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2005
II
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................................1
complexo. Esse é o procedimento mais comum. Mas nada impede que se comece pelo mais
complexo para, depois, ir percorrendo os estudos de modo relativamente aleatório como
quem visita lugares desconhecidos com a atenção aberta e a sensibilidade acesa. Por meio
desse procedimento, muito atual nesta nossa era das configurações hipermidiáticas, o
conhecimento vai se perfazendo de modo a-seqüencial, através de conexões que são
movimentadas pela bússola da curiosidade e do interesse intelectual. Esse procedimento
poderia ser chamado de motivacional. Quando é empregado, saímos de um texto complexo
com a cabeça tão cheia de interrogações, inquietudes e enigmas que somos colocados,
mesmo sem termos consciência disso, em estado de alerta para o futuro.
Aos que já estão iniciados no assunto, o livro é um deleite e, ao mesmo tempo, uma
instigação, um desafio e um convite ao debate e, até mesmo, ao combate, pois a obra é
inegavelmente polêmica, no sentido mais rico desse adjetivo. Argumentos ousados -- e
corajosos na desconstrução de confortáveis clichês -- são inteligentemente elaborados para
morder o espírito do leitor, obrigando-o a reagir dialogicamente.
Não me demorarei aqui na apresentação do conteúdo do livro, pois isso já está
claramente explicitado na introdução do autor. Limito-me a acentuar que o livro está
recheado de interrogações cruciais, diagnósticos lúcidos e propostas originais. Entre eles
destacam-se, por exemplo, interrogações sobre o futuro que a ascendência da neurociência
cognitiva trará para a sobrevivência da filosofia da mente. Os diagnósticos giram, por
exemplo, em torno da falsa equiparação entre a proposta funcionalista e o modelo
computacional da mente. Giram também em torno da falsa obsolescência da inteligência
artificial diante das novas faces que ela apresenta na robótica atual. As propostas são
muitas. Entre elas merece nota a utilização de lógicas não clássicas, paraconsistentes, na
teoria da computação como meio de superação de discussões estéreis que vêm assombrando
o cenário da ciência cognitiva desde a última década.
Enfim, o livro está recheado de problematizações como, por exemplo, aparecem na
corajosa crítica à tão celebrada teoria neurobiológica das emoções de Antonio Damásio, à
luz, nada mais, nada menos, do que a ontologia da emoção presente na obra Esboço de uma
teoria das emoções, de Sartre. Aparecem também na remoção dos preconceitos, para o
autor injustificados, contra o behaviorismo radical de Skinner e na conseqüente proposta de
uma reavaliação dessa teoria frente às preocupações com o comportamento, a
VI
Lucia Santaella
Professora Titular do Curso de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP
INTRODUÇÃO
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Prado Jr. B. (1982) “Uma nota sobre o operante: circularidade e temporalidade” in Prado Jr.
B. (org.), 1982, Filosofia e Comportamento . São Paulo: Brasiliense.
4
1
Dennett, D. (1978).
5
que se descobriu que o cérebro não poderia ser uma massa indiferenciada, a idéia de traçar
limites entre áreas abriu várias possibilidades de fazer esse mapeamento, desde o critério
especificamente neuro-anatômico, passando pelo critério de conectividade, até chegarmos
ao mais importante que envolve a questão de forma e função.
A idéia de que a função depende da forma parece ser um enunciado intuitivo.
Formas específicas ou arquiteturas específicas do cérebro parecem ser responsáveis pelo
desempenho de funções também específicas. A formas específicas corresponderiam regiões
especializadas do cérebro e é nesse sentido que o debate forma/função se entrecruza com a
questão da cartografia cerebral, ou seja, com a questão dos modos de fazer o mapeamento
de funções cognitivas ou outras no cérebro.
Uma primeira questão que podemos formular é indagar até que ponto os critérios
cartográficos adotados podem ter uma influência sobre as possíveis soluções para o
problema mente-cérebro. Uma segunda questão, igualmente complexa, consiste em saber até
que ponto as funções cerebrais dependem de formas específicas. O principal desdobramento
desta segunda questão diz respeito à possibilidade de sustentar o modelo computacional da
mente e a doutrina filosófica que o apóia, qual seja, o funcionalismo. Antes de discutirmos
estas questões examinaremos brevemente as principais formas de conceber a arquitetura
cerebral que se consolidaram ao longo da história da neurociência.
aos elementos que as compõem. O sistema nervoso é um todo e não um aparelho composto
de elementos heterogêneos. O funcionamento da região central do córtex não pode ser
compreendido como a atividade de mecanismos especializados correspondendo cada um a
uma função. Neste sentido, lesões de áreas específicas não significam necessariamente a
perda de funções - as quais poderiam ser desempenhadas por outras partes do sistema
nervoso sem que isto nos force, entretanto, a assumir a veracidade do equipotencialismo.
Em outras palavras, não existe uma correspondência biunívoca entre localizações e
funções, nem tampouco a ausência total de uma correspondência.
(2) Mapeamento cerebral e ciência cognitiva - Agora que terminamos esta breve
introdução histórica ao desenvolvimento das diversas noções de arquitetura funcional do
cérebro podemos contar mais um trecho da história secreta da filosofia da mente ou de
como esta foi afetada pelas concepções de cérebro desenvolvidas pela neurociência.
Nas décadas de 60 e 70 ocorre uma influência mútua entre ciência cognitiva e
neurociência – uma influência que se inicia a partir da concepção do cérebro como um
computador (a metáfora computacional) e culmina na idéia da mente como o software do
cérebro. A noção de uma inteligência artificial como realização de tarefas por dispositivos
que não têm uma arquitetura nem uma composição biológica e físico-química igual à nossa
abala profundamente a idéia de que funções cognitivas dependeriam de formas ou
arquiteturas/regiões específicas do cérebro. Esta idéia vai se chocar com a doutrina
filosófica subjacente à inteligência artificial, qual seja, o funcionalismo.
Uma noção intuitiva, mas ao mesmo tempo precisa do que é o funcionalismo nos é
proporcionada por Haugeland (Haugeland, 1993). Ele nos convida a considerar o que está
envolvido em um jogo de xadrez, se são as regras do jogo e a posição das peças no
tabuleiro ou se é o material, tamanho, etc de que é feito este último. Certamente são as
regras e a posição das peças. Pouco importa se o bispo e o cavalo são feitos de madeira ou
de metal, se o tabuleiro é grande ou é pequeno. Em outras palavras, o jogo de xadrez tem
uma realidade independente do material que utilizamos para fazer as peças e o tabuleiro.
Mas não haveria jogo de xadrez se não dispuséssemos de algum material para representar o
tabuleiro, as peças, e as regras. Não podemos suprimir inteiramente o material com o qual
construímos um tabuleiro e suas peças, mas podemos variá-lo quase indefinidamente.
10
Ademais, as regras e estratégias do xadrez não serão redutíveis ao marfim se as peças forem
desse material, tampouco ao plástico se elas forem de plástico e assim por diante.4
Façamos agora uma analogia entre jogo de xadrez e a mente. A idéia do
funcionalista é que a mente não se reduz ao cérebro, da mesma maneira que no jogo de
xadrez as regras e estratégias não se reduzem à composição físico-química do tabuleiro e
das peças. O cérebro instancia uma mente, mas essa não é o cérebro nem se reduz a ele.
Podemos agora perceber porque os pesquisadores da inteligência artificial apoiaram o
funcionalismo, pois se tratava de apoiar a possibilidade de replicação mecânica de
segmentos da atividade mental humana por dispositivos que não têm a mesma arquitetura
nem a mesma composição biológica do cérebro.
O aspecto mais interessante do funcionalismo é sua característica não-reducionista,
do qual podemos derivar a chamada tese da múltipla instanciação (multiple realizability).
De acordo com esta tese, dois computadores podem diferir fisicamente um do outro, mas
isso não impede que eles possam rodar o mesmo software. Inversamente, dois
computadores podem ser idênticos do ponto de vista físico, mas realizar tarefas
inteiramente distintas se seu software for diferente. A mesma analogia vale para mentes e
organismos: um mesmo papel funcional que caracteriza um determinado estado mental
pode se instanciar em criaturas com sistemas nervosos completamente diferentes. Um
marciano pode ter um sistema nervoso completamente diferente do meu, mas, se ele puder
executar as mesmas funções que o meu, o marciano terá uma vida mental igual à minha.
Isto é uma conseqüência do materialismo não-reducionista: um rádio (hardware) toca uma
música (software); a música e o aparelho de rádio são coisas distintas, irredutíveis uma a
outra, embora ambas sejam necessárias para que possamos ouvir uma música. Nunca
poderemos descrever o que o rádio está tocando através do estudo das peças que o
compõem.
O materialismo não-reducionista dos funcionalistas leva-os a defender um tipo
especial de teoria da identidade entre mente e cérebro chamada de token-token identity. A
token-token identity sustenta que alguma instância de um tipo mental é idêntica a alguma
instância de um tipo físico, sendo que este pode ser o sistema nervoso de um ser humano,
de um marciano ou o hardware de um computador. Neste sentido, o funcionalismo é uma
4
Ver Teixeira, (2000), p. 124, f.
11
Estas afirmações tiveram forte repercussão, sobretudo numa época em que a ciência
cognitiva vivia um forte re-arranjo de sua interdisciplinaridade onde o computador estava
deixando de ser um modelo de mente para se tornar uma ferramenta de investigação do
cérebro. Neste sentido era preciso repensar as teorias da identidade mente-cérebro e, com
elas, o papel que os critérios cartográficos de mapeamento cerebral podem ter sobre as
possíveis soluções para este problema.
Quando se fala de uma relação entre mente e cérebro (o problema mente-cérebro)
estamos falando, hoje em dia, do tipo de correlação que podemos estabelecer entre funções
cognitivas e cérebro. O tipo de correlação será dado pelo tipo de mapeamento que está
sendo feito – um tipo de mapeamento que nos fornece a concepção ou representação do
cérebro que foi escolhida para ser um dos pólos da relação mente-cérebro. Em outras
palavras, o mapeamento define o que se entende por cérebro, e é neste sentido que seu
papel é fundamental para a filosofia da mente.
Ao discutirmos esta questão, o problema da relação entre forma e função reaparece:
se a idéia de forma prevalece, ou seja, se funções cognitivas dependem de formas
específicas dadas por regiões especializadas do cérebro, a filosofia da mente terá de
inclinar-se em direção a algum tipo de teoria da identidade entre mente e cérebro. Neste
caso, estaremos pensando num tipo de identidade mais estrita, algo que sustenta que
[estados mentais = estados cerebrais], da mesma forma que a teoria da identidade dos anos
50, proposta pelos australianos Smart, Place e Armstrong sustentava. Esta identidade é algo
para a qual poderíamos, agora, contar com a confirmação empírica fornecida pelos
novíssimos instrumentos de mapeamento cerebral, como por exemplo, o fMRI. Trata-se de
uma proposta bastante diferente do materialismo não-reducionista dos funcionalistas de que
falávamos acima; um materialismo não-reducionista que implicava o equipotencialismo no
modo de conceber o cérebro. Ora, se esse equipotencialismo é rejeitado em nome de uma
identidade entre tipos mentais e regiões funcionais específicas do cérebro, estamos diante
de um outro tipo de identitarismo, a chamada “type-type identity”, ou a idéia de que a
determinados tipos de funções cognitivas correspondem determinados tipos de substratos
neurológicos. Este triunfo do materialismo identitarista implicaria, também, na rejeição do
modelo computacional da mente e em boa parte das pesquisas que atualmente são
desenvolvidas na ciência cognitiva. Mas significa a rejeição do modelo computacional que
14
5
Esta mesma observação é feita por Mundale (19997).
15
(4) O futuro do funcionalismo – Agora que vimos que uma type-type identity é defensável
e que, portanto, invocar a impossibilidade da redução psiconeural completa não constituiria
uma defesa para o materialista não-reducionista, podemos nos fazer a seguinte questão:
qual será o futuro do funcionalismo? Significará, de fato, a neurociência da década do
cérebro e com ela a possibilidade de uma type-type identity o fim do funcionalismo como
apregoam Bechtel e Mundale? (1997) Haverá alternativas para este conflito entre a
pesquisa em ciência cognitiva e a neurociência? Ou deverá esta última assumir papel
16
6
Ver, Teixeira, J. de F. (2000) p.178.
17
afogamento. No cérebro destes organismos, forma e função estão muito próximos, sobretudo
se se concebe função como comportamento. Seus cérebros operaram a transformação de
comportamentos ou processos em hardwares (ou wetwares) específicos ao longo do
processo evolucionário. Se há representações nestes cérebros, elas são representações
implícitas ou encarnações físicas de processos, como é, por exemplo, o caso de uma
calculadora de bolso que encarna funções matemáticas – embora suas regras de
funcionamento sejam estáticas e invariáveis. Certamente outros hardwares mais flexíveis
podem ser formados a partir das interações comportamentais dos organismos/robôs com a
complexidade do meio ambiente. Neste caso, estamos diante de hardwares plásticos que
podem se modificar a si mesmos nestes processos interativos e este é o verdadeiro sentido da
afirmação de que processos/comportamentos podem se transformar em hardwares ou no
limite em wetwares. Esta concepção de cérebro torna forma e função indissociáveis por
associar a elas um terceiro elemento: o comportamento. Mas a indissociabilidade de forma e
função, neste caso, torna-se perfeitamente compatível com o funcionalismo como tese geral
de que falamos há pouco e a afasta do funcionalismo digital – aliás este parece ser o
verdadeiro sentido das críticas de Brooks à inteligência artificial tradicional ou
representacionalista.
A crítica a um funcionalismo des-cerebralizado pode ter outras conseqüências que
não exploramos aqui, como por exemplo, a necessidade de redefinir nossas concepções de
computabilidade. Mas mesmo que esta não tenha ou não possa, no limite ser modificada, a
importância de nossa crítica é sugerir que um computador é um dispositivo regido por leis
físicas que podem instanciar leis lógicas e não apenas um dispositivo puramente abstrato
que se torna definível por uma excessiva generalidade, o que permitiria, por exemplo, incluir
na classe dos computadores uma máquina de Turing construída com tampinhas de
refrigerante e desenhos no chão. Mas esta discussão – que não poderemos adentrar aqui –
requer uma reflexão sobre o estatuto ontológico do que chamamos software e nossa
tendência a concebê-lo como entidade matemática com uma existência independente de sua
realização física; uma questão que nos leva, por sua vez, para o campo de uma nova
disciplina, a saber, a filosofia da ciência da computação. Esta disciplina, que ainda não
adquiriu nenhum tipo de cidadania filosófica ou acadêmica deve começar com uma
indagação primordial, qual seja, se a informação deve ser considerada uma entidade física
18
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
BAARS, B.J., BANKS, W.P. & NEWMAN, J.B. (2002) Essential Sources in the Scientific
Study of Consciousness. Cambridge, MA: MIT Press.
HAUGELAND, J. (1993) “Pattern and Being” in DAHLBOM, B. (ed) Dennett and his
Critics. Cambridge, MA: Blackwells.
19
MUNDALE, J. (1997) How do you know a brain area when you see one? A philosophical
approach to the problem of mapping the brain. St. Louis.MO: Washington University
Press.
PLACE, U., T. “Is consciousness a brain process?” in BORST, C.V. (ed) The mind/brain
identity theory. London: Macmillan Press.
PUTNAM, H. (1975) Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, vol. 2. London:
Cambridge University Press.
RUGG, M. (ed) (1997) Cognitive Neuroscience Cambridge, MA: The MIT Press.
SMART, J.C.C. “Sensations and Brain Processes” in CHAPPELL, V.G. (ed) The
Philosophy of Mind, New Jersey: Englewood Cliffs. Reimpresso também em BORST, C.V.
(ed). The mind/brain identity theory. Londres: MacMillan Press.
Este artigo retoma a velha G.O.F.A.I. G.O.F.A.I. é a sigla criada pelo filósofo J.
Haugeland para designar Good Old Fashioned Artificial Intelligence que nada mais é do
que outro nome para o paradigma simbólico: a idéia de que a mente é um sistema formal
que manipula símbolos (representações) através de programas computacionais que
resolvem problemas. Resolver problemas seria a própria definição de inteligência; uma
tarefa que poderia ser executada por um computador imitando o grande processador de
informação, ou seja, a mente humana. Nos anos 70 a G.O.F.A.I. viveu sua época de ouro,
tendo à frente pioneiros como M. Minsky, J. McCarthy, H. Simon. Sua influência foi tão
forte que naquela época quase que se identificava ciência cognitiva com inteligência
artificial.
A historiografia da ciência cognitiva de que dispomos hoje – embora ainda nascente
– tem sido injusta com a G.O.F.A.I. Fala-se dela como algo obsoleto, que deve ser
abandonado enquanto proposta metodológica de abordagem da natureza do funcionamento
mental. Novos paradigmas para a descrição da atividade mental como, por exemplo, o
conexionismo, a robótica e o dinamicismo, estariam progressivamente substituindo a
G.O.F.A.I. Em nome deste discurso, várias possibilidades e hipóteses abertas pelo
paradigma simbólico deixaram de ser exploradas. Uma delas é a possibilidade de explorar
novos conceitos de computabilidade à luz de lógicas não-clássicas. A identificação da
atividade cognitiva humana com a de um computador foi baseada em conceitos de
computabilidade e de máquina de Turing que foram desenvolvidos na década de 30, tendo
como pressuposto a lógica clássica. Nesta perspectiva, a mente seria um sistema formal
clássico ou uma máquina lógica clássica deixando-se de lado na história da constituição da
G.O.F.A.I., outras possibilidades como a que sugerimos aqui, provavelmente pelo
desconhecimento ou pela relativa aversão às lógicas não-clássicas nos Estados Unidos.
21
que não há algoritmo universal para decidir se uma máquina de Turing vai ou não parar. Se
houvesse tal algoritmo, chegaríamos a uma redução ao absurdo do tipo n = n+1, o que não
pode ocorrer na lógica clássica.7
Consideremos agora uma versão intuitiva de TPT através de um exemplo sobre a
computação de um número natural n. Se chamarmos essa computação C(n) podemos
concebê-la como fornecendo uma família de computações na qual existe uma computação
separada para cada número natural 1,2,3,, ou seja, as computações C(1), C(2),C(3)...C(n)
são a ação de uma máquina de Turing (MT) sobre o número n, que, no caso, constitui o
input da máquina.
Suponhamos agora que temos um procedimento computacional A que, quando ele
termina, fornece uma demonstração de que uma computação como C(n) nunca pára. Se em
algum caso particular A chega a um fim, isso seria a demonstração de que a computação
específica a qual ele se refere nunca pára. Dizemos, ademais, que A é correto se ele não
fornece respostas erradas. Pois, se A fosse incorreto, ele afirmaria (erroneamente) que a
computação C(n) nunca termina, quando na verdade ela pára. Mas, nesse caso, efetuar a
computações C(n) de forma que A possa se utilizar dessa codificação para realizar sua ação.
7
O enunciado técnico do Teorema da Parada de Turing é: Dada uma máquina de Turing qualquer com
programa P e um conjunto de inputs arbitrários I, não existe um programa de Máquina de Turing que pare
após um número finito de passos e nos diga se P vai terminar de processar o input I.
Prova: Uma vez que seqüências computáveis são enumeráveis, considere an como sendo a n-tupla.seqüência
computável e φ n(m) a m-tupla. representação em an . Seja β a seqüência tomando 1-φ n(n) como a n-tupla.
representação. Uma vez que β é computável não existe um número k tal que 1-φ n(n)= φ k(n) para qualquer
n. Se tomarmos n=k segue-se que 1=2φ k(k). Absurdo.
23
Esta ordenação pode ser vista como uma ordenação numérica de programas de
computador. Esta listagem é computável, ou seja, existe uma computação singular C• que
nos dá Cq quando lhe apresenta q ou, em outras palavras, a computação C• atua sobre o
Assim sendo, quando a computação A termina, temos a demonstração de que Cq(n) não
pára. Como depende dos dois números q e n a computação A pode ser escrita como A(q,
n), e temos:
(1) Se A(q,n) pára, então Cq(n) não pára.
Note-se que A(n, n) depende apenas de um número, n e não de dois, e assim sendo
ele deve ser uma das computações C1,C2,C3,C4 ..., (aplicada a n) uma vez que esta
constitui a listagem de todas as computações que podem ser realizadas sobre um único
número natural n. Suponhamos que de fato ele é Ck e neste caso nós temos:
e de (2) com n = k
(5) Se A(k,k) pára, então Ck(k) não pára.
Disto podemos deduzir que a computação Ck(k) não pára pois se parasse, não
pararia tampouco, de acordo com (6). Mas A(k,k) não pode parar tampouco, pois temos que,
por (4), ela é o mesmo que Ck(k). Assim sendo, nosso procedimento A não pode afirmar se
essa computação particular Ck(k) não pára, mesmo que ela não o faça. Neste caso, ou
8
Para maiores detalhes acerca desta discussão veja da Costa, Beziau & Bueno, (1995).
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raciocinar para além das contradições força-nos a conceber a lógica clássica como um sub-
conjunto das lógicas não-clássicas ou, mais especificamente, das lógicas paraconsistentes -
ou seja, se estas contém os raciocínios clássicos ou pelo menos, boa parte deles.
Enfatizaremos apenas que a lógica paraconsistente pode ser concebida como a lógica
subjacente às teorias inconsistentes não-triviais.
Contudo, colocaremos mais uma restrição a nossa escolha de uma lógica não-
clássica para conceber o Teorema da Parada de Turing. Selecionaremos uma lógica
paraconsistente específica, o mais próximo possível da lógica clássica. Este é o caso de
C1+, desenvolvida por da Costa, Béziau e Bueno. C1+ pode ser vista como coincidindo
com a lógica clássica em vários aspectos, e talvez esta seja sua característica mais
surpreendente. C1+ permite alguns padrões de raciocínio paraconsistente na presença de
contradições que, de uma perspectiva mais ampla, coincidem com o raciocínio clássico. É
isto que aproxima C1+ do formalismo clássico, isto é, o resultado geral de C 1+ está
próximo da idéia de que de uma contradição qualquer coisa se segue. Contudo, C1+ difere
de que de uma contradição qualquer coisa pode se seguir? Se este for o caso, a veracidade
de TPT torna-se questionável, até mesmo a partir de uma perspectiva clássica. Mas,
certamente, este seria um resultado demasiado forte; um resultado que requereria uma
caracterização clara das relações entre as lógicas clássicas e as paraconsistentes. Como tal
clarificação ainda não se tornou possível, não discutiremos esse assunto aqui. Apenas
sugeriremos que TPT pode não ser derivável de C1+ e apresentaremos algumas
conseqüências que se seguem da idéia de que a lógica clássica não precisa ser considerada
como um paradigma inquestionável para a teoria da computação.
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brevemente C1+. Deixaremos de lado, contudo, detalhes técnicos. Nossa abordagem será
de raciocínio que coincide com a lógica clássica. A característica mais interessante de C1+
está no fato de que ambos os raciocínios, ou seja, Raciocínio 1 e Raciocínio 2 podem ser
derivados dela. Neste sentido, padrões de raciocínio em C1+ não conflitam, em última
análise, com a lógica clássica, a não ser pelo fato de que eles não se tornam triviais quando
uma contradição é encontrada.
Comecemos pelo Raciocínio 1. Um certo Sr. X está doente e vai consultar o Dr. B,
que diz que ele tem câncer. O Sr. X decide então consultar outro especialista, o Dr. P. que
diz que ele não tem câncer. Dr. P. não concorda com seu colega acerca deste ponto, mas há
uma coisa que ambos reconhecem:
(1) Se o Sr. X tiver câncer, ele morrerá nos próximos três meses.
Usando raciocínio tipicamente paraconsistente, o Sr. X pode fazer raciocínios
interessantes sem ter de supor que Dr. B ou o Dr. P. estejam errados. A partir do enunciado
do Dr. B, o enunciado do Dr. P e o enunciado acerca do qual ambos concordam, o
raciocínio paraconsistente não permite a seguinte inferência:
(2) Se o Sr. X não tiver câncer, ele não morrerá nos próximos três meses.
No raciocínio clássico teríamos: a = Sr. X tem câncer, ∼ a = Sr. X. não tem câncer,
b = Sr.X morrerá nos próximos três meses. De a, ∼ a e b, (1) e (2) se seguem.
O raciocínio tipicamente paraconsistente impede (2), pois na lógica paraconsistente
∼ b. O aspecto interessante deste raciocínio paraconsistente é o fato de que ele não permite
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podemos sustentar que os resultados gerais de C1+ coincidem com os da lógica clássica.
Contudo, a diferença em relação à lógica clássica está no fato de que não há trivialização,
ou seja, a presença de uma contradição não “implode” o sistema: não é qualquer coisa que
pode se seguir quando uma contradição é encontrada. A exclusão de (2) no Raciocínio 1 e a
possibilidade de (2) no Raciocínio 2 não são conseqüências triviais de uma contradição
como ocorre na lógica clássica.
Ora, o que ocorre se aplicarmos raciocínios paraconsistentes derivados de C1+ para
o Teorema da Parada de Turing? Será que a lógica paraconsistente C1+ desenvolvida por
aplicam-se somente a situações reais do mundo, nas quais contradições podem aparecer. Se
máquinas de Turing podem ser concebidas como entidades no mundo ou entidades
puramente matemáticas discutiremos mais adiante, embora possamos adiantar, desde já,
que não nos inclinamos à idéia de que os elementos da ciência da computação sejam
entidades puramente matemáticas. Será o fato de uma máquina de Turing parar ou não
parar comparável a uma situação de diagnose médica na qual existe desacordo? O
diagnóstico médico pode se tornar controverso em muitos casos, principalmente pela falta
de evidências conclusivas. Em alguns casos, não se trata apenas de falta de evidências, mas
do modo de interpretá-las. Neste caso, o conflito de interpretações emerge na medida em
que o diagnóstico baseia-se em teorias e concepções científicas mutuamente exclusivas.
Não acreditamos que o caso de TPT seja inteiramente comparável à situação de diagnose
médica, mas nem tampouco concordamos que ele possa ser tomado como uma verdade
absoluta com validade para qualquer tipo ou concepção de matemática e de lógicas
subjacentes. Note-se ademais que, o possível caráter de TPT como uma verdade absoluta,
independente de como se concebe a matemática não parece ser uma questão sobre a qual
exista univocidade. Por exemplo, Isles (1998) assinalou que TPT não pode ser sustentado a
não ser que assumamos a verdade (questionável) de um “sequenciamento intuitivo” dos
números naturais dada pela função +1.9
Existem pelo menos mais duas razões para sustentar que TPT pode ser tratado a
partir de uma ótica paraconsistente. Em primeiro lugar, conforme dissemos no começo
deste artigo, podemos considerar que TPT, ao proceder por redução ao absurdo, é um tipo
de raciocínio na presença de contradições. A intuição subjacente a TPT é que uma vez que
a trivialização surge a partir de uma contradição, estamos diante de uma redução ao
absurdo. (Certamente esta é uma pressuposição da lógica clássica). A segunda razão é a
coincidência entre raciocínios clássicos e paraconsistentes como um resultado geral de
C1+. Se tal coincidência não é apenas fortuita (por que seria?) o tratamento clássico e o
9
Isles questiona TPT ao levantar o problema acerca da ordem dos números naturais e propõe uma versão
“mitigada” de TPT. Contudo, não compartilho com ele seu intuicionismo.
29
lógica paraconsistente do tipo da C1+ é possível que a veracidade de TPT não seja mais
computação do que a lógica clássica? (2) Será que o raciocínio que desenvolvemos até
agora implicaria em que qualquer prova matemática por redução ao absurdo poderia ser
descartada?
Uma possível resposta para a primeira questão consiste em sugerir que uma vez que
utilizamos a lógica paraconsistente como a lógica subjacente à teoria da computação
escapamos das limitações clássicas colocadas pelos teoremas de incompletude – uma
afirmação que seria também aplicável a qualquer sistema lógico que admita algum tipo de
inconsistência.10 Mas será que isto torna, C1+ mais forte do que a lógica clássica?
Provavelmente não, uma vez que há mais teoremas na lógica clássica do que em C1+ .
qual existe um algoritmo de parada) poderia ser concebida como englobando a lógica
Certamente estamos diante de uma questão epistemológica delicada que não pode
ser banalizada. Argumentar em favor da existência de uma diferença entre entidades da
teoria da computação e entidades matemáticas não é o mesmo que argumentar pela
existência de uma diferença entre uma teoria matemática e um computador real, dizendo,
por exemplo, que máquinas reais não têm uma fita infinita como pressupõe a definição de
uma máquina de Turing. A diferença para a qual queremos apontar é mais sutil, não se
tratando de algo pura e simplesmente implementacional. A diferença entre fitas infinitas e
fitas reais não parece afetar a teoria da computação: trata-se da mesma diferença que existe
entre triângulos físicos e triângulos matematicamente considerados: os primeiros não têm
180 graus, mas é uma verdade matemática inquestionável na geometria euclidiana que
triângulos têm 180 graus. Ora, a diferença que buscamos é de outra ordem.
Certamente a teoria da computação encontra seus fundamentos em uma lógica
subjacente e num conjunto de verdades matemáticas. Mas deve haver mais coisas na teoria
da computação do que uma recapitulação de verdades já conhecidas. O que distingue a
teoria da computação é o fato de a partir deste conjunto de verdades conhecidas, máquinas
abstratas ou virtuais poderem ser concebidas. Neste sentido, a teoria da computação é um
capítulo da matemática aplicada – aliás, um capítulo bastante específico. Tal especificidade
reside na maneira pela qual a teoria da computação estabelece uma correspondência entre
verdades matemáticas e lógicas com estados de coisas no mundo: um mapeamento que
estabelece uma correspondência com elementos virtuais. Trata-se de um mapeamento
bastante peculiar, embora este possa ser considerado como uma correspondência com algo
do mundo.
Que estatuto ontológico devemos atribuir a uma máquina virtual? Terá uma
máquina de Turing o estatuto de uma entidade puramente matemática, isto é, o estatuto de
algo que não ocorre no espaço e no tempo? Uma computação é algo que ocorre no mundo,
mesmo quando realizada por uma máquina virtual: uma computação envolve tempo, uma
vez que a idéia de seqüenciamento (não importando se se trata de um modo de operação
linear ou um ciclo de atividade paralela) está na essência de qualquer processo algorítmico.
Máquinas de Turing envolvem um seqüenciamento temporal na execução de operações
matemáticas – um seqüenciamento sem o qual a solução de certos problemas não poderia
33
ser realizada.12 Neste sentido, Máquinas de Turing envolvem um elemento do mundo, pois
não importa o quanto nossa concepção de tempo seja abstrata, ela continuará sendo uma
magnitude física.13
Assim sendo, a teoria da computação não pode ser puramente matemática, mas não
pode ser empírica tampouco. Seus elementos devem ser classificados como pertencentes a
uma espécie de ontologia cinzenta de elementos virtuais que mantêm alguns elementos
oriundos do mundo e uma referência a este – elementos virtuais que podem ser utilizados
em vários tipos de aplicações empíricas. É essa infiltração sub-reptícia de uma referência ao
mundo que nos permite tratar máquinas virtuais como algo no mundo.
É neste sentido que TPT pode ser mantido como uma verdade da matemática
clássica apesar do fato de desqualificarmos seu realismo e seu caráter absoluto ao concebê-
lo sob a ótica paraconsistente derivada de C1+. TPT é uma verdade matemática, mas não
12
Não podemos conceber uma máquina de Turing (como máquina virtual) sem uma referência ao tempo.
Mesmo uma máquina de Turing com apenas uma instrução requer uma segunda, seja para parar ou para não
parar. O sequenciamento pode ser abstraído se concebermos a máquina de Turing como entidade puramente
matemática, ou seja, de forma não-holonomica, (o que estamos rejeitando aqui), mas até nesta maneira uma
idéia de sequenciamento permanece, pois duas instruções não podem ser realizadas ao mesmo tempo; uma
terá de seguir a outra.
13
Mesmo concepções subjetivistas do tempo admitem que ele envolve referência a algo no mundo. Kant, por
exemplo, que defendeu que o tempo é uma forma a priori da sensibilidade, diz que “O tempo não é uma
forma discursiva, ou como ele é as vezes chamado, uma concepção geral, mas uma forma pura da intuição
sensível” (ênfase minha). A primeira antinomia de Kant enfatiza a necessidade de distinguir as esferas
sensíveis e inteligíveis ao lidar com as noções matemáticas – pelo menos como um meio de evitar a geração
de pseudoproblemas. O mesmo ponto é enfatizado por Kant em seus trabalhos anteriores (1770/1967) onde
ele afirma que A = A não pode ser considerada uma relação puramente lógica se a igualdade for mediada pelo
tempo. (“A enim et non A non repugnant nisi simul (h.e. tempore eodem) cogitata de eodem, post se autem
(diversis temporibus) eidem competere possunt” p.60). Tal distinção parece ter sido ignorada nas discussões
acerca da natureza dos elementos da teoria da computação.
34
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
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Analyse 131-132 pp.259-272.
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C1" Logique et Analyse 137-138
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Da Costa, N.C.A., Béziau, J.Y and Bueno, O. (1995) - "Aspects of Paraconsistent Logic",
Bulletin of the Interest Group in Pure and Applied Logic 3 pp.597-614.
Kant, I (1770/1967) - De Mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis - Latin and
French version, edited by P. Mouy, Paris, J. Vrin.
Kant, I (1781) – Kritik der Reinen Vernunft - Critique of Pure Reason – Trans. N. Kemp
Smith. London: Macmillan, 1929.
Lenat, D., & Guha, R (1990) – Building large knowledge –based systems. Reading, MA:
Addison-Wesley
Penrose, R. (1989) The emperor´s new mind: Concerning computers, minds and the laws of
physics. Oxford: Oxford University Press.
Sylvan, R & Copeland, B.J. (1997) - “On the relativity of computability” (unpublished).
No seu best-seller Em busca de Espinosa Antonio Damásio retoma uma idéia que
parece percorrer toda sua obra desde seu primeiro livro publicado em 1995: a
impossibilidade de separar emoção de cognição, mesmo que esta separação seja apenas
metodológica como queriam os partidários da inteligência artificial e do modelo
computacional da mente. Ao lermos o primeiro e o último livro de Damásio (O Erro de
Descartes e Em Busca de Espinosa) ficamos com a clara impressão de que a ciência
cognitiva não pode se furtar de preencher o vácuo deixado pela ausência de uma teoria da
emoção e de seu papel no conhecimento e em outras regiões de nossa vida psíquica.14
É no seu livro de 2004 que os contornos de uma teoria das emoções delineiam-se de
forma mais nítida na obra do neurobiólogo português. Sua obra, numa prosa magnífica,
oferece uma abordagem da natureza das emoções que oscila entre a psicologia darwinista e
um fisicalismo que, por vezes, beira o materialismo eliminativo.15 É preciso achar uma
função para as emoções, um papel cognitivo para suas diversas variedades, um papel que
esteja ligado à preservação física e mental dos organismos, e, se possível, que essa
preservação seja acompanhada de um elemento suplementar: o bem-estar. Mas, ao mesmo
tempo em que se reconstitui uma ontologia para as emoções – para o medo, para a alegria, a
tristeza, etc – Damásio preocupa-se em mostrar seus correlatos neurais. É preciso retraçar
sua representação neurológica, sua marca no cérebro ou aquilo que ele chama de mapas
cerebrais que, ao ultrapassarem um certo limiar, geram imagens mentais que entram no
teatro da consciência sob a forma de sentimento. Ao leitor mais familiarizado com filosofia
da mente, a idéia da ultrapassagem de limiares como mecanismo para entrada no espaço da
14
Uma tendência que é, aliás, cada vez mais reconhecida. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Panksepp, J.
(1998).
15
Veja-se a seguinte passagem “Com o auxílio dos instrumentos da neuroanatomia, da neurofisiologia e da
neuroquímica, somos hoje capazes de descrever padrões neurais. Com o auxílio da introspecção somos
também capazes de descrever imagens mentais. Contudo, os passos intermediários que nos levam dos padrões
neurais às imagens mentais não são ainda conhecidos. É também importante ressaltar que essa ignorância não
contradiz de forma alguma a noção de que as imagens mentais são processos biológicos e ainda menos nega
de forma alguma a sua fisicalidade” (Damásio, 2003, p. 209).
39
consciência lembrará, em certos momentos, as teorias de Dennett e de Calvin, das quais nos
ocuparemos mais adiante neste livro.16 No caso de Damásio, a entrada no espaço de
consciência transforma a emoção em sentimento; no seu livro não faltam exemplos para
provar esta tese, qual seja, de que o sentimento é sempre precedido pela emoção e que o
inverso não poderia acontecer.17
Emoções são representações neurológicas de estados do corpo; para ter emoções é
preciso um cérebro suficientemente complexo para poder abrigar estas representações, caso
contrário, como acontece em organismos mais simples, é possível ter emoções sem,
entretanto sentí-las. Neste último caso as emoções são apenas parâmetros para ações que
garantam a sobrevivência dos organismos. Já no caso dos seres humanos estas não são
apenas sentidas como podemos até refrear as ações que automaticamente decorreriam delas.
É possível também, no nosso caso, a distorção cognitiva da representação neurológica dos
estados do corpo – uma distorção que, as vezes, pode levar à patologia em casos limite.
“Estou triste porque choro”, e não “Choro porque estou triste” – esta é a formulação
correta do ponto de partida de uma teoria das emoções segundo Damásio; um ponto de
partida reconhecido como uma herança da psicologia de William James, o qual é citado
várias vezes ao longo de seu texto. É preciso não inverter determinante por determinado,
caso contrário embarcaremos no emaranhado dualista de explicar e justificar a causação
mental, uma tarefa que certamente Damásio prefere evitar. Afinal, é preciso fugir dos erros
de Descartes.
Mas o que mais impressiona no livro de Damásio não são seus pressupostos de
psicologia evolucionária, pelos quais as emoções adquirem funções ou se tornam balizas
para a ação – marcadores somáticos como aparece no seu primeiro livro. Que o medo sirva
para alguma coisa – para evitar que arrisquemos nossa integridade física e psíquica – parece
ser algo inconteste. O que realmente impressiona é a facilidade com que ele nos convida a
passar do discurso em primeira pessoa para o discurso em terceira pessoa, ou seja, do
discurso subjetivo para o discurso da neurociência, um problema que tem arrepiado o
cabelo dos filósofos da mente nas últimas décadas. Tudo se passa como se, para Damásio, o
explanatory gap não existisse e um fisicalismo ou materialismo eliminativo tácito pudesse
16
Veja-se o capítulo 5.
17
Veja-se passagem na pg. 109, onde ele nos diz “esse resultado mostrava inequivocamente que a emoção
vem primeiro e o sentimento dela depois”.
40
ser professado sem nenhum problema. Poderíamos reduzir toda nossa experiência visual,
em technicolor, à atividade da massa cinzenta do cérebro. Ou a pintura de Van Gogh à
dilatação de alguns ventrículos do cérebro. Algo que se afigura, pelo menos de início, como
bizarro e inadmissível.
Neste sentido, um dos exemplos mais impressionantes de Damásio é o da mulher
parkinsoniana, na qual a introdução de agulhas no cérebro não causa apenas a eliminação
de tremores, mas a aparição de relatos verbais de profunda tristeza – de autênticos
sentimentos de tristeza. Tudo se passa como se o despertar destes sentimentos pudesse ser
identificado à estimulação de uma “circuitaria” cerebral específica – uma circuitaria sobre a
qual podemos esperar, no futuro, ter controle. Mais uma vez o que se opera é a redução do
sentimento a alguma outra coisa; explicar é reduzir. Outras evidências sobre as bases
neurais da alegria e da tristeza são também alinhadas por Damásio, todas elas baseadas em
PET ou na imaging cerebral proporcionada pela ressonância magnética funcional. Em todos
esses casos passa-se de relatos verbais de pacientes para suas correspondentes áreas
cerebrais ativadas ou cintilantes. Em outras palavras: passa-se de um relato em linguagem
da psicologia popular (folk psychology) para seu correlato neurobiológico, sem que se
questione a consistência ontológica das entidades que participam desses relatos nem
tampouco se poderíamos executar a operação inversa, ou seja, a partir do exame da
imaging inferir os conteúdos mentais que compõem as tristezas ou alegrias desses
pacientes. Ora, não estaríamos aqui diante do explanatory gap que não se deixa esquecer?
Ou seja, da velha asserção dos filósofos da mente de que o conhecimento da neurofisiologia
da dor não me permite imaginar nada parecido com sentir uma dor?
II
Quando nos debruçamos sobre o livro de Sartre, Esboço de uma Teoria das
Emoções, publicado em 1965, encontramos uma abordagem totalmente diferente da
ontologia da emoção. Para a psicologia fenomenológica, explicar não é reduzir. É preciso
saber o que são as emoções e como elas interagem umas com as outras 18,integrando-as
numa teoria psicológica que explique seu papel na organização psíquica e na organização
18
Note-se que Damásio também reconhece a importância da interação das emoções. Veja-se Damásio (2004),
capítulo 3, “Os sentimentos”.
41
da ação. O psicólogo busca constituir uma idéia do que sejam as emoções e, embora nelas
possamos identificar reações corporais, ações e estados de consciência, uma teoria
psicológica precisa buscar a explicação para as leis da emoção nos próprios processos
emocionais. Em outras palavras, é preciso buscar a essência da emoção mediante a redução
fenomenológica que põe o mundo entre parêntesis. Isto quer dizer buscar o significado da
emoção antes de assumí-la como um dado, um fato bruto com o qual a psicologia teria de
lidar e ao qual gostaríamos de poder rapidamente atribuir algum tipo de consistência
ontológica – uma consistência ontológica derivada dos pré-julgamentos que a consciência
reflexiva realiza.
A primeira observação de Sartre no seu ensaio é que a emoção não existe
exclusivamente como fenômeno corporal, uma vez que um corpo não pode se emocionar,
ou seja, não pode conferir um sentido a suas próprias manifestações. Discutir o sentido da
alegria ou da tristeza não pode ser feito a partir de estados corporais – estes não são alegres
nem tristes, nem tampouco podem se sentir aterrorizados. Estas são propriedades de estados
de consciência e atribuí-las a estados físicos leva-nos a paradoxos semânticos: se as
emoções são estados corporais seria legítimo atribuir a elas tanto propriedades físicas
quanto propriedades mentais, o que geraria sentenças sem sentido do tipo “meu corpo está
agora aterrorizado” ou “meu corpo está alegre”. 19
O ataque sartreano à teoria da emoção como fenômeno derivado da modificação
corporal tem como alvo as teorias clássicas como as de W. James. Este tipo de teoria não dá
conta do caráter organizado de nossas emoções por ter uma perspectiva atomista – a
perspectiva jamesiana trabalha com fatos psíquicos isolados. Não se apreende a lógica das
emoções, isto é, porque um tipo de emoção se sucede ao outro. Quem pode nos garantir que
a sucessão dos fatos corporais segue a lógica da organização psíquica das emoções?
Certamente a lógica das emoções não segue a lógica ou seqüência dos fenômenos
neurobiológicos que ocorrem no corpo e são representados no cérebro. Sartre nos chama a
atenção para um contra-exemplo evidente: os casos patológicos de indivíduos
hospitalizados nos quais há uma oscilação entre ira e alegria numa questão de segundos.
Estas duas emoções não têm nada a ver uma com a outra apesar de sabermos que as
19
Sobre paradoxos semânticos veja-se Teixeira, J. de F. (2000), pp. 70-71.
42
modificações fisiológicas que correspondem à ira só diferem das de alegria por uma
pequena margem de intensidade.
A teorias como as de James falta, então, uma lógica das emoções. Seqüenciar as
emoções de modo lógico seria, por exemplo, mostrar como do medo vamos para a ira, pois
em certos casos o medo superado torna-se ira. Mas este tipo de seqüência só se torna
inteligível se concebermos que, de certo modo, a ira já estava contida nesse tipo de medo.
Ora, como podemos imaginar que um estado mental contém outro?
Mas esta não seria a única e nem tampouco a mais dura crítica que Sartre poderia
fazer às teorias neurobiológicas da emoção. A elas poderíamos acrescentar outras críticas
oriundas da filosofia da mente contemporânea. Os partidários deste tipo de teorias, como
James e, mais recentemente Damásio, reconhecem a necessidade de uma representação
neurológica da modificação corporal e que esta ingresse no espaço da consciência. Sem
consciência não há emoção – esta é uma asserção para a qual convergem neurobiólogos e
fenomenólogos. Contudo, nos casos que acabamos de citar – o de James e o de Damásio –
tudo se passa como se houvesse algo parecido com uma sensibilidade córtico-talâmica, sem
a qual a emoção não adquiriria consistência ontológica. Cannon e Sherrington falavam
dessa sensibilidade córtico-talâmica, como se o cérebro pudesse emocionar-se20 – o que
praticamente nos devolve aos paradoxos semânticos de que falávamos há pouco. James fala
de uma alteração de consciência precedida de uma alteração corporal (Estou triste porque
choro) sem, entretanto arriscar nenhuma hipótese sobre o problema mente-cérebro que
pudesse nos esclarecer o que seria essa consciência. Ela seria um dado imediato, um fluxo
que deveria ser assumido como o ponto de partida de qualquer psicologia, mas em sua obra
não encontramos considerações ontológicas específicas acerca da natureza desse fluxo.
Damásio parece herdar essa dificuldade ao falar de mapas cerebrais que ingressam
no espaço da consciência. Sua teoria da consciência está alicerçada em hipóteses
evolucionárias e fisicalistas/eliminativistas – ou seja, em hipóteses materialistas que
incluem a natureza da consciência. Como então explicar porque o ingresso de um mapa
cerebral no espaço da consciência causa o fenômeno específico do emocionar-se?
Certamente Damásio não quer postular uma sensibilidade córtico-talâmica como fizeram
Cannon e Sherrington. Do mecanismo da alegria não se pode passar para o que é sentir uma
20
Veja-se sobre esta hipótese Sartre, 1965, p. 64.
43
alegria – este é o problema que Sartre apontava no seu ensaio de 1965 e que reaparece na
filosofia da mente como o explanatory gap. Se James pode evitá-lo ao fazer uma ontologia
branda do mental, o mesmo não parece ocorrer com Damásio.
A comparação entre Sartre e Damásio leva à inevitável (e dita intransponível)
oposição entre discurso em primeira pessoa e discurso em terceira pessoa de que falam os
filósofos da mente. A teoria de Sartre é, inegavelmente, uma teoria que privilegia a
perspectiva de primeira pessoa. Esta perspectiva é o ponto de partida para atribuir às
emoções uma finalidade, ou seja, um papel de regulação cognitiva na relação entre o sujeito
e o mundo, primeiramente pelo seu caráter inerentemente intencional e, em segundo lugar,
por elas se constituírem como instrumentos privilegiados de distorção cognitivo-
representacional dos cenários sobre os quais o sujeito precisa agir. Por exemplo, os medos,
a ira, distorcem a representação do ambiente sobre o qual o sujeito precisa agir, ampliando
ou as vezes diminuindo a magnitude dos eventos que o cercam. As emoções não são
qualidades puras e inefáveis, pois elas têm um sentido, significam algo para minha vida
psíquica constituindo o mundo sob uma forma mágica na medida em que através delas o
ser-no-mundo altera seu entorno distorcendo sua cognição a partir de leis peculiares da
magia – uma distorção que, na maioria das vezes, longe de ser patológica, é garantia de
sobrevivência para o sujeito cognoscente que, quando se emociona, deixa de ver o mundo
como ele é para poder sobreviver a ele. É neste sentido que Sartre nos diz que “a emoção é
a queda brusca no mágico” e que emoções criam um Umwelt dentro do qual habitam com
mais conforto o corpo e a consciência.21
Às emoções Sartre atribui uma finalidade, que é a ação, mas observa, ao mesmo
tempo, que não é esta que pode explicar a natureza do emocional. Poderíamos agir sem
emoções ao executarmos ações como, por exemplo, de fuga ou outros tipos de ação. Ou
seja, se estivéssemos usando as palavras de Damásio para caracterizar o pensamento
sartreano, diríamos que estas ações poderiam ser executadas automaticamente. Interessante
é, porém, notar que para Damásio é o ultrapassar de um limiar que enlaça o acontecimento
fisiológico com a consciência que vai dar lugar ao aparecimento da emoção, enquanto que,
para Sartre, a emoção se constitui quando a consciência presencia a ação acompanhada de
21
“Assim, a origem da emoção é uma degradação espontânea da consciência frente ao mundo. O que esta não
pode suportar de um determinado modo, trata de apreende-lo de outro, adormecendo-se, aproximando-se do
sonho ou da histeria. E a modificação do corpo não é nada além da crença vivida pela consciência quando esta
é vista a partir de seu exterior”.(Sartre, 1965, p. 108, tradução do autor).
44
uma manifestação neurobiológica que ocorre no corpo. E, contra James, Sartre afirmará
ainda que as emoções não são qualidades puras e inefáveis, pois elas têm um sentido,
significam algo para minha vida psíquica constituindo o mundo sob uma forma mágica na
medida em que, através delas, o ser-no-mundo altera seu entorno distorcendo sua cognição
a partir de leis muito peculiares da magia.
III
22
“Espinosa estava mudando a perspectiva que tinha herdado de Descartes quando disse na Ética, Parte I, que
o pensamento e a extensão, embora distinguíveis, são produto da mesma substância”. Veja-se Damásio, 2003,
p. 222.
45
23
Veja-se Lutz, ª & Thompson, E. (2003), p. 32 e Jack, A & Roepstorff (2003), p. xiii.
24
Como observou magistralmente Flanagan, no seu livro Consciousness Reconsidered : “Mind without
consciousness! How is that possible?”. A referência é aos defensores do modelo computacional da mente ou
os defensores do paradigma simbólico para os quais a simulação da mente bastaria para replicar a totalidade
das atividades cognitivas humanas.
46
parêntesis ao mesmo tempo em que se busca seus correlatos neurais. A combinação destas
duas tarefas compõe a neuro-fenomenologia.
Como nos sugere Varela, isto representa uma profunda mudança na atitude
científica habitual, acostumada a rejeitar o discurso em primeira pessoa como mera
aparência a ser superada pela investigação criteriosa da ciência cognitiva e da
neurobiologia. Atenua-se a distinção entre o discurso em primeira pessoa e o discurso em
terceira pessoa, ambos passam a ser vistos como trocas intersubjetivas – afinal, quem
constitui o discurso em terceira pessoa a não ser um grupo de sujeitos que constrói o
discurso da ciência falando inicialmente em primeira pessoa? Até que ponto poderíamos
manter uma distinção nítida entre primeira e terceira pessoa ao considerá-las sob a
perspectiva da troca intersubjetiva?
A idéia que defendemos, qual seja, a neurofenomenologia de Varela, apóia-se numa
revalorização da introspecção como método de investigação psicológica. Novamente
encontramos aqui uma mudança radical na direção que esta investigação deve tomar: ao
lidar com a experiência consciente as medições objetivas devem ser validadas
estabelecendo-se sua correspondência com medições introspectivas e não vice-versa. Os
psicólogos devem aceitar o valor de investigações que têm como ponto de partida dados
introspectivos (por exemplo, relatos introspectivos) se estes forem corretamente
controlados em seus experimentos, para, posteriormente buscar seus correlatos neurais.
A convergência entre a investigação subjetiva e a objetiva proposta pela
neurofenomenologia tem aberto novos caminhos para a ciência cognitiva (especialmente
para a neurociência cognitiva) na medida em que as perspectivas internas e externas acerca
do sujeito começarão a se aproximar. De uma perspectiva externa, sei o que está
acontecendo em sua mente/cérebro/consciência – sua base neurobiológica. Mas não sei
nada acerca da manifestação desses fenômenos enquanto suas experiências. Neste sentido,
informação em primeira e em terceira pessoa podem ser vistas como sendo
complementares e não opostas. A natureza da mente é revelada por aquilo que aparece a
partir de ambas as perspectivas; a mente não é física ou consciente, ela é ambas as coisas ao
mesmo tempo, ou como diz Velmans, psicofísica.25 Encontramos aqui o cruzamento entre a
25
Velmans, M. (2002), p.13.
47
teoria espinosista do aspecto dual defendida por Damásio e a fenomenologia das emoções
de Sartre.
IV
26
Veja-se Teixeira, J. de F. (2000) p. 179.
48
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
JACK, I. & ROEPSTORFF (2003) “Why trust the subject?” Journal of Consciousness
Studies, , 10, pp. v-xx.
27
Sobre a idéia da psicologia como ramo da engenharia veja-se Dennett, D. (1998), capítulo 18- “When
Philosophers Encounter Artificial Intelligence”.
49
VELMANS, M. (2002) “How could conscious experiences affect our brains?” Journal of
Consciousness Studies, 9(11), pp. 3-29.
2a. PARTE
COMPORTAMENTO
51
28
A referência é ao livro de Gardner (1995) e ao de Bechtel (1998) que se tornaram manuais clássicos de
ciência cognitiva.
52
variáveis ambientais. Neste sentido, Chomsky estava inteiramente certo, não fosse sua
caracterização equivocada do projeto skinneriano e da própria natureza do behaviorismo
radical que, por vezes, era sutilmente confundido com o behaviorismo S-R.
A ausência de uma resposta aos ataques de Chomsky fez com que estes deixassem
marcas profundas. A partir de suas críticas (e por causa delas), a recém formada
comunidade cognitiva passou a caracterizar o behaviorismo como um movimento
monolítico, ignorando a grande diversidade de escolas psicológicas que é abrigada por este
termo. Da mesma maneira, os behavioristas passaram a rejeitar a ciência cognitiva como se
esta fosse um bloco único. Um diálogo de surdos se instaurou daí em diante. De um lado,
os cientistas cognitivos não distinguiam entre behaviorismo S-R e behaviorismo radical, de
outro, os behavioristas insistiam numa caracterização da ciência cognitiva como um
mentalismo indesejável que a inteligência artificial estaria revivendo.
O artigo de Skinner “Why I am not a Cognitive Psychologist” (1977), contendo
forte ataque ao mentalismo cognitivista contribuiu ainda mais para aumentar os
preconceitos de ambos os lados. Skinner entendia que a ciência cognitiva nada mais seria
do que o cognitivismo clássico ou o paradigma simbólico defendido pela inteligência
artificial. Na verdade, este era o horizonte dos anos 70 e, infelizmente, Skinner não viveu o
suficiente para acompanhar os desenvolvimentos posteriores da ciência cognitiva. Se o
tivesse, certamente teria também renegado suas críticas.
Com efeito, a ciência cognitiva anticartesiana que surge a partir dos anos 90 está
muito distante daquela que Skinner criticava, abrindo uma nova perspectiva para superar
este diálogo de surdos que vem ocorrendo nas últimas décadas. A metáfora da mente como
um software abstrato independente da estrutura física na qual ele seria instanciado começa
a ser definitivamente abandonada – e, com ela, o dualismo cartesiano que foi o pressuposto
da ciência cognitiva dos anos 70. O fim da metáfora computacional da mente (ou do
paradigma simbólico da inteligência artificial) marca o retorno da busca pelas bases
cerebrais dos fenômenos mentais e o aparecimento de movimentos inovadores na ciência
cognitiva como é o caso da nova robótica e da neurociência cognitiva. Neles, o
comportamento recobra sua importância no estudo da cognição e passa a ser visto como um
de seus componentes principais.
53
29
Veja-se a este respeito o livro seminal de Chiesa (1994).
30
Esta parece ser uma tentação freqüente entre alguns neurocientistas contemporâneos que isolam o cérebro
do resto do corpo e do ambiente para estudá-lo, mas que, por vezes, esquecem que esta é apenas uma manobra
metodológica. Veja-se, a este respeito, Sheets-Johnstone (2.000).
31
O epifenomenalismo de Skinner constitui tão-somente uma recusa em atribuir a estados mentais qualquer
tipo de papel causal na produção de comportamento e, com isto, escapar dos dilemas cartesianos da causação
mental. Não se trata, portanto, de tentar suprimir o mental ou de esvaziar sua ontologia.
54
Ora, diante deste panorama reinante nas ciências cognitivas na década de 70, as
críticas de Skinner expressas no seu artigo de 1977, acusando o paradigma simbólico de um
retorno indesejável ao mentalismo não poderiam causar muita surpresa.32 Nem mesmo o
conexionismo dos anos 80, que se insurgiu contra a inteligência artificial simbólica – do
qual Skinner não se ocupou – parecia ter escapado a estes pressupostos cartesianos. Embora
enfatizando a necessidade de se retornar a modelos biológicos do cérebro na abordagem da
cognição, as redes neurais artificiais isolavam, implicitamente, fenômenos cognitivos e
comportamento, cognição e meio ambiente. Se a inteligência artificial simbólica segregava
mente e corpo, o conexionismo segregava cérebro e comportamento, incorrendo na figura
metafísica do “cérebro na proveta”. Tampouco a idéia de cognição como representação é
totalmente subvertida pelo conexionismo. A noção de representação como signo é
substituída por um modelo de inspiração matemática onde se constroem representações de
representações na forma de equações diferenciais que expressam relações entre neurônios
artificiais. Apesar desta mudança em relação ao cognitivismo clássico, a idéia tradicional de
representação é re-instaurada na medida em que se mantém inquestionável a dicotomia
cognição/mundo.
A primeira reação efetiva a esta proposta cartesiana da inteligência artificial
simbólica foi a nova robótica que surge no início dos anos 90 com os trabalhos pioneiros do
pesquisador americano R. Brooks. Seu projeto tem como ponto de partida a construção de
robôs móveis ou “agentes autônomos” nos quais o movimento (autolocomoção)
desempenha um papel fundamental na geração de comportamentos complexos e
emergentes. A expressão “nova robótica” surge a partir de uma diferença em relação à
robótica tradicional. Esta última enfatiza o estoque de memória onde o número de situações
cotidianas que a máquina pode encontrar se expande continuamente. Já a nova robótica
aposta no aprendizado a partir da interação das máquinas com seu meio ambiente.
32
Os partidários da inteligência artificial simbólica negam solenemente incorrer num mentalismo de tipo
cartesiano. Fodor (1981) sustenta que as representações são definidas pelo seu papel sintático numa
linguagem de programação e que é a alteração desta sintaxe que produz o “comportamento” da máquina.
Note-se, porém, que a determinação sintática é insuficiente para individuar a semântica das representações:
num programa de computador a representação da guerra contra o Afeganistão pode ter a mesma estrutura
sintática de um jogo de xadrez. É possível inferir estrutura sintática a partir de uma representação, mas não
vice-versa. Encontramos aqui uma versão do problema da assimetria entre o físico e o mental, não entre
cérebro e mente, mas entre software e hardware de uma máquina. O problema cartesiano entra pela porta dos
fundos na forma do problema da tradução, uma questão típica da filosofia da mente contemporânea que assola
todas as teorias materialistas e identitaristas do mental.
56
33
Esta é uma caracterização genérica da noção de comportamento que, usualmente, envolve atividade
muscular. Uma definição mais precisa de comportamento deveria incluir também os casos do chamado
comportamento encoberto, mas não o faremos aqui, por fugir aos propósitos de nosso trabalho.
57
Brooks sustenta um ponto de vista similar. Seu projeto prevê que os agentes
autônomos sejam dotados de um mínimo de pré-programação e que, a partir de sua
interação com o meio ambiente, novos padrões de comportamento possam emergir. Com
efeito, ele afirma que “intelligence can only be determined by the total behavior of the
system and how that behavior appears in relation to the environment” (R. Brooks, 1991, p.
16). Isto significa um deslocamento do objeto da ciência cognitiva em direção ao estudo
das interações do comportamento com o meio ambiente, que passa a ter papel
predominante. Em vez de se estudar a natureza e possibilidade de replicação da inteligência
através de um programa computacional busca-se investigar a formação/emergência de
comportamentos inteligentes de agentes autônomos inseridos num meio ambiente real.
Um exemplo do uso desta estratégia metodológica para explicar/replicar o
comportamento inteligente foi a construção de insetos robôs pela equipe de Brooks no MIT.
Brooks observou o comportamento dos insetos na natureza, que, em certas ocasiões,
apresentam comportamentos complexos e uma notável capacidade de resolução de
problemas – tudo se passaria como se os insetos tivessem capacidade de raciocínio lógico
que contribuísse para algo parecido com uma tomada de decisões. Brooks partiu da idéia de
que essa complexidade de comportamento não poderia ser explicada unicamente pela
atividade cerebral e cognitiva desses insetos, pois estes são organismos simples. A
interação do comportamento com o meio ambiente seria a chave para explicar como esses
seres simples poderiam exibir comportamentos complexos. Para substanciar este ponto de
vista Brooks construiu algumas dúzias de insetos robôs cujo comportamento era governado
apenas por um tipo de regra simples: desviar de um obstáculo quando este era encontrado.
Porém, quando os insetos robôs começaram a interagir com o meio ambiente, passaram,
progressivamente, a apresentar comportamentos cada vez mais complexos e sofisticados.
No que diz respeito à noção de representação também encontramos pontos comuns
entre o projeto teórico/metodológico de Brooks e o behaviorismo radical. Ambos rejeitam a
versão dualista do mentalismo herdada do cartesianismo. Não se trata de ignorar a
existência de eventos privados (neles incluídas as representações) nem tampouco de tentar
esvaziar sua ontologia, mas de afirmar que sua natureza é física.
Na visão cartesiana a representação tinha de ter propriedades especiais que a
distinguisse dos objetos representados, ela não poderia ser um objeto físico entre outros, ou
58
seja, ela tinha de ser algo a mais do que uma relação física ou uma relação entre coisas no
mundo. Idéias, intenções, sonhos ou qualquer estado mental representacional não poderia
ser um evento no mundo: sua característica representacional nunca poderia ser concebida
como uma relação entre objetos situados no espaço. Paradoxalmente, as representações e o
sujeito cognoscente que as portam tinham de ser excluídos do mundo para que estas
mantivessem este caráter distintivo. Sustentar a imaterialidade da mente era a melhor
estratégia para garantir esta propriedade diáfana das representações, ao mesmo tempo em
que se reforçava o pressuposto básico da interioridade do mental e sua separação em
relação ao mundo.
Em sua crítica à visão cartesiana da cognição Brooks sustenta que representações
são fenômenos psicológicos e cognitivos que ocorrem no mundo, que estas não podem ser
tratadas na forma de computações abstratas independentes de seu substrato físico como
queria a inteligência artificial simbólica. Representações são geradas na interação de
agentes autônomos com seu meio ambiente e estas devem ser objeto de estudo e não ponto
de partida ou fundamento da investigação cognitiva. Em outras palavras, representações
não são uma abstração produzida por um “olho desencarnado” e excluído do mundo como
pressupõe a ciência cognitiva cartesiana. Elas fazem parte do meio ambiente e dele
participam juntamente com comportamentos. Neste sentido, se substituirmos a palavra
representação por evento privado podemos aproximar ainda mais as perspectivas de Brooks
e de Skinner: não se trata de negar a ontologia dos estados internos pura e simplesmente,
mas de rever seu estatuto e papel na formação de teorias psicológicas e cognitivas.
2 – A neurociência cognitiva
desses animais sem que estes estejam anestesiados. Além disto, a neurociência cognitiva
passou a servir-se das novas técnicas de neuroimagem (PET – Positron Emission
Tomography e o fMRI ou Functional Magnetic Resonance Imaging) que permitiram, no
caso dos seres humanos, o estudo da atividade cerebral in vivo.
Embora os neurocientistas cognitivos não tenham desfechado nenhum ataque
explícito à ciência cognitiva cartesiana sua ênfase no papel e importância do wetware
(termo utilizado para designar o cérebro) já constitui, por si só, uma crítica ao paradigma
simbólico. A ênfase no caráter específico das funções cerebrais e no tipo de material de que
é composto o cérebro sugere que este não poderia ser instanciado em algum outro tipo de
dispositivo como, por exemplo, uma máquina com peças de silício. O cérebro se
assemelharia muito mais a uma máquina eletroquímica do que a uma placa de computador.
Neste sentido, o computador estaria deixando de ser a metáfora explicativa para retornar a
ser uma ferramenta de trabalho.
A neurociência cognitiva abre uma perspectiva ampla de investigação que reintegra
o papel do comportamento no estudo da cognição e da natureza das experiências
conscientes. Esta perspectiva baseia-se, sobretudo, na integração de vários tipos de
estratégias que visam correlacionar os níveis psicológicos, comportamentais e neurológicos
da investigação da consciência. Por exemplo, relatos de experiências conscientes permitem
associá-las com suas atividades neuronais correspondentes através do emprego de técnicas
de neuroimagem. Neste caso, o comportamento verbal proporciona a ponte desejável entre
a experiência consciente e suas bases cerebrais, abrindo o caminho para a investigação
empírica da natureza da consciência.
Um outro exemplo que ilustra a reintegração do papel do comportamento no estudo
da correlação entre experiência consciente e atividade mental foi fornecido por Flanagan
(1998) que investigou casos de rivalidade perceptual nos macacos rhesus.34 Um caso
específico de rivalidade perceptual é a chamada rivalidade binocular. Apresenta-se
simultaneamente aos olhos esquerdo e direito dois estímulos visuais incompatíveis. Por
exemplo, apresenta-se ao olho esquerdo uma linha subindo e ao olho direito uma linha
descendo. Experimentos com percepções incompatíveis mostraram que estas não podem
34
Seguimos aqui passo a passo a caracterização deste experimento tal como é apresentada por Flanagan
(1998). Apresentamos texto similar em Teixeira (2.000).
60
ocorrer simultaneamente para os seres humanos. Nesses casos, o que ocorre é uma
alternância entre a percepção da linha se movendo para baixo (olho esquerdo) e da linha se
movendo para cima (olho direito).
Suponhamos agora que queiramos saber se esse fenômeno, a rivalidade binocular,
ocorre também com os macacos rhesus. Queremos saber, através de algum experimento, se
esses macacos têm uma experiência subjetiva semelhante à nossa no caso da rivalidade
binocular. O primeiro passo será treinar o macaco para pressionar uma barra uma vez
quando percebe a linha se movendo para baixo e duas vezes quando a percebe se movendo
para cima. Pressionar a barra uma vez ou duas vezes funciona como uma espécie de relato
que o macaco faz acerca de sua experiência subjetiva. O passo seguinte será correlacionar
esse “relato” com eventos no cérebro do macaco. Verificou-se, por exemplo, que há grupos
de neurônios que são ativados quando o olho esquerdo recebe estímulos e outros grupos
que respondem a estímulos chegando ao olho direito. Há ainda um terceiro grupo que é
ativado quando ocorre a mudança de percepção, ou seja, quando a percepção predominante
muda do estímulo que chega ao olho esquerdo para aquele que chega ao olho direito.
Esse experimento mostra como a experiência subjetiva pode ser estudada
empiricamente através da correlação entre vários níveis de explicação proporcionados por
diferentes estratégias teóricas integradas pela neurociência cognitiva. Nele se correlacionam
experiência subjetiva (experiência visual), comportamento (o macaco foi treinado para
fornecer “relatos” de suas experiências através de seu comportamento de pressionar a barra)
e a observação de sua atividade cerebral relacionada com a mudança de suas experiências
perceptuais.
Neste caso, novamente o comportamento assume papel de importância no estudo da
experiência subjetiva na medida em que ele nos proporciona uma ponte entre esta e a
atividade cerebral a ela correspondente. Conquanto o behaviorista radical possa excluir do
escopo de sua investigação o estudo da atividade neuronal como opção metodológica
(Skinner afirma que não importa o que ocorre under the skin), é preciso notar que este tipo
de estudo não se afigura como necessariamente incompatível com a perspectiva
skinneriana. Em outras palavras, a análise do comportamento pode ser complementada com
o estudo das suas bases neuronais subjacentes. Estas nos proporcionarão, a longo prazo,
uma perspectiva fisicalista acerca dos estados internos ou eventos privados (representações)
61
3 – Conclusão
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
ABIB, J.A.D. & LOPES, C.E. (2003) “O behaviorismo radical como filosofia da mente”.
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VARELA, F., THOMPSON, E. & ROSCH, E. (1995). The embodied mind. Cambridge,
MA: The MIT Press.
64
a melhor estratégia para uma crítica ao mentalismo dualista, pois equivaleria a mostrar uma
de suas maiores incoerências, qual seja, a de não poder explicar como o mental imaterial
seria capaz de produzir comportamentos na qualidade de movimentos musculares. É esta a
estratégia implicitamente adotada por Skinner ao ressaltar o caráter epifenomênico do
mental. É neste sentido que ele enfatiza os erros e até mesmo o caráter obsoleto da
psicologia cognitiva que estaria ressuscitando o fantasma da máquina na qualidade de teoria
psicológica.35 Mas estaríamos então apenas diante de um epifenomenalismo operacional,
sustentado apenas para refutar o mentalismo dualista? Seria em nome desse
epifenomenalismo operacional que o behaviorismo radical se transformaria numa
psicologia sem mente?
A idéia de um epifenomenalismo operacional parece chocar-se com a sentença que
encontramos na obra de maturidade de Skinner, onde ele afirma que o pensamento é
comportamento. Certamente este ponto de vista reforça suas idéias anticartesianas e anti-
mentalistas, na medida em que a crítica ao dualismo passa pela recusa da separação entre
pensamento e ação, um sucedâneo da separação mente-corpo. Neste caso, o pensamento
como comportamento seria um evento físico encoberto, ocorrendo no interior da caixa
craniana. Mas o que teria de característico esse evento físico encoberto que outros eventos
desse tipo que ocorrem no interior do corpo não têm? Em outras palavras, por que não
chamar de comportamentos, por exemplo, as atividades que são realizadas pelo fígado para
produzir a bílis? Não participariam elas também das relações sujeito-ambiente?36 Além de
encontrar uma característica específica para o pensamento como comportamento é preciso
buscar uma conciliação, na obra de Skinner, entre a idéia de que o mental se define como
epifenômeno com a afirmação de que o pensamento é comportamento. Se pensar é
comportar-se, estamos diante de um evento que ocorre no mundo (mesmo sendo encoberto)
e este evento não pode ser causalmente inerte.
35
Veja-se a este respeito o texto clássico de Skinner “Why I am not a cognitive psychologist” que,
infelizmente, identifica ciência cognitiva com cognitivismo.
36
Este seria o risco de sustentar uma visão puramente nominalista da noção de pensamento na obra de
Skinner. Ou seja, uma visão segundo a qual não haveria uma categoria específica de fenômenos a serem
reunidos sob um conceito de pensamento – seja este comportamento ou não. Veja-se a este respeito Andery &
Sério, 2003.
66
37
Pensar é comportar-se (1957, cap. 19), mas este comportamento pode ser acessível apenas àquele que
pensa. Processos fisiológicos certamente subjazem a este comportamento, “mas não precisamos fazer
suposições sobre o substrato muscular ou neural de eventos verbais” (Skinner, 1957, p. 435).
67
A adequação desta relação exige, por sua vez, uma seleção prévia de
comportamentos possíveis – uma seleção por conseqüências que ocorre intracerebralmente.
Esta consiste de um conjunto de respostas operantes que ocorre num meio ambiente virtual,
conforme já sugerimos acima. A característica adaptativa que torna este conjunto de
comportamentos intracerebrais comportamentos operantes é sua seleção de cenários
adequados para testar ações futuras, possibilitando, assim, essa adequação das respostas
motoras ao meio ambiente. A vantagem adaptativa desta seleção prévia é a preservação do
organismo de testes que ocorram em ambientes reais, o que poderia por em risco sua
sobrevivência.
Ao fazermos estas afirmações estamos cada vez mais nos afastando de uma teoria
exclusivamente skinneriana da natureza do pensamento. Certamente não encontraremos
esta teoria nos escritos de Skinner, constituindo esta uma visão muito peculiar do
behaviorismo radical que lhe adiciona elementos cognitivos. Estamos longe de estar
fazendo uma exegese da doutrina de Skinner ao atribuir-lhe esta teoria, mas,
paradoxalmente, acreditamos que teorias da natureza do pensamento de D. Dennett e W.
Calvin – sobre as quais nos apoiamos - podem lançar sobre as teorias skinnerianas uma luz
esclarecedora acerca de algumas de suas dificuldades teóricas. Entendemos que o
behaviorismo radical poderia perfeitamente tomar emprestados estes elementos cognitivos
adaptando-os para algo parecido com uma filosofia da mente skinneriana, ou pelo menos,
uma teoria do pensamento compatível com o behaviorismo radical.
extensa). A mente seria uma e simples por ser essencialmente indivisível. O sucedâneo
deste argumento, no mundo contemporâneo, seria a busca de um lócus da consciência no
cérebro ou num segmento deste – uma investigação que nas últimas décadas tem motivado
grande parte da pesquisa neurocientífica, tornando-a, em grande parte, uma busca ingênua
por uma quimera. Se não há um lócus da consciência no cérebro, tampouco há uma agência
controladora central de qualquer natureza ou algum “grande coordenador” que conferiria à
consciência uma unidade. É preciso também dissociar a idéia de consciência da noção de
um pano de fundo (um teatro cartesiano) sobre o qual se inscreveriam as experiências
conscientes (conteúdos mentais). Não existe esse pano de fundo. A consciência é
simplesmente a coleção de experiências conscientes.
Na primeira parte de seu livro, Dennett nos introduz àquilo que ele chama de uma
teoria empírica da consciência. O ponto de partida desta teoria é um modelo cognitivo
chamado “pandemonium”. Tudo se passa como se na nossa cabeça existissem milhares de
pequenos agentes competindo entre si para tornar-se o foco de nossa atenção. Uns precisam
predominar sobre os outros e esta predominância é momentânea. Não existe uma via
simples entre um estímulo e sua percepção e não é necessário postular nenhum momento
específico ou local determinado onde ele se torne consciente, ou seja, ingresse na esfera
fenomênica. O que existe são múltiplos canais ou canais paralelos. O cérebro produz muitas
versões a partir de um único estímulo; algumas versões são adotadas, outras são
abandonadas.
Desta coleção de predominâncias pontuais forma-se ou acopla-se uma máquina
virtual que cria uma seqüência dentro das múltiplas versões criadas. Esta máquina faria o
inverso daquilo que uma rede neural faz, ou seja, em vez de distribuir tarefas para realiza-
las em paralelo, ela sequencializaria uma máquina que realiza múltiplas tarefas, que, no
caso, é o cérebro com sua imensa plasticidade. Isto gera a sensação de um fluxo de
consciência unívoco, mas na verdade não há um fluxo único de consciência nem um
significador central que coordene tanto os mecanismos de entrada de percepções como os
mecanismos de saída de ações. Não há uma narrativa privilegiada feita por um elaborador
central, embora a maneira como experimentemos nossa consciência cotidianamente nos
faça supor isto: temos a impressão de que a narrativa seja serial, uma impressão causada
pela máquina virtual no cérebro.
69
O tempo todo o cérebro está criando inúmeras versões sobre percepções, sensações,
emoções, sentimentos. Circuitos especialistas, no cérebro, trabalham em paralelo,
realizando diferentes tarefas, criando narrativas fragmentadas. Fragmentos de narrativas
competem entre si o tempo todo. A máquina virtual tem um funcionamento serial e gera
uma narrativa serial, mas isto não quer dizer que o funcionamento do cérebro seja serial.
Como uma máquina virtual, ela não está localizada em nenhum lugar do cérebro nem
precisa ser um espírito que observa o que se passa no cérebro (consciência reflexiva). O que
ela faz é juntar os temas desenvolvidos pelos vários especialistas de tal forma que se
estabeleça uma coerência de narrativa – uma coerência que será também momentânea.38
A máquina híbrida de Dennett – ou sua máquina joyceana – nos passa a imagem do
pensamento (consciência fenomênica) como essencialmente uma reconstrução de ações
unidas por uma narrativa momentânea. O aspecto fragmentário das versões da realidade
que chegam através de estímulos sugere que estas são causalmente inertes na produção de
comportamentos. Se não há controlador central do pensamento que produza um eu-central
podemos igualmente supor que a consciência (no sentido de conteúdo fenomênico)
encontra-se dissociada da coordenação e da produção de comportamentos manifestos.
Versões abandonadas ou esquecidas seriam essencialmente epifenomênicas. Para esta
característica epifenomênica contribuiria também seu caráter fragmentário. Neste sentido, o
pensamento seria apenas um acompanhante das ações (movimentos corporais) que não teria
nenhuma função cognitiva, ou seja, em nada ele contribuiria para que estas ações fossem
mais ou menos adaptativas em relação ao meio ambiente. Deste ponto de vista, uma certa
interpretação das idéias de Skinner e as de Dennett seriam aqui coincidentes, convergindo
para a desconstrução da noção de um eu-iniciador para a produção de comportamentos.
Contudo, a idéia de “pandemonium” sugere um outro caminho possível: o de que o
pensar é um tipo de ação ou um comportamento encoberto. Com efeito, a idéia de
“pandemonium” ou uma disputa pela serialização assemelha-se, em muitos aspectos, à
seleção darwiniana onde aquilo que é selecionado entra momentaneamente no fluxo serial
de pensamento, para, segundos depois, ser substituído por um outro conteúdo mental
competidor. Mas estaremos aqui diante de uma seleção por conseqüências, ou um processo
38
Servi-me, para fazer esta descrição, de trechos do livro de Paulo de Tarso Gomes, (Gomes, 2002).
70
39
Para esta breve exposição das idéias de Calvin utilizei-me de algumas passagens de meu livro (Teixeira,
2000).
40
“My minimalist model for mind suggests that consciousness is primarily a Darwin Machine, using utility
estimates to evaluate projected sequences of words/schemas/movements that are formed up off line in a
massively serial neural device. The best candidate becomes what “one is conscious of” and sometimes acts
upon. What´s going on in mind is not really a symphony but is more like a whole rehearsal hall of various
melodies being practiced and composed; it is our ability to focus attention upon one well-shaped scenario that
allows us to hear a cerebral symphony amid all the phantasy” (Calvin, 1990, p. 332).
71
radical. Não é difícil perceber que o cenário ganhador na disputa darwiniana é aquele que
será momentaneamente serializado e que, neste sentido, é razoavelmente simples conceber
o pensamento de Dennett e o de Calvin como complementares. Resta-nos agora ver se a
idéia de pensamento como comportamento do cérebro poderia ser concebida a partir da
combinação destas duas máquinas.
O caminho a ser seguido é combinar a idéia de pensamento como comportamento
ou evento físico intracerebral com a idéia de cenário ganhador na disputa darwiniana – o
cenário que como evento físico levará à produção de respostas motoras – e a idéia de
respostas operantes que precedem a seleção do cenário final com os cenários rejeitados
após testes em ambiente virtual (causalmente inerte) que seriam, no modelo dennettiano as
versões esquecidas, abandonadas ou momentaneamente excluídas da serialização. Estas
últimas seriam pensamentos na qualidade de epifenômenos enquanto que os
comportamentos selecionados intracerebralmente seriam eventos físicos que podem
produzir outros comportamentos.
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
ANDERY, M.A., & SÉRIO, T.M. (2002) – “O pensamento é uma categoria no sistema
skinneriano?” – Artigo não publicado.
CHIESA, M. (1994) – Radical behaviorism: The philosophy and the science. Boston: The
Author´s Cooperative
CALVIN, W., (1990) The Cerebral Symphony. New York: Bantam Books.
CALVIN, W., (1996) How Brains Think. New York: Basic Books. Traduc. Brasileira de
Alexandre Tort, Como o Cérebro Pensa. Rio de Janeiro, 1998.
Esta resposta é apenas uma instância de uma série de movimentos que podem ser
executados pelo organismo na produção de determinada conseqüência. Esta resposta é um
comportamento operante e faz parte de um operante. Comportamento operante é aquele
que ocorre no contexto das contingências de reforço. Um operante é uma classe de
respostas que ocasionam sempre um mesmo efeito sobre o ambiente, ou seja, produzem
sempre a mesma conseqüência reforçadora.
Com a introdução do conceito de operante, o behaviorismo radical introduz uma
noção de causalidade na sua teoria que a afasta de concepções mecanicistas: a idéia de
seleção do comportamento por suas conseqüências. Skinner começa a delinear este modelo
a partir de 1953, inspirando-se na teoria darwiniana da seleção natural das espécies. Note-
se, porém, que sua teoria do comportamento não é baseada na teoria da seleção natural,
servindo esta última apenas de um modelo do qual é possível derivar interessantes
similaridades.
Numa passagem de 1981 (1981/1984) Skinner aponta que a seleção natural é um
modo causal encontrado em seres vivos ou também “em máquinas feitas por seres vivos”
(p. 477). Neste sentido, a seleção por conseqüências não precisa ser necessariamente um
modelo biológico ou uma propriedade exclusiva dos organismos ou dos seres vivos que
estariam submetidos à seleção natural darwiniana. Pouco importa se as máquinas a que ele
se refere foram ou não construídas por seres vivos, sua interação com o meio ambiente ou
com outras máquinas pode simular este processo de seleção por conseqüências. A robótica
evolucionária ilustraria um processo de seleção por conseqüências sem que as máquinas
envolvidas neste processo tenham qualquer semelhança com seres vivos. Por exemplo, os
robôs desenvolvidos por Nolfi e Floreano (Nolfi e Floreano, 2003) não têm a mesma
constituição que organismos infra-humanos ou humanos, mas simulam comportamentos
onde ocorre uma seleção por conseqüências.
Este ponto de vista sobre a interpretação do texto skinneriano deixa espaço para
pensar a noção de operante a partir de outros modelos que podem levar à seleção por
conseqüências sem, entretanto, serem especificamente darwinianos, ou seja, sua inspiração
não tem de ser necessariamente biológica. Estes modelos serão compatíveis com a teoria
skinneriana se neles for mantida uma premissa básica: a de que comportamento é um
fenômeno natural, sujeito a leis naturais. A adoção de algum outro tipo de modelo para
76
43
Veja-se Teixeira, J. de F. (2000) p. 80.
80
novas respostas motoras.44 É esta complexidade que Schick e Prado Jr. chamaram de
circularidade, mas que é, do ponto de vista da teoria do caos e dos sistemas dinâmicos, um
caso de causalidade descendente, ou seja, sistemas onde propriedades emergentes coletivas
têm efeito causal sobre o substrato material que os sustenta.
Esta complexa interação bi-direcional entre organismo e meio ambiente torna a
emergência de novos operantes imprevisível, afastando a análise do comportamento de
qualquer ideal dedutivo de ciência. O caráter não-linear desta interação permite apenas
aproximações indutivas na caracterização das regularidades do comportamento dos
organismos, eliminando do projeto científico da análise do comportamento qualquer
tentativa de torná-la uma ciência estritamente matemática ou guiada por qualquer ideal
determinista laplaciano.
O ideal laplaciano de predição tem de ser abandonado quando se considera sistemas
cuja complexidade pode aumentar exponencialmente, como é o caso de ambientes dos
quais participam vários organismos humanos, o que leva a um grande aumento no número
de variáveis que podem se combinar/re-combinar. O aparecimento de sistemas simbólicos
como a cultura e a linguagem contribuem para o aumento desta complexidade, sobretudo se
considerarmos que a linguagem acaba contribuindo para a formação de mini-ambientes
virtuais. Ademais, a linguagem aumenta a estimulação e, devido a seu caráter injuntivo
aumenta igualmente a complexidade dos ambientes produzindo bifurcações e novas
associações no sistema complexo que reúne humanos e seu meio ambiente.
44
“What we have is a circuit, not an arc or broken segment of a circle. This circuit is more truly termed
organic than reflex, because the motor response determines the stimulus, just as truly as sensory stimulus
determines movement” (Dewey, J.,, 1896, p. 363).
82
um mentalismo indesejável. Não quer isto dizer que na teoria do caos e dos sistemas
dinâmicos comportamentos operantes não tenham valor adaptativo, mas tão somente que
nem todos os comportamentos operantes são necessariamente adaptativos como o próprio
Skinner o reconhece. Em outras palavras, o valor adaptativo deixa de ser um telos (bem
sucedido ou não) dos comportamentos operantes.
Que tipo de dificuldades teóricas enfrentamos então? Elliasmith (1996) levanta duas
objeções freqüentes ao emprego da teoria dos sistemas dinâmicos na psicologia. Em
primeiro lugar é preciso notar que ela não tem um poder propriamente explicativo
limitando-se a ser uma espécie de re-descrição dos fenômenos, utilizando seu aparato
matemático específico. Em segundo lugar – e talvez esta seja a objeção mais séria – nada
nos autoriza a transposição de uma teoria matemática utilizada para explicar porções
específicas do mundo físico para a montagem de explicações da natureza da cognição e do
comportamento sem antes mostrar que estes últimos também são parte do mundo físico
explicável pela teoria dos sistemas dinâmicos. Esta transposição, feita de forma brusca e
sem a discussão de suas implicações epistêmicas não permite que tracemos uma
correspondência precisa entre os enunciados da teoria dos sistemas dinâmicos e modelos
psicológicos, o que faz com que estes últimos percam o poder preditivo que a teoria
matemática dos sistemas dinâmicos aplicada ao mundo físico –uma teoria provada e
falseável – pode nos oferecer.
Como conseqüência, a teoria dos sistemas dinâmicos quando aplicada
indiscriminadamente, parece pecar por sua excessiva generalidade ou abrangência que
engloba desde o caos até os sistemas determinísticos, o que a torna uma teoria que
explicaria tudo o que ocorre no universo. O dinamicista herda o mundo. Desta perspectiva
não é possível diferenciar entre agentes cognitivos ou organismos que exibem
comportamentos adaptativos de furacões, epidemias ou de congestionamentos de carros,
pois todos estes fenômenos poderiam ser explicados em termos de atratores e propriedades
emergentes. A especificidade da explicação psicológica se dissolve e, paradoxalmente, a
utilização de modelos matemáticos como se os fenômenos psicológicos fossem fenômenos
físicos a enfraquece em vez de a fortalecer. No caso do operante, de que tratamos aqui, o
tratamento físico-matemático do comportamento através das categorias da teoria dos
sistemas dinâmicos – os atratores e as propriedades emergentes – tem a conseqüência
83
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
DEWEY, J. (1896) “The reflex arc concept in psychology”. Psychological Review, 3: 357-
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Appleton-Century-Crofts. (Trabalho original publicado em 1966).
Embora coexistindo nos últimos cinqüenta anos, duas das mais importantes escolas
psicológicas do século XX, o behaviorismo radical e a ciência cognitiva, vêm se mantendo
incomunicáveis na medida em que os behavioristas radicais identificam esta última com um
mentalismo indesejável e os cientistas cognitivos não distinguem entre behaviorismo
radical e behaviorismo metodológico. Esta caracterização monolítica destas disciplinas
gerou uma falsa oposição entre ambas, tendo como uma de suas principais conseqüências a
redução da importância do papel do comportamento nos estudos sobre a natureza da
cognição (Cizek, 1999). Além deste clichê histórico que se formou nas últimas décadas, a
ênfase progressiva nos programas de redução psiconeural (Bickle, 1998, 2003) levou a uma
predominância das abordagens internalistas na psicologia e na filosofia da mente, em
detrimento da análise de fatores comportamentais e ambientais na montagem de
explicações psicológicas. A ênfase na determinação orgânica (cerebral), típica do
internalismo, esvazia a possibilidade de que processos mentais, embora dependentes de
estruturas cerebrais para sua ocorrência, tenham como referência o ambiente e conteúdos
culturais articulados em um sistema representacional que teriam um peso decisivo na
explicação do comportamento dos organismos.
Esta predominância de abordagens internalistas tem sido apoiada pelo aparecimento
das técnicas recentes de mapeamento cerebral e, implicitamente, pela biopsiquiatria, ambas
acompanhadas por grande entusiasmo com que foram recebidos alguns de seus resultados.
Reforçando ainda mais este cenário, temos o aparecimento da genética comportamental
que, a primeira vista, deslocaria o lócus da explicação psicológica para fatores biológicos e
filogenéticos, também em detrimento de variáveis ambientais, o que para alguns,
significaria que a análise do comportamento seria uma abordagem periferalista já
ultrapassada. Tentativas de estabelecer uma convergência entre a análise do comportamento
e disciplinas como a neurociência (na década de 90) e a genética comportamental através da
proposta da chamada abordagem biocomportamental (biobehavioral approach), foram
87
feitas recentemente (Donahoe, Burgos and Palmer, 1993; Donahoe & Palmer, 1994) sem,
entretanto, surtir o efeito esperado sobre a comunidade psicológica.
Uma possibilidade para superar este tipo de conflito metodológico foi aberta pelo
aparecimento da neurociência cognitiva, um dos ramos mais importantes da ciência da
cognição contemporânea. Rugg (1997) salienta que a neurociência cognitiva constitui uma
estratégia metodológica que se formou a partir do estudo dos efeitos de lesões cerebrais e
da observação sistemática das correlações entre comportamentos explícitos de animais e
sua atividade neuronal. Esta tarefa seria executada pela introdução de eletrodos nos
cérebros desses animais sem que estes estejam anestesiados. Além disto, a neurociência
cognitiva passou a servir-se das novas técnicas de neuroimagem (PET – Positron Emission
Tomography e o fMRI ou Functional Magnetic Resonance Imaging) que permitiram, no
caso dos seres humanos, o estudo da atividade cerebral in vivo.
A neurociência cognitiva abre uma perspectiva ampla de investigação que reintegra
o papel do comportamento no estudo da cognição. Esta perspectiva baseia-se, sobretudo, na
integração de vários tipos de estratégias que visam correlacionar os níveis psicológicos,
comportamentais e neurológicos da investigação do funcionamento mental. O behaviorista
radical poderia, como opção metodológica, continuar a excluir deliberadamente do escopo
de sua investigação o estudo da atividade neuronal subjacente ao comportamento. Por outro
lado, nesta nova perspectiva ele poderia também se servir destes dados para clarificar e
consolidar suas explicações do comportamento. O estudo de suas bases neurais não se
afigura como incompatível com a perspectiva skinneriana, (McIlvane, 1998) na medida em
que o que era antes uma caixa preta inatingível que seria da competência exclusiva da
fisiologia do futuro, tornou-se agora mais acessível à observação. As bases neuronais
subjacentes ao comportamento nos proporcionarão, a longo prazo, uma perspectiva
fisicalista (proporcionada pela possibilidade de redução psiconeural) acerca da natureza dos
estados internos ou eventos privados que poderão assumir, na análise do comportamento, o
papel de variáveis ambientais encobertas. Em outras palavras, a neurociência cognitiva
abriu a possibilidade de observar como o cérebro se comporta e como ele pode produzir
comportamento. A realização desta tarefa, qual seja, a reintegração da análise do
comportamento com o que ocorre under the skin dependerá, entretanto, da recusa de clichês
88
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
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