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INVISÍVEIS
O Grande Khan tentava identificar-se com o jogo: mas agora era o motivo do
jogo que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda;
mas do quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei
derrubado pelas mãos do vencedor, resta um quadrado preto ou branco. Com o
propósito de desmembrar as suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai
atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, diante da qual os multi-
formes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a
uma tessela de madeira polida: o nada... (CALVINO, 1990: 112-113).
...O Grande Khan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo
que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda: mas do
quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei derrubado
pelas mãos do vencedor, resta o nada: um quadrado preto ou branco. À força
de desincorporar suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai atingira o
extremo da operação: a conquista definitiva, da qual os multiformes tesouros
do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a uma tessela de
madeira polida. (CALVINO, 1990: 121).
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando
este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o
imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com
maior curiosidade e atenção do que qualquer outro de seus enviados ou
exploradores. (CALVINO, 1990: 9)
No meu quarto, somos vinte e seis pessoas: para mover os pés, preciso incomodar
os que estão agachados no chão, abro espaço entre os joelhos daqueles sentados
sobre a cômoda e os cotovelos daqueles que se revezam para se apoiar na cama
– todas pessoas gentis, felizmente. CALVINO, 1990: 133)
Nesses exemplos nota-se que os lugares não são determinados por palavras
que indiquem um referente (este espaço, aquela rua, no país tal), pois a ideia
é que eles revelem-se ao leitor como passagens de um mundo a outro. São
imagens e territórios visitados na imaginação, capturados pelos sentidos
e armazenados num espaço da mente. As cidades não possuem anatomia
absoluta, cada narrativa é uma viagem através da memória. Para percorrê-
las, precisamos superar a cisão que normalmente há entre o olhar e o
mundo, permitindo-nos conhecer um universo jamais visto, um universo
que se desdobra, que se cria em movimentos muitas vezes caóticos, num
fluxo vertiginoso de imagens entrelaçadas em circuitos de comutações.
A descrição das cidades não se detém em detalhar seus aspectos
mais pitorescos, e sim de liberá-las do torpor da representação do real e
multiplicar suas dobras, construindo um texto dilatatório. Observando os
espaços em que as cidades se proliferam, vemos que cada uma surge num
território diverso a ser explorado: montanhas, covas, sótãos, torres, fossos,
canais, planaltos, subsolos, lagos, o céu, rios, mares, o ar, a terra, a chama
que arde, um mundo que “a un sens et il fault le découvrir ou il n’en a pas
et il fault le constater, le dire” (DAROS, 1997: 42). Cidades escondidas nas
construir uma cidade, uma nova casa, é imitar mais uma vez e, em certo sentido,
repetir a criação do mundo. Com efeito, cada cidade, cada casa, encontra-se
no ‘centro do universo’ e, nessas circunstâncias, a sua construção só é possível
graças à abolição do espaço e do tempo profanos e à instauração do espaço e
do tempo sagrados. A casa é um microcosmos, do mesmo modo que a cidade
é sempre uma imago mundi.
Pietro Citati (1990: 50) nos convida a olhar a obra de Calvino tateando
por entre esses espaços tentaculares que ele próprio cria e abandona ao
sabor do leitor, “ouvre des parenthèses dans les parenthèses, qui s’insinuent
et s’enchevêtrent les unes dans les autres,” uma estratégia que confirma que
Calvino
rEfErêNciAs BiBLioGráficAs
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio da Costa Leal
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