de genesis), mas
também o enigma mais indecifrável ainda da phthora, da destruição que corresponde à passagem do ser ao não-ser que
é a morte. Pois a geração e a destruição puras não são movimentos pelos quais uma coisa “torna-se” outra que não era,
do ponto de vista da qualidade, da quantidade ou do lugar, não há nelas nenhuma permanência de um mesmo “sujeito”
a partir da qual a mobilidade possa ser pensada. Todo o esforço de Aristóteles consiste, então, em nos fornecer um
conceito da mobilidade no sentido mais estrito, e que poderiamos chamar de uma mobilidade cinética, enquanto a
mobilidade num sentido amplo, a mobilidade propriamente “metabólica”, permanece, no que tem de súbito e de
imprevisível, totalmente incompreensível.
Não encontramos contudo, na física aristotélica, que é uma verdadeira “metafísica do devenir”, resposta para o
enigma da destruição e da morte. Pois nela a destruição é pensada como o oposto da geração, a qual foi, desde o início,
definida como um devenir a partir de alguma coisa. É porque, embora Aristóteles faça delas uma destinação explícita,
geração e destruição continuam estruturalmente compreendidas a partir da alloiô- sis, da alteração qualitativa, isto é, de
uma mudança somente relativa. De uma tal perspectiva, o não-ser que está na origem ou no termo da mudança não pode
ser compreendido a não ser de maneira temporal, como o futuro do que não é ainda ou como o passado daquilo que
não é mais e continua inteiramente dependente do ser presente, do dado a partir do qual o encaramos. É assim que
dotamos de um rosto, de um eidos, isto é, de uma forma, de uma essência e de um conceito, o não-ser, que contudo é o
outro absoluto do ser. É, todavia, com o puro não-ser, do qual não há nem “essência” nem pensamento possíveis, que
nos vemos confrontados na morte.
É a partir daí que percebemos por que o “problema” da destruição e da morte tem, do ponto de vista existen- ciai,
uma importância maior que o da geração e do nascimento. Se é possível, em uma certa medida, nos contentarmos com
a existência e o dado, sem contudo jamais chegarmos a compreender por que existe alguma coisa em vez de nada,
parece-nos, ao contrário, impossível nos resignarmos com a idéia da destruição absoluta, do aniquilamento puro e
simples do nosso ser. A questão da origem das coisas é, certamente, uma fonte de inquietação para nosso entendimento,
mas a de seu fim constitui o tormento de todo o nosso ser. Eis por que a passagem do ser ao não-ser se nos apresenta
mais impensável ainda — se pelo menos uma gradação qualquer na ordem do que é possível imaginar tem ainda um
sentido — que a passagem do não-ser ao ser. É com espanto que descobrimos a maravilha das maravilhas, 61 que é o
existir e nada mais, porém é o terror que desperta em nós a certeza de nossa morte, a consciência do que não pode ser
nem sabido nem compreendido, do que está fora do tempo e fora do mundo, do que jamais se torna fenômeno, mas que
nos aproximamos talvez do horror sem nome que suscita em nós a visão do cadáver. Pois é o estranho e inquietante
testemunho daquilo diante do que a própria razão recua, em outras palavras, a possibilidade de sua própria desaparição.
É a medonha possibilidade da morte do próprio pensamento, da qual Aristóteles quis se preservar, esforçando-se para
tornar pensável a passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser. Conseguir pensar a morte seria, a um só tempo, salvar
o pensamento e restituí-lo a essa eternidade divina à qual Aristóteles afirmava que ele pertencia, ao menos por breves
momentos, ao permanecer no seio do próprio devenir. 62

61
Heidegger, Posfácio de Que é a metafísica? em Questões I, Galli- mard, 1968, p. 78.
62
Toda essa interpretação do aristotelismo deve muito ao admirável pensamento ao qual Eugene Fink dedicou seu curso semestral de verão
Manter-se através da dissolução, sobrepujar a morte, tal é, com efeito, a “proposta” da filosofia, a de uma
“metafísica do devenir” que afirma a substância de um indivíduo através deste e que encontra desse modo na própria
vida e no próprio devenir as condições de seu passamento. Eis a razão pela qual, em Aristóteles, a metafísica vem
“depois” da física da qual retoma os resultados. A metafísica aristotélica compreende, assim, uma “etapa mundana”, mas
ela não passa, a bem da verdade, pelo mundo a não ser para ali encontrar a indicação do que seria a substância
verdadeira, ou seja, a substância inteligível, a que está isenta da contingência e da
morte. 63 No que a isto se refere, dizer, como Hegel, que o absoluto não é somente substância, mas também sujeito, 64
não permite de forma alguma à fenomenologia hegeliana sair da ontologia da substância ou ousiologie que é a metafísica
ocidental. Pois se o absoluto não é mais somente o ser que é pensado, isto é, a substância, mas também o que pensa, em
outros termos, o indivíduo, e se ele é assim capaz de refletir sobre si mesmo, isso implica que a negatividade do
pensamento se vê integrada de forma ainda mais decisiva à positividade do ser e que a morte, elevada assim ao nível do
próprio absoluto, nada mais é do que o prólogo de sua ressurreição.
De Aristóteles a Hegel, essa negatividade absoluta, essa ruptura radical, esse impensável puro e simples que é a
morte se vêem convertidos em “não-ser relativo” e “negatividade determinada”, em ruptura “substituível” e em simples
limite do que pode ser pensado: o que, no final das contas, testemunha a incapacidade da metafísica de enfrentar
verdadeiramente a morte. O que é propriamente impossível de ser pensado para a metafísica pode apresentar-se nesta
qualidade em um outro tipo de discurso?

III
FENOMENOLOGIA DO SER-MORTAL

Se não é próprio da morte como tal nenhuma experiência e nenhum pensamento possível, se o “nada” que
ela “é” não pode senão impor o silêncio ao discurso conceituai, e se ela constitui o não-fenômeno por excelência,
o que não me aparece jamais “em pessoa”, dela pouco subsiste como o demonstram tanto as mitologias quanto as
filosofias, o se-saber e o se-sentir mortal constituem o fundamento da experiência que o ser humano tem de si
mesmo. É então esse estranho conhecimento de seu próprio fim, que cada um tem com certeza, e que não é
semelhante a nenhum outro saber, pelo próprio fato de sua irredutível dimensão “afetiva”, que torna possível um
discurso não sobre “a” morte, mas, ao contrário, sobre a relação que o ser pensante mantém com sua própria
mortalidade. E esse discurso, contudo, é propriamente “fenomenológico”, já que é um discurso sobre o apresentar-
se a si mesmo do caráter finito de sua própria existência.
O discurso “fenomenológico” sobre a mortalidade, ao contrário do discurso metafísico e de todas as outras
espécies de discursos sobre a morte que se sucedem no decorrer da longa história do homem, não promove
nenhuma “ultrapassagem” ou “superação” da morte e não oferece nenhuma transcendência suscetível de
neutralizá-la — quer se trate de uma transcendência puramente “biológica” da vida universal, da “mitológica”, de
um mundo dos mortos, da “teológica”, de uma eternidade divina. Ou da “metafísica”, de uma intemporalidade da
verdade ou ainda — e esta é, sem dúvida, a mais invocada em nossa época “relativista” — a transcendência
puramente antropológica do “tribunal” da história.
Todavia, isso não significa que a fenomenologia saiba mais sobre a morte que a mitologia, a teologia, a
metafísica, a antropologia e a biologia, mas simplesmente porque ela propõe a questão da essência daquilo que
aparece é que ela se vê obrigada a “pôr entre parênteses” todas as avaliações que são levadas em consideração —
o que Platão chamava de doxa, “opinião” ou “crença”, vocabulário retomado por Husserl quando ele apresenta a
redução fenomenológica como a neutralização dos “atos dóxicos”, que constituem o fundamento da atitude
natural de crença no ser-aí do mundo. A fenomenologia, que repete assim o gesto filosófico no que ele tem de
próprio, se abstém de toda e qualquer pressuposição que tenha origem nos diferentes domínios da cultura humana
e se propõe unicamente a descrever a maneira pela qual o ser humano se relaciona com sua própria morte.
Entretanto, não podemos objetar que não há fenomenologia possível da morte, pois ela é, por excelência, um não-

em 1964 na Universidade de Fribourg-en-Brisgau, reflexão cujo texto foi publicado em 1969, em Kohlhammer, sob o título de Metaphysik
und Tod, "A metafísica e a morte". É como recordação deste curso, ao qual assisti, pressentindo mais do que compreendendo a importância
do que ali fora dito, que este ensaio se esforça para continuar fiel.
63
Cf. P. Ricoeur, Platão e Aristóteles. Curso de 1953-1954, CUDES,
p. 112.
64
Fenomenologia do espírito, op. cit., tomo I, p. 17.
15

fenômeno e que é inútil pôr-se à procura de sua essência, já que ela é o não-ser absoluto? A morte, com efeito,
não se “apresenta, em pessoa”, no mundo, e nenhum olhar jamais chegará a distinguir nela seu eidos, sua forma
ou seu rosto. Parece, por conseguinte, evidente que a morte não pode jamais constituir a “própria coisa” à qual a
fenomenologia husserliana nos obriga a retornar.
Entretanto, não seria necessário ver na fenomenologia a descrição de um dado que importaria simplesmente ter-
se em vista, mas, ao contrário, reconhecer, como Heidegger, que “é precisamente porque os fenômenos não são de início
e no mais das vezes não dados que é necessária uma fenomenologia”,65 o que implica que o fênômeno-da-fenomenologia
não se confunde, de modo algum, com o que se entende habitualmente por esse termo e que não está “presente” no
sentido em que o estão as coisas chamadas “existentes”. É assim que há uma fenomenologia do outro que, contudo, não
aparece jamais como tal, que não pode se deixar entrever, a não ser de maneira indireta, e a respeito da qual Husserl nos
ensina que ela é, no entanto, percebida. Pois a percepção não é jamais percepção do só visível, mas, também e ao mesmo
tempo, do invisível, da qual ela é a antecipação necessária, embora este, quer não se constitua ainda um dado para ela,
como é o caso de tudo o que não está visível atualmente, mas pode assim tornar-se ulterior- mente ou jamais chegar a
sê-lo, como é o caso na experiência dos outros, cujas vivências não serão jamais acessíveis às vistas. Nos dois casos, o
invisível não é o oposto absoluto do visível, mas, na realidade, sua contrapartida secreta, sem o que não havcria, de
forma alguma, visibilidade.
Porém, a morte não é exatamcntc essa invisibilidade absoluta, o que não somente não será jamais um dado, mas o
que, evitando radicalmente qualquer presença, é o outro absoluto do ser? E, no entanto, ela é, em sua “irrealidade”, mais
“presente” do que o serão jamais as coisas da vida real, de uma presença tão insidiosa e obsessiva que se trata exatamente
de, quando não nos propomos a domá-la nesta “repetição” da morte que é a filosofia, de tentar fugir dela pelo
divertimento. É esta estranha presença da morte, que pode sobrevir a cada instante, que faz dela o hóspede sombrio de
todas as festas da vida.66 Constantemente presente no modo da iminência, deve-se então reconhecer nessa ausência
absoluta que é a morte um modo paradoxal de se apresentar que não está na origem de nenhuma fenomenalização
particular, mas que confere ao conjunto dos fenômenos seu “conteúdo” ímpar de finitude, deixando-os se destacarem
do fundo de sua luz negra.
Eis o que torna possível um discurso fenomenológico sobre a morte. Isso se atém à pura experiência da iminência
sempre possível do absurdo que é a supressão do existir e não tenta conferir à morte um sentido, integrando-a a uma
transcendência que a relativizaria. A morte permanece para ela a via impraticável do não-ser- absoluto de que fala o
Poema de Parmênides,67 esse impasse da não-verdade, com o qual, contudo, o ser pensante tem relação. E, talvez seja
mesmo o inverso: é porque tem relação com o nada que é a morte, que o ser humano pensa, e também fala e ri. É dessa
relação com a morte, dessa mortalidade, que é possível uma fenomenologia.

1. A própria morte e a morte do outro

A fenomenologia da mortalidade exige, então, a redução de qualquer tese sobre a morte, seja qual for sua origem,
para nos colocar diante do “puro fenômeno” da mortalidade. Ora, esse “puro fenômeno” da mortalidade tem o sentido
intrínseco de uma relação daquele que pensa com sua própria morte. Essa relação que Heidegger chama de Sein zum Tode,
que se traduz habitualmente por “ser para a morte” ou de “ser em direção da morte”, mas que significa, simplesmente,
um “ser em relação com a morte”. Mas esse ser em relação com a morte não é para ele, nem para o vivente em geral,
nem para o homem em seu sentido tradicional de animal racional, de vivente dotado de razão, mas aquele que ele batiza

65
Sein und Zeit, Niemeyer, Tübingen, 1963, p. 36. (Preferimos indicar aqui, na medida em que os textos citados de Heidegger serão todos
retraduzidos, a paginação do original alemão reproduzida em separado das traduções existentes, traduções nas quais muito nos
inspiramos aqui e das quais se encontrará a referência precisa na bibliografia.)
66
Como não citar aqui Novalis, este filósofo-poeta, sobre o qual, durante sua breve existência, pairou a sombra da morte: "Mas era um
único pensamento, / Um único sonho aterrador / Que se aproximava, terrível, das cenas de alegria / E cobria os espíritos com as sombras
do medo... / Era a morte semeando nos festins da felicidade/ Angústia e lágrimas de dor." (Hinos á noite.) (N.T.) Na tradução francesa de A.
Cuerne: "Mais il était une unique pensée, / Un seul songe effrayant / Qui s'avançait terrible aux tables de Ia joie / Et couvrait les esprits des ombres de
1'effroi... / C'était Ia Mort, jetant aux festins du bonheur / Angoisse et larmes de douleur." (Hymnes à Ia nuit, tradução de A. Cuerne, Falaize, 1950,
p. 42-43.)
67
Parmênides, Poema, Fragmento II.
por Dasein, utilizando-se de um termo que serviu em alemão para traduzir o latim existentia e que significa, literalmente,
“ser-aí".
Não é, todavia, o sentido geral que engloba tão bem as coisas inanimadas quanto as coisas animadas e o homem,
que Heidegger dá a esse termo, mas o sentido particular, que não se aplica senão ao existente que nós somos, de um
estar aberto para si mesmo e ao outro, que pode então ser um aí, isto é, como ele explicará, por conseguinte, uma
“clareira para a presença e para a ausência”.68 69 Fora de uma tal clareira, que nada mais é que o mundo, não há relação
possível com o ser e com o não-ser, como tais e, portanto, não com o estar-no-mundo e com o estar-para-a-morte
possíveis. O mundo, na verdade, não é para Heidegger o conjunto dos existentes, mas o horizonte a partir do qual os
existentes podem ser compreendidos como o que são; é então um momento constitutivo do próprio Dasein e não um
meio no qual este seria inserido, e eis o que explica que o ser “aí” do Dasein e o ser “aí” do mundo estejam inseridos no
mesmo contexto e constituam uma só coisa.70
É na medida em que é uma tal abertura — que impede que seja ele confundido com o que a filosofia moderna
chama de “sujeito” e que ela entende como uma inte- rioridade opondo-se à exterioridade dos objetos — que o Dasein,
porque não é indiferente a seu próprio existir, pode, todavia, designar a si mesmo pelo pronome pessoal “eu”.71 Não seria
necessário confundir, na verdade, como estamos naturalmente inclinados a fazê-lo, a subjetividade e a capacidade de
dizer “eu”. Pela palavra “eu” o Dasein designa a si mesmo, isto é, que ele se expressa como ser-no-mundo, o que não
significa necessariamente dizer que ele se reconhece como “sujeito”, pois este é, ao contrário, pelo fato de seu próprio
nome (subjectum, “aquilo que jaz sob”), compreendido a partir do modelo do conceito de substância como res cogitam,
“coisa pensante”.72 Há então uma ipséité ou uma identidade do eu que não se confunde em hipótese alguma com o ser-
sujeito pelo próprio fato de que ela jamais foi realizada, mas, ao contrário, sempre “está para” e este “estar para” tem a
forma de um projeto de si-no-mtmdo que não pressupõe nenhum ser substancial como seu fundamento.
Ao dizer “eu”, o Dasein exprime então seu próprio existir e é para ele que Heidegger reserva o termo existência,73 o
qual, conseqüentemente, não designa mais o modo de ser das coisas. Para este, I Ieidegpcr cria o termo Vorhandenheit
que, por oposição ao sentido “projetivo” do Dasein, remete à idéia de uma piesença dada e, portanto, já realizada. A
existência, no sentido preciso que Heidegger lhe atribui, é assim a capacidade de ter uma relação lógica consigo mesmo
e de se compreender em si mesmo e não remete, por consequência, à substância de nenhum ser substancial. Disso
resulta que a existência não pode, de nenhuma maneira, ser compreendida como um gênero comum a uma mulliplicida-
de de seres. É porque o existir do Dasein é, na realidade, um ter-que-ser, que ele não pode estar contido em si mesmo
como exemplar único de um gênero, mesmo que fosse o gênero humano, desde que este, como já o dizia Husserl, não
fosse jamais “realizado”.73 O Dasein é assim “a cada momento meu”, o que implica que ele não tem “modelo” ao qual teria
que se adaptar, nem essência que teria que realizar, mas que existe, a cada momento, a contingência do ser-lançado no
mundo a ser mantida, há o que Heidegger chama de uma “artificialidade da recondução do Dasein a si mesmo”,74 o que
faz com que nenhuma determinação tenha para ele a exterioridade de um fato de natureza e que, como o disse Merleau-
Ponty, “a existência não pode ter atributo exterior ou contingente” e que “ela não pode ser o que quer que seja” a ser sob
a condição de “retomar e assumir seus ‘atributos’ e fazer deles as dimensões de seu ser”. 75
É esta auto-aceitação que constitui, então, a singularidade e a unicidade da existência, e é claro que o aspecto
propriamente ético do “solipsismo existencial” heideggeriano quase não foi percebido. Não significa, contudo, nada
além de um “Eu sou o único responsável por me abrir para o que me é atribuído por acaso”, que é a longínqua ressonância
de uma lição de ética dada por Platão já no mito da escolha feita pela alma de seu destino e pela qual termina a República.
Inocentar Deus,76 não atribuir a responsabilidade do que somos nem à natureza nem aos outros, eis aí a própria condição
de possibilidade da ética que tem, necessariamente, por pressuposto, a liberdade de uma ipséité, isto é, de uma estrutura

68
Cf. Heidegger, "O fim da filosofia e a tarefa do pensamento", em Questões IV, op. cit., p. 128. Em uma carta a Jean Beaufret, de novembro
de 1945, Heidegger explicava que Dasein significa "em um francês sem dúvida impossível: ser o-aí", e precisava que o aí é a abertura, a não-
ocultação. (Cf. Carta sobre o humanismo, Aubier bilíngüe, 1964, p. 183-184.)
69
Sein undZeit, op. cit., p. 133.
70
Sein und Zeit, op. cit., p. 133
72 Ibid., § 64.
72 Ibid., p. 42.
73
Cf. A crise da humanidade européia e a filosofia, Hatier, 1992, p. 56, onde Husserl, depois de demonstrar que não se pode compreender
segundo o esquema do desenvolvimento biológico a história dos povos que jamais têm acesso à "maturidade", conclui: "A humanidade
psíquica nunca foi realizada e não o será jamais."
74 Sein undZeit, op. cit., p. 135.
75
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, Gallimard, 1945, p. 467.
76
República, X, 617e.
17

Jc receptividade sem a qual nenhuma “resposta” e nenhuma responsabilidade são possíveis. Assegurar a subsistência do
ser-lançado que exige o caráter do cada vez meu, “o sentimento exagerado do meu”, da existência, tem por correlação
uma necessária e simétrica aceitação do ser-para-a-morte. Como Heidegger ressalta: “Seu morrer, todo Dasein deve,
necessariamente, a cada instante, tomá-lo sob sua responsabilidade. A morte, na medida em que ‘existe’, é, a cada
momento, essencialmente a minha.”77 Não há mais, então, essência “geral” da morte, pois não há essência geral da
existência ou do Dasein, mas há, a cada vez, uma experiência intransferível do existir e do morrer.
Não podemos, todavia, como Lévinas argumenta contra Heidegger, afirmar que a morte primeira não é a morte
própria, mas a do outro?78 Como, na verdade, o nada que é a morte podería nos atingir, a não ser através da morte do
outro? E não será necessário reconhecer que o Dasein pode, assim, ter acesso a uma “experiência da morte” e na medida
em que é por essência um ser- com-os-outros? O ser-com-os-outros é, com efeito, para Heidegger, uma estrutura da
própria existência e não um estado de fato que faria supor a presença efetiva dos outros, o que tornaria qualquer relação
com os mortos impossível. Eis por que a solidão, isto é, a deficiência da presença efetiva dos outros, não é o contrário
de ser- com-os-outros, mas a experiência privativa daquela. E é precisamente a privação do outro que é experimentada no
luto, que é um notável ser-com-o-outro, já que pelo próprio fato da perda, o morto está presente para nós mais
totalmente do que jamais o foi em vida. O “sentimento exagerado do meu”, do existir, não é, portanto, de forma alguma,
incompatível com o ser-com-os-outros, mas, ao contrário, é o seu fundamento, já que o que eu compartilho com o outro
é, precisamente, o caráter intransferível da existência que me separa abissalmente dele.
Mas, se a experiência do luto é também a de um autêntico ser-com-o-outro, isso não significa, por mais que ela
seja, uma autêntica experiência “da” morte. A morte de um ente querido é, certamente, o anúncio de “minha” morte, já
que ela me condena a um abandono que pode ser vivido como a desaparição de todo Dasein, de toda capacidade de estar
aí, como a melancólica revelação da insignificância de nosso próprio ser, pois basta que “um único ser nos falte” para
que, de repente, pareça que “tudo está despovoado”. A experiência de um tal “despovoamento”, isto é, do
desmoronamento do horizonte de sentido que é o mundo, não pode, contudo, de nenhuma maneira, pretender ser uma
verdadeira aceitação “da” morte. Como Heidegger ressalta, se a morte do ente querido é vivida como uma perda
irreparável, não é, todavia, a perda sofrida pelo outro que é desse modo tornada acessível. Tão longe quanto possa ir o
acompanhamento do outro em sua morte,79 esta nos escapa irremediavelmente. É porque cada um, por mais assistido
que esteja em sua agonia, está inexoravelmente condenado a morrer só, e é também porque, quando choramos os
mortos, é sempre por nós mesmos que choramos na realidade.
Pois a experiência do luto, quer seja a morte de si mesmo na experiência do relembrar ou da morte do outro, na
experiência de ser-com-o-defunto, já é em si mesma uma “substituição” da morte e uma “estratégia” destinada a
preencher essa “lacuna”, essa “ruptura,” essa absoluta descontinuidade da temporalidade que é a morte. Na experiência
do relembrar, faço, com efeito, ao mesmo tempo, a experiência de minha morte como o eu passado e de minha
sobrevivência como o eu que se recorda; sou, ao mesmo tempo, morto e sobrevivente de minha própria morte, a qual
se afirma, então, no relembrar. De maneira idêntica, na experiência da morte do outro, eu faço, ao mesmo tempo, a da
ausência atual ou, na realidade, a do defunto que não responde mais, e a de sua co-presença comigo na “incorporação
espiritual” que supõe o luto. É por demais significativo que Freud tenha se manifestado com relação a esse assunto de
“trabalho” do luto, sublinhando, assim, o caráter profundamente “dialético” deste, que consiste, ao mesmo tempo, em
conservar em vida o desaparecido, incorporando-o à nossa interioridade e em considerá-lo efetivamente morto,
aceitando sobreviver a ele. Há, segundo as próprias palavras de Freud, uma misteriosa “economia” do luto que
impulsiona o “eu”, posto em face da questão de saber se ele está disposto a partilhar o mesmo destino que o morto, a
decidir, fazendo adormecer suas satisfações narcísicas, renunciar ao “objeto” de amor desaparecido a fim de poder
permanecer vivo.80 Podemos, certamente, pensar que “o que chamamos, com uma palavra um pouco corrompida, de
amor é, por excelência, o fato de que a morte do outro me afeta mais que a minha” o que explica que possamos decidir
morrer “pelo” outro. Mas isso não significa dizer morrer “em seu lugar”, já que, se conseguimos retardar o momento de
nossa morte, é, ao contrário, rigorosamente impossível libertar o outro de sua própria mortalidade: não podemos, assim,
jamais dar ao outro a não ser um pouco de tempo, mas não a imortalidade. 81 De maneira que, mesmo no caso do sacrifício

77
Sein und Zeit, op. cit., p. 240.
78
E. Lévinas, "A morte e o tempo", Curso 1975-1976, em L'Herne, ne 60, 1991, p. 38.
79
Ver a admirável narrativa de R. de Cecatty, O acompanhamento, Gallimard, 1994.
80
S. Freud, "Luto e melancolia", em Obras Completas, PUF, tomo XIII, p. 276 s.
81 E. Lévinas, "A morte e o tempo", op. cit., p. 68.
realizado por amor, não é da morte do outro que se trata na verdade, porém, ao contrário, da perda irreparável que seria
esta para nós, que preferimos nesta circunstância não sobreviver. É precisamente porque, nessa forma notável de ser com
o outro que é o amor, eu me incluo a mim mesmo em sua morte e não poderia jamais fazer a experiência de sua própria
mortalidade. Que a morte do outro não possa jamais coincidir com a minha e que, por conseguinte, ao contrário do que
se acredita, o amor não seja mais forte que a morte, eis aí o que faz de cada morte um escândalo, uma primeira morte,
como o próprio Lévinas afirma, lembrando o que Fink ressalta, isto é, que não há gênero da morte sob o qual se pudesse
ordenar como suas espécies a morte do outro e a minha própria.82
Porém, se ela não é, assim, nada mais que o nome de uma impossível simultaneidade tanto com o outro quanto
comigo mesmo,83 é então possível “assumir” verdadeiramente essa “lacuna” radical da temporalidade que é a morte, sem
“substituí-la” por uma “sobrevivência” de si mesmo ou do outro?

2. A morte e o morrer

Se ninguém pode atenuar ou anular a responsabilidade do outro sobre sua própria morte e não pode, no sentido
estrito, morrer pelo outro, isso implica que o morrer não é somente uma determinação extrínseca da existência, um
“acidente” da substância “homem”, mas, ao contrário, um atributo essencial deste. A relação que o ser humano mantém
com o morrer é então constitutiva de seu próprio ser e primeira no que se refere a todas as suas outras determinações.
É o que leva Heidegger, em um curso em que ele aborda pela primeira vez a análise do ser-para-a-morte, a afirmar que
a certeza do dever-morrer é o fundamento da certeza que o Dasein tem de si mesmo, de modo que não é o cogito sum, o
“eu penso, eu existo”, que constitui a verdadeira definição do existir do Dasein, ao contrário de sum moribundus, “sou
moribundo”, “o que está morrendo”, o “destinado a morrer” dando somente seu sentido ao “sum”, ao “eu existo”.84
A morte não pode mais então aparecer como a interrupção da existência, como o que determinaria o fim desta de
maneira externa, mas como o que constitui essencialmente a relação do Dasein com seu próprio existir, o que Heidegger
chama existência. Considerar que essa relação não pode lhe acontecer a não ser pela mediação da morte dos outros e não
pela angústia quanto ao que diz respeito à sua própria morte é se atribuir, por antecipação, o que se trata de estabelecer.
Na verdade, não podemos nos comover com a morte do outro, a não ser se somos já um si, e se essa estrutura de
receptividade que é a ipséité, o si-mesmo, já esteja ali, e ela não pode sê-lo senão naquilo que concerne a um próprio
dever- morrer. A hipótese, por mais interessante que seja, de um “luto originário” 85 que pretenderia desviar a relação com
o si do acontecimento da morte do outro estaria condenada a ver no si o simples resultado da operação de um outro,
que seria necessário então, como o faz com inteira coerência Lévinas, considerar como o “Inteiramente Outro” que, em
sua infinidade, é “anterior” à finitude e à passividade de uma ipséité “refém”.86 Mas, ao mesmo tempo, ela seria
compreendida como uma representação da sujeição, isto é, como um “sujeito” e uma “consciência exagerada do eu”, e
não como o que os torna possíveis e que Heidegger chama exatamente de ipséité, a qual só se constitui na aceitação do
Inteiramente Outro que é também a morte. Mas, ao contrário de Deus, o Inteiramente Outro infinito do qual o sujeito
não é “refém” a não ser porque está separado dele, do Inteiramente Outro do existente, do Nada que é a morte, o Dasein
que não é um “sujeito”, mas um estar aberto a si mesmo e ao outro, a relação, e é somente essa relação que pode ser
assumida.
Eis a razão pela qual não é necessário identificar a morte e o morrer, como Heidegger expressa sua preocupação.
A morte é, na verdade, num vasto sentido, um fenômeno que faz parte da vida. O Dasein pode também ser considerado
como um simples vivente, por exemplo, enquanto objeto das ciências biológicas, e há, conse- qüentemente, toda uma
pesquisa sobre a morte que pode se desenvolver nesta perspectiva. Ela não o pode, contudo, a não ser que o pesquisador
já saiba, enquanto Dasein, o que é a morte. Esta não pode, na realidade, apresentar-se como um dado biológico e tomar
a forma de um acontecimento objetivo tendo lugar no mundo senão a partir do se-saber mortal do Dasein. Se este não

82 E. Lévinas, "A morte e o tempo", op. cit., p. 60.


83 j. Derrida, "Dificuldades lógicas'', em A passagem das fronteiras, Calilée, 1994, p. 333.
84
M. Heidegger, Prolegomena zur Ceschichte dos Zeltbegriffs, Ce- samtausgabe, Band 20, Klostermann, 1979, pp. 437-438 (Curso do semestre
de verão 1925).
85
J. Derrida, "Dificuldades lógicas", op. cit., p. 331.
86
E. Lévinas, Autrement qu'être, Le Livre de Poche, p. 180.
19

tinha já por si mesmo uma relação com a morte, nenhum acontecimento do mundo poderia jamais colocá- lo em relação
com ela. O que caracteriza essencialmente o Dasein é a relação com sua própria morte, a qual não pode nunca tornar-se
um “acontecimento do mundo”, já que ela constitui justamente o fim deste. Se, segundo Heidegger, o simples vivente,
ou seja, o animal, pode morrer, no sentido de “chegar a seu fim” (verenden), é precisamente porque esse fim não
determina intrínsecamente seu existir, ao qual não temos, analisando por outro ângulo, senão um acesso negativo, a partir
do momento em que a “vida” sendo sempre para nós a vida humana, isto é, uma vida capaz de se interpretar, de se
compreender e de se assumir por si mesma, não podemos representar a vida do “simples” vivente a não ser por um
esforço de abstração. Quando a morte do Dasein aparece sob a representação de um acontecimento do mundo, como
morte dos outros, falaremos de “falecimento”, no sentido de saída para fora da vida (ableben), mas não se poderá dizer
do Dasein o que foi dito do animal, ou seja, que ele chega a seu fim, pois seria considerar que sua morte deriva de uma
artificialidade puramente externa, enquanto o Dasein não pode, na realidade, falecer, isto é, sair da vida, a não ser
enquanto tem intrinsecamente relação com sua própria morte e que ele seja, desse modo, suscetível de morrer.
Para Heidegger, não se trata tanto de reservar ao homem, unicamente, o privilégio e a dignidade de morrer e de
consagrar assim, recomeçando de uma nova maneira, a superioridade que a tradição filosófica sempre reconheceu ao
homem sobre o animal, quanto pôr em evidência a origem existencial do conceito de morte. O que caracteriza, na
verdade, a existência é, como já foi ressaltado, que nenhuma de suas determinações possa lhe ser exterior, o que implica
que é, para o Dasein, rigorosamente impossível jamais poder considerar um ponto de vista exterior sobre si mesmo, a
partir do qual sua existência se lhe apresenta como um acontecimento tomando lugar no mundo. É, no entanto,
diríamos, o que ele faz constantemente quando se considera a si mesmo como o “objeto” das ciências da natureza, da
biologia, por exemplo, e como o das ciências humanas, da psicologia, da sociologia ou da antropologia. De forma alguma
é questão para Heidegger negar a possibilidade e a validade de uma biologia, de uma psicologia, de uma sociologia e de
uma antropologia da morte, mas simplesmente de mostrar sobre qual pressuposto despercebido elas repousam; em
outras palavras, sobre a compreensão que o Dasein tem de si mesmo como um mortal. E através de sua própria
mortalidade que o Dasein pode somente ter acesso à morte “em geral”, o que é menos o sinal de uma “superioridade” do
homem que de sua fundamental impotência, já que lhe é assim impossível ter acesso direto a uma outra morte além da
sua própria.
Por outro lado, é dessa fundamental impotência que ele tenta escapar quando pretende ver na morte um “acidente”
que acontece certamente “todos os dias” mas somente aos outros, e quando ele identifica de maneira inautêntica o
morrer com o simples falecimento. Pois, fazendo da morte um acontecimento que lhe sobreviria do exterior e que lhe
aconteceria a partir do mundo, o Dasein se arma de uma segurança contra ela, desde que, enquanto ela não está ali, ele
pode se acreditar imortal. É dessa imortalidade provisória que vivemos a princípio e o mais das vezes, o que implica que a
vida humana não pode se estender largamente a não ser na medida em que ela se esquiva da morte e em que é capaz de
transformar em acontecimento futuro aquilo que é o próprio fundamento da existência. Não seria necessário, com efeito,
ver na descrição que Heidegger faz do estar cotidiano para a morte87 uma condenação unilateral da “inautenticidade” e
da “alienação” do devenir estranho a si mesmo que ela implica para o Dasein. Muito ao contrário, o fato de que o Dasein
se desconheça a si mesmo e esconda de si sua própria mortalidade não somente constitui um atestado desta, mas essa
“fuga” diante da morte é, além do mais, necessária para sua manutenção na existência. Não há vida humana durável a
não ser na medida em que esta mantém o respeito pela morte, o que exige sua “banalização”, e eis aí, sem dúvida, o que
distingue fundamentalmente, no final das contas, o homem do animal, pois este não tem necessidade de domar a morte
nem de ajustar-se a ela, precisamente porque vive uma vida absolutamente vivente, pela qual o ser humano pode
experimentar nostalgia,88 mas que nela não saberia tomar parte.
Heidegger é, desse modo, levado a definir o morrer como termo que designa a maneira de ser pela qual o Dasein se
refere à sua morte.89 Neste sentido, o morrer é uma definição do que é a vida humana, em outras palavras, um “existir a
morte” ou uma mortalidade. No sentido mais exato, só os humanos são “mortais”, pois só eles são “capazes” de se referir
à sua própria morte e de fazer “existir”, assim, a morte. É de um outro ponto de vista que o idealismo alemão, com
Novalis e Hegel, já tinha percebido claramente, quando via no suicida a capacidade de dar a si mesmo a morte, a origem

87
Sein undZeit, op. cit., § 51.
88
O pretenso "primitivo" que vê no animal um deus e lhe atribui assim a imortalidade percebe, melhor do que é feito do ponto de vista
moderno de "uma biologia geral", a especificidade do existir do animal que, como Rilke o diz na oitava Elegia de Duino, "avança pela
eternidade", pois, "muito perto da morte, (ele) não vê mais a morte, mas olha além".
89 Sein und Zeit, op. cit., p. 247.
da humanidade.90 Pois essa interrupção, esse corte radical que é a morte, o fim do existir, o ser pensante não se refere a
esse ponto como um limite externo, mas, ao contrário, como um fim interno, a partir do qual seu próprio ser- no-mundo
ou seu próprio ser-na-vida torna-se possível: “O findar no qual se pensa no caso da morte”, escreve Heidegger, “não
significa um estar no fim do Dasein, mas um estar para o fim do existente. A morte é uma maneira de existir que o Dasein
assume desde o instante em que é: ‘A partir do instante em que um homem vem à vida, ele já é bastante velho para
morrer’.”91

3. A morte e o possível

A partir daí compreende-se que a morte seja determinada por Heidegger em Ser e tempo como uma possibilidade
do Dasein, e que ela se lhe apresente em seguida, de maneira cada vez mais decisiva, como uma “capacidade” dos mortais
que são os homens.92 Tem-se freqüentemente ressaltado o caráter paradoxal da definição que ele dá, assim, da morte,
como possibilidade da impossibilidade da existência em geral e não como “pura e simples” impossibilidade desta, e é
necessário, para ter acesso à compreensão, desse paradoxo, evidenciar a importância da qual está revestida a noção de
possibilidade na análise heideggeriana da existencialidade. O possível tem sido, na filosofia moderna, sempre definido
como inferior ao real e ao efetivo. É assim que, na lista das categorias kantianas, a possibilidade se opõe, enquanto
categoria modal (isto é, no que concerne à relação do entendimento com a existência dos objetos), à realidade e à
necessidade: o possível designa, conseqüentemente, o que não é ainda real e o que não é sempre necessário.93 Mas a
possibilidade não é somente uma determinação categorial do objeto, ela tem também uma determinação do existir do
próprio Dasein, o que Heidegger chama de um existencial,94 e, nessa qualidade, não é inferior à realidade, mas, ao
contrário, mais “alta” que ela, já que constitui “a determinação ontológica positiva mais originária e última do Dasein”:95
O Dasein não é, na verdade, uma “realidade” que dominaria além das medidas as “possibilidades” a serem desenvolvidas,
seu ser é um poder-ser e é, então, primariamente, um ser-possível. Contudo, isso não quer, de forma alguma, dizer que
ele é absolutamente livre para realizar suas escolhas, mas, ao contrário, que a contingência da existência na qual esteve
sempre engajado deve ser assumida e que o Dasein está, desse modo, antes de tudo, “entregue” a seu próprio ser-possível,
ou, no dizer de Sartre, “condenado a ser livre”. A morte, isto é, a impossibilidade da existência, é uma possibilidade de
existir que o Dasein tem que assumir, já que, como vimos, o futuro, que é o fim do existir, é alguma coisa com que o
Dasein tem relação e em face da qual ele se comporta. Enquanto tal, a morte tem o caráter do que está a ponto de
acontecer, daquilo que o Dasein tem como provável. Mas, como a morte não é nada que possa ser efetivamente
experimentado, essa iminência não pode ser senão a do poder-ser o mais próprio do Dasein, ele mesmo na condição de
ser mortal, o que implica que essa possibilidade que é a morte o remeta à totalidade de seu próprio ser, enquanto este não
mantém mais nenhuma relação com os outros. Essa possibilidade que é a morte não é, contudo, uma possibilidade entre
as outras, mas se revela a mais própria tanto quanto a possibilidade não ultrapassável e não relativa do Dasein.
Entretanto, não se trata de imaginar que essa possibilidade notável que o Dasein possui em face da totalidade de
seu próprio existir seja constituída no decorrer da existência e por adoção temporária de uma atitude particular. Se tal
fosse o caso, seria necessário supor que alguns são despossuídos do que o Dasein constitui como sua propriedade, ou
seja, a relação com a morte, a mortalidade. Ora, esta não é o objeto de um saber “teórico”, ela retira o véu que a cobre,
ao contrário, mais originariamente e de maneira mais urgente na disposição efetiva fundamental que é a angústia. Na
verdade, é na angústia que traz o Dasein diante de si mesmo, que se revela “autenticamente” a mortalidade. Mas isso não
significa, de modo algum, que ela não constitua, desde o início, a existência de fato do Dasein, pois, se este pode não se
conhecer a si mesmo na inautenticidade do cotidiano, é precisamente porque há diferentes formas para o Dasein de
referir-se à sua própria mortalidade, enfrentando-a na angústia ou dela fugindo ao deixar-se absorver pelas tarefas
mundanas. Mesmo no cotidiano, o Dasein confronta- se com a morte no modo da fuga. O que permanece

90
Ver, a esse respeito, N. Depraz e J.-M. Mouillie, "Dar-se à morte", em Alter, n“ 1, Nascer e Morrer, p. 107 s.
91
Sein und Zeit, op. cit., p. 245.
92
Ver Ensaios e conferências, op. cit., pp. 177-178 e 212.
93
Ibid., p. 143.
94 ibid., p. 54.
95
Ibid., p. 143.
21

constantemente em questão na existência, na autenticidade como na inautenticidade é o ser-mortal, e eis a razão pela
qual é possível dizer que o Dasein morre “na realidade” por mais tempo que ele exista. 96
Entretanto, o que caracteriza a relação inautêntica com a morte é que nessa possibilidade notável que ela constitui
aí não se apresenta em sua verdade, embora ninguém ponha “seriamente” em dúvida a certeza da morte. O que a simples
consideração “teórica” demonstra é, contudo, a certeza empírica do falecimento, a qual não é jamais, e é o caso de todas
as certezas empíricas, senão provável. Não é então possível obter a certeza de que a morte virá dos casos de falecimento
realmente observados. E, todavia, essa certeza está bem ali como o se-saber mortal presente no cotidiano. Mas, ao
mesmo tempo, esse saber permanece como “desconectado” daquilo que sabe e não sente em seu próprio ser, no que lhe
concerne, pois a morte permanece para ele um acontecimento que sobrevêm “certamente”, mas “ainda não
provisoriamente”. O que dessa forma se oculta no cotidiano é a iminência da morte, o fato de que ela seja possível a cada
instante e que a indeterminação do momento da morte não seja separável da certeza desta. É o adiamento “inautêntico”
da morte que permite, no final das contas, confundi-la com o falecimento, com a ocorrência dentro do mundo que só
acontece com os outros. Pois, ver sua própria morte sob a forma do falecimento é, ao mesmo tempo, querer determinar
o indeterminável, avaliando o momento do falecimento — não hoje, porém mais tarde —, mas também intercalar, no
intervalo calculado, as tarefas urgentes do cotidiano de maneira a encobrir o inelutável indeterminado da expiração de
seu prazo.
Porém, se a morte se revela assim, através da própria inautenticidade, como a possibilidade mais própria do Dasein,
é possível assumir como tal essa possibilidade? Em outras palavras, há um existir autêntico para a morte possível? A
bem da verdade, toda a filosofia, como já vimos com Platão, Montaigne e Hegel, é uma tentativa de se abrir
autenticamente para essa possibilidade extrema que é a morte permanecendo em pensamento junto dela. Mas essa
meditação sobre a morte, pelo próprio fato de pretender, como Montaigne o disse tão bem, dela se “avizinhar”, manifesta
uma vontade de “domá-la”, de assegurar sobre ela um certo domínio, tirando- lhe, desse modo, seu caráter de pura
possibilidade. De modo semelhante, da simples espera da morte que preserva, certamente, o caráter da possibilidade da
morte, porém sem se abrir para o que ela tem de notável. Pois se a espera é certamente a atitude pela qual nos abrimos
ao possível, é, contudo, visando à sua realização e “trabalhando” por assim dizer por ela, embora, como diz Heidegger,
a espera seja, na verdade, espera não do próprio possível, mas de sua realização possível. O ter a morte como provável
não preserva então, de modo algum, seu caráter de pura possibilidade, mas, ao contrário, transforma-a em possibilidade
com a qual nos preocupamos, o que implica sua relativização. Na perspectiva da preocupação, que visa essencialmente
tornar disponível o possível e, contudo, anulá-lo como possível, a morte nada mais é então do que uma possibilidade
entre outras. Estas, por outro lado, não conhecerão nada além de realizações relativas, já que não acontecem por si
mesmas, mas “pelo” próprio Dasein, enquanto a morte não pode jamais se constituir um “objetivo” a ser realizado por
este. O suicídio, na verdade, não é, de forma alguma, uma realização da própria morte, mas simplesmente a provocação
do falecimento, e por aí o Dasein afasta de si mesmo seu morrer, que não pode assumir a não ser existindo.97
Se é contudo um ser autêntico para a morte possível, este deve preservar da morte seu caráter de pura possibilidade
sem procurar dispor dela ou realizá-la e deve então se esforçar para fazer aparecer essa possibilidade notável como
possibilidade da impossibilidade de tudo existir. A morte não é uma possibilidade insigne a não ser porque ela não
propõe nada a realizar no Dasein, já que ela é a possibilidade da ausência de todo possível, a possibilidade de não-mais-
poder-ser, isto é, a possibilidade da impossibilidade pura e simples do Dasein. O paradoxo aqui vem do fato de que o
impossível, esse caminho impraticável do não-ser de que já falava Parmênides, se anuncia de alguma maneira ao Dasein
como sendo precisamente impossível e impraticável. O que implica, como Platão já o demonstrou em oposição a
Parmênides, que o não-ser “é”, de uma certa maneira, ou melhor, na terminologia heideggeriana, que ele existe, pois ser
um Dasein significa propriamente existir (transitivamente) a morte. É, certamente, o que Heidegger acentuará
vigorosamente em 0 que é a metafísica? ao dizer que o Dasein, o ocupante do nada, um nada que não está em seu poder
fazer acontecer e no qual ele se encontra retido.98

96 Ibid, p. 251.

97 No suicídio, o Dasein considera a si próprio como meio e se rebaixa ao nível de um simples "instrumento". É muito significativo a esse
respeito que, em "Luto e melancolia", Freud acentue que a análise da melancolia nos ensina que o eu não pode se matar, a não ser quando
analisado como um objeto e que ele volte contra si mesmo à hostilidade aue visava o objeto.
98
Questões I, op. cit., p. 66.
A morte se revela, assim, em sua constante iminência, pura possibilidade, isto é, possibilidade que permanece como
possibilidade, que não se verá jamais anulada por sua realização e que, contudo, como tal, não pode ser expressa de
forma dialética e não pode ser “substituível”, já que para isso seria necessário “trabalhar” para sua realização. Porém,
longe de poder produzir a morte, e mesmo de poder se produzir diante dela, o Dasein não pode ser dela senão o
anunciador. Referir-se à morte preservando seu caráter de pura possibilidade exige, na verdade, sua “antecipação”.
Antecipar-se a si mesmo, eis aí o próprio existir do Dasein, na qualidade de poder-ser. Por outro lado, é enquanto se
antecipa a si próprio que o Dasein se compreende “praticamente” ele mesmo e não no sentido em que ele tomaria
teoricamente consciência do significado de seu próprio existir. Antecipar- se a si mesmo em seu poder-ser extremo
significa, então, existir tornando possível a possibilidade que é a morte, liberando-a enquanto tal. E nesse sentido que
Heidegger define o existir autêntico para a morte como “liberdade em relação à morte”,99 pois tornar-se livre
para a morte implica, ao mesmo tempo, liberar a morte de todos os estratagemas no meio dos quais tentamos domá-la,
seduzi-la e neutralizá-la, para deixá-la reinar inteiramente sobre nossa existência e atribuir-lhe, assim, a possibilidade
de tornar-se senhora da existência do Dasein.m É um tal existir sub specie mortis, sob o horizonte da morte, que
Heidegger chama de ser autêntico para a morte, pois nele se manifesta a grandeza absoluta, a desmedida da morte
pressentida por Hegel quando ele a nomeou “senhor absoluto”, da qual não podia ignorar que não há substituição
possível.

99
Sein undZeit, op. cit., p. 266.

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