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Nelson Rodrigues

OITENTA
MILHÕES DE
VENDIDOS
Há um grupo teatral chamado Opinião. Vocês
o conhecem e já provaram o talento de seus
artistas e dos seus textos. Mas vejam que nome
simples, despojado, sem ênfase. Apenas Opinião e
nenhum ornato, nenhum arabesco. Em outros
tempos, seus fundadores teriam escolhido um título
mais enfeitado do que um índio de carnaval. Em
vez de Opinião, seria algo assim como Estrela
Matutina, Rosa de Cetim ou Os Amantes da Arte.
Este último coincide, exatamente, com o gosto das
velhas gerações.
Os Amantes da Arte seriam o Ferreira
Gullar, o Oduvaldo Viana Filho e uns poucos mais.
Entre parênteses, o citado Viana é em verdade
Vianinha, ou seja, o único diminutivo nato que se
conhece em qualquer idioma. O Viana já nasceu
Vianinha e para todo o sempre. Certa vez, o
Vianinha escreveu para um amigo e assinou
“Viana”. O destinatário achou que estava lendo
uma vil carta anônima.
Eis o que eu queria dizer: – considero
Opinião um nome impróprio e, repito, um nome
alienado. Com as técnicas modernas de promoção,
o homem cada vez pensa menos. É o jornal, é o

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rádio, é a televisão, é o anúncio, é o partido que
pensa por nós. Nós “achamos” o que os outros
“acham”. A “opinião” deixou de ser um ato
pessoal, uma posição solitária, um gesto de orgulho
e desafio. Há sujeitos que nascem, envelhecem e
morrem sem ter jamais ousado um raciocínio
próprio. Há toda uma massa de frases feitas, de
sentimentos feitos, de ódios feitos. Ainda outro dia,
ouvi um sujeito falar sobre a França. Inflexionava
como as manchetes.
O sujeito que opina por conta própria, que
simplesmente opina por conta própria, tem algo de
suicida. Em verdade, ele se compromete ao infinito.
E se a opinião não existe, e se ninguém a tem,
entendo que o grupo de Ferreira Gullar e do
Vianinha devia chamar-se, realmente, Rosa de
Cetim ou Os Amantes da Arte. Dito isto, passo ao
tópico seguinte.
Eis o que importa ressalvar: – uma opinião,
mesmo repetida, significa um risco pessoal e
patético. Sem o querer, o sujeito pode pôr em jogo
a própria salvação. É o que acontece com certo
professor da PUC que será o grande personagem
desta crônica. Explico por que não lhe direi o

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nome. Certo diretor de jornal era contra o ponto-
parágrafo. Doutrinava ele: – “É um espaço
perdido”. O nome do professor referido gastaria
um espaço irrecuperável. Direi apenas que é de
meia-idade, católico “pra frente”, amigo de d.
Hélder e do dr. Alceu, paladino das pílulas, do
amor livre. Em suma: – um progressista.
Muito bem. E uma de suas aulas recentes foi
sobre ou, melhor dizendo, contra o imperialismo.
Aliás, não foi bem contra o imperialismo e sim
contra os Estados Unidos. Partia ele do seguinte
princípio, a saber: – o americano compra tudo. E,
para não ficar no vago, no incorpóreo, no
indeterminado, ele cita o exemplo concreto do sr.
Café Filho. Conta que os Estados Unidos
resolveram dar um golpe, aqui no Brasil. Café era,
então, presidente da República e, como costumam
ser os nossos presidentes, um lacaio do
imperialismo yankee. Podemos imaginar a cena.
Chega o americano atirando patadas truculentas
em todas as direções. Pergunta: – “Quanto queres,
ó Café, para dares um golpe?”. O nosso presidente
limpa um pigarro, olha para o teto e diz uma
quantia. Como bom comprador, o americano não

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vai no primeiro lance. Pechincha: – “Tu te
esqueces, ó Café, que o presidente brasileiro é o
mais barato da América Latina?”. E, então, para
não perder o freguês, o sr. Café Filho teve de fazer
um abatimento.
Ao embolsar a meia dúzia de dólares, o então
presidente da República ainda suspira: – “Vou ter
que rachar com alguns generais”. Daí partiu ele
para dar o golpe. Pelas razões que todos conhecem,
houve o fracasso total.
Mas justiça se lhe faça: – o sr. Café Filho foi
um corrupto honesto. Fez o diabo para servir ao
patrão. Eis a pergunta que cabe fazer: quem era,
para o professor da PUC, o nosso Café Filho? Um
sujeito que tomava dinheiro dos americanos para
trair o Brasil. Essa torpe imagem presidencial foi
oferecida a quarenta ou cinqüenta jovens de ambos
os sexos. Imaginem a idéia que, imediatamente,
essa platéia imatura passou a fazer do Brasil e do
brasileiro.
Ora, o presidente da República é uma faixa, é
uma casaca, é uma cartola, é o Hino Nacional. Por
outro lado, ele não pode ser apenas uma pose. É
preciso que, por trás da pose, exista uma noção

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qualquer de honra. E vem um professor da PUC e,
com um frívolo piparote, põe por terra toda uma
série de nobilíssimos valores. Em sua aula, ele
dava uma opinião sobre este país, sobre todos nós
e cada um de nós, sobre os nossos costumes e a
nossa alma. Se o presidente da República se
vendia, com tão cordial e risonha facilidade, e,
ainda mais, por um preço de avenida Passos – que
dizer dos outros? Sim, os ministros também
deviam estar na gaveta. Afinal, um ministro
também precisa pagar o sapato da mulher e o leite
do caçula. E os não-presidentes, os não-ministros?
Nós, os barnabés, os funcionários, os bancários, os
intelectuais, os estudantes – seríamos outros
tantos corruptos, e baratíssimos.
Cada aluno do citado professor há de ter a
seguinte imagem do Brasil: – uma nação fazendo
fila na embaixada norte-americana. São homens e
mulheres deste país. Sujeitos berram: “Eu sou
barato! Eu sou barato!”. Grã-finos, de mãos postas,
soluçam: – “Me comprem! Me comprem!”. Mas eis
o que me pergunto: o tal professor tem mesmo
essa opinião? Não. Ele a recolheu nas esquinas,
nos botecos, nos salões, nos consultórios, por toda

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a parte, Ah, o brasileiro continua sendo aquele
Narciso às avessas que cospe na própria imagem.
A nossa tragédia é que não temos um mínimo de
auto-estima.
Pois bem. O que o homem disse não passa de
uma espantosa mentira, de uma hedionda calúnia.
E pelo contrário: – uma das coisas lindas desta
terra é a pobreza do ex-presidente. Vocês, decerto,
já ouviram falar daquele sujeito que entrou pobre
na Sicília rica e saiu rico da Sicília pobre.
Inversamente, o sr. Café Filho entrou pobre
na Presidência e saiu mais pobre. Mesmo quando
substituiu Getúlio, era um pau-de-arara. Nunca, em
momento nenhum, deixou de ser o pau-de-arara.
De casaca e pau-de-arara, de cartola e pau-de-
arara. E quando deixou de ser presidente, teve de
arranjar, às pressas, um emprego. Do contrário, ia
morrer de fome. E se, por fatalidade, perder esse
emprego, terá que se fingir de cego e postar-se na
esquina da Ouvidor. Cada um de nós pingará então
uma moeda no seu pires de falso cego. De mais a
mais, a pobreza do sr. Café Filho é um caso de
constatação visual. Façam-no sorrir. É a dentadura
mais feia e, ao mesmo tempo, mais comovente do

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Brasil. Repito: – como pobre vocacional, ele não
teve dinheiro, nunca, para arranjar um protético
melhor.

O GLOBO, 28. 05. 1968

APEDEUTEKA GUINEFORT 0010

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