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Simon J.

Kistemaker

As Parábolas de JESUS

Tradução: Eunice Pereira de Souza

Produzido em Português com autorização do próprio autor

Diretoria Executiva:
Diretor-Presidente:
Editor: Cláudio Marra
Diretor-Comercial:

Revisão:

Arte:

Composição:

1ª Edição 1992 – 3000 exemplares

CASA EDITORA PRESBITERIANA


Rua Miguel Teles Jr., 382/294 – Cambuci.
01540-040 – São Paulo – SP.
Fone: (11)-270-7099
APRESENTAÇÃO

As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como o


primeiro do Autor – Simon Kistemaker -, e que esta Editora produz e
oferece ao público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de
língua portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos dados
informativos, este Autor ainda não é lido via língua portuguesa, não
obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo teólogo e
expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além de outras
obras de sua autoria particular, o Autor também forma parceria com
Willian Hendriksen na série Comentário do Novo Testamento, que ora é
publicado por esta Editora. De sua Autoria é Hebreus, Pedro e Judas,
Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos (este último já se acha em
preparação, em dois volumes, e em breve virá a lume).
Além disso, o Autor tem sido um dos colaboradores estrangeiros
no curso de mestrado em teologia, no Brasil, especialmente no
Seminário Teológico José Manoel da Conceição (J.M.C.), em São Paulo.
Ele faz parte da plêiade de Teólogos calvinistas que ainda permeiam
(graças a Deus!) o seio da Igreja do Cordeiro. Esta Editora, bem como
toda a IPB, ficamos em dívida para com o renomado Autor.
Ao prepararmos este livro, uma incontida emoção e uma profunda
convicção nos fizeram antever o quanto será ele uma bênção na vida
cristã de cada leitor, seja ele ministro do Evangelho, ou seja, leigo,
porém, estudioso e ativo na Seara de Nosso Mestre Jesus Cristo. Isto
afirmamos sobre bases sólidas, pois eis aqui um livro rico em requisitos
positivos: Sua simplicidade fica logo em admirável evidência. Dele podem
beber todos quanto possuam alguma cultura e quantos são detentores
de cultura privilegiada. Também eis um livro que se destinada a toda
classe de leitores interessados em aumentar sua visão da literatura mais
linda do mundo – as parábolas de Jesus! Sua abrangência o torna
ainda mais rico e útil. Além de discorrer sobre todas as parábolas de
nosso Senhor, nos Evangelhos, ainda nos fornece muitos lados e
detalhes para a melhor compreensão dessa literatura tão complexa.
Finalmente, resta-nos mencionar sua precisão e fidelidade à sã
doutrina. O Autor revela total respeito para com a Palavra de nosso
Senhor.
Louvamos ao senhor e convidamos a cada leitor solícito a ler e
meditar nesta obra tão preciosa, resvalando-se dela para outra muito
mais preciosa ainda – as próprias parábolas!
Ainda uma palavra sobre um amigo que preferiu permanecer no
anonimato, por meio de que obtemos autorização para esta publicação.
Ele não quis aparecer, todavia, registramos o nosso apreço e gratidão em
sua referência. Obrigado, amigo oculto! O leitor não saberá que é você,
todavia nós sabemos, e, acima de tudo, o Senhor da Igreja sabe... e é isto
que importa! Agradecemos ao Dr. Simon Kistemaker por não ter
requerido de nós royalty (=pagamento de direitos autorais). Esperamos
que este livro seja um meio dentre tantos outros para a maior
glorificação do Nome de Jesus Cristo, o Senhor da Igreja... ―até que ele
venha‖! Maranata!

Dezembro de 1992
Valter Graciano Martins
Editor

PREFÁCIO

Livros sobre parábolas, escritos a partir de uma perspectiva


evangélica, são poucos e, a maior parte das vezes, desatualizados:
muitos dos que foram publicados deixaram de ser reeditados. Ao
escrever este livro, procurei ir ao encontro da necessidade do pastor que
deseja consultar um livro evangélico que contenha todas as parábolas de
Jesus e a maior parte do que é dito sobre elas nos Evangélicos Sinóticos.
Este livro procura atingir o nível adequado de pastores
teologicamente treinados. Tendo os pormenores técnicos sido
restringidos a notas de rodapé, o texto, em si, pode ser de grande ajuda
a qualquer um que pretenda estudar seriamente a Bíblia. O livro
apresenta uma biografia selecionada.
Muitas pessoas colaboraram para tornar este livro uma realidade.
Quero expressar meus agradecimentos ao Seminário Teológico
Reformado por me ter liberado do trabalho aos sábados; ao diretor e
bibliotecário da Livraria Tyndale, em Cambridge, Inglaterra; a meus
alunos assistentes, Dana W. Casey, Edward Y. Hopkins e James
Theodore Lester; à minha secretária, Mrs. Kathleen Sapp; à minha
esposa, Jean, que datilografou o manuscrito; e aos revisores, Mrs. Mary
L. Hulton e P. Ronald Carr.
Possa este livro ajudar os pastores a preparar seus sermões a
respeito das parábolas de Jesus.

Simon J. Kistemaker
1980
ABREVIATURAS

ATR Anglican Theological Review


BA Biblical Archaeologist
Bib Bíblica
BibLeb Bibel und Leben
CBQ Catholic Biblical Quartely
EvQ Evangelical Quarterly
ExpT Expository Times
HTR Harvard Theological Review
Interp Interpretation
JBL Journal of Biblical Literature
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
JTS Journal os Theological Studies
NAB New American Bible
NASB New American Standart Bible
NEB New English Bible
NIDNTT New International Dictionary of New Testament Theology
NIV New International Version
Novt Novum Testamentum
NTS New Testament Studies
RefR Reformed Review
ScotJT Scottish Jounal of Theology
SB H. L. Strack and P. Billerbeck, Kommentar
StTh Studia Theologia
TB Tyndale Bulletin
TDNT Theological Dictionary of the New Testament
TynHBut Tyndale House Bulletin
TS Theological Studies
TZ Theologische Zeitschrift
ZNW Zeitschrift für die Neuentestamentliche Wissenschaft
ZPEB Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche

Livro da Bíblia

Gn Jr Lc
Êx Lm Jo
Lv Ez At
Nm Dn Rm
Dt Os 1,2 Co
Js Jl Gl
Jz Am Ef
Rt Ob Fp
1,2 Sm Jn Cl
1,2 Rs Mq 1,2 Ts
1,2 Cr Na 1,2 Tm
Ed Hc Tt
Ne Sf Fm
Et Ag Hb
Jó Zc
Introdução

Com muita freqüência, os jornais trazem, junto aos editoriais, com


destaque, uma caricatura. Com poucas linhas, o artista traça o esboço
humorístico de um fato político, social ou econômico, atual. Através do
desenho ele transmite uma mensagem contundente e direta, cuja
eloqüência um redator dificilmente poderia alcançar.

Contando parábolas, Jesus desenhava quadros verbais que


retratavam o mundo ao seu redor. Ensinando através das parábolas, ele
descrevia aquilo que acontecia na vida real. Isto é, ele usava uma
história tirada do cotidiano, para, através de um fato já aceito e
conhecido, ensinar uma nova lição. Essa lição, na maior parte das vezes,
vinha no final da história e provocava um impacto que precisava de
tempo para ser entendido e assimilado. Quando ouvimos uma parábola,
acenamos com a cabeça, concordando, porque a história é como a vida
real e fácil de ser entendida. No entanto, mesmo que se ouça a aplicação
da parábola, ela nem sempre é compreendida. Vemos a história se
desenrolar diante de nossos olhos, mas nem sempre percebemos seu
significado1. A verdade permanece escondida até que nossos olhos se
abram e possamos vê-la mais claramente. Então, a nova lição da
parábola se torna significativa. Como Jesus disse a seus discípulos: ―A
vós outros vos é dado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo
se ensina por meio de parábolas‖ (Mc 4.11).

Formas

A palavra parábola, no Novo Testamento, tem uma conotação


ampla que inclui formas de parábolas que são, geralmente, divididas em
três categorias2. Há as autênticas parábolas, histórias em forma de
parábolas e ilustrações.

1. PARÁBOLAS AUTÊNTICAS. Essas usam como ilustração um


fato comum do dia-a-dia, e são facilmente compreendidas por qualquer
um que as ouça. Qualquer pessoa entende a verdade transmitida; não
há motivo para objeção ou crítica. Todos já viram uma semente germinar
(Mc 4.26-29); o fermento levedando a massa (Mt 13.33); crianças
brincando numa praça (Mt 11.16-19; Lc 7.31,32); uma ovelha
desgarrada do rebanho (Mt 18.12-14); uma mulher que perde uma
moeda em sua própria casa (Lc 15.8-10). Essas e muitas outras
parábolas começam retratando verdades evidentes a respeito da
natureza do homem. São contadas, usualmente, no presente.

2. HISTÓRIAS EM FORMA DE PARÁBOLAS. Diferindo das


parábolas autênticas, a história em forma de parábola não se relaciona
com uma verdade óbvia ou com um costume geralmente aceito. A

1 R. Schippers, ―The Mashal-character of the Parable of the Pearl‖, em Studia


Evangelica, cd F. L. Cross (BcrIin: Akademíe-Verlag, 1964), 2:237.
2 F. Haucck, TDNT, V:752.
verdadeira parábola é contada como um fato, com o verbo no presente. A
história em forma de parábola, por outro lado, se refere a um
acontecimento em particular, que teve lugar no passado — geralmente a
experiência de uma pessoa. É, por exemplo, a experiência de um
fazendeiro que semeou trigo e, mais tarde, percebeu que seu inimigo
semeara o joio no mesmo pedaço de chão (Mt 13.24-30). É a história de
um homem rico, cujo administrador defraudou os seus bens (Lc 16.1-9);
ou, é o relato a respeito de um juiz que julgou a causa de uma viúva
atendendo a seus inúmeros pedidos (Lc 18.1-8). O interesse dessas
histórias não está na narrativa, porque o que é significativo nelas não é o
fato, mas a verdade transmitida.

3. ILUSTRAÇÕES. As histórias ilustrativas registradas no


Evangelho de Lucas são, geralmente, classificadas como histórias que
servem de modelo, de exemplo. Incluem a parábola do bom samaritano
(Lc 10.30-37); a parábola do rico insensato (Lc 12.16-21); a parábola do
rico e Lázaro (Lc 16.19-31); e a parábola do fariseu e o publicano (Lc
18.9-14). Essas ilustrações diferem das histórias em forma de parábolas
pelo seu propósito. Enquanto a história em forma de parábola é uma
analogia, as ilustrações contêm exemplos a serem imitados ou evitados.
Elas focalizam, diretamente, o caráter e a conduta de um indivíduo; a
história em forma de parábola faz isso apenas indiretamente.

Nem sempre é simples classificar uma parábola. Algumas delas


apresentam características dos dois grupos — da autêntica parábola e
da história em forma de parábola — e podem ser classificadas de um
modo ou de outro. Os Evangelhos registram, também, numerosas
afirmações em forma de parábola. É, muitas vezes, difícil determinar
quando uma declaração de Jesus constitui uma autêntica parábola, ou
quando é uma declaração em forma de parábola. O ensinamento de
Jesus a respeito do fermento (Lc 13.20,21) é classificado como uma
verdadeira parábola, mas sua mensagem sobre o sal (Lc 14.34,35) é
considerada uma afirmação em forma de parábola. No entanto, algumas
declarações de Jesus são apresentadas como parábolas. Por exemplo:
―Propôs-lhe também uma parábola: Pode porventura um cego guiar a
outro cego? Não cairão ambos no barranco?‖ (Lc 6.39).

No que uma parábola difere de uma alegoria? O Peregrino de John


Bunyan é uma representação alegórica do caminhar de um cristão pela
vida. Os nomes e as circunstâncias encontrados no livro representam a
realidade. Cada fato, cada característica ou afirmação são simbólicos e
devem ser interpretados ponto a ponto em seu significado real para que
possam ser corretamente entendidos. Uma parábola, por sua vez, é fiel à
vida e ensina, geralmente, apenas uma verdade básica. Em suas
parábolas, Jesus usou muitas metáforas, como, por exemplo, um rei,
servos e virgens, mas estas nunca se afastaram da realidade. Não estão
nunca relacionadas com um mundo de fantasia ou ficção. São histórias
e exemplos tirados do mundo em que Jesus vivia e transmitem uma
verdade espiritual, através da comparação. Os pormenores da história
são o sustentáculo da mensagem que a parábola transmite. Não devem
ser analisadas ponto a ponto e interpretadas como uma alegoria, pois
perderiam o seu significado.

Composição

Embora, de um modo geral, seja verdade que uma parábola ensina


somente uma lição básica, esta regra nem sempre é definitiva. Algumas
das parábolas de Jesus têm composição complexa. A composição da
parábola do semeador apresenta quatro partes e cada parte pede uma
interpretação. Do mesmo modo, a parábola sobre as bodas não é uma
história única, pois tem acrescentado uma parte a respeito de um
convidado que não está usando roupas apropriadas para a ocasião.
Também, a conclusão da parábola sobre os lavradores maus se desvia
do cenário da vinha para o de construtores e seus negócios. Por causa
dessa complexidade, é sensato o exegeta não se prender a um ponto
único na interpretação da composição das parábolas.

Ao ler as parábolas de Jesus, nós nos perguntamos por que são


deixados de lado vários detalhes que deveriam fazer parte da história.
Por exemplo, na história do amigo que bate à porta de seu vizinho, no
meio da noite, para pedir três pães, a mulher do vizinho não é
mencionada. Na parábola do filho pródigo, o pai é uma figura
marcante, mas nem uma palavra é dita a respeito da mãe. A parábola
das dez virgens apresenta o noivo, mas ignora completamente a noiva.
Esses pormenores, entretanto, não são relevantes na composição geral
das parábolas, especialmente se compreendermos o artifício literário
das tríades, muitas vezes usado nas parábolas de Jesus. Na parábola
do amigo que vem bater à porta no meio da noite, há três personagens:
o viajante, o amigo e o vizinho. A parábola do filho pródigo também fala
de três pessoas: o pai, o filho mais jovem e o irmão mais velho. Na
história das dez virgens, encontramos três elementos: as cinco virgens
prudentes, as cinco virgens tolas e o noivo.

Além disso, nas parábolas de Jesus não é o começo da história o


que é importante, porém o seu final. A importância recai sobre a última
pessoa mencionada, o último feito ou a última declaração. O ―efeito final‖
da parábola é deliberadamente elaborado em sua composição3. Foi o
samaritano que procurou aliviar a dor do homem ferido, não o sacerdote
ou o levita. Embora os dois servos que apresentaram cinco e dois
talentos adicionais a seu senhor tenham recebido louvor e elogios, foi o
fato de ter enterrado seu único talento na terra que trouxe ao terceiro
servo escárnio e condenação. Na parábola sobre o proprietário de terras
que durante o dia contratou homens para trabalhar em sua vinha e, às
seis horas, ouviu reclamações de alguns dos trabalhadores, o mais
importante é a resposta do dono: ―Amigo, não te faço injustiça... são
maus os teus olhos porque eu sou bom?‖ (Mt 20.13,15).

3
A. M. Hunter, The Parables Then and Now (London: Westminster Press, 1971), p. 12.
A arte de elaborar e contar parábolas, demonstrada por Jesus, não
encontra paralelo na literatura. Mas bem semelhantes às parábolas de
Jesus são aquelas dos antigos rabinos dos dois primeiros séculos da era
cristã. Essas parábolas eram apresentadas, comumente, com uma
pergunta: ―Uma parábola: A que se assemelha?‖ Nessas parábolas,
também, o artifício literário da tríade e a ênfase final eram usados. Por
exemplo:

Uma parábola: A que se assemelha? A um homem que estava


viajando pela estrada, quando encontrou um lobo. Conseguiu escapar
dele e seguiu adiante, relatando aos outros seu encontro com o lobo.
Então, ele encontrou um leão e escapou dele; e seguiu adiante, contando
a todos o encontro com o leão. A seguir, ele encontrou uma cobra e
escapou dela. Após esse acontecimento, ele se esqueceu dos dois
anteriores e prosseguiu contando o caso da cobra. Assim também é
Israel: as últimas dificuldades o fazem esquecer as primeiras4.

Entretanto, a semelhança entre as parábolas de Jesus e as dos


rabinos está apenas na forma. As parábolas dos rabinos, normalmente,
são apresentadas para explicar ou elucidar a Lei, versículos das
Escrituras, ou uma doutrina. Elas não são usadas para ensinar novas
verdades, como acontece com as parábolas de Jesus. Através das
parábolas, Jesus explicava os grandes temas de seu ensinamento; o
reino dos céus; o amor, a graça e a misericórdia de Deus; o governo e a
volta do Filho de Deus; o modo de ser e o destino do homem5. Enquanto
que as parábolas dos rabinos não ensinam senão a aplicação da Lei, as
de Jesus são parte da revelação de Deus ao homem. Em suas parábolas,
Jesus revela novas verdades, pois ele foi comissionado por Deus para
tornar conhecida a vontade e a Palavra de Deus. As parábolas de Jesus,
portanto, são as revelações de Deus; as dos rabinos, não.

Propósito

As parábolas mostram que Jesus estava perfeitamente familiarizado


com a vida humana em seus múltiplos aspectos e significado. Ele tinha
conhecimento de como cultivar a terra, lançar a semente, extirpar as
ervas daninhas e colher os frutos. Ele se sentia em casa, em uma vinha;
sabia a época da colheita dos frutos da videira e da figueira, e estava a
par do quanto se pagava por um dia de trabalho. Ele não apenas estava
familiarizado com a rotina do fazendeiro, do pescador, do construtor e do
mercador, mas se encontrava igualmente à vontade entre os chefes de
Estado, os ministros das finanças de uma corte real, os juízes das cortes

4 I. Epstein, cd., ―Seder Zeraim Berakoth 13a‖, in The Babylonian Talmud (London:
Soncino Press, 1948); p.73.
5
Hauck, TDNT, V:758. J. Jeremias, na oitava edição de seu Die Gleichnisse Jesu
(Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1970), p. 8, faz notar que as parábo1as de Jesus
podem ter contribuído para o desenvolvimento do gênero literário das parábolas dos
rabinos.
de justiça, os fariseus e os coletores de impostos. Ele compreendeu a
pobreza de Lázaro, embora fosse convidado para jantar com os ricos.
Suas parábolas retratam a vida de homens, mulheres e crianças; o pobre
e o rico; os que são marginalizados e os que são exaltados. Pelo seu
conhecimento da amplitude da vida humana, ele era capaz de ministrar
a todas as camadas sociais. Ele falava a linguagem do povo e seus
ensinamentos eram adequados ao nível daqueles que o ouviam. Jesus
usava parábolas para tornar sua linguagem acessível ao povo, para
ensinar às multidões a Palavra de Deus, para chamar seus ouvintes ao
arrependimento e à fé, para desafiar os que criam a transformar
palavras em atos e para exortar seus seguidores a permanecerem
atentos.

Jesus usou as parábolas para comunicar a mensagem de salvação


de um modo claro e simples. Seus ouvintes podiam, prontamente,
entender a história do filho pródigo, dos dois devedores, da grande ceia e
do fariseu e o publicano. Através das parábolas, eles identificavam Jesus
com o Cristo que ensina com autoridade a mensagem redentora do amor
de Deus.

Dos relatos do Evangelho, todavia, tomamos conhecimento que a


interpretação das parábolas era feita em particular, no círculo dos
discípulos. Jesus lhes disse: ―A vós outros é dado o mistério do reino de
Deus, mas aos de fora tudo se ensina por meio de parábolas, para que:
vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não entendam, para
que não venham a converter-se e haja perdão para eles‖ (Mc 4:11,12).

Isso significa que Jesus, que foi enviado por Deus para proclamar
a redenção dos homens caídos e pecadores, esconde essa mensagem
através de parábolas incompreensíveis? As parábolas são, então, um tipo
de enigma compreendido apenas pelos iniciados?

As palavras de Marcos 4.11,12 devem ser entendidas no contexto


mais amplo, no qual o escritor as colocou6. No capítulo anterior, Marcos
relata que Jesus encontrara descrença, blasfêmia e oposição direta. Ele
foi acusado de estar possuído por Belzebu e de expelir demônios, pelo
príncipe dos demônios (Mc 3.22). O contraste que Jesus apresenta,
conseqüentemente, é entre aqueles que acreditavam e os que não
acreditavam, entre seguidores e oponentes, entre os que aceitavam e os
que rejeitavam a revelação de Deus. Os que fazem a vontade de Deus

6 J. Jeremias. The Parables of Jesus (New York: Scribner, 1063), pp. 13.18, sustenta
que essas palavras de Jesus foram deslocadas e pertencem a Outro escrito; devem ser
interpretadas sem relação com o contexto de Marcos 4. De acordo com Jeremias, o
escritor inseriu passagem proveniente de outra tradição, por causa do sentido comum
da palavra parábola, que ele afirma significar, originalmente, enigma. Jeremias atribui,
assim, dois sentidos à palavra parábola, em Marcos 4. O primeiro significando parábola
autêntica, e o segundo, enigma. As regras da exegese, no entanto, não apóiam a
interpretação de Jeremias, pois, a menos que o evangelista revele um significado
diferente para uma palavra do texto, essa deve conservar o mesmo sentido através de
toda a passagem.
recebem a mensagem das parábolas, porque pertencem à família de
Jesus (Mc 3.35). Os que tentam destruir Jesus (Mc 3.6) não conhecem a
salvação, por causa da dureza de seus corações. É uma questão de fé e
descrença. Os que acreditam ouvem as parábolas e as recebem com fé e
entendimento, mesmo que a completa compreensão venha, apenas,
gradualmente. Os incrédulos rejeitam as parábolas porque elas são
estranhas à sua maneira de pensar7. Recusam-se a perceber e entender
a verdade de Deus. Assim, por causa de seus olhos cegos e seus ouvidos
surdos, privam a si mesmos da salvação proclamada por Jesus, e trazem
sobre si mesmos o julgamento de Deus.

Não nos surpreende que os discípulos de Jesus não tenham


entendido completamente a parábola do semeador (Mc 4.13). Os
seguidores mais próximos estavam perplexos com os ensinamentos da
parábola porque não tinham visto ainda a importância da pessoa e do
ministério de Jesus, em relação à verdade de Deus revelada na parábola.
Somente pela fé foram capazes de ver aquelas verdades da qual as
parábolas davam testemunho8. Jesus explicou de modo mais
pormenorizado a parábola do semeador e a do trigo e do joio (em outras,
ele, de quando em quando, acrescentava esclarecimentos às conclusões).
Aos discípulos foi dado ver a relação entre os acontecimentos que Jesus
descrevia na parábola do semeador e o reino dos céus, iniciado na
pessoa de Jesus, o Messias9.

Interpretação

Na igreja primitiva, os Pais da igreja começaram a procurar nas


Escrituras do Velho Testamento vários significados ocultos relacionados
com a vinda de Jesus. Como conseqüência natural dessa tendência, os
Pais começaram a encontrar significados ocultos nas parábolas de
Jesus. Influenciados, talvez, pela apologética judaica, substituíram a
simplicidade das Escrituras pela especulação sutil. O resultado foi, as
interpretações alegóricas das parábolas. Por isso, desde o tempo dos Pais
da igreja, até meados do século XIX, muitos exegetas interpretaram as
parábolas alegoricamente.

Orígenes, por exemplo, acreditava que a parábola das dez virgens


estava cheia de símbolos ocultos. As virgens, disse Orígenes, são todos
aqueles que receberam a Palavra de Deus. As prudentes acreditam e
levam uma vida de justiça; as tolas acreditam, mas falham no agir. As
cinco lâmpadas das prudentes representam os cinco sentidos, que são
todos preparados para o seu uso apropriado. As cinco lâmpadas das

7 W. L.ane, The Gospel According to Mark (Grande Rapids: Eerdmans, 1974), p. 158;
W. Hendriksen, Gospel of Mark (Grand Rapids: Baker llook House, 1975), p. 145; H. N.
Ridderbos, The Coming of the Kingdom (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1962),
p.124.
8
. C.E.B. Cranfield, ―St. Mark 4.1-34‘, Scot IT 4(1951): 407. . C.E.B. Cranfield, ―St.
Mark 4.1-34‘, Scot IT 4(1951): 407.
9
Lane, Mark, p.160.
tolas deixaram de fornecer luz e se encaminharam para a noite do
mundo. O óleo é o ensinamento da Palavra e os vendedores de óleo são
os mestres. O preço que eles cobram pelo óleo é a perseverança. A meia-
noite é a hora do descuido imprudente. O grande clamor ouvido vem dos
anjos que despertam todos os homens. o noivo é Cristo que vem para
encontrar a noiva, a igreja. Assim Orígenes interpretou a parábola.

Entre os comentaristas do século XIX, era comum identificar os


pormenores da parábola. Na parábola das dez virgens, a lâmpada acesa
representava as boas obras; e o óleo, a fé daquele que crê. Outros viram
o óleo como uma representação simbólica do Espírito Santo.

Ainda assim, nem todos os intérpretes das parábolas tomaram o


caminho da alegoria. Por ocasião da Reforma, Martinho Lutero tentou
mudar a maneira de interpretar as Escrituras. Ele preferiu um método
de exegese bíblica que levava em consideração a localização histórica e a
estrutura gramatical da parábola. João Calvino foi ainda mais direto. Ele
evitou totalmente as interpretações alegóricas das parábolas e procurou
estabelecer o ponto principal de seu ensinamento. Quando ele
constatava o significado de uma parábola, não se preocupava com os
seus pormenores. Em sua opinião, os detalhes não tinham nada a ver
com aquilo que Jesus pretendia ensinar através da parábola.

Durante a segunda metade do século XIX, C. E. van Koetsveld, um


estudioso alemão, deu novo impulso ao modo de abordar o assunto,
iniciado pelos Reformadores. Ele mostrou que as extravagantes
interpretações alegóricas das parábolas, feitas por numerosos
comentaristas, obscureciam mais que esclareciam o ensino de Jesus10.
Para interpretar uma parábola apropriadamente, o exegeta precisa
apreender seu significado básico e distinguir o que é, ou não, essencial.
Van Koetsveld foi seguido, em sua maneira de abordar as parábolas, pelo
teólogo alemão A. Jülicher, que observou que, embora o termo parábola
seja usado freqüentemente pelos evangelistas, a palavra alegoria jamais
é encontrada nos relatos dos Evangelhos11.

No final do século passado, as amarras que atavam a exegese das


parábolas foram cortadas e uma nova era de pesquisa teve início12.
Enquanto Jülicher via Jesus como um professor de princípios morais, C.
H. Dodd o considerou como uma pessoa histórica, dinâmica, que, com
seus ensinamentos, provocou um período de crise. Disse Dodd: ―A tarefa
de um intérprete de parábolas é descobrir, se puder, a aplicação da
parábola na situação pretendida pelos Evangelhos‖13. Jesus ensinava
que o reino de Deus, o Filho do Homem, o Juízo e as bem-aventuranças

10 C. E. van Koetsveld, De Gelykenissen van den Zaligmaker (Schoonhoven, 1869), vols.


1, 2.
11 A. Jülicher, Die Gleichnisredcn Jesu (Tübingen: Buchgesellschaft, 1963), vols. 1, 2.
12 Consulte os interessantes estudos de M. Black, ―The Parables as Alegoty‖, BJRL42

(1960): 273-87; R. E. Brown, ―Parable and Allegory Reconsidered‖, NTS 5 (1962): 36-45.
13 C.H. Dodd, The Parables of the Kingdon (London, Nesbit and Co., 1935), p. 26.
passavam a fazer parte da história daquela época. Para Jesus, de acordo
com Dodd, o reino significava o governo de Deus exemplificado em seu
próprio ministério. Portanto, as parábolas ensinadas por Jesus devem
ser entendidas como diretamente relacionadas com a efetiva situação do
governo de Deus na terra.

J. Jeremias continuou o trabalho de Dodd. Ele, também, desejou


descobrir os ensinamentos das parábolas que remetem de volta ao
próprio Jesus. Jeremias se dispôs a traçar o desenvolvimento histórico
das parábolas, o que acreditava ocorrer em dois estágios. O primeiro diz
respeito à situação real do ministério de Jesus, e o segundo é uma
reflexão sobre o modo como as parábolas eram postas em prática pela
igreja cristã primitiva. A tarefa a que Jeremias se propôs era a de
recuperar a forma original das parábolas para ouvi-Ias na própria voz de
Jesus14. Com o seu profundo conhecimento da terra, da cultura, dos
costumes, do povo e da língua de Israel, Jeremias foi capaz de reunir um
rico cabedal de informações que fazem de sua obra um dos livros de
maior prestígio a respeito das parábolas.

Apesar disso, uma questão se apresenta: pode a forma original ser


separada do contexto histórico sem sucumbir a um acúmulo de
adivinhações? Por outro lado, o texto das parábolas pode ser tomado e
aceito como uma representação real do ensino de Jesus. Isto é, o texto
bíblico que o evangelista nos entregou reflete o contexto histórico no
qual as parábolas foram, originalmente, narradas. Dependemos do texto
que recebemos e agimos acertadamente quando deixamos as parábolas e
seu assentamento histórico intacto. Isso pede confiança — que os
evangelistas, ao registrarem as parábolas, tenham compreendido a
intenção de Jesus ao ensiná-las nas circunstâncias por eles descritas15.
Na ocasião em que as parábolas foram registradas, testemunhas e
ministros da Palavra transmitiram a tradição oral das palavras e feitos
de Jesus (Lc 1.1, 2). Por causa do elo com as testemunhas, podemos
confiar que o contexto no qual as parábolas estão inseridas se refere ao
tempo, lugares e circunstâncias nas quais Jesus, originalmente, as
ensinou.

Mais recentemente, representantes de nova corrente da


hermenêutica têm, de maneira crescente, deslocado as parábolas de seu
assentamento histórico para uma ênfase literária claramente baseada
numa estrutura existencial16. Quer dizer, esses estudiosos tratam as
parábolas como literatura existencial, as removem de suas amarras
históricas e substituem sua significação original por uma mensagem
contemporânea. Negam que o sentido da parábola tem sua origem na
vida e ministério de Jesus17; não estão interessados em suas fontes e

14 Jeremias, Parables, pp. 113,114.


15 A. M. Iirouwer, De Gelykenissen (Leiden: Brill, 1946), p. 247; G.V. Jones, The Art and
Truth of the Parables (L.ondon: S.P. C.K., 1964), p. 38.
16 M. A. Tolbert, Perspectives on lhe Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1979), p.20.
17 D. O. Via, ir., em ―A response to Crossan, Funk, and Peterson‖, Semeia 1 (1974):
bases, mas, antes, em sua forma literária e sua interpretação
existencial18. Para eles, a estrutura literária da parábola é importante
porque leva o homem moderno a um momento de decisão: tem que
aceitar ou rejeitar o desafio colocado diante dele.

Aceitamos prontamente a idéia de que as parábolas chamam o


homem à ação; na aplicação da parábola do bom samaritano, ao
intérprete da lei que o questionou, Jesus disse: ―Vai, e procede tu de
igual modo‖ (Lc 10.37). Entretanto, o existencialista, em sua
interpretação da parábola, enfatiza o modo imperativo e menospreza o
modo indicativo no qual a parábola foi contada. Ele separa as palavras
de Jesus de sua disposição cultural e, assim, as despoja do poder e
autoridade que Jesus lhes deu.

Além do mais, ao tratar as parábolas como estruturas literárias


separadas de seu assentamento original, o existencialista precisa
estabelecer para elas uma nova base. Assim, ele coloca as parábolas
num contexto contemporâneo. Mas, esse método dificilmente pode ser
chamado de exegético, pois insufla no texto bíblico uma filosofia
existencial. Isso é eisegese, não exegese. Infelizmente, o cristão comum,
que procura orientação para o entendimento das parábolas com os
representantes da nova escola hermenêutica, precisa, primeiro, buscar
conhecer a filosofia existencial, a teologia neoliberal e o jargão literário
do estruturalismo, para que possa se beneficiar com seus pontos de
vista.

Princípios

Interpretar parábolas não exige um treinamento completo em


teologia e filosofia, mas implica que o exegeta se atenha a alguns
princípios básicos de interpretação. Esses princípios, em resumo, estão
relacionados com a história, a gramática e a teologia do texto bíblico.
Sempre que possível, o intérprete deve fazer um estudo da conjuntura
histórica da parábola, incluindo uma análise pormenorizada das
circunstâncias religiosas, sociais, políticas e geográficas reveladas na
parábola. A disposição da parábola do bom samaritano, por exemplo,
exige certa familiaridade com a instrução do clero daqueles dias. O
intérprete da lei, procurando Jesus e perguntando-lhe o que fazer para
herdar a vida eterna, deu início à conversação que levou à história do
bom samaritano.

Em relação à parábola do bom samaritano, o exegeta deveria se


familiarizar com a origem, a classe social e a religião dos samaritanos,
com as funções, ofício e residência do sacerdote levita; com a topografia

222, afirma: ‗Não tenho absolutamente interesse, nem mesmo na Pessoa do Jesus
histórico‖.
18 J. D. Crossan, em ―The Good Samaritan‖ Towards a Generic Definition of Parable‘,

Semeia 2 (1974): 101, parece indicar que é mais importante para uma proposição ser
interessante que ser verdadeira.
da área entre Jerusalém e Jericó; e com o conceito judaico de boa
vizinhança. Observando o contexto histórico da parábola, o intérprete
apreende a razão por que Jesus contou essa história e compreende a
lição que Jesus procurou transmitir através da parábola19.

A seguir, o exegeta deve atentar para a estrutura literária e


gramatical da parábola. Os modos e tempos de verbos empregados pelo
evangelista em relação à parábola são muito significativos e lançam luz
sobre o principal ensinamento da história. As palavras estudadas em
seu contexto bíblico, assim como em escritos extra canônicos são parte
essencial do processo de interpretação de uma parábola. Assim, o estudo
da palavra próximo no contexto do comando ―Ama o teu próximo como a
ti mesmo‖, como foi dado no Velho e Novo Testamentos, resulta num
exercício gratificante. O intérprete precisa, também, levar em
consideração a introdução e a conclusão de uma parábola, pois podem
conter um artifício literário como uma questão de retórica, uma
exortação ou uma ordem. A parábola do bom samaritano é concluída
com o comando direto: ―Vai, e procede tu de igual modo‖ (Lc 10.37). O
intérprete da lei, que tinha perguntado a Jesus a respeito do que fazer
para herdar a vida eterna, não teve como deixar de se envolver no
cumprimento da ordem de amar a seu próximo como a si mesmo. As
introduções, e especialmente as conclusões contêm as diretrizes que
ajudam o intérprete a encontrar os pontos principais das parábolas.

Ainda, o ponto principal de uma parábola deve ser comparado


teologicamente com os ensinamentos de Jesus e com o resto das
Escrituras20. Quando o ensino básico de uma parábola foi
completamente explorado e está corretamente entendido, a unidade das
Escrituras se manifestará e o sentido apropriado da passagem poderá
ser visto em toda a sua simplicidade e limpidez.

Por último, o intérprete da parábola deve traduzir seu significado


em termos apropriados às necessidades de hoje. Sua tarefa é aplicar o
ensinamento central da parábola à situação de vida da pessoa que está
ouvindo sua interpretação. Na parábola do bom samaritano, a ordem
para amar o próximo se torna cheia de significado quando a pessoa que
foi roubada e ferida na estrada de Jericó não é mais uma figura de um
passado distante. Ao contrário, o próximo que clama pelo nosso amor é o
sem-teto, carente e oprimido. Ele vem ao nosso encontro na estrada de
Jericó das páginas diárias dos jornais e do noticiário colorido da
televisão.

Classificação

As parábolas de Jesus podem ser agrupadas e classificadas de


várias formas. As do semeador, da semente germinando secretamente,

19 L. Berkhof, PrincipIes of Biblical Interpretation (Grand Rapids: Baker Book House,


1952), p. 100.
20 A. B. Mickelsen, Interpreting the Bible (Grand Rapids: Ecrdmans 1963), p. 229.
do trigo e do joio, da figueira estéril, e a da figueira brotando são, todas,
parábolas naturais. Várias parábolas de Jesus dizem respeito ao
trabalho e ao salário. Algumas delas são a respeito dos trabalhadores da
vinha, do arrendatário e do administrador infiel, O tema de outras são as
bodas e festas ou ocasiões solenes. Essas incluem a parábola das
crianças brincando na praça, a das dez virgens, a da grande ceia e a do
banquete das bodas. Outras, ainda, têm como motivo geral o achado e o
perdido. Essas incluem as parábolas da ovelha perdida, da moeda
perdida e a do filho perdido.

Nem sempre, no entanto, é fácil classificar uma parábola. A


parábola da rede é uma parábola natural, ou deve ser agrupada com as
que falam de trabalho e salário? Onde colocar a parábola do bom
samaritano? Fica claro que a classificação das parábolas pode ser, de
certo modo, arbitrária, e, em alguns casos, forçada.

Os Evangelhos Sinóticos apresentam parábolas com


correspondentes em dois ou mesmo três dos Evangelhos, e também
parábolas específicas de um único evangelista. Enquanto Marcos tem
apenas uma parábola peculiar a seu Evangelho (a da semente crescendo
secretamente), Mateus e Lucas têm várias. Em minha apresentação das
parábolas, segui a seqüência dos Evangelhos, discutindo primeiro as de
Mateus, com a exclusiva de Marcos estudada entre a parábola do
semeador e a do trigo e o joio, e, então, as apresentadas no Evangelho de
Lucas. Nas parábolas que têm correspondente, a seqüência quase
uniforme de Mateus, Marcos e Lucas foi adotada. Escolhi esse
procedimento a fim de ajudar o leitor que queira consultar um estudo
dos paralelos sinóticos, por exemplo, Synopsis of the Four Golspels de K.
Aland21. Nesse estudo sobre as parábolas, referências a palavras gregas
e hebraicas são freqüentes. Quando elas aparecem são transliteradas e
traduzidas. A Bíblia Inglesa usada é a Nova Versão Internacional (com
permissão da Comissão Executiva). Para ajudar o leitor, o texto é
transcrito integralmente no princípio de cada parábola. As parábolas que
têm correspondentes nos três Evangelhos Sinóticos são apresentadas na
seqüência de Mateus, Marcos e Lucas. Um total de quarenta parábolas e
declarações em forma de parábolas são estudadas neste livro. Todas as
principais parábolas estão arroladas, assim como a maior parte das
declarações em forma de parábola. Naturalmente, uma seleção foi
necessária com relação a essas declarações, por isso a parábola do sal
está incluída e a da candeia foi omitida. Apenas as declarações em forma
de parábola que se encontram nos Evangelho Sinóticos foram estudadas,
não aquelas encontradas no Evangelho de João.

A literatura a respeito das parábolas é volumosa — uma


interminável corrente de livros e artigos. Dificilmente uma parábola terá
sido negligenciada pelos recentes estudiosos. Novas concepções
provindas dos estudos sobre a cultura e a lei judaicas têm sido valiosas

21K. Aland, Synopsis of lhe Four Gospels (Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt,


1976).
no avanço para uma melhor compreensão dos ensinamentos de Jesus, O
objetivo deste livro é presentear o pastor e o verdadeiro estudioso da
Bíblia com um acervo abrangente e contemporâneo dos escritos sobre as
parábolas, sem se prender a pormenores. As notas de rodapé e a
bibliografia selecionada auxiliam o estudioso de teologia que desejar
prosseguir mais intensamente no estudo das parábolas de Jesus.
Através do material bibliográfico e do índice, ele terá acesso à literatura
disponível sobre as parábolas de Jesus.
1. O Sal

Mateus 5.13 ―Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido,
como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado
fora, ser pisado pelos homens‖.

Marcos 9.50 ―Bom á o sal; mas se o sal vier a tornar-se insípido, como
lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os
outros‖.

Lucas 14.34,35 ―O sal é certamente bom; caso, porém, se torne insípido,


como restaurar-lhe o sabor?‖. ―Nem presta para a terra, nem mesmo
para o monturo; lançam-no fora. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça‖.

Através da história, o sal tem sido usado para preservar e dar


gosto aos alimentos. É uma das necessidades básicas da vida. Seu uso é
universal e seu provimento é aparentemente inesgotável. Mas além de
suas qualidades úteis, o sal tem, também, propriedades destrutivas. Ele
pode transformar o solo fértil em terra árida e devastada22. A área ao
redor do Mar Morto é um exemplo.

Nos tempos atuais, achamos inconcebível que o sal possa deixar


de ser salgado. O cloreto de sódio (nome químico do sal de cozinha) é um
composto estável. Ele não possui qualquer impureza. No antigo Israel,
entretanto, o sal era obtido pela evaporação da água do Mar Morto. A
água continha várias outras substâncias, além do sal. A evaporação
produz cristais de sal e cloreto de potássio e de magnésio. Porque os
cristais de sal são os primeiros a se formarem durante o processo de
evaporação, eles podem ser recolhidos e fornecem, assim, sal
relativamente puro. Se o sal resultante da evaporação não for, no
entanto, preservado, e se, com o tempo, os cristais se tornarem úmidos e
liquefeitos, o que restar será insípido e inútil23.

O que se pode fazer com o sal insípido? Não serve para nada. Os
fazendeiros não querem esse produto químico em suas terras, pois, no
estado bruto, prejudica as plantas. Jogar esse resíduo na pilha de
estrume também não resolve, pois, comumente, o esterco é espalhado na
terra, como fertilizante. A única coisa que se pode fazer com o sal
insípido é lançá-lo fora onde será pisado24. Se o sal perder sua
propriedade básica e deixar de ser salgado25, não se poderá mais

22
Dt 29.22,23; Jz 9.45; Jó 39.6; SI 107.34; Jr 17.6; Sf 2.9.
23 Jeremias, Parables, p. 169; J. H. Marshall, The Gospel of Luke (Grand Rapids:
Eerdmans,1978), p. 596; Hauck, TDNT, 1.229.
24 E. P. Deatrick, em ―Salt, Sou, Savior‖, 13A 25 (1962): 47, citando Lamsa, menciona

que no moderno Israel ―o sal insípido é espalhado em terraços cobertos com terra. Por
causa do sal, a terra endurece. Os terraços são, então, usados como áreas de lazer e de
brincadeiras de crianças‖.
25 O verbo em Mateus 5.13 e Lucas 13.34 para ―tomar-te insípido‖ é môrainein, que

tem o sentido original de ―fazer tolice‖, na voz ativa, e ―fazer-se de tolo‖, na voz passiva.
recuperá-la.

No Sermão da Montanha, Jesus se dirigiu à multidão e a seus


discípulos, dizendo-lhes: ―Vós sois o sal da terra‖. Como o sal tem a
característica de impedir a deterioração, assim também os cristãos
devem exercer uma influência moral na sociedade em que vivem. Por
suas palavras e atos devem restringir a corrupção espiritual e moral.
Como o sal é invisível (no pão, por exemplo) e, ainda assim, um agente
poderoso, também os cristãos nem sempre são vistos, mas individual e
coletivamente permeiam a sociedade e constituem uma força refreadora
num mundo perverso e depravado.

―Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros‖, diz Jesus
(Mc 9.50). Ele exorta seus seguidores a usar dotes espirituais para
promover a paz26, primeiro em casa, e depois com os outros. Porque os
cristãos não têm sido capazes de viver em paz entre si mesmos, têm
perdido sua eficiência no mundo.

Muitas pessoas podem jamais ter lido a Bíblia, todavia


constantemente observam aqueles que já a leram. Na Igreja Cristã
primitiva, o eloqüente Crisóstomo, certa vez, disse que se os cristãos
vivessem a vida que se espera deles, os incrédulos desapareceriam.

W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich e F. Danker, A Greek-English Lexicon of the New


Testament (Chicago: University of Chicago Presa, 1978), p. 531.
26 W. Nauck, ―Salt asa Metaphor‖, St Th 6 (1953); 176.
2. Os Dois Fundamentos

Mateus 7.24-27 ―Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as
pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa
sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os
ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque
fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas
palavras e não as pratica, será comparado a um homem insensato, que
edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios,
sopraram os ventos e deram com ímpeto contra a casa, e ela desabou,
sendo grande a sua ruma‖.

Lucas 6.47-49 ―Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e
as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. E semelhante a um
homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o
alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra
aquela casa, e não a pôde abalar, por ter sido bem construída. Mas o
que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma
casa sobre a terra sem alicerces, e arrojando-se o rio contra ela, logo
desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa‖.

Jesus se referiu, muitas vezes, a tempestades repentinas que


transformavam o leito seco de um riacho em correntes violentas. São
cenas comuns em Israel, onde o tempo muda de repente e altera, às
vezes, drasticamente a paisagem.

As construções rurais dos dias de Jesus eram, geralmente, feitas


com barro endurecido. Os ladrões conseguiam cavar buracos através das
paredes de tais casas (Mt 6.19). Quatro homens fizeram uma abertura
no teto da casa onde Jesus estava ensinando, para por ela fazer baixar o
leito onde estava seu amigo paralítico (Mc 2.3,4). Para quem construía
era uma questão de economia construir longe de possíveis cursos de
água, mesmo que essas valas permanecessem secas por vários anos27.

O construtor prudente escolhe um local sobre a rocha. Assim, ele


não temerá que uma chuva torrencial, provocando o súbito
transbordamento de um riacho, arraste a casa, nem receará as rajadas
de vento que se abaterão sobre ela. O alicerce da casa construída sobre a
rocha resistirá.

O construtor insensato constrói sua casa como se estivesse


erguendo uma tenda. Não lhe ocorre que a casa deve ter uma estrutura
mais permanente. Ele edifica sua casa sobre a areia, possivelmente por

27 E. F. F. Bishop, em ―Jesus of Palestine‖ (London; Lutterworth Press, 1955), p. 86, faz


referencia a casas de barro, entre Gaza e Asquelon, que tinham sido construídas bem
longe de um curso de água, para evitar que uma súbita mudança de sua direção as
atingisse. Mas, durante um inverno no deserto de Neguebe, um leito seco se encheu
subitamente, mudou seu curso, e inundou completamente um acampamento beduíno,
causando a morte de pessoas e de gado.
causa do acesso mais fácil a um riacho próximo. Enquanto o tempo está
bom e o céu permanece azul os ocupantes da casa nada têm a temer.
Quando, quase sem que se possa prever, o tempo muda, as nuvens se
acumulam, a chuva cai, os riachos transbordam e o vento sopra, a casa
vem abaixo com grande estrondo.

Os dois evangelistas, Mateus e Lucas, mostram algumas


diferenças na narrativa da parábola. Podemos explicar essas variações
atentando para os diferentes leitores a quem elas se destinavam. Mateus
escreveu para o leitor judeu, que vivia em Israel, enquanto Lucas levava
o evangelho aos helenos, que viviam na Ásia Menor e no Mediterrâneo.
Para um judeu acostumado com as técnicas de construção que
prevaleciam no antigo Israel, a parábola a respeito dos dois construtores
se explicava por si mesma. Lucas, contudo, não escrevia para um povo
que vivia na Galiléia, ou na Judéia. Ele se dirigia a gregos ou helenos.
Por isso, Lucas substituiu por procedimentos de construção usuais entre
eles, aqueles comuns em Israel28. O construtor cava, abrindo profunda
vala, e assenta o alicerce da casa sobre a rocha, descreve Lucas. Além da
diferença na maneira de construir, Lucas tinha que levar em
consideração as mudanças geográficas e climáticas. Enquanto Mateus
escreveu sobre a chuva caindo, o riacho transbordando e o vento
soprando forte, Lucas se referiu à enchente que veio e à força da
correnteza se arrojando contra a casa. Mateus fala de se construir sobre
a areia; Lucas, de se construir sobre a terra. Esses pormenores
diferentes não alteram o significado da parábola. O construtor é
prudente quando constrói a casa sobre base sólida.

Uma pessoa que ouve as palavras de Jesus e as pratica é como o


construtor prudente. E tolo aquele que, ouvindo palavras de Jesus, não
as obedece. Tal pessoa pode ser comparada ao construtor que constrói
sua casa sobre a areia, ou sobre a terra, sem alicerce.

Essa parábola faz eco às palavras do profeta Ezequiel. Ele descreve


uma parede frágil que é construída, a chuva torrencial, o granizo
batendo com força e a violência do vento que explode. Assim, a parede
cai (Ez 13.10-16).

Ao concluir o Sermão da Montanha (Mt 5-7), ou o sermão da planície


(Lc 6), Jesus queria que seus ouvintes não apenas ouvissem, mas,
também, praticassem o que ele lhes havia dito. É insuficiente apenas
ouvir as palavras de Jesus. Aquele que crê deve aceitar a palavra de
Jesus e construir sua fé apenas nele. Jesus é o fundamento sobre o qual
o homem prudente constrói. Nas palavras de Paulo: ―Segundo a graça de
Deus que me foi dada, lancei o fundamento como prudente construtor; e
outro edifica sobre ele. Porém, cada um veja como edifica. Porque
ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é
Jesus Cristo‖ (1 Co 3.10,11).

28Jeremias, Parables, p. 27. As casas gregas eram, muitas vezes, construídas com
porões (= alicerces), o que não era comum na Palestina.
O prudente ouve atentamente e direciona sua vida de acordo com
as palavras de Jesus. Aquele que ouve as palavras de Jesus e não as
pratica se arruinará completamente. Não gasta tempo cavando e
assentando seu alicerce. Sua casa fica pronta logo e é temporariamente
adequada às suas necessidades, mas quando a adversidade chega como
um furacão, a casa que não tem Jesus como fundamento tomba, e sua
ruína é completa.

Essa parábola chama a atenção, indiretamente, para o julgamento


de Deus, que todos, quer prudentes ou insensatos, terão que enfrentar.
O prudente que construiu sua fé, baseado em Jesus, está apto a resistir
às tempestades da vida. Ele permanece seguro, supera e triunfa. Nas
Bem-aventuranças, Jesus chama o pobre, o manso e o perseguido de
bem-aventurados. Na parábola, os que construíram sobre a Rocha
demonstram firmeza em tudo que fazem. Eles ouvem a palavra de Deus
e a praticam. Por isso, nunca serão destruídos. Acreditam em Jesus e
obedecem à sua palavra.
3. Meninos na Praça

Mateus 11.16-19 ―Mas a quem hei de comparar esta geração? É


semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos
companheiros: ‗Nós vos tocamos flauta e não dançastes; entoamos
lamentações, e não pranteastes‘. Pois veio João, que não comia nem
bebia, e dizem: ‗Tem demônio‘. Veio o Filho do homem, que come e bebe,
e dizem: ‗Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e
pecadores‘. Mas a sabedoria é justificada por suas obras‖.

Lucas 7.31-35 ―A que, pois, compararei os homens da presente geração,


e a que são eles semelhantes? São semelhantes a meninos que, sentados
na praça, gritam uns para os outros: ‗Nós vos tocamos flauta, e não
dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes‘. Pois veio João
Batista, não comendo pão nem bebendo vinho e dizeis: ‗Tem demônio.
Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizeis: ‗Eis aí um glutão e
bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores‘. Mas a sabedoria é
justificada por todos os seus filhos‖.

Jesus contou uma parábola interessante sobre crianças brincando


numa praça. Ele extraiu a cena diretamente do cotidiano: uma visão
conhecida de crianças inventando suas brincadeiras e representando-as.
O ―faz de conta‖ podia, muito bem, ter acontecido assim: vários meninos
e meninas estavam brincando na praça, provavelmente vazia. Algumas
crianças queriam brincar de casamento. Além da noiva e do noivo,
precisavam de um tocador de flauta, pois um grupo deveria dançar na
festa. Embora o noivo e a noiva estivessem prontos, e uma das crianças
providenciasse a música de flauta, o resto das crianças se recusou a
dançar. Não estavam interessados em brincar de casamento.

Em outro exemplo, algumas crianças queriam representar um


funeral. Uma delas tinha que se fingir de morta, enquanto outras
cantavam um canto fúnebre. O resto tinha que chorar — mas se
recusaram. Não queriam participar daquela brincadeira fúnebre. As
crianças que tinham inventado as brincadeiras sentaram-se e disseram
aos outros:

Nós vos tocamos flauta,


e não dançastes;
entoamos lamentações,
e não chorastes.

Aplicação

De acordo com o evangelho de Mateus, as crianças sentadas na


praça gritam aos seus companheiros. No Evangelho de Lucas, as
crianças estão gritando umas para as outras. Na apresentação de
Mateus, um grupo de crianças é criativo e sugere duas brincadeiras
diferentes a um outro grupo29. O relato de Lucas dá a impressão de que
um grupo queria representar uma brincadeira alegre e o outro, uma
triste. Nenhum dos grupos queria aceitar a sugestão do outro. É
provável, ainda, que apenas a reprovação de um dos grupos tenha sido
registrada30, e que o uso de ―uns para os outros‖ não deva ser
indevidamente enfatizado.

Mas, como se aplica a parábola? Basicamente, há dois modos de


se aplicar a cena que Jesus descreveu. Primeiro, as crianças que
sugeriram as brincadeiras de casamento e funeral representam Jesus e
João Batista, respectivamente. As crianças que se recusaram a brincar
são os judeus. João veio a eles de forma tão pungente quanto um canto
fúnebre, mas eles não estavam dispostos a ouvi-lo. Para se livrarem de
João, diziam que estava endemoninhado. Jesus, entretanto, veio e
trouxe alegria e felicidade, contudo os judeus zombaram dele porque
entrava nas casas dos marginalizados, moral e socialmente, e comia e
bebia com eles.

A segunda interpretação é o oposto da primeira. As crianças que


sugeriram a brincadeira alegre do casamento e a triste do funeral são os
judeus que queriam que João fosse alegre e que Jesus se lamentasse.
Quando nenhum dos dois viveu conforme a expectativa deles, então se
queixaram. Disseram a João: ―Nós vos tocamos flauta, e não dançastes‖.
E, disseram a Jesus: ―Entoamos lamentações, e não chorastes31‖.

Das duas, a segunda explicação é a mais plausível. Primeiro, ela


estabelece uma ligação definida entre ―os homens da presente geração‖
(Lc 7.31) e as crianças que faziam recriminações. Os judeus estavam
descontentes tanto com João Batista como com Jesus, assim como as
crianças com os seus companheiros. Segundo, ela coloca as queixas das
crianças, aplicadas a João e a Jesus, numa ordem cronológica32. João
veio como um asceta que vivia de gafanhotos e mel silvestre — não era
de seu agrado comer pão e beber vinho —, e os judeus o acusaram de
ser possuído pelo demônio. Jesus, ao contrário, comia pão e bebia vinho,
e eles o chamaram de glutão e beberrão, amigo dos publicanos e
―pecadores‖. Deus enviou seus mensageiros nas pessoas de João e
Jesus, mas seus contemporâneos nada fizeram senão achar faltas neles.

Paralelos

As brincadeiras que as crianças queriam brincar e suas

29 Jeremias, em Parables, p. 161, segue a sugestão de Bishop, em Jesus of Palestine, p.


104. Jeremias escreve: ―O fato de algumas crianças estarem sentadas talvez implique
que estivessem satisfeitas em apenas se queixar e se lamentar, deixando para outros,
tarefas mais cansativas‖. Há no entanto, grande perigo em se ir tão longe na
interpretação do texto.
30 Marshall, Luke, p. 300.
31 E. Mussner, em ―Der nicht erkannte Kairos (Mt 11.16-19 = L.c 7.31-35)‖. Bid

40(1959)600; descreve todas as crianças sentadas e gritando.


32 A. Plummer, The Gospel of Luke (ICC) (New York: C. Scribner & Sons, 1902), p. 163.
conseqüentes reclamações estão em consonância com o Livro de
Eclesiastes, que poeticamente observa que há tempo para tudo. Há
―tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar
de alegria‖ (Ec 3.4), diz o Pregador.

Os insultos que os judeus lançaram sobre Jesus, entretanto, não


eram, de modo algum, inofensivos. Eles o acusaram de ser glutão e
beberrão. Essa era a descrição de um filho desobediente, que, de acordo
com a lei de Moisés, devia ser apedrejado até à morte (Dt 21.20,21). O
relacionamento de Jesus com os marginalizados social e moralmente,
que eram olhados como apóstatas pelos lideres religiosos, foi
considerado reprovável. Por causa desse convívio, os judeus achavam
que o próprio Jesus devia ser considerado apóstata33.

A literatura dos rabinos apresenta um paralelo extraordinário.


Embora seja difícil afirmar quando foi escrito e qual sua origem, na
forma oral, o texto é interessante:

Jeremias falou diretamente ao Santo, louvado seja Ele: Tu


enviaste Elias, de cabelos encaracolados, para agir em
benefício deles, e eles riram dele, dizendo: ―Olha como ele
ondula seus cabelos!‖, e zombavam dele, chamando-o de
―aquele dos cabelos crespos‖. E, quando Tu fizeste com que
Eliseu se levantasse para agir em benefício deles, disseram-lhe,
ironicamente: ―Sobe, calvo; sobe, calvo! 34‖.

Conclusão

O ponto culminante dessa parábola diverge nas descrições dos


dois Evangelhos. Os relatos de Mateus e Lucas variam na frase
conclusiva. ―Mas a sabedoria é justificada por suas obras‖ (Mt 11.19), e
―Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos‖ (Lc 7.35). Já foi
sugerido que a diferença pode ser devida a uma expressão do aramaico,
que foi mal traduzida35. Qualquer que seja a causa, no entanto, não
varia o sentido que as palavras transmitem. A sabedoria significa a
sabedoria de Deus; ela pode ser mesmo um circunlóquio para o próprio
Deus. De acordo com Mateus, as obras divinas de Jesus (Mt 11.5) são
provas da sabedoria de Deus. No evangelho de Lucas, os filhos de Deus
são testemunhas da veracidade de sua sabedoria. Por exemplo,
publicanos e mulheres sem moral, rejeitados como marginais pelos
religiosos daqueles dias, viram revelada em João Batista e em Jesus a
sabedoria de Deus. Ambos, João e Jesus proclamaram a mensagem de
redenção — João, com toda a austeridade, no Jordão (Lc 3.12, 13); e
Jesus, ao redor da mesa, em suas casas (Lc 5.30).

33 Mt 9.11; Lc 5.30; 15.1,2; 19.7.


34 Piska 26, em W. 6. Ilraude, Pesikta Rabbati, 2 vols. (New Haven: YaIe University
Press, 1968,69), 1: 526-27. Ver também, 5H II; 161.
35 Jeremias, Parables, p. 162. nº 44.
4. O SEMEADOR

Mateus 13.1-9 ―Naquele mesmo dia, saindo Jesus de casa, assentou-se à


beira-mar; e grandes multidões se reuniram perto dele, de modo que
entrou num barco e se assentou; e toda a multidão estava em pé na
praia. E de muitas coisas lhes falou por parábolas e dizia: Eis que o
semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do
caminho, e, vindo as aves, a comeram. Outra parte caiu em solo
rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a
terra. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz, secou-
se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a
sufocaram. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto: a cem, a
sessenta e a trinta por um. Quem tem ouvidos para ouvir , ouça‖.

Marcos 4.1-9 ―Voltou Jesus a ensinar à beira-mar. E reuniu-se


numerosa multidão a ele, de modo que entrou num barco, onde se
assentou, afastando-se da praia. E todo o povo estava à beira-mar, na
praia. Assim, lhes ensinava muitas coisas por parábolas, no decorrer do
seu doutrinamento. Ouvi: Eis que saiu o semeador a semear. E, ao
semear, uma parte caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a
comeram. Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo
nasceu, visto não ser profunda a terra. Saindo, porém, o sol, a queimou;
e, porque não tinha raiz, secou-se. Outra parte caiu entre os espinhos; e
os espinhos cresceram e a sufocaram, e não deu fruto. Outra, enfim,
caiu em boa terra e deu fruto, que vingou e cresceu, produzindo a trinta,
a sessenta e a cem por um. E acrescentou: Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça‖.

Lucas 8.4-8 ―Afluindo uma grande multidão e vindo ter com ele gente de
todas as cidades, disse Jesus por parábola: Eis que o semeador saiu a
semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho; foi pisada, e
as aves do céu a comeram. Outra caiu sobre a pedra; e, tendo crescido,
secou por falta de umidade. Outra caiu no meio dos espinhos; e estes, ao
crescerem com ela, a sufocaram. Outra, afinal, caiu em boa terra;
cresceu e produziu a cento por um. Dizendo isto, clamou: Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça‖.

Composição

Em nossas sociedades industrializadas, a agricultura tem-se


preocupado sempre com a produção de alimentos. Cultivar a terra não é
simplesmente um meio de vida; ao contrário, tornou-se um modo de
ganhar a vida. A moderna tecnologia tem sido amplamente aplicada a
métodos de cultivo, de tal modo que o agricultor se tornou um técnico
em diversas áreas — um especialista na aplicação de fertilizantes,
herbicidas e inseticidas — e um homem de negócios que conhece o custo
da produção, o valor de seu produto e a situação do mercado.
Quando Jesus ensinou a parábola do semeador a seus ouvintes na
Galiléia, eles podiam, literalmente, ver o agricultor lançando a semente
nos campos próximos, durante o mês de outubro. O evangelista não nos
diz quando Jesus contou a parábola, mas pode muito bem ter sido na
ocasião em que o semeador saiu para semear. As multidões (de acordo
com Mateus, grandes multidões) tinham vindo até à praia, à margem
noroeste do Lago da Galiléia. Talvez chegassem a milhares. Para se
dirigir a tamanha multidão, Jesus usou um púlpito flutuante, sentando-
se num barco, muito provavelmente afastado da praia36. Desse modo, a
superfície da água refletia sua voz que, num dia calmo, podia alcançar
seus ouvintes à distância. Aquele ambiente natural funcionava mais
eficientemente que os atuais sistemas usados para a comunicação com o
público.

Jesus não precisava explicar as atividades do lavrador. Eles,


talvez, o estivessem vendo, à distância, no trabalho, semeando grãos de
trigo e cevada. Provavelmente haviam passado ao lado de seu campo, no
caminho para a praia. Na sociedade agrícola daqueles dias, muitos dos
que ali estavam eram donos de terra, ou já haviam trabalhado no seu
cultivo.

Cultivar a terra era relativamente fácil nos dias de Jesus. Embora


a parábola não nos conte nada a respeito de métodos de cultivo,
aprendemos no Velho Testamento (Is 28.24,25; Jr 4.3 e Os 10.11,12) e
nos escritos dos rabinos que, no final de um longo e quente verão, o
fazendeiro ia para o campo semear trigo e cevada sobre o solo
endurecido. Ele arava a terra para cobrir a semente e esperava que a
chuva de inverno viesse fazer germinar os grãos37.

Na parábola de Jesus, o lavrador partiu para o campo levando seu


suprimento de grãos numa bolsa que trazia a tiracolo. Com passos
ritmados, lançava as sementes em faixas, pelo campo. Não se
preocupava com os poucos grãos que caíam à beira do caminho, nem
com aqueles que eram lançados em terra pouco profunda, onde as
rochas despontavam. Também não se preocupava com o trigo caído
entre os espinheiros que cresceriam na primavera, abafando as
sementes. Para o lavrador, tudo aquilo fazia parte de seu dia de
trabalho.

A descrição é corriqueira e precisa. O lavrador não podia impedir


que os grãos caíssem em solo duro. Cedo ou tarde viriam as aves e os
comeriam. Alguns pássaros comeriam até mesmo as sementes lançadas
no campo. Acontecia comumente. Também, pouco ele podia fazer a
respeito das rochas. Assim era a terra. Ele havia tentado acabar com os
espinheiros arrancando suas raízes, mas estes teimavam em renascer.

36W. NeiI, ―Expounding The Parables‖, Exp T 78 (1965): 74.


37J. Jeremias, ―Palastinakundliches zum Gleichnis vom S~emann‖, NTS 13(1967): 48-
53. Ver também Parables, p.l2.
A expectativa do lavrador estava no tempo da ceifa, quando iria
colher. Um lucro médio, naqueles dias, podia ser menos que dez por
um38. Se tivesse um retorno de trinta por um, ou uma colheita mais
favorável que rendesse sessenta por um, seria um acontecimento
excepcional. Muito raramente, talvez, ele conseguiria colher a cem por
um (Gn 26.12). Resumindo, o semeador não estava interessado nos
grãos que perdia enquanto semeava. Sua esperança estava no futuro, na
colheita, que ele esperava com ansiedade.

Nenhum dos ouvintes de Jesus discordou dele. Mas, o clímax da


história deve ter surpreendido seus ouvintes: em vez de uma colheita
normal com um lucro de dez vezes, Jesus falou de um retorno de cem
por um. O ponto principal da história é, portanto, uma colheita
abundante.

Propósito

A parábola do semeador é uma das poucas encontradas nos três


Evangelhos Sinóticos. Quando incorporaram a história de Jesus a
respeito do lavrador semeando e colhendo, cada um dos escritores
dirigiu-se a seus próprios leitores. Mateus, Marcos e Lucas, obviamente,
colocaram a parábola no contexto de seus respectivos Evangelhos para
mostrar o ponto central do ensino de Jesus.

No Evangelho de Mateus, o capítulo 13 é precedido por um relato a


respeito do ministério de Jesus no âmbito de cura (capítulos 8 e 9).
Concluindo essa parte, Mateus registra que Jesus ensinava nas
sinagogas, pregava as boas-novas do reino, e curava todos os tipos de
doenças e enfermidades (9.35). Então, ele olhou para as multidões, e
porque não tinham quem as orientasse espiritualmente, teve compaixão
delas. Ele as comparou a ovelhas sem pastor. ―E então se dirigiu a seus
discípulos: A seara na verdade é grande, mas os trabalhadores são
poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a
sua seara‖ (9.37,38). No capítulo 10, Mateus registra como Jesus enviou
os doze apóstolos, comissionados para buscar as ovelhas perdidas de
Israel. Mas Jesus advertiu os discípulos sobre rejeição, perseguição e
morte. Eles encontrariam oposição, hostilidade constante e correriam
risco de vida. Mateus volta ao mesmo assunto nos dois capítulos
seguintes. As multidões tinham seguido João Batista, mas o povo dizia
que ele tinha demônio. Sobre Jesus, diziam que era glutão e beberrão,
amigo de publicanos e ―pecadores‖ (11.19). Em Corazim, Betsaida, e
Cafarnaum o povo se recusou a se arrepender e a crer em suas palavras.

38Jeremias. ―Palãstinakundliches‖, p. 53; ver, também, K. D. Whitc, ―The Parable of the


Sower., lIS 15 (1964): 300-7; P. B. Payne, ―lhe Order of Sowing and Ploughing‖ NTS 25
(12978): 123-29. Os ensinos do Velho Testamento (Amós 9.13; Jeremias 31.27;
Ezequiel 36.29,30) e, os ensinos dos escritos dos rabinos e das pseudo-epígrafes
parecem ser o de que a terra produzirá fruto em abundância, na era Messiânica. N. A.
Dahl, ―The Parables of Growth‖, StTh 5 (1951): 153; SB, IV: 880-90.
Parecia que Jesus tinha semeado em terra pouco profunda, e que as
sementes por ele lançadas não tinham germinado. Ainda assim, apesar
das dúvidas de João Batista (11.3), da descrença dos galileus (11.21,23)
e da hostilidade dos líderes religiosos (12.2, 24,38), o reino de Deus se
instalou e prosperou. As pessoas que fazem a vontade de Deus são parte
e parcela do reino. São o irmão, a irmã e a mãe de Jesus (12.50).

Neste ponto, Mateus apresenta a parábola do semeador. A


estrutura da redação do relato evangélico revela a mão habilidosa de um
arquiteto literário39. O evangelista preparou a cena para a parábola do
semeador. O objetivo é alertar seus leitores para a inesperada colheita
arrecadada no reino de Deus.

De outro lado, Marcos parece enfatizar o ministério no âmbito do


ensino, de Jesus ao longo das praias do Lago da Galiléia. Ele começa a
passagem, dizendo: ―Voltou Jesus a ensinar à beira-mar‖ (4.1).
Enquanto Mateus omite a referência ao fato de Jesus ter-se assentado
num bote, ―à beira-mar‖, Marcos se refere ao lago por, pelo menos, três
vezes, no versículo introdutório. Marcos informa a seus leitores que,
uma vez mais, Jesus se encontrou com uma grande multidão, junto ao
mar (vejam-se 2.13 e 3.7). Ele intercala três parábolas de seu evangelho
(o semeador, a semente germinando e o grão de mostarda) nesse ponto
de sua narrativa para indicar o lugar onde foram ensinadas, a quem
Jesus se dirigia, e o propósito delas.

O escritor do terceiro Evangelho expõe uma versão abreviada da


parábola do semeador e a coloca em um contexto sobre a aceitação e a
rejeição. As palavras e os feitos de Jesus foram prontamente aceitos
pelas pessoas comuns, pelos coletores de impostos, mulheres de má
fama e outros (7.29,37; 8.1-3), mas encontraram firme oposição da parte
dos fariseus e dos intérpretes da lei (7.30,39). A versão de Lucas da
parábola difere pouco das de Mateus e Marcos, embora seja muito mais
curta e mostre alguma diferença de vocabulário. ―Essas mudanças
mostram que Lucas ou a tradição oral se sentiram à vontade para
modificar pormenores na narração da história, coisa que os modernos
pregadores costumam fazer quando tornam a contar as parábolas40‖.

Mateus 13.18-23 ―Atendei vós, pois, à parábola do semeador. A todos os


que ouvem a palavra do reino e não a compreendem, vem o maligno e
arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi semeado à
beira do caminho. O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve
a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo,
sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a
perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza. O que foi
semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do
mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera.

39 H. N. Ridderbos, Studies in Scripture and lts Authority(St. Catharines: Paideia Presa,


1978), p. 50.
40 I. H. Marshall, ―Tradition and Theology‘ in Luke‖, Tyn H Bull 20(1969); 63.
Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a palavra e a
compreende; este frutifica e produz a cem, a sessenta e a trinta por um‖.

Marcos 4.13-20 ―Então, lhes perguntou: Não entendeis esta parábola e


como compreendereis todas as parábolas? O semeador semeia a palavra.
São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada; e,
enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada neles.
Semelhantemente, são estes os semeados em solo rochoso, os quais,
ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em
si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes chegando a
angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam.
Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a palavra,
mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais
ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela infrutífera. Os
que foram semeados em boa terra são aqueles que ouvem a palavra e a
recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem por um‖.

Lucas 8.11-15 ―Este é o sentido da parábola: a semente é a palavra de


Deus. A que caiu à beira do caminho são os que a ouviram; vem, a
seguir, o diabo e arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder
que, crendo, sejam salvos. A que caiu sobre a pedra são os que, ouvindo
a palavra, a recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem apenas por
algum tempo e, na hora da provação, se desviam. A que caiu entre
espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram sufocados
com os cuidados, riquezas e deleites da vida; os seus frutos não chegam
a amadurecer. A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom
e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança‖.

A parábola do semeador é uma das poucas que Jesus explicou a


seus discípulos e a outros que estavam junto dele. A primeira vista, a
parábola parece não necessitar de explicação, mas, na realidade, precisa
ser aplicada para que possa ser entendida espiritualmente. A pergunta
inicial dos discípulos: ―Por que lhes falas por parábolas?‖ Recebe uma
resposta que não é prontamente entendida. Jesus diz: ―Porque a vós
outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas àqueles não
lhes é isto concedido. Pois ao que tem se lhe dará, e terá em abundância;
mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por
parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem nem
entendem.‖ (Mt 13.11-13).

Notamos que os discípulos perguntam por que Jesus fala ao povo


por parábolas, e que ele responde por que lhes fala por parábolas.
Marcos dá ainda mais ênfase à distinção entre nós e eles, registrando:
―Aos de fora se ensina por meio de parábolas‖ (4.11).

O que, precisamente, queria Jesus dizer ao se referir aos


―mistérios do reino‖? Se Jesus é o Grande Mestre (= Rabi), esperamos
que ele ensine verdades espirituais numa linguagem simples. Seria difícil
crer que Jesus, adotando uma determinada maneira de falar,
pretendesse ocultar o seu ensino das multidões, e, ainda assim, falar
dos mistérios do reino.

Os documentos de Cunrã se referem ao papel do Mestre da


Justiça, comissionado para revelar os mistérios divinos. Além disso, o
Mestre deveria instruir seus discípulos sobre a revelação por ele recebida
de Deus41. Jesus trouxe revelação divina ao ensinar a seus discípulos os
segredos do reino dos céus. Os outros, aqueles que não faziam parte do
círculo mais restrito dos discípulos de Jesus (quer dizer, os de fora), não
tinham a compreensão do reino como o tinham os seguidores mais
próximos de Jesus42.

Jesus, indiretamente, se refere à exigência do novo nascimento


espiritual para a entrada no reino de Deus (Jo 3.3-5). Em outras
palavras, a capacidade e o privilégio de discernir os segredos do reino
foram dados aos discípulos. Aos de fora, esse privilégio não foi
concedido43.
As multidões a quem Jesus se dirigia são referidas como ―eles‖.
Isso, si mesmo, não surpreende em vista dos ais proferidos por Jesus às
cidades impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11.20-24).
Jesus recebia oposição constante dos anciãos, escribas, fariseus e de
toda a hierarquia religiosa. Mateus parece ter empregado um termo
simples para os judeus que cercavam Jesus — são, apenas, ―eles‖ ―.

Entretanto, os segredos do reino não devem permanecer


escondidos para sempre. Marcos acrescenta as seguintes palavras à
explicação de Jesus sobre a parábola do semeador: ―Pois nada está
oculto, senão para ser manifesto; e nada se faz escondido, senão para
ser revelado‖ (4.22)44. A verdade que Jesus proclama por meio das
parábolas é entregue àqueles que vêem e compreendem.

Mateus, em contraste, diz que aquele que tem receberá em


abundância, e o que não tem, até o que tem lhe será tirado (13.12).
Escrevendo para os judeus, Mateus deixa implícita a idéia de que os
judeus, a quem não fora dada a percepção espiritual, e que rejeitam as
palavras de Jesus, devem abandonar o entendimento que têm dos
ensinos do Velho Testamento, a respeito do reino de Deus. Pois, sem

41 F. E Bruce, Second Thoughts on the Dead Sea Scrolls (London: Paternoster Presa,
1956), p. 101.
42 B. Van Elderen, ―lhe Purpose of the Parables According to Matthew 13.10-17‖, em

Ncw Dimensions in Evangelical New Testament Studies, cd. R. N. Longenecker e M. C.


Tenney (Grande Rapids: Zondervan, 1974), p. 185.
43 W. Hendriksen. lhe (iospel of Mattew (Grand Rapids: Baker Book House, 1973), p.

553. J. R. Kirkland rejeita essa explicação e afirma que pessoas esclarecidas e eruditas
v&m a verdade escondida nas parábolas, mas os menos inteligentes e menos
perspicazes, não. Veja seu ‗Thc Earliest Understanding of Jesus‘ Use of Parables: Mark
IV 10-12 in Context‖, Novt 19(1977): 13. A proposição de Kirkland desaparece diante
da oração de Jesus: ―Graças te dou, 6 Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.‖ (Mt 11.25).
44 Kirkland, ―Earliest Understanding‖, pp. 16-20.
uma compreensão espiritual desses ensinamentos, os oráculos do Velho
Testamento perdem o seu significado. Assim, mesmo que eles (os judeus)
vejam, não vêem; ainda que ouçam, não ouvem e não entendem (Mt
13.13).
Todos os evangelistas citam as palavras de Isaías 6.9,10 —De
sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías:

―Ouvireis com os ouvidos, e de nenhum modo entendereis;


vereis com os olhos, e de nenhum modo percebereis. Porque o
coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram
com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos; para não
suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos,
entendam com o coração, se convertam e sejam por mim
curados.‖ (Mt 13.14,15)

Os três evangelistas Sinóticos parecem empregar a citação de


Isaías para expressar a razão pela qual aqueles que tinham endurecido
seus corações perderão, até mesmo, sua herança espiritual45. Outros
comentaristas interpretam o uso de Isaías 6.9,10 como lição ou
advertência quanto aos resultados de um coração empedernido46.

Dos três evangelistas Sinóticos, Marcos apresenta o relato


completo da interpretação da parábola feita por Jesus47. Ele inclui uma
recriminação de Jesus: ―Não entendeis esta parábola?‖ (4.13). Por
implicação, Marcos indica que a parábola do semeador é única. Talvez o
fato desta parábola ter sido uma das poucas que foram explicadas por
Jesus, lhe dê um significado especial. Mas, as palavras de recriminação
também indicam que os discípulos, cujos corações eram esclarecidos,
deveriam ter entendido o sentido básico da parábola.

O relato de Mateus é mais preciso em sua composição. Foi Mateus


quem deu o título dessa parábola à igreja: parábola do semeador. E é o
Evangelho de Mateus que estabelece um tom pedagógico, com
uniformidade de estilo e frases simétricas de efeito.

Mas, antes de iniciarmos a interpretação da parábola


propriamente dita, devemos observar que a imagem usada por Jesus é
retratada, também, em 2 Esdras 9.30-33:

Disseste: ―Ouvi, Israel: atentai para as minhas palavras, raça


de Jacó. Esta é a minha lei, que eu semeei entre vós, para que
dê fruto e vos traga glória para sempre‖. Mas, nossos pais que

45 Hendriksen, Mark, p. 154.


46 Marshall, Luke, p. 323.
47 B. Gerhardsson, em ―The Parable of the Sower and Its lnterpretation‖, NTS 14 (1967-

68): 192, conclui que a parábola e sua interpretaç5o caminham juntas como a mão e a
luva. ―Se a parábola — na forma como a conhecemos — veio de Jesus, também sua
interpretação‖. Veja C. F. D. Moule, ―Mark 4.1-20. Yet once more‖, Neotestamentica et
Semitica (1969): 95 -113.
receberam tua lei não a guardaram; não observaram os teus
mandamentos. Não que o fruto da lei tenha perecido; isto é
impossível, pois tu és a lei. Os que a receberam pereceram,
porque deixaram de guardar a boa semente, que neles foi
semeada48.

Nos dias de Jesus o verbo ―semear‖ podia ser empregado


metaforicamente, com o sentido de ―ensinar‖. Podemos presumir que
esta era a maneira de falar nas sinagogas locais. A formulação e a
interpretação de Jesus da parábola do semeador combinam muito bem
com o padrão de linguagem da época.

O que nos surpreende na interpretação da parábola é a ausência


de certos fatores. O primeiro deles é a figura do semeador. Apesar de ser
mencionada apenas como meio de introdução da parábola, sua presença
na interpretação, embora presumida, não é explicada. Em vez disso, a
ênfase cai sobre a semente que é lançada. Lucas chama a semente de ―a
palavra de Deus‖; Marcos a chama simplesmente de ―palavra‖. E
Mateus, em vista da citação de Isaías, diz, por implicação: ―A todos os
que ouvem a palavra do reino, e não a compreendem, vem o maligno e
arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi semeado à
beira do caminho‖ (13.19). Embora pudéssemos esperar alguma
referência à chuva, que obviamente aumentaria a colheita, nada é dito
(veja, por exemplo, Dt 11.14,17)49. Nenhuma menção é feita ao trabalho
árduo de arar o campo, embora seja claro que foi parte do processo. A
provisão de chuva por parte de Deus e o esforço do homem no trabalho
do campo não têm nenhuma significação na construção e Interpretação
da parábola.

As ênfases da parábola são os altos e baixos por que passa o


lavrador em seu trabalho de cultivar a terra50. Ele pode perder parte do
que plantou, neste exemplo por três vezes, mas na colheita final tem
uma safra abundante.

Aplicação

Quando mencionou pormenores, tais como a beira do caminho, os


lugares rochosos e os espinhosos, Jesus, evidentemente, pretendia
aplicar a lição da semente e do solo às pessoas que ouviam a mensagem
do reino (Mateus), a Palavra de Deus (Lucas). Mateus usa o presente do
particípio grego, referindo-se aos que são chamados a ouvir e receber a
Palavra de Deus. A passagem explica também como a Palavra de Deus é
ouvida por quatro diferentes tipos de ouvintes51.

48 New English Bible, lhe Apoctypha (Oxford Cambridge: Oxford and Cambridge
Universtity Prcss. 1970).
49 Gerhardsson, ―Parable of the Sower‖, p. 187.
50 C. H. Dodd, lhe Parables of the Kingdom (London: Nesbjt and Co., 1935), p. 182.
51 Gerhardsson, ―Parable of lhe Sower‖, p. 175.
Mateus, bem como Lucas, apresentam a palavra coração. ―Vem o
maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração‖ (13.19). A Palavra
de Deus alcança o coração daquele que a ouve, mas antes que a Palavra
possa produzir qualquer efeito, o maligno (Mateus), Satanás (Marcos), ou
o diabo (Lucas) vem e a arrebata. Na parábola, os pássaros descem à
beira do caminho e devoram os grãos. Diz Marcos: ―São estes os da beira
do caminho, onde a palavra é semeada; e, enquanto a ouvem, logo vem
Satanás e tira a palavra semeada neles‖ (4.15). Poderíamos dizer: ―entra-
lhes por um ouvido e sai pelo outro‖. Algumas pessoas ouvem
polidamente o evangelho, e só. O evangelho não tem valor para elas, pois
seus corações são endurecidos como os caminhos pisados, à beira das
plantações. Ignoram completamente o resumo da lei de Deus: ―Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu coração...‖ (Mt 22.37).

De início, parece que uma semente lançada em solo rochoso brota


muito facilmente. As rochas, aquecidas no verão, desprendem, pouco a
pouco, nos meses de inverno, o calor armazenado. Há chuva suficiente
e o calor e a umidade fazem germinar, prontamente, o grão. Os brotos
verdes despontam rapidamente, e enquanto o resto do campo está
ainda árido e infrutífero, apresentam um espetáculo impressionante. O
olho treinado do lavrador vê a diferença. Ele sabe que a aparência das
hastes verdes no solo rochoso é enganosa. Quando cessarem as chuvas
e o sol da primavera chegar esquentando a terra, as plantas
murcharão. Elas não têm, no solo, raízes profundas capazes de suprir
a planta de água. Elas definharão e morrerão.

Na interpretação desse segmento da parábola, tanto Mateus como


Marcos destacam o aspecto do imediatismo. ―Semelhantemente são estes
os semeados em solo rochoso, os quais, ouvindo a palavra, logo a
recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos, sendo antes
de pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a perseguição por
causa da palavra, logo se escandalizam‖ (Mc 4. 16, 17). O imediatismo é
ressaltado na rápida germinação do grão lançado em terreno rochoso.

Enquanto Mateus e Marcos atribuem a apostasia às dificuldades e


à perseguição, Lucas fala em ―hora da provação‖ (Lc 8.13). Os
evangelistas se referem ao sofrimento que faz com que as pessoas
mudem de opinião sobre a religião. Quando chega a hora de tomar
posição e pagar o preço, mudam de interesse e se desligam da fé que
uma vez abraçaram com alegria. Uma palavra define essas pessoas:
superficialidade. O sol, geralmente considerado fonte de felicidade e
alegria, é retratado aqui em termos de angústia e perseguição52. A razão
desse aparente rigor é a falta de umidade. O justo, por outro lado,
floresce como uma árvore plantada junto a corrente de águas (Sl 1.3). Ao
leviano falta convicção, coragem, estabilidade e perseverança. Ele é
influenciado por qualquer vento de doutrina que sopre em seu caminho.

52 Jülicher, Gleichnisreden, 2: 528.


Porque não tem profundidade, sua vida espiritual tem significação
passageira.

A semente lançada entre os espinhos parece ter maior


probabilidade de crescer e de se desenvolver do que aquela que foi
lançada em solo pouco profundo. Primeiro, após um período de
germinação, as plantas começam a brotar. De fato, por ocasião da
primavera parecem viçosas e não se diferenciam das outras. Mas,
quando o calor do sol se torna mais forte e aquece a terra, as raízes dos
espinheiros e dos cardos renascem. Depois de descansarem durante o
inverno, estão prontas para uma nova estação, e em questão de semanas
os espinhos e os cardos já ultrapassaram o trigo em altura. Elas o
privam da umidade e dos nutrientes da terra e, literalmente, o sufocam
até à morte.

O solo em que a semente foi lançada não é duro como o chão


pisado da beira do caminho, nem raso e rochoso. Ele é, antes, um solo
bom — fértil e úmido. O único problema é que aquele chão tem outros
residentes permanentes, outras raízes. A semente lançada em terra fértil
e úmida terá, muito breve, que disputá-la com raízes que crescem e se
desenvolvem abaixo do solo, e com verdejantes cardos e espinhos à
superfície. Resumindo, dois tipos de plantas estarão lutando por um
lugar ao sol e vencerá aquela que assentou suas raízes antes e mais
profundamente.

―Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a


palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as
demais ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela
infrutífera‖ (Mc 4.18,19). O homem que leva uma vida dupla — religião
aos domingos e vida sem religião durante a semana — logo descobrirá
que ―os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais
ambições‖ vencerão, e sua fé se tornará sem valor. A mensagem do
evangelho não pode florescer e dar fruto; ao contrário, ela é sufocada
pelos cuidados do mundo. Esse homem tem levado uma vida dupla,
desde o início. Encontrou segurança na riqueza e no que Relegou,
propositadamente, sua fé a um lugar secundário. Ele é O que colhe
espinhos e cardos e, eventualmente, apenas espinhos e Mesmo o que
tem lhe é tirado.

Estas três representações do campo não devem desencorajar o dor.


Do mesmo modo, as três descrições das pessoas cuja fé se ti infrutífera
não devem desanimar o crente verdadeiro. A semente que lançada em
boa terra produziu colheita abundante. As pessoas que respondem com
fé ao evangelho são inumeráveis, multidões incalculáveis. ―Mas o que foi
semeado em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende; frutifica, e
produz a cem, a sessenta e a trinta por um‖ (Mt 13.23)53. Marcos

53 The Gospel of Thomas, trans. B. M. Metzger, Citação 9, afirma o seguinte: ‗Jesus Eis
que o semeador saiu para semear, encheu sua mão e semeou (a semente). Algumas
(sementes) caíram no caminho. Os pássaros vieram e as apanharam. Outras caíram
apresenta uma ordem ascendente de a trinta, a sessenta e a cem por
um‖. Lucas, na parábola propriamente dita, apenas cita que ―produziu a
cem por um‖, mas na interpretação, diz: ―A que caiu na boa terra são os
que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes
frutificam com perseverança‖ (8.15). Onde Lucas usa ―retêm‖, Marcos
usa ―recebem‖ e Mateus ―compreende‖.

Quem é, então, aquele que possui um coração reto e bom?


Responde: ―o que ouve a palavra e a compreende‖. Mateus, naturalmente
tem em mente a citação de Isaías. O homem reto de coração faz a
vontade de Deus e, ouvindo o chamado de Deus — ―a quem enviarei?‖ —
, responde confiante: ―Envia-me a mim, ó Senhor‖. Ele é aquele que ouve
e pratica a Palavra. Ele compreende porque seu coração é receptivo à
verdade de Deus. Todo o seu ser — vontade, mente e emoção — é tocado
pela Palavra. Há um crescimento espiritual, e aquele que crê frutifica; ele
faz a vontade de Deus54.

O que a parábola ensina? Alguns estudiosos têm chamado a


parábola do semeador de parábola das parábolas. Isso não significa que
tenha maior destaque nos Evangelhos Sinóticos, mas, antes, que ela
contêm quatro parábolas em uma. Embora todas as quatro sejam
apenas aspectos de uma verdade particular: a Palavra de Deus é
proclamada e ocasiona uma divisão entre os que a ouvem; o povo de
Deus recebe a Palavra, a compreende, e obedientemente a cumpre;
outros deixam de ouvir pela dureza de seus corações, por serem
basicamente superficiais, ou por interesse em riquezas e posses. Essas
pessoas não frutificam e, espiritualmente falando, até aquilo que têm
lhes será tirado. A parábola, portanto, atinge aqueles que realmente
fazem parte da igreja e os que estão ―à margem‖. Este é o tom principal
da parábola. Todos os seus pormenores fazem convergir, para esse
ponto, o foco da atenção. A proclamação fiel do evangelho nunca deixará
de produzir fruto, ―trinta, sessenta ou mesmo cem vezes o que foi
semeado‖.

sobre as rochas e não lançaram raízes para a terra nem espigas para o céu. E outras
caíram entre espinhos. Eles abafaram as sementes e os vermes as comeram. E outras
caíram em boa terra, e lançaram bom fruto para o céu. Produziram sessenta por um e
cento e vinte um‖. É óbvio que o escritor do Evangelho de Tomé fundiu a parábola do
semeador num molde gnóstico. A razão porque o escrito conclui a parábola com ―cento
e vinte por um‖ pode muito bem ter sido pelo fato de que ele acreditava ser o número
12 o número‘ perfeição. Veja H. Montefiore e H. E. W. Turner, Thomas and the
Evangelists (London: SCM Presa, 1962), p. 48.
54 20. Kingsbury, Parables of Jesus, p. 62.
5. A Semente Germinando Secretamente

Marcos 4.26-29: ―Disse ainda: O reino de Deus é assim como se um


homem lançasse a semente à terra; depois, dormisse e se levantasse, de
noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo ele
como. A terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois, a espiga, e,
por fim, o grão cheio na espiga. E, quando o fruto já está maduro, logo
se lhe mete a foice, porque é chegada a ceifa‖.

O Evangelho de Marcos não é conhecido por suas dissertações; ao


contrário, em sua narrativa o autor retrata Jesus como um homem de
ação. Mesmo assim, o evangelista apresenta material didático, como a
preleção sobre os sinais do final dos tempos (capítulo 4). Marcos não
está interessado em aumentar o número de parábolas. Ele parece ter
feito uma seleção do material que tinha à disposição55. Escolheu as
parábolas do semeador, da semente germinando secretamente e do grão
de mostarda. Essas parábolas obviamente detalham o plantio da
semente, a germinação e o amadurecimento, a ceifa e a colheita56.
Marcos usa as parábolas para ilustrar a natureza do reino de Deus como
foi ensinada por Jesus.

Composição

Por falta de alguns pormenores, a história da semente germinando


secretamente é, em si mesma, de algum modo, simplista. Nada é dito a
respeito da preparação do solo, da chuva caindo, da extração da erva
daninha, ou da fertilização. A vida do lavrador parece semelhante à da
semente plantada: dormir à noite e despertar pela manhã. Ao chegar o
tempo da colheita, o fruto maduro é ceifado.

A parábola deixa de lado os detalhes por mais significativos que


possam ser e coloca ênfase na semeadura, na germinação e na ceifa. Não
devemos pensar que o fazendeiro passe seu dia ociosamente.
Naturalmente que não; ele tem trabalho pesado para ser feito. Lavrar a
terra, fertilizá-la e limpá-la das ervas daninhas toma muito de seu
tempo. Além das tarefas diárias, ele tem que cuidar das compras e das
vendas, planejar e preparar a colheita. Tudo isso está subentendido e
dado como certo na parábola. Observamos, também, que Deus
providenciará a chuva necessária57. Ele controla os elementos da

55
Veja-se, por exemplo, Marcos 4.2, 10, 13 e 33, onde o plural ‗parábolas‘ é usado
consistentemente.
56
Lane, Mark, p. 149.Ridderbos, em Coming of lhe Kingdom, p. 142, é de opinião que
Marcos escolheu essas três parábolas para ensinar ―o significado positivo da demora do
julgamento‖.
57
Quando Marcos escreve que a terra ―por si mesma‖ produz o grão ele não quer dizer
que o solo produz a colheita sem a provisão de Deus, mas que a ajuda do fazendeiro
não é necessária no processo de germinação do grão. W. Michaelis, Die Gleichnjsse
natureza.

Este é exatamente o ponto. Desde o momento em que lança a


semente, o lavrador deve confiar a Deus a germinação, o crescimento, a
polinização e a maturação. Ele pode descrever o processo da germinação
do trigo, mas não pode explicá-lo. Depois que a semente foi semeada, ela
absorve a umidade do solo, incha e brota. Após uma semana ou duas, as
primeiras hastes aparecem na superfície; gradualmente as plantas
começam a lançar rebentos, ganham altura e desenvolvem as espigas.
Então, quando a planta morre, sua cor muda do verde para o dourado; o
grão amadurece e é chegada a hora da ceifa. O fazendeiro não pode
explicar esse crescimento e desenvolvimento58. Ele é apenas um
trabalhador que no tempo certo semeia e colhe. Deus guarda o segredo
da vida. Deus mantém o controla.

Interpretação

A parábola da semente germinando secretamente só é encontrada


no Evangelho de Marcos. Mateus e Lucas não se referem a ela, e não
temos maiores informações do que as encontradas nesses versículos de
Marcos 4.26-2959. A parábola é introduzida pela sentença: ―O reino de
Deus é assim‖.

Há várias interpretações dessa parábola. Alguns comentaristas


explicam o relato alegoricamente: Cristo semeou e na ocasião certa virá
para a ceifa; o resto da parábola se refere ao trabalho invisível do
Espírito Santo na igreja e na alma60. Outros têm destacado um dos
seguintes fatores: a semente o período de amadurecimento, a ceifa; ou o
contraste entre semear e ceifar61. Certamente, todas essas interpretações
— mesmo as alegóricas (quando qualificadas) — apresentam pontos
positivos.

João Calvino olhou além do Originador dessa parábola e viu os


ministros da Palavra semeando a semente. Eles não devem desanimar,
diz Calvino, quando não vêem resultados imediatos. Jesus ensina que
devem ser pacientes e os faz recordar o processo de germinação, como

Jesu (Hamburg: FurcheVerlag, 1956), p. 38. Além disso, a ênfase na produção do grão
não deve ser colocada sobre o solo, nem na própria semente. R. Stuhlmann
―Bcobachtungen zu Markus IV. 26- 29‖, NTS 19 (1972-73): 156.
58 Jülicher, Gleichnisreden, 2: 540.
59 Há paralelos na literatura apostólica, inclusive 1 Clemente 23.4: ―Ó insensatos:

Comparai-vos a uma árvore. Tomai uma videira, por exemplo: ela primeiro espalha
suas folhas, então o botão e a flor, e Somente após, primeiro a uva verde e então a
madura.‖ Apostolic Fathers, vol.2 ed. R. M. Grant e H. H. Graham (Camden. N. J.:
Thomas Nelson & Sons, 1965), p. 48. Ver também, II Clemente 11.3, e o Evangelho de
Tomé, Citação 21.
60 H. B. Swete, The Gospel According lo St. Mark (L.ondon: Macmillan & Co., 1909), p.

85.
61 Para uma classificação abrangente dessas interpretações, veja C. E. B. Cranfield:

―Message of Hope, Mark 4.21-32‖, Interp 9(1955): 158-162.


acontece na natureza. Não devem se agastar ou se inquietar, mas depois
de terem proclamado a Palavra, devem se ocupar das tarefas do dia —
dormir à noite, levantar pela manhã e fazer tudo o que há para ser feito.
Como a semente chega à maturação no tempo próprio, assim o fruto do
trabalho do pregador, eventualmente, aparecerá. Os ministros do
evangelho devem ter coragem e continuar sua obra decidida e
confiantemente62.

Deus está atuando no processo da germinação da semente, em seu


crescimento, desenvolvimento e maturação. ―O fruto é o resultado da se-
mente; o fim está implícito no começo. O infinitamente grande já está
ativo no infinitamente pequeno63‖. E bom relembrar a afirmativa jubilosa
de Paulo ―de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la
até ao dia de Cristo Jesus‖ (Fp 1.6).

Na parábola, o lavrador é apenas um auxiliar da obra divina. Ele


lança a semente, e dia após dia faz o trabalho necessário — dá
andamentos à sua tarefa. Tem confiança que a época da colheita
chegará. Sabe, pela experiência, quantos dias se passarão desde a
semeadura até à ceifa64. E quando a colheita está madura ele não espera
mais. O dia da ceifa chegou. Do mesmo modo, os ministros da Palavra
têm a tarefa divina de proclamar as boas-novas de salvação em Cristo
Jesus. Eles, também, devem permanecer de lado, enquanto Deus efetua
a obra secreta de crescimento e desenvolvimento. No tempo de Deus, o
ministro verá os resultados quando chegar a hora de ceifar.

A parábola da semente germinando secretamente é, realmente,


uma parábola de seqüência: a colheita segue a semeadura, no tempo
devido. A manifestação do reino de Deus sucede o ministério fiel da
Palavra de Deus. Um leva ao outro, e nada acontece sem o secreto poder
operante de Deus. ―A lição é: a vitória está assegurada; a colheita se
aproxima e chegará, com certeza, no momento apropriado decidido no
plano eterno de Deus. O reino de Deus será revelado em todo o seu
resplendor65‖.

As últimas palavras da parábola são, de certo modo, reminiscência


de Joel 3.13: ―Lançai a foice, porque está madura a seara‖. Sem dúvida,
a passagem se refere definitivamente ao dia do julgamento quando o
Senhor, de acordo com Apocalipse 14.12-16, envia o seu anjo para ceifar
a terra. Nesse ínterim, aqueles que foram enviados para proclamar a

62 J.Calvin, Harmonyof lhe Evangelists (Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1949), 2:128.


Embora Calvino dê atenção ao período de crescimento, dá ênfase igual àquele que
semeia o grão. O criticismo de Cranfield tem algum valor: Calvino considerou a
parábola endereçada aos discípulos de Jesus. No entanto, a aplicação, no comentário
de Calvino, parece muito mais abrangente do que o mero círculo dos doze discípulos.
Ver Cranfield: ―Message of Hope‖, p. 159.
63 Jeremias, Parables, p. 152.
64 Os fazendeiros do centro-oeste americano têm um ditado que diz que o milho ―deve

estar à altura dos joelhos pelo quatro de julho.‖


65 Hendriksen, Mark, p. 170.
Palavra têm que aprender a ter a paciência do lavrador. ―Sede, pois,
irmãos, pacientes, até à vinda do Senhor. Eis que o lavrador aguarda
com paciência o precioso fruto da terra...‖ (Tg 5.7). Falta de paciência é
uma característica humana. Ela aparece até mesmo na descrição de
João, das almas daqueles que foram mortos por causa da Palavra de
Deus. Eles clamam em alta voz: ―Até quando, Ó Soberano Senhor...?‖ e a
resposta que recebem é que devem esperar ainda por algum tempo (Ap
6.9-11). Deus está no comando e determina quando é chegado o tempo
da colheita. Ninguém, nem mesmo Jesus, sabe o dia e a hora (Mt 24.36).
6. O Joio e o Trigo

Mateus 13.24-30 ―Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus
é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo;
mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou o joio
no meio do trigo e retirou-se. E, quando a erva cresceu e produziu fruto,
apareceu também o joio. Então, vindo os servos do dono da casa, lhe
disseram: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde
vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um inimigo fez isso. Mas
os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e arranquemos o joio?
Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis também
com ele o trigo. Deixai-os crescer juntos até à colheita, e, no tempo da
colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para
ser queimado; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro‖.

A parábola sobre o trigo e o joio é peculiar ao Evangelho de


Mateus, assim como a parábola da semente germinando secretamente é
encontrada apenas em Marcos. A palavra joio não é uma tradução
adequada da palavra original grega zizania, que significa ―uma erva
daninha que nasce nas plantações de grãos, parecida com o trigo66‖. Não
podemos determinar se a palavra se refere, ou não, a uma variedade
venenosa dessa erva. De qualquer modo, a planta se parece com o trigo e
cresce exclusivamente em campos cultivados67. Na verdade, a planta é
uma degeneração do trigo. A cizânia pode ser comparada à aveia
silvestre, que cresce livremente nos trigais da América do Norte, e que
são difíceis de se erradicar.

O Campo do Fazendeiro

Depois da parábola do semeador e de sua interpretação, Mateus


relata que Jesus contou à multidão uma outra parábola, a história de
um fazendeiro abastado. Ele tinha servos e também ajudantes, no tempo
da colheita.

Como fazendeiro eficiente, esse dono de terras tinha usado boa


semente em seu campo. É óbvio que ele não tinha interesse nenhum em
semear erva daninha, que iria lhe causar grande problema. A boa
semente não está misturada ao joio. O fazendeiro tinha semeado boa
semente em seu campo (quando e como isso foi feito não é importante
para a história).

Assim que ele acabou de semear o trigo do inverno, veio seu


inimigo. Ele chegou escondido pelas trevas, enquanto todos dormiam, e
semeou joio por sobre o trigo. Com certeza não fez isso pelo campo todo.
Aqui e ali, ele espalhou a semente. Ninguém poderia saber, até à
chegada da primavera, que o joio estava crescendo entre o trigo68. O joio

66 W. Bauer et al. Lexicon, p. 339.


67 L. löw, Die Flora der Juden (Hildersheim: 1967), 1:725. SB, 1:667.
68 Meu sogro comprou uma fazenda no Canadá, no final de 1930. Logo viu que os
tem a aparência exata do trigo. Mas, quando as plantas começam a
espigar, qualquer um pode distinguir o trigo do joio — ―pelos seus frutos
os conhecereis‖ (Mt 7.20).

Nessa hora, no entanto, é impossível tentar resolver o problema.


Qualquer um andando pelo trigal para remover o joio vai pisar o trigo.
Além disso, as raízes do trigo e do joio estão tão emaranhadas que quem
puxar o joio vai arrancar também o trigo.

Os empregados do fazendeiro o alertaram sobre o problema e até


mesmo mostraram vontade de fazer algo a respeito. Queriam saber de
onde tinha vindo o joio. O fazendeiro apenas lhes explicou que um
inimigo tinha feito aquilo e deveriam deixar tudo como estava até à
chegada da ceifa. Então, os ceifeiros receberiam instruções para colher o
joio e atá-lo em feixes, e para recolher o trigo no celeiro. O fazendeiro
usará os feixes de joio — semente e palha — como combustível.
Assim transformará em lucro uma desvantagem: terá aquecimento para
o inverno.

Embora, no final, o fazendeiro consiga resolver de algum modo


aquela situação, ele sabe que o joio absorveu umidade e nutrientes que
se destinavam ao trigo. Sua produção de grão será substancialmente
menor que a esperada. Apesar de toda a sua experiência de cultivo, ele
foi incapaz de ver a diferença entre o trigo e o joio antes que as plantas
começassem a espigar e o tempo da colheita estivesse próximo69. Só
meses após o mal ter sido feito, o fazendeiro se deu conta de que seu
inimigo o atacara insidiosamente. Ele tem, então, que enfrentar as
conseqüências da trama perpetrada por seu inimigo.

Interpretação

Mateus 13.36-43 ―Então, despedindo as multidões, foi Jesus para casa.


E, chegando-se a ele os seus discípulos, disseram: Explica-nos a
parábola do joio do campo. E ele respondeu: O que semeia a boa
semente é o Filho do Homem; o campo é o mundo; a boa semente são os
filhos do reino; o joio são os filhos do maligno; o inimigo que o semeou é
o diabo; a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos.
Pois, assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim será na
consumação do século. Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que
ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a
iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de
dentes. Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça‖.

campos estavam cobertos com um tipo de erva chamada ―margarida‖. Do proprietário


anterior, ele ficou sabendo a causa: alguns anos antes, um vizinho rancoroso havia
montado a cavalo, um dia, e espalhado pelo campo sementes de ―margarida‖. O
resultado é visto até hoje.
69 Jülicher, em Gleichnisreden, 2: 548, afirma que o joio amadurece antes do trigo.
De acordo com Mateus, os discípulos de Jesus lhe pediram uma
explicação sobre a parábola do joio70. A explicação é dada em poucas
palavras. Pode ser lida assim:

1. ―O que semeia a boa semente é o Filho do homem;


2. o campo é o mundo;
3. a boa semente são os filhos do reino;
4. o joio são os filhos do maligno;
5. o inimigo que o semeou é o diabo;
6. a ceifa é a consumação do século, e
7. os ceifeiros são anjos‖.

Embora a interpretação da parábola seja dada por Jesus, a


composição da explicação parte de Mateus. Mateus toma o ensino de
Jesus e ordena suas palavras numa lista de sete conceitos71. (O arranjo
de nomes e dados é uma característica de Mateus, como fica evidente
desde o primeiro capítulo de seu Evangelho).

Na interpretação, nenhuma menção é feita ao fato de que o inimigo


veio quando todos dormiam. Também é omitida a referência ao
crescimento e à maturação do trigo e do joio, e nada é dito sobre o
ajuntamento do trigo no celeiro e dos feixes de joio lançados ao fogo. Em
sua interpretação, Jesus omite a referência aos servos. Ele talvez tenha
feito isso para focalizar a atenção no ponto mais significativo da
parábola: o conflito entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. E, nesse
conflito, Satanás perde a batalha. Do mesmo modo, a conversa dos
servos com o fazendeiro parece não ter importância para a interpretação
da parábola. É deixada de lado; apenas uma referência a ela é feita no
resumo onde o fato do joio ser arrancado e lançado ao fogo se torna
importante (Mt 13.40). Na verdade, a conclusão da interpretação é uma
visão das coisas que acontecerão no final dos tempos, Jesus, realmente,
está dizendo: ―com as Escrituras do Velho Testamento, vou lhes dizer o
que vai acontecer‖.

―Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão


do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e
os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes.
Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça‖.

Da maneira usual, o ensinamento de Jesus reflete direta e


indiretamente as Escrituras do Velho Testamento72. Jesus parece se
70 Compare-se Mateus 15.15, onde a mesma questão da explicação da parábola é
levantada. Consulte-se M. de Goedt, ―L‘Eplication dela Parable de L‘Ivraie (Mt XIII, 36-
43)‘, RB 66 (1959): 35. Veja-se J. Jeremias, ―Das Gleichnis vom Unkraut Unter dem
Wiezen, ―em Neotesstamentica et Patristica (Leiden: Brill, 1962), p. 59.
71 R. Schippers, Gelijkenissen van Jezus (Kampen: J. H. Kok, 1962), p. 71.
72 Jeremias, em Parables, pp. 8485, afirma que ―é impossível deixar de concluir que a

interpretação sobre o joio vem do próprio Mateus.‖ De acordo com Kingsbury, em


Parables of Jesus, p. 109, Jesus é o Senhor exaltado, que exorta os cristãos na igreja
referir à profecia de Sofonias: ―De fato consumirei todas as coisas sobre
a face da terra, ... os homens e os animais (1.2,3), quando fala de
extirpar de seu reino tudo aquilo que traga escândalo e todo aquele que
pratique a iniqüidade. A frase ―os lançarão na fornalha acesa‖ lembra
Daniel 3.6: ―... lançado na fornalha de fogo ardente.‖ O próprio conceito
se assemelha a Malaquias 4.1: ―Pois eis que vem o dia, e arde como
fornalha; todos os soberbos, e todos os que cometem perversidade, serão
como o restolho...‖ A passagem: ―Então os justos resplandecerão como o
sol‖, lembra Daniel 12.3: ―Os que forem sábios, pois, resplandecerão,
como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça,
como as estrelas sempre e eternamente.‖ E para completar, devemos ler,
também, Malaquias 4.2: ―Mas para vós outros que temeis o meu nome
nascerá o sol da justiça...‖

Sem dúvida, na interpretação de Jesus, ressoa o eco das palavras


e sentimentos dos profetas. A parábola do joio é, realmente, aquela na
qual Jesus ensina o julgamento que está para vir; pode ser chamada
de a parábola da ceifa.

Os servos estavam dispostos a arrancar o joio, embora pudessem,


no processo, arrancar também o trigo — o sistema de raízes do joio é
bem mais desenvolvido que o do trigo. Mas o fazendeiro diz: vamos
esperar até à ceifa, quando, então, os ceifeiros separarão o trigo do
joio.

O fazendeiro conhece o seu negócio. Se permitir que os empregados


arranquem o joio, perderá sua safra de trigo, pois o trigo não pode ser
separado do joio. Se perder sua colheita, dará ao seu inimigo a
satisfação que ele pretendia.

Em vez disso, o dono de terras decide esperar que toda a plantação


amadureça. Fará a separação na ocasião da ceifa. Tanto o joio quanto o
trigo estarão maduros para a colheita.

O joio são os filhos do maligno, e a boa semente são os filhos do


remo. Como os dois — o mal e o bem — amadurecem não é explicado, e
será sensato não tentarmos ir além da parábola, em busca de
explicação73.

Enquanto os dois crescem e amadurecem, o fazendeiro não pode


fazer nada para remediar a situação. Essa incapacidade não provém da
ignorância. Pelo contrário, o lavrador, plenamente ciente do problema,
espera o tempo certo. Ele sabe o que deve ser feito. Ele sabe de onde veio

de Mateus a serem obedientes à vontade de Deus. No entanto, como observa R. H.


Gundry ―A resposta à questão de origem é o ensino de Jesus.‖ The use of the Old
Testament in St. Matthew‘s Gospel (Leiden: Brill, 1967), p. 213. Resumindo, não
temos que chegar à mente imaginativa de Mateus. Antes, a origem desse ensinamento
está em Jesus mesmo.
73 Ridderbos, coming of the Kingdom, p. 139.
o joio e como foi semeado em seu campo — à noite, enquanto todos
dormiam.

Jesus, ao interpretar a parábola, disse que o fazendeiro que


semeia boa semente é o Filho do homem. O Filho do homem é o próprio
Jesus, que tomando a forma humana, se fez semelhante ao homem (Fp
2.7,8). Ele veio semear a boa semente, os filhos do reino, a nova
humanidade em Cristo. O campo onde a semente é lançada é o mundo.
É onde tem lugar o drama entre o bem e o mal. O inimigo que semeia o
joio é o diabo, e o joio são os filhos do maligno.

É interessante notar que o campo, o mundo, pertence ao


fazendeiro —a Jesus. Nesse campo cresce o trigo e o joio. Não importa
onde o homem viva na terra. Onde quer que viva estará em propriedade
que pertence a Jesus74. Ele é o trigo ou o joio, um OU outro. Ele é filho
do reino ou filho do maligno. Tanto o trigo quanto o joio estarão maduros
quando o dono das terras enviar os ceifeiros para o campo.

Quando chegar o final dos tempos, os ceifeiros, que são anjos de


Deus, separarão o bom do mau, o trigo do joio, os filhos do reino dos
filhos do maligno. No conflito entre Deus e Satanás — tudo que causa
escândalo e todo aquele que pratica a iniqüidade — é arrancado e
lançado ao fogo ardente. Os filhos do reino, por outro lado,
resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Eles são os justos. São
abençoados. Permanecerão para sempre.

Aplicação

Esta parábola de Jesus põe em confronto o bem e o mal, e ensina


que o bem prevalecerá. Na parábola, os servos perguntam ao fazendeiro
de onde veio o joio: ―Donde vem, pois, o joio?‖ A resposta concisa do
fazendeiro foi: Um inimigo fez isso‖. Os servos, naturalmente, podiam ter
desabafado sua contra o inimigo75, mas voltaram sua atenção para o joio
e manifestaram a vontade de arrancá-lo. O fazendeiro disse: ―Não!‖.

Os servos refletem a impaciência de muitos cristãos no reino de


Deus. Com o pretexto de manter a pureza da igreja, crentes zelosos têm
causado dano incalculável, julgando e afastando outros cristãos da
igreja.

Qualquer jardineiro sabe que, às vezes, é impossível ver a


diferença entre uma planta que produzirá belas flores e outra que se
transformará apenas em erva daninha. Nos antigos versos:

Há tanto bem no pior de nós,


E tanto mal no melhor de nós,
Que dificilmente qualquer um de nós

74 Schippers, Gelijkenissen p. 71.


75 W. G. Doty, ―An Interpretation of the Weeds and Wheat‖, Interp 25 (1971): 189.
poderá falar dos demais de nós76.

Ninguém deve deduzir que a parábola ensina a eliminação da


disciplina ou desaprova o cumprimento e a aplicação da lei. Ao
contrário, as Escrituras ensinam muito claramente que a disciplina deve
ser mantida e que a lei deve ser preservada. Jesus ensina,
explicitamente, a doutrina da disciplina em Mateus 18.15-17. Ao
esboçar o procedimento, no entanto, ele indica que a disciplina deve ser
conduzida com espírito de amor e delicadeza. O processo deve se
desenvolver cautelosa e pacientemente. O objetivo da disciplina deve ser,
sempre, a salvação e recuperação da pessoa envolvida.

Em Romanos 13, Paulo ensina que: ―não há autoridade que não


proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.
De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de
Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os
magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se
faz o mal‖ (13.1-3). Deus investiu de autoridade os magistrados para
preservar a lei, punir o que pratica o mal e impedir o crime.

A parábola, entretanto, nos instrui a ter paciência e a não nos


autonomearmos juízes. ―Sede vós também pacientes, e fortalecei os
vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Irmãos, não vos
queixeis uns dos outros, para não serdes julgados. Eis que o juiz está às
portas‖. (Tg 5.8,9).

À primeira vista, a parábola pode dar a impressão de que há dois


tipos de indivíduos neste mundo, o bom e o mau, e que os bons serão
sempre bons e os maus permanecerão maus para sempre. Mas isso não
é totalmente correto. As Escrituras não ensinam que Deus tenha criado
os homens bons e que Satanás criou os maus. Deus criou gente —
artesanato divino —, e ele regenera aqueles que escolheu por obra da
graça de seu Espírito. Os maus, embora criados por Deus, foram
corrompidos por Satanás e são usados por ele para influenciar o povo
regenerado de Deus77. São o joio entre o trigo. O trigo e o joio
amadurecem lado a lado até à ceifa. Então, serão separados.

A parábola do joio contém uma lista compacta de termos similares,


em forma de glossário. A aparente simplicidade na explicação dos termos
é quase um desafio a que se faça o mesmo em relação a outras
parábolas ensinadas por Jesus. Muitos comentaristas têm visto isso
como um convite explícito para explicar as parábolas à maneira de
Jesus. Por exemplo, ao explicar a parábola das cinco virgens prudentes e
as cinco virgens néscias (Mt 25.1-13), alguns comentaristas da igreja
primitiva davam explicações variadas para a palavra óleo. Para Hilário, o
óleo era o fruto das boas obras; para Agostinho, o óleo significava

76 Com agradecimentos a Hunter, Parables, p. 48, que parece ter um estoque infindável
de verses, poemas e ditados.
77 Calvin, Harmony of the Evangelists, 2:120.
alegria; Crisóstomo dizia que o óleo significava a ajuda dada aos
necessitados; e Orígenes considerava o óleo como sendo a palavra de
ensinamento78.

Obviamente, os comentaristas não têm a sabedoria demonstrada por


Jesus para interpretar parábolas. Devem ser cautelosos, para não verem
nas parábolas pensamentos e conceitos que elas não pretendem ensinar.
Na verdade, serão sensatos se buscarem o ensinamento básico da
parábola, na própria parábola, ou em seu contexto, e limitarem sua
interpretação ao ensino transmitido pela parábola.

78Numerosos exemplos são encontrados nas séries, Works of lhe Father, coletados por
Tomás de Aquino. Veja Coomentary on the Four Gospels, 1, Si. Matthew (Oxford: n. p.
1842).
7. O Grão de Mostarda

Mateus 13.31,32 ―Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus
é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou
no seu campo; o qual é, na verdade, a menor de todas as sementes, e,
crescida, é maior do que as hortaliças, e se faz árvore, de modo que as
aves do céu vêm aninhar-se nos seus ramos‖.

Marcos 4.30-32 ―Disse mais: A que assemelharemos o reino de Deus?


Ou com que parábola o apresentaremos? É como um grão de mostarda,
que, quando semeado, é a menor de todas as sementes sobre a terra;
mas, uma vez semeada, cresce e se torna maior do que todas as
hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves do céu poderem
aninhar-se à sua sombra‖.

Lucas 13.18,19 ―E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o


compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem
plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu
aninharam-se nos seus ramos‖.

Jesus contou duas parábolas para falar a respeito do fenomenal


crescimento do reino dos céus: a parábola do grão de mostarda e a
parábola do fermento. As duas formam um par, e são, na verdade, duas
faces de uma mesma moeda. A parábola do grão de mostarda retrata o
crescimento do reino em extensão e a do fermento descreve a
intensidade desse crescimento79.

Mateus colocou as duas em seu capítulo de parábolas (Mt 13);


provavelmente por causa do assunto. Lucas, por outro lado,
incorporando as parábolas no decorrer da chamada narrativa da viagem
(Lc 9.51 — 19.27), talvez reflita uma seqüência mais histórica, embora
não possamos afirmar isso, com certeza. Podemos, apenas, presumir que
Jesus tenha ensinado essas duas parábolas, juntas, na mesma
ocasião80.

A Semeadura e o Crescimento

Vinte e cinco alunos acompanham seu professor a Washington


D.C., para ver a Casa Branca. Quando voltam à sala de aula, o professor
pede que cada um deles faça uma descrição da visita. Vinte e cinco
redações refletem vinte e cinco aspectos da residência presidencial. Uma
criança, talvez, escreva: ―A Casa Branca parece...‖, seguindo-se uma
descrição daquilo que lhe pareceu mais interessante. Outra criança,

79 A. B. Bruce. The Parabolic Teaching of Christ (New York: A. C. Armstrong, 1908), p.


91.
80 Michaelis, Gleichnisse, p. 55. No Evangelho de Tome, as parábolas do grão de

mostarda e do fermento estão separadas. Elas têm o mesmo estilo (com ligeiras
variações) dos relates canônicos. Vejam-se Citações 20 e 96.
todavia, pode usar a mesma introdução, mas na redação retratar uma
perspectiva da Casa Branca, inteiramente diferente.

Jesus tornou familiar a seus seguidores várias das características


do reino de Deus. Por meio de parábolas, ele procurou descrever as
facetas do poder soberano de Deus. Assim, ele introduz suas parábolas
com a frase: ―O remo dos céus é semelhante...‖

A parábola do grão de mostarda, em contraste com a do trigo e do


joio, é muito curta. Em poucas palavras, Jesus descreve o surpreendente
tamanho da mostardeira (―árvore‖, em Mateus e Lucas; ―hortaliça‖, em
Marcos) que se desenvolve da menor das sementes. Obviamente, Jesus
realça a diferença entre o pequenino grão e a grande árvore. Ele não diz
nada sobre a qualidade da mostarda. Ele poderia ter mencionado seu
uso na comida e nos remédios, sua cor e seu gosto, mas esse não era o
propósito da parábola.

Jesus usa um exemplo da vida diária. Na nossa sociedade


moderna de comida enlatada, engarrafada e empacotada, muitos não
conhecem uma horta. Mas nos dias de Jesus quase todo mundo tinha
sua própria plantação. Mesmo os religiosos pagavam o dízimo das
especiarias colhidas — hortelã, endro e cominho (Mt 23.23). Em cada
quintal havia uma mostardeira. A planta podia, muitas vezes, ter
crescido no campo ao lado do canteiro de hortaliças, porque exige muito
espaço. Em Mateus, o jardineiro plantou a semente em um campo; em
Lucas, numa horta; e em Marcos, na terra.

O horticultor tomou apenas uma das sementes de mostarda. Seus


dedos pareciam grandes demais para segurar uma semente tão pequena.
Ele plantou a semente em seu campo porque sabia que aquela coisinha
minúscula tinha a capacidade de se transformar numa planta do
tamanho de uma árvore81. precisava de apenas uma planta, e ele sabia
do contraste entre a semente e a planta82. De fato, o tamanho
insignificante da semente de mostarda se tornou proverbial, no primeiro
século. Jesus, uma vez disse: ―Se tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará‖ (Mt 17.2O)83.
Tanto Mateus como Marcos dizem explicitamente que o grão de

81 Alguns manuscritos trazem ―grande árvore‖, em Lucas 13.19. B. M. Metzger, em A


Textual Commentary on the Greek New Testament (London, New York: United Bible
Societies, 1971), p. 162, escreve: ―Embora alguns copistas possam ter suprimido mega,
para harmonizar Lucas com o texto preponderante de Mateus (13.32), é muito mais
provável que, com o interesse de enfatizar o contraste entre o grão de mostarda e a
árvore, o termo mega tenha sido acrescentado, também, em alguns testemunhos, no
paralelo de Mateus‖.
82 A semente da mostarda negra (sinapis nigra) cresce predominantemente nas regiões

do sul e do leste dos países mediterrâneos, Mesopotâmia e Afeganistão. É a menor das


sementes de trCs ou quatro variedades de mostarda. Lõw, Die Flora der Juden, 1: 521,
O. Michel, TDNT, III: 810-12.
83 Para exemplos dos escritos dos rabinos, veja SB, 1: 669.
mostarda é a ―menor de todas as sementes84‖. O contraste, no entanto,
se torna mais marcante, porque a afirmativa é posta em comparação
com a descrição da planta adulta: ―crescida, é maior do que as
hortaliças, e se faz árvore‖. Aquele minúsculo grão, depositado no solo,
se transforma numa árvore. Um milagre!

Concluindo a parábola, Jesus se refere ao Velho Testamento, às


passagens de Daniel 4.12 e Ezequiel 17.23 e 31.6. A passagem de Daniel
era bem conhecida de seus ouvintes, pois se referia a um sonho de
Nabucodonosor sobre uma árvore que se tornava tão forte que sua
altura chegava até ao céu. Debaixo dela, os animais do campo achavam
sombra e em seus ramos as aves do céu vinham se aninhar. Jesus, que
fala as palavras de Deus (Jo 3.34), ensina, indiretamente, as Escrituras
chamando, através de uma alusão verbal, a atenção para uma parábola
messiânica, em Ezequiel 17.23: ―No monte alto de Israel o plantarei, e
produzirá ramos, dará frutos e se fará cedro excelente. Debaixo dele
habitarão animais de toda sorte, e à sombra dos seus ramos se
aninharão aves de toda espécie85‖.

O Cumprimento

Através da parábola, Jesus ensina que o reino de Deus pode


parecer sem importância e insignificante, especialmente na Galiléia de
28 AD. Mas, o evangelho do reino, proclamado por um carpinteiro
transformado em pregador, provocará um impacto tremendo no mundo
todo. Os seguidores de Jesus eram um grupo de pescadores ―rudes‖ a
quem foi ordenado que fizessem discípulos de todas as nações. Esses
seguidores puseram o mundo em chamas, com a mensagem de salvação,
que hoje é proclamada em quase todas as línguas conhecidas da terra. O
pequenino grão semeado na Galiléia, no nascer da nova era do
Cristianismo, se tornou uma árvore que, hoje, prove abrigo e descanso
para os povos de todos os lugares. E o dia ainda não se acabou.

A árvore ainda não alcançou maturidade; ainda está crescendo86.


Olhamos para o fenômeno do seu crescimento e sabemos que Deus está
operando o desenvolvimento do seu reino. Sabemos que inúmeros povos
desse planeta ainda não ouviram as boas-novas do amor generoso de
Deus. Nações inteiras estão virtualmente destituídas da sombra e do

84 É possível que os dois evangelistas tenham acrescentado essa explicação como ajuda
ao leitor.
85 J. W. Wevers, Ezekiel (Greenwood, 5. C.: Attic Press, 1969), p. 139. C. L. Feinberg,

em The Prophecy of Ezekiel (Chicago: Mood Press, 1969), p. 97, diz que os versículos
finais de Ezequiel 17 ‗sem dúvida, apresentam uma profecia messiânica‖. Veja,
também, D. M. G. Stalker, Ezekiel (London: 5. C. M. Presa, 1968), p. 154; J. B. Taylor,
Ezekiel (Downers Grove, III:Inter Varsity Presa, 1969), p. 146; e, J. Mánek, Und
Brachte Frucht (Stuttgart: Calwer, 1977), p. 28.
86 Os estudiosos hesitam em se referir à planta da mostarda como uma árvore. Veja R.

W. Funk: ―The Looking-Glass Tree is for the Birds‖, lnterp 27 (1973): 5. No entanto, ela
alcança uma altura de mais ou menos três metros. A linguagem popular descrevia o
fenômeno do crescimento da mostarda, naqueles dias, como ―uma árvore‖.
abrigo oferecidos pelo reino de Deus. Os ramos da árvore devem
continuar a crescer e a se estender até àquelas regiões que ainda
precisam do evangelho para que multidões possam encontrar refúgio e
descanso87. E quando o evangelho do reino de Deus tiver sido pregado a
todas as nações do mundo, então o fim virá (Mt 24.14) e a árvore terá
alcançado sua plenitude.

87 Os rabinos costumavam chamar os gentios de ―aves do céu‖. Veja Hunter, Parables,


p. 45, e Kingsbury, Parables of Jesus, p. 82. Também, H. K. McArthur, ―The Parable of
the Mustard Seed‖, CBO 33(1971): 208; O. Kuss, ―Zum Sinngehalt des
Doppclgleichnissesvom Senfkom und Sauerteig‖, Bib 40 (1959): 653.
8. O Fermento

Mateus 13.33 ―Disse-lhes outra parábola: O reino dos céus é semelhante


ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de
farinha, até ficar tudo levedado‖.

Lucas 13.20,21 ―Disse mais: A que compararei o reino de Deus? É


semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três
medidas de farinha, até ficar tudo levedado‖.

O método visual era um dos recursos pedagógicos mais usados


por Jesus. Sempre que ensinou às multidões a respeito do reino de
Deus, ele usou exemplos tirados diretamente do cotidiano. Quando
menino, em Nazaré, viu sua mãe fazendo pão. Primeiro, ela dispunha as
vasilhas e panelas; então, pegava farinha, água e fermento, e adicionava
uma pitada de sal. Ela misturava os ingredientes e deixava a massa
descansar. Seu trabalho, até ali, estava feito; o fermento agiria e faria a
massa crescer. Quando o processo da fermentação estivesse completo,
ela dividiria e assaria os pães.

Jesus contou a história de uma mulher fazendo pão — cena


comum do dia-a-dia. A mulher apanhou uma pequena quantidade de
fermento, misturou-o a uma grande quantidade de farinha, e assou pão
suficiente para uma refeição de cem pessoas. Tanto Mateus quanto
Lucas indicam que a mulher usou três satas de farinha. Uma sata
equivale a, mais ou menos, 13,13 litros. Assim, a mulher tomou cerca de
39 litros de farinha — mais de 20 quilos —, pretendendo fazer uma
grande quantidade de pão. É demais, naturalmente, para o consumo
diário de uma família pequena88. Mas Sara, mulher de Abraão, assou o
mesmo tanto, quando três homens vieram visitá-los em Manre (Gn 18.6).
E, em pelo menos outras duas referências, o total de três medidas (seah,
ou um EFA) é mencionado em relação à farinha usada para o pão (Jz
6.19 e 1 Sm 1.24).

Há quem argumente que as traduções modernas confundem o


sentido básico do versículo traduzindo a palavra grega zume como
fermento e não como levedo. A não ser entre o povo judeu, o uso do
levedo não é muito conhecido, e por isso o conceito de fermento está na
introdução: ―O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma
mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo
levedado‖ (Mt 13.33). O fermento, como o conhecemos hoje, é limpo,
fresco, saudável e até saboroso. E feito da cultura de uma solução de sal
e açúcar à qual se adiciona amido. O levedo, no entanto, era conseguido
com uma porção de massa guardada da semana anterior, à qual eram
adicionados sucos para facilitar o processo de fermentação. Se o levedo
fosse contaminado por uma cultura de bactérias nocivas, essa
contaminação passaria para o pão até que o processo fosse
88Jeremias, em Parables, p. 147, afirma sumariamente: ―Nenhuma dona-de-casa
amassaria tão grande quantidade de pão‖.
interrompido, quando comessem pão não levedado durante uma
semana, como faziam por ocasião da Páscoa89.

Jesus não teve a intenção de considerar nocivo o levedo. Ele usou


o exemplo do levedo por causa de seu poder oculto. O fermento e o
levedo fazem a massa crescer, permeando-a inteiramente. Depois de
misturados à farinha, o fermento ou o levedo não podem mais ser
encontrados. Ficam escondidos e invisíveis.

Esta parábola tão curta tem sido interpretada de várias maneiras.


Jerônimo, por exemplo, identificou a mulher com a igreja90. As três
medidas de farinha têm sido explicadas como sendo os três ramos da
raça humana (descendentes de Sem, Cão e Jafé); os gregos, judeus e
samaritanos; ou o coração, a alma e a mente91. Essas interpretações são
especulativas, imaginativas e de pouco valor.

A parábola destaca o fato de o fermento, uma vez adicionado à


farinha, permear toda a porção de massa, até que cada partícula seja
atingida. O fermento fica invisível, mas todos podem ver o seu efeito. É
assim que o reino de Deus demonstra seu poder e sua presença no
mundo de hoje.

Na parábola do grão de mostarda, Jesus tornou conhecida a


expansão aparente do reino. Na parábola do fermento, ele focaliza a
atenção no poder interior do reino e em sua influência sobre tudo.

A parábola do grão de mostarda ilustra o programa evangelístíco


global da igreja em obediência à comissão de Cristo e seus seguidores
para que fizessem discípulos em todas as nações. A parábola do
fermento torna claro que essa obediência a Cristo traz como
conseqüência a cristianização de cada setor e de cada segmento da vida.
O seguidor de Cristo deixa sua luz brilhar diante dos homens, para que
vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está nos céus (Mt 5.16).
Ele alivia o sofrimento dos pobres e dos aflitos; luta pela causa da
justiça, em favor dos oprimidos; exige honestidade dos que foram eleitos
ou escolhidos para governar as nações; ergue o estandarte da
moralidade e da decência; defende a santidade da vida; respeita as leis
da natureza; exige integridade nos negócios, no comércio, na indústria,
no trabalho e nas profissões (médicas, jurídicas, religiosas); e na área da
educação, explica significativamente que em Cristo ―todos os tesouros da

89 Para uma descrição mais minuciosa, veja-se C. L. Mitton, ―Leaven‖, Expt T84(1973),
339-43.
90 R. C. H. Lenski, Interpretation of St. Matthew‘s Gospel (Columbus: Lutheran Book

Concern, 1943), pp. 530-32).


91 F. Godet, Commentaiy on St. Luke‘s Gospel (Grand Rapids: Kregel, reprint of 1870

ed.), 2: 122. R. W. Funk, em ―I3eyond Criticism in Quest of Literacy: The Parable of the
Leaven‖, Interp 25 (1971) entende o numero três escatologicamente e escreve: ―Três
medidas de farinha apontam para o poder sacramental do Reino para a ocasião festiva
de uma epifania‖, p. 163. Devemos acentuar, no entanto, o poder e não o significado da
farinha ou do número três.
sabedoria e do conhecimento estão ocultos‖ (Cl 2.3). O seguidor de Cristo
torna o ensinamento das Escrituras de especial relevância em todos os
lugares. ―Está claro para todo aquele que tiver olhos para ver, que o
―fermento‖ do poder de Cristo, nos corações e nas vidas dos homens e
em todas as esferas humanas, tem exercido, de milhares de maneiras,
uma influência completa. E essa influência ainda continua92‖. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça.
O que, precisamente, queria Jesus dizer com a expressão ―reino
dos céus‖? É um sinônimo de igreja? O povo de Deus, individual e
coletivamente, confessa o nome de Jesus Cristo como seu Salvador.
Juntos constituem a igreja. Nessa igreja recebem dons e poderes que se
tornam capazes de guardar cuidadosamente a lei de Deus, proclamar
universalmente o evangelho da salvação e promover efetivamente o
governo de Deus93. A igreja, então, é constituída de cristãos que
praticam os ensinamentos de Cristo em todas as esferas da vida. Assim
procedendo, promovem o reino de Deus, no qual o governo de Cristo é
aceito. Resumindo, cada área da vida influenciada pelo ensinamento de
Cristo (o fermento) pertence ao reino.

92Hendriksen, Matthew, p. 568.


93 Para um estudo mais abrangente, veja-se Ridderbos, Coming of the Kingdom,
especialmente as páginas 342-56.
9. O Tesouro Escondido

Mateus 13.44 ―O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no


campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E,
transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele
campo‖.

10. A Pérola

Mateus 13.45,46 ―O reino dos céus é também semelhante a um que


negocia e procura boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de grande
valor, vende tudo o que possui e a compra‖.

Em sua série de sete parábolas, Mateus elabora cuidadosamente


as duas primeiras — o semeador, o trigo e o joio — registrando a
interpretação de cada uma delas. As outras cinco são um tanto curtas
na forma, e diretas no tocante ao assunto. Apenas duas sentenças
constituem cada uma das parábolas — do tesouro oculto e da pérola; a
primeira sentença de cada uma delas é a conhecida frase introdutória:
―O reino dos céus é semelhante a...‖ O ponto principal da parábola se
encontra, naturalmente, na segunda frase.

Encontramos essas duas parábolas apenas no Evangelho de


Mateus. Não sabemos se Jesus contou-as em seqüência ou se Mateus
reuniu-as pelo assunto ao organizar seu material. Permanece o fato de
que as duas estão relacionadas94.

Estritamente falando, as frases que apresentam as duas parábolas


não são inteiramente condizentes. Numa o reino dos céus é semelhante
a um tesouro; e na outra, a um mercador. Não devemos, no entanto,
abordar as duas parábolas com a mente analítica ocidental. Devemos,
antes, procurar seu sentido básico buscando entendê-las como foram
entendidas pelos discípulos, que primeiro as ouviram.

Composição

Jesus contou a história de um homem que achou um tesouro


escondido num campo. Rapidamente, tornou a enterrá-lo e voltou alegre
para casa, a fim de vender tudo o que possuía, para comprar o campo.

As crianças, muitas vezes, fantasiam que em algum lugar, em


alguma casa velha, ou celeiro, vão descobrir um tesouro que ninguém

94 Alguns estudiosos citam o Evangelho de Tomé, onde as duas parábolas estão


separadas (Hidden Treasures, Citação 109; and Pearl, Citação 76). Isso é verdade,
também, em relação às parábolas do grão de mostarda e do fermento. A evidência
disponível, no entanto, nIo~ conclusiva, O assunto é discutido por O. Glombitza, ―Der
Perlenkaufmann‖, NTS 7 (1960. 61): 153-61. Ver também J. C. Fenton: ―Expounding
the Parables: IV. lhe Parables of lhe Treasure and the Pearl (Mt 13.4446)‖, Expt
77(1966): 178-80; J. Dupont: ―Les Paraboles du Trésor et dc la Pene‖, NTS 14 (1967-
68): 408-18.
viu. Na nossa sociedade sofisticada, consideramos isso irreal; pensamos
que tais coisas não acontecessem mais. Entretanto, de tempos em
tempos, descobertas são feitas: um pastor encontrou, perto do Mar
Morto, rolos de pergaminho de dois mil anos de existência; um
mergulhador localizou, afundado na costa da Flórida, um navio espanhol
do século 17, cheio de ouro e prata; e um fazendeiro, arando o seu
campo, em Suffolk, Inglaterra, achou um cofre que guardava belos
pratos de prata, do tempo dos romanos95.

Um tesouro tinha sido enterrado em um campo. Quem o enterrara


e por quanto tempo permanecera ali, são perguntas que não temos como
responder. Sabemos que, na antiga Palestina, um país freqüentemente
em guerra, as pessoas achavam mais seguro guardar seu tesouro, ou
parte dele, no campo do que em suas casas. Em casa, os ladrões podiam
roubá-lo; no campo ficaria em maior segurança. Mas, se o proprietário
morresse na guerra, levaria para o túmulo o seu segredo, e ninguém,
jamais, poderia saber onde enterrara o tesouro.

O homem que encontrou tal tesouro podia ser um empregado ou


mesmo um arrendatário daquele campo. Talvez estivesse arando,
cavando buracos, ou plantando uma árvore. De qualquer modo, ele
bateu em alguma coisa dura debaixo da terra, cujo som não parecia o de
uma pedra. Ele cavou e encontrou um tesouro. Não nos é contado de
que tesouro se tratava, mas o homem ficou maravilhado. Nunca tinha
visto um tesouro tão valioso. Tudo aquilo poderia ser seu, se comprasse
o campo.

Em segundos, arquitetou um plano. Rapidamente, pôs o tesouro


de volta no lugar, cobriu-o com terra e foi para casa. Sabia que o atual
proprietário do terreno não tinha enterrado o tesouro ali. Assim, se o
dono lhe vendesse o terreno, ele teria a posse do tesouro, que, então,
seria seu de direito96. precisava de dinheiro e pôs à venda tudo o que
tinha. Algumas pessoas talvez tenham meneado a cabeça, reprovando
aquela atitude tão impetuosa. Mas o homem sabia o que estava fazendo.
Com o dinheiro, poderia comprar o campo e teria para si o tesouro.

Em poucas palavras, Mateus relata a parábola da pérola, contada


por Jesus. Um mercador está à procura de pérolas e encontra uma de
excepcional valor. Vai, vende tudo que possui, e compra aquela pérola
única.

A história é muito parecida com a do homem que encontrou o


tesouro. A mesma dedicação é encontrada em ambas as parábolas. Cada
um dos homens quer ter o objeto de seu desejo mesmo que isso lhe

95E. A. Armstrong, The Gospel Parables (New York: Sheed and Ward, 1967), p. 154.
96Não devemos pôr em dúvida a moral daquele homem, pois não sabemos como eram
as leis de propriedade, nos dias de Jesus. A parábola não dá ênfase à conduta ética do
homem que encontrou o tesouro. Para um estudo mais detalhado, veja-se J. D. M.
Derrett, Law in the New Testament (London: Longman and Todd, 1970), pp. 1-16.
custe o que ajuntou em toda a sua vida. Os dois, literalmente, vendem
tudo o que têm para conseguir o tesouro e a pérola.

No tempo do Velho Testamento, as pérolas, aparentemente, não


eram conhecidas, mas já no primeiro século da era cristã, tinham-se
tornado símbolo de status entre os ricos97. Jesus disse a seus ouvintes:
―Nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas‖ (Mt 7.6), e Paulo queria
que as mulheres de seu tempo se vestissem modestamente: ―não com
cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso‖ (1
Tm 2.9). No Apocalipse, uma voz dos céus, diz: ―Choram e pranteiam os
mercadores da terra, porque já ninguém compra a sua mercadoria,
mercadoria de ouro, de prata, de pedras preciosas, de pérolas‖ (Ap
18.11,12).

Nos dias de Jesus e dos apóstolos, as pérolas eram muito


procuradas. Os mercadores tinham que ir ao Mar Vermelho, ao Golfo
Pérsico, e até mesmo à Índia para encontrá-las. As pérolas inferiores
vinham do Mar Vermelho; as melhores vinham do Golfo Pérsico e das
costas do Ceilão (hoje Sirilanka) e da Índia98. Um mercador tinha que
viajar muito para conseguir as melhores e maiores pérolas.

O homem, cuja história Jesus contou, está à procura das mais


finas pérolas. Não sabemos para onde viajou, mas um dia encontrou
uma de grande valor. Para ele, era uma oportunidade única na vida. Não
sossegou enquanto não a teve. Pensou muito, fez todos os cálculos,
avaliou seus bens, e decidiu vender tudo o que tinha para comprar
aquela pérola única, perfeita.

Devemos notar que o mercador não foi deliberadamente de um


apanhador de pérolas para outro, em busca de uma excepcional.
Enquanto as procurava, no decorrer normal de seu trabalho, ele se
deparou com a melhor de todas as pérolas que já havia visto. Como o
homem que descobriu o tesouro, o mercador, de repente, viu a pérola.
Era uma questão de agora —ou nunca: vender tudo e comprar! Típico
negociante oriental mantém o rosto impassível durante o negócio.
Quando a pérola for sua, haverá tempo para celebrar.

―Nada vale, nada vale, diz o comprador, mas,


indo-se, então se gaba‖. (Pv 20.14)

Aplicação

Os amigos e conhecidos dos dois homens das parábolas devem ter


sacudido suas cabeças em desaprovação, quando os viram vender tudo
que possuíam. Devem ter ficado surpresos, quando logo a seguir tiveram

97 B. T. D. Smith, The Parables of the Synoptic Gospels (Cambridge: S. P. C. K., 1937),


p. 145.
98 Smith, Parables, p. 146. Veja Schippers, Gelijkenissen, p. 103; Jeremias, Parables, p.

199 Hauck, TDNT, IV: 472.


conhecimento do lucro obtido. E tiveram que mostrar respeito; os
homens sabiam o que estavam fazendo.

Os dois, no entanto, não especularam. Não havia nenhum risco na


compra do campo, ou na aquisição da pérola; o que fora comprado valia
o preço. O que fizeram foi o mais sensato. Por acaso, encontram aqueles
bens, e seria tolice ignorá-los. Diante da oportunidade, tudo que tiveram
que fazer foi adquirir o tesouro e a pérola.

Ao comprar o campo e a pérola, os dois homens não fizeram


sacrifício algum, mesmo vendendo tudo o que possuíam. ―Há uma
diferença básica entre o valor de uma compra e um sacrifício. A compra
é a aquisição de um objeto de valor equivalente. O sacrifício, de outro
lado, é uma dádiva que não espera recompensa99‖. Tanto o homem que
encontrou o tesouro quanto o mercador de pérolas pagaram o preço
justo pelo que compraram. Viram a oportunidade e se mostraram
dispostos a pagar o preço devido. Deram tudo o que tinham em troca do
único bem desejado.

O que, então, as parábolas ensinam? Pais da Igreja, como Irineu e


Agostinho, identificam o tesouro e a pérola com Cristo. Pensaram
acertadamente. O recém-convertido diz exatamente a mesma coisa:
‗Achei o Cristo‘. O novo cristão, de repente, encontrou Cristo. Alegre, ele
volta para casa, abandona o seu modo de vida, e se devota
completamente a seu Senhor. Alguns vendem tudo o que têm para
buscar instrução teológica, a fim de se ordenarem ministros ou
missionários do Evangelho de Cristo.

É Cristo quem oferece o tesouro e a pérola aos viajantes da vida100.


Alguns deles estão buscando; outros estão andando a esmo.
Subitamente, encontram Jesus e acham nele um tesouro inestimável.
Sua resposta a Jesus é de entrega total. Alegremente vendem tudo o que
têm, para ter Jesus. A salvação, naturalmente, é plena e de graça, e não
pode ser comprada. É uma dádiva. Significa que Jesus exige o coração
do homem. Como nas palavras do antigo hino:

Tudo, ó Cristo, a ti entrego,


Por ti tudo deixarei;
Resoluto, mas submisso,
Sempre a ti eu seguirei.

Tudo entregarei! Tudo entregarei!


Tudo, sim, Jesus bendito, por ti deixarei!

99 E. Linnemann, Parables of Jesus: Introduction and Exposition (London: 5. P. C. K.,


1966), p. 100.
100 Hunter, Parables, p. 80. Também Michaelis, Gleichnisse, p. 66.
11. A Rede

Mateus 13.47-50 ―O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede que,
lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie. E, quando já está cheia,
os pescadores arrastam-na para a praia e, assentados, escolhem os bons
para os cestos e os ruins deitam fora. Assim será na consumação do
século: sairão os anjos, e separarão os maus dentre os justos, e os
lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes‖.

Somente o Evangelho de Mateus registra a parábola da rede101.


Está claramente associada à parábola do trigo e do joio; a interpretação
de ambas focaliza o dia do juízo final. Ainda assim, ficam evidentes
diferenças importantes. Na parábola do joio, Jesus acentuou a idéia de
paciência. Essa idéia não aparece na parábola da rede102.

A parábola do joio é mais descritiva. Ela menciona o fazendeiro,


seus servos, e os ceifeiros, mas na parábola da rede apenas os
pescadores e suas tarefas são mencionados. O joio é semeado no campo
depois que o fazendeiro já tinha plantado o trigo, ao passo que os peixes
próprios para serem consumidos, e os impróprios, estão sempre juntos
no Mar da Galiléia. A parábola do joio descreve as condições do campo,
no presente, e a ceifa como um acontecimento futuro. A parábola da
rede, por outro lado, retrata a separação dos peixes, no presente103.

A Pesca

A maior parte dos discípulos de Jesus era de pescadores por


profissão; tinham deixado suas redes e seus barcos para seguir Jesus e
se tornarem pescadores de homens. Quando Jesus lhes contou a
parábola da rede, compreenderam cada nuança da história. Jesus se
referiu exatamente ao modo de vida que levavam antes.

A margem norte do Mar da Galiléia é um dos melhores lugares de


pesca, em Israel. As plantas arrastadas pela correnteza do rio Jordão são
depositadas na enseada, ao norte. Essas plantas atraem e alimentam
cardumes vastos e variados. Vinte e cinco espécies nativas, pelo menos,
já foram identificadas naquele lado104.

101 No Evangelho de Tomé, Citação 8, encontramos uma parábola semelhante, uma


cuja ênfase difere radicalmente: ―E ele disse: O homem é como um pescador que lançou
sua rede ao mar, ele a recolheu quando estava cheia de pequenos peixes. Entre eles o
pescador achou um peixe grande. O pescador sensato lançou de volta ao mar todos os
pequenos peixes (e) escolheu o grande, sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir,
ouça‖.
102 Mánek, Frucht, p. 50. Ver, também, Jeremias, Parables, p. 226.
103 Michaelis, Gleichnisse, pp. 68-69. Consulte, também, B. Gerhardsson, ―The Seven

Parables in Mattew XIII‖, NTS 19 (1972- 1973): 18-19.


104 G. Cansdale, AnimaIs of I3ible Lands (Grand Rapids: Zondervan, 1970), p. 216.

Consulte, também, Dalman, Arbeit und Sitte, 4: 351, que faz referência a vinte e quatro
espécies.
Embora houvesse várias maneiras de pescar, nos dias de Jesus,
um dos mais eficientes era o uso do arrastão. Esse tipo de rede tinha
dois metros de largura e perto de cem metros de comprimento. Tinha
cortiça na parte superior para mantê-la à tona e pesos na parte inferior,
para mantê-la ao fundo. Às vezes, os pescadores fixavam uma das
extremidades da rede na praia, enquanto um barco puxava a outra
ponta pelo lago, fazendo uma curva e trazendo a rede de volta à praia.
Outras vezes, saíam dois barcos da praia, formando um semicírculo com
a rede; juntos, os homens a puxavam para apanhar os peixes e juntá-los
nos barcos. O uso do arrastão exigia a força de seis homens ou mais.
Enquanto uns remavam, outros lançavam ou puxavam a rede e outros
ainda batiam na água para guiar os peixes para a rede105.

Pescadores experimentados procuravam localizar um bom


cardume antes de começar a pescar. Mas, uma vez lançada a rede, os
homens puxavam todos os peixes apanhados por ela. Obviamente, os
peixes estavam misturados, pois não podiam selecioná-los, enquanto
pescavam106.

A rede apanhava os peixes próprios e impróprios para o consumo


—os bons e os maus. Peixes de todos os tipos e tamanhos se debatiam
ao serem puxados para a praia. Muitas espécies eram consideradas
impuras, de acordo com as normas de alimentação dos judeus. Peixes
sem barbatanas e sem escamas não podiam ser comidos (Lc 11.10), e
tinham que ser lançados de volta à água. Os peixes pequenos, também,
eram abandonados. Somente os peixes em condição de serem
negociados eram apanhados e colocados em recipientes adequados. A
classificação dos peixes, enfim, determinava o valor da pesca; até à hora
da escolha, era impossível avaliar o lucro obtido.

Explicação

Jesus usa a parábola da rede para descrever o dia do juízo. Ele se


dirige a seus discípulos que sabiam como apanhar e selecionar os
peixes. Ele fala a linguagem deles e consegue, assim, comunicar
efetivamente uma verdade espiritual. Jesus faz, ainda, uma breve
interpretação da parábola. ―Assim será na consumação do século: Sairão
os anjos e separarão os maus dentre os justos, e os lançarão na fornalha
acesa; ali haverá choro e ranger de dentes‖ (Mt 13.49,50). As palavras
são quase idênticas àquelas usadas por Jesus em sua interpretação da
parábola do trigo e do joio. ―Pois, assim como o joio é colhido e lançado
ao fogo, assim será na consumação do século. Mandará o Filho do
homem os seus anjos que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e
os que praticam a iniqüidade, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá
choro e ranger de dentes‖ (Mt 13.40-42).

105 Há uma interessante descrição a respeito em W. O. E. Oesterley, The Gospel


Parables in lhe Light of Their Jewish Background, (New York: Macmillan Co., 1936), pp.
85-86.
106 Dodd, Parables, p. 188.
Argumentar que a interpretação da parábola da rede não se ajusta
aos termos da própria parábola, porque os peixes impróprios para serem
comidos são jogados de volta à água, e não em uma fornalha acesa, é
ilógico. Do mesmo modo, alguém poderia afirmar que a interpretação da
parábola do trigo e do joio é inadequada, pois o joio não range os dentes.
Jesus usa linguagem simbólica e transfere a mensagem da parábola
para o destino espiritual do homem: céu ou inferno. Na parábola do trigo
e do joio, o destino do homem é o céu, onde os justos resplandecerão
como o sol, ou o inferno, onde há choro e ranger de dentes.

A interpretação dada omite todos os pormenores descritivos a


respeito dos pescadores lançando a rede e trazendo para a praia o
produto da pesca; apenas a separação dos peixes bons, daqueles sem
valor, é explicada. Portanto, não é prudente usar a própria interpretação
para os detalhes da parábola107. Os pormenores fazem parte do quadro
total do produto da colheita. A rede traz todos os peixes apanhados, e os
pescadores, simplesmente, não podem escolher enquanto pescam. Do
mesmo modo, os seguidores de Jesus, escolhidos para serem pescadores
de homens, não têm como selecionar quando e a quem proclamar o
evangelho. Usando as palavras de outra parábola, os servos de Cristo
saem pelas ruas e reúnem todos os que encontram, tanto bons como
maus (Mt 22.10). O apelo do evangelho é dirigido a todos, sem
discriminação.

Na parábola da rede, os pescadores lançam a rede, juntam o que


conseguiram apanhar, e separam os peixes108. Na interpretação são os
anjos que vêm e separam os ímpios dos justos. Assim, podemos deduzir
que os pescadores, também, pertencem à multidão da qual os anjos
recolherão os Ímpios. Os ímpios serão retirados da multidão dos justos.

O termo ímpio é abrangente: ele se refere, também, àquelas


pessoas que na aparência fazem parte da igreja, mas no íntimo não têm
qualquer ligação com a verdadeira igreja. Com a boca confessam o Credo
Apostólico, mas em seus corações não possuem a fé genuína em Jesus
Cristo.

Essas pessoas são como aquelas descritas na parábola do


semeador: têm seus corações endurecidos (o solo à beira do caminho);
são cristãos apenas superficialmente (o solo rochoso); amam os bens e
os prazeres do mundo (o solo cheio de espinheiros). Estão na igreja, mas
não pertencem a ela. No dia do juízo final, os anjos de Deus virão e os

107Por exemplo, Lenski, em Matthew‘s Gospel, p. 547, diz que ―a rede é o Evangelho‖.
108Em um curto e interessante estudo, J. Mánek, ―Fishers of Men‖, NovT 2 (1958):
13841, mostra que há inimizade entre o mar e Deus (Ap 21.1). ―Porque o mar é lugar
de revolta contra Deus, ele não pode participar do mundo novo, no futuro. Ele passará
juntamente com outros poderes demoníacos, como está demonstrado na visão do novo
céu e da nova terra, em Ap. XXI.1‖, p. 139. Os pescadores de homens, portanto, os
resgatarão de um ambiente hostil a Deus.
separarão do povo de Deus, e os lançarão no fogo ardente reservado para
eles.
O que a parábola ensina? Diz aos seguidores de Jesus: vão à sua
tarefa diária de testemunhar aos outros, onde quer que estejam; tragam-
nos para a igreja; façam com que se lembrem sempre da necessidade da
fé e do arrependimento; que eles estejam atentos para o dia do juízo,
quando, então, a separação entre o ímpio e o justo acontecerá.

Mateus, apropriadamente, fecha a série de sete parábolas (sete é o


número da perfeição) com a parábola da rede. Essa última parábola
lembra, uma vez mais, o dia dos dias, quando se dará o juízo final109.

O escritor da Epístola aos Hebreus resume sucintamente: ―E,


assim, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez e, depois
disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para
sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem
pecado, aos que o aguardam para a salvação‖ (Hb 9.27,28).

109 Veja W. F. Albright e C. S. Mann, Matthew (New York: Doubteday, 1971), p. cxliv.
12. O Credor Incompassivo

Mateus 18.21-35 ―Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou:


Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe
perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete
vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o reino dos céus é
semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E,
passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos.
Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse
vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida
fosse paga. Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente
comigo, e tudo te pagarei. E o senhor daquele servo, compadecendo-se,
mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo,
encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários; e,
agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Então, o seu
conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te
pagarei. Ele, entretanto, não quis; antes, indo-se, o lançou na prisão, até
que saldasse a dívida. Vendo os seus companheiros o que se havia
passado, entristeceram-se muito e foram relatar ao seu senhor tudo que
acontecera. Então, o seu senhor, chamando-o, lhe disse: Servo malvado,
perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste; não devias tu,
igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me
compadeci de ti? E, indignando-se, o seu senhor o entregou aos
verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai
celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão‖.

A História

Jesus, alguma vez, negou-se a atender qualquer um que tenha


vindo a ele em arrependimento e fé? Claro que não! Nunca, não importa
que pecado tivesse cometido. Essa é a nossa resposta. Sabemos isso
porque ―a Bíblia nos diz‖. Mas, quantas vezes nos esquecemos do nosso
próximo? Uma coisa é Jesus perdoar alguém que tenha cometido um
crime odioso; outra, nós perdoarmos o nosso próximo que cai,
constantemente, no mesmo pecado.

Pedro, conhecedor da Lei e dos Profetas, bem como da tradição


judaica, sabia que devia perdoar seu semelhante. Sabia qual era o seu
dever. Mas, qual o limite? Há limite, afinal? Pedro pensava que devia
perdoar até sete vezes. Ele achava que sete vezes seria suficiente, e que
Jesus, provavelmente, diria algo como: ―Sim, Pedro, é bastante‖. A
misericórdia sem limite não encoraja uma vida de pecados? Jesus não
concordaria com Pedro: ―Há limite para tudo?‖.

Mas a resposta de Jesus é: ―Não te digo que até sete vezes, mas até
setenta vezes sete‖. Jesus multiplica os dois números, sete e dez —
números que simbolizam a perfeição — e acrescenta um outro sete: Ele
quer dizer, não sete vezes, mas setenta vezes — sete vezes; isto é, a
perfeição vezes a perfeição e mais a perfeição110. Ele indica a idéia de
infinito. A misericórdia de Deus é tão grande que não pode ser medida;
você, Pedro, deve também mostrar misericórdia a seu próximo.

Para explicar a magnitude do amor misericordioso de Deus, que


deve se refletir em seu povo, Jesus ensina a parábola do servo
incompassivo. Ele conta a história, e o faz muito bem.

Um rei reuniu seus oficiais (= servos), no dia marcado para o


acerto de contas111. Um deles lhe devia a astronômica soma de dez mil
talentos. De fato, a expressão ―dez mil talentos‖ traz implícito o
significado de algo que não se pode numerar ou contar, algo infinito112.
Além disso, o talento era, naqueles dias, o mais alto valor monetário do
sistema financeiro. Comparando, vemos que o total anual de impostos
que Herodes, o Grande, recebia de todo o reino era de,
aproximadamente, novecentos talentos113. Está claro que o ministro das
finanças devia a seu senhor uma quantia enorme. Não nos é contado o
que ele havia feito com o dinheiro; esse fato não tem importância. Ele
devia a soma de dez mil talentos, e tinha que pagar. Ele sabia que jamais
conseguiria todo aquele dinheiro, no dia marcado para o ajuste de
contas.

Quando ficou diante de seu senhor, ouviu o veredicto: ele, sua


mulher, seus filhos e tudo o que possuía seriam vendidos para o
pagamento da dívida. Era demais para ele. Atirou-se aos pés do
soberano, implorando misericórdia, e pediu: ―Sê paciente comigo e tudo
te pagarei‖. Ele implorou misericórdia, não o perdão. Prometeu
restituição, sabendo que poderia pagar apenas uma pequena parte e não
mais. Como resposta, recebeu o que menos esperava — quitação da
dívida. Seu senhor teve piedade dele, cancelou o seu débito e deixou-o
ir114. Inacreditável! Que alegria! Quanta bondade!

Este foi apenas o primeiro ato do drama115. O segundo ato é

110 A frase pode também ser traduzida como ―setenta vezes sete‖. Veja-se, Gn 4.24.
111 Quando um monarca oriental convocava seus secretários do tesouro, deixava de
lado os oficiais menores. Etc se encontrava com os oficiais do alto escalão do serviço
público. Veja-se K H. Rengstorf, TDNT 11; 266 que destaca que a palavra servo é a
forma lingüística usual para a relação de sujeição ao rei, nas despóticas monarquias do
antigo oriente.
112 H. O. Liddell e R. Scott, A Greek English Lexicon (Oxford: Clarendon Presa, 1968), p.

1154. A soma de dez mil talentos chega a vários milhões de dólares.


113 Josephus, Antiquities 17:318-20. Judéia, lduméia e Samaria pagavam Seiscentos

talentos de impostos anualmente. Galiléia e Peréia pagavam duzentos talentos;


Batanéia e Traconitis, bem como Auranitis pagavam cem talentos.
114 O ministro das finanças expôs sua falta de condição para pagara dívida e pediu um

adiamento. Prometia pagar tudo dentro de um ano. Desse modo, o dinheiro devido
renderia juros ao rei. Na realidade, o débito (=daneion) que o rei perdeu era um
empréstimo. Derrett, Law in the New Testament, pp. 39-40.
115 Para um estudo simétrico da parábola, veja-se F. H. Breukelman, ‗Eine Erklárung

des Gleichnisses vom Schaiksknecht‖, Parrhesia, Festschrift honoring Karl Barth


(Zürich: 1966), pp. 261-87.
paralelo ao primeiro: o ministro das finanças se torna senhor e encontra
um outro oficial do rei.

Descendo as escadas do palácio real, o servidor público absolvido


encontrou um outro servidor que lhe devia cem denários. Realmente, era
muito pouco — alguns dias de trabalho e a soma seria conseguida. Mas
o servidor público agarrou-o pelo pescoço e o sufocava, exigindo
pagamento imediato: ―Paga-me o que me deves‖116. O devedor atirou-se
aos pés do ministro das finanças e pediu: ―Sê paciente comigo e te
pagarei‖. Ele não precisava dizer: ―Pagarei tudo‖, porque o total era
pequeno. Estava claro que ele pagaria tudo. Mas o ministro das finanças
se recusou, lançou o homem na prisão, esperando que alguém opusesse
em liberdade sob fiança, e pagasse a dívida.

O terceiro ato apresenta as testemunhas do segundo ato; e é,


também, a segunda e última confrontação do rei com o servidor público.

Nada foi feito às escondidas; era difícil guardar segredos, no


palácio. Outros viram o que tinha acontecido e não podiam manter
silêncio. Tinham que contar ao rei. O rei, quando ouviu a história, ficou
zangado. Chamou o servo e o repreendeu: ―Servo malvado, perdoei-te
aquela dívida toda porque me suplicaste, não devias tu, igualmente,
compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti?‖
Com isso, entregou-o aos carcereiros para que o torturassem até que a
divida fosse paga117.

A conclusão é que todo aquele que recebeu perdão deve estar


pronto a perdoar quem quer que esteja em débito com ele, e deve fazê-lo
de todo o coração.

A Lição

Esta história movimentada, contada em pormenores expressivos,


acentua o contraste entre o amor infinito e a misericórdia de Deus e o
comportamento mesquinho do homem, que tenta justificá-lo com base
na lei. Jesus usa essa parábola para dizer a Pedro algo a respeito da
grandeza do amor misericordioso de Deus para com o homem pecador. O
pecado do homem é tão grande que Deus tem que perdoá-lo
infinitamente mais que a conta de setenta vezes sete. A misericórdia de
Deus não pode ser medida. Podemos calculá-la apenas vaga e
aproximadamente, ao contar a história do servidor público que devia a
seu senhor uma soma que beirava a milhões.
116 O conservo não podia pagar, pois estava indo ao rei para quitar seu imposto anual.
Prendendo seu companheiro, o ministro das finanças ofendeu o rei, privando-o de
receber o que lhe cri devido, naquele dia. Consulte-se Derrett, Law in the
Newlestament, pp. 41-42.
117 ―A tortura era empregada regularmente, no Oriente, contra um governador desleal,

ou contra qualquer um que atrasasse os impostos, a fim de descobrir onde escondia o


dinheiro, ou para extorquir a soma de seus parentes e amigos‖. Jeremias, Parables,
212.
Embora a palavra justiça não seja encontrada na parábola, os
conceitos expressos são os de misericórdia e justiça. São conceitos
bíblicos porque ocorrem repetidamente no Velho Testamento, revelados
pelos salmistas e profetas118.

Cantarei a bondade e a justiça;


a ti, SENHOR, cantarei (Sl 101.1).

O povo judeu sabia muito bem que tinha que praticar a


misericórdia e a compaixão. Deus lhes dissera expressamente: ―Se
emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te
haverás com ele como credor que impõe juros. Se do teu próximo
tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol;
porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se
deitaria? Será, pois, que, quando alguém clamar a mim, eu o ouvirei,
porque sou misericordioso‖ (Ex 22.25-27)119. A justiça se manifestava de
diversas maneiras. Por exemplo, as exigências do Ano do Jubileu eram
impostas; durante aquele ano, os que haviam alienado suas
propriedades entravam de novo na posse delas e os escravos adquiririam
sua liberdade120. Resumindo, o judeu dos dias de Jesus sabia que
misericórdia e justiça não podem ser tratadas separadamente. Estão
interligadas.

É por esse motivo que Jesus conta a parábola do credor


incompassivo. Ele ensina que a prática da misericórdia não se coloca
apenas ocasionalmente ao lado da justiça. Jesus ensina a aplicação de
ambas, da justiça e da misericórdia. Muitas vezes, entendemos justiça
como uma norma que deve ser aplicada rigorosamente, a misericórdia
como um abandono ocasional dessa norma. Exercemos essa opção como
um ―direito‖, e, freqüentemente, somos elogiados ao mostrar
indulgência121. Reconhecemos que a justiça contém um tanto de
misericórdia, mas, no geral, sentimos que esta não deve ser mostrada a
toda hora.

No tempo do Velho Testamento, entretanto, Deus instruiu seu


povo a considerar misericórdia e justiça como normas iguais. Normas
essas que devem ser, ambas, eficientes e funcionais, pois refletem a
maneira como Deus se relaciona com o seu povo. Com o tempo, a ênfase
se alterou. Escritos do período entre os Testamentos proclamam que, no
dia do juízo, a justiça prevalecerá e a misericórdia terá fim. ―Então o
Altíssimo será visto no trono do julgamento, e haverá um fim para toda

118 Sl 103.6,8; Mq 6.8. Consulte-se F. Notscher, ―Righteousness (justice)‖ na


Encyclopedia of Biblical Theology (London: 1970), 2: 782.
119 SB, 1: 800-1.
120 O sistema do Ano do Jubileu, do Velho Testamento não funcionava muito bem. Não

por causa da lei de Deus, mas pelo egoísmo e avareza do homem. Os profetas do Velho
Testamento pregavam a justiça, baseados, constantemente na lei. Veja-se A. H. Leitch,
―Righteousness‖, em ZPEB, 5:108.
121 Linnemann, Parables, pp. 111-13; Hunter, Parables, p. 69.
piedade e paciência. Apenas o julgamento permanecerá‖ (2 Esdras 7.33,
34 NEB).

Aplicação

Em nossa sociedade temos, às vezes, enfatizada a misericórdia, em


detrimento da justiça. A preocupação exageradamente escrupulosa para
com os ―direitos‖ do criminoso tem alcançado extensão tal que os
direitos do ofendido acabam por ser completamente ignorados. As
Escrituras não ensinam que a misericórdia anula a justiça; nem
ensinam que a justiça elimina a misericórdia. As duas normas são
igualmente válidas.

Como Jesus mostrou a Pedro que ele devia perdoar o seu próximo,
vezes sem fim? Ele contou a história de um homem cujo débito era
esmagadoramente grande e que implorou piedade quando a justiça foi
aplicada. Seu senhor cancelou a dívida e mostrou infinita misericórdia.
O homem foi posto em liberdade e pôde conservar sua mulher, filhos e
tudo quanto possuía122. Estava isento de sua dívida.

Jesus não contou a história de um homem que, várias vezes, dia


após dia, vinha diante de seu senhor para implorar perdão pelos pecados
que repetidamente cometia. Em vez disso, para realçar o nosso débito
para com Deus, ele ensina a história de um homem que tinha uma
enorme dívida com o seu senhor. ―Se observares, SENHOR, iniqüidades,
quem, SENHOR, subsistirá? Contigo, porém, está o perdão, para que te
temam‖ (SI 130.3,4). A desesperança do homem se revela quando ele
está diante de Deus123. Seu pecado é esmagador porque ele transgrediu a
lei de Deus. Merece a morte. Mas ele sabe que Deus é um Deus de
misericórdia. Quando Davi tinha desobedecido a Deus, levantando o
censo de Israel e Judá, ao fazer cumprir a justiça, Deus deu a ele três
escolhas: três anos de fome, três meses de perseguição, ou três dias de
peste. Davi respondeu: ―Caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas
são as suas misericórdias...‖ (2 Sm 24.14; 1 Cr 21.13). Deus revelou a
Davi o seu pecado, deu-lhe o veredicto e mostrou misericórdia.

No segundo ato da história, Jesus mostra que o homem perdoado


deve refletir a misericórdia e a compaixão de Deus. Se Jesus não tivesse
descrito o servidor público, de joelhos, implorando misericórdia, e tivesse
contado apenas a segunda metade da história, com o homem forçando
seu companheiro a pagar-lhe a dívida, poderíamos dizer que prevaleceu

122 ―A lei judaica apenas permitia a venda de um israelita cm caso de roubo, se o ladrão
não pudesse devolver o que tinha roubado; a venda da esposa era terminantemente
proibida sob a jurisdição dos judeus; conseqüentemente, o rei e seus ‗servos‘
representam os gentios‖. Jeremias, Parables, p. 211. Ver, também, SB, 1: 798. Mas a
parábola não se refere ao povo judeu, e, portanto, a lei judaica não se aplica. Veja-se
Derrett, Law in the New Testament, p. 38.
123 R. S. Wallace, Many Things in Parables (New York: Harper and Brothers, 1955), p.

171.
a justiça mesmo que rigorosa124. Mas o homem tinha sido perdoado de
uma dívida enorme, e agora encontrava um companheiro que, devendo-
lhe uma ninharia, pedia misericórdia. Ele perdoaria?

Corrie ten Boom, conhecida oradora e autora, esteve prisioneira,


durante a II Grande Guerra, em um campo de concentração alemão,
sofrendo muito nas mãos de um dos guardas alemães. Anos mais tarde,
um dia, testificou sua alegria no Senhor, numa reunião na Alemanha do
após guerra. Depois do encontro, enquanto algumas pessoas
conversavam com ela, aquele mesmo guarda alemão aproximou-se de
Corrie e lhe pediu que o perdoasse. Num clarão de reconhecimento, ela
se lembrou da dor e da angústia sofrida na prisão, por causa daquele
guarda. Agora, ele ali estava, à sua frente, pedindo-lhe misericórdia. E
aquele que não merecia, recebeu o perdão. Triunfou a misericórdia!

O servidor público retratado na parábola não perdoaria. Aplicaria o


princípio da justiça sem misericórdia. Em vez de deixar triunfar a
misericórdia, escolheu a vitória da justiça. Esse foi seu erro. Tiago
escreve que ―o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou
de misericórdia‖ (2.13). O servo se recusou a refletir a compaixão que
seu mestre lhe mostrara. Porque não mostrou piedade por seu
companheiro, mas exigiu justiça, teve que enfrentar, uma vez mais, seu
senhor, o rei. Exigindo justiça se afastou de seu mestre e de seu
companheiro125.

No último ato desse drama, o servo incompassivo reencontra, face


a face, o seu irado senhor. O que o servo fizera a seu devedor, o senhor
faz agora a ele: a justiça é administrada sem misericórdia. O servo
lançou a si próprio na miséria, para sempre.

Deus não pode relevar que alguém se recuse a mostrar


misericórdia, pois isto contraria sua natureza, sua Palavra e seu
testemunho. Deus perde aceitando o pecador como se este não tivera
pecado jamais. Deus perdoa dívida do pecador e recomenda que não
peque mais (Sl 103.12 e Jr 31.34). Deus espera que o pecador perdoado
faça o mesmo. Ele se torna o representante de Deus quando mostra a
característica divina da graça misericordiosa.

A conclusão da parábola é expressa em palavras que nos são


familiares Quando Jesus ensinou o Pai Nosso, continuou, dizendo:
―Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai
celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens (as suas
ofensas), tão pouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas‖ (Mt
6.14,15)126.

124 Wallace, Many Things, p. 174; Linnemann, Parables, p. 111.


125 D. O. Via, Jr., The Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1967), p. 142.
126 Veja-se, também, Marcos 11.25 e Colossenses 3.13.
13. Os Trabalhadores da Vinha

Mateus 20.1-16 ―Porque o reino dos céus é semelhante a um dono de


casa que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua
vinha. E, tendo ajustado com os trabalhadores a um denário por dia,
mandou-os para a vinha. Saindo pela terceira hora, viu, na praça, outros
que estavam desocupados e disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e
vos darei o que for justo. Eles foram. Tendo saído outra vez, perto da
hora sexta e da nona, procedeu da mesma forma, e, saindo por volta da
hora undécima, encontrou outros que estavam desocupados e
perguntou-lhes: Por que estivestes aqui desocupados o dia todo?
Responderam-lhe: Porque ninguém nos contratou. Então, lhes disse ele:
Ide também vós para a vinha. Ao cair da tarde, disse o senhor da vinha
ao seu administrador: Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário,
começando pelos últimos, indo até aos primeiros. Vindo os da hora
undécima, recebeu cada um deles um denário. Ao chegarem os
primeiros, pensaram que receberiam mais; porém também estes
receberam um denário cada um. Mas, tendo-o recebido, murmuravam
contra o dono da casa, dizendo: Estes últimos trabalharam apenas uma
hora; contudo, os igualaste a nós, que suportamos a fadiga e o calor do
dia. Mas o proprietário, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te
faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu e
vai-te; pois quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura, não
me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos
porque eu sou bom? Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros
serão últimos porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

Conhecida pelo título de ―Os Trabalhadores da Vinha‖127, esta


história é uma das parábolas encontradas em Mateus, a respeito do
reino. Entretanto, esta parábola não termina com a mensagem: ―Vai, e
procede tu de igual modo‖, no reino do céu. Seu enfoque não é a relação
de trabalho e economia com o estabelecimento de um pagamento justo.
Antes, as palavras e os atos do empregador, teologicamente falando,
apontam para Deus, que dá aos homens, livremente, suas dádivas. Na
verdade, ecoa na história o verso de um dos Salmos de Davi: ―Oh! Provai,
e vede que o SENHOR é bom...‖ (Sl 34.8).

O Trabalho e os Trabalhadores

Embora a parábola não cite a época específica do ano em que os


trabalhadores são mais necessários na vinha, podemos presumir que
seja em setembro128, quando se dá a colheita da uva. Durante o mês de

127 Jeremias, em Parables, p. 136, d~ mais ênfase ao empregador que aos


trabalhadores e, conseqüentemente, fala da parábola do Bom Empregador. Veja-se,
também, Hunter, Parables, p. 70. Mánek, Frucht, p. 55, chama a parábola de
―Pagamento Igual‖.
128 A. C. Schultz, em ―Vine, Vineyard‖, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas
setembro, o período entre o levantar e o pôr-do-sol, em Israel, vai,
aproximadamente, das 6 horas da manhã até às 6 horas da tarde.
Descontando os períodos de descanso para as refeições e as orações, um
trabalhador judeu, nos dias de Jesus, considerava normal uma jornada
de dez horas de trabalho129. Em Israel, a temperatura do meio do dia é
ainda mais alta em setembro, de modo que os trabalhadores no campo
ou nas vinhas experimentavam literalmente ―o calor do dia‖.

O proprietário de uma vinha de tamanho regular resolveu colher


suas uvas, em um determinado dia. Todos os seus servos, que
trabalhavam para ele, regularmente, durante todo o ano, saíram para a
vinha às seis horas da manhã, enquanto o dono foi até à praça da cidade
próxima, ao romper da aurora. Ele precisava encontrar alguns
trabalhadores desempregados que estivessem dispostos a trabalhar por
dia, pela soma razoável de um denário130. Bem cedo, entre cinco e seis
horas da manhã, alguns homens dispostos a trabalhar já permaneciam
pela praça à espera de algum empregador que viesse oferecer-lhes
trabalho. O proprietário da vinha falou com os homens, mencionou o
pagamento diário de um denário — com o qual todos concordaram — e
levou-os para a jornada de dez horas de trabalho. Os trabalhadores,
estando desempregados, dependiam do empregado que, por acaso,
precisasse deles por um curto período de tempo. E claro que precisavam
muito mais do empregador do que este precisava deles.

Nos dias de Jesus, os trabalhadores se consideravam privilegiados


ao conseguir um salário. Providenciando trabalho, o empregador
demonstrava sua bondade. Era um ato de graça da parte do
empregador131. Passar horas ociosas na praça significava para o
trabalhador que ele e sua família teriam que contar com a caridade dos
outros. O trabalhador não tinha recursos próprios, e as dádivas dos
ricos nem sempre aconteciam. Conseqüentemente, um dia todo de
trabalho era uma bênção para o trabalhador e sua família.
Enquanto os servos e os novos contratados estão ocupados
trabalhando na vinha, o proprietário volta à praça para ver se consegue
encontrar mais alguns trabalhadores. São entre oito e nove horas, e
muitos estão ainda à toa, na praça. O empregador pergunta-lhes se
trabalhariam o resto do dia em sua vinha. Ele lhes promete um salário
justo, embora não especifique a quantia. Os trabalhadores, conhecendo

comecem a amadurecer em Julho, a colheita acontece em setembro. A. C. Schultz, em


―Vine, Vineyard‖, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas comecem a amadurecer em
Julho, a colheita acontece em setembro. Consulte-se Dalman, Arbcit und Sitte, IV:336.
DerretI, ―Workers in lhe Vineyard: A parablc of Jesus‖, Journal of Jewish Studics 25
(1974): 72, publicano, também, em Studies in lhe New Testament (Lciden: Brill, 1977),
1:56.
129 F. Gryglewicz, ―lhe Gospel of lhe Overworkcd Workers‖, CBQ 19(1957): 192. Veja-se

SB, 1:830.
130 Um denário era um pagamento justo por um dia de trabalho e suficiente para

sustenta, um trabalhador e sua família. Veja-se Mánek, Frucht, p. 56.


131 A diferença de condições de trabalho de antigamente e de hoje é surpreendente.

Veja-se Oesterley, Parables, p. 107.


a reputação do dono da vinha, confiam nele plenamente. Sabem que não
ficarão desapontados ao fim do dia.

À medida que o trabalho progride, o proprietário e seu capataz


calculam o número de horas de trabalho necessárias ainda para
terminar a tarefa antes que a noite caia. Fica evidente a necessidade de
mais trabalhadores extras. O dono da vinha sabe exatamente quando
certas uvas devem ser colhidas. Se forem deixadas na videira por mais
um ou dois dias acumularão açúcar demais. O valor de mercado das
uvas de vindima superior depende da quantidade correta de açúcar. Se o
dia da colheita cai numa sexta-feira, o fazendeiro faz tudo o que pode
para conseguir trabalhadores adicionais e completar a tarefa antes do
sábado132.

Idas à praça próxima se repetem a intervalos regulares, ao meio-


dia e às três da tarde, com sucesso variado. Ao entardecer, parece que o
projeto não estará completo até ao cair da noite, a menos que mais
trabalhadores sejam contratados. O proprietário volta à praça às cinco
horas e encontra alguns homens por ali. Pergunta por que estão na
praça, àquela hora do dia. Eles respondem que ninguém veio contratá-
los. O empregador diz: ―Ide também vós para a vinha‖. Não faz nenhuma
menção ao pagamento.

O dono da vinha sabe que é permitido aos trabalhadores consumir


quanta uva desejarem. Ele espera perder, com isso, aproximadamente
três por cento da colheita. Contratando trabalhadores ao final da tarde,
porém, não corre o risco de perder tanta uva. Ele espera que apliquem
sua energia no trabalho da colheita. ―Ide também vós para a vinha‖.

As Horas e os Pagamentos

Na parábola toda, o empregador é a figura dominante. Ele visita a


praça ao romper da aurora, contrata os trabalhadores, observa a
necessidade de trabalhadores extras, retorna, ainda, repetidas vezes à
praça, para contratar mais homens. É ele que instrui seu capataz para
pagar os trabalhadores, e ele mesmo se dirige àqueles que murmuram
contra ele. O proprietário mantém o controle da situação do começo ao
fim. De fato, ele é aquele a quem se compara o reino dos céus, na frase
introdutória133.

Várias questões surgem a respeito da administração da vinha. Por


exemplo: por que o proprietário volta à praça por, pelo menos, quatro

132 Os relógios não eram usados; o dia era dividido em horas a partir do nascer do sol,
muito embora o dia judeu comece ao pôr-do-sol. Veja-se Jeremias, Parables, p. 136, nº
21. Derrett, ―Workers in lhe Vineyard‖, p. 56.
133 A frase introdutória, entretanto, é apenas um ponto de partida. Ridderbos, Coming

of the Kingdom, p. 141. O dono da vinha é a figura central da parábola e sua palavra e
seus atos ilustram o significado do reino.
vezes a fim de contratar novos trabalhadores? O esperado seria que ele
fizesse uma estimativa cuidadosa de quantos trabalhadores seriam
necessários para cumprir a tarefa, antes que viesse a noite. Mas, não
devemos aplicar a lógica ocidental a uma história que provém da cultura
oriental. A lei da procura e da oferta foi, sem dúvida, observada. Além
disso, trabalhadores contratados mais tarde, no dia, chegavam à vinha
descansados e com energia para gastar. O empregador obtinha um bom
retorno dos trabalhadores que trabalhavam energicamente durante meio
dia ou menos.

Os trabalhadores podiam ser contratados por hora e esperavam


ser pagos imediatamente após o término de sua tarefa134. Aqueles que
permaneceram na praça durante todo o dia podiam ter voltado para casa
logo de manhã, quando ninguém os havia contratado. Em vez disso,
esperavam que alguém viesse e os contrastasse, mesmo que para apenas
uma parte do dia. Esses trabalhadores não eram vadios que passavam o
tempo em conversas vazias. Tinham família para sustentar, e por isso
esperavam ansiosos que alguém os contratasse. Até às cinco horas da
tarde, esperavam ainda, desejando que alguém precisasse de seus
serviços por apenas uma hora, ou com a esperança de combinar alguma
tarefa para o dia seguinte. A seu modo, mostravam confiança, dedicação
e necessidade.

Os trabalhadores recebiam seu pagamento no final do dia. Os


empregadores observavam as normas bíblicas de não reter o pagamento
do trabalhador diarista durante a noite (Lv 19.13) e não tirar vantagem
de um contratado por ser ele pobre e necessitado. ―No seu dia lhe darás
o seu salário, antes do pôr-do-sol; porquanto é pobre e disso depende a
sua vida; para que não clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado‖
(Dt 24.15). O proprietário da vinha ciente, dessas injunções, dá
instruções a seu capataz para que pague aos trabalhadores o seu
salário. Ele é retratado como um homem justo e de confiança. Apenas
aos trabalhadores contratados às seis horas da manhã ele havia
prometido um denário pela tarefa do dia. Aos trabalhadores empregados
às nove horas ele prometera o que fosse justo. Com os que foram
requisitados mais tarde, no dia, nada foi combinado a respeito do
pagamento. Eles foram para a vinha confiando plenamente no
proprietário, e certos de que ele lhes pagaria ao anoitecer.

O fazendeiro é um homem de palavra. Quando instrui seu capataz


para pagar aos trabalhadores, recomenda que pague primeiramente os
que foram contratados por último, e sucessivamente até chegar aos
primeiros. Que surpresa quando os que foram contratados às cinco

134A regra dos rabinos era que um homem empregado por hora, para uma tarefa, devia
receber seu salário todos os dias. Veja-se Baba Mezia III a e Nezikin I, em Babylonian
Talmud, (Boston: Bennet, n.d.), p. 633. Veja-se, também, SB, 1:832. Pagando antes os
trabalhadores contratados por último, e dando a eles um salário igual, o proprietário
evitou possíveis pechinchas, que lhe tomariam tempo considerável. Veja-se DerretI,
―Workers in the Vineyard‘, p. 63.
horas receberam um denário135! Eles estão contentes, alegres e cheios de
gratidão. Sabem que o dono da vinha é não apenas digno de confiança e
honesto, mas, também, um homem generoso. Todos os trabalhadores
contratados no decorrer do dia recebem o mesmo pagamento e testificam
a bondade e a generosidade do empregador.

Aqueles trabalhadores contratados ao amanhecer, entretanto, que


haviam suportado o calor do dia, esperam receber mais que um denário
cada um. Eles, também, desejam experimentar a generosidade do
empregador. Mas seu desejo não se cumpre. Recebem um denário, como
haviam combinado antes de começar o trabalho. Acham o acontecido
injusto; tornam claro seu descontentamento e seu desapontamento,
murmurando contra o fazendeiro. Não se dirigem a ele com bons modos.
Zangados, fazem uma série de queixas: Trabalhamos pesado durante
todo o dia, suportamos o calor e o suor, e recebemos um denário; outros
vieram às cinco da tarde, trabalharam uma hora e receberam, também,
um denário.

O empregador não se mostra ofendido. Dirige-se a um dos


trabalhadores, evidentemente o que falava pelo grupo, e o chama de
―amigo‖. A conotação é de reprovação, mas o tom é amigável136. Ao
responder ao queixoso, o fazendeiro se mostra senhor da situação.
―Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário?‖ O
trabalhador insatisfeito pode recorrer à justiça, mas não terá êxito, pois
as evidências são contra ele. Ele concordou em trabalhar o dia todo por
um denário, que lhe foi pago. Sua acusação de injustiça não passa de
um disfarce para a inveja e a avareza. O empregador não discute, não se
explica e nem se justifica. Simplesmente faz a pergunta que o outro tem
que responder afirmativamente: ―Não combinaste comigo um denário?‖
Ao fazer a pergunta, já tem incluído a resposta. ―Não me é lícito fazer o
que quero do que é meu?‖.

O ponto de discussão não é a fraude ou a decepção. Ao contrário,


ninguém é tratado com injustiça. A maior parte dos trabalhadores
experimentou a generosidade do fazendeiro. Se há alguém que sacrificou
a parte econômica pela benevolência, este é o proprietário da vinha.
Teria sido melhor para ele se tivesse pago aos trabalhadores a quantia

135 Durante o reinado do rei Agripa II, por volta de 60 A.D., os claustros do lado oriental
do templo de Jerusalém foram construídos com a ajuda de cerca de 18.000
trabalhadores. O tesoureiro do templo e seus cooperadores decidiram pagara cada
operário o salário de um dia todo, mesmo que trabalhasse apenas durante uma hora.
Veja-se Josephus, Antiquities 20:219-20; Derreti, ―Workers in the Vineyard‘, p. 63.
136 A palavra hetaire aparece três vezes no Novo Testamento: 1) na parábola dos

trabalhadores da vinha (Mt 20.13); 2) na parábola das bodas, quando o rei se dirige ao
convidado que não se apresenta vestido para as bodas (Mt 22.12); 3) no relato da prisão
de Jesus no Getsêmani, quando Jesus diz: ―Amigo, para que vieste?‖ (Mt 26.50). De
acordo com K. H. Rengstorf, TDNT II:701, o termo ―sempre denota uma relação de
obrigação mútua entre aquele que fala e o que ouve, a qual foi desprezada e
escarnecida pelo ouvinte‖.
exata merecida137. Ele é acusado por sua generosidade. ―Ou são maus os
teus olhos porque eu sou bom?‖, ele pergunta. Com essa última
pergunta, o empregador põe à mostra a falsidade dos empregados
desapontados. Ele demonstrara bondade e gentileza enquanto eles
mostraram inveja a avareza. Eles permanecem cegos à bondade do
proprietário até que a máscara que escondia seu descontentamento é
removida pela questão: ―Ou são maus os teus olhos porque eu sou
bom?‖.

Assim é o reino dos céus, diz Jesus. Porque Deus é tão bom,
triunfa o princípio da graça. No mundo, o conceito é o de que aquele que
trabalha mais recebe mais138. Isso é justo. Mas, no reino de Deus, os
princípios do mérito e da capacidade são postos de lado para que a graça
prevaleça.

Graça

Não há na parábola a intenção de ensinar economia ou negócios.


Ela não existe para ser usada como exemplo de relações humanas, na
área do trabalho e da administração. A lição que a parábola transmite é
a de que a graça vale mais que a justiça imparcial e as práticas
lucrativas de negócio. O empregador da parábola foi à praça, várias
vezes, durante o dia, e viu, atrás de cada trabalhador, uma família
necessitando de sustento. Ele sabia que uma fração de denário não seria
suficiente para as necessidades diárias de uma família. No fim do dia,
pagou aos trabalhadores que contratara no decorrer do dia, não em
relação às horas trabalhadas, mas de acordo com a necessidade de seus
dependentes. Ele era uma pessoa muito generosa.

Quando Jesus ensinou a parábola, estava diante de pessoas


treinadas na doutrina judaica do mérito. Seus contemporâneos
acreditavam que o homem deve acumular a seu crédito numerosas boas
obras, que possam ser convertidas em recompensas, para assim poder
reclamá-las diante de Deus. Essa era a doutrina das obras, no tempo de
Jesus139. O povo conhecia a graça de Deus exaltada em salmos e
orações. Não obstante, dava ênfase ao meritório valor das obras.
Ao ensinar a parábola, Jesus mostrou que Deus não trata os
homens de acordo com o princípio do mérito, da justiça ou da economia.
Deus não está interessado em lucros. Deus não trata o homem na base
do ―toma lá dá cá‖, ou ―uma boa ação merece recompensa‖. A graça de
Deus não pode, simplesmente, ser dividida em quantidades
proporcionais ao mérito acumulado pelo homem. Havia em circulação,
na época, uma moeda chamada pondion, que valia a duodécima parte de

137 C. L. Mitton, Expounding lhe Parables, VII. lhe Workers in lhe Vineyard (Mateus
20.1-6), Expt 77 (1966): 308.
138 Os cidadãos do reino dos céus devem conhecer plenamente os princípios operantes

no reino. Veja-se Wallace, Parables, p. 125.


139 Oesterley, Parables, p. 104.
um denário140. Na graça de Deus, no entanto, não circulam
porcentagens, porque ―todos nós temos recebido da sua plenitude, e
graça sobre graça‖ (Jo 1.16).

Aplicação

Deus é tão bom;


Deus é tão bom;
Deus é tão bom;
Tão bom ele é para mim.

Esta simples canção, cantada em muitas línguas, através do


mundo, expressa vividamente o sentido básico da parábola. No reino dos
céus, a bondade de Deus prevalece e se revela àqueles que, somente pela
graça, entraram no reino. O fato do fazendeiro pagar um denário àqueles
a quem dissera que receberiam o que fosse justo e também àqueles a
quem nada fora prometido, foi um ato de pura bondade. Todos os
trabalhadores receberam o mesmo pagamento, que era suficiente para o
sustento de suas famílias. Aqueles trabalhadores, que tinham
combinado trabalhar pela soma de um denário ao dia, tinham que
reconhecer que o fazendeiro era um homem justo, que honrava seus
compromissos. Justiça e bondade, exemplificadas na parábola, são
características fundamentais no reino de Deus.

O contexto da parábola diz respeito à pergunta de Pedro e à


resposta de Jesus. Pedro perguntou o que ele e os discípulos seus
companheiros receberiam por seguirem a Jesus: ―Eis que nós tudo
deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?‖ Jesus respondeu que
seus seguidores receberiam incontáveis bênçãos espirituais:

―Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na


regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua
glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as
doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas ou
irmãs, ou pai, ou mãe (ou mulher), ou filhos, ou campos, por
causa do meu nome, receberá muitas vezes mais, e herdará a
vida eterna. Porém, muitos primeiros serão últimos; e os
últimos, primeiros (Mt 19.27-30)141.

Jesus ilustra o significado da última sentença ―muitos primeiros


serão últimos; e os últimos, primeiros‖ — através da parábola dos
trabalhadores na vinha. Ele conclui a parábola com as mesmas palavras,
embora cm ordem inversa: ―Os últimos serão primeiros, e os primeiros

140T. W. Manson, lhe Sayings of Jesus (London: SCM Presa, 1950), p. 220.
141Os paralelos dos Evangelhos de Mateus e Marcos são idênticos exceto no fato de que
em Mateus a parábola dos trabalhadores na vinha é acrescentada como uma ilustração
da expressão: ―Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros‖ (Mt
19.30; 20.16; Mc 10.31). Em Locas 13.30, a expressão também ocorre, embora em
contexto inteiramente diferente.
serão últimos‖.

Dizendo isso, Jesus não tem a intenção de mostrar a Pedro e aos


outros discípulos que a posição do primeiro e do último no reino será
invertida. A parábola usa, antes, a expressão para indicar que, no reino
dos céus, a igualdade é a regra. A recompensa, igual para todos, mesmo
que o trabalho possa variar, transcende a tarefa realizada pelos
discípulos, e conseqüentemente por qualquer um que se disponha a
seguir a Jesus. O dom de Deus é a graça plena142. Sua graça é suficiente
para todos143.

Os discípulos eram os ouvintes de Jesus. Não podemos afirmar


que havia outras pessoas presentes. Os discípulos, desde crianças,
tinham aprendido a doutrina do mérito. Era necessário deixarem de lado
esse ensinamento para que pudessem apreciar inteiramente a bondade
de Deus e para que pudessem entender que seu próprio lugar no reino
era um dom da graça. Mais que isso: no decorrer do tempo, receberiam,
na igreja, com agrado, os gentios. Pedro, por exemplo, seria enviado à
casa de Cornélio, o centurião romano, para pregar o evangelho, batizar
os que criam, e para louvar a Deus por ter concedido, também aos
gentios, ―o arrependimento para vida‖ (At 11.18). Os gentios receberiam
a mesma dádiva que Deus havia dado aos judeus que acreditaram em
Jesus. Paulo chama isto de mistério, e conclui que ―os gentios são co-
herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em
Cristo Jesus por meio do evangelho‖ (Ef 3.6).

Quem, então, são os murmuradores? Embora a parábola não deva


ser interpretada alegoricamente144, a questão referente aos
murmuradores é válida. Eles podem ser comparados ao irmão mais
velho da parábola do filho pródigo. Juntos, refletem a atitude de alguns
fariseus que, por causa de seu zelo na observação da lei de Deus,
contavam ter um lugar privilegiado no reino de Deus. Os fariseus
esperavam que Deus os recompensasse por suas obras e se recusasse a
abençoar os pecadores indignos. Jesus mostrou-lhes (presumindo-se

142 A. H. McNeile, The Gospel Accordíng to St. Matthew (London: McMillan and Co.,
1915), p. 285.
143 As versões bíblicas atribuem Mateus 20.16 a Jesus. O texto não é parte da

observação feita pelo dono da vinha, mas é uma conclusão repetida por Jesus como
seqüência de Mateus 19.30. O NEB, entretanto, não apresenta o versículo como
citação, e por isso se conclui que ele é o fecho dado por Mateus à parábola. Jeremias,
em Parables, p. 36, chega a sugerir que ―deixemos de lado o versículo 16‖. Por outro
lado, Morison, em SÉ. Matthew, p. 356, e Derrett, em ―Workers in lhe Vineyard‖, p. 51,
sustentam que as palavras de Mateus 20.16 são a aplicação da parábola feita por
Jesus mesmo. Falta clareza ao argumento de que Jesus não proferiu as palavras do
versículo 16. Ele não é convincente.
144 Os pais da igreja primitiva se entregavam a interpretações fantasiosas. Irineu, por

exemplo, interpretou os cinco períodos de trabalho, durante os quais os trabalhadores


foram contratados, como cinco períodos da história, começando com Adão. O período
das nove horas ao meio-dia seria aquele de Noé a Abraão; o das doze às três incluía o
período de Abraão a Moisés; o das três às cinco significava o tempo entre Moisés e
Cristo, e a última hora aponta para o período entre a ascensão e a volta do Senhor.
que estivessem ali) por intermédio da parábola, que Deus é um Deus de
justiça que honra sua Palavra, mas que oferece, também, suas
misericórdias aos que não as merecem, mas que, apesar disso, são vasos
de sua graça145.

A parábola ensina que quando o homem chega diante de Deus, ele


não recebe uma porção cuidadosamente calculada da graça divina.
Deus, antes, lhe concede livremente as dádivas do perdão, da
reconciliação, da paz, da alegria, da felicidade e da segurança. ―Segundo
a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus...‖ (Fp 4.19) todas
as suas necessidades. O cristão deve se alegrar com os que se convertem
e passam a fazer parte da igreja de Jesus Cristo. Não deve haver
ceticismo. Mas, a história ensina que esse ceticismo tem existido
repetidamente. Quando George Whitefield e John e Charles Wesley
levaram o evangelho às classes menos favorecidas da sociedade do
século dezoito, foram criticados e provocaram a ira dos cristãos
convencionais146. William Booth, que teve compaixão dos moradores dos
bairros pobres de Londres e que deu a eles ―sopa, sabão e salvação‖, foi
condenado pelos presunçosos membros da igreja de sua época.

Esta parábola nunca será aceita por aqueles que querem impor à
salvação regras e estipulações feitas pelos homens. No reino dos céus,
como as Escrituras ensinam, não existe a burocracia humana. A graça
de Deus é plena e livre para todo aquele que venha a ele pela fé. E todos
os que são vasos de sua graça proclamam com o salmista:

Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom,


e sua misericórdia dura para sempre (Sl 107.1).

145 Mitton, ―Expounding the Parables‖, p. 310.


146 Hunter, Parables, p. 72.
14. Os Dois Filhos

Mateus 21.28-32 ―E que vos parece? Um homem tinha dois filhos.


Chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai hoje trabalhar na vinha. Ele
respondeu: Sim, senhor; porém não foi. Dirigindo-se ao segundo, disse-
lhe a mesma coisa. Mas este respondeu: Não quero; depois,
arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: O
segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e
meretrizes vos precedem no reino de Deus. Porque João veio a vós
outros no caminho da justiça, e não acreditastes nele; ao passo que
publicanos e meretrizes creram. Vós, porém, mesmo vendo isto, não vos
arrependestes, afinal, para acreditardes nele‖.

Somente no Evangelho de Mateus encontramos a parábola a


respeito dos dois filhos. Ela é marcada pela simplicidade e por ser
resumida nas conhecidas palavras de Tiago: ―Tornai-vos, pois,
praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos‖ (1.22). Ela ensina que a pessoa que se recusa a fazer o que lhe
é pedido, mas que, mais tarde muda de idéia e faz a tarefa, é melhor
que aquela que promete cuidar de suas obrigações, mas nunca as
realiza.

O Evangelho de Mateus coloca a parábola imediatamente após o


incidente ocorrido quando os principais sacerdotes e os anciãos do povo
questionara a autoridade de Jesus. Jesus, por sua vez, lhes propôs
outra questão perguntando-lhes a respeito do batismo de João, se era
dos céus ou do homem. E a resposta deles foi: ―Não sabemos‖. A
resposta de Jesus à indagação a respeito de sua autoridade foi: ―Nem eu
vos digo com que autoridade faço estas coisas‖.

Enquanto ensinava no templo, e com os principais sacerdotes e os


anciãos a escutá-lo, Jesus continuou o curso de seu pensamento com
uma história sobre um pai e seus dois filhos. O pai possuía uma vinha,
que era a fonte de recursos da família. Por isso, o trabalho na vinha era
comunitário e realizado por todos os membros da família. O pai dirigiu-
se ao primeiro filho e disse-lhe pra ir trabalhar na vinha, naquele dia
em particular147. É irrelevante se era o começo da primavera quando as
vinhas eram podadas, ou verão quando as ervas daninhas eram
arrancadas, ou outono quando as uvas eram colhidas. É o pedido feito e
o atendimento dado a ele que são essenciais. ―Filho, vai hoje trabalhar
na vinha‖. O filho sem se preocupar em se mostrar cortês para com o

147J.M. Derrett, ―The Parables of the Two Sons‖, Studia Theologica 25 (1971); 109-16,
também publicada em Studies in the New Testament, 1:76-84, segue Jülicher,
Gleichnisreden, 2:367. Derrett destaca que o primeiro filho era o mais velho e deveria
ser o sucessor do pai. ―Um filho mais velho pode muito bem ter mais interesse na
forma que na substância‖. (Studies p. 81).
pai, respondeu apenas: ―Não quero‖148. Ele errou em não se dirigir
respeitosamente ao pai, chamando-o de senhor, e nem procurou uma
desculpa para sua má vontade.
O pai teve que se dirigir ao segundo filho, com o mesmo pedido, a
fim de ter o trabalho feito na vinha149. Esse filho, na polida maneira
oriental, dirigiu-se ao pai corretamente, e disse: ―Sim, senhor‖.
Entretanto, não foi. Prometeu ao pai um dia todo de trabalho. Era uma
promessa que não pretendia cumprir.

Interpretação

Jesus colocou para os que o ouviam a inevitável questão: ―Qual


dos dois fez a vontade do pai?‖. Os principais sacerdotes e os anciãos do
povo não podia mais se esconder atrás de uma ignorância fingida.
Foram forçados a responder, mesmo compreendendo que a parábola
fala da hierarquia eclesiástica de Israel. Eles responderam: o filho que o
primeiro se recusou, mas que, mais tarde, mudando de idéia, fez a
vontade do pai.

Jesus esclarece o que a história sobre o pai e seus dois filhos


significa realmente, no contexto de sua época. O primeiro filho, diz
Jesus, é a personificação dos coletores de impostos e das meretrizes que
viviam uma vida de pecado e que se recusavam a fazer a vontade de
Deus. Mas, quando veio João Batista ―... pregando batismo de
arrependimento para a remissão de pecados‖ (Mc 1.4), os
marginalizados pela moral e pela sociedade se arrependeram, creram, e
entraram no reino de Deus. Assim fizeram a vontade do pai.

O segundo filho retrata a atitude dos líderes religiosos dos dias de


Jesus. São aqueles que fazem tudo para serem vistos pelos homens:
―Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem vistos dos
homens; pois nos banquetes e as primeiras cadeiras nas sinagogas, as
saudações nas praças e o serem chamados mestres pelos homens‖ (Mt

148
A evidência textual, em relação à sua leitura varia. Tecnicamente há três variações.
(a) De acordo com o Códice Sinaítico e outros manuscritos, o primeiro filho disse não,
mas se arrependeu; o segundo disse sim, mas não foi. Essa é a leitura em traduções
tais como AV, RSV e NIV. (b) De acordo com o Códice do Vaticano e outros
manuscritos, o primeiro filho diz sim, mas não vai; o segundo diz não, mas se
arrepende. Quem faz a vontade do Pai? A resposta varia: ―o último dos dois‖, ―o
último‖, ―o segundo‖. Traduções incluindo NASB, NAB e NEB, seguem o Códice do
Vaticano. (c) O assim chamado texto Ocidental segue a ordem do Códice Sinaítico,
com exceção da resposta à questão: ―Qual dos dois fez a vontade do Pai?‖, que é ―o
último‖. Isto significa que o filho que disse sim, mas não foi, cumpriu o pedido do pai.
Absurdo. A escolha fica, portanto, entre (a) ou (b). Veja J. R. Michaels, ―The Parable of
the Regretful Son‖, HTR 61 (1968): 15-26. A ordem não afeta o sentido da parábola.
Consulte-se Metzger, Textual Commentary, pp. 55-56.
149 Metzger, em Textual Commentary, p. 56, indica que a comissão do Novo

Testamento Grego das Sociedades Bíblicas Unidas optou pela ordem seguida pelo
Códice Sinaítico. Para substanciar essa escolha Metzger escreve: ―Poderíamos
argumentar que se o primeiro filho tivesse obedecido, não havia razão para chamar o
segundo‖.
23.5-7). São aqueles que não praticam o que pregam. João Batista veio
a eles, mostrando-lhes o caminho da justiça. Ouviram suas palavras,
mas não creram nelas. Simplesmente o ignoraram. Viram, no entanto,
que os publicanos aceitaram a mensagem de João e foram batizados.
Não obstante, rejeitaram o propósito de Deus para si mesmos,
recusando-se a serem batizados por João (Lc 7.30).

A aplicação da parábola é dinâmica. Os coletores de impostos e as


meretrizes tinham-se recusado a obedecer a vontade de Deus. Mas,
quando ouviram a mensagem de arrependimento voltaram-se para
Deus, em obediência. Eram como o filho que disse: ―Não quero‖, mas
que, mais tarde, mudou de idéia e foi trabalhar na vinha. Eles eram
como Zaqueu que disse a Jesus: ―Senhor, resolvo dar aos pobres a
metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém,
restituo quatro vezes mais‖. (Lc 19.8).

Os líderes religiosos que, presumivelmente, eram peritos na lei de


Deus, mostravam uma aquiescência apenas aparente. Interiormente, no
entanto, se recusavam a aceitar a Palavra de Deus, viesse ela pela
palavra escrita dos profetas, ou pela palavra falada de João Batista e de
Jesus. Eram como o filho que disse a seu pai: ―Sim, senhor‖, porém não
foi.

Embora essa parábola seja relativamente curta e sua mensagem


seja simples, a lição que ensina não é, de modo algum, trivial. Ela
contém o ensino do Velho e Novo Testamento: obedecer a Palavra de
Deus, escutar a sua voz e fazer a sua vontade. Como disse Samuel a
Saul: ―Eis que o obedecer é melhor que a gordura dos carneiros‖ (1 Sm
15.22), do mesmo modo Jesus instrui seus discípulos: ―Vós sois meus
amigos, se fazeis o que eu vos mando‖ (Jo 15.14). O próprio Jesus fala
abertamente de sua obediência a Deus, o Pai, dizendo: ―Porque eu desci
do céu, não para fazer a minha própria vontade; e sim, a vontade
daquele que me enviou. E a vontade de quem me enviou é esta: Que
nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o
ressuscitarei no último dia‖ (Jo 6.38,39).
15. Os Lavradores Maus

Mateus 21.33-46 ―Atentai noutra parábola. Havia um homem, dono de


casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe, construiu nela
um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores. Depois,
se ausentou do país. Ao tempo da colheita, enviou os seus servos aos
lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam. E os lavradores,
agarrando os servos, espancaram a um, mataram a outro e a outro
apedrejaram. Enviou ainda outros servos em maior número; e trataram-
nos da mesma sorte. E, por último, enviou-lhes o seu próprio filho,
dizendo: A meu filho respeitarão. Mas os lavradores, vendo o filho,
disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e
apoderemo-nos da sua herança. E, agarrando-o, lançaram-no fora da
vinha e o mataram. Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará
àqueles lavradores? Responderam-lhe: Fará perecer horrivelmente a
estes malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe
remetam os frutos nos seus devidos tempos. Perguntou-lhes Jesus:
Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram,
essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é
maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, vos digo que o reino de Deus
vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os
respectivos frutos. Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços;
e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó. Os principais
sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas, entenderam que era
a respeito deles que Jesus falava; e, conquanto buscassem prendê-lo,
temeram as multidões, porque estas o consideravam como profeta‖.

Marcos 12.1-12 ―Depois, entrou Jesus a falar-lhes por parábola: Um


homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um lagar,
edificou uma torre, arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se do país.
No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para que
recebesse deles dos frutos da vinha; eles, porém, o agarraram,
espancaram e o despacharam vazio. De novo, lhes enviou outro servo, e
eles o esbordoaram na cabeça e o insultaram. Ainda outro lhes
mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes enviou, dos quais
espancaram uns e mataram outros. Restava-lhe ainda um, seu filho
amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo: Respeitarão a meu filho.
Mas os tais lavradores disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos,
matemo-lo, e a herança será nossa. E, agarrando-o, mataram-no e o
atiraram para fora da vinha. Que fará, pois, o dono da vinha? Virá,
exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros. Ainda não
lestes esta Escritura: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio
a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor, e é
maravilhoso aos nossos olhos? E procuravam prendê-lo, mas temiam o
povo; porque compreenderam que contra eles proferira esta parábola.
Então, desistindo, retiraram-se‖.

Lucas 20.9-19 ―A seguir, passou Jesus a proferir ao povo esta parábola:


Certo homem plantou uma vinha, arrendou-a a lavradores e ausentou-
se do país por prazo considerável. No devido tempo, mandou um servo
aos lavradores para que lhe dessem do fruto da vinha; os lavradores,
porém, depois de o espancarem, o despacharam vazio. Em vista disso,
enviou-lhes outro servo; mas eles também a este espancaram e, depois
de o ultrajarem, o despacharam vazio. Mandou ainda um terceiro;
também a este, depois de o ferirem, expulsaram. Então, disse o dono da
vinha: Que farei? Enviarei o meu filho amado; talvez o respeitem.
Vendo-o, porém, os lavradores, arrazoavam entre si, dizendo: Este é o
herdeiro; matemo-lo, para que a herança venha a ser nossa. E,
lançando-o fora da vinha, o mataram. Que lhes fará, pois, o dono da
vinha? Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros.
Ao ouvirem isto, disseram: Tal não aconteça! Mas Jesus, fitando-os,
disse: Que quer dizer, pois, o que está escrito: A pedra que os
construtores rejeitaram, esta veio a ser a principal pedra, angular? Todo
o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela
cair ficará reduzido a pó. Naquela mesma hora, os escribas e os
principais sacerdotes procuravam lançar-lhe as mãos, pois perceberam
que, em referência a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo‖.

De acordo com Mateus, marcos e Lucas, Jesus contou a parábola


dos lavradores maus, durante a última semana de sua vida na terra.
Entre um evangelista e outro pode haver variações em pequenos
detalhes, mas todos transmitem, com fidelidade, o ensino de Jesus. O
Evangelho de Tomé, apócrifo, também apresenta a parábola150. A
história deve ser fiel ao fato e reproduz a história eclesiástica de Israel.
As pessoas que cercavam Jesus entenderam a história, porque
responderam à parábola, dizendo: ―Tal não aconteça!‖ (Lc 20.16). Além
disso, os fariseus, os principais sacerdotes e os mestres da lei sabiam
que essa parábola era endereçada a eles.

A História

Um dono de terras tinha um terreno e decidiu transforma-lo num


vinhedo. Depois de ter plantado os tenros brotos da uva, ele os protegeu
dos animais selvagens, tais como as raposas e os javalis (Ct 2.15; Sl
8.13) plantando uma sebe ao redor da vinha. Também equipou a vinha
com um lagar e uma torre. A torre era usada durante a colheita na
vigilância contra os ladrões, e podia, também, servir de morada ao
lavrador.

150
Evangelho de Tomé, Citação 65: ―Ele disse: ‗Um homem bom tinha uma vinha.
Entregou-a a arrendatários para que a cultivassem e ele pudesse receber deles os seus
frutos. Ele enviou seu servo para que os arrendatários lhe entregassem o fruto da
vinha. Eles o agarraram (e) espancaram; um pouco mais e o teriam matado. O servo
foi (e) contou tudo a seu senhor. Seu senhor disse: Talvez ele não os conhecesse.
Enviou outro servo; os lavradores maus, também, o espancaram. Então, o dono da
vinha, agarraram-no (e) o mataram. Quem tem ouvido, ouça‘. De modo interessante, o
Evangelho de Tomé. Citação 66, continua. ―Jesus disse: Mostrai-me a pedra que os
construtores rejeitaram. Ela é a pedra angular‖.
O projeto todo era uma aventura financeira para o fazendeiro. Ele
plantou novas videiras num solo ainda não testado. Arrendou a vinha a
lavradores, mas teria que esperar durante quatro anos até que as
videiras começassem a produzir. Durante esse período, ele teria que
sustentar os lavradores, comprar adubo e suprimentos para a vinha, e
esperar que o quinto ano lhe trouxesse algum lucro151. Um novo
vinhedo não era, portanto, um empreendimento que trouxesse retorno
financeiro imediato; era, antes, uma promessa de resultados
permanentes que beneficiariam sucessivas gerações.

O fazendeiro saiu para viajar durante um longo período. Na sua


ausência, os lavradores cultivariam a vinha, podariam os galhos e
cuidariam de plantações de vegetais entre as videiras durante os
primeiros anos. Os arrendatários trabalhavam como meeiros e tinham
direito a uma parte do que fosse produzido. O lucro restante pertencia
ao proprietário. Os lavradores tinham feito um contrato com o dono da
terra para cultivar a vinha. Durante os quatro primeiros anos seriam
sustentados pelo proprietário. Passados esses anos de trabalho árduo, a
vinha poderia se tornar uma fonte de lucro para o dono.

Quando se aproximou a época da colheita, no quinto ano, o


fazendeiro enviou seu servo152 para receber o lucro da vindima153. Os
contatos entre o proprietário e os arrendatários devem ter sido mínimos,
durante os primeiros quatro anos. Essa falta de aproximação pode ter
resultado em alienação e mesmo em atitudes hostis da parte dos
lavradores, como descreve a parábola. A razão exata da amarga
animosidade não é exposta, mas fica evidente no relato154. O servo foi
agarrado, espancado e mandado de volta a seu senhor. Voltou com as
marcas físicas de um corpo ferido. O fato serviu ao proprietário como
mensagem de que os arrendatários não tinham a intenção de pagar o
lucro exigido, proveniente da colheita das uvas eles queriam guardar,

151
Derrett, Law in the New Testament, p. 290.
152
Onde Marcos e Lucas, vem como o Evangelho de Tomé falam de um servo, Mateus
usa o plural. De acordo com Mateus, numerosos servos são enviados, e são
espancados, apedrejados e mortos. Essa pode ser uma tentativa deliberada de Mateus
de ligar a parábola ensinada por Jesus à história eclesiástica de Israel. Um toque de
alegria está presente, embora não em relação à pessoa do filho: J. A. T. Robinson. ―The
Parable of the Wicked Husbandman: A Test of Synoptic Relationships‖, NTS 21 (1975);
451. 1 Rs 18.13; 2 Cr 24.21; Mt 23.37; Lc 13.34; At 7:52; 1 Ts 2.15; e Hb 11.37,
tornam evidente que alguns profetas foram mortos e apedrejados até a morte.
153
Porque o texto afirma explicitamente que o servo foi receber ―dos frutos da vinha‖
(Mc 12.2; Lc 20.10), presumindo que o proprietário enviou o servo quando as uvas
estavam prontas para serem colhidas.
154
Alguns estudiosos vêem um paralelo entre a dominação estrangeira de vastos
territórios da Galiléia, antes e durante o tempo do ministério de Jesus e o proprietário
retratado na parábola. Dodd, Parables p. 125; Jeremias, Parable, p. 74; M. Hengel,
―Das Gleichnis von den Weingartner Mc 12.1-12 ins Lichte der Zenonpapyri und der
rabbinische Gleichnisse‖, ZNM 59(1968); 11-25; J. E. e R. R. Newell, ―The Parable of
the Wicked Tenantes‖, NovT 14 (1972): 226-37. No entanto, a parábola não indica de
modo algum que os arrendatários fossem oprimidos por um dono de terras
estrangeiro. Ao contrário, os lavradores e não o proprietário são chamados de
malvados (kakous), Mt 21.41. Consulte-se SB, 1:871.
para si mesmos, o lucro total, talvez como recompensa pelos anos de
labuta e cuidado dispensados à vinha, antes que viesse a colheita. Ao
mandarem o servo de volta, espancado, e de mãos vazias, os
arrendatários não deixaram dúvidas quanto à sua intenção de reter o
total do lucro da safra.

Porque o fruto da vinha tinha que ser vendido, o lucro exigido


pelo fazendeiro poderia ser pago em épocas variadas, durante o ano. O
proprietário, portanto, mandou um outro servo aos seus arrendatários,
com o mesmo pedido. Ele, sem dúvida, se referiu ao contrato assinado
entre os arrendatários e o proprietário, que expunha claramente os
termos. Mas eles o receberam do mesmo modo como tinham recebido
seu predecessor. Bateram-lhe na cabeça, trataram-no insultuosamente
e, também, o enviaram de volta com as mãos vazias (Lc 20.11). Uma vez
mais se mostraram abertamente desafiadores: não queriam partilhar
com ninguém o lucro obtido na colheita. O proprietário mostrou
elogiável tolerância. Ele não opôs força à força, nem declarou nulo ou
cancelado o contrato, como tinham feito os arrendatários. Depois de
algum tempo, talvez na safra seguinte, o proprietário enviou um terceiro
servo155. Outra vez, os lavradores se recusaram a ceder o pedido do
proprietário; foram violentos, ferindo (Lc 20.12 ou matando o servo(Mc
12.5)). Mas, enquanto o dono continuava enviando os servos156, os
arrendatários, ferindo-os e matando-os, tornavam conhecido o fato de
que a vinha permanecia em suas mãos. Eles a tinham feito produtiva;
portanto, argumentavam, tinham direito ao que fosse produzido pela
vinha e, mesmo, à própria vinha.

O proprietário entendeu que os arrendatários estavam agindo


como donos legítimos da propriedade que era sua. Como último recurso
ele enviou seu filho, dizendo a si mesmo que os lavradores
reconheceriam sua autoridade, quando se confrontasse com seu filho.
―A meu filho respeitarão‖, disse. Os simples servos não impunham o
mesmo respeito que seria devido a um filho que fosse enviado157.
Enviaria seu único filho, o herdeiro da vinha.

Os arrendatários, no entanto, não estavam dispostos a abrir mão


da vinha. Quando viram o filho se aproximando, devem ter pensado que
o dono tinha morrido e que seu filho tinha tomado seu lugar. Se esse
fosse o caso, pouco restaria no caminho da posse total da vinha, se o
filho fosse afastado. Os arrendatários, então, poderiam proclamar que
tinham cuidado da vinha fielmente, que não haviam pago aluguel algum
durante vários anos, e que o legítimo proprietário das terras tinha
155
Derrett, em Law in the New Testament, pp. 289-99, entende que o segundo servo
procurou os arrendatários no final da segunda ceifa, e o terceiro, na safra seguinte.
Assim, por três anos consecutivos os lavradores guardaram para si o lucro da vinha.
156
Apenas Marcos relata que após ter enviado sucessivamente três servos, o
proprietário ainda enviou outros. Mateus diz que dois grupos de servos, em duas
diferentes ocasiões, foram enviados. Lucas fala de três servos que sucessiva e
individualmente procuravam os lavradores.
157
Dodd, Parables, p. 125.
morrido158. No tempo legal, os lavradores estariam habilitados à posse
exclusiva da propriedade. Os juízes locais mui provavelmente
favoreciam os lavradores e dariam como legal a operação.

Os arrendatários decidiram matar o herdeiro e tomar para si a


herança. Eles o receberam na vinha, mas, depois, para não macular a
vinha com sangue, eles o mataram fora159. Eles o abandonaram ali,
presumindo que os servos que o acompanhavam cuidaram do funeral.

A paciência do dono das terras se esgotou. Os arrendatários


tinham cometido erro desastroso ao matar seu filho. Medidas foram
tomadas para arranca-los da terra e leva-los à justiça, e o proprietário,
reclamando plena posse da propriedade, escolheu outros lavradores
para tomar conta da vinha. Esses eram servos que lhe dariam a parte
estipulada da colheita, no tempo devido.

O significado

A história contada por Jesus foi prontamente aceita pelos que o


ouviam. Ela retratava a situação real de um fazendeiro que, ausente de
tempos em tempos, enviava um servo para recolher a parte justa do
lucro anual da vinha. Os que o ouviam conheciam as circunstâncias
descritas por Jesus na parábola. Podiam imaginar o final da história e
dar sugestões de como se executaria a justiça.

Jesus se dirigia aos principais sacerdotes, fariseus e mestres da


lei. Eles devem ter reconhecido, rapidamente, a citação da profecia de
Isaías.

Agora, cantarei ao meu amado


o cântico do meu amado a respeito da sua vinha.
O meu amado teve uma vinha
num outeiro fertilíssimo.
Sachou-a, limpou-a das pedras
e a plantou de vides escolhidas;
edificou no meio dela uma torre
e também abriu um lagar.
Ele esperava que desse uvas boas,
mas deu uvas bravas. (Is 5.1-2)

158
Derrett, Law in the New Testament, pp. 300-4. Os arrendatários podiam mesmo
citar Dt 20.6, para a própria justificação: ―Qual o homem que plantou uma vinha e
ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e
outrem a desfrute...‖.
159
Ambos Mateus e Lucas afirmam que os lavradores atiraram o filho para fora da
vinha e, então, o mataram. Marcos inverte a ordem, dizendo que primeiro o mataram
e, então, o lançaram fora da vinha.
O povo judeu sabia esse cântico de cor; eles o haviam aprendido
no culto da sinagoga onde era cantado de tempos em tempos160.
Sabiam, também, o seu final:

Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos


é a casa de Israel,
e os homens de Judá
são a planta dileta do SENHOR;
este desejou que exercessem juízo,
e eis aí quebrantamento da lei;
justiça, e eis aí clamor. (Is 5.7).

Os líderes religiosos, especialmente, sabiam que a parábola se


aplicava a eles. Sabiam que Jesus estava se referindo aos profetas que
Deus enviara a Israel. Alguns desses profetas foram mortos por causa
da mensagem que traziam. Um deles, Zacarias, foi assassinado no pátio
do templo, entre o santuário e o altar (2 Cr 24.20,21; Mt 23.25). Com
habilidade, Jesus ensinou a seus ouvintes o significado dessas
passagens tão conhecidas do Velho Testamento. Quando Jesus falou a
respeito do filho do dono da vinha que, tendo sido enviado à vinha, foi
assassinado pelos arrendatários, falou, profeticamente, de sua própria
morte iminente161.

Jesus perguntou aos que o ouviam: ―Quando, pois, vier o senhor


da vinha, que fará àqueles lavradores?‖ Ele usou palavras que trazem à
memória aquelas do Cântico da Vinha (Is 5.4-5). Suas palavras eram
dirigidas contra os líderes do povo. Eles tinham rejeitado a mensagem
de João Batista, e tinham questionado a autoridade de Jesus, a ponto
de o desafiarem abertamente. Na verdade, rejeitaram o último
mensageiro de Deus162.

A resposta à pergunta de Jesus foi que um castigo imediato


deveria ser aplicado aos lavradores assassinados. Deveriam ser mortos
e a vinha arrendada a outros163.

Falando diretamente à multidão, Jesus fez referência ao Salmo


118, uma passagem das Escrituras bastante conhecida por todos
aqueles fiéis que tinham vindo à Jerusalém, na época da Páscoa. Esse
salmo seria entoado num dia determinado, durante a festa.
Participavam do coral dos cânticos, os sacerdotes, os peregrinos e os

160 E. Werner, The Secret Bridge (New York: Columbia University Press, 1959), p. 140.
161 Dodd, Parables, p. 131: Hengel, ―Gleichnis‖, p. 37. Jeremias, em Parables, pp. 72-
73, observa que, embora Jesus falasse profeticamente de si mesmo, ―o significado
messiânico do filho podia não ser admitido pela maior parte dos seus ouvintes‖.
162
Lane, Mark, p. 419.
163
Não fica claro, no texto, que seriam os outros arrendatário. Jeremias, Parables, p.
76, com base em uma das bem-aventuranças: ―Bem-aventurados os mansos, porque
herdarão a terra‖. (Mt 5.5), afirma que os ―outros‖ são os pobres. A lógica dessa
afirmativa não é muito convincente. Um argumento a ser usado talvez seja o uso da
palavra ―povo‖ (=ethnos), em Mt 21.43, com referência aos gentios.
prosélitos que cantavam as palavras do salmo diante dos portões do
templo. Um coro dos peregrinos cantava a parte do salmo que fala da
pedra, a pedra angular (Sl 118.22-25)164. Referindo-se a esse salmo
familiar, e especialmente aos versículos a respeito da pedra rejeitada,
Jesus perguntou aos ouvintes se nunca tinham lido nas Escrituras:

A pedra que os construtores rejeitaram,


essa veio a ser a principal pedra,
angular; isto procede do SENHOR
e é maravilhoso aos nossos olhos.
(Sl 118.22-23)165.

Esta questão de retórica proposta por Jesus tinha que ser


respondida afirmativamente. Jesus transferiu a figura dos arrendatários
que rejeitaram os servos para a dos construtores que rejeitaram a
pedra. Os lavradores maus, matando o filho, destruíram a si mesmos; e
os construtores, deixando de lado a pedra que se tornou a pedra
angular, fizeram-se de tolos. A pedra, pela vontade do Senhor, veio a ser
a pedra principal, a pedra angular do portal do edifício.
Originariamente, a pedra pode ter sido referência a um dos blocos da
construção do templo de Salomão, que veio a ser a principal pedra,
pedra de esquina do edifício166.

Jesus deixou implícito que ele era a personificação do filho do


proprietário da vinha, bem como a pedra rejeitada pelos construtores.
Mais que isso, os doutores da lei e os outros líderes religiosos eram os
arrendatários da vinha e os construtores que haviam posto de lado a
pedra principal. Assim, Jesus falou de sua morte e exaltação iminentes.

Teologia

A parábola, como registrada pelos evangelistas, tem um foco


cristológico definido. O assassinato do filho traz a inevitável
transferência do arrendamento para outros lavradores, e a rejeição da
pedra resulta em sua maravilhosa exaltação. A parábola ensina,
portanto, as imagens paralelas da rejeição do filho e da rejeição da
pedra167. Ambas representam o Filho de Deus.

Ao mencionar dois grupos separados de servos enviados pelo


dono de terras para receber sua parte no produto da vinha, Mateus,

164
A. Weiser, The Psalms (Philadelphia: Westminster Press, 1962), p. 724.
165
Embora a citação (118.22) seja repetida em At 4.11 e 1 Pe 2.7, não há razão para se
aceitar que a igreja tenha acrescentado estas palavras à parábola dos lavradores
maus.
166
Jeremias, TDNT, 1:792. A pedra rejeitada se referia a Abraão, Davi ou ao Messias,
de acordo com os rabinos. Os construtores eram descritos como os mestres da Lei.
SBI: 875-76.
167
M. Black, em ―The Christological Use of the Old Testament in the New Testament‖
NTS 18 (1971-72): 13, chama a atenção para a interpretação messiânica da pedra e,
conseqüentemente, fala da pedra e do filho rejeitados.
aparentemente, faz alusão às duas divisões de profetas – os antigos e os
últimos profetas. Ele não adianta qualquer pormenor a respeito do filho
do dono da vinha. Marcos e Lucas, no entanto, o chamam de ―filho
amado‖, que traz a conotação de único filho168. A expressão ―filho
amado‖ foi usada, também, por ocasião do batismo de Jesus e em sua
transfiguração. Marcos escreve que o dono de terras enviou seu filho
por último. A palavra último ressoa claramente nos primeiros versículos
da Epístola aos Hebreus: ―Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes,
e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos
falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo
qual também fez o universo‖. (Hb 1.1,2).

Além disso, enquanto Marcos diz que o filho foi morto dentro da
vinha, Mateus e Lucas escrevem que os lavradores maus apanharam o
filho, atiraram-no fora da vinha e, então, o mataram. Fica implícito que
os arrendatários deixaram o corpo ali, de modo que os que por lá
estivessem, o enterrassem. Uma vez mais, o leitor ouve o eco na
Epístola aos Hebreus: ―Por isso foi que também Jesus, para santificar o
povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta” (Hb 13.12).
Se a parábola terminasse com a morte do filho e com a ida do
proprietário à vinha, o sacrifício da vida do filho teria sido
desnecessária. O proprietário poderia ter ido até à vinha imediatamente
após seus servos terem sido maltratados. A exaltação do filho não teria
sido retratada, então, pela parábola da vinha. Mas, através da figura da
rejeição, Jesus liga o Salmo 118 à parábola e a citação do Salmo revela
que a pedra rejeitada é destinado o lugar mais importante entre todas
as outras pedras da construção. O Senhor exaltou a pedra principal.

Jesus, deliberadamente, entrelaçou a figura da vinha e da pedra,


dizendo: ―Portanto vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será
entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos. Todo o que
cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair
ficará reduzido a pó‖ (Mt 21.43,44)169. O reino de Deus se torna a vinha
onde outro povo produzirá frutos. Ao mesmo tempo, a pedra reduz a
pedaços e esmaga oponentes do Filho. A ―vinha‖ e a ―pedra angular‖ são
metáforas prontamente entendida pelos ouvintes teologicamente
treinados, os líderes religiosos. Da profecia de Isaías eles sabiam que ―a
vinha do Senhor dos Exércitos... será pedra de tropeço e rocha de
ofensa às duas casas de Israel. Muitos dentre eles tropeçarão... cairão,
serão quebrantados...‖. (Is 8.13-15)170.

168
Gn 22.2; Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22; 2 Pe 1.17.
169
A evidência textual parece se tornar mais forte pela inclusão de Mt 21.44 que pela
sua omissão. É possível, naturalmente, olhar o versículo como sendo uma
interpolação de Lc 20.18. Não obstante, ―a antigüidade da leitura e sua importância
na tradição do texto‖ devem ser vistas como fatores decisivos para sua conservação.
Metzger, em A Textual Commentary, p. 58, não obstante, sugere que o versículo pode
ser um acréscimo ao texto.
170
Outras referências à pedra são encontradas em: Is 28.16; Dn 2.34,44,45; At 4.11;
Rm 9.33; Ef 2.20; e 1 Pe 2.6.
O propósito da parábola e a citação do Salmo não escaparam aos
líderes religiosos. Todos os três evangelistas relatam que
―compreenderam que contra eles proferia esta parábola‖. Eles, de fato,
seriam esmagados pelo Filho que tinham rejeitado, mas a quem Deus
tinha exaltado.

Aplicação

A parábola se aplicava, de maneira óbvia, aos principais


sacerdotes, aos fariseus, escribas e anciãos do povo. Eles eram
descritos como maus lavradores e como construtores preconceituosos.
Eles se rebelaram contra o dono da vinha, mataram seu filho e
rejeitaram a pedra principal, angular. Escolheram a inimizade contra
Deus e seu Filho. Foram esmagadoramente derrotados e tiveram morte
inesperada.

Qual é o propósito da parábola? Jesus ensina que,


aparentemente, a paciência infinita de Deus se estende a todos os que
se opõem a ele, mas que, quando essa paciência se esgota, na rejeição
de seu Filho, o castigo imediato de Deus se segue com toda a certeza.

A passagem proclama uma mensagem de certeza e confiança


àqueles que fielmente seguem a Jesus. Mesmo que a igreja possa
experimentar tempos de adversidade, Jesus Cristo é o Rei eterno cuja
vitória é certa. Nas palavras de uma confissão do século 16.

Esta igreja existe desde o principio do mundo e


permanecerá até ao fim. Isso emana do fato de que Cristo é
o Rei eterno, do que se conclui que ele não pode deixar de
ter súditos. E esta santa igreja é protegida por Deus do
furor do mundo todo. Nunca será destruída mesmo que, às
vezes, possa afigurar-se pequenina e possa mesmo parecer
que se apaga171.

171
The Belgic Confession, artigo 27.
16. As Bodas

Mateus 22.1-14 ―De novo, entrou Jesus a falar por parábolas, dizendo-
lhes: O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as bodas de
seu filho. Então, enviou os seus servos a chamar os convidados para as
bodas; mas estes não quiseram vir. Enviou ainda outros servos, com
esta ordem: Dizei aos convidados: Eis que já preparei o meu banquete;
os meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo está pronto; vinde
para as bodas. Eles, porém, não se importaram e se foram, um para o
seu campo, outro para o seu negócio; e os outros, agarrando os servos,
os maltrataram e mataram. O rei ficou irado e, enviando as suas tropas,
exterminou aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade. Então, disse
aos seus servos: Está pronta a festa, mas os convidados não eram
dignos. Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai para
as bodas a quantos encontrardes. E, saindo aqueles servos pelas
estradas, reuniram todos os que encontraram, maus e bons; e a sala do
banquete ficou repleta de convidados. Entrando, porém, o rei para ver
os que estavam à mesa, notou ali um homem que não trazia veste
nupcial e perguntou-lhe: Amigo, como entraste aqui sem veste nupcial?
E ele emudeceu. Então, ordenou o rei aos serventes: Amarrai-o de pés e
mãos e lançai-o para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de
dentes. Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos‖.

Assim a parábola da grande ceia é peculiar a Lucas, a parábola


das bodas pertence ao Evangelho de Mateus. Pode haver alguma
semelhança entre as duas, e o tema parece comum a ambas; mas as
diferenças são tão fundamentais, que é bom trata-las como parábolas
distintas.

A parábola

Jesus contou a história de um rei que preparou um banquete


para festejar as núpcias de seu filho. O rei – e não sua mulher, nem seu
filho, mas o rei – fez os preparativos. Para a ocasião feliz do casamento,
o rei planejou cuidadosamente a festa. Ele queria que todos os
importantes dignatários de seu reino estivessem presentes. Mandou,
então que fossem anunciadas as bodas.

Era costume, naqueles dias, os convites serem entregues em


mãos e os convidados serem relembrados do acontecimento, no dia da
festa. Mas ao entregar os convites, os servos do rei não foram bem
recebidos. Os dignatários e membros da nobreza fizeram saber aos
servos que não estavam absolutamente interessados na festa.
Expressaram amargura e rebeldia. Mesmo sabendo que o convite real
era equivalente a uma ordem real, se recusaram a tomar conhecimento
do comunicado do rei.

Uma sombra se abateu sobre o palácio real. Pessoas de alta


posição no reino, abertamente, menosprezavam o rei. Eles se
recusavam a honrá-lo com sua presença no casamento do príncipe
herdeiro. Mas, o rei continuou os preparativos para a festa, e, quando
chegou o dia das núpcias de seu filho, enviou novamente os servos para
fazer lembrar aos dignatários de todo o reino que eram convidados ao
banquete. Fez saber que tudo estava pronto.

No entanto, infelizmente, a atitude do rei não teve o resultado


esperado. Ele, talvez. Até soubesse o tipo de resposta que seus servos
receberiam, quando fossem enviados pela segunda vez. Já, antes,
tinham recebido respostas negativas e hostis. Certamente enfrentariam
a mesma amargura e o mesmo ressentimento, se não pior. Os servos
partiram com a mensagem real: Meus bois e cevados já foram abatidos,
e tudo está pronto; vinde para as bodas172. Mas, os convidados não
deram atenção ao convite. Agiram de modo ostensivamente desafiante:
uns foram para o seu campo, outros para o seu negócio, e, quando os
servos do rei insistiram um pouco mais com um terceiro grupo, foram
maltratados. Alguns foram mortos.

O rei, justamente, irado, enviou seus soldados para punir os


assassinos e queimar sua cidade. Desabafou assim a sua ira, mas
ainda queria que pessoas viessem e celebrassem com ele as bodas de
seu filho. Por isso, ordenou aos servos que fossem às esquinas das ruas
e convidasse qualquer um que quisesse vir à festa. Tanto pessoas boas
como más vieram em grande número, de modo que a sala do banquete
se encheu de convidados.

Um dos convidados, no entanto, se recusou a usar o traje nupcial


que lhe foi oferecido, quando chegou. Por causa de sua roupa, ele ficou
muito em evidência. Chegou, então, o momento da entrada do rei no
salão do banquete. Ele examinou seus convidados com aprovação, até
notar aquele que se tinha recusado a usar vestimenta apropriada.
Surpreso, o rei exclamou: ―Amigo, como entraste aqui sem veste
nupcial?‖ O homem ficou calado. Não podia contar ao rei, na frente de
todos os outros convidados, que se recusara a usar o traje que lhe fora
oferecido ao chegar. Permaneceu em silêncio. O rei ordenou a seus
servos que amarrassem o convidado obstinado e o lançassem lá fora,
nas trevas.

Explicação

A parábola do banquete das bordas é a terceira de uma série de


três, e é o ponto culminante do grupo que inclui ainda as parábolas dos
dois filhos e dos lavradores maus. Estas três parábolas sobre o reino
foram enunciadas no decorrer da última semana de Jesus na terra,
quando ele experimentou a hostilidade dissimulada dos fariseus, dos
principais sacerdotes e dos anciãos do povo, enquanto estes
preparavam suas armadilhas para apanha-lo em contradição. Sem
172
Um paralelo no Velho Testamento é o convite para o banquete da Sabedoria,
registrado em Provérbios 9.2-5.
temor, Jesus ensinou a parábola das bodas, que era dirigida,
claramente, contra seus oponentes. Esta parábola, no entanto deve ser
lida e entendida n contexto histórico dos eventos que encerram o
ministério de Jesus.

Na introdução da parábola, ressoa uma nota de alegria e


felicidade. O rei prepara, com esmero, um banquete para festejar as
bodas de seu filho. Celebrando, ele convida altos dignatários para o
banquete. O ato de comer e beber juntos, alegremente expressa com
naturalidade, o laço de paz e união que deve existir entre o hospedeiro e
seus convidados173. Um banquete, obviamente, não é preparado apenas
com o propósito de satisfazer o apetite. Enquanto o dono da casa e seus
hóspedes comem juntos, conversam e se tornam mais íntimos. O
embaraço desaparece e um espírito de entendimento e afinidade toma
seu lugar. Nos banquetes devem prevalecer a paz e a harmonia.

Aqueles que foram convidados pelo rei recusaram-se a ir. No


oriente, assim como em qualquer outro lugar, espera-se que os
convidados aceitem o convite real, como uma obrigação. Espera-se,
também, que os convidados ao casamento tragam presentes
apropriados à ocasião. Porque os convidados da parábola não poderiam
agir de maneira recíproca, convidando o rei e sua família para uma
festa semelhante, os presentes deveriam ser caros – especialmente
sendo o casamento do filho do rei174. Recusar o convite traria sérias
implicações que poderiam resultar em problemas e hostilidades. A
recusa poderia ser interpretada como uma declaração de que o filho do
rei não merecia um presente, que os convidados não aprovavam o
casamento e que não manteriam mais sua fidelidade ao rei175. O rei é
obrigado a tomar medidas que assegurem sua autoridade. Faz isso
enviando os servos pela segunda vez, mas, agora, com o apelo urgente
de que venham imediatamente. Não toma, ainda, nenhuma outra
medida. O rei espera que os convidados tenham mudado de idéia e
aceitem seu convite.

Os convidados, no entanto, não tinham mudado seus


sentimentos. Vão para seus próprios negócios, ignorando a mensagem
do rei. Quando os mensageiros insistem, fazendo ver a urgência do
convite real, eles demonstram-lhes seu desprezo, os ridicularizam e não
hesitam mesmo em matá-los176.

173 Mánek, Frutch, p. 61


174 Derrett, Law in the New Testament, p. 139
175 Derrett, Law in the New Testament, p. 139, chama a atenção para o fato de Sir

Thomas More ter-se recusado a assistir à coroação da Rainha Ana Bolena, em 1534.
176 Alguns escritores consideram que este detalhe, bem como alguns outros, vão além

dos limites do exagero oriental. Veja-se, por exemplo, Armstrong, Parables, p. 103;
Oesterley, Parables, p. 123; Linnemann, Parables, p.94; e Jeremias, Parables, p. 68.
Entretanto, K. H. Rengstorf, cm ―Die Stadt der Mõrder (Ml 22.7), Judentum,
Urchristentum, Kirche, Festschrift honoring J. Jeremias (Berlin: Tõpelmann, 1960),
pp. 106-29, acumulou uma coleção de incidentes, nos quais mensageiros enviados por
reis eram escarnecidos ou mortos.
Jesus está contando a história de Israel, e seus ouvintes
entendem que ele se refere aos profetas enviados por Deus, com a
mensagem urgente de arrependimento. Mas Israel, em vez de aceitar o
chamado de Deus e se arrepender, trata de maneira vergonhosa os
profetas, e mata alguns deles (Mt 23.35)177. Jesus rememora a seus
ouvintes a página negra do livro de sua história. Os fariseus, mestres da
lei, sacerdotes e anciãos compreendem que ele está se referindo a eles.

Jesus continua e descreve um rei zangado, que envia seu exército


para destruir os assassinos e queimar sua cidade. O rei, tendo feito
lembrar seus convidados, pela segunda vez, através de seus servos, e
vendo que seus mensageiros são escarnecidos e mesmo assassinados,
compreende as conseqüências políticas do fato. É de importância
capital que ele enfrente aqueles que se opõem à sua lei. Ordena às suas
tropas que destruam os assassinos e queimem sua cidade178. E
indiferente que isso tenha acontecido no próprio dia das bodas, ou
imediatamente após. Significativo é o fato de o rei ter exercido sua
autoridade; ele governa e exige obediência.

Embora a referência à queima de uma cidade possa ser alusão à


destruição de Jerusalém, em 70 AC, é mais adequado pensar que o
povo que ouvia Jesus estivesse familiarizado com os relatos históricos
de reis enviando tropas para destruir os adversários e para tocar fogo
em suas cidades179. Os ouvintes de Jesus provavelmente viram a figura
irada do rei como a personificação de Deus. Eles sabiam que ―... Deus é
fogo que consome, é Deus zeloso‖ (Dt 4.24). A paciência de Deus não
dura para sempre, e quando sua misericórdia não encontra
arrependimento, o resultado é o juízo.

O rei convida o povo da cidade e de seus arredores para os salões


festivos do banquete nupcial. Eles vêm de longe e de perto, os bons e os
maus, e enchem os lugares deixados vazios pelos convidados indignos.
O rei é um retrato de benevolência e representa a misericórdia e o amor
de Deus estendidos aos pecadores180. Pessoas de todos os caminhos da
vida recebem
o convite e respondem afirmativamente.

Os servos do rei saúdam as pessoas, quando estas chegam ao

177 2 Cr 30.1-10. Josephus, Antiquities 9:264-265, escreve que os mensageiros de


Ezequiel foram escarnecidos, agarrados e assassinados. Para comparar, leia-se Judite
1.11.
178 A expressão ―suas tropas‖, embora plural em grego, ~ um semitismo. Jeremias,

Parables, p. 68, n5 75.


179 Rengstorf, ―Stadt der Mörder‖, pp. 106-24. Veja-se, especialmente, suas
conclusões, nas páginas 125-29.
180 D. O. Via, Jr., em ―The Relationship of Form to Content in the Parables: The

Wedding Feast‖; Interp 25 (1971): 181, é de opinião que o rei é ‗inquestionável e


imutável‘. No entanto, Orei mostra amor, misericórdia e paciência de um lado, e
desgosto, ira e vingança, de outro.
palácio, e dizem a cada hóspede que use as roupas feitas para a
ocasião. O rei convida o povo e espera que usem as vestes que
providenciou. Vestindo o traje nupcial, ninguém mostra pobreza ou
miséria. Cada um dos convidados pode esconder sua condição social e
econômica atrás das roupas oferecidas pelo rei181. As vestes eram
imaculadas e brancas, cor que na cultura oriental significa alegria e
felicidade182. Segundo os costumes, um hospedeiro não comia com os
convidados, num banquete formal; ele apenas se apresentava entre eles
durante a refeição183.

Qualquer um pode vir ao casamento do filho do rei? A resposta é


que todos são bem-vindos, contanto que usem as vestes nupciais.
Quando o rei chega ao salão do banquete e nota que um dos convidados
não está vestido de maneira apropriada, considera o fato como um
insulto deliberado. Ele não pode tolerar obstinação, desacato ou recusa.
Ele quer que seu convidado aceite tudo que ele tenha a oferecer.
Qualquer um que resolva declinar a oferta do rei, provoca sua ira e vai
sofrer as conseqüências. O único convidado que apareceu no banquete
usando suas próprias roupas foi sumariamente retirado do salão e
lançado fora, na escuridão da noite. Cheio de remorsos, ele geme e
range os dentes. Não são todos que permanecem no salão da festa das
bodas. Apenas aqueles que aceitam o convite do rei, e chegam ao local
obedecendo seus termos, poderão ficar.

O Livro do Apocalipse, em especial, fala a respeito dos justos


usando vestes brancas de linho fino, resplandecente e imaculado184.
Deus providência essas vestiduras que representam a justiça de Deus
com seu povo. Deus lhes dá a veste da justiça que simboliza que quem
a usa foi perdoado, seus pecados foram resgatados, e ele é um membro
da casa de Deus, por intermédio de Cristo. Quando o pai se alegrou
com a volta do filho pródigo à casa, ele o vestiu de roupas finas, para
mostrar que o passado do filho fora esquecido (Lc 15.22)185. Como o rei
da parábola queria que todos os convidados usassem as roupas
nupciais, por ele providenciadas, assim Deus deseja que os pecadores
venham à festa de seu filho e usem as vestiduras brancas que
simbolizam o arrependimento, o perdão e a justiça.

O convidado que não estava usando a veste branca, no banquete


real, sem dúvida, representa o pecador que se auto-justifica. Ele quer
que todos saibam que não precisa da morte sacrificial e do sangue

181 Para um estudo mais pormenorizado acerca do fornecimento devestes aos


convidados, por pane do rei, veja Hendriksen, Matthew, pp. 797-98. Consultem-se
referências das Escrituras em 2 Rs 10.22; Is 61.10; Ap 19.7,8.
182 Derrett, Law in the New Testament, p. 142, contrasta as vestes limpas e alvas com

as sujas que significam luto. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p. 187; SB 1: 878-
79.
183 Jeremias Parables, p. 187.
184 Ap 3.4,5,18 e 19.8. No último versículo, o escritor acrescenta a explicação de que o

linho representa os atos de justiça dos santos.


185 Jeremias, Parables, pp. 130 e 189.
expiatório de Cristo, para entrar no céu. Ele não ouve as palavras de
Jesus: ―Ninguém vem ao Pai senão por mim‖ (Jo 14.6), e, por isso,
quando chega diante de Deus, é lançado fora. É absolutamente
impossível chegar diante de Deus sem a veste protetora oferecida por
Jesus Cristo.

O parágrafo termina com as palavras: ―Porque muitos são


chamados, mas poucos escolhidos‖. Tanto o começo quanto o fim da
parábola se referem a pessoas que tinham sido convidadas. Aqueles que
se recusaram a ir, assim como o convidado que não vestiu as roupas
apropriadas para as bodas, não fazem parte do grupo dos que foram
escolhidos. Embora o convite seja universal e extensivo a todos os
povos, apenas aqueles que o aceitam com fé e arrependimento são
destinados à vida eterna (At 13.48).

Deus não se compraz com a morte do perverso; ele quer que ele
viva (Ez 18.23; 33.11). O desejo amoroso de Deus é que ―nenhum
pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento‖ (2 Pe 3.9). Mas,
se o homem faz saber que não sente necessidade de Jesus, ele, assim,
recusa a justiça dispensada por ele. Ele tem que se arrepender, dando-
se conta de que não tem merecimento algum para chegar à presença de
Deus, e que necessita das vestes de justiça que Jesus provê. Um
coração ―compungido e contrito‖ (SI 51.17) é necessário para que se
queira aceitar, prontamente, essa vestidura.

O convite do evangelho é proclamado a todo o mundo, mas


relativamente poucos respondem à oferta de salvação. Mesmo entre os
que aceitam o convite há muitos que se contentam com uma simples
profissão de fé. A profissão de fé deve demonstrar renovação de vida186.
O crente deve transformar em atos suas palavras. Embora Deus escolha
sem olhar as obras, essa escolha se expressa plenamente quando o
eleito vive uma vida de obediência a Deus187.

A escolha envolve o Deus Triúno. Os escolhidos são ―eleitos


segundo a presciência de Deus Pai.‖ Eleitos ―em santificação do
Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo‖ (1
Pe 1.2). Deus elege e o homem responde. A eleição divina representa um
lado do quadro; o outro é a responsabilidade do homem em aceitar o
convite de Deus com fé verdadeira188. As palavras: ―Porque muitos são
chamados, mas poucos escolhidos‖ são complemento de ―porque
estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e são poucos
os que acertam com ela‖ (Mt 7.14).

186 Calvin, Harmony of the Evangelists, 11:175.


187 G. Schrenk, TDNT, IV: 187.
188 J. Morison, A Practical Commentary on the Gospel According to St. Matthew

(Boston: Bartlett & Co, 1884), p 407.


17. A Figueira

Mateus 24.32-35 ―Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os


seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o
verão. Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabei que
está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta
geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as
minhas palavras não passarão‖.

Marcos 13.28-31 ―Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os


seus ramos se renovam, e as folhas brotam, sabeis que está próximo o
verão. Assim, também vós: quando virdes acontecer estas coisas, sabei
que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta
geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as
minhas palavras não passarão‖.

Lucas 21.29-33 ―Ainda lhes propôs uma parábola, dizendo: Vede a


figueira e todas as árvores. Quando começam a brotar, vendo-o, sabeis,
por vós mesmos, que o verão está próximo. Assim também, quando
virdes acontecerem estas coisas, sabei que está próximo o reino de
Deus. Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que tudo
isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não
passarão‖.

Os evangelhos revelam que Jesus era um arguto observador da


natureza. Seu ensino, constantemente, faz alusão ao meio ambiente que
cercava a ele e a seus ouvintes. As parábolas não são exceção, pois,
muitas vezes, se referiam à vida do fazendeiro, do pescador e dos
pastores. Os ouvintes de Jesus viviam mais próximos da natureza do
que fazemos nós agora, e não tinham dificuldade para entender o
significado de sua mensagem. Nos tempos bíblicos, a figueira era muito
comum em Israel, especialmente nas proximidades de Jerusalém, onde
Betfagé (= ―casa dos figos‖) se localizava. Em Israel, um dito popular
sempre lembrado e que se referia ao reinado calmo de Salomão,
afirmava que um homem está em segurança ―debaixo de sua videira, e
debaixo de sua figueira‖ (1 Rs 4.25 e Mq 4.4).

Durante o verão, a figueira com suas largas folhas verdes oferece


boa sombra. Mas, diferentemente de outras árvores, tais como a
oliveira, o cedro e a palmeira, ela perde suas folhas com a aproximação
do inverno. Mesmo quando outras árvores, que também costumam
perder as folhas, começam a mostrar sinais de vida, logo no início da
primavera — a amendoeira, por exemplo —, a figueira continua a
apontar para o céu seus ramos nus, até que chegue o verão. Então, a
seiva começa a correr, os rebentos intumescem, e, em alguns dias, as
tenras folhas novas aparecem. A natureza proclama que o perigo da
noite gelada e mortal já passou e o verão está próximo.

Jesus talvez tenha ensinado a parábola da figueira florescente


durante a primeira semana de abril, exatamente quando as árvores
começam a dar os primeiros sinais de vida. ―Quando já os seus ramos
se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão189‖.
Esta era a linguagem que seus ouvintes entendiam.

A questão, no entanto, era se o povo seria capaz de interpretar


este sinal teológica e espiritualmente. As pessoas tinham vindo a Jesus,
repetidamente, pedindo por um sinal, mas Jesus não tinha o hábito de
apresentar sinais. Certa vez, ele dissera aos fariseus que nenhum outro
sinal seria dado senão aquele do profeta Jonas (Mt 12.39), e uma outra
vez ele os censurou por serem capazes de interpretar o aspecto do céu;
porém não serem capazes de discernir os sinais dos tempos (Mt 16.2,3).
Saberiam seus discípulos reconhecer o sinal da figueira ao florescer?
―Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabeis que está
próximo, às portas190‖.

O ponto focalizado na ilustração é óbvio: quando as árvores


começam a mostrar as tenras folhas, todos sabem que o verão está
próximo. Lucas acrescentou: ―todas as árvores191‖. Ele generalizou,
quando escreveu: ―Vede a figueira e todas as árvores. Quando começam
a brotar, vendo-o, sabeis por vós mesmos que o verão está próximo.‖
Lucas dá menos ênfase à figueira que às pessoas que olham as árvores:
elas podem ver a evidência por si mesmas.

Qual é, pois, a comparação? Os evangelistas diferem na narrativa.


Mateus inclui tudo. Escreve: ―Assim também vós: quando virdes todas
estas coisas, sabeis que está próximo, às portas‖. Marcos varia
ligeiramente, dizendo: ―... quando virdes acontecer estas coisas‖, que é
igual à versão de Lucas. Mas Lucas tem um final diferente: ―... sabei
que está próximo o reino de Deus.‖ Ele omite a frase, ―próximo, às
portas192‖.

A expressão ―quando virdes‖ ocorre no começo do sermão


escatológico de Jesus: ―Quando, pois, virdes o abominável da desolação

189 Lõw, Die Flora der Juden, 1.240, destaca que a palavra verão (grego = theros) em
hebraico pode ter ocasionado um jogo de palavras: gayis (= verão; fruto do verão) e
ges (= fim da vida; tempo do castigo final). Veja-se, também, 1. Dupont, ‗La parable du
figuier qui bourgeonnne (MCXIII, 28,29 ei. par.)‖, RB 75(1968): 542, que se refere à
profecia de Amós 8.1,2, na qual o cesto de frutos de verão tem significado escatológico.
190 Dupont, ―Parble fu figuier‖, p. 532. As palavras ―assim também‖ dão a impressão

de que os discípulos são comparados a um outro grupo. O ‗vós‖ do versículo


precedente (Mi 24.32; Mc 13.28; Lc 21.30) deve ser entendido no sentido geral de
―todos sabem que o verão está próximo.
191 Um outro exemplo da generalização é encontrado em Lc 11.42, ―... porque dais o

dízimo da hortelã da arruda e de todas as hortaliças...‖ O paralelo é encontrado em Mt


23.23, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho...‖.
192 As palavras de Mateus e Marcos, ―próximo, às portas‖, indicam a chegada iminente

do Senhor que está vindo como Juiz e Redentor. ―Sede vós também pacientes, e
fortalecei os vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Eis que o juiz está
às portas‖. (Tg 5.8,9) Notem-se as palavras do Apocalipse: ―Eis que estou à porta, e
bato‖ (3.20). Mänek, Frucht,p.34.
situado onde não deve estar...‖ (Mt 24.15; Mc 13.14; Lc 21.20).
Inegavelmente, as palavras ―estas coisas‖ ou ―todas estas coisas‖ devem
referir-se às predições delineadas anteriormente, no discurso. Os
discípulos de Jesus perguntaram: ―Dize-nos quando sucederão estas
coisas‖ (Mc 13.4). O sermão todo a respeito do final dos tempos (Mc
13.5-23 e paralelos), especialmente a parte sobre o cerco de Jerusalém
e o aparecimento de falsos profetas, está resumido na expressão: ―estas
coisas ,ou todas estas coisas193‖. A expressão se refere, também, ao
―abominável da desolação‖ que foi profetizado que viria ao templo de
Jerusalém. ―Quando, porém, virdes Jerusalém sitiada de exércitos,
sabei que está próxima a sua devastação‖ (Lc 21.20).

Jesus aplica esta verdade diretamente a seus contemporâneos.


―Em verdade vos digo‖, diz ele a seus discípulos, ―que não passará esta
geração sem que tudo isto aconteça‖ (Mc 13.30). Uma vez mais ele
generaliza, usando a expressão ―tudo isto‖. Com certeza, os discípulos
seriam capazes de constatar como estavam próximas a profanação e a
destruição do templo, tanto quanto saberiam como estava próxima a
chegada do verão, olhando para a figueira. Mas, o texto diz, ―não
passará esta geração sem que tudo isto aconteça‖. E todas estas coisas
preditas no sermão sobre o final dos tempos vão muito além do tempo
dos contemporâneos de Jesus194. Porém, os rolos de Cunrã têm lançado
significativa luz na compreensão da frase ―esta geração‖. A expressão
significa uma duração que não se limita a um período de vida, e não
deve ser entendida literalmente195. Ela se refere a pessoas que persistem
e permanecem fiéis até ao fim. Inclui, portanto, os discípulos que
ouviram as palavras dos próprios lábios de Jesus, aqueles que
testemunharam a queda de Jerusalém, e os crentes que, através dos
séculos, com perseverança, têm esperado o cumprimento das profecias
que dizem respeito ao final dos tempos.

A imagem da figueira florescente é comumente associada a um


período de bênçãos (Jl 2.22) e raramente está relacionada com
destruição e calamidade. A parábola, como tal, não deve ser vista
basicamente ligada às calamidades profetizadas no sermão196. A ênfase
deve permanecer, antes, na redenção que se torna evidente na vinda do
reino de Deus. Embora Mateus e Marcos falem de calamidades, como a
fome e terremotos, como sendo ―o princípio das dores‖ (Mt 24.8; Mc
13.8), Lucas as omite. Ele apresenta as palavras de Jesus emolduradas

193 Lane, Mark, p. 448; C. B. Cousar, ―Eschatology and Mark‘s Tbeologia Crucis, A
Critical Analysius of Mark 13‖, lnterp 24 (1970): 325; G.R. I3easley — Murray, A
Commentary on Mark Thirteen (London, New York: Macmillan, 1957), p. 97.
194 As interpretações variam quanto ao significado da expressão ―esta geração‖: a) O

povo judeu dos dias de Jesus. Beasley — Murray, Commentary p. 100; b) O povo
judeu como uma raça. Hendriksen, Matthew, p. 868; e) A humanidade em geral
(Jerônimo); d) Os fiéis na igreja. A. L. Moore, The Parousia in the New Testament,
(Leiden; Brill, 1966), pp. 131 -32.
195 E. E. Ellis, The Gospel of Luke (The Century Bible) (London: Nelson, 1966), pp.

246-47. A expressão é usada em 1 QpHab 2.7; 7.2.


196 Mänek, Frucht, p. 34.
de prazeirosa expectativa. ―Ora, ao começarem estas coisas a suceder,
exultai e erguei as vossas cabeças; porque a vossa redenção se
aproxima‖ (Lc 21.28). Lucas usa praticamente a mesma linguagem na
aplicação da parábola da figueira florescente: ―Assim também, quando
virdes acontecer estas coisas, sabei que está próximo o reino de Deus‖
(Lc 21.31). Naturalmente, os termos ―redenção‖ e ―reino de Deus‖, neste
contexto, se referem à futura consumação da salvação197. Eles se
referem à derradeira vinda do reino de Deus, quando o povo de Deus
será libertado da aflição. Então, também, ―a própria criação será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus‖ (Rm 8.21).

A parábola conclui, dizendo: ―Passará o céu e aterra, porém as


minhas palavras não passarão.‖ O que passa se torna parte do passado
e não significa mais nada para o presente198. O sentido da parábola é o
de que as palavras de Jesus não perdem seu impacto quando urna
predição, em particular, se cumpre no tempo. São tão válidas hoje,
como o eram quando foram primeiro proferidas.

Qual é a mensagem da parábola? Até ao dia do retorno de Cristo,


quando o reino de Deus virá em toda a sua plenitude, nenhuma geração
estará livre de calamidade. Mas, nenhum cristão deve desanimar-se ou
entregar-se ao desalento. Ele deve observar os sinais dos tempos com
muito cuidado, do mesmo modo como observa uma figueira que floresce
e saberá que os acontecimentos que o cercam são anunciadores de uma
nova era. A parábola, assim, exorta o crente a perseverar atento. As
adversidades que ele enfrenta não devem abater o seu ânimo e
enfraquecer a sua confiança. Elas devem, antes, confirmar a sua
expectativa da aproximação do fim glorioso do qual essas adversidades
são os prenúncios. Mesmo que os crentes, através dos tempos, tenham
sofrido aflições e enfrentado infortúnios, o cristão, hoje, mais que
nunca, é encorajado pelas palavras de Paulo: ―E digo isto a vós outros
que conheceis o tempo, que já é hora de vos despertardes do sono,
porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no
princípio cremos. Vai alta a noite e vem chegando o dia. Deixemos, pois,
as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz‖ (Rm 13.11,12).

197 Marshall, Luke, pp. 777,779.


198 Ridderbos, Coming of the Kingdom, p. 502.
18. O Servo Vigilante

Marcos 13.32-37 ―Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe;


nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de sobreaviso,
vigiai e orai; porque não sabeis quando será o tempo. É como um
homem que, ausentando-se do país, deixa a sua casa, dá autoridade
aos seus servos, a cada um a sua obrigação, e ao porteiro ordena que
vigie. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à
tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que,
vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos
digo, digo a todos: vigiai!‖.

Lucas 12.35-38 ―Cingido esteja o vosso corpo, e acesas, as vossas


candeias. Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu
senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que, quando vier e
bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aqueles servos a quem
o senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em verdade vos afirmo
que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-se, os
servirá. Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira, bem-
aventurados serão eles, se assim os achar‖.

O título deste capítulo se aplica bem mais à parábola registrada


no Evangelho de Marcos, que àquela que encontramos em Lucas. Em
Marcos, todos os servos recebem uma obrigação específica do senhor da
casa, que está pronto para partir. Ao porteiro é dito que se mantenha
vigilante. Os ouvintes, no entanto, são incluídos porque o comando
universal é dado no plural: ―Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá
o dono da casa‖ (Mc 13.35)199.

Na parábola de Lucas, espera-se que todos os servos estejam


prontos para abrirem a porta, quando o dono da casa estiver de volta de
uma festa de casamento, numa determinada noite. Também, a
admoestação geral dada (no plural) a todos que a ouvem, é: ―Cingidos
estejam os vossos corpos e acesas as vossas candeias‖. (Lc 12.35) Um
título mais apropriado à parábola de Lacas seria ―os servos à espera‖.

As duas parábolas, em Marcos 13 e Lucas 12, não são idênticas


na forma. Não apresentam sentenças ou frases paralelas. Ainda assim,
o ensinamento básico dos dois relatos é o mesmo. Ambos apresentam a
mensagem da vigilância para os servos que aguardam a chegada de seu
senhor. Na parábola de Marcos, o senhor vai se ausentar,
provavelmente para outro país200, e no Evangelho de Lacas o senhor
está participando de uma festa de casamento. Em Marcos, embora
todos os indícios sejam de que chegará em casa à noite, os servos não

199 O imperativo da segunda pessoa plural da voz ativa é usado aqui e no versículo
paralelo de Mateus 24.42.
200 ―Ausentando-se‖ ( = apodemos) não significa, necessariamente, partir para um país

distante. Pode querer dizer, simplesmente, sair da província, como, por exemplo, da
Galiléia e Decapolis.
sabem quando o senhor voltará, ―se à tarde, se à meia-noite, se ao
cantar do galo, se pela manhã‖. Lucas apresenta uma lista semelhante
de períodos de tempo. ―Quer ele venha na segunda vigília, quer na
terceira, bem-aventurados serão eles, se assim os achar‖. Marcos adota
o costume romano de dividir a noite em quatro vigílias, cada uma com
três horas de duração201. Lucas, no entanto, divide a noite em três
vigílias202.

Marcos 13.33-37

Ninguém sabe, absolutamente, a hora em que Jesus voltará. Os


anjos do céu não têm essa informação, nem mesmo o Filho sabe a
respeito. Somente o Pai sabe. ―Estai de sobreaviso, vigiai203 (e orai);
porque não sabeis quando será o tempo.‖ Como vigia o crente?

É como um homem que tem certo número de servos, e um deles é


o porteiro noturno. Quando o dono da casa se prepara para partir por
um tempo indefinido, dá a cada um dos servos uma tarefa determinada.
O porteiro, por exemplo, deve vigiar a entrada da propriedade. As casas,
em Israel, eram, muitas vezes, separadas das estradas ou ruas por um
muro alto que as cercava. A casa propriamente dita, juntamente com
outras construções, ficava afastada do portão. Perto da entrada ficava a
pequena casa do porteiro. O porteiro era a última segurança daqueles
que moravam dentro dos muros da propriedade204. Dele se esperava que
estivesse atento à noite e que descansasse durante o dia. Dormir em
serviço era falta grave, que contrariava as instruções explícitas dadas
pelo dono da casa (Mc 13.34,36).

De certo modo, as tarefas destinadas aos outros servos não


parecem tão importantes quanto à do vigia, e os servos não são
instruídos a ajudar o porteiro em sua missão. Nesse ponto, a ênfase da
parábola se transfere. Os ouvintes próximos, os discípulos de Jesus são
exortados a permanecer vigilantes. Jesus aplica a parábola diretamente
a seus seguidores com a intenção de que eles entendam a exortação
espiritualmente205. Fica claro que o proprietário da casa personifica o
Filho do Homem que, no tempo conhecido apenas pelo Pai, virá ―com

201 SB, 1:688. Em At 12.4, Lucas registra, fielmente, as vigílias romanas: ―quatro
escoltas de quatro soldados cada uma‖, guardavam Pedro durante a noite. Veja-se,
também, Mt 14.25 e Mc 6.48, onde é narrado que Jesus caminhou sobre o Mar da
Galiléia durante a quarta vigília da noite.
202 Dodd, Parables, p. 162.
203 O acréscimo de ―e orai‖ talvez derive de Mc 14.38. É mais fácil explicar a inserção

que a omissão. Metzger, Textual Commentary, p. 112.


204 SB, 11:47. De acordo com o Mishna, quando no pátio havia mais que uma

residência. o proprietário podia exigir que os moradores ajudassem a pagar o porteiro,


Smith, Parables p. 105.
205 J. Dupont, ―La Parabole du Maitre Qui Rentre dans La Nuit‖, Melanges Bibliques,

Festshrift honoring 13. Rigaux (Gembloux: Duculot, 1970), p. 96. Jeremias, em


Parables, p. 55, afirma que a parábola foi dirigida aos escribas, que possuíam as
chaves do reino dos céus. É difícil deduzir do texto e do contexto que é realmente
assim. Consulte-se Smith, Parables, p. 106.
grande poder e glória‖ (Mc 13.26). Os seguidores de Jesus são
aconselhados a permanecer vigilantes, a não dormir, mas a esperar a
sua volta. Como o vigia espera paciente e ansiosamente a volta do dono
da casa, durante qualquer uma das quatro vigílias da noite, assim
devem estar alertas os seguidores de Jesus, despertos e atentos à sua
vinda.

O dono da casa não podia determinar com precisão a hora de sua


chegada. Podia ser a qualquer hora, cedo ou tarde. Do mesmo modo,
ninguém é capaz de afirmar a hora exata da volta de Jesus. Pode ser a
qualquer tempo. Assim como o porteiro não podia dizer que seu senhor
estaria de volta durante a quarta vigília, pouco antes do amanhecer206,
também os seguidores de Jesus não podem afirmar que Jesus voltará
quando tiver passado a noite de adversidades. A volta de Jesus
acontecerá inesperadamente (Mc 13.36). Por isso Jesus exorta não
apenas seus ouvintes próximos, mas se dirige a todo o povo: ―O que,
porém, vos digo, digo a todos: Vigiai!‖

O tom de vigilância permeia toda a parábola, pois em cada


versículo a idéia se expressa positiva ou negativamente. Aqueles que
ouvem a parábola não devem ser encontrados adormecidos. São
exortados a se manter alertas, pois não podem saber quando Jesus
virá207.

Lucas 12.35-39

A parábola dos servos vigilantes é análoga à do porteiro. É comum


se afirmar que ambas derivam de uma parábola original, ensinada por
Jesus208. Disso se deduz que a comunidade cristã primitiva ou os
evangelistas criaram a versão atual dos Evangelhos. Entretanto, os dois
relatos sobre o porteiro e os servos vigilantes são tão diferentes no
vocabulário e na estrutura das frases que é impossível aceitar uma
parábola original. É muito mais simples afirmar que ambas as
parábolas vieram dos lábios de Jesus. Uma é relatada por Marcos, a
outra por Lucas.

No relato de Lucas, a parábola é apresentada como uma


comparação. Após ter feito uma exortação à vigilância, Jesus compara o

206 Michaelis, Gleichnisse, p. 84.


207 O Evangelho de Mateus não registra uma parábola semelhante à do porteiro. Mas
há versículos paralelos em Mt 24.42: Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia
vem o vosso Senhor‖; e em Mt 25.13: ‗Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a
hora‖. Marcos e Lucas não registram a parábola das dez virgens (Ml 25.1-13). Por
causa da incorporação dessa passagem, Mateus deve ter suprimido a parábola do
servo vigilante.
208 Armstrong, Parables, p. 124; Dodd, Parables, pp. 161,162; Jeremias, Parables, p.

55; Mánek Frucht, p. 35. É Michaelis, em Gleichnisse, p. 82. que considera a


possibilidade de as dua parábolas, que diferem uma da outra, serem basicamente a
mesma, por causa de sua afinidade a um tema comum. Consulte-se Marsahll, Luke,
p. 537.
estado de alerta ―a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele
das festas de casamento; para que, quando vier e bater à porta, logo lha
abram.‖ Jesus diz a seus discípulos que estejam preparados para o
serviço e que mantenham acesas as suas lâmpadas. Claramente, a
mensagem que Jesus transmite deve ser entendida espiritualmente. Na
parábola que fala sobre o porteiro, mesmo que a todos os servos tenha
sido confiada uma tarefa a ser realizada durante a ausência de seu
senhor, o vigia tem que se manter acordado e responder à batida na
porta, quando o dono da casa voltar, durante a noite. Na parábola de
Lucas, todos os servos esperam pelo regresso do senhor. São os únicos
que abrem a porta para ele, quando ele bate. Embora não possam saber
ao certo quando ouvirão a batida — a qualquer hora, entre as dez da
noite e as seis da manhã —, eles sabem que naquela noite seu senhor
voltará para casa vindo de um banquete de núpcias. Mas, por que
devem todos os servos se manter acordados? E por que devem todos
eles atender à porta209? A resposta a esta pergunta é que Jesus queria
retratar o relacionamento de confiança que existia entre o senhor e seus
servos. Nesta curta parábola, a passagem: ―bem-aventurados aqueles
servos‖ (Lc 12.37,38) ocorre duas vezes. Também, através da
comparação, Jesus destaca o laço de amizade existente entre ele e os
discípulos.

Aos discípulos é dito que estejam vestidos e prontos para o


serviço210, e que mantenham acesas as suas candeias. O uso de
candeias acesas sugere um período de trevas durante o qual os
discípulos devem permanecer alertas, prontos para servirem a Jesus211,
quando ele voltar. A parábola retrata o senhor fora da porta de sua
própria casa, batendo e esperando que os servos a abram e o recebam
em sua própria casa. A imagem se repete na carta endereçada à igreja
em Laudicéia: ―Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha
voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo‖
(Ap 3.20).

A parábola continua com uma recomendação: ―Bem-aventurados


aqueles servos a quem o senhor quando vier os encontre vigilantes.‖ A
seqüência natural seria que os servos, após abrirem a porta, se
ocupassem em servir ao seu senhor. Entretanto, uma série inesperada
de acontecimentos tem lugar: o senhor se torna o servo.

Ele se veste para o serviço, seus servos tomam lugar à mesa e ele

209 Dupont, ―Parabole‖, p. 105.


210 No grego, é usado o particípio perfeito do verbo perizonnumi junto com o
imperativo do verbo eimi. Esse uso do perfeito significa conseqüência. Isto é, a ordem
é que estejam sempre vestidos para o serviço: estar prontos sempre!
211 Dodd, Jeremias, e outros colocam esta parábola na categoria das ―parábolas da

crise‘. A categoria inclui parábolas tais como a dos servos vigilantes, a do ladrão à
noite, a do servo fiel e do infiel, e a das dez virgens. Embora a observação seja correta,
as assim chamadas parábolas da crise não podem ser limitadas à morte de Jesus.
Elas focalizam, também, a segunda vinda. Morris, Luke, p. 216; 1. H. Marshall,
Eschatology and The Parables (London: Tyndale Press, 1973), pp. 34,35.
os serve212. Sem dúvida, o fato contraria o costume normal tão bem
descrito na parábola sobre a recompensa do servo (Lc 17.7-10).
Entretanto, essa inversão de papéis está plenamente de acordo com o
ensino e a conduta de Jesus. Ele ensinou o papel do servo muito
claramente, no cenáculo, quando lavou os pés de seus discípulos213.
Resumindo, dentro do contexto da parábola dos servos vigilantes, Jesus
faz uma referência velada a si mesmo.

Uma vez mais, os servos que haviam esperado seu senhor voltar
são elogiados. Os servos cumpriram o que deles era esperado: aguardar
a volta de seu senhor. Assim também, a todos os crentes, não apenas
aos discípulos de Jesus, é recomendado que permaneçam prontos,
atentos e aguardando a volta do seu Senhor. Se estiverem vestidos e
prontos para o serviço, com suas lâmpadas acesas e fulgurantes na
noite escura, o Senhor, quando vier, não negará sua recompensa.

212 Jeremias, Parables, p. 54 nº 18, chama Lucas 12.37b de secundário, pré-Lucas.


Ele destaca a palavra amen (que Locas usa apenas seis vezes) assim como a
redundância semítica de parelthon. Juntamente com Outros estudiosos, ele considera
esse versículo um detalhe alegórico, o que pode ser verdade. Não obstante, não existe
razão para que sejam questionadas a historicidade e a autenticidade do que foi dito.
213 Jo 13.1-7; também Lc 22.27.
19. O Ladrão

Mateus 24.42.44 ―Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o
vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que
hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua
casa. Por isso, ficai também vós apercebidos; porque, à hora em que
não cuidais, o Filho do Homem virá‖.

Lucas 12. 39-40 ―Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a que
hora havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria arrombar a sua casa.
Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o
Filho do Homem virá‖.

No Evangelho de Lucas, a parábola do ladrão vem em seguida à


dos servos vigilantes. Por ser tão breve, é considerada, antes, uma
declaração em forma de parábola que uma parábola propriamente dita.
Enquanto a parábola dos servos vigilantes mostra a promessa se
transformando em recompensa, a parábola do ladrão, que vem à noite,
constitui uma advertência. A primeira descreve um acontecimento
jubiloso; a outra, um desastre iminente.

O ensino dessa declaração em forma de parábola é muito simples.


Enquanto o dono da casa está dormindo, ladrões chegam à sua
moradia. Cavam um buraco na parede de tijolos, arrombam a casa, e
roubam todos os bens do proprietário. Se o dono da casa soubesse a
que horas viriam os ladrões, vigiaria para impedir o roubo.

Esta declaração em forma de parábola se baseia em fatos da vida


real, pois assaltos acontecem freqüentemente, especialmente em tempos
de recessão econômica. A imagem do ladrão, à noite, se aplica ao dia da
vinda do Senhor, nas Epístolas e no Apocalipse. Paulo usa a imagem
para o retorno do Senhor:

―Vós mesmos estais inteirados com precisão do que o dia do


Senhor vem como ladrão de noite. Quando andarem dizendo:
Paz e seprança2 eis que lhes sobrevirá repentina destruição,
como vem à dor do parto à que está para dar à luz; e de
nenhum modo escaparão. Mas, vós, irmãos, não estais em
trevas, para que esse dia como ladrão vos apanhe de
surpresa‖. (1 Ts 5.2-4)

Pedro pinta um quadro semelhante: ―Virá, entretanto, como


ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso
estrondo e os elementos se desfarão abrasados: também a terra e as
obras que nela existem serão atingidas.‖ (2 Pe 3.10). No livro do
Apocalipse, João registra a carta endereçada à igreja em Sardes. O
Senhor elevado e exaltado diz: ―Lembra-te, pois, de como tens recebido e
ouvido, guarda-o, e arrepende-te. Porquanto, se não vigiares, virei como
ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti‖
(Ap 3.3). E, outra vez, diz: (―Eis que venho como vem o ladrão. Bem-
aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para não andar
nu, e não se veja a sua vergonha‖). (Ap 16.15)214

Jesus profetiza sua própria volta no contexto de seu sermão a


respeito dos últimos acontecimentos. Ele instrui seus seguidores a que
estejam atentos para o imprevisto de seu retorno. Ele compara o tempo
de sua vinda aos dias de Noé.

―Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio,


comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao
dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão
quando veio o dilúvio e os levou a todos. Assim será também a
vinda do Filho do homem‖. (Mt 24.38,39)

Na parábola do ladrão, à noite, Jesus repete a mesma


advertência: ―Por isso ficai também vós apercebidos, porque, à hora em
que não cuidais, o Filho do homem virá215‖.

Jesus está advertindo seus próprios discípulos a respeito de um


perigo iminente? Esperamos que os seguidores de Jesus aguardem o
tempo de sua volta como uma ocasião jubilosa. Aqueles que ouvem com
atenção e obediência as palavras de Jesus estarão preparados, quando
ele vier. Para eles seu retorno será um acontecimento feliz. Mas, para
todos, mesmo para os discípulos de Jesus, é colocada uma palavra de
advertência contra a apostasia. Afinal, entre os doze discípulos estavam
Pedro, que negou seu Senhor, e Judas, que o traiu216.

A parábola é dirigida àqueles que esperam o retorno glorioso de


Jesus e àqueles que estão ignorando as instruções de Jesus. Enquanto
a imagem da vinda do Filho do homem evoca alegre expectativa entre os
fiéis, a imagem de um ladrão à espreita cria ansiedade e tristeza
naqueles que não estão preparados.

214 O Evangelho de Tomé registra a parábola do ladrão em duas de suas citações, mas
não tem aplicação cristológica: ―Portanto eu vos digo: Se o dono da casa sabe quando
vem o ladrão ele estará vigiando antes que venha (e) não deixará que arrombe a casa
de seu reino para levar os seus bens. Mas vós deveis estar alertas contra o mundo;
cingi vossos lombos com grande poder, para que nenhum ladrão possa achar um
modo de chegar até vós‖ (Citação 21b). ―Jesus disse: Bem-aventurado é o homem que
sabe em que parte (da noite) virá o ladrão, para que se levante e ajunte seu.., e cinja
seu lombo antes que venham‖ (citação 103).
215 Alguns estudiosos afirmam que a expressão ‗Filho do homem‖ não pode ser

original, mas que deve ter sido introduzida pela igreja cristã primitiva. Jeremias,
Parables, pp. 50,51; Manek, Frucht, p. 66; 6. Schneider, Parusiegleichnisse im Lukas-
Evangelium (Stuttgart: 1975), p. 22. Entretanto, ―a predição da vinda do Filho do
homem é uma parte consistente do ensino de Jesus...‖ Marshall, Luke, p. 534. Veja-se
R. Maddox, ―The Function of the Son of Man‖, NTS 15(1968-9); 51.
216 Jeremias, Parables, p. 50, é de opinião que os discípulos não precisavam ser

advertidos. A parábola, então, se aplica à igreja primitiva, para advertir o povo quanto
ao julgamento que está para vir. Marshall, em Eschatology, p. 35, questiona
seriamente esta opinião.
O que a parábola ensina? Nos dias que precedem a vinda do
Senhor, muitas pessoas vivem ignorando totalmente o julgamento
iminente. Sua vinda acontecerá sem aviso. O inesperado do
acontecimento para os que não estão atentos pode ser comparado ao
momento imprevisto quando um ladrão chega para arrombar e roubar.
Aqueles que se preparam e estão prontos não serão surpreendidos
quando o tempo do retorno de Jesus chegar.
20. O Servo Fiel e Prudente

Mateus 24.45-51 ―Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem o


senhor confiou os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu
tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier,
achar fazendo assim. Em verdade vos digo que lhe confiará todos os
seus bens. Mas, se aquele servo, sendo mau, disser consigo mesmo:
Meu senhor demora-se, e passar a espancar os seus companheiros e a
comer e beber com ébrios, virá o senhor daquele servo em dia em que
não o espera e em hora que não sabe e castigá-lo-á, lançando-lhe a
sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes‖.

Lucas 12.41-46 ―Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta


parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é,
pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus
conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado
aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.
Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas, se
aquele servo disser consigo mesmo: Meu senhor tarda em vir, e passar a
espancar os criados e as criadas, a comer, a beber e a embriagar-se,
virá o senhor daquele servo, em dia em que não o espera e em hora que
não sabe, e castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os infiéis‖.

A parábola do servo fiel está entre aquelas nas quais Jesus ensina
a necessidade da vigilância. Além de enfatizar a vigilância, Jesus,
também, reforça a característica da fidelidade. Em resumo, a parábola
se refere a um servo que recebe a responsabilidade de administrar a
casa, na ausência de seu senhor. Se ele provar ser fiel e prudente, o
senhor o recompensará generosamente ao regressar. Mas, se for
preguiçoso, indigno e descuidado, o senhor voltará quando não estiver
sendo esperado e lhe infligirá severa punição.

O Servo Fiel

Mateus e Lucas, ambos, mostram que Jesus se dirigia a seus


discípulos (Mt 24.1; Lc 12.22). Quando Jesus estava ensinando seus
discípulos, foi interrompido por Pedro que perguntou se a parábola se
referia a eles ou a todos217. Isto é, o ensino de Jesus se aplicava
especificamente a seus discípulos? Ou era para ser aplicado também
aos outros? Foi Pedro, o porta-voz dos doze, quem fez a pergunta. Ele
estava sempre pronto a indagar (Mt 15.15). Perguntou Pedro: ―Senhor,
proferes esta parábola218 para nós ou também para todos?‖ Jesus

217 Jeremias, Parables, p. 99, considera Lc 12.41 como uma ―situação criada‖, embora
seu ―uso lingüístico mostre que se achava na fonte de Locas‖. No entanto, por causa
da referência aos discípulos (Lc 12.22) como os que ouviam diretamente a Jesus, não é
possível rejeitar o caráter histórico da pergunta de Pedro (Lc 12.41).
218 A expressão ―esta parábola‖ não deve ser tomada literalmente como se referindo

apenas parábola do ladrão. Tomada mais amplamente, ela inclui a parábola do


porteiro. Esse uso abrangente da palavra parábola é encontrado também em Lc 15.3
respondeu a Pedro contando uma outra parábola: a história a respeito
de um servo fiel.

O senhor de um determinado número de servos tinha que deixar


sua casa por algum tempo. Fez os planos necessários para sua viagem e
chamou um dos servos que, na sua opinião, seria capaz de administrar
o dia-a-dia da casa219. Confiou-lhe a responsabilidade de cuidar dos
outros conservos, de alimentá-los no devido tempo, e de provar sua
fidelidade e prudência, durante a ausência de seu senhor. Se encontrar
tudo em ordem quando voltar, o senhor tem a intenção de promover o
servo passando-o a administrador de todos os seus bens.

O servo demonstra duas características indispensáveis: fidelidade


e prudência. Ele é digno de confiança porque quando diz sim, é sim, e
quando diz não, é não. Seus conservos sabem que ele não falta à sua
palavra. Podem confiar nele. Ele, também, é perspicaz, pois sabe
antecipar os problemas, e está sempre preparado para enfrentá-los e
resolvê-los, efetivamente. Com aparente facilidade, tem sempre o
controle da situação.

Quando o senhor volta de sua viagem, inspeciona tudo e encontra


tudo em ordem. Fica contente com as referências elogiosas feitas a seu
servo. Como recompensa à sua fidelidade, o senhor promove o servo à
posição de administrador de todos os seus bens. Ele sabe, agora, que o
servo passou no teste, administrando sua casa com eficiência. Como
prêmio, coloca-o na segunda posição de comando.

O Servo Infiel

Quando um senhor coloca alguém como responsável por sua


casa, ele escolhe um servo em quem confia e de quem espera boa
conduta. Quer deixar sua casa em mãos seguras. Mas, nem sempre a
natureza humana é confiável, e o senhor pode cometer um grande erro
quando faz sua escolha por determinado servo, em quem pensa poder
confiar. Em outras palavras, o senhor nunca pode ter a certeza absoluta
de que o servo corresponderá às suas expectativas.

O servo pode aparentar confiabilidade, antes de ser escolhido,


mas, quando seu mestre parte, ele revela seu verdadeiro caráter. É
ardiloso, cruel e descontrolado. Com base em outras viagens feitas pelo
seu senhor, o servo calcula que ele vai demorar bastante. Na ausência
do dono, o servo maltrata os outros servos, seus companheiros. Ele se
sente seguro ao fazê-lo, pensando que o dia da volta de seu senhor está
distante. Passa o tempo na companhia de bêbados, com os quais se

que inclui as histórias da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo.


219 O termo oikonomos pode significar: a) um escravo de confiança a quem se dá

autoridade na casa de seu senhor (Lc 12.42); b) um oficial público coletor de rendas
(Rm 16.23); c) um administrador (Lc 16.1), SB, 11:219.
entrega a excessos de comida e bebida220.

Seu senhor se apressa a voltar para casa, e aparece súbita e


inesperadamente. O que fará o senhor com o servo que foi irresponsável
e infiel? Ouve as histórias sobre seu comportamento, suas farras e sua
indolência. Nada lhe escapa. Ele toma conhecimento de tudo. O senhor
agora é o juiz e o executor da lei. Ele deve pronunciar o veredicto e
declarar culpado o ofensor. Então, administrará a punição apropriada.

Jesus disse: ―E castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os


hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes‖ (Mt 24.51). Há uma
versão em inglês que diz: ―Cortá-lo-á em pedaços.‖ Este texto é de difícil
interpretação, pois se a frase for tomada literalmente, como poderá ser
lançado com os hipócritas? É possível que o texto apresente uma
expressão idiomática, que deva ser entendida metaforicamente221, como,
por exemplo, a expressão ―esfolar vivo Os escritos de Cunrã lançam
nova luz sobre o texto222. A expressão ―cortá-lo-á em pedaços‖ é uma
tradução mais literal de ―cortá-lo fora‖, tirá-lo do meio de seu povo.
Desse modo, está em harmonia com o ensinamento do Salmo 37, que
afirma que o justo herdará a terra, mas o ímpio será exterminado223. O
servo que falhou diante de seu senhor recebe o oposto da recompensa
recebida pelo servo responsável e fiel. Ele é separado, lançado fora e
extirpado de seu povo.

Interpretação

O relato da parábola é idêntico nos Evangelhos de Mateus e


Lucas, exceto na escolha das palavras da narrativa. Por exemplo, o
servo fiel e prudente no Evangelho de Mateus é um mordomo fiel e
prudente no Evangelho de Lucas; embora Lucas se refira a ele como
―servo‖ no restante da parábola. Mateus escreve que o servo mau passa
a espancar os seus companheiros, mas Lucas diz que ele passa a
espancar os criados e as criadas. Este servo terá seu lugar com os
hipócritas, de acordo com Mateus, e um lugar com os infiéis, segundo
Lucas224.

Algumas outras pequenas diferenças podem, ainda, ser


apontadas, mas que importância têm? Naturalmente, o apóstolo

220 Na parábola do servo fiel e do infiel ecoa a história de Aicão. Veja-se R. H. Charles,
Apocrypha and Pseudepigrapha (Oxford: Clarendon Press, 1977), 2: 715.
221 Bauer, et al, Lexicon, p. 200, admite o significado de ―punir com a maior

severidade‖.
222 O. Betz, em ―The Dichotomized Servant and the End of Judas Iscariot‖, RQ 5(1964):

46, se refere a 1QS2:16,17: ―Deus ‗separará‘ o hipócrita pela maldade, de modo que
será extirpado do meio de todos os filhos da Luz; ... ele terá a parte que lhe cabe no
meio daqueles excomungados para sempre.‖ O verbo dichotomein e a frase tithenai
meros tinos são hapax legomena, no Novo Testamento, são, portanto, passíveis de
várias interpretações. Consulte ieremias, Parables, p. 57 nº 30, 31.
223 Salmos 37.9a, 22b, 34b, 38b.
224 O uso de amem, característico de Jesus, em Mateus 24.47, é alethos, em Lc 12.44.
Mateus, guiado pelo Espírito Santo, se recordou de tudo que Jesus lhe
havia dito (Jo 14.26). Lucas confiou nas informações que lhe foram
dadas pelas testemunhas oculares e pelos ministros da Palavra (Lc
1.2)225. Os dois escritores foram inspirados pelo Espírito Santo, quando
escreveram seus Evangelhos, embora cada um reflita seu próprio estilo
e propósito. Como judeu, Mateus procurou trazer o evangelho aos
judeus seus contemporâneos. Lucas, helenista, escreveu seu Evangelho
para aqueles que, naqueles dias, falavam grego.

Ao usar o termo mordomo, no começo de sua parábola, Lucas


quer chamar a atenção para o chefe dos servos que é o responsável pela
casa de seu senhor226, com seus criados e criadas. Ao usar a palavra
servo, em todo o restante da parábola, Lucas mostra, claramente, que
vê os responsáveis pela administração de modo muito semelhante ao de
Mateus. O uso de palavras diferentes, portanto, pode ser atribuído ao
estilo característico de cada escritor. Isso é especialmente verdade com
respeito ao uso da palavra hipócritas que ocorre mais freqüentemente
no Evangelho de Mateus227. Lucas, por outro lado, usa o termo infiéis,
que no contexto não difere em sentido da palavra usada por Mateus,
pois um hipócrita é, de fato, um infiel228.

A parábola pretende chamar a atenção para a responsabilidade


que recebem os seguidores de Jesus. Alguns desses seguidores recebem
privilégios maiores que outros, mas são investidos de responsabilidades,
também maiores. Porque cada um tem o seu próprio dever no serviço do
Senhor229; ninguém está excluído ou isento. A parábola, na seqüência
de Mateus, serve de introdução à parábola das dez virgens e à dos
talentos. Para Jesus todos são responsáveis.

Jesus é representado pelo senhor da casa. Ele parte, com a


promessa de seu retorno. Na ausência de Jesus, seus seguidores
recebem privilégios e responsabilidades. Se o crente for fiel e prudente
no desempenho de seus deveres, Jesus o recompensará
abundantemente, em sua volta. Mas, se for infiel e agir
irresponsavelmente, a volta de Jesus será para ele um acontecimento
inesperado, do qual resultará sua completa separação do povo de Deus
e conseqüente punição.

225 Os dois evangelistas podem ter tido acesso a uma fonte comum, quando
escreveram seus Evangelhos. É possível, também, que Locas tenha consultado o
Evangelho de Mateus, quando escreveu o seu. W. C. Allen, The Gospel According to St.
Matthew (ICC) (Edinburgh: T&T Clark, 1922), p. 262.
226 Michel, TDNT, V:150.
227 A palavra é usada treze vezes no Evangelho de Mateus (6:2,5,16; 7.5; 15.7; 22.18;

23.13,15,23,25,27,29; e 24.51), uma vez em Marcos (7.6), e três vezes no Evangelho


de Lucas (6.42; 12.56; e 13.15).
228 Plummer, Luke, p. 333.
229 Michaelis, Gleichnisse, p. 74 e Jeremias, Parables, p. 56, por causa da pergunta de

Pedro (Lc 12.41), aplicam a parábola de Lucas aos apóstolos. Mas, esta interpretação
significaria que a parábola tem pouco ou nenhum significado em relação aos cristãos.
Enquanto Mateus conclui a parábola com a expressão conhecida:
―ali haverá choro e ranger de dentes‖ (Mt 24.51)230, Lucas termina a
seqüência das três parábolas sobre a vigilância (o porteiro, o ladrão e o
servo fiel e prudente) com palavras conclusivas de Jesus, registradas
apenas por Lucas:

―Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e


não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido
com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade
do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação, levará poucos
açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito será
exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe
pedirão‖ (Lc 12.47, 48).

230A expressão é registrada seis vezes por Mateus e uma vez por Lucas (Mt 8.12;
13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28).
21. As Dez Virgens

Mateus 25.1-13 ―Então, o reino dos céus será semelhante a dez virgens
que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo.
Cinco dentre elas eram néscias, e cinco, prudentes. As néscias, ao
tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo; no entanto, as
prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas vasilhas. E,
tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram. Mas, à
meia-noite, ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí ao seu encontro! Então,
se levantaram todas aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas. E
as néscias disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as
nossas lâmpadas estão-se apagando. Mas as prudentes responderam:
Não, para que não nos falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o
vendem e comprai-o. E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as
que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a
porta. Mais tarde, chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor,
senhor, abre-nos a porta! Mas ele respondeu: Em verdade vos digo que
não vos conheço. Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora‖.

Apenas Mateus registrou a parábola das dez virgens. Ele,


habilmente, colocou a parábola após o sermão de Jesus sobre o final
dos tempos. Na última parte desse sermão, Jesus fala da divisão entre
os que são eleitos, atentos e fiéis, e aqueles que não o são. ―Então dois
estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas estarão
trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra‖ (Mt
24.40,41). O servo fiel e prudente será responsável por todos os bens de
seu senhor, mas o servo infiel terá seu lugar com os hipócritas (Mt
24.45-5 1). Na parábola das dez virgens, cincos entram na casa do
noivo; as outras cinco encontram fechada a porta. Este tema da
separação entre os bons e os maus continua na parábola dos talentos
(Mt 25.14-30), e na descrição de um pastor separando as ovelhas dos
cabritos (Mt 25.31-33).

As Bodas

Jesus conta a história de dez damas de honra que, de acordo com


o costume nupcial do lugar, naquela época, se preparavam para
aguardar a chegada do noivo. É uma história interessante que tem
como objetivo ensinar a lição da necessidade de se estar preparado.

Embora as informações a respeito sejam variadas e imprecisas,


podemos supor que nos dias de Jesus o casamento acontecia em idade
precoce. Porque a maturidade sexual se dá na adolescência, em Israel
os casamentos eram contratados nos seus primeiros anos231. Era
costume a noiva se cercar de dez damas de honra232, escolhidas entre

231 P. Trutza, ―Marriage‖, ZPEB, pp. 4, 96, indica que ―os rabinos fixavam doze anos,
como a idade mínima para as meninas se casarem e treze para os meninos.
232 ―As damas de honra cercavam a noiva, toda de branco, e eram, usualmente, dez.‖

Daniel. Rops, Daily Life in Palestina of the Time of Christ (London: 1962), p. 124. Do
suas melhores amigas e da mesma idade que ela.

A sentença introdutória: ―Então o reino dos céus será semelhante


a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se
com o noivo‖, descreve a cena233. Isto é, dez moças adolescentes
tomaram suas lâmpadas e foram para a casa da noiva com o propósito
de prepará-la para o encontro com o noivo. A sentença introdutória,
naturalmente, não se refere ao encontro acontecido entre o noivo e as
dez virgens, pois este acontece mais tarde, no desenrolar da história (Mt
25.10).

Não devemos imaginar essas jovens sentadas em algum lugar, na


estrada, no meio da noite, vencidas pelo sono enquanto o óleo de suas
lâmpadas se acaba e estas se apagam. É melhor vê-las ocupadas, na
casa da noiva, enfeitando-a e cuidando dos últimos preparativos. Não
podemos afirmar com certeza que o texto também faz alusão à noiva,
como algumas versões bíblicas indicam em notas de rodapé234. É fato,
no entanto, que o objetivo da parábola não se refere à noiva. Ela focaliza
as damas de honra, e, especialmente, as cinco néscias235. As dez moças
deviam acompanhar a noiva à casa do noivo, ou de seus pais, onde, de
acordo com o costume, acontecia o casamento236.

Cinco das moças eram displicentes, cinco eram prudentes (ou


previdentes). As displicentes tinham apanhado suas lâmpadas, mas
deixaram de levar o óleo. Que tipo de lâmpadas eram essas que
precisavam de freqüente reabastecimento para continuar brilhando? As
pequenas lamparinas usadas em casa não seriam apropriadas para
uma procissão ao ar livre, porque o vento apagaria sua chama. As
Lâmpadas do cortejo das bodas eram tochas. Consistiam de uma longa
vara com trapos encharcados de óleo no topo. Quando acesos esses
archotes queimavam com grande brilho, iluminando o cortejo festivo,
em sua caminhada até à casa do noivo. Entretanto, por causa da
brilhante chama ardente, a vasilha de cobre, que continha o óleo, logo
se esvaziava. De quinze em quinze minutos os trapos deviam ser
novamente encharcados, para conservar a tocha ardendo237. Aquelas
que levavam as tochas deviam, pois, ter à mão um suprimento de óleo

mesmo modo J. A. Findlay, Jesus and his parables (London: Epsworth Press, 1951),
pp. 111-112, se refere às dez damas vistas por ele numa cidade da Galiléia, a caminho
da casa da noiva, para fazer-lhe companhia enquanto esperava a chegada do noivo.
233 Jeremias, ―Lampades:, ZNW 55 (1964): 199.
234 A evidência textual para a inclusão das palavras, ―e a noiva‖, no final do primeiro

versículo, vem de uma combinação de testemunhos ocidentais e cesarianos. Metzger,


Textual Commentary‘, p. 62.
235 Oesterley, Parables, p. 136.
236 Jeremias, TDNT, IV:1100.
237 Jeremias, ―Lampades‖, p. 198. Também SB, I, 969 se refere a esta pratica em

Israel, quando a noiva é trazida da casa de seu pai à de seu marido, durante a noite.
Ela é precedida por um cortejo que carrega dez tochas feitas de varas às quais são
atados recipientes de bronze, onde trapos ensopados de óleo são acesos e usados para
iluminar o caminho.
suficiente para mantê-las acesas, especialmente se fosse esperado que
as damas de honra apresentassem sua dança, à luz das tochas, na
chegada.

As cinco moças displicentes tinham chegado à casa da noivas


completamente despreparadas; foram negligentes e não Levaram
consigo o óleo extra. Porque não precisaram de suas tochas até ao
começo do cortejo, elas não tiveram, infelizmente, consciência de seu
descuido.

O noivo estava atrasado para seu encontro com a noiva. A demora


pode ter sido causada pelos acertos relativos à questão do dote. Este
antigo costume, mencionado freqüentemente nas Escrituras238, consiste
na dádiva de bens da parte da família do noivo para a família da noiva.
A conversa a respeito do dote podia tomar tempo considerável e levar a
discussões prolongadas239. Quando tudo estava devidamente
combinado, e as partes de pleno acordo, a festa de casamento tinha
início. O noivo não podia ir ao encontro da noiva antes que o dote fosse
pago e o contrato de casamento assinado240.

Enquanto esperavam, as damas de honra ficaram sonolentas e


acabaram adormecendo. Tanto as prudentes quanto as néscias
dormiram. O tempo passou rapidamente. Mas, de repente, à meia-noite,
ouviu-se um grito: ―Eis o noivo! Saí ao seu encontro‖. O noivo e seus
acompanhantes se aproximavam alegremente da casa da noiva. Dentro,
as damas de honra acordaram rapidamente, levantaram-se, se
retocaram e puseram em ordem as suas lâmpadas241. Todas as dez
tinham suas tochas ardendo brilhantemente, mas cinco delas
perceberam que sem óleo extra suas tochas estariam completamente
apagadas antes que o cortejo começasse. Tentaram contar às outras o
seu problema. Disseram: ―Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas
lâmpadas estão-se apagando‖. Mas as cinco moças, que tinham levado
consigo as vasilhas de óleo, sabiam que a cada quinze minutos teriam
que reabastecer suas próprias tochas, e mantê-las acesas durante todo
o cortejo, bem como durante a dança à luz das tochas, ao chegarem. O
bom senso lhes dizia que o óleo que traziam consigo seria suficiente
para cinco tochas, mas não para dez. Delicadamente se recusaram a
repartir o óleo. Aconselharam as moças a irem aos que o vendiam para
comprá-lo.

238 Gn 34.12; Ëx 22.16; 1 Sm 18.25.


239 Daniel-Rops, Daily Life, p. 122.
240 Para um estudo mais pormenorizado, consulte-se H. Granqvist, Marriage

Conditions in a Palestinian Village (Helsingfors: 1931), pp. 132-55. ―Se o preço pela
noiva já tivesse sido pago, as bodas podiam se realizar a qualquer tempo; podia
acontecer que o fechamento do contrato fosse adiado até ao dia do casamento, mas,
em qualquer caso, o noivo não podia levar a noiva antes que tudo estivesse
estabelecido‖, p. 155.
241 No Novo Testamento, o sentido de ―pôr em ordem, preparar‖, dado a kosmeo,

ocorre somente em Mt 25.7. H. Sasse, TDNT, III: 867.


As cinco moças que tinham passado o tempo esperando e
dormindo tinham, agora, que correr até a um vendedor, acordá-lo e
comprar o óleo necessário. Nesse intervalo, o noivo chegou e o cortejo
começou. Todos foram à casa do noivo para participar da festa. A
entrada do salão das bodas foi fechada, na casa do noivo, e ninguém
mais, que não tivesse feito parte do cortejo, tinha permissão para
entrar. Este era um procedimento costumeiro entre os ricos daqueles
dias242.

A parábola termina com a cena das cinco moças que encontraram


a porta fechada, pedindo: ―Senhor, senhor, abre-nos a porta.‖ Seu
insistente chamado trouxe à porta o noivo, que disse às moças que não
tinha nada a ver com elas243. Elas estavam muito atrasadas.

O Significado

A conclusão que Jesus dá à parábola é simples e direta: ―Vigiai,


pois, porque não sabeis o dia nem a hora‖. Ele, evidentemente, se refere
a si mesmo, e nessa parábola ensina a respeito de seu próprio retorno.
Ele é o noivo, é aquele que vem. Repetidamente, durante seu ministério,
ele fez referências ao noivo. À questão sobre por que seus discípulos não
jejuavam, Jesus respondeu: ―Podem acaso estar tristes os convidados
para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, contudo,
em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar‖ (Mt 9.15).
Além disso, o final da parábola das dez virgens é um claro eco do ensino
de Jesus, registrado em Mt 7.21-23244:

―Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos


céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: ―Senhor, Senhor!
Porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu
nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos
muitos milagres? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade‖.

O ensinamento óbvio é que Jesus exclui do reino dos céus todo


aquele que deixa de fazer a vontade de Deus, o Pai. No dia da volta de
Jesus, eles podem chamá-lo pelo nome e mostrar suas obras religiosas,
mas porque não fizeram a vontade do Pai não terão parte no reino.

Cinco das virgens da parábola são chamadas de prudentes. São


aquelas que estavam preparadas. São sábias porque estavam
completamente preparadas para a situação e seguiram as instruções

242 Oesterley, Parables, p. 135.


243 Na literatura rabínica a expressão: ―não vos conheço‖ pode ser usada por um
mestre para suspender um aluno durante uma semana, SB, 1:469; IV:I, 293.
244 Marshall, em Eschatology and the Parables, p. 39, destaca que, com respeito a Mi

7.21-23 e Mi 25.11,12, ―é difícil não ouvir neles o tom do Filho do Homem‖.


usuais cuidadosamente245. As Escrituras ensinam que uma pessoa
prudente tem verdadeiro discernimento da vontade de Deus.

As cinco moças chamadas de néscias (= displicentes) e que são o


centro da parábola não parecem culpadas de nenhum mal. Tinham a
melhor das intenções, e desejavam à noiva e ao noivo muitos anos de
felicidades. Mas não fizeram a vontade dos noivos por causa de sua
negligência ao esquecer o óleo necessário. ―Acaso se esquece a virgem
dos seus adornos, ou a noiva do seu cinto?‖ (Jr 2.32). A resposta é,
naturalmente, que não. No entanto, essas cinco moças se esqueceram
de se preparar adequadamente para a tarefa que lhes fora determinada.
Chegaram despreparadas e por isso não foram recebidas no salão das
bodas246.

Nada na parábola indica que se esperava que as dez moças


permanecessem acordadas. As prudentes, assim como as tolas, caíram
no sono enquanto esperavam. A vigilância não é, portanto, a
característica marcante ensinada nesta parábola. Antes, o que é
predominante é a disposição de estar preparado.

Como o noivo, na cultura e nos dias de Jesus, podia vir a


qualquer hora da noite, assim Jesus virá, subitamente, no dia de sua
volta.

Interpretações

A parábola das dez virgens tem sido interpretada alegoricamente,


de inúmeras maneiras, desde a igreja primitiva até aos nossos dias. Em
tais interpretações, Jesus é o noivo e as dez virgens, a igreja. A igreja se
constitui de bons e maus, os eleitos e os rejeitados, os sábios e os
displicentes. As lâmpadas que eles carregam são as boas obras, porque
os cristãos são exortados a deixarem suas obras brilhar diante dos
homens. O óleo é o Espírito Santo, pois quanto Samuel ungiu Davi com
óleo, o Espírito Santo desceu sobre ele. Os mercadores de óleo são
Moisés e os profetas. E o alarme: ―Eis o noivo!‖ É o chamado da
trombeta de Deus, quando da volta de Cristo.

Este tipo de interpretação leva à confusão e, freqüentemente,


termina em absurdos. Alguns intérpretes entendem que o óleo significa
alegria ou amor, enquanto outros o vêem como boas obras ou como a
ajuda prestada aos necessitados. Outros, ainda, consideram o óleo

245G. Bertram, TDNT, IX:234.


246O rabino Johanan ben Zakkai, contemporâneo dos apóstolos, contou a parábola de
um rei que convidou seus servos para um banquete, sem marcar a data. Os servos
prudentes se vestiram para a ocasião e ficaram à espera à porta do palácio. Os servos
displicentes continuaram trabalhando e tiveram que ir ao banquete com as roupas
sujas. O rei se alegrou com os prudentes, mas se zangou com os servos descuidados.
Shabbath 153a, Moed I, The Babylonian Talmud, (London: Soncino Presa, 1938), p.
781.
como sendo a palavra de ensino247. Além disso, a falta de caridade na
atitude das virgens prudentes, em relação às cinco virgens em apuros,
poderia ser questionada. A resposta negativa — ―Não vos conheço‖ —
exigiria, também, uma avaliação crítica. Interpretações alegóricas e o
questionamento detalhado de partes da parábola, no entanto, vão
contra o espírito do ensino de Jesus248. Na parábola das dez virgens, o
intérprete não deve perder de vista a floresta por causa das proverbiais
árvores. Deve buscar o sentido principal da parábola.

Quando o profeta Natã procurou o rei Davi e lhe contou a história


de um homem rico que tomou a cordeirinha que pertencia a um homem
pobre, Davi reagiu imediatamente e quis punir a principal figura da
história — o rico. Então, Natã dirigiu-se a Davi, e disse: ―Tu és o
homem‖ (2 Sm 12.1-10). Natã transmitiu a mensagem principal da
parábola com grande eficiência, pois provocou uma resposta imediata
de Davi. Se, por outro lado, a parábola for interpretada alegoricamente,
perde seu impacto. Então o homem rico é Davi e o pobre é Urias; a
cordeirinha se transforma em Bate-Seba, mas o viajante em visita, de
certo modo, não cabe na alegoria. Resumindo, interpretar
alegoricamente os detalhes de uma parábola desvia a história de sua
direção e, muitas vezes, resulta em disparates.

A mensagem central da parábola é dirigida aos seguidores de


Jesus. Os que são prudentes e estão constantemente buscando cumprir
a vontade de Deus são os que fervorosamente oram: ―Maranata‖, ―Vem,
Senhor Jesus‖. Mas os displicentes parecem não prestar atenção à volta
iminente do Senhor. A parábola é dirigida a eles para suscitar de suas
bocas as palavras: Quão tolo se pode ser!

A parábola das dez virgens deve ser vista no amplo contexto dos
ensinamentos de Jesus a respeito de sua volta. A conclusão: ―Vigiai,
pois, porque não sabeis o dia nem a hora‖ (Mt 25.13) é uma repetição
dos versículos precedentes: ―Mas a respeito daquele dia e hora ninguém
sabe‖ (Mt 24.36), e, ―Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem
o vosso Senhor‖ (Mt 24.42). É Jesus quem profere seu familiar: ―Em
verdade vos digo‖ (Mt 25.12), indicando assim que fala a respeito de sua
própria volta. São palavras de Jesus, não de um noivo adolescente. Isto
é, por meio da parábola, Jesus ensina claramente a seus seguidores que
devem estar preparados para o sete retomo. Os que não estiverem
preparados serão excluídos, para sempre, do reino, quando Jesus
voltar. Esses são os que ouvirão Jesus dizer: ―Em verdade vos digo que
não vos conheço‖. São os insensatos que não têm lugar, em seu estilo

247 Tomás de Aquino reuniu numerosos exemplos provindos de obras dos pais da
igreja. Commentary on the Four Gospels, 1, ST. Matthew, (Oxford: p. 1842), pp. 844-
50.
248 Jeremias, em Parables, p. 51, escreve que ―Mateus viu na parábola uma alegoria a

Parousia de Cristo‖. Entretanto, como Michaelis, em Gleichnisse, p. 94, observa


corretamente: a parábola tem sido sempre uma parábola sobre a volta de Cristo. Não
há razão para considerá-la uma alegoria.
de vida249, para os pensamentos a respeito da volta de Cristo. Para eles,
o dia do Senhor virá inesperadamente, e estarão completamente
despreparados250. Então será tarde demais para qualquer mudança.

No contexto em que Jesus contou esta parábola, o tema da volta


(vinda) do senhor (noivo) predomina. O senhor do servo, a quem foi
dada autoridade, volta no tempo apropriado; o noivo vem à meia-noite; e
na parábola dos talentos, o senhor volta depois de longo tempo (Mt
25.19). Dentro desta composição, a parábola das dez virgens adquire
sua verdadeira dimensão.

Na parábola do servo investido de autoridade, ele é caracterizado


como fiel e prudente; na parábola seguinte, cinco virgens são descritas
como prudentes; e na parábola dos talentos, dois dos servos são
chamados de bons e fiéis. Sem dúvida, pois, a primeira parábola ensina
fidelidade e sabedoria; a segunda sabedoria; e a terceira fidelidade251.

249 Schippers, Gelijkenissen, p. 114.


250 R. A. Batey, New Testament Nuptial Imagery, (Leiden: Brill, 1971), p. 47.
251 Lenski, St. Matthew‘s Gospel, p. 961.
22. Os Talentos

Mateus 25.14-30 ―Pois será como um homem que, ausentando-se do


país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu
cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua
própria capacidade; e, então, partiu. O que recebera cinco talentos saiu
imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco. Do mesmo
modo, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas o que recebera um,
saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de
muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com
eles. Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou
outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui
outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo
bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo
do teu senhor. E, aproximando-se também o que recebera dois talentos,
disse: Senhor, dois talentos me confiaste; aqui tens outros dois que
ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no
pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.
Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo
que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não
espalhaste, receoso, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é
teu. Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias
que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Cumpria,
portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao
voltar, receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o
ao que tem dez. Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em
abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. E o
servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de
dentes.

A parábola dos talentos ensina que os servos do Senhor devem


ser fiéis, administrando pronta e eficientemente o que lhes foi confiado,
até ao dia do ajuste de contas. Como se espera que as noivas aguardem
a chegada do noivo, assim também é esperado que os servos aguardem
a volta de seu senhor. Embora a parábola das virgens não mencione
nada a respeito de algum trabalho feito durante sua vigília noturna, a
parábola dos talentos ensina que os servos devem se ocupar durante a
ausência de seu senhor252. As duas parábolas mostram que tanto as
mulheres como os homens devem estar alerta enquanto esperam a volta
do Senhor.

De acordo com Mateus, Jesus dirigiu-se aos seus discípulos, ao


falar sobre o final dos tempos (Capítulo 24), e prosseguiu com algumas
parábolas relacionadas com a sua volta. Tudo isso aconteceu dois ou
três dias antes da celebração da Páscoa (Mt 26.2). Por sua vez, Lucas
registra no capítulo 19.12-27, que Jesus ensinou a parábola das dez
minas depois de ter deixado Jericó, e ao se aproximar de Jerusalém,

252 Plummer, St. Matthew, p. 347.


pouco antes ou no próprio Domingo de Ramos. Essa parábola se
assemelha à dos talentos, embora as duas não sejam idênticas253. Mas
com base na estrutura e no assentamento histórico dado a elas pelos
evangelistas, além da própria finalidade das parábolas, crê que Jesus as
ensinou em duas diferentes ocasiões254.

A parábola dos talentos é a mais longa registrada no Evangelho de


Mateus. Relata de maneira pormenorizada a conversa havida entre o
senhor e seus servos. A conclusão, um tanto longa, liga-a as outras
parábolas.

O Dinheiro Confiado

A palavra talento, como a usamos hoje, se refere a um dom


natural. Assim, se uma pessoa possui talento artístico e é criativa,
geralmente é muito admirada. Mas, no Novo Testamento, talento se
refere a uma moeda de uso corrente na época, e representa determinado
valor em dinheiro. Nesta parábola devemos pensar em termos de um
salário anual recebido por um trabalhador. As quantias que o senhor
confiou aos servos eram grandes, mas não exageradamente vultosas.

Uma pessoa de posse reuniu seus servos e comunicou-lhes que se


ausentaria do país por um longo período de tempo. Ele tratou com seus
servos, não em base comercial, mas à maneira oriental, como sócios em
uma empreitada255. Sua reserva de caixa importava em oito talentos,
que ele confiou a seus três servos. O senhor conhecia seus servos muito
bem. Ele tinha aprendido a reconhecer a capacidade deles e sabia que
podia confiar-lhes sua riqueza. Esperava que empregassem bem o
dinheiro, de modo que, quando voltasse, pudesse recompensá-los por
incrementar seus lucros. Assim, deu ao primeiro servo cinco talentos,
ao segundo dois, e ao terceiro apenas um talento.

253 Muitos comentaristas pensam que Jesus, ao ensinar, usou mais que uma vez a
idéia básica, expressa nas duas parábolas, Morris, Luke, p. 273. Veja-se, também,
Geldenhuys, Luke, pp. 476-77; Plumer, St. Luke, p. 437; 1h. Zahn, Das Evangelium
des Lucas (Leipszig: A. Deichert, 1913), p. 628, nº 23; Lenski, Matthew’s Gospel, p.
971. Outros, entre eles, Manson, Sayings, p. 313, vêem duas versões de uma parábola
original. Jeremias, Parables, p. 58, afirma que a parábola dos talentos aparece em três
versões: Mt 25.14-30; Lc 19.12-27; e no trecho 18 do Evangelho dos Nazarenos. Na
verdade, entretanto, é questionável afirmar que três versões derivam de uma parábola
original especialmente quando o trecho do Evangelho Nazareno parece se basear no
relato de Mateus. De fato, P. Vielhauer conclui ―que o conteúdo (do Evangelho dos
Nazarenos) tinha semelhança grosseira com o de Mateus, e conseqüentemente era (o
Evangelho dos Nazarenos) apenas uma forma secundária de Mateus‖. New Testament
Apocrypha, cd. E. Hennecke e W. Schneemelcher (Philadelphia: Westminster Press,
1963), I:140.
254 J. Ellul, em ―du texte au sermon (18). L.es talents. Matthieu 25/13-30‖, Etudes

Théologiques et Religieuses 48 (1973): 125-38, questiona se é possível descobrir a


forma mais antiga da parábola. A mensagem da parábola é por demais complexa.
255 J. D. M. Derrett, ―The Parable of the Talents and Two Logia‖, ZNW 56 (1965): 184-

95, publicado em Law in the New Testament, pp. 17-31. Veja-se especialmente a p.
18.
Com certeza, contratos foram feitos acertando as condições
combinadas entre as partes. O capital, naturalmente, pertencia ao
senhor256. Em troca, o senhor poderia recompensar os servos
adequadamente, e eles poderiam esperar novas participações na
sociedade.

O primeiro servo investiu bem os cinco talentos, e logo havia


dobrado a quantia. Assim fez, também, o servo que recebera dois
talentos. Aquele a quem fora dado um talento, no entanto, teve medo de
investir. Talvez se sentisse diminuído pelo fato de ter sido confiada aos
outros servos uma quantia maior de dinheiro. Sabia que seu senhor era
um homem rigoroso, e que exigiria o lucro. Mas o lucro conseguido com
um talento seria pequeno em comparação com o obtido com os cinco
talentos, ou mesmo com os dois talentos do outro servo. Então, não fez
nada com o dinheiro, apenas o enterrou257. Assim ficaria em segurança.
Por ocasião da volta de seu senhor, poderia devolver-lhe a soma original
de um talento.

Dois Servos

Depois de um longo tempo, o senhor voltou e chamou seus servos


para o acerto de contas258. O dia do ajuste chegara. Os livros foram
abertos e cada servo prestou contas do dinheiro que lhe havia sido
confiado.

O primeiro servo apresentou não apenas os cinco talentos


recebidos, mas, também, os outros cinco que havia conseguido.
Devolveu a seu senhor o capital e o lucro, totalizando dez talentos. Ele
entregou a seu amo uma grande quantia de dinheiro, que provava, sem
dúvida, que tinha sido digno da confiança que nele fora depositada.
Sem chamar atenção para si mesmo, com simplicidade, fez seu senhor
notar os cinco talentos adicionais259.

A resposta do senhor foi equivalente à fidelidade do servo. Foi


generoso ao exaltá-lo e recompensá-lo. Primeiro exclamou: ―Muito bem‖,
elogiando o excelente desempenho do servo. A seguir, chamou-o de
servo ―bom e fiel‖. E, em terceiro, o colocou como responsável por
muitas coisas. Ainda, em quarto lugar, convidou-o a se assentar à sua
mesa e a celebrar com ele o resultado obtido260. Sentar-se à mesa com o

256 SB, 1:970. Dos ensinos dos rabinos fica evidente que tanto o capital como o lucro
pertenciam ao senhor dos servos. Entretanto, se o servo fosse hebreu, podia acumular
o lucro para si mesmo.
257 De acordo com os rabinos, ―o dinheiro só pode ser guardado (colocando-o) na

terra‖, Baba Mezia 42a, Nezikin I, The Babylonian Talmud, 250-51.


258 Mateus 18.23.
259 À luz de Lv 26.1-13 e Dt 28.1-14, os judeus sabiam que Deus concede recompensa

à obediência fiel. Por causa dessas bênçãos, o judeu obediente estaria, econômica e
politicamente, sempre em posição elevada.
260 A expressão ―entra no gozo‖ do senhor ê equivalente a ―entra no reino‖ ou ―entra na
senhor implica, obviamente, em igualdade.

O segundo servo apresentou-se diante do seu senhor com os dois


talentos, bem como com os dois a mais que ganhara no investimento
que fizera com o dinheiro. Também este servo não procurou chamar a
atenção para si mesmo, mas para os talentos que conseguira. O senhor
não foi menos generoso com o segundo servo do que fora com o
primeiro. Da mesma maneira, as recompensas foram equivalentes à
fidelidade demonstrada. O senhor provou ser muito generoso.

Um Servo

Quando o terceiro servo se apresentou para prestar contas, a


cena mudou. Em vez de devolver o dinheiro que lhe fora confiado, como
tinham feito os dois primeiros, o servo começou a fazer um pequeno
discurso. Não louvou o senhor pela generosidade demonstrada. Antes,
descreveu seu senhor como um homem rigoroso, que ceifava onde não
havia semeado, e que recolhia onde não havia espalhado a semente.
Porque teve medo de arriscar, tinha cavado um buraco na terra e
enterrado ali o dinheiro. Parecia dizer a seu senhor: ―Porque o senhor
teve tão pouca confiança em mim, entregando-me apenas um talento? O
que eu poderia realmente fazer com ele, levando-se em conta que, se
tivesse algum lucro, eu pouco veria dele? Por desforra decidi nada fazer
com o dinheiro261‖.

Seu discurso foi caracterizado pela contradição. Ele falhou não


entendendo a bondade do senhor, mas vendo-o segundo sua própria
natureza invejosa e egoísta. Ele se sentiu diminuído, embora afirmasse
que temera fazer qualquer investimento com o dinheiro. Ele não usou o
talento de modo lucrativo, mas parecia esperar palavras elogiosas por
apenas tê-lo guardado em segurança262. Queria que entendessem que
não perdera nada do dinheiro de seu senhor. Explicitamente, disse que
o talento pertencia ao seu senhor. Ele o conservara em segurança.

Por que o servo não guardou o dinheiro no banco, onde renderia


juros? Provavelmente não confiava nos banqueiros inescrupulosos que
podiam alterar ou invalidar o combinado263. Talvez, o servo estivesse
motivado por um desejo de vingança contra o senhor e, por isso, tivesse
decidido não depositar o dinheiro num banco. Embora o investimento
envolvesse algum risco, ele sabia que o senhor, ao voltar, poderia

vida‖. J. Schneider, TDNT, 11:677. A felicidade ou a alegria fazem pensar em festa,


Jeremias, Parables, p. 60, n~ 42; e pode significar um banquete, Smith, Parables, p.
166; G. Dalman, The Words of Jesus (Edinburgh: 1. & 1. Clark, 1902), p. 117.
261 Derrett, Law in The New Testament, p. 26.
262 Michelis, Gleichnisse, p. 1110.
263 Daniel-Rops, em Palestine, p. 253, cita que os rabinos tentavam estabelecer regras

para o procedimento nos negócios, mas que, nem sempre, essas eram observadas.
Embora o empréstimo com juros fosse proibido pela lei de Moisés, os rabinos
conseguiram burla-la fazendo uma distinção entre empréstimo com juros e usura. A
usura era condenada.
recuperar o talento, com lucro264. Ao enterrar o talento privaria o
senhor dos juros acumulados. Assim, quando seu senhor voltasse, o
servo poderia devolver-lhe o único talento.

O Senhor

Quando o senhor entregou a soma de oito talentos aos seus três


servos, ele mesmo se tornou dependente da honestidade e da lealdade
dos servos. Se eles perdessem o dinheiro em transações comerciais,
seria um homem arruinado. Compreensivelmente, pareceu bastante
satisfeito quando o primeiro e o segundo servos mostraram haver
dobrado a quantia confiada a eles. Ele os louvou pela diligência e os
recompensou generosamente.

A chegada do terceiro servo com o único talento deixou claro ao


senhor que ele havia julgado mal o caráter de seu servo, que tinha se
equivocado ao depositar confiança nele, e que em vez de recompensá-lo
tinha que puni-lo.

A resposta do senhor à fraca desculpa do servo para sua


indolência foi o oposto da sua resposta aos outros dois servos. Primeiro
palavras de louvor não podiam ser pronunciadas. Segundo, o senhor
chamou o servo de mau e negligente. Terceiro, criticou-o pela preguiça e
falta de lealdade. E quarto, mandou que retirassem o servo de sua
presença, para sempre.

O servo foi julgado por suas próprias palavras. Sabia que seu
senhor esperava que seus servos se esforçassem ao máximo. De fato, o
senhor era um homem que queria colher onde não havia semeado e que
agarrava a oportunidade quando esta se apresentava. Por estas
atitudes, se tornou um homem duro aos olhos do servo indolente.

―Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez‖, disse o senhor.


Mesmo tendo afirmado explicitamente que o talento pertencia ao
senhor, o que o servo preguiçoso disse pôs fim à relação senhor-
servo265. A sociedade com os outros dois servos continuou, enquanto o
terceiro sabia que não era mais um dos sócios. Agora era olhado como
um devedor que tinha que pagar juros sobre o dinheiro que tivera nas
mãos. Se tivesse entregado o dinheiro aos banqueiros, o senhor o teria
exigido com juros. O senhor, então, voltando-se para o servo, procurou
recuperar o que, de direito, lhe pertencia, isto é, os lucros esperados.
―Ao que não tem, até o que tem lhe será tirado266‖. Assim, todas as
propriedades do servo lhe foram tomadas. O servo era inútil para o seu
senhor. Foi lançado fora, nas trevas (de acordo com as palavras

264 Bauer, et al., Lexicon, p. 443.


265 Derrett, Law in the New Testament, p. 28.
266 Mt 25.29, exceto por pequenas variações, é idêntico a Mt 13.12 (e os paralelos, Mc

4.25; Lc 8.18). Também a conclusão da parábola do servo investido de autoridade tem


enunciado semelhante, Lc 12.48. Veja-se, também, Lc 19.26.
familiares de Jesus)267, onde ―haverá choro e ranger de dentes‖.

O Significado

A parábola dos talentos se insere no conjunto de ensinamentos de


Jesus a respeito de sua volta. As damas de honra esperavam o noivo; os
servos que receberam dinheiro de seu amo, trabalharam. A parábola
ensina que, durante a ausência de Jesus, espera-se que seus
seguidores trabalhem diligentemente com os dons a eles confiados, pois
serão considerados responsáveis por eles, (na ocasião) de sua volta. Por
causa de pronunciamentos tais como ―entra no gozo do teu senhor‖ e ―o
servo inútil lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de
dentes‖, Jesus deixa entender que estas não são apenas as palavras do
senhor. São suas próprias palavras referindo-se ao dia do juízo.

Quando os discípulos primeiro ouviram a parábola, podem ter


pensado que ela se aplicasse não a eles, mas aos seus contemporâneos.
Aos judeus tinha sido confiada a verdadeira Palavra de Deus, como
Paulo afirmou, anos mais tarde268. Eles podiam ver o paralelo do
relacionamento do senhor com seus servos e de Deus com Israel. Deus
dera ao povo judeu a sua Palavra e esperava que eles tornassem sua
revelação conhecida em todos os lugares. Mas, nos dias de Jesus, um
judeu piedoso podia observar a Lei de Deus cm seus pormenores e,
ainda assim, negligenciar ao repartir as riquezas da revelação de Deus.
Os discípulos de Jesus talvez tenham visto os fariseus defensores da lei
e os mestres da lei personificados no servo que enterrou o único talento
que seu mestre lhe havia dado269. Aos líderes religiosos de Israel tinha
sido confiado um depósito sagrado: muitos deles falharam, no entanto,
deixando de usá-lo de modo apropriado. Eles se sentiam satisfeitos de
poder devolvê-lo a Deus, dizendo: ―Temos guardado a Lei‖. Guardaram
para si mesmos o depósito. Fazendo isso falharam, pois não o puseram
para render. Mas Deus, que lhes dera a guarda sagrada de sua
revelação, um dia os chamaria para o ajuste de contas.

A parábola dos talentos foi primeiramente endereçada aos


discípulos de Jesus. Eles eram os únicos a quem o evangelho tinha sido
confiado; a eles fora dito que pregassem o arrependimento e o perdão,
em nome de Cristo, a todas as nações, começando por Jerusalém (Lc
24.47). Mas, o ensinamento da parábola não se limitava aos discípulos.
O autor da Epístola aos Hebreus advertiu explicitamente os cristãos de
seus dias, ao perguntar: ―como escaparemos nós, se negligenciarmos

267 Mt 8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28.


268 Rm 3.2. Em sua Epístola Pastoral a Timóteo, Paulo o exorta a guardar o que lhe
fora confiado. 1 Tm 6.20; 2 Tm 1.14.
269 Dodd, Parables, p. 151; Jeremias, Parables, p. 62; Smith, Parables p. 168; E.

Kamlah, ―Kntik und lnterpretation der Parabel von den anvertrauten Geldern: Matt
25,14ff.; Luke 19, 12ff.‖ Kerygma und Dogma 14 (1968): 28-38; J. Dupont. La
parabole des talents (Matt 25.14-30) ou des minas (Lc 19.12-27), ―Revue de
Théologie et de Philosophie 19 (1969): 376-91.
tão grande salvação?‖ (Hb 2.3). E, através dos séculos, a parábola dos
talentos tem falado, e continua a falar, a todos os cristãos. Eles devem
ser o canal por onde a mensagem da Palavra de Deus flui para o mundo
que os cerca.

Conclusão

O servo a quem foi confiado um único talento guardou o depósito


em segurança, em um lugar escondido. Temeu investi-lo, pois sabia que
seu senhor exigiria seu talento, ao voltar. O receio, portanto, sobrepujou
o amor, a confiança e a fé270. O medo é o oposto da confiança.

O cristão que trabalha com fé colherá imenso dividendo. Ele não


se preocupa consigo mesmo ou com seus próprios interesses, pois o que
quer que tenha pertence ao Senhor, e o que quer que faça o faz pelo
Senhor. Nenhum seguidor de Jesus pode jamais dizer que lhe faltam
dons para o serviço, simplesmente por não ter a estatura de um Paulo,
Lutero, Calvino ou Knox. A parábola ensina que cada um dos servos
recebeu dons: “segundo a sua própria capacidade‖. Jesus conhece a
capacidade de cada cristão e espera receber frutos.

Como em várias outras parábolas, não devemos realçar e aplicar


pormenores específicos. O que importa é a mensagem central. O ensino
básico da parábola dos talentos é que cada crente é dotado de dons
diferentes, quanto a sua habilidade, e que esses dons devem ser postos
a serviço da obra de Deus. No reino de Deus é esperado que cada um
empregue plenamente os dons que recebeu. No reino de Deus não há
lugar para zangões — apenas para as abelhas operárias!

270 Mänek, Frucht, p. 73.


23. O Grande Julgamento

Mateus 25.31-46 ―Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e


todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e
todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns
dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as
ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos
que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na
posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.
Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber;
era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e
me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos:
Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou
com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te
hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou
preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos
afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos,
a mim o fizestes. Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua
esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos. Porque tive fome, e não me destes de comer;
tive sede, e não me destes de beber; sendo forasteiro, não me
hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e
preso, não fostes ver-me. E eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi
que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e
não te assistimos? Então, lhes responderá: Em verdade vos digo que,
sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o
deixastes de fazer. E irão estes para o castigo eterno, porém os justos,
para a vida eterna‖.

Estritamente falando, a passagem a respeito do juízo final é muito


mais uma profecia que uma parábola. Apenas a parte que fala das
ovelhas e dos cabritos pode ser considerada uma parábola. E essa breve
comparação serve perfeitamente ao propósito de Jesus, quando ensina
a seus discípulos a doutrina do último julgamento271. Rapidamente,
Jesus se refere a uma cena bucólica comum em seus dias, O pastor
reúne ovelhas e cabritos em um rebanho. Em áreas onde a grama é
escassa por causa da seca, os cabritos preferem comer as folhas e os
rebentos mais do que pastar272. Eles ficam no mesmo rebanho com as
ovelhas, mas nem os cabritos nem as ovelhas se misturam. Ao

271 Examinando a teologia de Mateus, 6. Gray, cm ―The Judgment of the Gentiles in


Matthes‘s Theology”, Scripture, Tradition and Interpretation, Festschrift honoring
E. F. Harrison (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 199-215, conclui que o julgamento
dos gentios não pode decididamente ser o julgamento final de todos os homens‖, p.
213. J. R. Michels, ―Apostolic Hardships and Righteous Gentiles: A study of Matthew
25.31-46w, JBL 84 (1965); 27-38; R. C. Oudersluys, ‗The Parable of lhe Sheep and
Goats (Matthew 25.3146): Eschatology and Mission, Then and Now”, RefR 26 (1973):
151-61. Permanece o fato, no entanto, que a parábola como um todo diz respeito ao
último julgamento, e o último julgamento inclui todos os homens e é final.
272 Cansdale, Animais of Bible Lands, p. 44.
entardecer, as ovelhas atendem ao chamado do pastor, mas os cabritos,
muitas vezes, o ignoram. Quando cai à noite, as ovelhas preferem ficar
ao ar livre, ao contrário dos cabritos, que não suportam o frio e
precisam se abrigar273.

O pastor põe as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Ele não


separa os machos das fêmeas, e, sim, as ovelhas dos cabritos.
Simbolicamente, coloca as ovelhas à sua direita e os cabritos de seu
lado esquerdo. As ovelhas valem mais que os cabritos274, e sua lã
branca, que não se confunde com a pele malhada dos cabritos, se
destaca como símbolo de justiça275. O bode, há muito tempo, vem sendo
associado com o mal. O Velho Testamento retrata o bode como o
portador do pecado, que é enviado para o deserto (Lv 16.20-22). Mesmo
nós, em nossa própria linguagem, usamos a passagem registrada em
Levítico. Além disso, o lado direito significa sempre o que é bom, porém
o esquerdo pode se referir a algo sinistro, sombrio, mau e vil.

Todas as nações do mundo são comparadas a ovelhas e cabritos


que são separados pelo pastor, no fim do dia. As nações serão reunidas
diante do Filho do Homem sentado em seu trono na glória celestial. Ao
comando divino, os anjos se adiantarão e reunirão os eleitos dos quatro
ventos e os apresentarão diante do trono do juízo (Mt 13.41,42; 24.31; 2
Ts 1.7,8; Ap 14.17-20). Todos os povos estarão diante do Juiz. Tanto os
bons, quanto os maus, os ímpios como os justos. Ninguém será
excluído. O Juiz separará uns dos outros, como o pastor divide seu
rebanho de ovelhas e cabritos depois de tê-los apascentado durante o
dia.

O Lado Direito

O tema da separação e do juízo se desenvolve através de todo o


Evangelho de Mateus. O trigo é ajuntado no celeiro, mas a palha é
queimada em fogo que não se extingue (Mt 3.12); o joio é separado do
trigo e atado em feixes para ser queimado, enquanto o trigo é recolhido
no celeiro (Mt 13.30). No final dos tempos, os anjos separarão os justos
dos maus, e os ímpios serão lançados na fornalha acesa (Mt 13.49,50).
As cinco virgens néscias encontram a porta fechada e ouvem a voz do
noivo dizer: ―Não vos conheço‖ (Mt 25.12). O servo negligente, que
enterrou seu único talento, é lançado fora, na escuridão (Mt 25.30). Na
parábola das ovelhas e dos cabritos, o princípio da separação e do
julgamento é claramente aplicado.

O Filho do homem, como Jesus se refere a si mesmo, vem em sua


glória e se assenta em seu trono celestial, cercado por seus anjos.
Passagens das Escrituras, no Velho Testamento, reiteram esta verdade
que, sem dúvida, aponta para o último julgamento, como um

273 Armstrong, Parables, p. 191; Jeremias, Parables, p. 206.


274 Dalman, Arbeit und Sïtte, VI: 217.
275 Jeremias, Parables, p. 206; Mánek, Frucht, p. 76.
julgamento universal276. Na parábola das ovelhas e dos cabritos, Jesus
aceita todos aqueles trazidos diante dele, que foram eleitos desde a
eternidade. São aqueles que ouvem o Rei dizer: ―Vinde, benditos de meu
Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação
do mundo‖. Eles são salvos, portanto, porque Deus, o Pai, os tinha
abençoado e lhes diz que tomem posse do reino que já antes lhes havia
sido preparado277. A salvação dos justos não tem raízes em suas boas
obras, senão na vontade de Deus, o Pai. As boas obras, que os justos
praticam, não são a raiz, mas, sim, o fruto da graça278. As boas obras
não são anuladas pela graça eletiva de Deus; são esperadas de seus
filhos benditos como uma efusão natural de obediência e amor.

De modo interessante, sem explicação, o evangelista muda da


imagem do Filho do homem para a do Rei. Por que Mateus usa estes
dois títulos? Certamente, a identificação de Jesus, como o Filho do
homem, com a raça humana, é evidente por si mesma. Mas, a transição
do Filho do homem para o Rei se torna significativa à luz da profecia de
Daniel, onde a pessoa do Filho do homem vem com as nuvens do céu.
―Foi-lhe dado o domínio, a glória e o reino, para que os povos, nações e
homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio
eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído‖ (Dn
7.13,14). O Filho do homem, incontestavelmente, é Rei, e no dia do juízo
fala como juiz soberano279.

As obras dos justos são atos de amor e misericórdia não


intencionais realizados para o próprio Cristo. Por seis vezes Jesus, ao
falar com os justos, usa o pronome da primeira pessoa singular — eu —
, contrapondo-a a vós que se refere a outros.

(Eu) tive fome e me destes de comer;


(Eu) tive sede e me destes de beber;
(Eu) era forasteiro e me hospedastes;
(Eu) estava nu e me vestistes;
(Eu estava) enfermo e me visitastes;
(Eu estava) preso e fostes ver-me280.

276 Zc 14.5; Mt 16.27; 19.28; 2 Ts 1.7; Jd 14,15; Ap 3.21; 20.11,12. No trecho


chamado ―Parábolas‖, no Livro de Enoque 62.5, o Ímpio ―vê o Filho do homem sentado
no trono de sua glória‖. Ele, que é o Messias, executa todos os pecadores pela palavra
de sua boca. Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha, 2:228.
277 O tempo do verbo em ―benditos‖ (=eulogemenoi) e em ―preparados‖
(=hetoimasmenen) indica ação que, praticada no passado, tem significado
permanente para o presente e o futuro.
278 Hendriksen, Matthew, p. 888.
279 Plummer, Si. Matthew, p. 350; Mánek, Frucht, p. 75; Manson, Sayings, p. 249.
280 No Testaments of the Twelve Patriarchs, Joseph 1.5,6, encontramos tênue eco

dessa passagem, embora reconhecidamente o pensamento divirja em muito do de


Mateus.
‗Eu fui vendido como escravo, e o Senhor me livrou; Fui levado cativo, e sua forte mão
me socorreu.
Fui cercado pela fome, e o Senhor mesmo me alimentou. Estava só, e Deus me
confortou;
Em todos os seus atos, os justos têm demonstrado
responsabilidade humana e genuíno interesse. Provaram ser cidadãos
dignos do reino dos céus. No dia do juízo, receberão o privilégio de
tomar posse do reino. Em suas atividades diárias mostraram fidelidade
e diligência. No dia do julgamento, receberão sua recompensa. Nas
pequenas coisas da vida, os justos demonstraram seu amor e lealdade.
No último dia, serão honrados pelo próprio Deus.

As pessoas que permanecem à direita de Jesus, o Rei, ouvem-no


dizer que o alimentaram quando estava faminto, e lhe deram de beber
quando tinha sede; e foram os únicos que o convidaram a entrar, o
vestiram, cuidaram dele, e o visitaram. Eles se preocuparam com as
pessoas com as quais Cristo se identificou. Mas, quem são estas
pessoas que se tornaram recipientes do amor e da bondade dos justos?
Esta é a questão que, surpreendidos, propõem a Jesus: ―Senhor,
quando foi que te vimos com fome?‖ E a resposta do Rei é: ―Em verdade
vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos
irmãos, a mim o fizestes‖. Mas, quem são esses irmãos de Cristo281?

No Novo Testamento, o próprio Cristo se identifica e é identificado


com seus seguidores282. A mais marcante ilustração do laço que há
entre Cristo e seus seguidores é o encontro de Paulo com Jesus, na
estrada de Damasco. ―Por que me persegues?‖ — perguntou Jesus.
Paulo, de fato, estava perseguindo seus seguidores283. Jesus é um com
os seus seguidores, pois cada cristão que crê é irmão ou irmã de Cristo.
Por isso, perseguindo os crentes, Paulo perseguia a Jesus284.

No Evangelho de Mateus, a expressão ―meus pequeninos‖ se


refere aos discípulos de Jesus. Quando os doze discípulos são enviados
dois a dois, Jesus diz: ―E quem der a beber ainda que seja um copo de
água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em
verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão‖ (Mt
10.42)285. Quando ele chama uma criança e a coloca no círculo dos

Estava enfermo, e o Senhor me visitou;


Estava na prisão, e meu Deus foi benigno para comigo.‖ Charles, Apocrypha, 2:346.
281 Para um exame amplo, veja-se G. E. Ladd, ―The Parable of lhe Sheep and the Goats

in Recent Interpretation‖, New Dimensions in New Testament Study, ed. R. N.


Longenecker e M. C. Tenney (Grand Rapids: Zondervan, 1974), pp. 19 1-99.
282 Mt 10.40,42; Mc 13.13; Jo 15.5,18,20; 17.10,23,26; At 9.4; 22.7; 26.14; 1 Co

12.27; Gl 2.20; 6.17; Hb 2.17.


283 J. C. Ingelaire, ―La ‗parabole‘ du jugement dernier (Matthieu 25/31-46), “Revue

d’Histoire et de Philosophie Religieuses 50 (1970): 52.


284 H. E. W. Turner, ―The Parable of the Sheep and the Goats (Matthew 25.3146)‖,

ExpT (1966); 245, interpreta At 9.4, dizendo: ―Com certeza, é um misticismo, mas um
misticismo de auto-identificação mais que de unificação‘. Veja-se, também, C. L.
Mitton, ―Present Justification and Final Judgment — A Discussion of the Parable of
the Sheep and the Goats.‖ ExpT 68 (1956): 46- 50.
285 J. A. T. Robinson, ―The ‗Parable‘ of the Sheep and the Goats‖, NTS 2 (1956): 225-

37, também publicado em Twelve New Testament Studies (Naperville: A. R. Allenson,


1962), pp. 76-93, chama a atenção para esta passagem, mas por razões lingüísticas.
discípulos, exorta os doze a também se tornarem crianças. Os
pequeninos que acreditam em Jesus pertencem a ele (Mt 18.5,6,10). Do
mesmo modo, em Mateus 25.40, Jesus diz: ―Em verdade vos afirmo que
sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o
fizestes‖. Qualquer auxilio prestado a algum dos seguidores de Cristo é,
portanto, prestado ao próprio Cristo. Os cristãos são altamente
exaltados, pois servirão de referência aos atos de bondade que forem
praticados ou omitidos. Eles e Cristo são um!

O seguidor de Jesus é comissionado a ser uma testemunha viva


dele. É um representante do Rei, e a ele é dada autoridade para
testificar do Senhor. Um mensageiro pertence sempre àquele que o
enviou. O que é enviado deve representar sempre aquele que o enviou.

Os que recebem os mensageiros do Rei e os tratam bem,


providenciando alimento quando têm fome, bebida quando têm sede,
roupas que os agasalhem quando têm frio, e que os confortem quando
estão doentes ou na prisão, estão fazendo isso, de fato, ao próprio Rei.
Negar a esses mensageiros, amor e misericórdia é o mesmo que fechar
as portas àquele a quem representam (Mt 10.40).

O Lado Esquerdo

Dois textos são básicos na passagem sobre o último julgamento:


Mt 25.40,45. ―Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes‖; e, ―Em verdade vos
digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos,
a mim o deixastes de fazer.‖ São versículos paralelos com praticamente
as mesmas palavras. A omissão de ―meus... irmãos‖ no v.45 pode ser
devida ao estilo. O primeiro dos textos é afirmativo e endereçado aos
judeus; o segundo é dirigido aos ímpios, em termos negativos.

Os ímpios não cometeram nenhum crime. Não mataram ninguém;


não cometeram adultério; não roubaram. Seus pecados não são de
comissão, e, sim, de omissão. O que deixaram de fazer é enumerado no
dia do juízo. A lista completa das necessidades atendidas pelos justos é
repetida, mas, agora, as flagrantes omissões são destacadas.

(Eu) tive fome, e não me destes de comer;


(Eu) tive sede, e não me destes de beber;
Sendo forasteiro, não me hospedastes;
Estando nu, não me vestistes;
Achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me.

No julgamento, como descrito na passagem, nenhuma pergunta


será feita a respeito da fé ou do arrependimento em Cristo. Apenas
perguntas sobre conduta serão propostas286. A lista de feitos pode ser

286 Plummer, St. Matthew, p. 350.


cumprida por qualquer um; não há necessidade de treino na fé cristã
para se estar qualificado.

Quando os seguidores de Cristo, em necessidade, procuraram


aqueles que permanecerão à esquerda do Rei, foram rejeitados. Aqui se
coloca, realmente, a questão do ser a favor ou contra Cristo. Não há
posição neutra em relação a Jesus: o homem precisa escolher. Como
Jesus, sucintamente, colocou: ―Quem não é por mim, é contra mim; e
quem comigo não ajunta, espalha‖ (Mt 12.30). Se um homem recusa os
apelos do evangelho e rejeita o seguidor de Jesus, ele rejeita o Cristo e
escolhe ficar do lado do inimigo287.

Estão incluídas aí as pessoas que nunca conheceram a Jesus?


Eles serão julgados como todos os outros que no dia do juízo
permanecerão diante do Filho do homem. O apóstolo Paulo referiu-se a
esta questão, quando escreveu sobre o julgamento justo de Deus:
―Assim, pois, todos os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão‖
(Rm 2.12). Apenas aqueles que obedecem à lei de Deus são declarados
justos288.

Por se recusarem a socorrer os seguidores de Cristo, os ímpios se


colocam fora da esfera das bênçãos de Deus. Estão sob maldição.
Ouvem as terríveis palavras: ―Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo
eterno, preparado para o diabo e seus anjos‖. São condenados e
enviados para junto de Satanás e de seu séqüito289. Os ímpios são
separados de Cristo para sempre; e são enviados para um lugar onde
passarão a eternidade com Satanás e os seus. E o lugar que as
Escrituras descrevem como o inferno290.

No tribunal, aqueles que estiverem à esquerda do juiz se


surpreenderão e questionarão o veredicto: ―Senhor, quando foi que te
vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te
assistimos?‖ A resposta a esta pergunta é que se recusaram a ver o
Cristo quando seus seguidores chegaram até eles. Fecharam seus olhos
e endureceram seus corações, quando os seguidores de Jesus estavam
precisando de ajuda para suas necessidades mais básicas. ―Sempre que
o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de
fazer‖. Jesus aponta para seus seguidores, seus irmãos. São aqueles
que crêem nele e constituem a igreja. Quando são rejeitados, Cristo é
rejeitado. Eles representam Jesus.

287 Manson, Sayins, p. 251


288 ―Há, portanto, uma correspondência exala entre o caráter de seus pecados como
‗sem lei‘ e a destruição final vinda sobre eles, também, sem lei‖‘, J. Murray, The
Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), 1:70.
289 O tempo verbal nos particípios ‗malditos‖ (= kateramenoi) e ―preparados‖ (=

hetoimasmenon) como os de Mt 25.34, indica que, praticada no passado, tem validade


no presente e no futuro.
290 Por exemplo: Is 33.14; 66.24; Mt 5.22; 13.42,50; 18.8,9; Lc 16.19-31; Jd 7; Ap

19.20; 20.10,14,15; 21.8.


Diante do trono do julgamento, todas as nações estão reunidas:
as nações do mundo estão diante de Jesus. Embora cada pessoa seja
julgada individualmente, as nações também estarão diante do juiz,
coletivamente. O homem é considerado responsável por sua atitude e
resposta para com Jesus, sua Palavra e seu Reino, e recebe seu
veredicto como indivíduo. Mas ele faz parte de sua comunidade e é um
cidadão de sua nação. Juntamente com seus compatriotas carrega a
responsabilidade coletiva pelas ações postas em prática e realizadas
―contra o SENHOR e contra o seu Ungido...‖ (Sl 2.2). Durante o seu
ministério terreno, Jesus denunciou as cidades de Corazim, Betsaida e
Cafarnaum, porque não se arrependeram apesar dos milagres que ele
ali realizara (Mt 11.20-24). No dia do juízo, haverá menos rigor para
Tiro, Sidom e Sodoma, que para as cidades do norte da Galiléia que não
responderam à mensagem de Jesus. Elas receberão julgamento coletivo.

Implicações

A parábola das ovelhas e dos cabritos é uma introdução à


descrição do último juízo. Como o pastor separa suas ovelhas dos
cabritos, assim também Jesus separa os justos dos ímpios no dia do
juízo. Naquele dia, todas as nações do mundo permanecem diante do
Filho do homem e são julgadas com base na aceitação ou rejeição
mostradas a ele, quando seus mensageiros proclamaram o seu
chamado291. O que se deduz deste quadro é que o julgamento só pode
acontecer quando a ordem da Grande Comissão tiver sido plenamente
cumprida. ―Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações...‖ (Mt
28.19). Quando este comando tiver sido cumprido, o fim está próximo.
Os seguidores de Jesus devem proclamar fielmente a mensagem do
reino a todas as nações, pois quando esta tarefa estiver cumprida, o fim
virá (Mt 24.14).

Os mensageiros do evangelho de Jesus experimentam fadiga e


sofrem fome, sede, frio, doença, solidão e prisão. Paulo relata suas
experiências e fala das vezes em que passou fome e sede; esteve nu e
com frio; nas vezes em que esteve em perigo entre patrícios e entre
gentios; e como esteve, muitas vezes, nas prisões; como foi açoitado e
enfrentou o perigo de morte (2 Co 11.23-27)292. As pessoas que o
ouviam e que cuidaram dele por ocasião de seus julgamentos e de suas
tribulações, demonstraram genuíno amor. Esses atos, como Paulo diz
aos Filipenses que lhe haviam ofertado dádivas, eram ―aroma suave,
como um sacrifício aceitável e aprazível a Deus‖ (Fp 4.18). Mas, quando
Paulo foi abandonado por todos, enquanto estava sendo julgado, o
Senhor estava ao seu lado, dando-lhe força. Aqueles que o haviam
desamparado, Paulo escreveu: ―Que isto não lhes seja posto em conta‖

291 L. Cope, ―Matthew XXV.31-46. ‗The Sheep and the Goats‘ reinterpreted‖, NovT
11(1969): 43.
292 J. Mänek, ―Mit wem identifiziert sich Jesus? Eine exegetische Rekontruktion ad

Matt. 25.31-46, “Chrlst and SpirIt in the New Testament, ed. B. Lindars e S. S.
Smalley (Cambridge: University Press, 1973), p. 19.
(2 Tm4.16). Ele deixou o julgamento para o Senhor. Embora
representante de Jesus, não usou da autoridade daquele que o enviara.
Jesus é o juiz, e ele dará o veredicto no dia do juízo. Paulo pode apenas
orar para que o ato de deserção não fosse imputado àqueles que
deveriam tê-lo apoiado.

A auto-identificação de Jesus com seus irmãos não inclui todos os


pobres e necessitados do mundo. Ver na passagem sobre o juízo final
uma base para o amor cristão pelos pobres, considerados
indiscriminadamente, porque o pobre representa Cristo, é acrescentar
algo ao texto. Ver o Cristo na figura rejeitada do homem na estrada de
Jericó, ou de Lázaro à soleira da casa do rico, é aceitar uma exegese
falha293. A parábola das ovelhas e dos cabritos e seu subseqüente
quadro do dia do juízo final acentua a palavra irmão (Mt 25.40). Para
Mateus o termo irmão não se aplica a todos, mas apenas àqueles que
aceitam Jesus como seu Senhor e Salvador294. Em seu Evangelho,
Mateus fornece um significado para a palavra irmão295. Para ele a
palavra significa um discípulo, um seguidor de Jesus. Portanto, a frase
―meus pequeninos irmãos‖, em Mt 25.40, se refere às pessoas que
acreditam em Jesus. São membros de seu corpo, a igreja.

Naturalmente, as palavras de Jesus: ―Os pobres sempre os tendes


convosco, mas a mim nem sempre me tendes‖ (Mt 26.11; Mc 14.7; Jo
12.8), não significam que, em sua ausência, Jesus seja representado
pelos pobres. Suas palavras são uma exortação para que os pobres
sejam cuidados, como Deus ordenou aos israelitas: ―Pois nunca deixará
de haver pobre na terra; por isso eu te ordeno: Livremente abrirás a tua
mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na terra‖ (Dt
15.11). Paulo era cuidadoso a respeito desta mesma injunção, que
recebera novamente ao se engajar na missão aos gentios. Após ter
recebido a destra de comunhão de Tiago, Pedro e João, ele disse:
―Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres...‖ (Gl
2.10).

Ninguém pode, jamais, ignorar os pobres, porque a ordem de


Deus: ―amarás o teu próximo como a ti mesmo‖, é suficientemente
clara. O cumprimento da lei é o amor, e aquele que cumpre esta lei
régia está agindo bem (Tg 2.8). Assim, os cristãos têm a obrigação
divina de mostrar amor genuíno e sincero interesse pelos necessitados e
rejeitados, não importando a raça, origem, idade, sexo, ou religião.
Qualquer um se qualifica como o próximo e reclama amor, porém nem
todos são chamados de irmão ou irmã de Cristo. Apenas aqueles que
crêem em Cristo e fazem a vontade de Deus são irmãos e irmãs de
Cristo (Mt 12.48).

293 Alguns comentaristas vêem o Cristo oculto nos confrontado, nos povos
necessitados e desafortunados do mundo. Por exemplo, Hunter, Parables, p. 118;
Armstrong, Parables, p. 193.
294 Mänek, ―Exegetische Rekonstruktion‖, p. 22; Mánek, Frucht, p. 79.
295 Mt 5.47; 12.48; 18.15; 23.8; 28.10.
Na parábola e na apresentação da cena do juízo, as seguintes
pessoas aparecem individual e coletivamente: (1) o Filho do homem, (2
todas as nações, (3) um pastor, (4) o Rei, (5) o Pai do Rei, (6) os justos,
(7) os irmãos do Rei, (8) os ímpios. É óbvio que Deus é o Pai do Rei;
embora Deus não seja o Juiz. O Rei é o Juiz que é comparado a um
pastor que separa as ovelhas dos bodes. Além disso, o rei é também
conhecido como o Filho do homem, que é como Jesus se denomina. Os
irmãos do Rei, também, estão presentes no julgamento. Quem são eles?
Jesus diz a seus discípulos que: ―quando na regeneração, o Filho do
homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em
doze tronos para julgar as doze tribos de Israel‖ (Mt 19.28). O privilégio
de julgar com Cristo não se limita aos doze discípulos. Os santos
julgarão o mundo, escreve Paulo à congregação de Corinto (1 Co 6.2)296:
O juiz não está sozinho, porém fala pelos seus irmãos. Ele não julga
seus irmãos; porém todas as nações se apresentam diante de seu trono
e são separadas em dois grupos: os que estarão à direita do Juiz,
porque ajudaram os irmãos; e aqueles à esquerda, porque se recusaram
a ajudar.

Nesta parábola, Jesus apresenta apenas um aspecto do quadro do


último julgamento. Outras passagens das Escrituras nos revelam cenas
adicionais do que acontecerá naquele dia297. A parábola das ovelhas e
dos cabritos descreve uma divisão entre os que foram colocados à
direita e aqueles que foram colocados à esquerda. A descrição da cena
do julgamento acaba com uma referência ao destino permanente que
terão. ―E irão estes para o castigo eterno, porém os justos para a vida
eterna‖ (Mt 25.46). A conclusão indica que o veredicto, para ambas as
partes, é final e irrevogável. Os justos gozarão para sempre a plenitude
da vida, e os ímpios receberão a maldição da punição eterna.

296 Manson, Sayings, p. 217.


297 Por exemplo: Dn 7.9,10; Ap 20.11-15.
24. Os Dois Devedores

Lucas 7.36-50 ―Convidou-o um dos fariseus para que fosse jantar com
ele. Jesus, entrando na casa do fariseu, tomou lugar à mesa. E eis que
uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na
casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com ungüento; e, estando
por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os
enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o
ungüento. Ao ver isto, o fariseu que o convidara disse consigo mesmo:
Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou,
porque é pecadora. Dirigiu-se Jesus ao fariseu e lhe disse: Simão, uma
coisa tenho a dizer-te. Ele respondeu: Dize-a, Mestre. Certo credor tinha
dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro, cinqüenta.
Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos.
Qual deles, portanto, o amará mais? Respondeu-lhe Simão: Suponho
que aquele a quem mais perdoou. Replicou-lhe: Julgaste bem. E,
voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em
tua casa, e não me deste água para os pés; esta, porém, regou os meus
pés com lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste
ósculo; ela, entretanto, desde que entrei não cessa de me beijar os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta, com bálsamo, ungiu os
meus pés. Por isso, te digo: perdoados lhe são os seus muitos pecados,
porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco
ama. Então, disse à mulher: Perdoados são os teus pecados. Os que
estavam com ele à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este que
até perdoa pecados? Mas Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-
te em paz‖.

A parábola dos dois devedores é relativamente curta, pois se


resume em apenas três versículos (Lc 7.41-43). A circunstância
histórica é a unção de Jesus por uma mulher pecadora, na casa de
Simão, o fariseu. A parábola ensina a verdade simples, ou seja, que o
grau de gratidão expressa por alguém cuja dívida foi perdoada é
diretamente proporcional ao total do débito. Um agiota que perdoa uma
dívida considerável receberá do devedor maior reconhecimento e
gratidão que de outro cujo débito cancelado seja insignificante. Jesus
pôs em prática esta verdade, na casa de Simão, o fariseu, que estava
visivelmente embaraçado com a presença de uma mulher de má
reputação. Mas Simão recebeu uma lição.

As Circunstâncias

Talvez tenha acontecido num sábado, quando Jesus pregara


durante o culto da manhã, na sinagoga local. Porque era considerado
um privilégio convidar um pregador visitante para o jantar298, Simão, o

298
Jeremias, Parables, p. 126.
fariseu, convidou Jesus para ir à sua casa a fim de participar, com ele e
com outros convidados, da refeição do meio-dia do Sabá.

O anfitrião, porém, foi negligente, esquecendo-se das regras


comuns de cortesia, não beijando Jesus, nem lavando seus pés ou
ungindo com óleo perfumado sua cabeça299. Chegou-se Jesus à mesa e,
como os outros convidados, tirou as sandálias300. A maneira típica da
época, os convidados se reclinavam em divãs ao redor da mesa,
apoiando-se sobre o braço esquerdo e mantendo livre a mão direita para
se servir da comida e da bebida, e seus pés ficavam estendidos,
afastados da mesa. Se não fosse inverno a refeição acontecia no pátio,
porque os judeus gostavam de comer ao ar livre301. Durante a refeição,
chegou uma mulher, que morava naquela cidade e que era conhecida
pela sua moral duvidosa. Ela caminhou rapidamente para perto de
Jesus, pretendendo lhe oferecer um vaso de alabastro, cheio de
ungüento perfumado.

Porque conhecia Jesus, ela queria presenteá-lo com aquele


perfume tão caro. Queria expressar-lhe sua gratidão por tê-la ajudado,
provavelmente ensinando-lhe a mensagem de salvação. Mas ela não
conseguiu controlar a emoção, e, antes que percebesse, suas lágrimas
corriam e caíam sobre os pés de Jesus. Ela não tinha uma toalha para
enxugar seus pés. Então, soltou seus cabelos para com eles secá-los.
Beijou seus pés, tomou o frasco de perfume e derramou-o sobre eles.

Do ponto de vista de Simão, aquele era um incidente muito


embaraçoso. Se a mulher tivesse comprado o perfume tão caro com o
dinheiro ganho na prostituição, o presente seria impuro. De acordo com
Dt 23.18, Deus abominava tais ganhos, que, portanto, não podiam ser
trazidos à sua casa. Presentes de pessoas sem moral eram considerados
sujos e inaceitáveis por qualquer pessoa respeitável. Além disso, a
mulher desatara seu cabelo, estando na companhia de homens; agindo
assim, mostrara que espécie de mulher era. Era contra os bons
costumes que uma mulher soltasse seus cabelos em público302.

O fariseu se admirava que Jesus permitisse que tudo isso


acontecesse. Ele começou a olhar Jesus com olhos diferentes. Se Jesus
fosse um profeta303, ele refletia, saberia que esta mulher era uma
pecadora, e que seu presente era maculado pelo pecado. Nenhum
profeta que se desse ao respeito permitiria que uma mulher de má
reputação o tocasse, infamando-o. Porque a mulher não apenas tocou

299 O costume de ungir alguém com óleo vem da antigüidade. Sl 23.5; 45.7; 104.15; Ez
23.41; Am 6.6. Daniel-Rops, Palestine, p. 208.
300 Um servo apanhava as sandálias dos hóspedes e as guardava até ao final da

refeição. A. C. Bouquet, Everyday Life In New Testament Times (New York:


Scribner, 1954), p. 71.
301 Daniel Rops, Palestine, p. 207.
302 Derrett, Law in the New Testament, p. 268.
303 Alguns manuscritos apresentam o artigo definido antes de ―profeta‖. A expressão ―o

profeta‖ se referiria, então, ao grande Profeta que Deus providenciaria (Dt 18.15).
seus pés — fez mais, continuou beijando-os até que, finalmente, se
retirou. Jesus não compreendia?

A Parábola

Jesus pregava o evangelho da salvação e conclamava o povo ao


arrependimento e à fé em Deus. Talvez, mais cedo, naquele dia, a
mulher tivesse ouvido a mensagem de Jesus, e, agora, respondesse
positivamente à sua palavra. Vencida pela culpa, mesmo sabendo que
Deus a perdoaria, procurou Jesus. Foi incapaz de reter a torrente de
lágrimas que explodiu, expressando tristeza pelos pecados cometidos e
alegria pela graça recebida304.

Mas Simão, o fariseu, não pôde ver que essa mulher pecadora
experimentava a alegria da regeneração. Não se lhe ocorreu que ela
poderia ter sido perdoada e que se sentisse plena de felicidade. ―Jesus
jamais deveria permitir que a mulher o tocasse‖, disse Simão a si
mesmo.

Jesus sabia o que Simão pensava, e de modo gentil, mas


corrigindo-o, disse-lhe que apreciara o gesto da mulher, pois ela fizera o
que seu hospedeiro deveria ter feito por seu hóspede. Mas, antes de
Jesus dizer ao fariseu o que tinha visto na mulher, propôs-lhe uma
questão, em forma de parábola. Começou a parábola dizendo a Simão
que tinha algo a lhe falar. Simão estava pronto a ouvir.

Jesus contou a pequena história de um agiota que tinha dois


devedores. Um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta. Um
denário, naqueles dias, era quanto valia o salário diário de um
trabalhador rural. Nenhum dos dois devedores, na história de Jesus,
tinha fundos para pagar ao agiota. Aconteceu, então, o inesperado. O
credor cancelou a dívida de ambos. ―Qual deles, portanto, o amará
mais?‖ — Jesus perguntou a Simão. Simão, meio relutante, respondeu:
―Suponho que aquele a quem mais perdoou‖. De repente, percebeu que
a parábola o envolvia também. Ele sabia que Jesus não tinha terminado
a história. A aplicação, inevitavelmente, se seguiria para explicar a
presença da mulher, a atitude de Jesus em relação a ela, e o papel de
Simão como anfitrião.

―Vês esta mulher?‖ — perguntou Jesus. Naturalmente que Simão


via a mulher, mas Jesus queria que ele a visse em uma dimensão
espiritual. Os olhos de Simão estavam cegos, pois, enquanto a olhava
apenas como pecadora, deixava de vê-la como alguém de quem os
pecados haviam sido perdoados. Sua autojustificação bloqueava sua
visão. Em sua opinião, a mulher era apenas uma pecadora. Jesus, no
entanto, não o repreendeu, nem o censurou, mas, de maneira

Marshall, Luke, p. 309. Calvin, Institutes of the Christian Religion, III. 4.33 (Grand
304

Rapids: Eerdmans, 1944), p. 722.


magistral, ofereceu-lhe uma perspectiva espiritual do acontecido.

―Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; não mc


saudaste com um beijo, nem me ungiste a cabeça com óleo‖. Mas, disse
Jesus, ―esta mulher, com suas lágrimas, lavou meus pés, e por não ter
uma toalha, enxugou-os com seus cabelos. Ela demonstrou seu respeito
mais profundo por mim, beijando meus pés. Além disso, tomou um vaso
de bálsamo perfumado e ungiu-os‖.

Jesus via a mulher como uma pecadora que tinha sido perdoada.
Ele não especificou seus pecados. Apenas se referiu a eles dizendo que
eram muitos. E porque seus muitos pecados lhe tinham sido perdoados,
ela muito amou305. Ela queria expressar sua gratidão a Deus e se
voltara para Jesus, que fora enviado por Deus. Ele se tornara o vaso
que recebia a gratidão da mulher306.

A Mulher

A mulher não falou nada, durante o tempo em que esteve na casa


de Simão. Mas, seu gesto falou mais alto que palavras. Ela
desmanchou-se em lágrimas por causa de seus pecados. Como o
devedor que ouviu de seu credor que não lhe devia mais nada, assim a
mulher experimentou a graça misericordiosa de Deus. Por causa dessa
graça, ela queria expressar sua gratidão oferecendo a Jesus uma dádiva
preciosa. Isto é, mostrando seu amor a Jesus, ela provou que seus
pecados já tinham sido perdoados. Não foi por ela ter demonstrado seu
amor que obteve o perdão dos pecados307, pois, sendo assim, ela teria
merecido o perdão. Com esta parábola, Jesus ensinou que o débito dos
dois homens foi cancelado sem qualquer esforço da parte deles. Do
mesmo modo, a mulher, aliviada do fardo do pecado, podia mostrar sua
gratidão beijando e ungindo os pés de Jesus.

―Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.‖ Queria Jesus


dizer que Simão, o fariseu, amava pouco porque os pecados, que lhe
tinham sido perdoados, eram poucos? Dificilmente.

Simão não mostrou amor ou gratidão a Jesus, além do convite


para que fosse jantar em sua casa. Ele não tinha sentido qualquer
necessidade de ser perdoado. Apesar de tudo, a comparação permanece.
Jesus não elaborou o assunto, mas, por implicação, pediu a Simão que
reconhecesse e confessasse seus pecados para, assim, experimentar a
alegria que acompanha o poder purificador da graça de Deus.

305 Jeremias, Parables, p. 127, destaca que o hebraico, o aramaico e o siríaco são
línguas que não têm palavras correspondentes para ―obrigado‖ e ―agradecimento‖. O
conceito se expressa por meio de palavras tais como ―amor‖ ou ―bênção‖.
306 H. Drexler ―Die grosze Sünderin Lucas 7.36-50‖. ZNW 59 (1968): 166.
307 Católicos romanos interpretam que o texto (Lc 7.47) diz que o amor merece perdão.

A versão NAB traduz o texto: ―Eu vos digo porque seus muitos pecados são perdoados
— por causa de seu grande amor‖.
Jesus perguntou a Simão se ele tinha visto a mulher. Pelo
contraste exemplificado na parábola, Jesus, então, insinuou que Simão
deveria olhar para sua própria vida espiritual.

Depois de ter-se dirigido a Simão, Jesus voltou-se para a mulher e


disse: ―Perdoados são os teus pecados‖. Deus tinha perdoado seus
pecados. Jesus confirmou, então, a certeza da mulher de que ela
recebera o perdão dos seus pecados, dizendo-lhe que tinha sido
redimida: ―A tua fé te salvou; vai-te em paz‖. Ela já tinha professado sua
certeza com seus atos de amor e gratidão. Pela fé, ela expressara a
Jesus sua gratidão. Seu amor era, portanto, a conseqüência e não a
causa de sua salvação308. Com a paz de Deus em seu coração, a mulher
pôde enfrentar o mundo de novo, como um ser humano regenerado.
Com as palavras ―vai-te em paz‖, Jesus a abençoou na despedida.

308 Morris, Luke, p. 149.


25. O Bom Samaritano

Lucas 10.25-37 ―E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou


com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para
herdar a vida eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na
Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu
Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças
e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e
viverás. Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é
o meu próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de
Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais,
depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos,
retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote
por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo.
Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o,
também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho,
passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se,
pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o
sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.
No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro,
dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to
indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo
do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o
intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe
disse: Vai e procede tu de igual modo‖.

A parábola do bom samaritano se tornou parte de nossa cultura e


de nosso vocabulário. É comum encontrarmos hospitais e instituições
de caridade usando esse nome. A estrada de Jericó é mencionada em
hinos e canções, e hoje os turistas podem encontrar a Hospedaria do
Bom Samaritano a meio caminho de Jerusalém para Jericó.

Lugar e Povo

A caminho de Jerusalém, Jesus foi inquirido por um estudioso


das Escrituras do Velho Testamento a respeito de como fazer para
herdar a vida eterna. Esse teólogo, naturalmente, não fez a pergunta
por ignorância, mas porque queria testar Jesus e ouvir sua explicação
sobre as Escrituras. Ele se dirigiu a Jesus, chamando-o de ―mestre‖,
reconhecendo, assim, sua autoridade em assuntos religiosos. Ele
esperava de Jesus uma resposta para uma pergunta muito comum309.

Hábil e gentilmente, o Mestre instruiu seu aluno de teologia nos


ensinamentos e implicações da Palavra. Dirigiu-lhe outra pergunta:
―que está escrito na lei?‖ De fato, ele perguntou: ―Como resumes a lei,
quando adoras na sinagoga?‖ O teólogo respondeu citando os dois

309 Mt 19.16. Consulte-se SB, 1:808, para fontes rabínicas.


mandamentos ligados pela palavra amor: ―Amarás o Senhor teu Deus...‖
e ―amaras o teu próximo como a ti mesmo310‖.

Logo o doutor da lei compreendeu que Jesus tinha o controle da


situação e que sabia a resposta. Ao comentário de Jesus: ―Respondestes
corretamente; faze isto, e viverás‖, ele apôs a questão: ―Quem é o meu
próximo?‖ Esse era o ponto fundamental.

O judeu vivia num círculo: o centro era ele mesmo, cercado por
seus parentes mais próximos, então pelos outros parentes, e,
finalmente, pelo círculo daqueles que proclamavam descendência
judaica e que se tinham convertido ao judaísmo. A palavra próximo
tinha um significado de reciprocidade: ele é meu irmão e eu sou irmão
dele311. Assim se fecha o círculo de egoísmo e etnocentrismo. Suas linhas
tinham sido cuidadosamente traçadas, a fim de assegurar o bem-estar
dos que se achavam dentro e negar ajuda aos que estavam fora.

Nos dias de Jesus, havia uma marcada afluência de não-judeus


para Israel. Os samaritanos separavam os judeus do norte daqueles do
sul.

As forças de ocupação romanas estavam presentes em todos os


lugares, e viajantes helênicos visitavam Israel regularmente. Israel
funcionava como uma ponte entre as nações, e diariamente o judeu
esbarrava em estrangeiros. ―Quem é o meu próximo?‖ — era uma
pergunta comum.

O estudioso de teologia não via qualquer problema com relação ao


primeiro grande mandamento: ―Amarás o Senhor teu Deus‖. Mas o
amor a Deus não poderia se expressar separado do segundo
mandamento: ―Amarás o teu próximo como a ti mesmo.‖ Ele via um
problema no segundo mandamento e fez a pergunta, esperando que
Jesus delineasse os limites. Mas, Jesus se recusou a responder
diretamente. Em vez disso, aplicou o princípio da regra áurea: ―Como
quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles‖
(Lc 6.31), e contou a história do bom samaritano. Ele queria que seu
ouvinte lhe perguntasse: ―Quem devo tratar como meu próximo?‖.

A história que Jesus contou é tão real e verdadeira que pode


muito bem se refletir a um acontecimento atual relatado por alguém
que foi assaltado e sobreviveu para contar o fato com todos os
pormenores. Embora nem a hora ou o local exatos sejam descritos, o
incidente pode muito bem ter acontecido naquele ano, não muito longe
de Jerusalém312.

310 Dt 6.5 e Lv 19.18.


311 B. Gerbardsson, The Good Samaritan — The Good Shepherd? (Lund,
Copenhagen: Gleerup, 1958), p. 7. quando um soldado judeu morreu em conflito
armado, a nação pranteia a morte de um irmão.
312 E. F. F. Bishop, ―People on the Road to Jericho. The Good Samaritan — and the
A estrada de Jerusalém para Jericó tem apenas 27 quilômetros
(=17 milhas) de extensão, e ao longo desse trecho apresenta um declive
de 1200 metros (= 3300 pés). A área é praticamente deserta, sem
vegetação e marcada por penhascos de pedras calcáreas e barrancos,
em ambos os lados da estrada. Nos tempos bíblicos, a estrada era
conhecida como ―o caminho (ladeira) do sangue‖, muito provavelmente
por ser considerada insegura313. O trânsito de peregrinos e caravanas
era bastante pesado por ali. De tempos em tempos, eles eram
assaltados por bandidos que se escondiam atrás das rochas314.

De acordo com a história contada por Jesus, um homem descia a


estrada de Jericó. Não nos é dito se era rico ou pobre. Ele foi assaltado,
e, porque reagiu, foi espancado. Em trapos, e quase morto, foi
abandonado à beira do caminho. Logo após o assalto, passou por ali um
sacerdote, a caminho de sua casa em Jericó315. Ele olhou o homem
ferido, e passou de lado. Se estivesse montando um burrico, na() teria
se incomodado ao menos em saltar. Negou ao homem qualquer ajuda
ou esperança. Pouco depois, um levita fez exatamente o mesmo: olhou-o
e continuou seu caminho.

Mais tarde veio um mercador, cujas roupas o identificavam como


um samaritano. Parou, e olhou para o homem, que, desamparado jazia
em seu próprio sangue. O samaritano se encheu de pena. Se estivesse
no lugar do homem ferido, estaria também ansiando por ajuda.
Aproximou-se e, cuidadosamente, ergueu o ferido. Raspou em tiras um
pedaço de linho para fazer ataduras, aplicou azeite e vinho316, limpando
e tratando as feridas do homem.

Então o samaritano, por assim dizer, caminhou a segunda milha.


Colocou o homem sobre seu próprio animal e, firmando-o, levou-o à
hospedaria mais próxima. Lá, cuidou dele o resto do dia e durante a
noite. Tendo negócios para cuidar, teve que deixar o ferido, no dia
seguinte; mas, primeiro, pagou ao hospedeiro duas moedas de prata e
lhe deu instruções para cuidar dele317. Disse também ao dono da
estalagem que se mais dinheiro fosse gasto, ele lhe pagaria, quando

Others‖ EvQ 42 (1970):2.


313 A expressão ―subida de sangue‖ pode ser uma corruptela do hebraico ―subida de

Adumim‖ Consulte-se Bishop, ―People on the Road to Jericho‖, p. 3. Veja-se, também.


Js 15.7 e 18.17 Bishop ―Down from Jerusalem to Jericho‖ EvQ 35 (1963): 97-102.
314 Histórias sobre assaltantes ao longo da estrada de Jericó têm sido registradas

desde os tempos antigos até ao presente. Por exemplo, veja-se o comentário de


Jerônimo, Jr. 3.2.
315 Jericó era uma das cidades com alta concentração de sacerdotes, que tinham

fixado residência na ―cidade das palmeiras‖, SB, II:66 e 182.


316 Ap 6.6: ―... e não danifiques o azeite e o vinho‖. Azeite e vinho eram usados nos

primeiros socorros, nos tempos antigos. SB, 1: 428. O azeite era paliativo e o vinho
um anti-séptico.
317 As duas moedas de prata eram dois denários, quantia suficiente para pagar a

hospedagem por vários dias. Na parábola dos trabalhadores na vinha (Ml 20.1-16), o
salário diário dos trabalhadores é de um denário.
voltasse de sua viagem.

Implicações

Jesus terminou a história perguntando: ―Qual destes três te


parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos
salteadores?‖ O teólogo teve que dizer: ―O que usou de misericórdia para
com ele‖. Em outras palavras, o samaritano provou ser um irmão do
homem ferido. Com o conselho: ―Vai, e procede tu de igual modo‖, Jesus
o dispensou.

Na parábola, cinco pessoas são mencionadas (com exceção dos


ladrões). São, pela ordem: o homem assaltado e ferido, o sacerdote, o
levita, o samaritano e o dono da hospedaria. O ponto central não é tanto
o homem à beira da estrada, embora ele seja objeto de atenção. Depois
de roubado, ele foi primeiro negligenciado, mas depois cuidado com
bondade. O objeto da história não é o sacerdote, nem o levita, ou o dono
da estalagem. A figura central é o samaritano. Ele é o autor, o agente e o
principal personagem. Por isso a parábola é chamada parábola do bom
samaritano e não parábola do homem que foi assaltado e ferido. O
ferido é uma figura sem rosto, cuja ocupação, nacionalidade, religião ou
raça são ignoradas318. Talvez, sem suas roupas, o homem não pudesse
ser identificado pelo sacerdote, pelo levita ou pelo samaritano.
Resumindo, a identidade do homem não importa. Ele faz apenas o papel
do próximo — é só um vulto.

Os ladrões vêm e vão. Cometem o crime e partem. É inútil,


portanto, especular se eram zelotes, se tinha alguma queixa contra o
homem — afinal de contas, o sacerdote, o levita e o samaritano não
foram atacados — ou se eram moradores das redondezas e que viviam
roubando os desventurados que por ali passavam.

O sacerdote e, presumivelmente, o levita estavam a caminho de


casa, vindos do templo, em Jerusalém. Pela lei, estavam impedidos de
tocar em um defunto319. Se transgredissem a regra, estariam criando
embaraços para si mesmos: socialmente (se tornando impuros),
financeiramente (pagando o funeral) e profissionalmente (sendo
suspensos de seus ofícios sacerdotais e levíticos)320.

318 C. Daniel, ‗Les Esséniens et l‘arrière — fond historique de la parabole du Bom


Samaritan‖. NovT II(1969): 71-104, retrata a vítima como um essênio que foi assaltado
por zelotes. Os zelotes odiavam os essênios. Assim também o sacerdote e o levita
passaram de largo, porque pertenciam a diferentes ordens religiosas. Entretanto, teria
Jesus ensinado a lição apenas para condenar o ódio entre facções religiosas rivais? Se
fosse assim, ele teria sido mais explícito. E correto presumir que o homem era judeu,
porque assim entenderam aqueles que primeiro ouviram Jesus. Veja-se, também, B.
Reicke, ―Der harmherzige Samariter‖, Verborum Veritas, Festschrift honorig G.
Stãhlin (Wuppertal; Brockhaus, 1970). p. 107.
319 Lv 21.1; Nm 19.11.
320 Derrett, ―Law in the New Testament: Fresh Light on the Parable of the Good

Samaritan‖, NTS 11(1964-65): 22-37, publicado em Law in the New Testament


Naturalmente, o homem assaltado e ferido não estava morto. Mas,
iria um sacerdote ou um levita desmontar de seu jumento, apanhar
uma vara e com ela tocar o ferido para verificar se estava vivo, e, então,
por fim, ministrar-lhe os primeiros socorros? Dificilmente. Na história,
entretanto, o homem estava vivo, e por isso não havia desculpa
convincente a ser apresentada pelos clérigos. Se tiverem medo de cair
numa emboscada, ou se tinham o coração empedernido, ou se
acreditavam estar interferindo no julgamento de Deus, que golpeava um
pecador perverso, ou se eram vaidosos demais a respeito de sua posição
de líderes religiosos para desmontar e ajudar uma vítima
desafortunada, jamais saberemos321. O fato é que nenhum dos dois,
nem o sacerdote nem o levita, mostrou misericórdia.

O samaritano, como é descrito, enternece o coração de todos. É a


figura preferida na história. Sabe o que deve fazer e o faz bem. Raça,
religião, diferença de classes não são importantes para ele. Vê um ser
humano em dificuldades e o ajuda.

Os samaritanos, para sermos exatos, não eram um povo muito


simpático. Seu ódio pelos judeus explodia de diversas maneiras. Por
exemplo, certa vez, entre 9 e 6 A.C., tinham profanado a área do templo
para evitar que os judeus celebrassem a Páscoa. Fizeram isso
espalhando ossos humanos pelos pátios do templo322. Aos olhos dos
judeus, os samaritanos eram mestiços. Tinham-se estabelecido na terra
de Israel durante o exílio dos judeus, e sua Bíblia consistia apenas dos
cinco livros de Moisés. Tinham construído seu próprio templo no monte
Gerizim (Jo 4.20); os judeus o destruíram em 128 a.C. Por causa desse
ódio profundo, os judeus não se davam com os samaritanos323.

Ainda assim, esse viajante, reconhecido como um samaritano, por


suas roupas, seu modo de falar e suas maneiras, parou, desmontou e
ajudou com bondade o seu semelhante. Não perguntou se o ferido era
judeu, romano ou sírio. Para ele, aquela pessoa nua, ferida, meio morta,
era um irmão precisando de ajuda. Prontamente pagou ao dono da
hospedaria o suficiente para manter o homem na estalagem por alguns

(London: Longman and Todd, 1970), pp. 208-27).


321 Os motivos da atitude do sacerdote e do levita têm sido estudados por muitos

exegetas. Mas muitas explicações se baseiam em suposições, porque Jesus não


especificou a razão por que os clérigos se recusaram a ajudar. Omitindo-se,
deliberadamente, de explicar a razão, ele evitou que a parábola se tomasse um ataque
frontal aos religiosos daqueles dias. Em vez disso, ele criticou a falta de misericórdia.
Veja-se Oesterley, Parables, p. 162; H. Zimmerman, ‗Das Gleichnis vom barmherzigen
Samariter: Lukas 10.25-37, ―Die Zeit Jesu, Festschrift honoring H. Schlier (Freiburg,
Basel, Vienna: 1970), p. 69; Jeremias, Parables, pp. 2034; Miachelis, Gleichnisse, p.
208.
322 Josephus, Antiquities 18:30.
323 15. SB 1:538. Mi 10.5; Lc 9.52,53; Jo 4.9. Nos cultos nas sinagogas judaicas, os

samaritanos eram amaldiçoados. Os judeus oravam a Deus que os excluísse da vida


futura.
dias. Deve, também, ter providenciado roupas.

O samaritano não praticou este ato de amor e caridade esperando


retorno. Ele podia ter pedido que o ferido ao se recuperar lhe pagasse o
que havia gastado. Mas, nem mesmo sabia se ele expressaria alguma
gratidão, quando soubesse quem o socorrera. O modo de agir do
samaritano representava um genuíno sacrifício de dinheiro, posses,
risco de saúde, segurança e muitas horas de cuidado e amor324. Ele
cumpriu a Regra Áurea.

A última pessoa mencionada na parábola, o dono da hospedaria,


recebe pouca atenção. Ele, possivelmente, conhecia o samaritano de
outras passagens por ali. Um relacionamento de confiança mútua se
estabelecera entre eles, o que é um testemunho eloqüente da conduta
moral do samaritano. Ele era um homem em quem o hospedeiro podia
confiar. ―Cuida deste homem, e se alguma coisa gastares a mais, eu to
indenizarei quando voltar‖. Sua palavra valia ouro.

Paralelos do Velho Testamento

Embora a história possa se referir a um incidente recente, atual,


Jesus é o criador da parábola. Ao contar a parábola do bom samaritano,
ele chama a atenção de seu ouvinte versado em teologia para, pelo
menos, dois paralelos do Velho Testamento. O intérprete da lei deve ter
reconhecido as alusões feitas a essas conhecidas passagens das
Escrituras. Primeiro, há o relato registrado em 2 Cr 28.5-15. Fala do
povo de Jerusalém e Judá, durante o reinando do rei Acaz, em 734
A.C., que foi levado cativo para Samaria. O relato termina com estas
palavras:

―Homens foram designados nominalmente, os quais se


levantaram e tomaram os cativos e o despojo, e vestiram a
todos os que estavam nus; vestiram-nos, calçaram-nos e lhes
deram de comer e de beber, e os ungiram; a todos os que, por
fracos, não podiam andar, levaram sobre jumentos a Jericó,
cidade das palmeiras, a seus irmãos. Então voltaram para
Samaria‖. (2 Cr 28.15)

Numerosas palavras-chave, naturalmente, reaparecem na


parábola do bom samaritano.

A segunda referência é o texto de Os 6.9: ―Como hordas de


salteadores que espreitam alguém, assim é a companhia dos
sacerdotes, pois matam no caminho para Siquém; praticam
abominações325‖.

324Mänek, Frucht, p. 87.


325Mänek, Frucht, p. 88, considera a parábola em Midrash, comentário ou sermão a
respeito da Palavra de Deus, registrada em Os 6.6: ―Pois misericórdia quero, e não
sacrifício...‖ Do mesmo modo, Derrett, em Law ln the New Testament, p. 227.
Ensinando a parábola de modo a fazê-la soar como passagem
familiar das Escrituras, Jesus demonstra que suas palavras são uma
continuação das próprias Escrituras e uma explicação da Lei e dos
Profetas. Assim, sua hábil exposição do segundo grande mandamento:
―Amarás o teu próximo como a ti mesmo‖ revela uma perspectiva mais
profunda. Jesus se mostra como intérprete da Lei326. Ele diz ao teólogo:
―Faze isto, e viverás327‖.

Aplicação

Em seu ministério terreno, Jesus torna conhecida uma dimensão


mais ampla da exigência da Lei: ―Amarás o teu próximo como a ti
mesmo‖. No Sermão da Montanha, o mandamento não se restringe ao
próximo, mas inclui, também, o inimigo: ―Amai os vossos inimigos‖. (Mt
5.44; Lc 6.27)

Para o sacerdote e o levita descritos na parábola, a palavra


próximo se referia a um judeu que podia ser claramente identificado.
Mas alguém assaltado, espancado, nu e semimorto, simplesmente não
se qualificava como tal.

Para o intérprete da lei que inquiria Jesus, a questão era como


traçar o limite. Ele queria saber se o amor tem limites. Queria se
autojustificar e se assegurar de estar cumprindo o que a Lei ordenava.

Se a Lei pudesse ser usada como uma barreira protetora, seria


possível viver em paz dentro desse abrigo, onde tudo já estaria
interpretado e soaria familiar328. Mas, quando a Lei está em aberto —
―Amarás o teu próximo‖, que inclui ―Amai os vossos inimigos‖ —, uma
visão toda nova se destaca possibilitando um novo questionamento
dessa Lei.

Jesus não contou a história de um judeu que encontrou um


samaritano ferido, ao longo da estrada, e o ajudou, levando-o a uma
hospedaria próxima329. Tal história poderia provocar uma reação
contrária, porque o judeu seria considerado um traidor da causa
judaica. Do mesmo modo, se Jesus tivesse usado os três: o sacerdote, o
levita e o israelita, o efeito teria sido inteiramente diferente. Teria criado
um contraste entre o clero e os leigos com uma tendência
decididamente anticlerical. Mas, a apresentação do samaritano, na
conjuntura apropriada, surpreende agradavelmente o ouvinte e não o
predispõe a levantar objeções. O samaritano mostra como se deve amar
o próximo e ser como um irmão para ele.

326 Derrett, Law in the New Testament, pp. 222-23, destaca que Jesus ―tem um papel
semelhante ao de Moisés‖.
327 As palavras de Jesus: ―Faze isto, e viverás‖ recordam Dt 5.33; 6.24 e Lv 18.5.
328 Linnemann, Parables, p. 52.
329 Armstrong, Parables, p. 165.
Se o intérprete da lei tivesse quaisquer objeções teológicas, elas
desapareceram com o desenrolar da história. Jesus podia ter-se referido
ao estrangeiro que vivia entre os judeus e era tratado como um natural
do lugar330. Também, podia ter mencionado os judeus convertidos e os
que eram chamados tementes a Deus, que, regularmente, assistiam aos
serviços religiosos na sinagoga. Mas, essas pessoas tinham como
retribuir a bondade que recebiam. Além disso, eram considerados
amigos e, em alguns casos, membros da fé judaica.

Jesus, no entanto, focaliza não o próximo — ―Quem é o meu


próximo?‖ —, mas o único que mostrou amor e compaixão. O próximo
não é uma pessoa atraente. Na parábola ele é mostrado sujo de sangue,
nu e semimorto. Não tem condições para retribuir o amor, o dinheiro e
as roupas. Precisa de ajuda e não tem como ressarcir. Deixar de atender
esse próximo é incorrer na ira divina, pois significa não apenas
transgredir o segundo grande mandamento, mas, também, deixar de
praticar o primeiro.

A parábola do bom samaritano é atemporal. Podemos substituir


ocupações, nacionalidades e raças por equivalentes modernos, e nada
mudou desde o dia em que Jesus ensinou a parábola. Portanto, a
parábola não é uma história sobre alguém que, simplesmente, praticou
uma boa ação. Ela é uma denúncia contra qualquer um que tenha
erguido barreiras protetoras e construído com elas um abrigo331.

―Amarás o teu próximo como a ti mesmo‖ é uma ordem que


alcança além de nosso círculo de amigos e companheiros cristão. É um
chamado para que mostremos misericórdia aos desafortunados que
jazem pela estrada de Jericó que é a vida humana. É um clamor às
nações desenvolvidas para que atentem ao sofrimento e pobreza sem
fim, experimentados pelos povos subdesenvolvidos.

Desde os primeiros tempos patrísticos ao tempo atual, os exegetas


têm tentado interpretar, simbolicamente, a parábola. Há variações
numerosas e algumas até engraçadas. A interpretação de Agostinho é
clássica: o homem espancado e assaltado é Adão; os ladrões são o
demônio e seus anjos; o sacerdote e o levita são os sacerdotes e
ministros do Velho Testamento; o samaritano é Jesus; o óleo é o
conforto e o vinho a exortação ao trabalho; a hospedaria é a igreja; as
duas moedas são os mandamentos para amar a Deus e ao próximo; e o
dono da hospedaria é o apóstolo Paulo332.

330Lv 19.34. Veja-se, também, Michaelis, Gleichnisse, p. 210.


331Hunter, Parables, p. 111.
332 Agostinho, Quaestiones Evangeliorum, II, 19. Dodd, Parables, pp. 11,12.

Consulte-se Mänek, Frucht, pp. 88,89 para uma avaliação útil de modernas
interpretações. Veja-se Gerhardsson, Good Samaritan, pp. 1-31, para um estudo
elaborado de possíve1 derivados verbais; J. Daniélou, ―Le Bon Samaritain‖, Mélanges
Bibliques rédiges en I’honneur de A. Robert (Paris, 1956), pp. 454-93; H. Binder,
―Das Geheimnis vom barmherzigen Samariter‖, TZ 15 (1959): 176-94.
É muito comum ver Jesus como o bom samaritano, que é amigo e
irmão de pessoas vindas dos variados caminhos da vida, de qualquer
nação e de todas as raças. Entretanto, ainda que o próprio Lucas passa
ter pensado assim quando registrou a parábola, ele não nos dá a menor
indicação de que Jesus pretendesse transmitir essa mensagem. Nem o
texto, nem o contexto, aceitam tal interpretação333.

A mensagem que Jesus ensina através da parábola se resume na


expressiva exortação feita ao teólogo que provocou a história: ―Vai, e
procede tu de igual modo‖. Na linguagem de Tiago: ―Tomai-vos, pois,
praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos‖ (Tg 1.22).

333Morris, Luke (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 191. W. Monselewski, Der


barmherzige Samariter. Eine auslegungsgeschichtliche Untersuchung zu Lukas
10.25-37 (Tübingen: Mohr-Siebeck, 1967), p. 16.
26. O Amigo Importuno

Lucas 11.5-8 ―Disse-lhes ainda Jesus: Qual dentre vós, tendo um


amigo, e este for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-
me três pães, pois um meu amigo, chegando de viagem, procurou-me, e
eu nada tenho que lhe oferecer. E o outro lhe responda lá de dentro,
dizendo: Não me importunes; a porta já está fechada, e os meus filhos
comigo também já estão deitados. Não posso levantar-me para tos dar;
digo-vos que, se não se levantar para dar-lhos por ser seu amigo,
todavia, o fará por causa da importunação e lhe dará tudo o de que tiver
necessidade‖.

Lucas registra o Pai Nosso de forma mais breve que a encontrada


no Evangelho de Mateus. Ele continua a oração não com uma exortação
aos homens para que se amem uns aos outros, mas com uma parábola
na qual Jesus ensina àquele que pede, que seja persistente. O ensino
da parábola sobre o amigo importuno é reproduzido sucintamente na
exortação do apóstolo: ―Orai sem cessar‖ (1 Ts 5.17). Apenas Lucas
menciona a parábola do amigo que vem à meia-noite. Em poucas e
expressivas palavras, ele descreve o quadro de um homem que não
tinha pão — provavelmente usara o último pedaço no jantar — e, então,
recebe um amigo que chega de viagem, à meia-noite334. A cidade era
pequena e não era possível obter pão, àquela hora, a menos que
procurasse um vizinho de boa vontade que lhe emprestasse alguns.

O viajante chegou à meia-noite, talvez para evitar o calor do


dia335. Cansado e com fome, procurou a hospitalidade do amigo. Mas,
pelo inconveniente da hora, pôs seu hospedeiro numa situação
embaraçosa: ou se recusava a hospedá-lo, porque não tinha pão, ou ia
procurar o vizinho para pedir alguns pães. Que situação! Se recusasse a
alimentar seu amigo viajante, faltaria às normas do bom receber; e se
fosse procurar seu vizinho, provavelmente o incomodaria.

A história contada por Jesus talvez se baseasse em um fato real e


podia ser classificada entre aquelas que se iniciam sempre com a
pergunta: ―Sabe o que aconteceu...?‖ Fez sorrir discretamente todos
aqueles que a ouviam porque era tão igual à própria vida. Todos
queriam saber como a história ia acabar.

As casas em Israel, especialmente nas áreas rurais, eram


pequenas consistindo de apenas um cômodo usado como sala de jantar

334 Traduções de Lc 11.5 diferem na maneira de considerar a palavra amigo. A versão


NIV traduz: ―Suponhamos que um de vós tenha um amigo e vá procurá-lo à meia-
noite...‖ Mas a versão NEB diz o seguinte: ―Suponhamos que um de vós tenha um
amigo que vem procurá-lo no meio da noite...‖ O amigo é o vizinho que empresta o
pão, ou o viajante faminto? Quem é amigo de quem?
335 As viagens à noite eram comuns, nos dias de Jesus; as pessoas prudentes viajavam

à noite, como fez José com Maria e o menino Jesus (veja-se Mt 2.9,14).
e dormitório336. A casa tinha uma porta que permanecia aberta durante
todo o dia. Mas, ao anoitecer, quando o sol se punha, o chefe da família
fechava a porta e fazia correr uma tranca de maneira que se prendia
nas laterais da porta, mantendo-a fechada para evitar os intrusos337.
Esteiras eram espalhadas e usadas como camas, nas quais a família
toda dormia. Em tais circunstâncias, era muito difícil levantar no
escuro e procurar algo.

O hospedeiro, desejando cumprir as normas de hospitalidade,


caminhou até à casa de seu vizinho e despertou-o, pedindo-lhe: ―Amigo,
empresta-me três pães, pois um meu amigo, chegando de viagem,
procurou-me, e eu nada tenho que lhe oferecer‖. Ele chamou o vizinho
de amigo, provavelmente para desencorajar qualquer resposta zangada,
embora não fosse próprio de um amigo acordar o outro no meio da
noite. A questão é saber quem merece o nome de ―amigo‖. Aquele que foi
prestativo com seu vizinho ou o que veio acordá-lo pensando em seu
hóspede?

Um pão, naqueles dias, não era maior que uma pedra que se
pudesse segurar com uma das mãos. Assim, Mateus, no contexto
paralelo registra: ―Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o
filho lhe pedir pão, lhe dará pedra?‖ (Mt 7.9). Três desses pães eram
refeição suficiente para uma pessoa. A longa explicação do que pedia
emprestado era uma tentativa de descrever ao vizinho a situação
embaraçosa em que se achava e revela a esperança de que o amigo o
compreendesse. Naturalmente, o hospedeiro estava perfeitamente ciente
do problema que seu pedido causaria. Mesmo assim, ele pediu, sabendo
que era a única maneira de conseguir pão para oferecer a seu amigo
cansado e faminto.

Emprestar pão a um vizinho, cujo suprimento se esgotara, era


costume comum em Israel. Pela manhã, quando o pão fresco fosse
assado, o que fora emprestado era devolvido. O problema não era a
quantidade emprestada; era a hora.

A voz do vizinho estava longe de agradar. Numa reação bem


humana, de alguém cujo sono foi perturbado, ele respondeu: ―Não me
importunes: a porta já está fechada e os meus filhos comigo também já
estão deitados. Não posso levantar-me para tos dar‖. Ele mostrou má
vontade, não falta de condições para atender o pedido. Ele teria que se
levantar, acordar os filhos ao acender a lâmpada, achar o pão, e retirar
a tranca para abrir a porta. Seria muito mais fácil se o vizinho
desaparecesse na escuridão.

Mas o vizinho não lhe deu descanso nem o deixou dormir. Não

336 A cozinha ficava, comumente, do lado de fora, ou sob um telheiro. Veja-se Daniel-
Rops, Palestine, p. 220.
337 Dalman, Arbeit und Sitte VII:70-72, 178-79; Armstrong, Parables, p. 80; e

Jeremias, Parables, p. 157.


podia voltar para casa, onde seu amigo estava esperando, com as mãos
vazias. Continuou pedindo até que seu vizinho se levantou, acendeu a
lâmpada, removeu a tranca, abriu a porta e lhe entregou os pães. O
vizinho não fez isto por causa da amizade, mas por causa da insistência
daquele que estava pedindo.

A palavra insistência é a palavra-chave na conclusão da


parábola338. Ela retrata a atitude de um homem que se vê obrigado a
mostrar hospitalidade a um amigo que o procurou à meia-noite. No
contexto de sua cultura, ele sai de seus hábitos para providenciar
alimento para suprir as necessidades de seu amigo. Está disposto a
sacrificar a amizade com seu vizinho, a fim de se mostrar um bom
hospedeiro. Ele insiste. Sabe que seu pedido receberá resposta apesar
das circunstâncias adversas.

Nesta parábola, Jesus aplica claramente a regra judaica dos


contrastes339. E uma norma que destaca o maior ensinando o menor.
Nesse exemplo, chamando atenção para a insistência do hospedeiro,
que tem certeza de que o amigo lhe emprestará os pães, Jesus ensina
que podemos procurar Deus em oração, sabendo que ele vai nos
atender. ―Digo-vos que, se não se levantar.., por ser seu amigo... o fará
por causa da importunação, e lhe dará tudo o de que tiver necessidade.
Por isso vos digo: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-
se-vos-á‖ (Lc 11.8,9). Se o vizinho acorda à meia-noite e se levanta para
emprestar os pães a seu amigo, muito mais fará Deus, o Pai,
respondendo à oração de seu filho, que o procura em necessidade!

O que a parábola ensina? Não ensina que, como o vizinho


despertado do sono, Deus não gosta de ser importunado. Antes, ela
transmite a idéia de que, como o hospedeiro continuou a pedir, sabendo
que seu vizinho lhe abriria a porta e lhe daria pão, assim o cristão deve
continuar diligentemente em oração. Pela fé, ele sabe que Deus
atenderá seus pedidos, e lhe dará muito mais do que necessita. Deus
atende às orações em resposta à fé manifestada pelo crente. Por isso, o
cristão termina suas orações repetindo a palavra amém. Nas palavras de
um catecismo do século dezesseis, a respeito do Pai Nosso:

Amém significa,
Assim será, com toda a certeza!

338 Em todo o Novo Testamento, a palavra anaideia ocorre apenas aqui. Pode ser
traduzida como ―falta de vergonha‖ para descrever a impertinência do homem que
acordou o vizinho. Jeremias, Parables, p. 158, e Marshall, Luke, p. 465, admitem que
a falta de vergonha pode ser atribuída, também, ao vizinho que se recusou a atender o
pedido do amigo. A palavra exprime, então, o sentido de ―manter a aparência‖. O
vizinho, portanto, atendeu o pedido, porque não queria trazer vergonha para sua casa,
com sua recusa.
339 Esta regra, chamada Kal Wa-homer (do menos importante para o mais importante),

era uma das sete regras de hermenêutica compiladas pelo Rabino HilIel (60 A.C. a 20
DC.) H. L. Strack, Introduction to the Talinud and Midrash (New York: Meridian
Books, 1969), pp. 93-94.
É muito mais certo
Que Deus ouça minha oração,
Do que eu estar realmente desejando
Aquilo pelo qual estou orando340.

340 Catecismo de Heidelbergae, questão 129.


27. O Rico Insensato

Lucas 12.13-21 ―Nesse ponto, um homem que estava no meio da


multidão lhe falou: Mestre, ordena a meu irmão que reparta comigo a
herança. Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz
ou partidor entre vós? Então, lhes recomendou: Tende cuidado e
guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem
não consiste na abundância dos bens que ele possui. E lhes proferiu
ainda uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico produziu
com abundância. E arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei, pois
não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: Farei isto: destruirei
os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu
produto e todos os meus bens. Então, direi à minha alma: tens em
depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-
te. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que
tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si
mesmo e não é rico para com Deus‖.

―Não julgueis, para que não sejais julgados‖, disse Jesus no


Sermão da Montanha. Ele estava plenamente consciente do significado
do que dizia, cercado por uma multidão. Alguém lhe pediu que fosse
juiz numa disputa de família. Dois irmãos vinham discutindo a respeito
de uma herança. O pai tinha morrido, e o irmão mais velho, na opinião
do mais novo, não tinha cumprido o que estava especificado no
testamento. Talvez a herança não tivesse sido dividida por motivos
religiosos341. Mas, o irmão mais novo fazia objeção ao curso da ação e
fez um apelo a Jesus. Dirigiu-se a ele como ―mestre‖, que quer dizer
―rabino342‖.

Jesus, no entanto, negou-se a se envolver na disputa e a servir de


juiz e árbitro. Recusou-se a se tornar um outro Moisés, que tomou
partido em uma contenda e, como resultado, teve que deixar o país343.
Não se prestou a ser usado por alguém movido pelos próprios
interesses.

O irmão que pediu a Jesus para intervir parece ter ido, sozinho,
até Jesus. Não temos indícios de que o irmão mais velho tenha
concordado em ter uma terceira pessoa avaliando a situação. Nada é
revelado, também, a respeito dos pormenores da reclamação. O que fica
evidente é que a pessoa que se dirigiu a Jesus queria usá-lo como
advogado, juiz e árbitro. Resumindo, queria empregá-lo como se

341 Sl 133.1. Josephus assinala que os essênios desistiam do direito à propriedade


privada morando juntos, como fazem os irmão de uma família. Wars 2:122.
342 Os judeus apelariam aos rabinos e fariam referência às Escrituras: Nm 27.1-7;

36.2-10; Dt 21.15-17.
343 Êx 2.14; At 7.27,35. O Evangelho de Tomé, Citação 72, apenas descreve Jesus

como um repartidor: ―Um homem disse a ele: Fala com meus irmãos para que dividam
comigo os bens de meu pai. Ele disse: Homem, quem me pôs como repartidor? Ele se
voltou a seus discípulos e lhes disse: Não sou um repartidor, sou?‖
emprega um servo. Deixou de ver Jesus como um mestre. Porque os
rabinos conheciam a Lei, e serviam duplamente como mestres e
advogados, o irmão, simplesmente, não conseguiu ver a diferença.

Por isso, depois de ter-se dirigido diretamente ao homem, Jesus


passou a ensinar à multidão uma lição espiritual, fazendo-lhes uma
recomendação geral, e contando-lhes uma parábola: ―Tende cuidado e
guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem
não consiste na abundância dos bens que ele possui‖. Como mestre
Jesus advertiu o povo contra o perigo espiritual da avareza. A avareza é
idolatria344. É o culto à criatura em lugar do Criador. Jesus foi direto à
raiz do problema apresentado pelo homem. Descobriu a origem do erro
que o levou a pedir a Jesus que fosse seu advogado. Pessoas avarentas
não herdam o reino de Deus345.

As palavras de Jesus são elaboradas na primeira Epístola de


Paulo a Timóteo: ―Porque nada temos trazido para o mundo nem coisa
alguma podemos levar dele; tendo sustento e com que nos vestir,
estejamos contentes‖ (1 Tm 6.7,8). Comida, roupa e um abrigo resumem
as necessidades da vida. Qualquer coisa a mais é abundância e deve ser
repartida com os pobres.

A Parábola

A parábola do rico insensato deixa evidente que a vida, no


verdadeiro sentido da palavra, não depende de riquezas materiais. Há
alguns anos atrás, estavam muito em moda definições de felicidade:
―Ser feliz é...‖ Mas entre todas as definições, nenhuma mencionava
riqueza. A riqueza não traz felicidade. Antes, é, muitas vezes, causa de
ruína e destruição.

Na parábola de Jesus, um fazendeiro muito rico teve um verão


excepcional, porque na ocasião da ceifa tivera uma colheita abundante.
O fazendeiro arrazoava consigo mesmo o que fazer com a colheita e
onde guardá-la. Ele resolveu: ―Farei isto: Destruirei os meus celeiros,
reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os
meus bens.‖ Falando consigo mesmo e usando os pronomes eu e meu
repetidamente, ele revela seu extremo egoísmo346. Deus tinha prometido
encher plenamente os celeiros do homem se este o honrasse com os
primeiros frutos de tudo que produzisse347. Esse fazendeiro não levava
em consideração a promessa de Deus. De fato, mostrou seu desrespeito
derrubando seus celeiros e construindo Outros maiores348. Queria ter o

344 Cl 3.5.
345 1 Co 6.9,10. J. D. M. Derrett, ―The Rich Fool: A Parable of Jesus concerning
Inheritance‖. Studies in lhe New Testament (Lciden: Brili, 1978), 2:103.
346 Compare-se a parábola à história de Nabal que, com palavras e atos, mostrou-se

escravo de seus bens. 1 Sm 25.11.


347 Pv 3.10 e Dt 28.8.
348 Derrett, ―The Rich Fool‖, p. 112.
controle completo da situação. Não se sentia seguro dependendo de
Deus. Mais que isso, jamais passou pela sua cabeça a idéia de ajudar
os pobres. Ao contrário, pensou em si mesmo, em seu próprio prazer e
segurança. Manifestou extrema desconsideração para com o resumo
básico da lei de Deus: ―Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento; e amarás o
teu próximo como a ti mesmo‖. Deus e o próximo não existiam para ele.
Pensava apenas nele mesmo.

―Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos bens para


muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te‖. O homem rico
mostrava apenas auto-indulgência349, o enriquecimento de sua própria
vida não era ao menos considerado. A auto-indulgência é feita de
egoísmo. O círculo de sua vida tinha se reduzido a um ponto. Ela não se
caracterizava pelos pecados de comissão, mas, sim, pelos pecados de
omissão. Deixou de agradecer a Deus as riquezas recebidas e foi
negligente no cuidado ao próximo necessitado. Sem Deus e sem o
próximo, sua existência estava centrado nele mesmo. Só, sem relação
com Deus, queria garantir seu futuro. Tiago, em sua Epístola, se dirige
àquelas pessoas que dizem: ―Hoje ou amanhã iremos para a cidade tal,
e lá passaremos um ano e negociaremos e teremos lucros‖. Replica
Tiago: ―Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida?
Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa‖
(Tg4.13,14).

Deus interveio chamando-o de louco350, e dizendo-lhe que


morreria naquela noite351. Perderia a vida e todas as suas riquezas.
Deus o chamou para prestar contas de seus bens. Queria fazer um
balanço de suas posses terrenas e espirituais.

O fazendeiro rico tinha empilhado sua colheita em celeiros e


acumulado riqueza suficiente para vários anos. Mas porque não
repartira seus bens com o próximo, nem havia ajustado contas com
Deus, seu saldo no banco espiritual estava a zero. Quando Deus
chamou o homem, a conta estava encerrada e não podia ser alterada352.

―Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para


quem será?‖ A questão é retórica e implica que as riquezas do homem,
na verdade, pertencem a Deus. Ele as dá e tira no tempo devido.

349 Compare-se com Ec 11.19.


350 SI 14.1; 53.1.
351 A parábola do rico insensato, no Evangelho de Tomé, Citação 63, difere, em ênfase

e propósito, do relato canônico: ―Jesus disse: havia um homem rico que possuía
muitos bens. Ele disse: usarei meus bens para semear e colher e plantar e encher
meus celeiros com frutos, para que nada me falte. Assim pensava consigo. E, naquela
noite, morreu. Quem tem ouvidos, ouça‖.
352 Derrett, ―The Rich Fool‖, p. 114.
Conclusão

Jesus não disse que o homem devia se privar de riquezas


terrenas, prazer e bem-estar. Nem tentou dizer ao irmão mais novo, que
o procurou com uma queixa a respeito de sua parte da herança, para se
desprender de bens materiais. O homem deve compreender que Deus é
o dono de sua grande criação, e que colocou o homem como despenseiro
do mundo que criou353. Como despenseiro, o homem deve
periodicamente prestar contas a Deus. Quando deixa de fazê-lo e age
como se fosse proprietário de seus bens, transgride a lei de Deus e se
condena como louco. Sempre que vive para si mesmo, ele está
espiritualmente morto.

Na presença de Deus, nossas mãos estão vazias. ―Porque nada


temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele‖ (1
Tm 6.7). Apenas o que temos oferecido a Deus e a nosso próximo
permanecerá. A morte não pode tomar de nós nossas dádivas de amor e
gratidão, porque têm valor espiritual.
Só uma vida, que breve passara;
Só o que é feito para Cristo subsistirá.

Jesus termina sua parábola instando o homem a armazenar


tesouro nos céus e a ser rico para com Deus. Assim Jesus ensinou no
Sermão da Montanha: ―Porque onde está o teu tesouro, aí estará
também o teu coração‖ (Mt 6.21)354.

353Sl 24.1.
354O contexto geral aponta, obviamente, para o ensinamento do Sermão da Montanha.
Portanto, a parábola pode ser vista como uma elaboração da instrução de Jesus para
que não armazenemos tesouros na terra, e, sim, nos céus (Mt 6. 19,20).
28. A Figueira Estéril

Lucas 13.6-9 ―Então, Jesus proferiu a seguinte parábola: Certo homem


tinha uma figueira plantada na sua vinha e, vindo procurar fruto nela,
não achou. Pelo que disse ao viticultor: Há três anos venho procurar
fruto nesta figueira e não acho; podes cortá-la; para que está ela ainda
ocupando inutilmente a terra? Ele, porém, respondeu: Senhor, deixa-a
ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se
vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la‖.

O proprietário da vinha é tratado apenas como ―certo homem‖. Se


era rico ou não, pouco importa. O que conta não é o que ele é, mas o
que diz. Esse homem tinha uma figueira em sua vinha — coisa muito
comum em Israel. Depois de ela ter sido plantada, ele teve que esperar
três anos até que a árvore começasse a produzir. Então, de acordo com
a lei de Moisés (Lv 19.23), teria que esperar outros três anos até que os
frutos fossem considerados puros. Passados os primeiros três anos, o
proprietário foi procurar frutos na árvore. Ano após ano, procurou e não
encontrou fruto algum. A árvore era estéril.

Por causa de sua localização, deduzimos que a árvore tinha sido


muito bem cuidada. Ocupava uma parte do terreno que podia ter sido
usado para as videiras. Cada ano que a árvore permanecia estéril
significava prejuízo para o lavrador. Ela absorvia umidade e nutrientes
que serviriam para as videiras. A figueira era como uma dívida que
aumentava na medida em que se passavam os anos. Outra árvore ou
videira poderia ser plantada ali e, dentro de alguns anos, produzir
frutos. Há um tempo limite para a paciência do fruticultor. Então basta!

O proprietário deu instruções ao homem que cuidava da vinha


para que cortasse a figueira. Mas ele pediu ao dono que tivesse ainda
um pouco mais de paciência. Queria dar mais um ano à árvore, durante
o qual cavaria o solo ao seu redor e a adubaria. ―Se vier a dar fruto, bem
está, se não, mandarás cortá-la‖.

A figueira tinha um papel muito importante na vida de um


israelita. Ele sabia que Deus a usava para indicar a prosperidade de
Israel — cada um vivendo em segurança, debaixo da sua videira e
debaixo da sua figueira355. O contrário também era verdadeiro. Quando
Deus se desagradava de seu povo por causa de sua infidelidade, tornava
isso conhecido, referindo-se à falta de fruto na videira e na figueira356.
Como nação, Israel era, muitas vezes, representada por uma figueira.
Tinha recebido lugar escolhido na vinha de Deus e era, portanto,
altamente privilegiada. Mas, o privilégio traz a responsabilidade. Israel,
no entanto, não correspondeu ao privilégio357. O julgamento de Deus

3551Rs 4.25; Mq 4.4


356Jr 8.13; Os 9.10; Hc 3.17.
357
A parábola é uma reminiscência do que está registrada em Is 5.1-7. Vides
escolhidas foram plantadas numa vinha num Outeiro fértil. Mesmo assim, após todos
não podia mais ser adiado, e a falta de figos na figueira simbolizava o
desagrado de Deus358.

A parábola que Jesus ensinou mostra, implícito, um contraste. Se


o homem que era responsável pela vinha dispensou cuidado especial a
uma figueira, durante um ano extra, quanto mais amor e consideração,
mostrará Deus para com o homem, e, certamente, para com seu próprio
povo359! Embora a parábola não diga se o dono colheu figos no ano
seguinte ou se figueira foi cortada, o ponto central da história é que a
paciência tem um tempo limite — um ano e nada mais. A misericórdia
de Deus é grande, mas, no fim, o dia do juízo virá. O tempo da graça
concedido ao pecador deve ser usado por ele para se arrepender e voltar
para Deus.

Jesus ensinou a parábola da figueira estéril, no contexto histórico


do triste feito de Pilatos que misturara sangue de galileus aos sacrifícios
que os mesmos realizavam (Lc 13.1-5). Seriam esses galileus
assassinados, pecadores que mereciam o castigo divino? A resposta de
Jesus foi negativa. ―Se não vos arrependerdes‖, disse Jesus,
―igualmente perecereis‖. ―Ou cuidais que aqueles dezoito, sobre os quais
desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais culpados que todos os
outros habitantes de Jerusalém?‖. De novo, Jesus respondeu que não.
Chamou outra vez seus ouvintes ao arrependimento, e prosseguiu
contando-lhes a parábola da figueira estéril.

O que, então, ensina a parábola? No contexto das calamidades


que tinham atingido os galileus e os dezoito habitantes de Jerusalém.
Jesus afirmou a seus ouvintes que a paciência de Deus resulta em
julgamento se o pecador não se arrepende. A quem muito se confiou,
muito será exigido. O mesmo sentimento se repete no autor da Epístola
aos Hebreus, quando adverte os cristãos, na segunda metade do
primeiro século, a que prestem atenção ao evangelho. ―Se, pois, se
tornou firme a palavra falada por meio de anjos, e toda transgressão e
desobediência recebeu justo castigo, como escaparemos nós, se
neg1igenciarmos tão grande salvação?‖ (2.2,3).

O ensino da parábola é que, quando o tempo designado para que


o homem se arrependa tiver se esgotado, o juízo de Deus estará
concluído. O tempo permitido por Deus é um período de graça, e reflete
sua misericórdia para com o homem. Deus não caminha apenas a
segunda milha. Anda a terceira, e, se necessário, a quarta, a fim de

os cuidados dedicados às vides, elas produziram uvas bravas. Veja-se, também, a


história de Aicão. Um pai diz a seu filho: ―Meu filho, tu és como uma árvore que o
dono é forçado a Cortar porque não produz frutos, embora esteja plantada junto da
água. E ela lhe diz: Transplanta-me, e se, mesmo assim, eu não der frutos, corta-me.
Mas, seu dono lhe disse: junto da água não dás frutos, como, então, frutificarás,
estando em outro lugar?‖ Jeremias, Parables, p. 170; Charles, Apocrypha and
Pseudepigrapha, 2:775.
358 Is 34.4; Jr 5.17; 8.13; Os 2.12; Jl 1.17.
359 Mànek, Frucht, p. 93.
salvar um pecador. Mas, quando sua paciência se exaure e o chamado
de Deus para que o homem se arrependa continua negligenciado, então
o julgamento é inevitável360.

Em nossas orações a Deus, em favor de pecadores impenitentes,


devemos pedir mais tempo. Como o jardineiro da parábola pediu mais
um ano ao proprietário da vinha, assim devemos pedir um pouco mais
de paciência. Do mesmo modo, Paulo, em seu interesse por seus
conterrâneos, constantemente implorava a Deus por sua salvação:
―Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a
favor deles é para que sejam salvos‖ (Rm 10.1). Nossa preocupação é
com o ganho361 eterno do homem e, por isso, imploramos a Deus que
exerça a paciência e conceda a graça.

360 A parábola pode ser vista como simbolicamente cumprida na maldição lançada à
figueira (Mt 21.18,19; Mc 11.12-14). É muito marcante que apenas Lucas tenha
registrado a parábola da figueira estéril e que dos evangelistas sinóticos ele seja o
único que não registra o fato de Jesus ter amaldiçoado a figueira.
361 J. Murray, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), 2:47.
29. Os Primeiros Lugares

Lucas 14.7-14 ―Reparando como os convidados escolhiam os primeiros


lugares, propôs-lhes uma parábola: Quando por alguém fores convidado
para um casamento, não procures o primeiro lugar; para não suceder
que, havendo um convidado mais digno do que tu, vindo aquele que te
convidou e também a ele, te diga: Dá o lugar a este. Então, irás,
envergonhado, ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando fores
convidado, vai tomar o último lugar; para que, quando vier o que te
convidou, te diga: Amigo, senta-te mais para cima. Ser-te-á isto uma
honra diante de todos os mais convivas. Pois todo o que se exalta será
humilhado; e o que se humilha será exaltado. Disse também ao que o
havia convidado: Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os
teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos;
para não suceder que eles, por sua vez, te convidem e sejas
recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não
terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a
receberás na ressurreição dos justos‖.

Após o culto na sinagoga, aos sábados, os judeus costumavam


ter uma lauta refeição, para a qual, muitas vezes, havia vários
convidados362. Um dos principais dos fariseus convidara Jesus para um
desses almoços, com o propósito de armar-lhe uma cilada. Lá, bem na
frente de Jesus, estava um homem hidrópico. Jesus curaria o homem,
no Sábado, ou esperaria até à noite, quando o sábado terminasse?

Jesus curou o homem e mandou-o para casa, porque os fariseus


se recusaram a responder à sua pergunta, se era ou não lícito curar no
sábado. Ainda lhes propôs outra questão, apelando para o seu senso de
compaixão e misericórdia: ―Qual de vós, se o filho ou o boi cair num
poço, não o tirará logo, mesmo cm dia de sábado?‖ Também a essa
pergunta, que se referia a coisas da casa, os fariseus não souberam o
que responder.

Naquele ambiente hostil, onde alguns hóspedes tinham


egoisticamente tomado os melhores assentos junto à mesa, Jesus
ensinou a parábola dos convidados orgulhosos — uma lição de
humildade. Ele usou a cena de uma festa de casamento para a qual
certo número de pessoas havia sido convidados. Num banquete de
casamento, os divãs eram dispostos na forma de uma ferradura
alongada ao redor de uma mesa retangular. À cabeceira da mesa se
colocava a pessoa de maior destaque, com o segundo e o terceiro
lugares à esquerda e à direita desta pessoa363. Cada divã acomodava
três pessoas, cabendo à do meio a honra maior. O divã à esquerda da

362SB, II:202.
363 A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah (Grand Rapids,
Eerdmans, 1953) 2:207. Veja-se, também, Morris, Luke, p. 231. Plummer, SI. Luke, p.
356; SB, IV: 2.618.
cabeceira da mesa era o segundo em prioridade, e, depois, o divã da
direita. Conseqüentemente, os hóspedes judeus se orientavam pela
etiqueta social da época para encontrar o lugar certo à mesa. No
entanto, se a escolha de lugares ficasse a critério dos convidados,
muitos demonstravam seu egoísmo, preconceito e orgulho. Foi
exatamente isso que aconteceu, naquele dia, na casa do fariseu que
tinha convidado Jesus. Os fariseus e os doutores da lei tinham criado
um clima de soberba e arrogância desprovido de amor e humildade.
Nessas circunstâncias, Jesus ensinou uma lição de autodepreciação.

A parábola é encontrada apenas no Evangelho de Lucas, embora


o sentimento que ela expressa ocorra cm outros lugares dos Evangelhos
e Epístolas364. Naturalmente, nos lembramos de quando Jesus lavou os
pés dos discípulos, no cenáculo, na noite em que foi traído.

O Exemplo

Os fariseus e os doutores da lei estavam acostumados com os


Provérbios de Salomão. Conheciam muito bem o trecho que diz: ―Não te
glories na presença do rei, nem te ponhas no meio dos grandes; porque
melhor é que te digam: Sobe para aqui; do que seres humilhado diante
do príncipe‖ (Pv 25.6,7). Jesus se referiu habilmente a esta passagem
quando descreveu um salão cheio de convidados para as bodas,
assentados à mesa. Um convidado mais importante chegou quando
todos os assentos escolhidos junto da mesa estavam já ocupados365. O
anfitrião não podia permitir que esse hóspede tão ilustre tomasse um
lugar inferior. Isso seria uma quebra imperdoável da etiqueta. Em tal
caso, o hospedeiro tinha apenas uma escolha: pedir à pessoa que
ocupava o lugar de honra, ao qual não tinha direito, que ocupasse um
lugar inferior, e, então convidar o visitante ilustre para ocupar o lugar
de destaque. O convidado, humilhado, aprenderia uma lição difícil de
esquecer.

Ao chegar, não seria mais prudente ocupar o lugar de menor


destaque, à mesa? Se o anfitrião julgasse que o lugar ocupado era
modesto demais, convidaria o hóspede, dizendo: ―Amigo, senta-te mais
para cima‖. Conseqüentemente, o convidado seria honrado na presença
de todos os outros. Do lugar mais humilde até ao mais honrado. As
palavras de Jesus: ―Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se
humilha será exaltado‖, eram muito familiares naquela época. Um
contemporâneo de Jesus, o Rabino Hillel, citava um provérbio judaico
semelhante: ―Minha própria submissão é minha exaltação; minha
própria exaltação é minha submissão366‖.

Jesus não pretendia ensinar aos fariseus e teólogos apenas

364 Por exemplo: Mt 18.4; 23.12; Rm 12.16; 1 Pe 5.6.


365 Os doutores da lei eram notórios por ocuparem lugares de honra nos banquetes.
Veja Mt 23.6 e seus paralelos: Mc 12.39; Lc 20.46.
366 Midrash Rabbath Leviticus, I, 5 (London: 1961), p. 9
algumas regras de boas maneiras à mesa. Ensinou uma lição de
humildade e amor dirigindo-se aos convidados que ali estavam, bem
como àquele que o convidara. Jesus disse ao hospedeiro que este não
devia convidar com interesse de ser recompensado: ―Porque, se amardes
os que vos amam, que recompensa tendes?‖ (Mt 5.46). Se o anfitrião
convida seus parentes, amigos e conhecidos para comerem com ele,
com a intenção de que eles, depois, também o convidem, estará
pensando no quanto receberá de volta. Mas, se convida pessoas que são
financeira e socialmente impossibilitadas de retribuir o convite, sua
recompensa será paga pelo próprio Deus, por ocasião da ressurreição.

Quem promoveria um banquete e convidaria a mais baixa classe


da sociedade: os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos?
Financeiramente, os pobres dependem dos ricos, e aqueles que são
aleijados, coxos e cegos, muitas vezes, precisam da ajuda dos que são
fisicamente capazes. Essas pessoas não têm meios nem força para
retribuir os favores.

Quando o convite é extensivo às pessoas que não têm acesso aos


prazeres da mesa, gozados pelos ricos, a bênção se torna merecida.
Naturalmente, Jesus não estava dizendo que o anfitrião deveria
convidar apenas os oprimidos. Ele ensina que os nossos atos devem ser
praticados sem que esperemos reciprocidade. Devem ser executados
com espírito de humildade e amor desinteressados. Tais atos recebem a
aprovação divina, pois: ―Sempre que o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes‖ (Mt 25.4411). Este ensino
universal não se limita ao oferecimento de banquetes, mas inclui
também todas as dádivas que não podem ser retribuídas por aqueles
que as recebem.
30. A Grande Ceia

Lucas 14.15-24 ―Ora, ouvindo tais palavras, um dos que estavam com
ele à mesa, disse-lhe: Bem-aventurado aquele que comer pão no reino
de Deus. Ele, porém, respondeu: Certo homem deu uma grande ceia e
convidou muitos. À hora da ceia, enviou o seu servo para avisar aos
convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante, todos,
à uma, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um campo
e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro disse:
Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te que me
tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me e, por isso, não posso ir.
Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o dono da
casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos da cidade e
traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Depois, lhe
disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar.
Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga a todos
a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque vos declaro que
nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia‖.

Ao ensinar na casa de um dos principais dos fariseus, Jesus


provocou o comentário de um dos convidados que estavam com ele à
mesa. Ele disse: ―Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de
Deus.‖ Falando assim, deixava implícito que, a qualquer custo, ele
estaria presente nas festas celestiais. Mas, quando o convite para a
celebração desta festa nos céus chegasse, estaria ele disposto a aceitá-
lo? Jesus quis testar a sinceridade do homem e contou a parábola sobre
uma grande ceia.

A História

Uma pessoa abastada, numa certa cidade, preparou


cuidadosamente uma grande ceia. Ele tinha falado a respeito com
numerosos amigos que receberam bem sua idéia de oferecer um
banquete. Disseram-lhe que, quando tudo estivesse pronto, o que tinha
a fazer era falar, e eles iriam.

No dia da ceia, o homem mandou seu servo avisar os convidados


que já estava preparada a festa367. Ele chegou à casa do primeiro
convidado, e disse: ―Vinde, porque tudo já está preparado.‖ Infelizmente,
o convidado tinha um compromisso e, com tristeza, teve que recusar o
convite. Disse ao servo: ―Comprei um campo, e preciso ir vê-lo‖.
Realmente, queria dizer: ―Sinto muito, mas não posso comparecer ao
banquete. Os negócios vêm antes do prazer. Rogo-te que me tenhas por
escusado‖. Mandou lembranças ao anfitrião, e esperou que este o
compreendesse.

367A prática de enviar servos para chamar os convidados era muito comum nos
tempos antigos. Ester 6.14 e SB, 1:880.
O servo procurou o segundo convidado, e chamou-o para a ceia,
pois o anfitrião estava à espera: ―Vinde, porque tudo já está preparado‖.
O homem pareceu perplexo, ao ouvir o convite. Estava tratando de
negócios. Tinha acabado de pagar uma quantia razoável por cinco
juntas de bois e se preparava para experimentá-las. Não podia sair, pois
os homens que conduziam os bois dependiam dele. Era o único que
podia tomar decisões. Era o chefe, ali. Sair de sua fazenda naquele
momento, para tomar parte em um banquete, seria muita
irresponsabilidade. Ele expressou profundo pesar e pediu ao servo que
levasse suas saudações ao anfitrião. Tinha certeza de que o outro
entenderia sua situação embaraçosa.

O servo continuou, e bateu à porta do terceiro convidado. A esta


altura já estava preparado para receber resposta negativa ao convite de
seu senhor. Quando fez ao convidado, o chamado para o banquete,
ficou sabendo que este se casara durante aquela semana, e estaria
ocupado com suas próprias festas. Realmente, ele nem precisava se
justificar. Ninguém estranharia o fato de o noivo querer ficar ao lado de
sua noiva.

Depois de ter falado com todos os convidados, o servo voltou ao


anfitrião e transmitiu-lhe todas as desculpas e lembranças enviadas.
Compreensivelmente, o dono da casa não se sentiu satisfeito. Ficou
muito zangado. Não podia perder toda a comida preparada. Não tinha
outra escolha senão encher sua casa com outros convidados. Assim,
ordenou ao servo que fosse às ruas e becos da cidade e trouxesse para a
ceia os mendigos, aleijados, cegos e coxos, que encontrasse. O servo
cumpriu as ordens do seu amo, mas, quando os convidados já estavam
assentados, ainda sobrava lugar. O senhor o enviou, para que buscasse
todos os marginalizados pela sociedade, que encontrasse pelos
caminhos e atalhos da cidade. O anfitrião queria que todos os lugares
do banquete fossem ocupados, de modo que se algum daqueles que
convidara antes chegasse atrasado, não poderia entrar, pois não haveria
mais lugar.

Interpretação

Um dos convidados presentes à casa do fariseu ilustre tinha dito:


―Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus.‖ Ele
visualizava o céu como o lugar onde não há mais morte, luto, lágrimas,
ou dor (Ap 21.4), onde os cegos vêem e os coxos andam. Que bênção se
assentar em lugar reservado, à mesa de Deus, como um filho seu, e
participar com gozo da festa e da comunhão celestiais.

Jesus ensinou a parábola da grande ceia para mostrar que


mesmo tendo intenção de honrar nossas obrigações em relação a Deus,
quando os cuidados e interesses da vida terrena fazem seus reclamos,
nós os pomos em primeiro lugar, e oferecemos nossas desculpas a
Deus. Prometemos a Deus amá-lo com todo o nosso coração, toda a
nossa mente e toda a nossa alma. Porém, a promessa prontamente se
esvazia quando os interesses desta vida exigem nossa atenção. Então,
apresentamos nossas desculpas a Deus e dizemos que ele deve
compreender o acúmulo de nossas responsabilidades, nossos
compromissos, e que as oportunidades não se apresentam com muita
freqüência368. Nossas obrigações, relacionamentos e conveniências
contrariam, freqüentemente, a promessa de amar a Deus e de servi-lo.
Satisfazemos nossos próprios interesses e esperamos que Deus nos dê
uma segunda oportunidade.

As desculpas apresentadas pelos convidados simplesmente não se


sustentariam. Elas fazem referência a negócios e assuntos de família
que poderiam facilmente ficar em segundo plano em relação ao convite
anteriormente aceito. O campo ainda estaria lá no dia seguinte, para ser
vistoriado. Os bois poderiam descansar por uma noite e os recém-
casados poderiam concordar numa separação ocasional.

A seqüência de desculpas atinge um limite. Na fala de Jesus, após


o almoço, percebemos uma nota de humor. Primeiro, o exemplo do
homem que tinha comprado um campo é despropositado — quem
compra um campo vai vê-lo antes de comprá-lo, não depois. Do mesmo
modo, a segunda desculpa não convence — as cinco juntas de bois
podiam ser postas para trabalhar no dia seguinte369. Além disso, se o
fazendeiro não tivesse experimentado as juntas de bois antes de
comprá-las, teria feito uma grande tolice. O terceiro exemplo foi o ponto
culminante das ilustrações. O marido recém-casado, incapaz de deixar
a esposa por uma noite, fornece excelente material para inúmeras
brincadeiras370.

Ao enumerar essas desculpas, o objetivo de Jesus era mostrar


sua inconsistência e fragilidade. Ninguém poderia levá-las a sério. Elas
simplesmente não resistiriam. Nos dias de Jesus todo mundo sabia da
importância de um convite para um banquete. Recusar-se a atender o
segundo convite constituía um insulto ao dono da casa — em tal grau
que, entre as tribos árabes, equivalia a uma declaração de guerra371. O
convite devia ser considerado uma ordem.

Os que ouviam Jesus, na casa do fariseu, compreenderam que a

368 Schippers, Gelijkenissen, p. 45.


369 O fazendeiro que comprou cinco juntas de bois devia possuir muita terra.
Provavelmente, mais de 45 hectares (111 acres). Jeremias, Parables, p. 177.
370 H. Palmer, ―Just Married, Cannot Come‖, NovT 18 (1976):241-57. Veja
especialmente a página 248. O Evangelho de Tomé, Citação 64, tem uma série maior
de desculpas. A primeira: ―Alguns comerciantes me devem dinheiro; virão me procurar
esta noite; preciso dar algumas ordens a eles. Peço para ser dispensado do jantar.‖ O
segundo convidado disse: ―Comprei uma casa, estarei ocupado durante todo o dia.‖ O
terceiro disse: ―Meu amigo vai se casar e eu vou ser responsável pela festa. Peço
desculpas por não ir ao banquete.‖ O quarto se desculpou, dizendo: ―Comprei uma
vila; tenho que receber o aluguel; não poderei ir. Peço que me tenhas por escusado‖.
371 Plummer, St. Luke, p. 360.
parábola era endereçada a eles. O hospedeiro e seus hóspedes estavam
sendo convidados novamente para o banquete de Deus, ao qual já
tinham aceitado comparecer. Eles viriam ou Deus deveria procurar
outros, porque os hóspedes convidados se recusavam a ir? Jesus disse
aos fariseus e aos doutores da lei que o banquete de Deus não é um
acontecimento a ser celebrado no final dos tempos. A festa já está
pronta e Deus espera, então, a resposta que têm para dar372.
Respondendo ao homem que tinha comentado: ―Bem-aventurado aquele
que comer pão no reino de Deus‖, Jesus falou: ―Sim. Vinde, porque a
festa já está preparada. Os convidados devem vir agora. Depois será
tarde demais.‖ As instituições religiosas dos dias de Jesus não estavam
preparadas para aceitar a vinda do reino, apesar dos sinais e
maravilhas realizados por Jesus, diante de todos.

Pela parábola, Jesus deixou entrever que não haverá falta de


cidadãos no reino de Deus. Se os líderes religiosos de Israel rejeitassem
o convite de Deus para a entrada no reino, ele o estenderia aos
marginalizados pela sociedade, isto é, aos coletores de impostos,
indecisos e gentios373.

A mensagem de salvação não foi aceita pelos líderes religiosos dos


dias de Jesus. Ela muitas vezes foi alvo de escárnio e desprezo. O povo
comum a aceitou com ardor. Marginais, ignorantes, samaritanos e
gentios atenderam prontamente ao chamado de Jesus.

Colocação

A parábola da grande ceia foi contada por Jesus após um almoço


de sábado, que se seguiu ao culto da manhã. A parábola sobre o
banquete das bodas foi contada por Jesus nos últimos dias de seu
ministério terreno (Mt 22.1-14). As duas têm um tema comum, mas sua
disposição é inteiramente diferente. Em Lucas, a parábola é dirigida aos
fariseus e doutores da lei. Em Mateus, a parábola do banquete nupcial
se volta contra os líderes religiosos374. O relato de Mateus se refere à
dura realidade de um rei que, provocado até à ira, reage com pronto
castigo. No Evangelho de Lucas, o quadro apresentado é o de um
anfitrião que, se sentindo deliberadamente menosprezado, extravasa
seus sentimentos convidando a escória da sociedade.

Os quatro Evangelhos mostram, repetidamente, que Jesus


ensinava à maneira dos rabinos daquela época375. Para ele, ensinar
significava repetir. Assim, ensinou a parábola da grande ceia na ocasião

372 Huner, Parables, p. 94. Linnemann, p. 91.


373 Talvez a diferença entre os desamparados que vivem na cidade e os que estavam
fora, no campo, se refira ao judeu errante, que ―não está longe do reino‖, e ao gentio
destituído de instrução religiosa.
374 Palmer, ―Just Married‖, p. 256.
375 E. Schürer, A History of the Jewish People in the Time of Jesus Christ,

Division II, vol. 1 (Edinburgh: T&T Clark, 1885), p. 324.


em que foi convidado para um almoço de sábado na casa de um fariseu.
Alguns dias antes de sua morte, ele contou a parábola sobre o banquete
de núpcias376.

Quando Jesus contou a parábola da grande ceia, aqueles que


tinham instrução religiosa e teológica puderam perceber a alusão a
duas passagens encontradas em Deuteronômio:

―Os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual o homem que


edificou casa nova e ainda não a consagrou? Vá, torne-se para
sua casa, para que não morra na peleja e outrem a consagre.
Qual o homem que plantou uma vinha e ainda não a
desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na
peleja e outrem a desfrute. Qual o homem que está desposado
com alguma mulher e ainda não a recebeu? Vá, torne-se para
sua casa, para que não morra na peleja e outro homem a
receba‖ (Dt 20.5-7).

―Homem recém-casado não sairá à guerra, nem se lhe imporá


qualquer encargo; por um ano ficará livre em sua casa e
promoverá felicidade à mulher que tomou‖ (Dt 24.5).

Os teólogos sabiam que estas passagens eram válidas apenas em


relação à guerra e ao serviço militar e que não serviam de desculpa para
obrigações sociais377.

Eles conheciam, também, os costumes prevalecentes. Quando o


primeiro convite fosse feito, o hospedeiro poderia aceitar as desculpas
apresentadas. Recusar um segundo convite, quando tudo já estava
preparado, era não apenas faltar ao prometido, mas também insultar o
hospedeiro. A parábola, claramente, se dirigia e se aplicava aos fariseus
e doutores da lei. Se não aceitassem o convite para serem hóspedes de
Jesus, no reino de Deus, seriam deixados de lado, e outros, que não
mereciam seu respeito, tomariam seus lugares.

Aplicação

O hospedeiro é, às vezes, visto como vítima das circunstâncias.


Seria compreensível que um dos convidados declinasse o convite, mas o
anfitrião fica sabendo que todos se recusaram a ir378. Talvez seja mais

376 Palmer, ―Just Married‖, p. 255.


377 Morris. Luke, p. 234. P. II. Ballard, ―Reasons for Refusing the Great Supper‖, JTS
23(1972): 345.
378 Jeremias, Parables, p. 179, afirma que ―podemos pensar que o hospedeiro era um

coletor dc impostos que, tendo-se tornado rico, tenha enviado convites com a
esperança de ser aceito nos mais altos círculos.‖ Ele se baseia na convicção de que
Jesus tenha usado uma história corrente, naqueles dias, de um rico publicano, Bar
Ma‘Jan, registrada no Talmud Palestino (1. Sanh. 6-23c par. 1. Hagh 2.77d). É
discutível, no entanto, se a parábola copia a história. Linnemann, Parables, pp. 160-
62; F. Hahn, ―Das Gleichnis von der Einladung Zum Festmahl, ―Verborum Veritas‖,
lógico ver menosprezo deliberado no fato de que todos os convidados —
e não temos que nos ater a apenas três exemplos — se recusaram a ir.
Ainda que não tenham combinado ente si, o efeito foi o mesmo. Os
convidados refletiam a atitude da hierarquia religiosa.

Jesus envolveu a si mesmo na conclusão, quando disse: ―Porque


vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados
provará a minha ceia.‖ Quem fala já não é mais o hospedeiro dirigindo-
se ao servo. Jesus é a figura central, é ele quem fala ―minha‖ ceia, e diz
que nenhum dos convidados insolentes provará da sua comida379. Jesus
é o anfitrião que, através de seus servos, envia convites chamando o
povo para a festa no reino de Deus. Quando o convite é enviado por
Jesus, com seus servos falando ao povo, não deve ser entendido como
um chamado que pode ser aceito ou rejeitado, de acordo com a própria
vontade. O chamado é equivalente a uma ordem que deve ser
cumprida380. O povo de Deus, que é parte e parcela da igreja, recebe o
chamado para o serviço obediente. Já responderam ao convite inicial.
Agora, soa o chamado para o serviço. Será que o povo de Deus vai
responder à ordem de amar a Deus de todo o coração e ao próximo
generosamente381? O homem que come do pão do banquete no reino de
Deus é chamado de bem-aventurado, porque obedece às leis do reino e
cumpre as ordens do Rei.

A lição da parábola é clara. Jesus está enviando seus servos com


a mensagem da vinda do reino de Deus. Os que ouvem a mensagem são
convidados a fazer parte desse reino. Não devem apresentar desculpas e
se demorar porque Jesus não reservará um lugar para eles382. Ele
preencherá os lugares de seu reino com outros, que virão daqui e dali.
Ele quer que sua casa fique repleta. Ele diz: ―Obriga a todos a entrar‖.

A parábola tem sentido obviamente missionário. Jesus reúne seu


próprio povo das ruas e becos da cidade, e das estradas e atalhos dos
campos. Ele não se envergonha de chamar de seus irmãos os pobres, os
aleijados, os cegos e os coxos (Hb 2.11). Estes são feitos santos e
pertencem à família de Deus. Numa época em que muitos que
pertencem à igreja oferecem fracas desculpas para não participarem da
obra contínua do reino de Deus, os servos fiéis de Deus devem sair às
ruas e becos da vida, com o convite para que todos aceitem a Jesus
Cristo, o Salvador do mundo. Enquanto esses que se recusam a tomar
conhecimento do chamado de Jesus são preteridos e perdem sua
cidadania do reino, estranhos ao reino são convencidos a responder,

p. 67; Derrett, Law in lhe New Testament, p. 143.


379 Derrett, Law in the New Testament, p. 141, afirma que um hospedeiro enviaria

porções da comida a amigos que não pudessem comparecer ao banquete. Distribuindo


a comida aos pobres, o anfitrião recusou até mesmo ―um sinal de reconhecimento e
reciprocidade‖.
380 Michaelis, Gleichnisse, p. 158.
381 O. Glombitza, ―Das Grosse Abendmahl Luk XIV 12-24, NovT 5 (1962):15.
382 Palmer, ―Just Married‖, p. 253.
pela fé, ao chamado de Cristo.

O convidado precisa ter fé para aceitar o convite. Quando o servo


chega com o recado do hospedeiro: ―Vinde, porque tudo já está
preparado‖, o convidado vê apenas um homem383. Quando um ministro
da Palavra de Deus proclama a mensagem de salvação, muitos que
ouvem a Palavra vêem apenas um homem. É preciso fé para que se
possa ver e ouvir, através do pregador, Jesus Cristo, o Salvador, que
oferece, de graça, salvação plenária. O carcereiro de Filipos procurou
Paulo e Barnabé, e lhe foi dito: ―Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e
tua casa‖ (At 16.31).

383 Wallace, Parables, p. 69.


31. O Construtor da Torre e o Rei Guerreiro

Lucas 14.28-33 ―Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não
se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os meios
para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não
a podendo acabar, todos os que a virem zombem dele, dizendo: Este
homem começou a construir e não pôde acabar. Ou qual é o rei que,
indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se
com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte
mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma
embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo aquele que
dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu
discípulo‖.

As parábolas gêmeas sobre o homem que queria construir uma


torre e o rei que devia partir para a guerra são encontradas apenas no
Evangelho de Lucas. Foram contadas quando Jesus seguia da Galiléia
para Jerusalém, acompanhado por grandes multidões. O povo, de modo
errôneo, via Jesus como um governante terreno que caminhava para
Jerusalém, a fim de estabelecer seu reino, e queriam estar lá com ele e
seus discípulos. Mas, em Jerusalém Jesus não ocuparia nenhum trono
secular. Seria, antes, aprisionado, julgado e executado. Seus seguidores
iriam perceber o custo do discipulado antes mesmo de se decidirem a
lançar sua sorte com Jesus384. Deviam saber que qualquer um que não
aborreça seus parentes e até sua própria vida por causa de Jesus, não
pode ser seu discípulo (Lc 14.25-27).

Em termos semíticos, aborrecer significa amar menos alguém ou


alguma coisa. Significa que ninguém ou nada deve ter prioridade. Tudo
mais deve ser relegado a segundo ou terceiro plano. Apenas aquele que
afirmar: ―Jesus é o primeiro em minha vida‖ pode ser seu discípulo. Ser
discípulo de Jesus significa carregar sua própria cruz e seguir Jesus
onde quer que ele vá. O único que disse: ―Vinde a mim todos os que
estais cansados e sobrecarregados...‖ (Mt 11.28), disse também:
―Qualquer que não tomar a sua cruz, e vier após mim, não pode ser
meu discípulo‖ (Lc 14.27). ―Ninguém que, tendo posto a mão no arado,
olha para trás, é apto para o reino de Deus‖ (Lc 9.62). O discipulado
exige compromisso de entrega total a Jesus. ―É preciso avaliar o custo‖,
Jesus disse à multidão que o acompanhava, ―e considerar o que
realmente representa me seguir‖.

As Duas Parábolas

Para ilustrar o que queria ensinar, Jesus contou duas parábolas


relativamente curtas. A primeira é tirada do cenário agrícola daqueles

384O tema ―o custo do discipulado‖ é estudado em livro do mesmo título, de Dietrich


Bonhoeffer. Neste trabalho, Bonhoeffer fala da auto-entrega e do auto-sacrifício dos
quais deu pessoal-mente testemunho, quando foi executado em 9 de abril de 1945,
numa prisão alemã.
dias, e a segunda de um fato político. As duas parábolas ensinam a
mesma lição e, com simplicidade, vão direto ao objetivo.

Suponhamos, diz Jesus, que um fazendeiro resolva construir uma


torre em sua fazenda. Ele precisa de um lugar onde guardar suas
ferramentas e suas provisões. Quer proteger sua propriedade de
estranhos e ladrões. Se construir a torre obterá respeito na comunidade
e sua propriedade aumentará seu valor. Reconhece a necessidade da
construção385, mas não se assenta para calcular o total do custo do
material e da mão de obra envolvidos. Começa a construção da torre
lançando os alicerces. Quando está ocupado com a estrutura, o
dinheiro acaba e ele tem que abandonar o projeto. Ali fica a torre,
inacabada, e, num certo sentido, sem valor. O fazendeiro perdeu seu
dinheiro investindo-o numa construção que não pode usar, inacabada
como está. Perdeu seu prestígio na comunidade, pois todos os que vêem
a estrutura incompleta o ridicularizam dizendo: ―Este homem começou
a construir e não pôde acabar‖. Ele se tornou motivo de riso no lugar.

Com seus exemplos, Jesus vai da fazenda para o palácio.


Suponhamos, ele diz, que um rei precise combater outro rei. Uma
disputa territorial se estabeleceu, paixões se inflamaram, palavras de
retaliação e vingança se fizeram ouvir. Como líder, o rei precisava
decidir se partia ou não para a guerra. Ele seria completamente louco se
enviasse para a guerra seu exército de dez mil homens para se
confrontar com o dobro de soldados, no campo de batalha. Então se
assenta, antes, com seus conselheiros militares e calcula o risco de
partir para a guerra contra um inimigo superior em força. Se for
prudente, enviará alguns delegados para discutir os termos de paz com
o inimigo e evitar o derramamento de sangue386.

A ênfase é a mesma nas duas parábolas, embora variem os


pormenores. Na que fala sobre o construtor da torre, a mensagem é:
avalie o custo, antes de construir. Na do rei guerreiro, é: considere as
possibilidades de sucesso, antes de enviar seus soldados à batalha;
esteja pronto, e disposto a ceder. ―Assim, pois, todo aquele que dentre
vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo‖, diz
Jesus.

Conclusão

À primeira vista, o ensino das parábolas parece contrariar a

385 Smith, Parables, p. 220, raciocina que, por causa da referência ao custo do
alicerce, algo de maior valor que o simples erguimento de uma torre de vigia, em uma
vinha, deve ser levado em conta, talvez, uma construção rural‖.
386 O Evangelho de Tomé, Citação 98, tem um interessante paralelo à parábola do rei

guerreiro: ―Jesus disse: O reino do Pai é semelhante a um homem que queria matar
um outro homem poderoso. Ele sacou sua espada dentro de sua casa e golpeou com
ela a parede, até saber que sua mão tinha força suficiente. Então, matou o homem
poderoso‖.
mensagem do evangelho de Cristo, de fazer discípulos de todas as
nações (Mt 28.19). Depois de refletir, no entanto, ninguém pode dizer
que as parábolas pretendam desencorajar possíveis discípulos. Em
conjunto, os dois exemplos usados por Jesus mostraram-lhes como se
tornar verdadeiros discípulos. Jesus não quer e nem precisa de
seguidores cujos corações não estejam totalmente comprometidos. Tais
seguidores são como as sementes que caem nos lugares rochosos.
Ouvem a Palavra e a recebem imediatamente, com alegria. Mas, porque
não têm raiz, não permanecem. Quando vem a dificuldade e a
perseguição, por causa da Palavra, desistem (Mt 13.20,21).

As parábolas põem em destaque dois pontos principais: (1) O


discípulo de Jesus deve ponderar tudo muito cuidadosamente; e, (2)
deve estar disposto a renunciar tudo por causa de Jesus387. O
discipulado não se baseia em emoções fingidas e entusiasmo
superficial. Estes vêm e vão. Mas o compromisso genuíno é o alicerce no
qual o discípulo de Jesus constrói. Ele tem que avaliar o custo, com
cuidado, e analisar os riscos que corre ao seguir Jesus. Deve renunciar
prontamente a seus parentes e posses, a fim de tomar sua cruz e seguir
a Jesus.

Três vezes Jesus repete o refrão: ―não pode ser meu discípulo‖ (Lc
14.26,27,33). Com toda a certeza, apenas aqueles que avaliaram o custo
e estão dispostos a renunciar a tudo por causa de Cristo são
verdadeiramente seus discípulos.

P. G. Jarvis, ―Expouding the Parahles. V. The Tower-builder and the King going to
387

War (Luke 14.25-33), ExpT 77 (1966): 197.


32. A Ovelha Perdida

Mateus 18.12-14 ―Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e


uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e nove,
indo procurar a que se extraviou? E, se porventura a encontra, em
verdade vos digo que maior prazer sentirá por causa desta do que pelas
noventa e nove que não se extraviaram. Assim, pois, não é da vontade
de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos‖.

Lucas 15.4-7 ―Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas
e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em
busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os
ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os amigos e vizinhos,
dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha
perdida. Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um
pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento‖.

Entre as parábolas contadas por Jesus, a da ovelha perdida é a


que cm tido maior apelo entre as crianças. Elas conseguem visualizar a
ovelha perdida, o amor e a preocupação do pastor, e sua alegria e
felicidade quando a reencontra. Muitas canções e hinos têm sido
escritos sobre o tema.

Tanto Mateus quanto Lucas registraram a parábola da ovelha


perdida. Em resumo, os dois relatos se mostram idênticos, embora haja
variação nos pormenores. É bem possível que Jesus tenha contado a
parábola duas vezes, em ocasiões diferentes388. Além disso, histórias
sobre pastores e ovelhas tinham particular interesse e significado para a
sociedade pastoril daqueles dias.

Em Mateus, bem como em Lucas, Jesus começa a parábola com


uma pergunta de retórica que, em Lucas, envolve os ouvintes (―Qual,
dentre vós‖): ―... que, possuindo cem ovelhas... não deixa no deserto as
noventa e nove...?‖ Alguém que possuísse cem ovelhas não era um
homem de muitos recursos. Ele mesmo tomava conta do rebanho,
conhecia-as pelo nome e as contava pelo menos uma vez por dia389.

Quando o pastor se distraiu por momentos, uma das ovelhas se


afastou, abocanhando algo aqui e ali, até que estava completamente
desgarrada do resto do rebanho. O pastor deixou o resto do rebanho
nos montes (Mateus) ou no deserto (Lucas)390. Embora a parábola diga

388 Marshall, Luke, p. 600‘; Plummer, St. Luke, p. 368. Para um estudo mais
detalhado, consulte-se J. Jeremias, ―Tradition und Redaktion in Lukas 15‖, ZNW 62
(1971): 172-89.
389 E. F. F. Bishop, ―The Parable of the Lost or Wandenng Sheep‖, ATR 44 (1962): 50.
390 M. Black. Ais Aramalc Approach lo lhe Gospels and Acts, 3rd cd. (Oxford;

Clarendon Press, 1967), p. 133, sugere que a palavra montes pode ter recebido a
apenas que o pastor deixou as noventa e nove ovelhas, não menciona
que as deixou desprotegidas391. Além do mais, o objetivo da parábola
não são as noventa e nove, e, sim, aquela que se perdeu. As ovelhas são
animais gregários; vivem juntas em grupo. Quando uma ovelha se
separa do rebanho, fica desnorteada392. Deita no chão, imóvel,
esperando pelo pastor. Quando ele, afinal, a encontra, coloca-a sobre os
ombros, para caminhar de volta, mais depressa, até onde deixou o
rebanho393. Logo o pastor, a ovelha e o rebanho estão todos juntos outra
vez.

Este poderia ter sido o final da história, mas não foi. A história
cresce em emoção no seu clímax com a alegria que toma conta do
pastor. Jesus diz: ―... em verdade vos digo que maior prazer sentirá por
causa desta, do que pelas noventa e nove, que não se extraviaram‖ (Mt
18.13). Para ser verdadeira a felicidade precisa ser compartilhada. O
pastor vai para casa, chama seus amigos e vizinhos e os convida a se
alegrarem com ele, porque, diz o pastor: ―... já achei a minha ovelha
perdida‖ (Lc 15.6). A tensão que o pastor sentira enquanto procurava a
ovelha extraviada tinha desaparecido, dando lugar à alegria394. Ele
comemora com seus amigos e vizinhos.

Aplicação

Os relatos de Mateus e Lucas diferem, obviamente, na aplicação,


por causa das circunstâncias históricas nas quais Jesus contou a
parábola. No Evangelho de Mateus, uma pergunta foi proposta pelos
discípulos: ―Quem é, porventura, o maior no reino dos céus?‖ Ao
responder, Jesus, de modo muito significativo, colocou uma criança no
círculo dos discípulos e lhes disse: ―Se não vos converterdes e não vos
tomardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus‖
(Mt 18.3). Prosseguiu advertindo-os a não fazer ―tropeçar a um destes
pequeninos que crêem em mim‖, nem a desprezá-los. Jesus, então,
contou a parábola da ovelha perdida e aplicou-a as crianças. ―Assim,
pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes
pequeninos‖.

No contexto, a expressão se refere às crianças, mas, levando em

influencia do aramaico tura, ―que no siríaco da Palestina tinha dois sentidos:


montanha‘ e ‗campo‘, o ‗campo aberto‘ em contraste com os lugares habitados‖.
391 ―Devemos imagina-las em algum lugar cercado‖ Smith, Parables, p. 188 nº 2.
392 Armstrong, Parables, p. 185.
393 Jeremias, Parables, p. 134, e Brouwer, Gelijkenissen, pp. 225-26, descreve o

pastor com uma ovelha ao redor do pescoço, segurando suas patas dianteiras e
traseiras com cada uma das mãos. Veja-se também SB, 11:209.
394 O Evangelho de Tomé, Citação 107, mostra uma tendência gnóstica na parábola,

acentuando o amor do pastor pela ovelha, por causa de seu tamanho: ―Disse Jesus: o
reino é como um pastor que possuía cem ovelhas. Uma delas se extraviou; era a maior
delas. Ele deixou as noventa e nove e procurou aquela até encontrá-la. Após o esforço,
disse à ovelha: ―Eu te quero mais que às noventa e nove‖.
conta a demonstração visual feita por Jesus, colocando uma delas no
círculo dos discípulos, ―estes pequeninos‖ passam a ter conotação
espiritual. Jesus está se referindo àqueles cuja fé mantém a
simplicidade das crianças395. Como um pastor vigia suas ovelhas, e até
mesmo sai à procura daquela que se extravia, assim Deus cuida
daqueles que acreditam nele, especialmente as ainda crianças na fé396.
Se algum se extraviar, Deus irá a busca dele porque não quer ―que
pereça um só destes pequeninos‖.

O Evangelho de Lucas relata que Jesus foi cercado por publicanos


e ―pecadores‖, que tinham vindo para ouvi-lo397. Os fariseus e os
escribas se escandalizaram com isso e murmuravam: ―Este recebe
pecadores e come com eles‖ (Lc 15.2). Cercado por aqueles que ainda
eram crianças no espírito, Jesus contou a parábola da ovelha perdida, e
concluiu, dizendo: ―Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por
um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que
não necessitam de arrependimento.‖ Jesus comparou os publicanos e
as pessoas sem moral a uma ovelha que se extraviou. Perdida, ela não
respondeu mais ao chamado do pastor. Não queria se mexer. Quando o
pastor a encontrou, teve que erguê-la e colocá-la em seus ombros para
levá-la de volta ao rebanho.

Os coletores de impostos eram judeus empregados pelo governo


romano. O povo os considerava traidores e os afastava da sociedade.
Pertenciam à mesma classe dos marginalizados moralmente. Um judeu
não devia ter qualquer contato com tais pessoas, e muito menos comer
com elas. Havia barreiras entre os judeus e os ―pecadores‖, mas estas
não impediram que Jesus ensinasse aos marginalizados a mensagem da
salvação. Ele lançou uma ponte sobre esse abismo e trouxe o pecador
de volta para Deus.

Deus se alegra mais por um desses proscritos que se arrependem


que por noventa e nove justos que não necessitam de
arrependimento398. Ele está genuinamente interessado na salvação do
pecador. Como um pastor, ele vai à procura do homem que é incapaz de
fazer qualquer coisa por si mesmo. Deus vai a busca do homem, não o
homem em busca de Deus. Neste ponto, o Cristianismo difere das

395Morison, St. Matthew, p. 317.


396 Jeremias, Parables, p. 39, traduz Mt 18.14 da seguinte maneira: ―não é da vontade
de Deus que nenhum destes mais pequeninos se perca.‖ Ele aplica a expressão ―mais
pequeninos‖ aos apóstatas que deveriam receber o cuidado pastoral por parte da
comunidade cristã (p.40).
397 K. H. Rengstorf, TDNT, 1:327-28, apresenta uma dupla interpretação da palavra

pecador, como era entendida pela hierarquia judaica. (a) O pecador é ―um homem que
vive em oposição, consciente ou intencionalmente, à vontade divina (Torá),
diferentemente do justo que faz da submissão a esta vontade sua alegria de viver‖. E
(b) é o homem ―que não se sujeita aos rituais farisaicos‖.
398 As regras religiosas daquele século e do século seguinte falam mais sobre a alegria

de Deus na destruição do ímpio que sobre sua salvação. SB, 11:209.


outras religiões do mundo399. Deus encontra o homem que está perdido
em pecado. Quando o pecador é encontrado, há júbilo no céu.
Naturalmente, há alegria por aquele que faz a vontade de Deus, mas,
quando um pecador volta para Deus, em arrependimento e fé, é
chegado o tempo da celebração. Um filho de Deus, que estava perdido,
foi achado.

399 Wallace, Parables, p. 52.


33. A Dracma Perdida

Lucas 15.8-10 ―Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder
uma, não acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente até
encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo:
Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido. Eu vos
afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um
pecador que se arrepende‖.

Lucas, muitas vezes, apresenta seus assuntos aos pares. Quando


menciona um homem, com muita probabilidade se refere, também, a
uma mulher. No primeiro capítulo de seu Evangelho, Zacarias e Isabel
são apresentados; e no capítulo seguinte, José e Maria, Simeão e Ana.
Nos capítulos que se sucedem, se refere à viúva de Sarepta e a Naamã,
o siro. Nas parábolas, coloca a do homem com o grão de mostarda junto
à da mulher que adiciona o fermento à massa. A parábola do pastor que
encontra a ovelha perdida é seguida pela parábola da mulher que
encontra uma das suas moedas de prata400. Essas duas parábolas
formam um par, e transmitem, virtualmente, a mesma mensagem.
Assim é alcançado o objetivo de Jesus ao se dirigir aos fariseus e
doutores da lei.

Esta história, em sua concisão, é de uma beleza cintilante. Revela


toda a emoção da ansiedade, preocupação, exaltação e alegria em uma
ou duas linhas. E é, ainda, uma história completa!

Jesus fala a respeito de uma mulher que tinha dez moedas de


prata. Faziam parte de seu dote e eram usadas para enfeitar seu
penteado. O equivalente atual seria o anel de noivado e a aliança de
casamento cravejados de brilhantes. A perda de um desses brilhantes
causaria consternação, ansiedade e tristeza. Quando ela percebeu que
faltava uma das moedas, sabia que devia ter-se soltado e caído. Era
inconcebível que alguém a tivesse roubado401. Devia procurá-la em sua
própria casa.

As casas mais pobres eram construídas sem janelas. Junto do


teto, às vezes, faltavam algumas pedras na parede para permitir a
ventilação. Mas, essa abertura, além da entrada, não fornecia muita luz
para o interior da casa. Era escuro, dentro de casa, mesmo durante o
dia. A mulher teria que acender uma lamparina para poder procurar a
moeda no chão de pedra402. Nas casas da zona rural, os animais eram,

400 Alguns estudiosos questionam a ordem em que as parábolas são apresentadas:


Armstrong, Parables, pp. 182,3; Linnemann, Parables, p. 68. Oesterley, Parables, pp.
176-77, se opõe a qualquer inversão da ordem das parábolas, estabelecendo a
diferença entre a mente ocidental, que busca a seqüência lógica, e a maneira oriental
de pensar, que não leva em conta a simetria lógica.
401 Bishop, Jesus of Palestine (London: n p. 1955), p. 191 — Jeremias, Parables, p.

134.
402 J. Wilkinson, Jerusalem as Jesus Knew it (London: Thomas and Hudson, 1978),

p. 28, comenta sobre escavações em Nazaré, onde se encontram casas que foram,
muitas vezes, guardados dentro de casa, embora numa parte separada
da habitada pela família403. Na casa eram, ainda, guardadas as
provisões.

Em algum lugar da casa estava a moeda que a mulher tinha


perdido. Ela pegou uma vassoura e, com a luz de uma lamparina
iluminando o cômodo, varreu tudo cuidadosamente. Cada lugar onde a
moeda poderia estar foi vasculhado, até que avistou um brilho de metal,
ou ouviu o tilintar da moeda no chão duro. Sua ansiedade e
preocupação desapareceram de repente e deram lugar à alegria e ao
júbilo. Queria repartir sua alegria com as amigas e vizinhas. Chamou-as
e disse: ―Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha
perdido‖. Palavras de contentamento foram trocadas, e quando o marido
voltou do campo, também se alegrou com a mulher. ―Eu vos afirmo‖,
disse Jesus, ―que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus
por um pecador que se arrepende‖. Como a casa da mulher se encheu
de riso e felicidade porque o que estava perdido foi achado, assim os
céus se rejubilam quando um pecador se arrepende e volta a Deus, com
fé. Como a mulher se alegrou com suas amigas e vizinhas, assim Deus
se alegra diante de seus anjos404. Como a moeda pertencia à mulher
que diligentemente procurou por ela, enquanto estava perdida, assim o
pecador que se arrepende pertence a Deus. O amor de Deus está
voltado para seu filho extraviado: ―Mas Deus prova o seu próprio amor
para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores‖ (Rm 5.8).

Jesus mostrou o amor de Deus pelos ―pecadores‖ de seus dias.


Ensinou aos publicanos e aos marginalizados, entrou na casa deles,
comeu e bebeu com eles, e foi chamado de ―amigo de pecadores‖ (Mt
11.19). Por causa disso, até mesmo Jesus era considerado um pecador,
pelos fariseus.

As duas parábolas, a da ovelha perdida e a da dracma perdida,


têm uma verdade evangélica definida. A igreja, conhecida como o corpo
de Cristo, é chamada para estender seu amor e interesse aos homens,
mulheres e crianças que estão espiritualmente perdidos no mundo. Os
membros da igreja são convocados para procurar os que estão perdidos
e para dizer aos que vivem no pecado ―que Cristo... morreu pelos
ímpios‖ (Rm 5.6). O fervor que Jesus mostrou, associando-se aos
chamados ―pecadores‖ de seus dias, deve arder em cada um dos
membros da igreja, irradiando o calor do zelo evangelístíco e se

provavelmente, visitadas por Jesus. Ele diz: ―O chão era desnivelado, feito de grandes
pedaços de basalto com consideráveis fendas entre eles. Mesmo com a luz do sol,
podemos imaginar a mulher da parábola de Lucas 15.18, procurando sua moeda
perdida, especialmente num cômodo de chão e paredes de pedra, e pequenas janelas.
Não é de admirar que ela tenha usado uma candeia‖.
403 Dalman, Arbeit und Sitte, VII:111-12.
404 A. F. Walls, ―In lhe Presence of the Angels (Luke XV. 10), NovT 3(1959): 316; SB,

11:212.
rejubilando com os ―anjos de Deus por um pecador que se arrepende‖.
34. O Filho Pródigo

Lucas 15.11-32 ―Continuou: Certo homem tinha dois filhos; o mais


moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe. E ele
lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o filho mais moço,
ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e lá
dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter
consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou
a passar necessidade. Então, ele foi e se agregou a um dos cidadãos
daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos.
Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam; mas
ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si, disse: Quantos
trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de
fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei
contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para
seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e,
compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o filho lhe disse: Pai,
pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu
filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor
roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei
também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque
este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E
começaram a regozijar-se. Ora, o filho mais velho estivera no campo; e,
quando voltava, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos criados e perguntou-lhe que era aquilo. E ele
informou: Veio teu irmão, e teu pai mandou matar o novilho cevado,
porque o recuperou com saúde. Ele se indignou e não queria entrar;
saindo, porém, o pai, procurava conciliá-lo. Mas ele respondeu a seu
pai: Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus
amigos; vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com
meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado. Então, lhe
respondeu o pai: Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é
teu. Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos,
porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi
achado‖.

As Circunstâncias

Jesus estava ensinando aos publicanos e àqueles considerados


marginais, por causa de sua conduta moral. Ensinava-lhes verdades
espirituais que diziam respeito ao reino de Deus, quando os líderes
religiosos daqueles dias manifestaram seu desagrado, murmurando
contra Jesus: ―Este recebe pecadores e come com eles.‖ Aos olhos dos
escribas e fariseus, os publicanos, porque tinham-se vendido ao
governo romano, e as prostitutas, pelo seu pecado moral, estavam
banidos da comunidade religiosa de Israel, e estavam, espiritualmente,
mortos. Embora procurassem ganhar convertidos, os doutores da Lei e
os fariseus não tinham interesse em receber tais convertidos para um
relacionamento mais expressivo com Deus (Mt 23.15). Não podiam nem
queriam entender que Deus deseja o arrependimento que, quando
demonstrado, causa imenso júbilo nos céus.

Jesus contou a parábola do filho pródigo. Talvez fosse melhor


falar de dois filhos e seu pai. Nestes três personagens, Jesus
caracterizava seus ouvintes. Cada um dos que o ouviam tinha que se
mirar no espelho da parábola e pensar: ―Este sou eu.‖ O filho pródigo
retratava aqueles que, por sua moral e pela sua classe social, eram
marginalizados. Seu irmão era o judeu que se auto justificava, e o pai
era o reflexo de Deus405. Jesus se dirigiu diretamente aos que o ouviam.
Chamou o pecador ao arrependimento e exortou o justo a aceitar o
pecador e a se alegrar com sua salvação. A parábola descreve
claramente o amor de Deus por seus filhos, tanto pelo rebelde quanto
pelo obediente. Os contemporâneos de Jesus tinham plena consciência
da paternidade de Deus406. Das profecias de Jeremias eles sabiam que
Israel tinha sido o filho que se desviara. Efraim disse:

―Converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR meu


Deus. Na verdade, depois que me converti, arrependi-me;
depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado,
confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade‖ (Jr
31.18,19)407.

O Filho Mais Novo

Jesus contou a história de um homem rico que tinha dois filhos,


provavelmente no final da adolescência. Os dois trabalhavam com o pai
na fazenda da família, mas o mais jovem deles se tornou impaciente e
queria partir para longe da casa dos pais. Queria ser livre, para ir a
outras terras e viver como lhe agradasse408. O pai notara que o filho
queria partir, mas não disse nada. Ele poderia ter feito ver ao filho sua

405 Jeremias, Parables, p. 128, afirma que a parábola não ~ uma alegoria, ―mas uma
história tirada da vida.‖ Veja-se, também, Linnemann, Parables, p. 74, e Mánek,
Frucht, p. 103. Hunter, Parables p. 59, discorda porque ―o pai e seus dois filhos... são
uma representação diretamente significativa‖.
406 G. Quell, TDNT, V:972-74; e 6. Schrenk, TDNT, V:978.
407 Uma parábola remotamente semelhante à do filho pródigo vem do Rabino Meir:

―Isto é semelhante ao filho de um rei que tomou o caminho do mal. O rei enviou um
tutor para lhe fazer apelos, dizendo: ‗Arrepende-te, meu filho.‘ O filho, no entanto, o
mandou de volta a seu pai com a mensagem: ‗Como posso ter a desfaçatez de voltar?
Estou envergonhado diante de ti.‘ Então seu pai lhe mandou dizer: ‗Meu filho, como
pode um filho, jamais, se envergonhar de voltar para seu pai? E não é para teu pai que
estarás retornando‖. The Midrash, Deuteronomy (London: n.p., 1961), p. 53.
Consulte-se, também, em F. W. Danker, Jesus and lhe New Age (St. Louis, Clayton
Pub. House, 1972), p. 170, o texto de uma carta em papiro que contém o apelo de um
filho desviado, pedindo perdão a sua mãe.
408 Sair de Israel e fazer parte da diáspora era muito comum. Tem sido ensinado que

havia cerca de oito vezes mais judeus (quatro milhões) que viviam em dispersão, do
que em Israel (meio milhão). Jercmias, Parables, p. 129.
posição na vida — ele e o irmão, um dia, herdariam a fazenda toda.
Eventualmente, o filho tomaria conta da fazenda, dos servos e dos
trabalhadores contratados. Em vez disso, o pai esperou que o filho
tomasse sua própria decisão.

Um dia, o mais jovem se aproximou do pai e disse: ―Pai, dá-me a


parte dos bens que me cabe.‖ Ele, naturalmente, não podia pedir a
divisão da propriedade porque o patrimônio da família devia permanecer
intacto enquanto o pai fosse vivo. Pedindo sua parte, o filho mais novo
confessava que não permaneceria mais com o pai, que se aborrecia com
a rotina diária e queria a parte a que tinha direito para gastá-la como
quisesse. O pai deu ao filho o que era seu, provavelmente a nona parte
da soma total409. Ele teria recebido um terço da herança, por ocasião da
morte do pai (Dt 21.17). Recebendo sua parte por antecedência, o filho
perdia o direito de exigir mais, quando realmente se desse a partilha
dos bens. O pai, embora dividindo a propriedade, continuou
administrando a fazenda. O pai, não o filho mais velho, geria os bens da
família410.

O filho mais novo recebeu sua parte e ajuntou ―tudo o que era seu
Estava agora por conta própria e livre para ir. Pensava: ―Tenho dinheiro,
vou viajar‖. Poderia ir para a Babilônia, ao leste; à Ásia Menor, ao norte;
à Grécia e à Itália, ao oeste; ou ao Egito e África, ao sul. Tinha o mundo
à sua disposição. Diversos fatores influíram profundamente no futuro
do filho mais jovem. Seu idealismo juvenil, sua inexperiência e falta de
discrição, sua saída da fazenda para a cidade, o dinheiro à mão — tudo
teve um papel importante. Sua intenção de viver por sua própria conta
logo se frustrou, quando foi cercado por falsos amigos. Princípios de
vida e conduta, aprendidos em casa, foram postos de lado e esquecidos.
Foi descuidado e perdulário411.A reprovação do irmão mais velho —
―esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes‖ — não
é mera acusação. Baseava-se em informações que a família recebia, de
tempos em tempos, de como o caçula passava seus dias
dissolutamente. A desobediência às leis da economia e da moral não
podia continuar. Ele teve que pagar um preço pela vida desregrada. Em
relativamente pouco tempo, gastou tudo. Chegou ao fim da linha.

As notícias sobre a quebra da safra eram os principais


comentários naquela terra. A inflação levou os preços para os ares, os
empregos eram raros, e a economia indicava que tempos difíceis tinham
chegado. O jovem de vida devassa estava sem dinheiro e sem sequer um
amigo que o ajudasse. Em terrível necessidade, percorreu as ruas e

409 Para um estudo mais detalhado, consulte-se Derrett, Law in the New Testament,
p. 107.
410 O pai deve ter seguido o costume daqueles dias, como encontramos em Eclesiástico

33.22,23: ―Em todas as tuas obras conserva a tua superioridade. Não manches a tua
reputação. Deixa seguir o curso da tua vida e, no tempo da tua morte, reparte a tua
herança‖ (NEB).
411 W. Foerster, TDNT, 1:507.
arredores da cidade procurando serviço, mas tudo que pôde achar foi a
tarefa humilde de alimentar porcos. Ele tinha chegado agora à
degradação mais profunda, pois desde a infância aprendera, como
qualquer judeu, que o porco é um animal imundo (Lv 11.7)412. Era
agora empregado de um gentio e teve que abandonar o hábito de
guardar o Sábado. Nessa triste situação, estava alijado da religião de
seus pais espirituais413.9 Ele estava desesperado. Seu empregador o
fazia sentir que aqueles porcos tinham mais valor para ele que um
simples empregado. Sentia falta de amizade e consideração, mas
ninguém se importava com ele. Por causa da escassez de comida, sua
alimentação diária não era suficiente para acalmar suas dores de fome.
Queria até mesmo comer da comida dada aos porcos, as vagens da
alfarrobeira414.

A falta de consideração mostrada para com um pastor faminto era


mais do que o rapaz podia agüentar. Esse foi para ele o ponto máximo.
Buscara a bondade humana e não a pudera achar.

As notícias a respeito da fome o fizeram pensar em sua terra


natal. Começou a pensar em sua casa. Devia voltar? Quando essa idéia
lhe passou pela cabeça, primeiro ele a afastou. Os servos e os
contratados dificilmente esconderiam seu escárnio. Seu irmão mais
velho, de modo algum, o receberia bem se voltasse para casa, para uma
propriedade a que não mais tinha direito. Seu pai veria seu segundo
filho descalço e vestido como um pastor. Voltando, assim, para casa, ele
seria a figura abjeta de um mendigo.

O filho começou a pensar em seu pai — como o tinha magoado,


como seu pai lhe havia dado a parte da herança que ele, filho pródigo,
tinha esbanjado. Começou a falar consigo mesmo: ―quantos
trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de
fome!‖ Ele se comparou, não com os servos que tinham emprego estável,
mas aos trabalhadores ajustados temporariamente. Assalariados, como
ele era na ocasião, viviam regiamente na fazenda de seu pai.

Ele sabia que o amor de seu pai se estendia a todos aqueles que
pertenciam ao amplo círculo de sua família. Sabia, também, que tinha
desobedecido ao mandamento: ―Honra a teu pai e a tua mãe, para que
se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR teu Deus te dá‖ (Ex

412 Os judeus estavam estritamente proibidos de criar porcos. ―Não é permitido criar
porcos, onde quer que seja‖; ―Amaldiçoado seja o homem que criar porcos‖. Baba
Kamma 82b, Nezikin I, The Babylonian Talmud, pp. 469,70.
413 Jeremias, Parables, p. 129, comenta que o homem foi ―praticamente forçado a

abandonar a prática regular de sua religião‖.


414 Vagens e sementes de locusta (alfarrobeira) são usadas como forragem para o gado

e para os porcos e, às vezes, são comidas pelos pobres. Não há necessidade de dizer,
como alguns estudiosos fazem, que o jovem roubava as vagens para satisfazer sua
fome. A máxima universal: ―Não atarás a boca do boi, quando debulha‖ (Dt 25.4), pode
ser, certamente, aplicada.
20.12)415. Ele tinha pecado contra Deus.

Quando caiu em si, estava pronto para confessar seus pecados


contra Deus e contra seu pai. Ele disse a si mesmo: ―Levantar-me-ei e
irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de
ti416‖. Sabia que tinha transgredido o mandamento de Deus, e que,
agindo assim, ofendera e magoara seu pai. Queria se corrigir.
Procuraria o pai e lhe diria: ―Já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como um dos teus trabalhadores‖.
Tudo que ousava pedir era um emprego temporário417. Ansiava
pela reconciliação, sem esperar reintegração. Levantou-se e foi para
casa.

O Pai

Jesus apresentou a parábola, dizendo: ―Certo homem tinha dois


filhos‖. Mas, à medida que continuava, mostrou que esse homem tinha
um relacionamento extraordinário com os filhos: ele os amava de modo
sábio, com ternura e não possessivamente. Podemos imaginar um pai
ainda suficientemente moço para se opor rigorosamente ao pedido de
divisão dos bens, feito pelo filho mais novo. O pai poderia ter recusado o
pedido porque o filho era muito jovem para receber sua parte dos bens.
Nenhum argumento, no entanto, foi usado. O pai consentiu que o filho
se tornasse independente e, embora ferisse seu coração vê-lo partir,
sabiamente guardou para si o que sentia418.

Podemos presumir que o pai tenha tentado descobrir onde vivia o


filho e o que fazia longe de casa. As notícias sobre a fome, com certeza,
chegaram até ele. Deve ter sabido das condições miseráveis em que o
filho vivia, e que determinariam a sua volta, porque constantemente
olhava ao longo do caminho por onde esperava que ele regressasse.

Podemos perguntar por que os parentes próximos do rapaz não o


procuraram sabendo de sua situação tão degradante. Havia fartura na
fazenda. Teria sido carinhoso da parte deles enviar algo ao filho para
aliviar suas necessidades. O pai poderia ter enviado ao filho uma
mensagem, convidando-o a voltar. Tudo isso teria sido prova de amor.

Mas, aqui, nos deparamos com um contraste. O pai não procurou


seu filho para trazê-lo de volta a casa. Nas outras duas parábolas, o
pastor vasculhou os montes para encontrar a ovelha perdida, e a

415 Derrett, Law in the New Testament, p. 111.


416 A palavra céu é um circunlóquio judaico para ―Deus‖. Se, 11:217.
417 Numa fazenda judaica havia três tipos de servos: primeiro, o escravo, que pertencia

à família de seu senhor e que gozava de inúmeros privilégios; depois a classe inferior
de criados e criadas (veja-se Lc 12.45); e, terceiro, os trabalhadores temporários.
Consulte-se Oesterley, Parables, pp. 185,86.
418 Michaelis, Gleichnisse, p. 138, pensa que o pai estava orgulhoso porque o filho

partira para terras estrangeiras.


mulher varreu o chão à procura da moeda. Mas o pai ficou em casa. Há
uma diferença entre uma ovelha e uma moeda, de um lado, e um filho,
de outro. O pastor só pode encontrar sua ovelha se sair à procura dela
pelos montes. A única maneira de a mulher recuperar sua moeda é
varrendo a casa. O pai, no entanto, tinha mais que uma opção. A
primeira, seria visitá-lo e chamá-lo de volta à casa. A segunda era
esperar paciente e prudentemente que o filho caísse em si, confessasse
seus pecados e buscasse a reconciliação. Assim, estaria restabelecida a
relação pai-filho. Então o que estava perdido seria encontrado419.

O pai tinha o controle da situação, não o filho. O pai olhava na


direção de onde esperava que seu filho viesse. Quando o viu, seu
coração se compadeceu dele. Deixando de lado a dignidade e o decoro,
correu ao encontro do filho, descalço e maltrapilho, e, abraçando-o, o
beijou420. O pai aceitou o filho como membro da família antes que ele
pudesse atirar-se a seus pés para beijá-los, como um escravo; ou,
antes, que se ajoelhasse e lhe beijasse as mãos. Abraçando-o e
beijando-o, deixou que soubesse que era considerado filho. Assim, não
foi necessário que o jovem fizesse o discurso que já havia preparado
para dizer que gostaria de ser empregado como trabalhador na fazenda
de seu pai421. O pai o impediu, beijando-o e tratando-o como filho. O
filho confessou seu pecado: ―Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já
não sou digno de ser chamado teu filho‖. Ele falou a verdade. Já não era
mais digno por causa de seu passado. Tinha perdido o direito legal à
sua filiação. Mas, o pai o aceitou como filho, e isso pôs fim a qualquer
idéia de trabalhar na fazenda como contratado. Assim determinou o
fazendeiro.

O longo período de espera chegara ao fim. O pai tinha seu filho de


volta. Portanto, era hora de comemorar. O pai ordenou aos servos que
lhe trouxessem as melhores roupas. Puseram-lhe um anel no dedo e
sandálias nos pés422. O filho foi tratado com muita honra pelo pai, pois
as melhores vestes estavam sempre guardadas para hóspedes muito
especiais. O anel era símbolo de autoridade; e, assim, todos podiam ver
que ele estava reintegrado423. Naturalmente, as sandálias lhe foram
dadas para indicar que era um homem livre. Os escravos e os pobres
andavam descalços. ―Trazei também e matai o novilho cevado‖, disse o
pai, ―Comamos e regozijemo-nos‖. Como o pastor tinha chamado os
amigos e vizinhos para festejarem com ele por ter achado a ovelha
perdida, e como a mulher celebrou a recuperação da moeda com amigas

419 Schippers, Gelijkenissen, p. 170; H. Thielicke, The Waiting Father (New York:
Harper, 1959), p. 28; Mánek, Frucht, p. 101.
420 No relato sobre Davi saudando Absalão no palácio real, o beijo paternal significava

perdão. 2 Sm 14.33. Jeremias, Parables, p. 130: K. H. Rengstorf, Die Re-Investur des


Verlorenen Sohnes in der Gleichniseriàhlung Jesu Luk. 15.11-32 (Kóln, Opladen:
Westdeutscher Verlag, 1967), p. 19.
421 Metzger, Textual Commentary, p. 164.
422 Compare-se com Gn 41.42, onde José recebe um anel de sinete, roupas de linho

fino, e um colar de ouro, de Faraó. Veja-se, também, 1 Macabeus 6.15.


423 Rengstorf, Re-Investitur, p. 29.
e vizinhas, também o pai ordenou que houvesse músicas e danças.
Todos os membros da família e os servos foram chamados para a festa.
Era hora de celebrar e ser feliz.

―Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi
achado‖. O pai se referia ao fato de que o filho, deixando de ter parte na
herança da família, e dando por acabada sua obrigação moral e material
para com o pai, tinha-se desligado, voluntariamente, de casa. Na
prática, o filho estava morto424. Na verdade ele não tinha mais nada a
reclamar sobre a propriedade, quando o pai morresse. ―Este meu filho
estava morto e reviveu‖, disse o pai.

A parábola não diz como foram resolvidos os aspectos legais dos


direitos envolvidos com relação à herança425. Esse não é o objetivo. O
ponto importante é a volta do jovem e o fato de ter sido aceito
plenamente como filho.

O Filho Mais Velho

A parábola do filho pródigo poderia se encerrar com as palavras:


―E começaram a regozijar-se426‖. Mas, então, a sentença introdutória:
―Certo homem tinha dois filhos‖ seria de pouca ou nenhuma
significância. A história estaria incompleta sem outras referências ao
filho mais velho.

O pai não era pai apenas do filho mais novo; era pai, também, do
filho mais velho. Seu primogênito tinha sido um filho leal, com interesse
pessoal na fazenda. Naturalmente, o filho sabia que era o herdeiro. Ele
estava fora, no campo, enquanto todos celebravam a volta de seu irmão.
Ele servia bem a seu pai, e seu pai aprovava o zelo do filho. Mas, como
pai, conhecia também as manifestações de inveja, e sabia que a atitude
do filho mais velho, em relação ao caçula, estava influenciada por ela.
Não nos é contado por que razão o irmão mais velho foi o último, a
saber, da volta do caçula427. Pode ter sido porque naquele dia ele tinha
ido inspecionar a parte distante da casa, e, por isso, tenha voltado mais
tarde, naquela noite. Ao chegar, ouviu a música e as danças e

424 Rengstorf, Re-Investitur, p. 22, se refere ao costume legal, chamado Ketsalsah,


que é o desligamento de um membro da comunidade judaica, por causa de conflito de
interesse. Derreti, Law in the New Testament, p. 116, faz notar que esse costume
legal não se aplica às circunstâncias do filho pródigo, porque ele não foi penalizado
nem banido da família.
425 Consulte-se L. Schottroff, ―Das Gleichnis vom Verlorenen Sohn‖, ZTK 68 (1971);

39-41.
426 Entre Outros, J. T. Sanders, em ―Tradition and Redaction in Lk XVG: 11-32, NTS

15 (1968-69): 433-38, argumenta que há duas parábolas separadas. Veja-se, também,


1. J. O‘Rourke, ―Some Notes on Luke XV, 11-32, NTS 18 (1971-72): 431-33, e
Jeremias, Tradition und Redaktion in Lukas 15”, NW 62 (1971): 172-89, que refuta o
argumento.
427 Rengstorf, Re-Invetitur, p. 54, faz perguntas sobre a expressão ―no campo‖. Seria

indício de que o filho não convivia bem com o pai e permanecesse longe de casa?
perguntou a um dos servos o ―que era aquilo‖. Em segundos ficou
sabendo que o irmão mais moço tinha voltado e que o pai mandara
matar o novilho cevado, porque recebera de volta o filho, são e salvo.

O filho mais velho simplesmente não podia entender por que seu
pai estava tão feliz com a volta daquele filho inútil428. Ninguém, nunca,
antes, expressara alegria e felicidade por causa do primogênito;
ninguém, nunca, fizera uma festa para aquele que ficara em casa e que
servia ao pai. O filho mais velho se recusou a entrar em casa. Não tinha
nada para tratar com seu sermão irresponsável, que, ao voltar para
casa, recebia a atenção de todos.

O pai tinha tido que sair de casa para ir ao encontro de um filho;


saiu de casa, outra vez, para encontrar o outro. Ele dera as boas-vindas
ao primeiro; saiu e fez o mesmo com o segundo. Tratou os dois da
mesma maneira. No entanto, o irmão mais velho não queria tratamento
igual. Ele censurou o pai, embora o pai continuasse a argumentar com
ele. Ao se justificar, o filho via a si mesmo como um dos servos, não
como filho. ―Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma
ordem tua‖, disse ao pai. Ele não entendia o que significava ser filho, e,
assim, não podia ver o que estava implícito na paternidade429. Acusou o
pai de nunca lhe ter dado sequer um cabrito para festejar com os
amigos. Para seu irmão perdulário, ao contrário, mandara matar o
novilho cevado. Suas palavras eram cortantes e amargas; recusava-se a
tratar o pai como ―pai‖ e a se referir ao irmão como ―irmão‖.
Insolentemente, disse: ―Vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os
teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho
cevado‖. Com estas palavras magoou o pai tanto quanto o magoara o
filho pródigo, com sua vida de dissipações. O filho mais velho se
afastava do pai, tanto quanto o fizera o irmão mais moço. Aquele voltara
para casa; o pai, agora, procurava argumentar com o outro para que
fizesse o mesmo.

Tanto o mais velho quanto o mais novo eram seus filhos, e o pai
se dirigiu ao mais velho com a mesma ternura com que se dirigira ao
caçula. Disse o pai: ―Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que e
meu é teu430‖. O pai ensinou-lhe o que significa ser filho: estar sempre
na presença do pai, como herdeiro. Mais ainda mostrou-lhe as relações
familiares de pai para filho e de irmão para irmão. Ele estava dizendo:
Porque és meu filho, eu sou teu pai; e porque o pródigo é meu filho, ele é
teu irmão431. Como uma família, disse o pai, ―era preciso que nos
regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu irmão estava morto

428 Thielicke, The Waiting Father, p. 32.


429 Morris, Luke, p. 244.
430 A palavra grega teknon (= criança) é muito mais afetuosa que a palavra huios (=

filho). A Nova Bíblia Inglesa emprega o sentido de teknon na tradução, ―my boy‖ (
=meu menino).
431 Schippers, Gelijkenissen, p. 178.
e reviveu, estava perdido e foi achado432‖. A questão do relacionamento
entre os filhos estava proposta. O filho mais velho, que fielmente tinha
servido o pai, na fazenda da família, aceitaria ficar ao lado do pai
quando este celebrava a volta do mais jovem?

A parábola termina com um refrão: ―Porque esse teu irmão estava


morto e reviveu, estava perdido e foi achado‖. Estas palavras repetem as
proferidas na conclusão da parte que focaliza o filho mais novo. As
palavras ligam, inseparavelmente, os irmãos um ao outro e ao pai.

Jesus não disse o que aconteceu depois. Parou ali,


propositalmente. Se tivesse mostrado a recusa do filho mais velho de
entrar em casa, teria fechado a porta. Deixando inacabada a história,
indicava que a porta permanecia aberta. O pai convidou o filho a
participar das festas; o filho tinha que se decidir. Cabia a ele a decisão.

Aplicação

A intenção de Jesus era descrever a atitude dos fariseus e mestres


da Lei em relação aos coletores de impostos e às prostitutas. Ele tinha
sido acusado de receber aqueles pecadores e de comer com eles.
Tinham-lhe dado a entender que, associando-se com os proscritos, ele
mesmo seria banido. Jesus contou essa parábola na qual o pai manda
matar o novilho cevado e diz: ―Comamos e regozijemo-nos‖. Queria
mostrar aos escribas e fariseus por que comia com publicanos e
meretrizes.

Na pessoa do filho pródigo, os ouvintes de Jesus viram o retrato


dos marginalizados daqueles dias. Os coletores de impostos e os
―pecadores‖ eram judeus de nacionalidade, porém, por causa de sua
ocupação, tinham sido banidos da comunidade religiosa. Estavam
espiritualmente mortos, aos olhos dos judeus que permaneciam na lei.
O filho pródigo trabalhara para um empregador gentio; assim como o
coletor de impostos. O pródigo, no entanto, caiu em si e voltou para
casa de seu pai. Poderiam os publicanos fazer o mesmo e voltar? A
pergunta que Jesus propunha aos ouvintes era: ―O que acontece
quando um publicano ou um ‗pecador‘ se arrepende?‖.

Jesus retratou o amor do pai pelo filho para deixar bastante claro
que o amor de Deus é infinito. Seus ouvintes reconheceram Deus, na
pessoa do pai. Sabiam que o pecado é sempre primeiro contra Deus e
depois contra o semelhante. Como Deus perdoa um pecador e depois o
reintegra como membro da sua família? A atitude do pai, na parábola,
representa o perdão amoroso de Deus oferecido ao pecador que se
arrepende. Como o pai disse aos servos: ―Comamos e regozijemo-nos‖,

432Celebrar a volta do filho pródigo ―era uma obrigação que o filho mais velho não quis
reconhecer.‖ Plummer, St. Luke, p. 379. Jeremias, Parables, p. 131, percebe um tom
de reprovação na voz do pai, quando diz a seu filho: ―Devias te alegrar e festejar, pois é
o teu irmão que voltou para casa‖.
assim Deus se alegra com seus anjos por um pecador que se arrepende.
Como nas parábolas da ovelha e da dracma perdidas, todos os amigos e
vizinhos se reúnem para festejar, também na parábola do filho pródigo,
o filho mais velho é convidado a festejar e a alegrar-se.

Os fariseus e doutores da Lei não podiam deixar de entender a


pretendida identificação. Jesus tinha apontado seu dedo para eles,
quando contara a parte sobre o irmão mais velho. Jesus, entretanto,
não os acusou, de maneira alguma. Pela parábola, mostrou amor e zelo
genuínos, não apenas pelo pecador arrependido, mas, também, pelo
filho obediente. Pediu aos líderes religiosos daqueles dias para
celebrarem e alegrarem-se quando alguém social e moralmente
marginalizado se arrependesse. Pediu-lhes que aceitassem tais pessoas
com amor fraternal e que os reintegrassem na comunidade religiosa.
Jesus fez a proposta. Os fariseus e os doutores da Lei teriam que tomar
a decisão.

A parábola do filho pródigo proclama as boas-novas do evangelho.


Todos aqueles que voltaram suas costas para Deus, que consideram a
igreja fora de moda e aceitam a permissiva sociedade atual, encontrarão
um Pai celestial amoroso, esperando por eles, no momento em que
regressarem. Há uma volta ao lar para eles, porque Deus é o lar433.
Embora o arrependimento seja um mistério, o cristão que tem amado e
obedecido a Deus deve regozijar-se e alegrar-se, quando um pecador se
arrepende. Para ele são dirigidas as palavras: ―Meu filho, tu sempre
estás comigo; tudo o que é meu é teu‖. Esta é a mensagem para o justo
que tem enfrentado batalhas pelo e com o Senhor, que tem suportado o
calor do dia e tem guardado a fé.

Do ponto de vista da economia, modernos filhos pródigos têm


dissipado milhões. Os pródigos de nossos dias esbanjam tempo e
talentos como se não tivessem valor. Não é de admirar que os justos
digam: ―Imaginem se esses recursos fossem usados para difundir o
evangelho e construir o reino de Deus!‖ Ninguém pode discutir isso.
Deus não está interessado em tempo, energia e talentos gastos —
embora não perdoe o mau uso e o desperdício. Deus está interessado na
salvação dos seres humanos. Quando um pródigo moderno cai em si e
volta para Deus, há alegria nos céus. Como o céu se alegra, assim a
igreja deve celebrar e regozijar-se quando alguém espiritualmente morto
revive, e quando o que estava perdido é achado. Proclamar o evangelho
da salvação e ver pecadores serem salvos pelo conhecimento de Cristo
deve ser uma infindável celebração de vida para todos os que crêem.

É esta uma história na qual apenas a graça de Deus é revelada? A


parábola é uma história do Cristianismo sem Cristo434? A resposta a
estas perguntas é que a parábola deve ser vista no contexto das

433 Thielicke, The Waiting Father, p. 29.


434 Para estudo destas questões, veja, Jülicher, Gleichnisreden, 2:364-65.
Escrituras. Do princípio ao fim, a Bíblia, desde a desobediência de Adão
e Eva até à descrição das multidões cercando o trono do Cordeiro, é um
comentário fluente a respeito desta parábola. É Jesus que fala sobre o
amor do Pai, que abre o caminho para a casa do Pai, e que chama o
pecador de volta à casa.
35. O Administrador Infiel

Lucas 16.1-9 ―Disse Jesus também aos discípulos: Havia um homem


rico que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem
estava a defraudar os seus bens. Então, mandando-o chamar, lhe disse:
Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração,
porque já não podes mais continuar nela. Disse o administrador consigo
mesmo: Que farei, pois o meu senhor me tira a administração?
Trabalhar na terra não posso; também de mendigar tenho vergonha. Eu
sei o que farei, para que, quando for demitido da administração, me
recebam em suas casas. Tendo chamado cada um dos devedores do seu
senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao meu patrão? Respondeu ele:
Cem cados de azeite. Então, disse: Toma a tua conta, assenta-te
depressa e escreve cinqüenta. Depois, perguntou a outro: Tu, quanto
deves? Respondeu ele: Cem coros de trigo. Disse-lhe: Toma a tua conta
e escreve oitenta. E elogiou o senhor o administrador infiel porque se
houvera atiladamente, porque os filhos do mundo são mais hábeis na
sua própria geração do que os filhos da luz. E eu vos recomendo: das
riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando aquelas vos
faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos‖.

De todas as parábolas ensinadas por Jesus, a parábola do


administrador infiel é a mais enigmática. Por esta razão, numerosas
interpretações têm sido dadas435. Cada uma delas tentando explicar o
ensinamento da parábola à luz de suas implicações éticas. A dificuldade
que se apresenta ao leitor deve-se ao fato de a parábola estar colocada
em um contexto judaico, e por isso refletir as práticas judaicas. Essa
composição, com todos os seus fatores deve ser reconstituída para que
se obtenha um quadro claro e a compreensão do ensinamento da
parábola436.

435 Em ordem alfabética, a literatura representativa recente é a seguinte: J. D. M.


Derrett, ―Fresh Light on St. Luke XVI:1. Tbe Parable of lhe Unjust Steward‖, NTS 7
(1960-61): 198-219, publicado em Law inibe New Teslament (London: Longman and
Todd, 1970), pp. 48-77; J. D. M. Derrett, “Take thy Bond... and write Fifty (Luke
XVI.6) The Nature of the Bond‖, JTS 23 (1972): 438- 40, pupblicado em Studies in the
New Testamenl (Leiden: Brill, 1977), 1:1-3. J. A. Fitzmyer, ―The Stoiyof the Dishonest
Manager (Luke 16.1.13)‖, TS 25 (1964):23-42, publicado em Essays on lhe Semitic
Background of the New Teslament (L.ondon: Society of Biblical Literature, 1971), pp.
161-84. D. R. Fletcher, ‗The Riddle of lhe Unjust Stewart: Is lrony the Key?‖ JBL 82
(1963): 15-30. E. Kamlah, ―Die Parabel vom ungerechten Verwalter (Luke 16:lff) in
Rahmen der Knechtsgleichnisse‘, Abraham Unser Vater Festschrift honoring O.
Michel (Leiden: Brill, 1963), pp. 276-94. F. J. Moore, ―The Parable of lhe Unjust
Steward‖, ATR 47(1965): 103-5. R. G. Lunt, ―Expounding the Parabies, III. The parable
of the Unjust Steward (Luke 16.1-15)‖, ExpT 77 (1966): 132-36. L. J. Topei, ―On the
Injustice of lhe Unjust Steward: Luke 16:1-13,‖ CBQ (1975): 216-27, F. E. Wiiliams,
―Is Almsgiving the Point of the ‗Unjust Steward‘?‖ JBL 83 (1964):293-97.
436 Oesterley Parables, pp. 192-203; DerretI, Law in lhe New Testament, p. 51.

Numerosas peculiaridades e expressões judaicas são evidentes na parábola.


Permanece a questão se ouvintes não-judeus entenderam a parábola nos dias de
Lucas. A tradição oral paralela à do Evangelho pode ter providenciado a chave para
um entendimento apropriado da parábola. Veja-se Marshall, Luke, p. 615.
Composição

Repetidamente, Deus dissera aos judeus que não cobrassem de


seus concidadãos juros sobre dinheiro, comida, ou qualquer outra
coisa. ―Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo,
não te haverás com ele como credor que impõe juros‖ (Ex 22.25; veja-se,
também, Lv 25.36; Dt 15.8; 23.19). Deus ensinou a seu povo a
responsabilidade social e proibiu a usura, deixando implícito que o
usurário devia ser considerado um ladrão.

Sendo a natureza humana como é, práticas se desenvolveram no


decorrer do tempo objetivando burlar a lei de Deus. Os ricos, por
exemplo, escolhia.m uma pessoa de confiança como administrador. Ele
recebia plenos poderes para agir em nome de seu senhor. Respondia
por seu senhor, mas se usasse de usura, não seria o senhor, e, sim, o
administrador que seria levado ao tribunal. O rico sempre obtinha lucro
das transações de usura negociadas por seu administrador. Mas, se tal
transação fosse contestada no tribunal, o rico estaria livre e a
responsabilidade cairia sobre seu administrador.

O administrador, no entanto, tinha meios de se proteger, aceitos


até mesmo pelos fariseus e doutores da lei, e contra os quais os
magistrados nada podiam fazer a não ser reconhecê-los como mal
necessário. O administrador e o tomador do empréstimo redigiam um
acordo no qual o débito e os juros eram declarados como um todo. De
acordo com os líderes religiosos, a seguinte nota era considerada
exemplo de usura, e quem fosse responsável por ela poderia ser levado
aos tribunais: ―Pagarei a Rubens 10 kor de trigo, no primeiro dia do
Nisã e se não o fizer, pagarei 4 kor de trigo a mais por ano437‖. Mas, era
considerada legal a seguinte: ―Devo a Rubens 14 kor de trigo‖. O que a
nota não explicava era que o tomador do empréstimo tinha recebido
apenas 10 kor e tinha que pagar a diferença em juros438. Por exemplo,
em 33-34 A.D., Herodes Agripa 1 estava para falir e instruiu seu
escravo libertado, Márcio, para tomar empréstimo de alguém. Márcio foi
procurar um banqueiro que o forçou a assinar um título de 20.000
dracmas áticas. Na realidade, entretanto, ele recebeu 2.500 dracmas a
menos439. Os juros estavam somados ao capital, e o tomador do
empréstimo teria que pagar o total, mesmo que tivesse recebido uma
soma consideravelmente menor440. O título, em si, não explicaria os
detalhes.

A taxa de juros para empréstimo de trigo chegava a vinte por


cento, com um adicional de cinco por cento de seguro contra a
flutuação dos preços e depreciação do valor do produto. Se acontecesse
de a mercadoria ser óleo de oliva, a taxa de juros era de oitenta por

437 Derrett Law in lhe New Teslament, p. 65.


438 Fitzmyer, Essays, p. 176.
439 Josephus, Antiquities, 18:157.
440 Derrett, Studies, 1:1-3.
cento acrescidos de mais vinte por cento da taxa de seguro, totalizando
cem por cento. O risco de tomar óleo de oliva como empréstimo era
muito grande. As colheitas de azeitonas são imprevisíveis, e a qualidade
do azeite varia de ano para ano, por causa do tamanho e da qualidade
das azeitonas. Óleos mais baratos, extraídos de outras fontes, podiam
ser adicionados ao óleo de oliva, e os métodos usados para determinar
sua pureza, eram ineficientes441.

O administrador tinha uma posição de confiança. Ele controlava


os bens de seu senhor e era considerado membro de sua casa.
Representava seu senhor e tinha plena autoridade para tratar com os
devedores da maneira que julgasse mais acertada. Os devedores,
portanto, tinham que aceitar as condições impostas pelo administrador.
Estas eram apenas de sua responsabilidade.

Se o administrador se mostrasse incompetente, ineficiente ou


indigno de confiança, o senhor o chamaria para prestar contas, e
depois, sumariamente, o despediria. O administrador não tinha como
procurar ajuda externa. Teria que deixar o emprego estaria sem
recursos próprios, e não seria bem recebido pelos companheiros442.

A História

Jesus contou uma história que poderia muito bem acontecer nos
dias de hoje. Fala de um homem rico que escolheu um administrador
para os seus negócios. Ele tinha inteira confiança no escolhido, mas
quando soube que ele estava dissipando seus bens, chamou-o e disse-
lhe para apresentar seus livros e prestar contas de sua administração,
pois estava despedido. Poderia procurar outro emprego.

O administrador sabia que as acusações contra ele eram


verdadeiras, que tinha abusado da confiança de seu senhor, e que não
poderia pedir misericórdia443. Sabia que um sucessor tomaria seu lugar.
O que o futuro reservava para aquele administrador? Tinha que
depender de sua própria engenhosidade. Não era fisicamente capacitado
para o trabalho braçal, e mendigar estava fora de questão444. Ele
arrazoava consigo mesmo, considerando possibilidades e alternativas.
De repente, exclamou: ―Eu sei o que farei!‖ Controlaria os negócios de
modo que os devedores de seu senhor ficassem lhe devendo obrigações,
para que, depois de sua demissão, o recebessem em suas casas.

441 Derrett, Law, p. 71.


442 Fitzmyer, em Essays, p. 177, é de opinião que o administrador recebia comissões
nas transações. Derrett, Law, p.74, mostra que o dinheiro envolvido em transações de
empréstimo pertencia ao senhor. Além disso, o administrador da parábola de Jesus
não tinha bens próprios e, por isso, fazia reservas para o futuro.
443 Ao contrário, o ministro das finanças, na parábola do credor incompassivo (Mt

18.21-35), ajoelhou-se e pediu a seu senhor que fosse paciente.


444 Eclesiástico 40.28 adverte: ―Filho, não leves vida de mendigo; é melhor morrer do

que mendigar‖ (NEB).


Chamou os devedores, um a um. Dois exemplos são dados. O
primeiro veio e o administrador lhe perguntou quanto devia ao senhor.
Ele respondeu: ―Cem cados de azeite‖. Era uma quantidade considerável
de azeite, perto de 868 galões, ou 3.946 litros445. Uma oliveira produz
cerca de 120 quilos de azeitonas, ou 25 litros de azeite446. O total de
azeite devido viria de uma plantação com 150 árvores ou mais. O
administrador disse ao devedor para apanhar a conta, que registrava o
valor devido e que o reduzisse à metade.

Ao devedor seguinte, fez a mesma pergunta: ―Tu, quanto deves?‖


E ele respondeu: ―Cem coros de trigos‖. O equivalente a cem alqueires,
que correspondem ao que cem acres produziam, naqueles dias447. O
administrador disse-lhe para apanhar sua conta e reduzir o total em
vinte medidas.

Nos dois exemplos, largas somas de dinheiro estavam envolvidas.


Assim mesmo, com a permissão do administrador, que já tinha sido
comunicado de sua demissão, os devedores mudaram os números das
contas. Podemos presumir que outros devedores fizeram o mesmo.

Os devedores alteraram os totais porque sabiam que a taxa de


juros para o azeite emprestado era de cem por cento e para o trigo
emprestado vinte e cinco por cento. Satisfeitos, mudaram o total para a
soma que, realmente, deviam ao Senhor. Não falsificaram os números,
antes, de próprio punho, indicaram quanto tinham que pagar.
Resumindo, porque os juros da usura tinham sido retirados, prevaleceu
a honestidade.

Quando o administrador apresentou os livros a seu senhor, que a


seguir tomou conhecimento das alterações, ele foi elogiado por ter agido
com astúcia448. O administrador, não o senhor, manteve a situação sob
controle. Palavras de louvor foram proferidas porque o administrador
tinha assegurado para si mesmo a hospitalidade e a generosidade dos
devedores, tinha preparado o caminho para seu sucessor, afastando
qualquer má vontade da parte dos devedores, e tinha dado a seu senhor
a oportunidade de elogiá-lo por ter retirado as taxas de usura e ter-se
mostrado cidadão religioso e cumpridor da lei. O administrador deve ter
deixado seu senhor em posição mais favorável, uma vez que este lhe
dirigiu palavras de louvor449.

―E elogiou o senhor o administrador infiel porque se houvera

445 SB, 11:218, faz esse cálculo baseando-se em Josephus, Antiquities 8.57. Jeremias,
Parables, p. 181, arredonda para 800 galões, quantia adotada pelos tradutores do MV.
446 Dalman, Arbeit und Sitte, IV: 192.
447 Dalman, Arbeit und Sitte, 111:155,159. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p.

181; SB, 11:218.


448 I. H. Marshall, ―Luke XVI.8 — Who Commented the Unjust Steward?‖ JTS 19

(1968): 617-19.
449 Derrett, Law, p. 73.
atiladamente‖. A palavra infiel não pode ser aplicada à atitude do
administrador em relação aos devedores, porque, então, a sentença
―porque se houvera atiladamente‖ seria contraditória450. Ela se refere à
vida anterior do administrador quando ele esbanjava os bens de seu
senhor. A caracterização é a mesma daquela usada para o juiz que, com
o correr do tempo, tinha estabelecido a reputação de ser injusto.
Quando julgou a causa da viúva, com certeza não lhe fez injustiça451.
Do mesmo modo, o administrador, por sua prévia carreira de negócios
escusos, é chamado de desonesto, mesmo que as instruções que mais
tarde deu aos devedores fossem honradas e louváveis, aos olhos do
público. O senhor não podia ir aos devedores e aplicar as taxas de
usura que anteriormente o administrador tinha combinado, pois, então
agiria como um agiota e poderia ser levado aos tribunais. O senhor
elogiou o servo por sua esperteza.

Aplicação

O que ensina a parábola, precisamente? A história do


administrador desonesto, posta à luz das circunstâncias judaicas
originais, ainda transmite uma mensagem importante para os nossos
dias. Qual é, então, a mensagem452? Jesus a resumiu, afirmando:
―Porque os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do
que os filhos da luz. E eu vos recomendo: Das riquezas de origem iníqua
fazei amigos; para que, quando estas vos faltarem, esses amigos vos
recebam nos tabernáculos eternos453‖.

O ponto que a parábola focaliza é o fato de que o administrador,


que tinha fama de desonesto, compreendendo que seu futuro estava em
perigo, procurou aprovação, sendo honesto e generoso com os
devedores de seu senhor. Não procurou riquezas do mundo, mas
distribuiu-as àqueles que deviam a seu senhor, embora o dinheiro não
fosse seu, e, num certo sentido, nem mesmo de seu patrão. Do mesmo
modo, os filhos da luz não devem colocar seus corações em bens
terrenos. Devem ser generosos e repartir parte do que possuem. Podem
agir assim porque essas posses não lhes pertencem, mas, sim, a Deus.
Quando doam dinheiro aos pobres, estão redistribuindo a riqueza que

450 H. Drexler, ―Zu Lukas 16.1-7‖, ZNW 58(1967): 286-288, sustenta que porque o
senhor fora injusto com o administrador, pedindo-lhe contas e o despedindo, este se
vingou chamando os devedores.
451 O artigo definido e o substantivo grego (tes adikias), traduzidos adjetivalmente em

muitas versões, são os mesmos em Lc 16.8 e Lc 18.6.


452 H. Preisker, ―Lukas 16.1-7‖, TLZ 74 (1949):85-82. contrasta a parábola do

administrador desonesto com a do filho pródigo. O administrador continuou


escravizado ao poder do dinheiro, enquanto o filho pródigo gastou seu dinheiro e se
arrependeu.
453 Traduções mais antigas, seguindo literalmente o texto grego, obscurecem, de algum

modo, o significado da passagem. A NEB traduz Lucas 16.9 quase do mesmo modo
que a NIV: ―Eu vos digo: Usai vossas riquezas materiais para fazer amigos para vós
mesmos, de modo que, quando o dinheiro for coisa do passado, possais ser recebidos
no lar eterno‖.
lhes for confiada por Deus454. Jesus repetiu essa verdade quando disse:
―Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra... mas ajuntai
para vós outros tesouros no céu‖ (Mt 6.19,20). O que Jesus ensinou tem
raízes, de muitas formas e maneiras, nos ensinamentos do Velho
Testamento. Davi, na presença do povo de Deus, orou: ―Porque quem
sou eu, e quem é o meu povo para que pudéssemos dar
voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos
to damos‖ (1 Cr 29.14). Por intermédio da parábola do administrador
infiel, Jesus aconselha os seus seguidores a dar de seu dinheiro tanto
quanto possível para que possam receber aprovação de Deus e serem
bem-vindos à sua casa, para ali viverem eternamente455.

Aqui encontramos, implícito, um ponto de contraste.


Indiretamente, Jesus diz: o administrador infiel, reduzindo o total das
dívidas, olhou para o futuro; muito mais deve o povo de Deus repartir
seus bens e olhar adiante, para sua casa eterna. O povo de Deus deve
usar suas posses materiais para fazer um investimento espiritual,
assim como o filho do mundo usa seu dinheiro para obter lucros
materiais. O tempo vem quando o dinheiro será coisa do passado. Ao vir
a morte, o espírito do homem volta para Deus, que o deu (Ec 12.7).
Deus recebe com alegria todos aqueles que não têm colocado seu
coração em tesouros da terra, mas têm ajuntado tesouros nos céus456.

Os filhos do mundo sabem como usar suas posses terrenas e


como aplicá-las de modo materialístico. De repente, no entanto, podem
abandonar padrões desonestos sabendo que, em longo prazo, a
honestidade compensa. Por outro lado, cristãos que têm aprendido o
padrão da lei de Deus, têm, muitas vezes, a tendência de relaxar e
modificar os princípios cristãos. Querem o melhor dos dois mundos:
querem ter a fé cristã no conforto de uma sociedade abastada; querem
ser amados por Deus e, ao mesmo tempo, serem elogiados pelos
homens. Jesus disse: ―Os filhos do mundo são mais hábeis na sua
própria geração do que os filhos da luz‖. Se aqueles que não professam
servir a Deus compreendem que seus padrões são fundamentais, não
deveriam os que professam ser seu povo manter a lei de Deus, praticar
o que pregam e mostrar por palavras e atos que o dinheiro, afinal, falha,
mas as riquezas celestiais são eternas? Em sua epístola pastoral, Tiago
adverte os cristãos que fazem opção por uma vida dupla. ―Infiéis, não
compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele,
pois, que quiser ser amigo do mundo, constitui-se em inimigo de Deus‖
(Tg 4.4).

454 Derrett, Law, p. 74.


455 SB, 11:221. Consulte-se, também, Willians, ‗Almsgiving‖, p. 294; Lunt, ‗Parable‖, p.
134.
456 Com base nos estudos dos textos de Cunrã, a expressão ―riquezas materiais‖, o

mamom da injustiça, deve ser contrastada com as riquezas celestiais. Marshall, Luke,
p. 621.
36. O Rico e Lázaro

Lucas 16.19-31 ―Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura
e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente.
Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que
jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam
da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu
morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão;
morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em
tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu
seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E
manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a
língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão:
Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro
igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em
tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e
vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não
podem, nem os de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te
imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco
irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para
este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os
Profetas; ouçam-nos. Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém
dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe
respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se
deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos‖.

A parábola do administrador infiel e a do rico e Lázaro têm


algumas coisas em comum. Primeiro, um ponto óbvio: as frases
introdutórias das duas parábolas são idênticas: ―Havia certo homem
rico.‖ Segundo, o ensino da parábola do administrador infiel é a
advertência para que não ajuntemos tesouros na terra, e, sim, nos céus.
Este é, também, um dos temas da parábola do rico e Lázaro. E, terceiro,
nas duas parábolas encontramos o chamado para o arrependimento,
antes que seja tarde demais. Elas desafiam o ouvinte a voltar ao
ensinamento da lei de Deus a respeito do uso das riquezas, ao exercício
da honestidade e do respeito, e à prática da misericórdia e do amor.

A parábola do rico e Lázaro pode ser vista como um drama em dois


atos, seguidos de urna conclusão. A primeira cena apresenta a vida e a
morte na terra; a segunda retrata o céu e o inferno. A conclusão é dada
na forma de uma aplicação implícita.

Aqui e Agora

Jesus contou a história sugestiva de um rico e um pobre457. O

457Antes dos dias de Jesus, uma história popular egípcia descrevia um rico vestido de
fino linho e um pobre numa esteira de palha, cujos papéis se invertiam após a morte.
Veja F. L. Griffith, Stories of the High Priests of Memphis (Oxford: n.p. 1900), e H.
rico se vestia de púrpura, ornamento de reis458, suas roupas eram de
linho finíssimo, vindo do Egito. Dia após dia, ele gastava seu tempo em
banquetes porque não tinham nada para fazer. Passava sua vida em
festas. Apesar de toda a sua riqueza, o nome do homem não é
conhecido459. Tudo que sabemos é que tinha cinco irmãos que, como ele
mesmo, mostravam habitual menosprezo pela Palavra de Deus revelada.

A segunda pessoa apresentada na história se achava no extremo


oposto do espectro econômico. Vivia em pobreza abjeta. Não podia nem
mesmo andar. Seus amigos tinham que carregá-lo e apoiá-lo junto ao
portão da mansão do rico. Por causa da falta de cuidados médicos e de
higiene pessoal, ele sofria de uma doença da pele e tinha o corpo
coberto de feridas. Seu corpo tinha definhado, a fome era sua
companheira constante e seu olhar ansioso se voltava para as sobras de
comida que tinham sido varridas do chão da sala de jantar460 e
reunidas para serem dadas aos cães e aos mendigos que esperavam lá
fora. Esse miserável ser humano só tinha a companhia dos cães que
vinham lamber-lhe as chagas. Embora tenha passado pela vida como se
fosse ninguém, seu nome ficou registrado: Lázaro, forma abreviada de
Eleazar, que significa ―Deus ajuda461‖.

Os dois homens eram judeus, mas o rico ignorava a ordem de


Deus para cuidar de seu compatriota abatido pela pobreza. O rico não
podia ser totalmente ignorante das Escrituras, pois os mestres da lei
diligentemente instruíam o povo acerca dos preceitos divinos. Além
disso, conhecia Lázaro e até mesmo sabia seu nome. O pobre homem,
que nunca se queixava, nem nunca se dirigia ao rico, confiava em Deus,
que o ajudava.

A morte veio e pôs fim ao sofrimento de Lázaro. Seu corpo, que

Gresssmann, Vom relchen Man und armen Lazarus (Berlin: n.p. 1918). Esse conto
popular foi trazido a Israel pelos judeus de Alexandria. Alterado, tornou-se parte do
folclore judaico. Na história modificada, um rico coletor de impostos chamado Bar
Ma‘jan e um pobre mestre da lei foram sepultados. Após a morte, o mestre da lei
passeava ao longo dos riachos do paraíso, enquanto o coletor de impostos, mesmo
junto das águas, era incapaz de alcançá-las para mitigar sua sede. G. Dalman
Aramaische Dialektproben (Leipzig: Deichert, 1927), pp. 33-34.
458 A tinta púrpura era obtida do caramujo púrpura. SB, 11:220.
459 O nome Dives é o adjetivo latino para a palavra rico, em todas as versões latinas.

Ao rico têm sido dados nomes como Amonofis, Finees, Finaeus, Nineue, e Neves, em
vários manuscritos. H. J. Cadbuiy ―A Proper Name for Dives‖, JBL 81, (1962):339-402;
H. J. Cadbuty, ―The Name of Dives‖, JBL 84 (1965): 73; K. Grobel, ―... Whose Name
was Neves‖, NTS 10 (1963-64):373-82.
460 Os hóspedes, à mesa de um rico, usavam pedaços de pão para limpar a gordura de

entre os dedos. Esses pedaços não deviam ser colocados no prato da carne ou do
molho e não eram comidos pelos convidados. Era costume jogá-los para debaixo da
mesa. Oesterley, Parables, p. 205; Jeremias, Parables, p. 184.
461 Recentemente, alguns estudiosos têm procurado explicar o nome Lázaro. Consulte-

se R. Dunkerley, ―L.azarus‖ NTS 5 (1958-59):321-27; 1. D. M. Derreti, ―Fresh light on


St. Luke XVI: II. Dives and L.azarus and lhe Preceding Sayings‖, NTS 7 (1960-1961):
364-480, publicado em Law ln the New Testament (London: 1970), pp. 78-99; C. H.
Cave, ―Lazarus and the Lukan Deuteronomy‖, NTS 15 (1968- 69):319-25.
não era mais que pele e osso, foi rapidamente, removido. Porque não
havia ninguém para mostrar ou receber simpatia, seu funeral não foi,
ao menos, mencionado. Mas, Lázaro não estava sozinho na hora de sua
morte. Os anjos de Deus vieram e o levaram para um lugar de honra
nos céus. Estava assentado junto de Abraão, onde podia desfrutar do
Banquete Messiânico462.

O rico morreu, também. Sua vida de comodidade, luxo, conforto,


prazer e pompa, subitamente terminou. Talvez tenha sofrido um ataque
cardíaco. Seu funeral foi bem cuidado. Seus cinco irmãos fizeram todos
os arranjos necessários. Tocadores de flauta e carpideiras vieram, e
todos os seus amigos compareceram. O falecido vivera com pompa; foi
enterrado com pompa. Mas, todos aqueles que vieram pranteá-lo, não
podiam ver além do túmulo. Continuavam a pensar nele como um
homem rico, agora morto463. Enquanto Lázaro foi levado pelos anjos
para o seio de Abraão, o rico, despojado de seus bens terrenos, foi para
o inferno.

Então e Além

Tudo mudou no momento da morte. Lázaro recebeu um lugar da


mais elevada honra, junto do pai dos crentes. Os anjos o tinham levado
para junto de Abraão, onde gozava da companhia dos filhos de Deus. O
rico, que na terra vivia cercado de amigos, não era mais considerado
rico no inferno. Despojado de toda a sua riqueza, estava só.

Do outro lado do túmulo, Lázaro mantinha silêncio em relação ao


rico, embora, compreensivelmente, conversasse com Abraão. Foi Abraão
quem respondeu aos pedidos do homem rico. Não foi Lázaro, e, sim,
Abraão quem o instruiu sobre as realidades dos destinos eternos. O rico
estava em tormentos, enquanto Lázaro gozava o prazer da companhia
de Abraão. No tormento do inferno estavam incluídas a sede extrema e a
agonia do fogo464.

O rico, no tormento do inferno, viu Abraão à distância e Lázaro


junto dele465. Reconheceu Abraão, o pai dos crentes. Sendo judeu, ele o
conhecia como pai. Esperava que sua raça fosse levada em conta,
embora fosse muito mais física que espiritualmente filho de Abraão.
Mesmo no inferno, parecia não compreender que sua completa
indiferença às ordens de Deus na terra tinha posto fim a qualquer

462 O termo holpos (= ―seio‖) pode ser entendido como uma expressão oriental
significando recostar-se ou reclinar-se em uma festa ou banquete (Jo 13.23). Pode,
também, descrever amizade íntima (Jo 1.18). Veja-se,T. W. Manson, The Sayings of
Jesus (L.ondon: SCM Press, 1950), p. 299; SB, 11:225-27.
463 Michaelis, Gleichnisse, p. 217.
464 A sede e a dor eram o quinhão daqueles condenados a morrerem separados de

Deus. Veja-se 2 Ed 8.59; 2 Enoque 10.1,2.


465 Para descrever os indivíduos no céu e no inferno, Jesus usou imagens de corpos

humanos e suas funções, embora tanto o corpo de Lázaro como o do homem rico
estivessem sepultados na terra.
reclamo de herança espiritual466. Durante sua vida, ele mesmo rompera
os laços espirituais com Abraão, ignorando as necessidades de seu
próximo. Em vez de amar o próximo como a si mesmo, vivera não para
este, nem para Deus, senão para si mesmo. Buscara sempre a
satisfação própria. Agora, no inferno, estava entregue a si mesmo.

O rico não se encontrava no inferno porque tinha vivido de modo


perverso, na terra. Seus muitos parentes e amigos podiam testemunhar
que tinha sido cidadão proeminente e que dera provas de ser anfitrião
muito generoso, quando recebia seus convidados. Podiam falar dele com
palavras calorosas de elogio e reconhecimento. Entretanto, o rico não
merecia os tormentos do inferno por causa do que tinha feito na terra,
mas, antes, pelo que deixara de fazer. Tinha negligenciado o amor a
Deus e ao próximo. Menosprezara Deus e sua Palavra.

Mesmo no inferno, o rico continuava impenitente. Não pediu


misericórdia a Deus, mas a Abraão. Chamou Abraão de pai, e esperava
que o patriarca tivesse pena de um de seus descendentes467. Instruiu
Abraão a como mostrar misericórdia e enviar alívio: ―Manda a Lázaro
que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua‖. Pôs de
lado os preconceitos. Aceitaria prontamente ser servido por um antigo
mendigo, se pudesse. Ainda assim, seu tom de voz deixava implícito que
considerava Lázaro como um servo que devia ser enviado a seu pedido,
com a aprovação de Abraão. Na terra, o rico nunca tinha ajudado
Lázaro; no inferno, entretanto, mostrava necessidade de ajuda.
Reconheceu Lázaro, mas não se dirigiu a ele, diretamente. Queria que
Abraão o enviasse, como um servo humilde que respondesse
prontamente às ordens de um rico. Em certo sentido, agia como se
ainda estivesse na terra.

Enquanto Lázaro gozava dos prazeres celestiais, provavelmente no


cenário de um riacho corrente, o rico sofria a agonia ardente do fogo do
inferno468. Ele implorou por água para refrescar sua língua, e viu que
Lázaro poderia alcançá-la.

Abraão se dirigiu ao rico como ―filho‖, aceitando o parentesco

466 Paulo, na Epístola aos Romanos, toca neste ponto, quando escreve: ―E não
pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são de
fato israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos‖ (Rm
9.6,7).
467 O judeu se orgulhava do fato de ser descendente de Abraão — Mt 3.8,9 e Jo 8.33-

39. Um judeu excomungado não chamaria Abraão de pai. O judeu, com boas obras a
seu crédito, pertencia ao povo do pacto de Israel e podia chamar Abraão de pai. Veja-
se Oesterley, Parables, p. 208.
468 Fica evidente, pelas muitas referências ao fogo do inferno, nos Evangelhos, que

Jesus ensinou, em termos francos, a doutrina do inferno. Reconhecidamente, a


palavra para inferno, nestes textos, é a palavra Gehenna e não Hades. Jesus o
descreveu como um lugar de castigo, como também fizeram os apóstolos. Vejam-se,
entre outras passagens: Mt 5.22,29,30; 7.19; 8.12; 10.28; 18.8,9; 22.33; 25.41; e
versículos paralelos.
físico. Mesmo esse parentesco não devia trazer alívio ao homem, por
duas razões: (1) a lei da retribuição, e (2) o caráter irrevogável do
veredicto de Deus. Primeiro, a lei da retribuição estipulava que a vida
terrena de um homem, em palavras e atos, permanecia em relação
direta com seu destino na vida futura. O rico escolhera uma vida de
coisas boas na terra; no inferno sofria agonia. Lázaro, pelo contrário,
passara a vida na miséria, mas, depois, gozava do conforto dos céus.
Segundo, o irrevogável julgamento de Deus estava confirmado pelo
abismo intransferível existente entre o céu e o inferno. Ninguém poderia
ir do céu para o inferno e vice-versa469. Deus pronunciara seu
julgamento sem possibilidade de apelo. O destino fora selado no mo-
mento da morte.

Lázaro foi para o céu, e o rico para o inferno. Entre os dois


lugares, Deus colocou um grande abismo para tornar impossível a
passagem de uma situação para outra470.

O rico compreendeu que sua situação era permanente. Seu


próprio quinhão foi fixado, mas o de seus cinco irmãos, na terra, não
estava. Poderiam mudar a maneira de viver e, assim, evitar passar a
eternidade no inferno. Mais uma vez, ele chamou Abraão de ―pai‘‖, e
outra vez queria usar Lázaro como servo. Implorou a Abraão que
enviasse Lázaro à casa de seus pais para avisar seus irmãos, a fim de
que não viessem para o lugar de tormento no qual se encontrava.
Estava ciente do grande abismo colocado entre o céu e o inferno, mas
pensava que alguém poderia, prontamente, ir do céu para a terra.
Pensava que Abraão tinha autoridade para enviar Lázaro. De algum
modo, compreendia que ele mesmo não poderia deixar o inferno para
voltar a terra. Tinha que ficar onde estava471.

Durante sua vida na terra, assim como durante a conversa do rico


com Abraão, Lázaro permaneceu em silêncio. Nem uma palavra saiu de
seus lábios sobre a audácia do rico de dizer a Abraão o que fazer. O rico
se dirigiu a Abraão, que lhe respondeu.

Abraão se recusou a permitir que um sinal dos céus fosse enviado

469 Oesterley, Parables, p. 209, vê a doutrina da condenação eterna como anticristã.


Pergunta se Lucas 16.26 é uma interpolação e afirma que a passagem ―fica mais suave
sem ov. 26‖. Porque ele não apresenta evidência textual, tal questionamento é
inadmissível e demonstra uma recusa a lidar com a Palavra de Deus escrita. E C. F.
Evans, ―Uncomfortable Words — V. (Luke 16.31)‖, ExpT 81 (1969-70):230, que
escreve: ―Hoje, a parábola é considerada fundamento imperioso para a crença de que a
posição e o status do indivíduo são irrevogavelmente fixados no momento da morte‖.
470 No v. 26, o tempo perfeito do verbo grego sterizo indica estado resultante.

Entretanto, o uso de hopos implica em propósito e não resultado de alguma coisa


ocorrida. Morris, Luke, p. 254, A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New
Testament (New York: Hodder & Stoughton, George 11. Doran Company, 1919), p.
896.
471 Michaelis, Gleichnisse, p. 264, nº 151, sugere que Lázaro poderia aparecer, em

sonho ou visão, aos irmãos do rico. Entretanto, se este fosse o caso, o próprio homem
rico poderia fazer isso com muito mais eficácia.
aos cinco irmãos do homem rico. Não permitiu nada que vislumbrasse o
oculto. A revelação de Deus fora dada e era suficiente para a salvação.
Abraão disse ao rico que seus parentes tinham acesso aos cinco livros
de Moisés, e aos livros dos profetas. Isto é, tinham as Escrituras do
Velho Testamento. ―Ouçam-nos‖.

O rico sabia que seu pai e seus irmãos não levavam a sério as
Escrituras. Seus cinco irmãos solteiros viviam ainda na casa do pai (o
número cinco é arbitrário) e viviam uma vida semelhante à que ele
levara na terra. Não eram as riquezas que eles desfrutavam que o
preocupavam472, e, sim, o seu menosprezo para com as Escrituras.
Chamou Abraão de ―pai‖ pela terceira vez, assegurando-lhe que seu pai
e seus irmãos se arrependeriam se alguém de entre os mortos
ressuscitasse e fosse ter com eles. Não pediu mais que Lázaro fosse
enviado. Qualquer um poderia fazê-lo.

Abraão respondeu que ninguém ressuscitado de entre 473os


mortos seria capaz de lhes falar a respeito da revelação de Deus mais
claramente do que podiam achar nas Escrituras. Se um homem rejeita
a Palavra de Deus escrita, não se arrependerá nem será persuadido por
alguém que ressuscite. O rei Saul viu Samuel trazido pela médium de
En-Dor, e, ainda assim, não se arrependeu (1 Sm 28.7-25). Os fariseus
viram Lázaro, irmão de Maria e Marta, sair do túmulo. Não se
arrependeram, antes, procuraram matá-lo (Jo 12.10). O fato de o nome
Lázaro, na parábola, ser o mesmo do ressuscitado em Betânia,
surpreende. Leva-nos a perguntar até que ponto pode isto ser mera
coincidência474. No entanto, porque não sabemos a circunstância
histórica precisa na qual a parábola foi contada, a tentativa de ligá-la ao
relato da ressurreição de Lázaro, em Betânia, embora bem
intencionada, dificilmente convence. Por outro lado, a ressurreição de
Lázaro e a ressurreição de Jesus demonstram indubitavelmente que
aqueles que se recusam a aceitar o testemunho da revelação de Deus
―tão pouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre
os mortos‖.

Aplicação

Não há, na parábola do rico e Lázaro, introdução nem conclusão


específica. A parábola pode ter sido contada em qualquer ocasião do
ministério terreno de Jesus. Mas, porque Lucas a registrou em seguida
à do administrador infiel, e porque ele revela a reação dos fariseus ao
ensino de Jesus: ―Não podeis servir a Deus e às riquezas‖ (Lc 16.13),
podemos deduzir que os fariseus estavam presentes quando Jesus

472 A dedução não é que um crente deva viver na pobreza para entrar nos céus.
Abraão, durante sua vida na terra, era considerado rico. O ponto em questão é a
relação com Deus e com o próximo. Mánek, Frucht, p. 108.
473 Plummer, St. Luke, p. 397.
474 Dunkerley, ―Lazarus‖, p. 322.
contou a parábola do rico e Lázaro475. Os fariseus eram, provavelmente,
os que ouviam a parábola. O contexto imediato mostra que, porque
amavam o dinheiro, ridicularizavam Jesus (Lc 16.14). Também porque
se justificavam a si mesmos diante dos homens, como Jesus afirmou
(Lc 16.15). Deus, no entanto, conhecia seus corações. Jesus via a
contradição que havia em suas vidas e contou a história de um homem
que amava o dinheiro, vivia no luxo, e pensava que o fato de ser
descendente de Abraão lhe garantiria a salvação. O conteúdo da
parábola está ligado ao comentário dirigido aos fariseus a respeito de
vícios como o amor ao dinheiro e a autojustificação476.

No contexto mais amplo da série de parábolas registradas por


Lucas, várias questões se impõem: ―O que o rico e Lázaro
representam?‘‖ e ―Por que Jesus não contou a história de um rico
coletor de impostos e um pobre mestre da lei?‖ Os fariseus olhavam os
publicanos como ―pecadores‖ que corriam o risco de perderem o direito
de ser chamados filhos de Abraão e de pertencer ao povo da aliança de
Deus. Na parábola, no entanto, Jesus retrata dois homens, um rico e o
outro pobre. O rico viveu uma vida respeitável, chamava Abraão de pai,
e foi viver a eternidade no inferno. O pobre jamais abriu a boca, na terra
ou no céu, embora ocupasse lugar de honra junto ao pai Abraão.

Os fariseus foram capazes de se reconhecer no homem rico.


Reagiram veementemente contra a afirmação de Jesus de que não
poderiam servir a Deus e às riquezas. Ridicularizando Jesus,
ostensivamente revelaram que eram aqueles que amavam o dinheiro.
Eram, também, os únicos que prontamente chamavam Abraão de pai e
pensavam que seu parentesco com o patriarca lhes assegurava o futuro.
Três vezes o rico chamou Abraão de pai. Mas, Abraão, embora aceitando
a descendência física, chamando-o de ―filho‖, na primeira vez, deixou
claro, nas respostas subseqüentes, que um parentesco físico era
insuficiente477. Portanto, os fariseus não podiam contar com o fato de
serem da linhagem de Abraão para terem garantido um lugar no céu.

Além disso, os fariseus eram os que ensinavam a lei da


retribuição, em relação à vida futura. Essa doutrina, simplesmente, não
é compatível com o ensino de Jesus478. É estranha a ele. Mas Jesus pôs
a doutrina dos fariseus na boca de Abraão: ―Filho, lembra-te de que
recebestes os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente os males;
agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos.‖‘ Jesus
aplicou a lei da retribuição aos fariseus, que ouviram sua própria

475 Manson, Sayuings, pp. 296-301, e Hunter, Parables, p. 114, sugerem que a
parábola foi endereçada aos saduceus porque negavam a ressurreição. Esta seria, na
verdade, uma interpretação útil, se o contexto, direta ou indiretamente, se referisse a
eles.
476 Derrett, Law, p. 85, se refere à história de Dives e Lázaro como a ―parábola da

inversão‖. Veja-se, também, Oesterley, Parables, p. 203.


477
F. H. Capron, ―Son in the Parable of the Rich Man and Lazarus‖, ExpT 13 (1901):
523.
478 Schippers, Gelijkenissen, p. 160.
teologia dos lábios de Abraão. Eles tinham criado um grande abismo
entre eles próprios e os proscritos morais e sociais. Esses banidos da
sociedade viviam em completa pobreza religiosa e econômica. Ninguém
da comunidade judaica lhes fornecia alimento espiritual; estavam
condenados a morrer de fome. Se alguém, alguma vez, questionasse a
atitude dos fariseus em relação a esses marginalizados, ouviria como
resposta que eles tinham Moisés e os profetas, que ouvissem a lei e se
arrependessem. Os fariseus ouviam suas próprias palavras distinta e
diretamente de Abraão. Estavam retratados pelo rico, no inferno, e
Lázaro representava os marginalizados.

Os fariseus, mais que uma vez, haviam pedido a Jesus que lhes
desse um sinal dos céus479. Pediam isso com o propósito de testá-lo.
Provavelmente não teriam acreditado nele, mesmo que lhes
apresentasse um sinal sobrenatural. Agora, esses mesmos fariseus
ouviam o rico da parábola pedir a Abraão um sinal dos céus. Abraão
recusou. Ele disse: ―Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tão pouco se
deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.‖ No
pedido do rico, os fariseus ouviram o eco de suas próprias palavras. A
parábola era endereçada a eles480.

Conclusão

A lição ensinada por Jesus é atemporal; é a regra permanente de


como ouvir, obediente e agradecido, a Palavra de Deus. As Escrituras
nos ensinam a amar o Senhor nosso Deus de todo o nosso coração,
nossa alma e nossa mente, e ao próximo como a nós mesmos. Este
amor tem que ser materialmente expresso na cuidadosa entrega de
nossos dons ao Senhor e àqueles que, próximos a nós, estão em
dificuldade (SI 112.9; 2 Co 9.7). Este amor, também, deve-se mostrar
espiritualmente; primeiro, pelo crescimento na graça e no conhecimento
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2 Pe 3.18); e, segundo,
ensinando nosso próximo a conhecer o Senhor (Jr 31.34; Hb 8.11).

Os ricos são realmente ricos quando repartem suas bênçãos


materiais e espirituais com os necessitados. Na verdade, são
terrivelmente pobres se guardam, para si mesmos, essas bênçãos.
Qualquer que ajunte egoisticamente riquezas materiais acaba sofrendo
bancarrota espiritual. Do mesmo modo, qualquer igreja que deixa de
evangelizar, morre espiritualmente.

Os cristãos das sociedades abastadas não podem deixar de ver e


ouvir as necessidades dos pobres na África, Ásia e América Latina. Pelas
notícias da mídia, encontram os necessitados junto à sua porta. Esses
são os que sofrem de fome física e espiritual, que anseiam pela comida
que cai da mesa do rico.

479
Mt 12.38; 16.1; Mc 8.11; Lc 11.16; Jo 6.30.
480
Schippers, Gelijkenissen, p. 161.
Em lugar algum as Escrituras ensinam que é pecado ser rico.
Repetidamente, no entanto, elas advertem o povo de Deus que riquezas
podem ser cilada e tentação que ―afogam os homens na ruína e
perdição‖ (1 Tm 6.9). Quando o homem coloca Deus e seu próximo
necessitado em um plano secundário, e trata as Escrituras com
desprezo intencional, sua resposta responsável ao chamado para o
arrependimento pode não acontecer jamais481.

Na parábola soa uma nota de urgência para o homem que sábia e


obedientemente atenta para a Palavra de Deus. Ela o chama ao
arrependimento e à fé; diz-lhe que ele está vivendo no período da graça;
instrui-o a deixar de lado a autojustificação; e fá-lo lembrar que o
destino do homem é irrevogavelmente selado no momento da morte.
Resumindo, a parábola reitera as palavras do salmista: ―Oxalá ouvísseis
hoje a sua voz! Não endureçais o vosso coração‖ (SI 95.7,8).

481O Glombiiza, ―Der reiche Mann und der arme L.arzan,s. Luk. XVI 19-31. Zur Frage
nach der Llotschaft des Texts‖, NovT 12(1970):173.
37. O Fazendeiro e o Servo

Lucas 17.7-10 ―Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em


guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à
mesa? E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-
me, enquanto eu como e bebo; depois, comerás tu e beberás?
Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia
ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi
ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que
devíamos fazer‖.

No mundo materialista da sociedade ocidental, a parábola do


fazendeiro e seu servo parece, de certo modo, fora de lugar. As disputas
trabalhistas, de um tipo ou de outro, são comuns, hoje em dia. Salários
mais altos e jornadas mais curtas são parte das exigências da força de
trabalho. Um empregado de determinado setor não pode, simplesmente,
passar para outro. Cada trabalhador deve fazer a tarefa para a qual foi
contratado.

A parábola contada por Jesus deixa entrever parte da relação


empregador x empregado, daqueles dias. Embora as circunstâncias
atuais sejam outras, a aplicação da parábola não tem limite no tempo. A
mensagem transmitida nesta pequena representação da vida agrícola da
sociedade do primeiro século é permanente e relevante ainda hoje.

―Qual de vós‖, disse Jesus, ―tendo um servo ocupado na lavoura


ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e
põe-te à mesa? E que antes não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e
serve-me, enquanto eu como e bebo; depois tu comerás e beberás?
Porventura terá de agradecer ao servo por ter este feito o que lhe havia
ordenado? Assim, também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi
ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que
deveríamos fazer482‖.

O contexto da parábola é o relacionamento frio e impessoal do


mundo antigo, quando o que se esperava de um escravo era que
obedecesse ao que quer que seu senhor ordenasse. Se o dono desse
ordens ao servo para arar o campo durante o dia e preparar o jantar,
quando voltasse, ele, simplesmente, obedeceria, pois sabia que esta era
sua tarefa. Era simples assim. E, por ter feito sua tarefa, o escravo não
recebia agradecimentos, porque não era costume agradecer-lhes.

O que Jesus está dizendo com esta parábola? Ele quer que seus
seguidores entendam o que significa ser servo. Seus próprios discípulos,
que viviam num clima religioso de méritos e demérito, perguntaram,

482O adjetivo ―inúteis‖ na sentença ―somos servos inúteis‖, não tem o sentido de
imprestável ou sem serventia. E mais uma expressão de modéstia no sentido de falta
de merecimento. ―Somos servos, e não merecemos elogios‖ (NEB).
mais de uma vez, qual deles seria o maior no reino dos céus483. Jesus
teve que ensinar: ―Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo
de todos‖ (Mc 9.35). Ele mesmo deu o exemplo, quando lavou os pés dos
discípulos (Jo 13.1- 17) e, depois de instituir a Santa Ceia, instruiu-os a
agir como servos: ―... o maior entre vós seja como o menor; e aquele que
dirige seja como o que serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou
quem serve? Pois, no meio de vós, eu sou como quem serve‖ (Lc
22.26,27)484.

Constantemente Jesus tinha que ensinar a seus discípulos que


não deviam trabalhar para o reino de Deus pensando em recompensas.
Deus não emprega seus servos para recompensá-los por seus serviços.
Nenhum servo pode, jamais, dizer: ―Deus está em débito comigo‖. Deus
não compra serviços como um empregador que compra o tempo e a
habilidade de seus empregados. E porque Deus não entra numa relação
empregador x empregado, ninguém pode, jamais, reclamar de Deus,
alegando serviços prestados485.

Para fazer seus discípulos entenderem o que significa servir,


Jesus contou-lhes a parábola do fazendeiro e seu servo. O fazendeiro
podia fazer as maiores exigências a respeito do tempo e da eficiência de
seu servo. Legitimamente podia agir assim, para o seu próprio benefício
e prazer. Se isso era verdadeiro na relação entre o fazendeiro e o servo,
Jesus perguntou, quanto mais verdadeiro será para os servos de
Deus486, que foram chamados para amar a seus servos para serem
santos, porque ele é santo, então, ninguém pode reclamar dele
recompensas por tarefas cumpridas. Ninguém tem o direito de esperar
dele palavras de elogio por ter feito o que devia. Se Deus concede
favores e recompensas, o faz pela graça dele e não pelo mérito pessoal
de cada um.

483 Mt 18.1; 20.21; Mc 9.34; 10.37; Lc 9.46; 22.24; e veja Mt 23.11.


484 Na parábola dos servos vigilantes (Lc 12.35-38), o senhor, quando chega, prepara a
refeição dos servos e os serve.
485 Comparem-se, entre outros, Sl 62.12; Mt 16.27; 2 Co 5.10; Ap 22.12.
486 Manson, Sayings, p. 302.
38. O Juiz Iníquo

Lucas 18.1-8 ―Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar


sempre e nunca esmorecer: Havia em certa cidade um juiz que não
temia a Deus, nem respeitava homem algum. Havia também, naquela
mesma cidade, uma viúva que vinha ter com ele, dizendo: Julga a
minha causa contra o meu adversário. Ele, por algum tempo, não a quis
atender; mas, depois, disse consigo: Bem que eu não temo a Deus, nem
respeito a homem algum; todavia, como esta viúva me importuna,
julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha a molestar-
me. Então, disse o Senhor: Considerai no que diz este juiz iníquo. Não
fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite,
embora pareça demorado em defendê-los? Digo-vos que, depressa, lhes
fará justiça. Contudo, quando vier o Filho do Homem, achará,
porventura, fé na terra?‖.

Esta parábola é conhecida, também, como a parábola da mulher


persistente. E companheira daquela do amigo à meia-noite (Lc 11.5-8).
Lucas apresenta as duas como relatos semelhantes: uma sobre um
homem, a outra sobre uma mulher (esta parábola é encontrada apenas
em Lucas). Embora pareça um tanto fora do contexto, sua conclusão:
―Contudo, quando vier o Filho do homem, achará porventura fé na
terra?‖ (18.8) a relaciona com o estudo escatológico do capítulo
precedente. Além disso, o assunto oração aparece na parábola do
fariseu e do publicano (Lc 18.9-14) que vem imediatamente a seguir.

A Viúva e o Juiz

Apenas duas pessoas representam os papéis principais: a viúva e


o juiz. O adversário da viúva é apenas mencionado. A parábola do amigo
à meia-noite também apresenta dois personagens centrais: o hospedeiro
e o vizinho, enquanto que o viajante é mencionado apenas de passagem.

Parece que as viúvas, em Israel, passavam por grande dificuldade;


as numerosas leis protetoras indicam que eram oprimidas e passavam
grande privação. O próprio Deus defende a causa da viúva (Dt 10.18) e
amaldiçoa o homem que perverter seu direito (Dt 27.19). A viúva tomava
o lugar do marido falecido e, no tribunal, era considerada como tendo
os mesmos direitos de um homem: ―No tocante ao voto da viúva ou da
divorciada, tudo com que se obrigar lhe será válido‖ (Nm 30.9).
Qualquer um que pervertesse o direito da viúva teria que enfrentar
Deus, o juiz das viúvas (Sl 68.5).

Contudo, as viúvas eram maltratadas. O profeta Isaías queixa-se


de que os governantes da terra são rebeldes e ladrões. ―Não defendem o
direito do órfão, e não chega perante eles a causa das viúvas‖ (Is 1.23).
E Malaquias afirma que Deus será testemunha veloz contra aqueles que
oprimem a viúva e o órfão (Ml 3.5).
Jesus contou a seus discípulos sobre uma viúva de certa cidade,
que não tinha ninguém para apoiá-la contra seu adversário, a não ser
um juiz iníquo487. Seu adversário não tinha nem mesmo que
comparecer no tribunal, o que é indício de que se tratava de uma
questão de dinheiro. Ela não podia pagar um advogado. Então, se
dirigiu diretamente ao juiz e queria que ele lhe servisse de advogado e
juiz488.

Em vez de ir ao tribunal da comunidade, ela procurou o juiz, que


era conhecido por todos pela sua má reputação489. Esse juiz não tinha
princípios religiosos e se mostrava imune à opinião pública.
Simplesmente não dava a mínima importância ao que falasse Deus ou o
homem. Assim era o juiz que a viúva procurou. Faltam-nos detalhes,
pois não nos é dito nada sobre a idade da mulher490, se era rica ou
pobre, e porque procurou um juiz que ―não temia a Deus nem
respeitava homem algum‖.

Viúva, ela é um retrato de vulnerabilidade. Seu único recurso é


levar sua causa ao juiz com o pedido: ―Julga a minha causa contra o
meu adversário‖. A expressão ―julga a minha causa‖ é linguagem
jurídica, e significa, realmente, ―aceita a minha causa‖, ou ―ajuda-me a
obter justiça491‖.

Apesar da reputação do juiz de menosprezar esses assuntos, a


viúva pediu-lhe ajuda. Coerente com a própria fama, o juiz se recusou a
agir. Provavelmente dispensou a viúva, mandando-a para casa, com a
observação costumeira: ―O caso seguinte, por favor‖.

A única arma de que a mulher dispunha era procurar o juiz, dia


após dia, com o mesmo pedido: ―Julga a minha causa contra o meu
adversário‖. A viúva conseguiu irritar o juiz, que pensou: ―Bem que eu
não temo a Deus, nem respeito homem algum, todavia, como esta viúva
me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim,
venha a molestar-me‖. Ele não temia uma agressão física492; o que

487 G. Schrenk, TDNT 1:375.


488 Derrett, ‗Law in the New Testament: The Unjust Judge‖, NTS 18(1971.72): 188,
publicado em Studies in the New Testament (Leiden: Brill, 1977), 1:42.
489 De acordo com a lei dos fariseus, o judeu estava proibido de procurar tribunais não

judaicos. Paulo revela que na igreja primitiva esta mesma regra devia ser seguida (1
Co 5.12 — 6.8). Muitas vezes, o povo procurava juízes gentios ―se por esse intermédio,
apelando para algum argumento político ou fiscal, pudessem ter frustrados os direitos
de seus oponentes ou pudessem forçá-los a fazer o que a lei ordinária deixara de
fazer‖. DerretI, ―L.aw in lhe New Testament‖, p. 184. Consulte-se, também, Smith,
Parables, p. 149.
490 Porque os casamentos eram contratados quando a moça tinha catorze ou quinze

anos, uma viúva podia ser bem jovem. Consulte-se SB, II: 374; Jeremias, Parables, p.
153.
491 Derrett, ―Law in the New Testament‖, p. 187, Schrenk, TDNT, II: 443.
492
As traduções da palavra grega hypopiaze variam, e vão de um insulto ao
cometimento de um ato de violência — ―acertar um soco no olho‖. Derrett, ―Law to the
New Testament‖, p. 191, interpreta a palavra, como significando ―perda de prestígio‖.
estava acontecendo é que a persistência dela fazia aflorar o seu lado
bom. Em lugar de ir embora, quieta, que era o que ele esperava, ela
voltava, sempre, com o mesmo pedido. O juiz não podia suportar mais a
insistência da mulher. Ele cede, investiga o caso e aplica a justiça.

Aplicação

Na parábola do juiz iníquo, Jesus é muito mais específico que na


do amigo importuno. De fato, a interpretação e a aplicação da
mensagem da parábola, em Lc 11.5-8, devem ser buscadas no contexto
geral, enquanto que na parábola do juiz iníquo, encontramos tanto a
mensagem quanto a aplicação.

Jesus diz: ―Considerai no que diz este juiz iníquo493‖. Ele quer que
os discípulos prestem atenção às palavras do juiz. Elas são importantes
para a compreensão correta da parábola. Como fez na parábola do
amigo que veio à meia-noite, Jesus usa a regra dos contrastes. Ele
contrasta o pior que há no homem com o melhor que há em Deus:
―Considerai no que diz este juiz iníquo. Não fará Deus justiça aos seus
escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em
defendê-los?‖ Em outras palavras, ninguém deve imaginar Deus como
uma divindade inabalável que se compara ao juiz da parábola. O
sentido é que se esse juiz grosseiro e mal humorado, que, segundo suas
próprias palavras, não teme a Deus nem aos homens, se comove com os
pedidos da viúva, quanto mais fará Deus justiça a seu próprio povo que
ora a ele, de dia e de noite?

Além disso, não existe nenhuma relação entre a viúva e o juiz,


seja social, comunitária ou religiosa. O juiz quer ficar livre dela para que
até o laço advogado-cliente tenha fim. E, mesmo assim, esse juiz
inescrupuloso atende à viúva e lhe faz justiça. Deus, ao contrário,
escolheu seu próprio povo. Ele tem interesse especial nesse povo, pois
ele lhe pertence494. Quando esse povo lhe pede, noite e dia, Deus toma
para si sua causa e faz justiça. Assim, se a viúva tivesse pedido a Deus,
teria recebido justiça, porque Deus ouve e responde às orações495. O juiz
ouviu a mulher pelo motivo errado: para livrar-se dela. Deus ouve seu
povo porque o ama e defende sua causa. O juiz age egoisticamente;
Deus age em favor de seu povo.

É, portanto, comparável à palavra anaideia, de Lá 11.8, que pode ter o sentido de ―não
ser alvo de reprovação; manter a aparência‖. Veja-se D. R. Catchpole, ‗The Son of
Man‘s Search for Faith (Luke XVIII 8b)‖ NovT l9 (1977):89. 1 Co 9.27 é o outro lugar,
no Novo Testamento, onde a palavra hypopiaze é usada.
493 A expressão ―juiz iníquo‖ define o contraste entre a injustiça personificada pelo juiz

terreno e Deus que ouve seus eleitos. Veja-se G. Delling, ―Das Gleichnis voo gottlosen
Richter‖, ZNW 53 (1962):14.
494 Delling, ―Gleichnis‖, p. 15.
495 A linguagem da parábola é reminiscência de Eclesiástico 35.12-20, que faIa sobre a

justiça de Deus. ―Porque o Senhor é um juiz‖, diz Jesus Ben-Sirach. ―Ele jamais ignora
o apelo do órfão ou da viúva‖ (NEB).
Os filhos de Deus devem orar constantemente? A parábola ensina
que devem trazer sua causa diante de Deus, em oração contínua.
Devem orar sempre e não se tornarem ansiosos quando não obtêm uma
resposta imediata. Jesus ensina o poder da oração. Por palavras e
exemplos, ele demonstrou que os filhos de Deus devem orar dia e noite,
sem desanimar. Do mesmo modo, Paulo, em suas Epístolas,
repetidamente se refere ao fato de orar continuamente (dia e noite) e
com o máximo empenho, como, por exemplo, no seu desejo de estar
com a igreja em Tessalônica (1 Ts 3.10).

Se o povo de Deus clama a ele dia e noite, por que, às vezes, ele
demora a responder496? Jesus continua: ―Não fará Deus justiça aos seus
escolhidos... embora pareça demorado em defendê-los?‖ E a resposta
implícita desta pergunta de retórica é: Naturalmente que sim. Ele talvez
faça seu povo esperar, pode testar sua paciência, fortificar sua fé, mas,
no tempo próprio, Deus responderá às orações de seus eleitos497.

Deus não é como o juiz iníquo que se recusa a atender os pedidos


da viúva. Deus pode fazer seu povo esperar, mas fará justiça
incontinenti: ―Digo-vos que depressa lhes fará justiça‖. Aparentemente
há uma contradição na afirmativa de Jesus. Mas não é o que acontece
se propusermos duas simples questões e procurarmos suas respostas.
Primeiro, Deus fará justiça a seu povo? A resposta, obviamente, é que
sim. O povo de Deus pode confiar em sua fidelidade. Ele não é como o
juiz iníquo, em cujo caráter não se pode confiar. Segundo, o povo de
Deus deve esperar até que suas orações sejam respondidas? Ao
contrário do juiz, Deus não se sente incomodado porque seu povo ora a
ele, de dia e de noite. Quando Deus ouve as orações, não significa que
cedeu em sua determinação de não respondê-las. Deus responde às
orações no tempo apropriado e de acordo com seu plano498. E, quando o
tempo vem, a oração é prontamente atendida Deus não demora, pois
seu ouvido está sintonizado com a voz de seus filhos. Em tempos de
tristeza, o tempo de espera parece alongar-se, mas, quando o filho de
Deus recebe resposta às suas orações, e percebe o plano de Deus,
admite que Deus praticou a justiça em seu favor, sem demora499.

496 Muitos exegetas têm tentado uma explicação satisfatória para Lá 18.7b. A brusca
mudança do subjuntivo no v.7a, para o indicativo, em 7b, pode significar que o
versículo consiste de duas sentenças independentes. A última parte do v. 7 é
semelhante a Eclesiástico 25.19. Para interpretações deste versículo, veja-se H.
Riesenfeld, “Zu makrothumein (Lk 18.7) ―Neutestamentliche Aufsãtze, Festschrift
honoring J. Schmid (Regensburg: Pustet, 1963), pp. 214-17; H. Ljungvik, ―Zur
Erklãrung einer Lukas-Stelle (Luk. XVIII7)‖, NTS 10(1963-64): 289-94; A. Wifstrand,
―Lukas xviii:7‘, NTS 11(1964-65): 72-74: C. E. 13. Cranfield, ―The Parable of the
Unjust Judge and the Eschatology of Luke-Acts‖, Scot JT 16(1963): 297-301; e Jerem
ias, Parables, p. 154.
497 Plumer, St. Luke, p. 414, comenta que, embora o sentido exato não possa ser

determinado, o que é importante é suficientemente claro: ‗não importa o quanto a


resposta possa parecer demorada, a oração com fé e constância é sempre respondida.
498 Marshal, Luke, p. 676, Morris, Luke, pp. 263-64.
499 Veja Delling, ―Gleichnis‖, p. 20: C. Spicq, ―La parabole de la veuve obstinée et du

juge inert aux decisions impromptues (Lc xviii 1-8)‖, RB 68(1961): 82-83.
Jesus conclui a aplicação da parábola chamando a atenção para
sua volta: ―Contudo, quando vier o Filho do homem achará porventura
fé na terra?‖ A pergunta, à primeira vista, parece não ter relação com o
que a precedeu. Mas, na última parte do capítulo anterior Lucas
registrou o ensino de Jesus sobre a vinda do Filho do homem, no último
dia500.

Ao referir-se à sua segunda vinda, Jesus liga o conceito de justiça


ao dia do juízo, quando ele será o Juiz dos vivos e dos mortos (At
10.42). Jesus lembra a seus seguidores o dia de sua volta. Ele vai
encontrar, naquele dia, a fé simples como a de uma criança?

A volta do Filho do homem não pode ser questionada; o evento se


cumprirá no tempo escolhido por Deus. Podemos estar certos da
promessa de Jesus sobre sua volta. O outro lado da questão é saber se
o crente será fiel em suas orações. O seguidor de Jesus orará
continuamente pela vinda do reino de Deus (Mt 6.10; Lc 11.2) e pela
volta de Cristo (1 Co 16.22; Ap 22.17,20)? Jesus cumpre e,
eventualmente, completa sua obra de redenção através do corpo de
crentes do qual ele é o Cabeça. Jesus faz a obra confiada a ele. O
crente, no entanto, será fiel a Jesus, comunicando-se com ele,
constantemente, em oração? Haverá fé perseverante, quando ele voltar?

Em certo sentido, a viúva persistente retrata a igreja em


oração501. O mundo oprime os seguidores de Jesus que não têm para
onde se voltar, a não ser para Deus. Eles esperam, em oração, a
intervenção de Deus, sabendo que ele ouvirá seus pedidos. A
semelhança entre o hospedeiro insistente, que tirou seu vizinho da
cama, e a viúva que continuou insistindo com o juiz, é clara. Nenhum
dos dois tinha para onde ir. Os dois sabiam que, se continuassem
insistindo, acabariam sendo atendidos.

Por meio dessas parábolas. Jesus exorta seus seguidores a


permanecerem fiéis, mesmo que sua volta exija espera paciente. As
almas dos que morreram por causa da Palavra de Deus podem gritar:
―Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem
vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?‖ (Ap 6.10). A
resposta que recebem é que esperem um pouco mais até que se
complete o número dos seus conservos e irmãos.

500 Linnemann, Parables, p. 121, ousadamente escreve que a parábola não é


originalmente de Jesus; antes, é a palavra do Senhor que ascendeu ―falada em nome e
espírito de Jesus para a comunidade de crentes‖. Catchpole, ‗Son of Man‘s Search‖, p.
104, refuta o argumento mostrando a inter-relação da parábola e do contexto. Ele
conclui que, na parábola, ―ouvimos a voz do Jesus histórico‖.
501 Delling, ―Gleichnis‖, p. 24.
39. O Fariseu e o Publicano

Lucas 18.9-14 ―Propôs também esta parábola a alguns que confiavam


em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros:
Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e
o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo,
desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais
homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este
publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto
ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda
levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê
propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua
casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o
que se humilha será exaltado‖.

O versículo introdutório desta parábola é propositalmente amplo


em seu escopo e não especifica um grupo determinado. Não obstante,
existe a tentação real de destacar os fariseus dos demais.
Reconhecidamente, muitos deles exibiam uma atitude de confiança na
própria justificação e olhavam com desprezo seus semelhantes. Seria
um erro deplorável atribuir esta atitude a todos os fariseus, pois
Nicodemos e José de Arimatéia, por exemplo, não poderiam ser
incluídos nesta categoria502. Por isso, Lucas generalizou, no primeiro
versículo.

O Fariseu

Nesta parábola, Jesus descreve a atitude de um fariseu em


particular, que cm sua própria maneira de ver, excedia o restante de
seus compatriotas na observância dos detalhes da Lei de Moisés503.
Cheia do espírito de auto-justificação e lançando olhares desdenhosos
aos que estavam a seu redor, o fariseu se encaminhou ao templo para
orar. Em suas palavras e atitude, mostrava que não precisava de Deus
porque confiava em si mesmo504. Sua autoconfiança era tão grande que
ele julgava ser capaz de manter o padrão que se havia proposto.
Conseqüentemente, menosprezava as pessoas que não desejavam ou
eram incapazes de manter esse padrão.

Ele foi ao templo de Jerusalém para orar. Deve ter sido no meio
da manhã, às 9 horas, ou no meio da tarde, às 15 horas — horas
determinadas para a oração. Dirigiu-se ao pátio externo, onde podia ser

502 D. A. Hagner, ―Pharisees‖, ZPEB, 4:745-52.


503 Josephus, War, 1:110; Manson, Sayings, p. 309; SB, 11:239.
504 Jeremias, Parables p. 139 nº 38; Manson, Saylngs, p. 309. Em sua carta aos

Filipenses, Paulo descreve sua vida passada, como fariseu: ‗Bem que eu poderia
confiar também na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu
ainda mais! Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim,
hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto
à justiça que há na lei, irrepreensível‖ (Fp 3.4.6).
visto e ouvido pelos homens, porque o pátio interno era acessível
apenas aos sacerdotes. Lá ele se postou e, olhando para os céus, orava
a respeito de si mesmo505. Sua oração estava centrado nele mesmo, e
pretendia que todos, ao seu redor, a ouvissem. Foi uma oração curta:
uma introdução, um elemento negativo e um elemento positivo.

―Deus, graças te dou


Porque não sou como os demais homens —
roubadores, injustos e adúlteros —
nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e dou o dízimo de tudo quanto ganho‖.

Na relativamente curta oração, a ênfase recai na primeira pessoa


do singular. O pronome eu ocorre, pelo menos, quatro vezes. O fariseu
orou em agradecimento. Nada pediu, porque confiava em si mesmo e em
sua auto-suficiência. Não tinha necessidade de se confessar, pois
guardava os mandamentos. As referências ao seu semelhante foram
feitas em termos negativos. Além disso, Deus deveria estar satisfeito
porque um fariseu, cumpridor da lei, se dirigia a ele em oração. Ele não
se dava conta de que a graça de Deus evitara que caísse em pecados tão
medonhos como o roubo, a injustiça e o adultério. Não podia entender o
que significava viver com a consciência culpada, como o publicano.

Para sua própria glorificação, enumerou dois feitos


extraordinários que costumava praticar. Primeiro, além e acima do que
é exigido pela Lei, jejuava duas vezes por semana. A Lei prescreve um
dia de jejum por ano, no Iom Kipur (= o Dia do Perdão)506, mas dá
permissão para o jejum voluntário, em qualquer tempo. Os fariseus
instituíram a segunda-feira e a quinta-feira, como dias de jejum durante
os quais são feitas orações pela nação507.

Segundo, embora o dízimo sobre o produto comprado por ele já


tivesse sido entregue pelo produtor, o fariseu tornava a pagar, ele
mesmo, o dízimo de tudo o que se tornava seu508. Queria ser ele mesmo
a preservar a Lei de Deus, embora as suas exigências já tivessem sido
cumpridas pelos outros.

505 Os manuscritos gregos diferem na ordem precisa das palavras pros heauton.
Estaria esta frase ligada à expressão verbal ―estar em pé‖ ou ao verbo ―orar‖? A
tradução pode ser ―de pé, separado por si mesmo, orava‖ ou ―posto em pé, orava para
si mesmo‖. Os tradutores da NIV escolheram a segunda forma, com uma modificação.
Entenderam a preposição pros no sentido de ―a respeito de‖, embora na nota de
rodapé traduzam como ―para‖. The Modern Language BibIe (New Berkekey) traduz:
―O fariseu pôs-se de pé e disse essa oração para si mesmo‖.
506 Lv 16.29-31; 23.27-32; Nm 29.7; Jr 36.6.
507 SB, 11:241-44; SB, IV:1, 77-114. J. Behm, TDNT, IV: 924-35.
508 SB, 11:244-46; Jeremias, Parables, p. 140. Deus disse ao fazendeiro: ―Certamente

darás os dízimos de todo fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do
campo‖ (Dt 14.22).
A oração do fariseu não era de todo incomum. Uma prece
semelhante, registrada no Talmude e proferida originariamente pelo
rabino Nadhunya ben Ha Kana, por volta de 70 A.D., diz:

―Graças te dou, ó Senhor meu Deus, que me tens dado a


minha porção com aqueles que se assentam em Bete ha-
Midrash (=casa do conhecimento) e não tens colocado minha
porção com aqueles que se assentam nas esquinas, porque eu
me levanto cedo por causa das palavras da Torá e eles se
levantam cedo por causa de conversas frívolas; eu trabalho e
eles trabalham, porém eu trabalho e recebo minha
recompensa; eu corro e eles correm, porém eu corro para a
vida do mundo futuro, e eles correm para a destruição509‖.

O fariseu, olhando ao seu redor, no pátio do templo, viu um


publicano. Ele agradeceu a Deus por ser diferente dos outros homens,
e, certamente, diferente daquele coletor de impostos. Ele estava livre dos
pecados cometidos por aquele traidor. Como se atrevia, esse miserável,
a entrar no templo? Davi não perguntou: ―Quem subirá ao monte do
SENHOR? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo
de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade,
nem jura dolosamente‖ (Sl 24.3,4). As palavras de Davi, não
condenavam esse publicano?

O Publicano

As sinagogas eram encontradas por todo o país e em numerosos


lugares de Jerusalém. O publicano não ousava entrar numa sinagoga.
O que ele procurava era um lugar onde pudesse orar a Deus sem ser
perturbado. Sendo judeu, tinha acesso ao pátio externo do templo e
podia ir até lá na hora de oração, pela manhã ou à tarde. Só desejava
um lugar onde pudesse permanecer afastado dos outros que ali vinham
para orar.

O publicano ouviu a Palavra de Deus, que o convenceu de seus


pecados. Sua consciência o estava incomodando; precisava de ajuda
espiritual. Queria chegar até Deus, mas estava sobrecarregado pelo
peso de sua própria indignidade diante de Deus e do homem. Nem
mesmo se atrevia a erguer os olhos para os céus, apenas ergueu as
mãos, em oração (1 Tm 2.8). Sentia vergonha pelos pecados cometidos
contra Deus e contra o próximo. Empregado dos romanos, era objeto de
desprezo e zombaria entre seu próprio povo. Sabia que os tinha
prejudicado, de tal modo que o viam como ladrão e traidor. Não se
surpreendia que os fariseus o considerassem pecador e transgressor da
lei de Deus.

A dívida que o coletor de impostos tinha para com o povo que ele

509 Berakoth 28b, Zeraim, The Babylonian Talmud, p. 172.


enganava era enorme. Ele não tinha possibilidade de pagá-la, e, além
disso, nem mesmo era capaz de se lembrar de quantos tinha
enganado510. A Lei fala claramente do pecado do roubo mediante fraude,
quando diz: ―Quando alguma pessoa pecar, e cometer ofensa contra o
SENHOR, e negar ao seu próximo o que este lhe deu em depósito, ou
penhor ou roubo, ou tiver usado de extorsão para com o seu próximo...
restituirá aquilo que roubou, ou que extorquiu, ou o depósito que lhe foi
dado, ou o perdido que achou, ou tudo aquilo sobre que jurou
falsamente; e o restituirá por inteiro, e ainda a isso acrescentará a
quinta parte; àquele a quem pertence, lho dará no dia da sua oferta pela
culpa‖ (Lv 6.2-5). O publicano não tinha coragem para aproximar-se do
altar e dirigir-se ao sacerdote com sua oferta pela culpa. Ficou próximo
do altar. Não tinha para onde ir a não ser para Deus, em oração.

Por causa de sua profissão tinha negligenciado a adoração a


Deus, na sinagoga e no templo. Agora, era chegado o momento de
confessar seus pecados diante de Deus, mesmo que não pudesse pensar
em apresentar sua oferta pelas suas culpas. Seus débitos para com o
povo eram grandes e variados demais. Pecara excessivamente para
poder fazer uma oferta pela sua culpa. Tudo o que podia fazer era orar a
Deus. Mas, porque negligenciara, por tanto tempo, sua vida espiritual,
nem mesmo sabia orar. Faltavam-lhe palavras de louvor, adoração e
gratidão. O fardo do pecado o oprimia. Queria expressar sua culpa e só
conseguia clamar por misericórdia. Rogava: ―Ó Deus, sê propício a mim,
pecador!‖ E, enquanto pedia, batia no peito como querendo mostrar a
fonte do pecado — seu coração.

O pecador, como o publicano chamava a si mesmo, chegou diante


de Deus com as mãos vazias. Não apresentava méritos, nem exigências.
Não usou desculpas ou explicações. Comparar-se a outros estava fora
de cogitação. Ele sabia que era o pecador implorando misericórdia. Seu
grito: ―Ó Deus, sê propício a mim‖ era um pedido para que Deus
perdoasse seus pecados e afastasse dele a sua ira511. Pedia misericórdia,
e era tudo o que se atrevia a pedir512. Orou e esperou pela resposta de
Deus.

Respostas

Na afirmação final, Jesus revelou como Deus respondeu às


orações do fariseu e do publicano: ―Digo-vos que este (o publicano)
desceu justificado para sua casa, e não aquele (o fariseu)‖. Deus ouviu e
respondeu ao grito angustiado do pecador em agonia espiritual.

As pessoas que cercavam o fariseu certamente o consideravam

510 Jeremias, Parables, p. 143.


511 Consulte-se o estudo sobre o verbo hilaskomai, de F. Büchsel, TDNT III:316. The
Modern Language Bible (New Berkeley) fornece uma tradução literal do texto grego:
―Deus, tem misericórdia de mim, pecador‖ (Lc 18.13).
512 Manson, Sayings, p. 312.
um santo que se esforçava diligentemente para obedecer a lei de Deus.
Acreditavam que Deus ouviria sua oração porque era uma expressão de
gratidão. Por outro lado, a oração do coletor de impostos não estava
acompanhada da exigida oferta pela culpa e não poderia receber
aprovação. Se alguém fosse chamado a julgar as duas orações,
provavelmente elogiaria o fariseu, e condenaria o publicano513.

Deus ouviu as orações e sondou os corações dos dois homens. O


do fariseu era auto-suficiente, enquanto que o do publicano era
completamente vazio de autoconfiança. O fariseu se justificava diante
de si mesmo e, portanto, não tinha necessidade da misericórdia de
Deus. Ele tinha obedecido à Lei e não tinha consciência de quaisquer
pecados de comissão ou omissão. O publicano, no entanto, se dirigiu a
Deus usando a primeira linha do Salmo 51,o salmo penitencial de Davi.
Orou usando a própria linguagem das Escrituras: ―Compadece-te de
mim, ó Deus...‖ (Sl 51.1)514. Ao seu pedido acrescentou a palavra
―pecador‖, mas, mesmo nessa palavra ressoa o sentimento do salmo de
Davi. Deus responde à oração feita segundo as Escrituras.

O publicano voltou para casa justificado diante de Deus, disse


Jesus. O homem que se chamou de ―pecador‖ confiou inteiramente na
misericórdia de Deus515. Sua atitude em relação a Deus foi correta e,
por isso, foi aceito como filho de Deus, no reino dos céus. Confiou
simplesmente em seu Deus, que não desapontou sua fé. Diante de
Deus, o publicano estava absolvido. O fariseu, não. Um voltou
santificado; o outro como um pecador.

Jesus concluiu a parábola do fariseu e do publicano com as


mesmas palavras que usou para a parábola dos lugares à mesa: ―Pois
todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado‖
(Lc 14.11).

A aplicação da parábola não é limitada nem pelo tempo, nem pela


cultura. ―Fariseus‖ e ―publicanos‖ são encontrados nas igrejas de hoje.
Se olharmos no espelho da Palavra de Deus, podemos vislumbrá-los em
nossa própria vida. Jesus ensina que a verdadeira humildade leva à
exaltação. Ele nos diz que olhemos apenas para ele ao buscarmos a
salvação. Quando estamos conscientes de nossa própria insignificância
diante de Deus e pedimos misericórdia, Deus perdoa nossos pecados e
nos salva através de seu Filho. Nas palavras de Paulo: ―Cristo Jesus
veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal‖
(1 Tm 1.15).

513 Mànek, Frucht, p. 113; Linnemann, Parables, p. 61.


514 Jeremias, Parables, p. 144.
515 F. F. Bruce: ―Justification in Non-Pauline Writings of the New Testament‖, EQ 24

(1952): 68.
40. As Dez Minas

Lucas 19.11-27 ―Ouvindo eles estas coisas, Jesus propôs uma parábola,
visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de Deus havia
de manifestar-se imediatamente. Então, disse: Certo homem nobre
partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino e
voltar. Chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes:
Negociai até que eu volte. Mas os seus concidadãos o odiavam e
enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este
reine sobre nós. Quando ele voltou, depois de haver tomado posse do
reino, mandou chamar os servos a quem dera o dinheiro, a fim de saber
que negócio cada um teria conseguido. Compareceu o primeiro e disse:
Senhor, a tua mina rendeu dez. Respondeu-lhe o senhor: Muito bem,
servo bom; porque foste fiel no pouco, terás autoridade sobre dez
cidades. Veio o segundo, dizendo: Senhor, a tua mina rendeu cinco. A
este disse: Terás autoridade sobre cinco cidades. Veio, então, outro,
dizendo: Eis aqui, senhor, a tua mina, que eu guardei embrulhada num
lenço. Pois tive medo de ti, que és homem rigoroso; tiras o que não
puseste e ceifas o que não semeaste. Respondeu-lhe: Servo mau, por
tua própria boca te condenarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que
tiro o que não pus e ceifo o que não semeei; por que não puseste o meu
dinheiro no banco? E, então, na minha vinda, o receberia com juros. E
disse aos que o assistiam: Tirai-lhe a mina e dai-a ao que tem as dez.
Eles ponderaram: Senhor, ele já tem dez. Pois eu vos declaro: a todo o
que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado.
Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu
reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença‖.

Quando Jesus estava indo para Jerusalém, as pessoas


acreditavam que o reino de Deus estava preste a vir. Durante seu
ministério de cura e ensinamento, Jesus tinha curado cegos, limpado os
leprosos e ressuscitado Lázaro, além de pregar as boas-novas516.
Acompanhando Jesus a Jerusalém, o povo esperava que o reino de
Deus se tornasse uma realidade.

Jesus sabia que o povo não tinha entendido a vinda do reino, em


termos espirituais. Não puderam ver que ele não seria, nem poderia ser,
um rei terreno, no reino de Deus. Para ajudá-los a entender a
implicação do reino, Jesus contou a parábola das minas. Fez isso se
referindo indiretamente a acontecimentos ocorridos há mais de trinta
anos atrás e que estavam gravados em suas memórias.

A História

O povo de Israel se lembrava com nitidez das calamidades


infligidas aos judeus durante os festejos da Páscoa do ano 4 a.C., no
pátio do tempo de Jerusalém. Herodes, o Grande, morrera não muito

516 Mt 11.5,6; Lc 7.22.


antes da festa da Páscoa, e em seu testamento tinha determinado que
Arquelau fosse o rei517. No entanto, o reinado de Arquelau não se
tornaria efetivo até que César o aprovasse. Antes que o novo escolhido
pudesse viajar para Roma a fim de ser oficialmente coroado rei —
embora oficiais e soldados o aclamassem como tal —, um distúrbio sem
importância, no pátio do templo, degenerou em um banho de sangue no
qual três mil judeus foram mortos pelos soldados de Arquelau. Em
conseqüência, Arquelau ordenou que todos os judeus voltassem para
suas casas; eles deixaram a festa da Páscoa e partiram.

Enquanto Arquelau foi a Roma, seus oficiais ficaram no comando.


Em vista dos tumultos e da violência no país, Arquelau tinha pressa de
se apresentar diante de César para se defender. Cinqüenta deputados
judeus procuraram o imperador romano pleiteando a autonomia de
Israel e acusando Arquelau de assassinar três mil de seus compatriotas,
no pátio do templo, em Jerusalém. Esses cinqüenta deputados tiveram
o apoio de mais de oito mil judeus, em Roma518. Pediram a César que
seu país fosse entregue a governadores, e não a Arquelau.

Depois de alguns dias de deliberação, César indicou Arquelau


como o etnarca da Iduméia, Judéia e Samaria, e prometeu fazê-lo rei se
provasse capaz. Para o povo, no entanto, Arquelau, bem como seu
irmão Antipas (que governava a Galiléia e a Peréia, como tetrarca) eram
considerados reis519.

Arquelau deve ter passado tempo considerável em Roma, porque


foi envolvido em pelo menos dois litígios diante de César: um contra
seus parentes próximos, que queriam reclamar dele o trono, e outro
contra os cinqüenta deputados judeus que pleiteavam autonomia.
Também em Jerusalém os judeus se revoltaram, durante a ausência de
Arquelau. Por ocasião da festa de Pentecostes, em 4 a.C., eles tentaram
obter a independência nacional.

Quando Arquelau, afinal, voltou para tomar posse de sua


etnarquia, aplicou punição exemplar. Assim, o sumo sacerdote Joazar
foi afastado de seu posto por ter dado apoio aos judeus rebeldes.
Arquelau foi extremamente rude no trato não só com os judeus, mas
também com os samaritanos520. Por suas ações, ele se tornou o mais
odiado dos governantes e, por causa das queixas contra ele, foi afastado
do cargo e banido em 6 a.D. Depois de seu reinado, Iduméia, Judéia e
Samaria passaram a ser administradas por governadores. Mas o povo
tinha recordações bem vivas do reinado de Arquelau.

517 Josephus, War 1:668; Antiquities 17:194.


518 Josephus, War 2:80; Antlqulties 17:300.
519 José levou Jesus e Maria para Nazaré e não para Belém, porque Arquelau reinava

(basileuei) na Judéia, Mi 2.22. Em Mc 6.14,22,26 Herodes Antiquas é chamado de rei.


M. Zerwick, ―Die Parabel vom Thronanwãrter‖, Bib 40(1959): 662.
520 Josephus, War 2:111; Antiquitics, 17:339.
A Parábola

Ao se aproximar de Jerusalém, junto com numerosos peregrinos,


para a festa da Páscoa, Jesus tinha apenas que dizer: ―Certo homem
nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um
reino, e voltar‖, e todo o povo sabia que ele se referia a Arquelau. Eles se
recordavam do massacre de três mil judeus, durante as celebrações da
Páscoa, três décadas atrás. Jesus continuou a chamar a atenção para
esse incidente. Ele disse: ―Mas os seus concidadãos o odiavam, e
enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este
reine sobre nós. Quando ele voltou, depois de haver tomado posse do
reino, mandou chamar os servos‖.

Jesus se referiu à história recente para estabelecer o cenário de


seu ensino sobre o reino de Deus. ―Certo homem nobre‖, Jesus disse,
―chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes: Negociai
até que eu volte‖. A quantia era equivalente a três meses de salário521.
Não era uma quantia excessiva, o que cada um dos servos recebeu, mas
era suficiente para provar sua fidelidade ao rei. A instrução que cada
um recebeu a seguir foi: ―Negociai até que eu volte‖. O rei esperava que
seus servos soubessem administrar a relativamente pequena soma de
dinheiro, para, assim, obter lucro, por ocasião de sua volta. A ordem
deve ser vista e entendida no contexto da cultura oriental da época,
quando o comércio e a barganha faziam parte do dia-a-dia.

A ausência de quaisquer termos de contrato pode indicar a


intenção de ludibriar a lei divina contra a usura. Muitas vezes, Deus
repetira a seu povo que não cobrasse dos seus concidadãos juros de
usura522. Mas, numerosos meios de fraudar a injunção tinham sido
postos em prática. Assim, enormes lucros eram obtidos em alguns
casos, principalmente quando o dinheiro era investido em negócios que
eram verdadeiras aventuras de alto risco. O primeiro servo investiu o
dinheiro e, quando seu senhor voltou, estava apto a lhe mostrar um
lucro de mil por cento. O segundo conseguiu um lucro de quinhentos
por cento523. Embora a parábola não mencione os lucros obtidos por
outros servos, o contexto deixa implícito que experimentaram vários
graus de sucesso. Do ponto de vista oriental, portanto, não era comum
alguém guardar seu dinheiro embrulhado num lenço em vez de pô-lo
para render. Negociar era parte da cultura.

Quando o rei voltou e convocou seus servos, se alegrou com a


fidelidade daquele que ganhara outras dez minas. Elogiou-o pela sua

521 Considerando as oscilações dos valores monetários, os tradutores expressam sua


equivalência em termos de um período de trabalho.
522 Ex 22.25; Lv 25.35-37; Dt 23.19.20; Ne 5.7; SI 15.5; Pv 28.8; Ez 18.8, 13, 17;

22.12.
523 Derrett, Law in the New Testament, p. 23, mostra que a cobrança de altas taxas

de juros não era incomum no mundo antigo. Como exemplo, se refere às taxas de
empréstimos cobradas por Catão, o Antigo.
diligência e sabedoria; chamou-o de ―bom‖ e o recompensou fazendo-o
responsável por dez cidades524. O segundo servo, após mostrar suas
cinco minas adicionais, recebeu proporcionalmente a mesma
recompensa. Foi colocado como responsável por cinco cidades. O
terceiro servo, ao devolver apenas a única mina que tinha recebido, foi
condenado.

Os três servos da parábola podem ser considerados como


pertencendo a três grupos. O primeiro, representa aqueles que obtêm
imensos lucros; o segundo aqueles cujo lucro é considerável; e o
terceiro, aqueles que não obtêm lucro algum. O terceiro servo, portanto,
é de um tipo completamente diferente525. Pode ser considerado um
servo inútil.

Quando o terceiro servo compareceu diante do rei e devolveu a


única mina, fez saber que ela não lhe pertencia, mas, sim, ao rei e que
ele a tinha guardado em segurança, embrulhada num lenço. Ele não a
gastara nem os ladrões a haviam roubado. O medo o impedira de pô-la
para render. Ele conhecia a natureza exigente do rei e podia descrever
minuciosamente suas características. Ele disse: ―Tive medo de ti, que és
homem rigoroso; tiras o que não puseste e ceifas o que não semeaste‖.
Sabia que seu senhor era agressivo, que não hesitava em tomar o que
não era seu. O servo tinha consciência de sua própria timidez. Temia a
dureza do rei. Esperava apenas que, devolvendo a soma intacta, o rei o
deixasse partir em paz.

O rei, no entanto, não ficou nem um pouco satisfeito com a


insolência do servo. Não entendeu o medo do servo e não teve paciência
com sua desculpa inepta. Podia-se ver refletido na descrição feita pelo
servo, mas se o servo acreditasse no que ele próprio dizia a respeito do
rei, deveria, ao menos, ter depositado, no banco, o dinheiro526.

O louvor e os elogios dirigidos aos dois primeiros servos se


tornaram escárnio e condenação para o terceiro. O rei, agindo agora
como juiz, disse ao servo que, com base em suas próprias palavras, ele
seria julgado. Se o servo sabia que seu senhor era um homem exigente,
deveria ter tido confiança na capacidade do rei de exigir dos banqueiros

524 Alguns estudiosos têm conjecturado se a palavra cidades entrou no texto por um
engano da palavra aramaica para talentos. Em aramaico, as duas expressões são
bastante semelhantes: cidades é kerakin e talentos é kakerin. E. Nestle sugere um
possível erro de leitura do texto, em um artigo publicado no Theologische
Literaturzeltung, nº 22, 1985. M. Black, Aramaic Approach, p. 2, defende a sugestão
de Nestle, embora Dalman, Words of Jesus, p. 67, tenha destacado que no paralelo de
Mt 25.21,23, os servos não recebem talentos, mas são colocados responsáveis por
muitas coisas. Lucas usa a palavra cidades para expressar o conceito geral de muitas
coisas. Além disso, um rei, tomando posse de seu reino, podia investir seus servos de
autoridade sobre cidades, o que não poderia (Mt 25) ser feito por um senhor.
525 Lucas usa o artigo definido masculino com heteros (= outro) no sentido de

―diferente‖. Plummer, St. Luke, p. 441.


526 Morris, Luke, p. 275.
o seu dinheiro com os juros devidos. Os banqueiros, com toda a certeza,
deveriam ter conhecimento de que o rei tirava o que não colocara e
colhia onde não havia semeado. Mas, embora reconhecesse que o rei
saberia exigir bons lucros dos banqueiros, o servo nem mesmo
considerou a possibilidade de depositar o dinheiro no banco.
Prontamente, orei o chamou de mau, querendo dizer que o servo era
incompetente, incapaz e inútil527.

A parábola é contada em tons fortes. O rei se dirige aos que


assistiam a cena: ―Tirai-lhe a mina, e dai-a ao que tem as dez‖. Eles
expressaram sua surpresa, ponderando ao rei: ―Senhor, ele já tem
dez528‖. A objeção à ordem do rei se refere ao fato do primeiro servo já
ter a maior soma de todos. Por que deveria receber a mina extra? Esta
ordem significa que o rico se tornará mais rico, e o pobre mais pobre?
Além disso, se o servo já tinha sido investido de autoridade sobre dez
cidades, iria se sentir recompensado recebendo a relativamente pequena
soma de uma mina? Afinal, todo o dinheiro que os servos receberam do
rei e aquele que ganharam negociando não seria depositado no tesouro
real? É fácil multiplicarmos as perguntas, mas a maior parte delas se
resolve se compreendemos o simbolismo que está implícito na parábola.

O dinheiro confiado aos servos foi-lhes entregue como um teste. O


rei queria experimentar sua lealdade e recompensá-los adequadamente.
Fez isso colocando um servo responsável por dez cidades e o outro com
a responsabilidade sobre cinco. Como recompensa à sua lealdade ao rei,
o primeiro servo recebeu o dinheiro do terceiro. Agindo assim, o rei
deixou claro que seu relacionamento com o terceiro servo estava
definitivamente acabado529. Mostrou, ainda, que punha total confiança
no primeiro servo, investindo-o da responsabilidade retirada do outro. O
total do dinheiro deve ser visto, então, em termos de responsabilidade.

O rei não respondeu diretamente aos que o cercavam530. Usando


uma expressão um tanto proverbial531, ele, implicitamente, disse-lhes
por que deu a mina ao servo que tinha as dez minas: ―A todo o que tem
dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado.‖ A
observação aponta para uma prática comum no mundo dos negócios.

527 G. Harder, TDNT, VI:547,554.


528 Pelo texto toma-se difícil definir se este versículo faz parte da parábola ou se foi
inserido por copistas a partir de anotações feitas à margem. No entanto, essas
testemunhas (por exemplo, D. W. 565 e algumas das versões latinas, siríacas e
cópticas) que omitem o versículo, podem tê-lo feito por causa do paralelo de Mt
25.28,29 (que não o apresenta) ou por razões estilísticas, a fim de providenciar uma
ligação mais estreita entre Lá 19.24 e 26. Com base em evidência externa e interna,
entretanto, parece melhor conservar o v.25, Metzger, Textual Commentary, p. 169.
529 Derrett, Law in the New Testament, p. 28.
530 A afirmação sobre quem fala em Lá 19.26, o rei ou Jesus, depende da interpretação

dada ao versículo anterior. Plummer, St. Luke, p. 443. Por causa da expressão ―eu vos
declaro‖, as palavras parecem refletir um comentário feito por Jesus, Marshall, Luke,
p. 708.
531 De modo semelhante a expressão ocorre em Mt 13.12; 25.29; Mc 4.25; e Lc 8.18.
Isto é, as pessoas prontamente emprestam dinheiro para aqueles cujo
retorno de capital mostra lucro substancial. Confiam num negócio de
sucesso porque sabem que o dinheiro investido trará dividendos. Mas,
quando os investidores sabem que a pessoa que está tomando
emprestado não consegue lucros sobre seu capital, depressa retiram a
quantia investida e reduzem, assim, ainda mais, o capital do
emprestador532. O dinheiro é entregue ao homem que corteja o sucesso
e tirado daquele que enfrenta a bancarrota.

Jesus terminou a parábola chamando a atenção para os


embaixadores que tinham protestado contra a escolha daquele rei.
Quando se apresentaram diante dele, o rei ordenou que fossem
executados. Não há registro de que Arquelau, ao voltar de Roma, tenha
mandado executar os cinqüentas judeus que tinham intentado contra
ele na corte de César. No entanto, é fato conhecido que ele afastou do
cargo o sumo sacerdote, por ter ajudado os rebeldes. Ele, também,
tratou o povo de modo mais cruel, depois de sua ida a Roma.

Interpretação

Em certo sentido, a parábola das minas é uma parábola sobre o


reino, embora não seja apresentada pela frase familiar: ―O reino dos
céus é semelhante...‖ A parábola, baseada em história verídica, foi
contada na ocasião quando o povo pensava que o reino de Deus estava
preste a vir. Da própria história recente, Jesus ensinou a seus
contemporâneos uma lição a respeito da vinda do reino.

A parábola pretendia ensinar ao povo que haverá um intervalo


entre sua primeira e segunda vindas. Como Arquelau partiu para Roma,
mas voltou, assim o Filho do homem partirá e, no tempo escolhido por
Deus, voltará. O rei deu a seus servos uma certa quantia de dinheiro,
com a ordem explícita de que a pusessem para render. Quando
assumiu a responsabilidade de governar sua etnarquia, chamou os
servos à sua presença, para prestarem contas de suas atividades. Do
mesmo modo, Jesus, ao partir da terra para o céu, dotou seus
seguidores com dons, e espera que eles operem esses dons do modo
mais fiel e fecundo durante sua ausência. Quando chegar o tempo de
seu retorno, ele convocará seus servos diante de si, para receberem
palavras de louvor e recompensa, ou condenação e punição severa533.

O reino de Deus existe no presente, mas é, também, um estado de


expectativa a ser cumprido. Ele é, portanto, agora, mas, ao mesmo
tempo, ainda não. Jesus, embora eternamente rei, trará seu reino à
realização plena, somente após a sua volta. Então outorgará aos servos
fiéis grandes oportunidades de servi-lo, e, proporcionalmente, fará punir

532Derrett, Law in the New Testament, p. 30.


533 Ridderbos, Coming of lhe Kingdom, p. 515, comenta que é difícil explicar ‗A
parábola das minas de qualquer Outro modo que não como uma referência à partida
de Jesus da terra para o céu, e a vocação dos discípulos na terra‖.
os servos indolentes e maus. Durante sua ausência Jesus dará ampla
oportunidade para o serviço, bem como para a rebeldia534.

Aquelas pessoas que acompanhavam Jesus em sua jornada para


Jerusalém não deviam ter pensado que o reino traria, imediatamente,
alegria e felicidade a todos. Deviam, antes, Ler pensado em termos de
um intervalo durante o qual seriam provados. Então, após o período de
provação, os que tivessem se rebelado, seriam punidos.

Ninguém, dos que ouviam Jesus, o identificaria com o cruel


Arquelau dos dias passados535. Mas, seus ouvintes eram capazes de
entender que o intervalo da ausência de Arquelau, de certo modo, era
um paralelo da partida de Jesus e seu subseqüente retorno.

Simplesmente, a parábola não pode ser interpretada em todos os


seus detalhes, porque isso nos levaria a um absurdo total. O objetivo da
parábola é este: todos os seguidores de Jesus recebem dons e
oportunidades para servir. Ninguém pode dizer que, por não ter a
habilidade de um teólogo treinado ou a eloqüência de um orador
talentoso, não pode servir ao Senhor. Tais argumentos não prevalecem.
A parábola ensina que todos os servos receberam uma mina e cada um
respondeu pelo dinheiro a ele confiado. Do mesmo modo, cada um dos
seguidores de Jesus foi dotado com dons e com oportunidades de
usarem esses dons para servir. De cada um é esperado que faça o
melhor possível. Logo, o tempo concedido por Deus, em sua
providência, estará findo, e, então, virá o juízo.

Eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que


tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras (Ap
22.12).

534
Plummer, St. Luke, p. 444.
535
Zerwick, ―Thrononwärter‖, p. 667.
Conclusão

As parábolas de Jesus são únicas no contexto das Escrituras.


Embora algumas parábolas tenham sido registradas no Velho
Testamento, nos Evangelhos o grande número de parábolas e de
declarações em forma de parábola é marcante. Alguns exemplos
encontrados no Velho Testamento indicam que o hábito de contar
histórias não era desconhecido. O profeta Natã, por exemplo, contou a
Davi a história de um homem pobre cuja cordeirinha lhe foi tomada por
um homem rico. A aplicação: ―Tu és o homem‖, foi bastante direta536.
Nos escritos dos rabinos, também encontramos o ensino em forma de
parábolas, mas é realmente difícil podermos atribuir mais que duas
parábolas a uma única pessoa537. Entretanto, estima-se que um terço
dos ensinos de Jesus foi feito em forma de parábola. Contando as
parábolas e as ilustrações figurativas, alguns estudiosos chegaram a um
total de sessenta delas538. Todas são chamadas de parábolas de Jesus.

Como, na conclusão de seu Evangelho, João escreve que nem tudo


que Jesus fez foi relatado (Jo 21.25), podemos presumir que nem todas
as parábolas contadas por ele foram registradas. Talvez algumas das
histórias atribuídas a Jesus, que encontramos em outras fontes que não
o Novo Testamento, sejam autênticas539. Também, ensinando oralmente
como os mestres de seus dias costumavam fazer, Jesus repetia o que
ensinava. Como mestre, ele tinha toda a liberdade para contar
determinada parábola mais que uma vez, de formas diferentes, em cada
caso. Quando viajou de Jericó para Jerusalém, a fim de celebrar a
Páscoa pela última vez, ele contou a parábola das minas, baseando-a na
circunstância histórica da ida de Arquelau para um país distante para
ser escolhido rei. Alguns dias mais tarde, Jesus contou a seus discípulos
a parábola dos talentos. As duas, sem dúvida, têm muito em comum,
embora apresentem finalidade e propósito diferentes.

Jesus não apenas contou as parábolas; contou-as muito bem.


Muitas delas se destacam por serem breves, e, mesmo sendo curtas, são
brilhantes. Jesus buscou seu material em diversas fontes. Às vezes,
voltava-se para o Velho Testamento — como fez na parábola da vinha e
dos lavradores maus, tomando seu tema do ―Cântico da Vinha‖,
registrado em Isaías 5. Em outras ocasiões, tirava seus exemplos
diretamente da época, cultura e meio ambiente em que vivia. Parábolas
como a do semeador, da figueira estéril e do juiz iníquo, são exemplos
disto. Jesus, também, se baseava em acontecimentos que eram bem
536 2 Sm 12.14. Outros exemplos são a parábola da mulher tecoíta (2 Sm 14.4-7): e a
mensagem de Jeoás a Amazias (2 Rs 14.9).
537 Hunter, Parables, p. 15.
538 T. W. Manson, The Teaching of Jesus (Cambridge: University Press, 1951), p. 69,

conta um total de sessenta e cinco parábolas. A. M. Hunter, Interpreting the Parables


(Philadelphia: Westminster Press, 1960), p. 11, apresenta o número como ―cerca de
sessenta‖.
539 J. Jeremias, Unknown Saylngs of Jesus (London: S. P. C. K., 1958), p. 2.
conhecidos daqueles que o ouviam: o nobre que partiu para um país
distante, para ser escolhido rei, e o homem desventurado que caiu nas
mãos de salteadores, na estrada de Jericó. Jesus é o Grande Mestre de
todas estas parábolas. Embora os evangelistas as tenham transmitido,
nas parábolas nos deparamos como os ensinamentos de Jesus. Elas são
suas. Isto é, não tiveram origem na mente de um evangelista540, e não
foram criadas pela comunidade cristã primitiva, que necessitava de uma
história particular, para com ela ilustrar o ensino de uma doutrina541. As
parábolas são originalmente de Jesus.

Naturalmente, os evangelistas registraram as parábolas de Jesus,


e, em seu ofício de escrever os Evangelhos, mostraram sua própria
individualidade. Diferenças de expressão, nos relatos paralelos das
mesmas parábolas revelam claramente o seu trabalho individual. Além
disso, o próprio fato de Jesus ter contado suas parábolas em aramaico,
enquanto que os Evangelhos as apresentam na língua grega, deixa claro
que o restabelecimento das palavras exatas de Jesus constitui um
problema542. A questão da origem, não a autoridade, em relação à
maneira específica de se expressar numa determinada parábola, nem
sempre é fácil de resolver. Se uma parábola foi registrada apenas por um
evangelista, a autenticidade das palavras de Jesus não precisa ser
discutida. Mas, quando uma parábola ocorre em relatos paralelos do
Evangelho e mostra variação na maneira de narrar, a questão do estilo
do evangelista, em particular, se torna real. Mateus, Marcos e Lucas
exibem suas próprias características e tendências, ao registrar as
parábolas de Jesus.

Características Gerais

O Evangelho de Marcos tem apenas seis parábolas, e, por isso,


não podemos falar muito sobre suas características. Dessas seis, apenas
uma é peculiar a Marcos: a da semente germinando secretamente. As
outras têm paralelos em Mateus e Lucas. São as parábolas do semeador,
do grão de mostarda, da vinha e dos lavradores maus, da figueira e do
servo vigilante. A parábola do servo vigilante, que não está registrada no
Evangelho de Mateus, é a única das seis de Marcos que não diz respeito
à natureza. De todas as parábolas de Jesus, Marcos selecionou cinco
que descrevem o crescimento, na natureza. Esta evidência parece indicar
que Marcos era uma pessoa ligada à vida rural.

O mundo de Mateus é amplo, e abrange de reis a servos. Ele


registra parábolas que descrevem ministros das finanças, construtores,

540 Jeremias, Parables, pp. 84-85, afirma que ―é impossível deixar de concluir que a
interpretação da parábola do joio é do próprio Mateus‖. Ele chegou a esta conclusão
baseando-se em considerações lingüísticas.
541 Jülicher, Gleichnisreden, 2:385406, considera a parábola da vinha e dos lavradores

maus, uma criação da igreja primitiva. Do mesmo modo, R. Bultmann, The History of
the Synoptic Tradition (New York: Harper and Row, 1963), p. 177.
542 Marshall, Eschatology and the Parables, p. 11.
um fazendeiro que emprega trabalhadores temporários, arrendatários,
pescadores, um joalheiro, uma mulher assando pão, um pastor, um pai
e seus dois filhos, um ladrão, crianças brincando, damas de honra e
convidados para um banquete nupcial. Estas parábolas focalizam
pessoas543, e Mateus se revela um homem interessado nelas.

Esse interesse é ainda mais pronunciado no Evangelho de


Lucas544. Nas parábolas que são próprias de Lucas, as pessoas, como
indivíduos, têm um lugar central: o amigo que chega à meia-noite, o filho
pródigo e seu irmão e pai, a mulher que perdeu sua moeda e o pastor
que encontrou sua ovelha, o rico e Lázaro, a viúva e o juiz, o fariseu e o
publicano e o samaritano cuidando da vítima dos ladrões. Através destas
parábolas, Lucas demonstra interesse em gente, como indivíduos, a
ponto de registrar nomes (Lázaro e Abraão), nacionalidade (samaritano) e
ocupação (coletor de impostos).

Lucas parece se movimentar entre pessoas comuns,


particularmente aquelas de recursos moderados. Os dois devedores
devem ao agiota um total de três meses de salário, o salário de seis
semanas cada um, e cada um dos dez servos recebe do senhor o
equivalente a três meses de salário. O fazendeiro tinha apenas um servo,
que ara seu campo e prepara seu jantar. Do mesmo modo, o homem que
prepara um banquete tem apenas um servo que chama os convidados, e
que traz para dentro de casa os pobres e os coxos. Os ricos, nas
parábolas apresentadas por Lucas, pertencem à classe média alta545. Um
fazendeiro, que tem excelente colheita e precisou construir celeiros
maiores para guardá-la, o homem que se vestia de púrpura e finos
linhos e vivia no luxo, o rico cujo administrador atiladamente diminuiu o
débito dos que deviam a seu senhor, e o pai que repartiu a herança por
causa do pedido do filho caçula. As parábolas de Lucas retratam gente
comum: um samaritano e seu jumento, o mendigo lambido pelos cães, o
pastor e seu rebanho, a mulher e sua moeda, a viúva fazendo seu pedido
e o publicano batendo no peito.

Ao contrário, algumas das parábolas de Mateus retratam a


grandeza, o esplendor e a extravagância. O ministro das finanças deve
ao rei uma quantia que vai a milhões, um homem confia um total de oito
talentos a três de seus servos, um rei prepara um banquete de núpcias e
envia servos para chamar os convidados e soldados para puni-los
quando se recusam a vir, e o proprietário de uma vinha envia seus
servos, em grupos, para recolher o lucro dos arrendatários. Muitos são
da mais alta classe social. Outros, como o mercador de pérolas e o
senhor que investiu seu servo de autoridade estão entre os
moderadamente ricos.

543 M. D. Goulder, ―Characteristics of the Parables in the Several Gospels‖, JTS 19


(1968): 52.
544 Morris, Luke, p. 40.
545
Goulder, “Characteristics of the Parables”, p. 55.
A seleção de parábolas peculiar a cada escritor dos Evangelhos
traz à luz algumas de suas características. Mateus trata de histórias de
interesse financeiro; Lucas é o homem voltado para os pobres e para o
cidadão da classe média; enquanto que Marcos, embora apresente
poucas parábolas, demonstra interesse pela natureza. Além disso, cada
escritor dispõe as parábolas mais ou menos em grupos. Em uma série
(Mt 13), Mateus inclui sete, que não são postas juntas por acaso. Essas
sete revelam um padrão definido546. Após a parábola introdutória, a do
semeador, as do trigo e o joio e da rede formam um par. Entre essas
duas, há dois conjuntos de parábolas gêmeas: primeiro, a do grão de
mostarda e a do fermento; então, a do tesouro escondido e a da pérola.
As parábolas que Mateus registra nos capítulos 24 o 25 de seu
Evangelho têm perspectiva escatológica. As parábolas da figueira, do
ladrão, do servo fiel e prudente, das dez virgens, dos talentos e a do
grande julgamento apontam nessa direção. Lucas, também, ordenou seu
material de tal modo que, com exceção das parábolas dos dois devedores
e das minas, as que lhe são peculiares se encontram na chamada
narrativa da jornada ou grande inserção de Lucas 9.51; 19.27. A
parábola das minas, que é a última das parábolas de Lucas, foi
estrategicamente colocada para servir de ponte entre a parte referente à
jornada de Jesus para Jerusalém e a do ministério de Jesus em
Jerusalém547.

Algumas parábolas, que foram registradas por mais de um escritor


do Evangelho, refletem a situação de vida na qual foram escritas548. Por
exemplo, na interpretação da parábola do semeador, especificamente
sobre a semente lançada em solo rochoso, Mateus e Marcos escrevem:
―... em lhe(s) chegando a angústia ou a perseguição por causa da
palavra, logo se escandaliza(m)‖ (Mt 13.21; Mc 4.17). Mas, em Lucas,
achamos: ―... na hora da provação se desviam‖ (Lc 8.13). Cada um, à sua
própria maneira, expressa a mesma verdade: em tempos de dificuldade,
as pessoas abandonam a fé. Semelhantemente, a parábola dos dois
fundamentos é relatada por Mateus em versão compreensível aos judeus
que viviam na Judéia ou Galiléia, e, por Lucas, numa versão apropriada
aos helenistas que viviam no estrangeiro.

Características Literárias

O estilo dos evangelistas difere, notadamente, com respeito às


parábolas por eles registradas. Enquanto o estilo de Marcos é bastante
simplista, o de Mateus, especialmente nas parábolas mais longas, é
marcado pelo uso de contrastes. De fato, as parábolas mais longas, no
Evangelho de Mateus, se apresentam em preto e branco549. Os

546 B. Gerhardsson, ―The Seven Parables in Matthew XIII‖, NTS 19(1972-73): 18.
547 Marshall, Luke, p. 401.
548 G. E. Ladd, ―The Sitz im Leben of the Parables of Matthew 13: the Soils, Studia

Evangelica, ed. F. L. Cross (Berlin: 1964), 2: 204.


549 Goulder, ―Characteristics of the Parables‖:, p. 56, quer incluir a parábola do

semeador, mas pode fazê-lo apenas baseando-se em sua interpretação nos capítulos
construtores edificam sobre a rocha ou na areia; o fazendeiro semeia
trigo, e seu inimigo semeia o joio, no mesmo campo; a rede apanha
peixes apropriados para o consumo e os que não o são; o rei se mostra
misericordioso, mas seu ministro das finanças, não; os trabalhadores da
vinha, contratados primeiro, murmuram, os contrastados mais tarde se
regozijam; dos dois filhos apenas um obedece ao pai; o servo em quem o
senhor confia pode ser fiel ou mau; cinco virgens são prudentes e cinco
são néscias; dois servos põem seus talentos para render e um enterra o
seu; no banquete nupcial todos os convidados estão apropriadamente
trajados, só um não está. Mesmo nas parábolas mais curtas, o contraste
fica evidente. As crianças que brincam na praça são alegres ou tristes.
Nas parábolas de Mateus as pessoas são sábias ou tolas, boas ou más,
fiéis ou indolentes.

Enquanto Mateus filma em preto e branco, Lucas usa a cor. Seus


personagens são coloridos, pitorescos e bem construídos. O samaritano
personifica a compaixão; o amigo que bate à porta do vizinho no meio da
noite, e a viúva que faz periódicas visitas ao juiz retratam a arte da
persistência. Isso não significa que Lucas evite os contrastes. Ele coloca
o sacerdote e o levita em oposição ao samaritano; o rico em oposição a
Lázaro; e o fariseu em contraste com o publicano. Mas Lucas apresenta
suas figuras com mais cor e detalhes que os outros evangelistas. No
Evangelho de Mateus, o bom e o mau são convidados para o banquete
das bodas. Na apresentação que Lucas faz da parábola da grande ceia,
os pobres, estropiados, cegos e coxos são bem-vindos. Na parábola dos
talentos, um dos servos enterra o seu. Em sua descrição da parábola das
minas, Lucas descreve um dos servos enrolando sua moeda em um
pedaço de pano. As pessoas que Lucas retrata são reais: pensam, falam
e agem. O mercador de pérolas não é descrito e, de certo modo, não tem
vida. O rico de Lucas, que obtém lucro numa colheita excepcional, é um
personagem que parece vivo. Ele fala consigo mesmo, faz planos e se
dispõe a agir. Mateus, geralmente, omite pormenores; apresenta um
mero esboço. É Lucas quem, por meio de sua pena ágil, acrescenta
profundidade e dimensão às parábolas.

Características Teológicas

Nas parábolas peculiares ao Evangelho de Lucas, o tema do


arrependimento e salvação é relevante. Lucas mostra de modo muito
mais claro que Mateus que Jesus chamou para a salvação os
marginalizados, os pobres, os perdidos e os desprezados550.

O tema apresentado em Lucas 19.10: ―Porque o Filho do homem


veio buscar e salvar o perdido‖, é exemplificado em várias parábolas de
Lucas. São os dois devedores, a ovelha perdida, a moeda perdida, o filho
pródigo e o fariseu e o publicano. A parábola dos dois devedores foi

seguinteS. A parábola em si não revela contraste.


550 A. Wikenhauser, New Testament lntroduction (New York: Herder and Herder,

1965), p. 217.
contada depois do incidente do Sábado, quando uma mulher entrou na
casa de Simão, o fariseu. Embora aos olhos do fariseu cumpridor da lei
fosse considerada desprezível, ela achou remissão de pecados e paz para
o seu coração. O filho desviado caiu em si numa pocilga imunda, voltou
para casa e foi reintegrado à família. O coletor de impostos, considerado
um marginalizado social pelo fariseu, bateu no peito, orou a Deus e foi
justificado. Há alegria no céu quando um pecador se arrepende; festa na
casa do pai, quando o filho volta; e paz no coração do proscrito, quando
Deus o justifica.

É Lucas que desenvolve o tema do amor de Jesus pelos pobres e


oprimidos. Quando os convidados se recusam a participar do grande
banquete, os pobres, estropiados, cegos e coxos são trazidos. Quando
ainda restam lugares vazios na casa, o servo recebe ordens para fazê-los
entrar. O pobre, que diariamente é carregado até ao portão da casa do
rico, é carregado por anjos até junto de Abraão, nos céus.

Lucas mostra que Jesus ama o pobre, mas adverte o rico para que
se arrependa e creia. A parábola do rico e Lázaro pretende retratar a
miséria da vida no além, do homem que na terra vivia no luxo sem se
importar com Deus e com o próximo. A parábola do rico que queria
armazenar seus bens materiais em celeiros maiores revela a pobreza nua
do homem que confia em suas riquezas e não em Deus. A parábola do
administrador infiel nos ensina a não dependermos de riquezas, mas a
distribuí-las para com elas fazer amigos e sermos bem-vindos nas
moradas eternas.

O amor ao próximo é um tema muito mais definido no Evangelho


de Lucas que nos outros. Através da parábola do bom samaritano, Lucas
indica que o conceito é ilimitado e sua aplicação universal. A ordem para
amar o próximo, portanto, transcende barreiras de raça, cultura, idade,
nacionalidade e língua.

Em pelo menos três parábolas próprias de seu Evangelho, Lucas


desenvolve o tema da fidelidade. O custo do discipulado é a lealdade
inabalável no cumprimento do dever. Na parábola do fazendeiro cujo
servo ara o campo durante o dia, prepara o jantar ao voltar para casa, e
nem ao menos recebe qualquer agradecimento, porque esta é a sua
tarefa diária, fica demonstrada claramente a devoção de todo o coração
com que um seguidor de Jesus o serve. A parábola do homem que queria
construir uma torre e aquela do rei que devia ir à guerra contra outro rei
ilustram o custo do discipulado. Seguir a Jesus significa desistir,
voluntariamente, de tudo; nada deve prevalecer ao discipulado.

Essa lealdade está expressa na parábola das dez minas. Nove


servos investem o dinheiro e cada um consegue receber algumas minas
a mais. Mas um deles guarda dentro de um lenço a sua mina e recebe
condenação pública por sua inutilidade. Os outros servos são elogiados e
recebem, como recompensa, grandes responsabilidades. O tema da
fidelidade é tratado, também, nas parábolas dos outros evangelistas. Isto
é, Mateus o aborda nas parábolas dos dois filhos, do ladrão, do servo
fiel, das virgens e dos talentos. Marcos se refere a ele na parábola do
servo vigilante.

Por fim, mas não menos importante, o tema da oração é exposto


em três parábolas de Lucas. O amigo que bate à porta do vizinho, à
meia-noite, e a viúva que procura sempre pelo juiz, são relatos paralelos.
As duas parábolas ensinam a doutrina da perseverança na oração, que
na comunidade cristã primitiva era resumida no preceito apostólico:
―Perseverai na oração551‖. A parábola do fariseu e do publicano menciona
a oração, embora basicamente se refira à justiça552.

Exceto pelos paralelos sinóticos do grão de mostarda e do


fermento, Lucas não tem qualquer parábola que ele apresente como uma
parábola sobre o reino. Marcos apresenta duas: a da semente
germinando secretamente e a do grão de mostarda. É Mateus quem
arrola as parábolas do reino. Um total de dez parábolas apresenta o
reino: a do trigo e do joio, a do grão de mostarda, a do fermento, a do
tesouro escondido, a da pérola, a da rede, a do credor incompassivo, a
dos trabalhadores na vinha, a das bodas e a das dez virgens. Também a
do semeador faz parte do contexto do ―conhecimento dos segredos do
reino dos céus‖, porque nela Jesus transmite um entendimento básico a
respeito da vinda do reino553.

Muitas das parábolas do reino, no Evangelho de Mateus têm, uma


perspectiva escatológica. A do trigo e do joio e a da rede são semelhantes
em sua conclusão: ambas falam da separação no juízo. Do mesmo modo,
a parábola das bodas termina com a expulsão do homem que não estava
vestido adequadamente. A das dez virgens e a dos talentos retratam
cinco moças tolas deixadas do lado de fora e um servo negligente que é
lançado nas trevas exteriores. Mateus conclui suas parábolas com a do
juízo final, na qual a separação das pessoas é comparada à separação
feita pelo pastor, que coloca as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua
esquerda.

À sua maneira metódica, Mateus agrupou um total de sete


parábolas no capítulo treze. Quatro delas podem ser consideradas dois
pares: a do grão de mostarda e a do fermento são similares; e a do
tesouro e a da pérola têm a mesma mensagem. No primeiro par, o poder
vitorioso da mensagem de salvação se expressa exteriormente no
crescimento da mostardeira e interiormente no crescimento da massa
levedada. No segundo par, ambas, a do fazendeiro que vendeu tudo o
que tinha para comprar o campo onde estava escondido o tesouro e a do
mercador que vendeu seus bens para comprar a pérola valiosa,
exemplificam a total submissão a Cristo e o valor infinito do reino.

551 Rm 12.12; Ef 6.18; Fp 4.6; C1 4.2; l Ts 5.17.


552 P. T. O‘Brien, ―Prayer in Luke-Acts‖, TB 24 (1973): 118.
553 Ridderbos, Coming of the Klngdom, p. 132.
Pela escassez de parábolas, no Evangelho de Marcos, é difícil
afirmar se ele selecionou as suas com um propósito teológico. Duas
delas têm motivo escatológico: a da figueira e a do servo vigilante. Nas
outras, ele demonstra a ação de Deus operando ou na natureza ou nas
relações humanas. São as parábolas do semeador, da semente
germinando secretamente, do grão de mostarda e dos lavradores maus.
De modo geral, podemos dizer que, em todas as parábolas de Marcos, o
poder e o governo de Deus ficam evidentes.

Destinatários e Resposta

Quem eram as pessoas que ouviam as parábolas quando Jesus as


contava em público, ou em particular? Elas podem ser classificadas em
três categorias: os discípulos, as multidões e os adversários de Jesus. A
maior parte delas foi endereçada às multidões ou aos discípulos554. De
acordo com Mateus, as multidões ouviram a parábola dos dois
fundamentos, a das crianças na praça, a do semeador, a do trigo e o
joio, a do grão de mostarda e a do fermento. Os discípulos ouviram a do
tesouro escondido e a da pérola, a da ovelha perdida, a do credor
incompassivo e a dos trabalhadores na vinha. Além dessas, foram
contadas aos discípulos, em particular, as parábolas escatológicas das
dez virgens, dos talentos e a do julgamento final. Os principais
sacerdotes e os anciãos do povo eram os adversários de Jesus. Eles
ouviram as parábolas dos dois filhos, dos lavradores maus e do
banquete nupcial, que se aplicavam a eles.

Lucas revela que Jesus, freqüentemente, enfrentava seus


oponentes, contando-lhes parábolas, até mesmo em suas próprias casas.
Em pelo menos cinco ocasiões diferentes, Jesus ensinou os fariseus,
mestres da lei. Na primeira vez, convidado para jantar na casa de Simão,
o fariseu, ele contou a parábola sobre os dois devedores. Em outra
ocasião, durante um jantar semelhante, um fariseu proeminente e seus
hóspedes ouviram a parábola de Jesus sobre o principal lugar à mesa, e
sobre a grande ceia. Na terceira vez, um doutor da lei pediu a Jesus que
lhe explicasse o significado da palavra próximo e ouviu como explicação a
história do bom samaritano. Em uma quarta ocasião, quando os fariseus
e doutores da lei murmuravam contra Jesus porque entrava na casa dos
―pecadores‖ e comia com eles, foram convidados a olhar no espelho das
parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo, para
verem, na perspectiva real, seu relacionamento espiritual com os
marginalizados. Uma vez mais, quando Jesus disse aos fariseus: ―Não
podeis servir a Deus e às riquezas‖, zombaram de Jesus porque amavam
o dinheiro, e, então, Jesus contou-lhes a parábola do rico e Lázaro.

554 Linnemann, Parables, p. 35, apesar de todas as evidências, afirma: ―Podem ser
encontradas apenas algumas poucas parábolas que Jesus dirigiu explicitamente aos
discípulos. A maior parte foi contada a seus oponentes, a homens que se ofendiam com
seu comportamento, ou se indignavam com o que ele dizia‖.
As multidões, escreve Lucas, se encantavam com as maravilhas
que Jesus operava, embora todos os seus adversários se
envergonhassem (Lc 13.17). As multidões ouviram as parábolas dos dois
construtores, do semeador, do rico tolo, do grão de mostarda, do
fermento, do construtor da torre e do rei guerreiro e a das minas. Os
discípulos eram instruídos em particular, através de parábolas, tais
como a do amigo que veio à meia-noite, a do juiz iníquo, a do servo
vigilante, a do ladrão, a do servo fiel e prudente a quem o senhor
investiu de autoridade, a do administrador infiel e a do fazendeiro e seu
servo.

Três das parábolas de Marcos foram ouvidas pelas multidões: a do


semeador, a da semente germinando secretamente e a do grão de
mostarda. Duas foram contadas, em particular, para os discípulos: a da
figueira e a do servo vigilante. Por fim, a dos lavradores maus foi dirigida
aos principais sacerdotes, doutores da lei e anciãos.

As parábolas que têm paralelos geralmente têm os mesmos


ouvintes, embora um evangelista possa ser mais específico que outro.
Assim, Mateus conta que a parábola do grão de mostarda e a do
fermento foram apresentadas às multidões (Mt 13.34); Lucas indica que
o povo se achava na sinagoga, o que inclui muitos dos adversários de
Jesus (Lc 13.10,17). A parábola da ovelha perdida foi dirigida aos
oponentes de Jesus (Lc 15.1), de acordo com Lucas, e a seus discípulos
(Mt 18.1), de acordo com Mateus. Não é de todo impossível que Jesus
tenha contado a parábola duas vezes, para ouvintes diferentes555. De
fato, isso foi o que aconteceu quando Jesus contou à multidão a
parábola das minas, ao se aproximar de Jerusalém, para sua última
Páscoa. Alguns dias mais tarde, ele usou o mesmo motivo para contar a
seus discípulos a parábola dos talentos.

A maior parte das parábolas de Mateus tem um apelo indireto.


Comumente são apresentadas com a sentença: ―O reino dos céus é
semelhante...‖ O reino é comparado a um semeador, à semente, a um
tesouro, a um mercador, à rede, a um rei ou dono de terras. Outras
parábolas são muito mais diretas, exigindo uma resposta pessoal. Jesus,
por exemplo, aplica a parábola sobre os dois fundamentos a ―todo
aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica‖. A mensagem
é — ouvir e, em resposta, agir. Na parábola de Mateus sobre o credor
incompassivo, é feito um apelo individual: ―Assim também meu Pai
celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão‖ (Mt
18.35). O mesmo apelo direto se expressa nas parábolas dos dois filhos,
da figueira, do ladrão, do servo fiel e prudente e das dez virgens. Nessas
parábolas, a resposta induzida aparece em forma de um chamado à

555 Jeremias, Parables, p. 41, admite a possibilidade de Jesus ter repetido suas
parábolas a mais de uma assistência. Ao mesmo tempo, insinua que Mateus e Lucas se
contradizem quando apresentam as palavras de Jesus como dirigidas a uma multidão,
em um exemplo, e aos discípulos em outro. Esse juízo parece um tanto sem propósito à
luz do ensinamento oral repetitivo usado por Jesus.
prontidão constante, e de uma exortação à vigilância e ao
arrependimento. A parábola dos lavradores maus provoca imediata
resposta negativa dos principais sacerdotes e fariseus; eles procuravam
prender Jesus.

As parábolas de Lucas, muito mais que as de Mateus, convidam a


uma resposta: a Simão, o fariseu, é feita uma pergunta sobre a parábola
dos dois devedores; ao mestre da lei, após ter ouvido a parábola do bom
samaritano, é dito: ―Vai, e procede tu de igual modo‖. Inúmeras
parábolas são contadas no contexto de situações que pedem respostas.
São as do rico tolo, que Jesus contou quando lhe foi pedido que dividisse
uma herança; a da figueira estéril que resultou de uma discussão a
respeito do pecado dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os
sacrifícios que eles mesmos realizavam; as parábolas sobre os lugares de
honra à mesa, e a grande ceia, que vieram em resposta ao convite que
Jesus recebera para jantar; as da ovelha, da dracma e do filho perdido,
que eram uma resposta aos fariseus e doutores da lei que desaprovavam
o fato de Jesus comer com os marginalizados; e a das minas, dirigida ao
povo que pensava que o reino de Deus estava preste a vir. Quando
ensinou sobre o administrador infiel, Jesus fez um apelo a seus
discípulos para que não ajuntassem tesouros materiais. Também, instou
com eles para que vissem o resultado da adoração ao dinheiro, na
parábola do rico e Lázaro. Na do juiz iníquo o apelo se refere à
perseverança na oração; na do fariseu e o publicano, à humildade diante
de Deus. Em muitas parábolas de Lucas, a mensagem básica é o
arrependimento dos pecados. Isso acontece nas da figueira estéril, da
grande ceia e na tríade dos perdidos: ovelha, a moeda e o filho pródigo.

Às vezes, as parábolas de Lucas envolvem os ouvintes através da


introdução ―qual de vós‖. Desse modo, os ouvintes são parte directa da
parábola e cada um é compelido a responder. A do amigo que vem à
meia-noite começa com a pergunta: ―Qual dentre vós, tendo um amigo...‖
As do construtor da torre e do rei guerreiro, da ovelha e da moeda
perdidas e a do fazendeiro e seu servo têm introduções semelhantes.
Quer a assistência consista de amigos ou adversários, a parábola que
começa com uma cláusula introdutória induz a uma resposta. Mateus
usa a pergunta insinuante: ―Que vos parece?‖ como modo de apresentar
as parábolas da ovelha perdida e a dos dois filhos.

Representação

Em seu evangelho, Mateus apresenta Jesus a seus leitores, como o


Cristo, o Filho de Deus. Não é, portanto, de todo surpreendente que, em
sua seleção de parábolas, Mateus tenha coletado muitas, nas quais a
representação de Jesus fique evidente. Assim, na aplicação da parábola
das crianças brincando na praça, é o Filho do homem que vem, comendo
e bebendo, e que é chamado de glutão, beberrão e amigo de publicanos e
―pecadores‖. Quando explica a parábola do trigo e do joio, Jesus se
identifica como o dono de terras. ―O que semeia a boa semente é o Filho
do homem‖ (Mt 13.37). Na dos lavradores maus, o filho do dono de terras
é enviado aos arrendatários e é morto por eles. O banquete das bodas
acontece porque o filho do rei está se casando. A parábola das ovelhas e
dos bodes é apresentada pela descrição do Filho do homem vindo em
sua glória, acompanhado de seus anjos, julgando as nações e separando
o povo.

Naquelas assim chamadas parábolas escatológicas, as referências


a Jesus são implícitas e explícitas. O porteiro tem que vigiar porque o
dono da casa pode voltar, à qualquer hora, durante a noite. A do ladrão
é mais direta em sua aplicação: ―Por isso ficai também vós apercebidos;
porque, à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá‖ (Mt 24.44).
As parábolas das dez virgens, dos talentos e das minas se referem à volta
iminente de Jesus.

Deus é apresentado como Pai em várias das parábolas de Mateus.


O rei, na do credor incompassivo, é a personificação de Deus, o Pai.
―Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes
cada um a seu irmão‖, diz Jesus em sua aplicação (Mt 18.35). Na
parábola dos dois filhos, um obedece e o outro desobedece ao pai. A
implicação é que os publicanos e as prostitutas, obedecendo a vontade
de Deus, o Pai, entram em seu reino. Ambas as parábolas, a dos
lavradores maus e a das bodas, retratam o pai enviando seu filho e o pai
preparando um banquete para o filho.

Embora a figura do pai seja apresentada por Lucas apenas na


parábola do filho pródigo, o terceiro evangelista apresenta algumas
parábolas nas quais Deus é diretamente mencionado. Assim, a vida do
rico tolo é exigida por Deus. O nome de Deus é citado várias vezes na do
juiz iníquo. E o fariseu e o publicano se dirigem a Deus, em oração.

É característico do Evangelho de Mateus representar Jesus em


muitas das parábolas — o que não acontece em Lucas. Do mesmo modo,
é Mateus quem destaca o papel de Deus Pai em várias de suas
parábolas. Lucas, ao contrário, enfatiza os relacionamentos entre
pessoas, como os exemplificados nas parábolas do bom samaritano, do
amigo à meia-noite, do filho pródigo e do rico e Lázaro.

Todos os escritores apresentam as parábolas de Jesus, mas cada


um emprega seu próprio talento, modo de ver e habilidade ao fazê-lo. No
entanto, a autoria das parábolas é de Jesus. Ele as criou, ele fala através
delas, e nelas se torna conhecido dos homens. Assim, as parábolas,
ainda que chegando até nós na forma apresentada pelos evangelistas,
nos dão a certeza de que, na verdade, ouvimos a voz de Jesus.
Bibliografia Selecionada

Comentários

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Contra Capa

As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como o primeiro


do autor – Simon Kistemaker-, que esta Editora produz e oferece ao
público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de língua
portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos dados
informativos, este autor ainda não é lido via língua portuguesa, não
obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo teólogo e
expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além de outras
obras de sua autoria particular, o Autor também forma parceria com
Willian Hendriksen na série Comentário do Novo Testamento, que ora é
publicado por esta Editora. De sua autoria é Hebreus, Pedro e Judas,
Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos (este último já se acha em
preparação em dois volumes, e em breve virá a lume.

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