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Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ
BELO HORIZONTE
2006
2
3
AGRADECIMENTO
RESUMO
Esta dissertação tem como objeto de estudo o vocábulo “carne” aplicado à pessoa
de Jesus no Prólogo joanino. Partindo da interpretação dada ao termo por Ireneu de Lião,
Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Karl Rahner, é formulado o status questionis. As
perspectivas judaica e paulina são analisadas, respectivamente, como pressuposto e elemento
comparativo para uma definição do vocábulo em Jo 1,14a. Ao afirmar “a Palavra se fez
carne” (Jo 1,14a) João propõe que a existência mortal de Jesus é elemento essencial para a
manifestação da glória/amor do Pai (cristologia do envio). O estudo de outras ocorrências de
“carne” na obra de João (Evangelho e Cartas) ressalta o valor dado à humanidade de Jesus.
Por fim, são apresentadas algumas incidências de “Jesus-carne” na eclesiologia, nos diálogos
ecumênico e inter-religioso, na relação com o mundo moderno. O presente estudo teológico-
exegético visa, portanto, elucidar um dos aspectos, “carne”, da profissão de fé da encarnação.
Palavras-chaves
Carne, Evangelho segundo João, humano, encarnação, cristologia (do envio).
RÉSUMÉ
Mots-clés
Chair, Évangile selon St Jean, humain, incarnation, christologie (de l’envoi).
6
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO................................................................................................................2
RÉSUMÉ...................................................................................................................................3
LISTA DE ABREVIATURAS.................................................................................................8
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
Conclusão.............................................................................................................................53
3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo90
3.4.1 – Jesus e a mulher samaritana – Jo 4,1-30...........................................................92
3.4.2 – Jesus e o debate sobre a filiação de Abraão – Jo 8,39-47.................................93
3.4.3 – Jesus e a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41................................................94
3.4.4 – Jesus acusado de blasfêmia – Jo 10,22-39........................................................96
3.4.5 – Jesus, o sinal de Lázaro e a reação do Sinédrio – Jo 11....................................96
3.4.6 – Jesus diante de Pilatos – Jo 19,1-16..................................................................97
3.5 – A cristologia do envio e o termo sa,rx...................................................................98
3.6 – O Jesus histórico em João......................................................................................101
3.7 – Conclusões acerca do termo sa,rx em João.........................................................103
Conclusão...........................................................................................................................108
Conclusão...........................................................................................................................135
CONCLUSÃO.......................................................................................................................138
LISTA DE ABREVIATURAS
AT Antigo Testamento
cap. capítulo
cf. confira
CESJ TOMÁS DE AQUINO. Commentaire sur l’évangile de Saint Jean. Paris : Cerf,
1998.
DCT LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola,
2004.
DGNT RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus,
2003.
DV Dei Verbum
ed. edição
10
et al. et alii
GS Gaudium et Spes
ibid. ibidem
NT Novo Testamento
p. página
Trat. AUGUSTÍN, San. Tratados sobre el evangelio de San Juan (1-35). Madrid:
Editorial Católica, 1955.
ST I TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. I, v. I (q. 1-43).
ST III TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2002. III, v. VIII
(q. 1-59).
UR Unitatis Redintegratio
INTRODUÇÃO
O debate acerca da encarnação tem sido questionado nos últimos tempos pela
cultura moderna e pelo diálogo inter-religioso, sendo assim de grande relevância refletir sobre
o “Jesus-carne”. O cristianismo não pode ter uma falsa segurança de ser o detentor universal
da verdade, esperando que suas palavras sejam aceitas em todos os âmbitos. O caminho do
diálogo surge naturalmente como exigência que, se não respondida, descuida daquilo que é o
propósito do Evangelho, ou seja, a comunicação do amor de Deus e do seu desejo salvífico
em relação à humanidade. Portanto, é necessário, hoje, mais que em outras épocas, explicitar
o que os cristãos querem dizer ao afirmar que “o Logos se fez carne”.
Como toda teologia tem por fim servir para o crescimento, amadurecimento e
vivência da fé, o último capítulo tem como preocupação central apresentar algumas
incidências da pesquisa sobre o “Jesus-carne”. A incidência intra-eclesial aponta para a
redescoberta do “Jesus-carne” e o desafio de se transpor para a vivência da fé a formulação e
reflexão teológicas. A segunda incidência está relacionada com a necessidade de um diálogo
mais claro e corajoso com outros cristãos e com as outras religiões. Tais diálogos
encontrariam em “Jesus-carne” alguma contribuição? A última incidência toca na necessidade
de uma aproximação da afirmação cristã acerca da humanidade de Jesus com a cultura e
14
pensamento modernos. “Jesus-carne” poderia ser apresentado como uma referência humana
para a modernidade?
Por fim, há um desejo de que, ao final da leitura deste texto, a aproximação com o
“Jesus-carne” possibilite um resgate da pessoa humana como condição escolhida por Deus
para a sua melhor e mais autêntica comunicação de amor. O v. 14a do Prólogo desperta para o
mistério já abordado por muitos, mas que sempre será novo e exigirá novas interpretações. No
“Jesus-carne” joanino está presente a surpreendente ação de Deus que coloca no mais alto
lugar aquela condição considerada pela maioria das pessoas como humilhante e negativa.
Enquanto muitos buscam Deus nas alturas, ele busca o humano no terreno de cada dia. Ele
ensina que para alcançar a divindade é preciso assumir a humanidade como dom e busca de
realização à luz de seu Filho. Contra todo cristianismo superficial que rejeita a humanidade de
Jesus ou que a professa apenas formalmente, levanta-se a reflexão sobre o “Jesus-carne”
enquanto afirmação de que só se é cristão à medida que se assume como legítima a sua
condição humana.
15
Por fim, com o objetivo de aproximação com uma representação da teologia mais
hodierna, coloca-se a reflexão do termo “carne” a partir da teologia transcendental de Karl
Rahner. Talvez, já adiantando uma conclusão final, será esta a mais próxima daquilo que João
procurou afirmar de forma concisa no Prólogo.
16
Acreditamos que, partindo dessas quatro leituras, temos então uma noção do
status quaestionis da leitura/interpretação do termo “carne”, especificamente na sua relação
com a pessoa de Jesus, na menção feita ao mesmo no v. 14a do Prólogo. Outras leituras
poderiam ser apresentadas, mas nessa escolha existem referências bastante significativas no
que diz respeito ao período histórico, à visão de Deus, à forma de elaboração teológica.
Ireneu, Agostinho, Tomás e Rahner, quatro palavras sobre o mesmo mistério que se encerrou
como “carne” humana. No mosaico das compreensões do termo “carne”, há um movimento
crescente que convida o humano a dar-se conta de si e de sua “carne” como mistério querido
por Deus.
1
Cf. FANTINO, Jacques. Ireneu de Lião. In: DCT, p. 918. – Escrito em grego, o texto só subsiste completo
numa versão latina do séc. IV. Do texto grego há somente fragmentos, principalmente do livro I. Existem ainda
fragmentos em armênio e siríaco, uma tradução armênia dos livros IV e V.
2
LIÉBAERT, J. Os Padres da Igreja (séculos I-IV). São Paulo: Loyola, 2000, p. 61.
17
tocava nos pontos fundamentais de toda a formulação doutrinal cristã. Ireneu não se esquiva
de tal tarefa; antes procura, na fidelidade à Tradição, repassar as verdades cristãs. E o fará a
partir de uma perspectiva inusitada.
Em Adversus Haereses fica evidente que, para Ireneu, a salvação foi oferecida já
no ato criador de Deus, que tem em vistas a encarnação do Verbo. Se os gnósticos
prescindiam da “carne”, humanidade de Cristo, será ela, em Ireneu, o conceito-chave de sua
soteriologia que se encontra coerentemente no panorama teológico da unidade entre Deus e a
criação. Segundo Ireneu, salvação vincula-se com criação e, acidentalmente, com pecado.
González Faus argumenta que, para Ireneu, pecado e perdão fazem parte de um
momento posterior que ameaçou manchar a visibilidade da salvação. Essa ação de Deus só
pode dar-se na “carne”, e o mistério da encarnação demonstra o desejo divino de elevar a si
suas criaturas4. Nas palavras do próprio Ireneu: “Glória de Deus é o homem que vive e a vida
do homem consiste na visão de Deus”5.
3
Cf. ROUSSEAU, A. In: IRÉNÉE DE LYON. Contre les hérésies: Livre IV. Paris: Cerf, 1965. p. 273. –
Para Rousseau, estes elementos são o arcabouço, a referência de Ireneu para a refutação da falsa gnose. Segundo
Rousseau, há uma identificação da verdadeira gnose com a Igreja e a doutrina por ela proposta: “Pode-se dizer
que, para Ireneu, três tratados maiores constituem a fisionomia do ‘discípulo espiritual verdadeiro’: fé em Deus
todo poderoso Criador de todas as coisas – adesão ao Filho de Deus e ao mistério de sua encarnação redentora –
conhecimento do Espírito de Deus na Igreja e no desenvolvimento concreto da vida dela. Tríplice conexão: da
criação ao Pai; da redenção ao Filho; da vida eclesial ao Espírito.”
4
Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Carne de Dios, significado salvador de la Encarnación em la teologia de San
Ireneo. Barcelona: Herder, 1969. p. 26.
5
AH, IV 20,7.
18
6
Cf. ORBE, A. Antropología de San Ireneo. Madrid: Editorial Católica, 1969, p. 501-502. – A. ORBE, ao tratar
da antropologia de Ireneu, comenta a questão do motivo da encarnação, na sua possível relação com o pecado, da
seguinte maneira: “Ocorra ou não a transgressão, a economia de Gn 1,26 anuncia a mesma fundamental história
da salvação: igual distância entre o primeiro e o segundo Adão; igual intervalo entre a encarnação do Filho e a
consumação final; a mesma relação entre a matéria e o espírito, entre a carne e a visão do Pai, entre o criado e o
ingênito. Nada muda no essencial, já que persevera o barro de origem (Gn 2,7) e o paradigma (= imagem e
semelhança divinas) a que Deus lhe destina.” [o grifo é do autor].
7
Cf. LIÉBAERT, op.cit., p. 66.
8
– Para Ireneu o tema do conhecimento faz-se extremamente necessário, posto que será a objeção explícita a
todo pensamento gnóstico de iniciação e revelação. Em Cristo o conhecimento de Deus é acessível à humanidade
e não apenas a alguns humanos espirituais.
9
AH, IV 20,4.
10
AH, III 19,1.
19
culmina com o tornar-se imagem e semelhança de Deus 11. “[...] enquanto o Primogênito, isto
é, o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até
Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se imagem e semelhança de Deus”12. Como se
percebe, a salvação é uma divinização13 do humano. Segundo Orbe, Ireneu propõe que o
humano será elevado ao pleno conhecimento/participação em Deus:
O homem, que não nasceu filho natural de Deus, como o Verbo, foi
destinado à sua filiação adotiva. De Deus é o fazer, e do homem o ser feito.
Deixando-se fazer, o homem se torna por obediência filho de Deus. As duas
etapas – de barro a homem, e de homem a Deus – se cumprem debaixo do
sinal da obediência14.
A criatura não pode salvar-se por si mesma, mas é associando-se, conformando-se
e incorporando-se ao Verbo que ela alcança a meta de sua existência. Salvação é, pois, a
realização do fim último do humano: conhecer a Deus, estar em Deus. “Não teríamos
absolutamente podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo
Verbo, não se tivesse feito homem”15. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus,
na visibilidade do Verbo feito “carne”, reconhece em si a imagem de Deus que lhe foi
plasmada. O próprio Adão foi criado à imagem do Verbo 16. É vendo o Mestre que a
humanidade pode imitar suas ações e praticar suas palavras. E é isso que assegura a
comunhão17. A contemplação de Deus conduz a criatura a reconhecer e amar seu Criador18.
Existe em Ireneu uma visão otimista do ser humano, isto é: criatura, que não goza
dos atributos divinos, mas que é convidada a participar dessa divindade. Sendo assim, o ser
humano como tal, que já é criado à imagem e semelhança de Deus, é convidado a ver-se no
Cristo. González Faus aponta que a comunhão da humanidade com Deus é prolongamento da
encarnação e só pode ser pensada a partir desse mistério, movimento divino que atinge todas
11
Cf. ORBE, op.cit., p. 519-520. – Seguindo a corrente de São Justino, Teófilo Antioqueno, Melitão e outros,
Ireneu rejeita a visão platônica sobre o ser humano e acentua o valor da corporeidade. O barro é o substrato
material utilizado por Deus, enquanto que a forma que ele concede ao ser humano explicita o duplo sentido de
sua existência. Ireneu distingue “imagem e semelhança”: forma externa é a imagem de Deus; forma interna é a
semelhança divina.
12
AH, V 36,3. – Importa lembrar que, ao fazer-se “carne”, o Verbo não assume o pecado, já que este não é
constitutivo do humano.
13
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Jésus-Christ l´unique médiateur, essai sur la rédemption et le salut. Paris: Desclée,
1988. v. I, p. 135s; 204s. – Nessa obra, Sesboüé procura apresentar as diversas categorias utilizadas pela teologia
para abordar o tema da salvação. Ireneu é apresentado como um teólogo cuja reflexão deu bases para as
categorias soteriológicas de Divinização e Iluminação.
14
ORBE, op.cit., p. 523.
15
AH, V 1,1.
16
Cf. AH, V 16,2.
17
Cf. AH, V 1,1.
18
Cf. AH, IV 12,2.
20
Chega-se, assim, à questão que aqui interessa mais particularmente: qual visão
Ireneu elabora acerca do ser humano e qual a ressonância dela na interpretação do termo
“carne” mencionado em Jo 1,14a?
Recordando que a pessoa humana foi barro modelado por Deus, que deixou o
artista agir em sua matéria, Ireneu propõe que a “carne” é apta para as ações de Deus. Embora
fraca, no sentido de sua fragilidade/finitude – aqui sem nenhuma conotação de tendência ao
pecado – a “carne” pode participar do projeto de Deus: “[...], a carne se encontrará capaz de
receber e conter o poder de Deus como no princípio recebeu a sua arte”20.
19
Cf. GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 42.
20
AH, V 3,2.
21
ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma
não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a
vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem,
afasta-lhe a morte e o restituirá vivo a Deus 21.
Na concepção de Ireneu, o ser humano, animal racional ou ser psíquico pelo sopro
de vida, torna-se espiritual pela obra do Espírito vivificante que não mais abandona o ser
humano, desde que este abandone o mal e converta-se ao bem22. O Espírito pode modificar a
fraqueza/finitude da “carne”, auxiliando-a a alcançar seu destino. Há uma ressonância ética da
salvação com implicação antropológica.
21
AH, V 12,1.
22
Cf. AH, V 12,2.
23
Cf. AH, IV 14,1-3.
24
GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 197 [grifo do autor].
25
AH, III 19,1.
22
Em outro momento, afirma Ireneu: “[...] devia tornar-se quem devia ser salvo,
para não ser o Salvador de nada” 26. E no prefácio do Livro IV, Ireneu define o que considera
como ser humano: “O homem é composto de alma e de corpo, uma carne formada à imagem
de Deus e modelada pelas suas mãos”27.
26
AH, III 22,3.
27
AH, IV Pr.,4. IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995. p. 367. – Helcion Ribeiro, ao
comentar essa passagem, recorda que há dificuldades na compreensão do texto por se ter perdido o original.
Existem divergências nas traduções latina e armena. A forma como foi citado é da tradução armena, que,
segundo A. Orbe, condiz mais com o pensamento de Ireneu ao usar a expressão “uma carne formada e
modelada...” em vez de “formado o homem à sua imagem e...”. Ainda segundo Ribeiro, a versão armena evita a
dicotomia de alma e corpo. O humano é uma “carne” formada de alma e corpo. Tal afirmação tem conseqüências
no nível ético posto que a “carne” é parte integrante do humano e que este não existe sem ela.
28
AH, III 20,2.
29
Cf. AH, V 7,1. – Ireneu comenta os textos de Rm 8,11 e 1Cor 15,42.36. A “carne”, condição mortal do
humano, será resgatada justamente porque foi assumida pelo Verbo, tendo tornado-se “carne” de Deus.
30
Cf. AH, IV 38. – É o Espírito que conduz o homem à perfeição da comunhão com o Pai.
23
Outra questão que pode ser levantada diz respeito à preexistência do Verbo.
Ireneu, em toda a sua obra, afirma que o Verbo existe desde todo o sempre e é uma das mãos
do Pai31. Por ele as coisas foram criadas e, por ele, serão levadas a bom termo. Para ele, o
v. 14a do Prólogo acaba sendo uma prova da verdadeira encarnação. É o argumento
escriturístico para refutar os hereges. Note-se como ele apresenta essa questão do Logos que
se encarna:
Em síntese, é possível dizer que, para Ireneu, o fazer-se “carne” é o assumir por
completo a humanidade, compreendida como originalmente marcada pela graça de ser
imagem e semelhança de Deus. O “Jesus-carne” é o ser humano na plenitude do progresso a
que todos são chamados na relação de comunhão com Deus. A condição do ser mortal é a
ligação com o primeiro Adão formado do barro, insuflado pelo sopro divino. Jesus, novo
Adão, é a aquele que modelou no barro o primeiro e agora volta a tocar a humanidade. Jesus é
o artesão também feito barro que anuncia um Deus que jamais desistiu de se comunicar com
as suas criaturas. Como bem o afirma Ireneu numa síntese daquilo que é o agir do Cristo:
A mão de Deus que nos modelou no princípio e agora nos modela no seio
materno, esta mesma mão nos últimos tempos, nos procurou quando
perdidos, reencontrou a ovelha desgarrada, carregou-a aos ombros e com
alegria a reintegrou no rebanho da vida34.
31
Cf. AH, IV 20,1.
32
AH, III 18,1.
33
AH, IV 20,6.
34
AH, V 15, 2. – Ireneu faz um comentário sobre a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) em que a ação do Cristo
de fazer barro com a saliva (v.6) é apresentada como a manifestação pública da mão de Deus que modelou a
humanidade. A leitura do episódio do cego de nascença se vincula ao texto da criação do humano a partir do
barro (Gn 2,7).
24
35
Cf. PRIETO, Teófilo. Introduccion. In: Trat., p. 34.
36
Cf. Ibid., p. 4-9. – Há pelo menos três opiniões sobre o período em que Agostinho proferiu seus Tratados sobre
o Quarto Evangelho. Marie Comeau determina que os Tratados foram pregados no começo de 416, estendo-se
por aproximadamente dois anos. P. Zarb divide os tratados em duas séries. A primeira, compreendendo os
tratados de 1 a 54, teria se dado no ano de 413; já a segunda (55-124) teria sido ditada, não pregada, em 418.
Dom Huyben, Dom De Bruyne e Mons. Bardy partilham dessa opinião e ainda subdividem a segunda parte em
três blocos. Le Landais, após apresentação de consideráveis argumentos, propõe os anos 414-415. Como os
sermões não foram datados, não é de todo possível definir quando foi escrito e, além disso, é preciso recordar
que após o trabalho dos taquígrafos, certamente houve alguma complementação ao texto.
37
Cf. Trat. I, 7.
25
Por ser uma obra da maturidade de Agostinho, reflete muito do cristão que se
dedicou a meditar a palavra de Deus e que se reconhece agora desejoso por partilhar o sabor
experimentado. Agostinho parece buscar uma plena comunhão com o autor do evangelho,
procurando ser fiel às suas palavras e desentranhando delas toda a riqueza que seria oferecida
ao seu povo. Sabe das dificuldades de seu público, mas insiste na necessidade de adentrar ao
manancial do evangelho que não pode ser saboreado com o espírito carnal 38. Logo de
imediato entende-se que Agostinho irá propor um caminho de purificação do espírito para
acessar à divindade transcendente.
Duas passagens são chaves para entender o que Agostinho pensa sobre a
encarnação. Muito embora não sejam perícopes expressas sobre tal temática, de acordo com
uma exegese moderna, elas são lidas por Agostinho como princípios de interpretação do
mistério do Verbo vindo na “carne”. A primeira é sua interpretação de Jo 14,6a: “Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”. A segunda é a leitura da cura do cego de nascença (Jo 9).
Esses dois textos se complementarão no discurso de Agostinho.
38
Cf. Trat. I, 1.
39
Cf. PRIETO, op. cit., p. 45.
40
Trat. XIII, 4.
26
Nós somos agora iluminados, se é que temos o colírio da fé. Precedeu, pois a
mistura de sua saliva com a terra com a qual havia de ungir os olhos do que
nasceu cego. Nós nascemos de Adão cegos também e temos necessidade de
que Cristo nos ilumine. Fez uma mistura de saliva e terra: o Verbo se fez
carne e habitou entre nós. Misturou sua saliva com a terra 43.
Nessa passagem, comentando Jo 9,6, o pensamento de Agostinho se articula a
partir da idéia de que o ser humano é pó. Adão foi feito do pó da terra, seu pecado afastou-o
de Deus e somente pela graça da humilhação do Cristo o ser humano poderá recuperar sua
visão. O tema da cegueira foi muito usado por Agostinho para mostrar que o pecado afastara a
humanidade de Deus, porém Deus não se afastou dela. A luz permanece a brilhar e nada pode
41
Cf. HARDY, R. P. Actualité de la Révélation Divine – Une étude dés “Tractatus in Iohannis euangelium” de
Saint Augustin. Paris: Beauchesne, 1974. p. 119.
42
PRIETO, op.cit., p. 51.
43
Trat. XXXIV, 9.
27
ofuscá-la, “porém os corações néscios não têm capacidade para ver esta luz; os oprime e
impede que a vejam o peso de seus pecados”44.
Assim, pois, pode-se tocar nos motivos da encarnação. Agostinho responde a essa
questão de forma envolvente: “É que foi tanto o que me amou que, para fazer-me imortal,
quis nascer ele mesmo por mim numa vida mortal” 45. O Verbo encarnado é colírio que vem
em socorro da humanidade cega. É ele, somente ele, quem pode curar os olhos da
humanidade. Usa daquilo que foi a causa da cegueira, ou seja, o pó da terra, a condição de
servidão às paixões. Agostinho faz um belo axioma acerca dessa imagem: “O pó fez perder a
visão e o pó a devolverá. A carne foi a causa da tua cegueira e a carne é que vai fazê-la
desaparecer”46.
E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam (Jo 1,5). As trevas
são as mentes dos homens insensatos, cegadas pelas más concupiscências e
pela infidelidade. Foi para as curar e sarar que o Verbo pelo qual tudo foi
feito, se fez carne e habitou entre nós (Jo1,14). Pois nossa iluminação é uma
participação no Verbo, isto é, àquela vida que é a luz dos homens. A
imundície de nossos pecados tornava-nos menos idôneos ou totalmente
inábeis a essa participação. Devíamos, portanto, ser purificados 47.
Cristo, homem-Deus, é o médico que vem das alturas para curar a humanidade 48.
Ele é o mediador entre Deus e a humanidade. Nos motivos que Agostinho apresenta há
sempre a recordação do pecado, a situação de enfermidade e a necessidade de cura e, implícita
ou explicitamente, a menção ao Pai, ou seja, o retorno à pátria49.
44
Trat. I, 19.
45
Trat. II, 15.
46
Trat. II, 16.
47
DT, IV 2,4.
48
Cf. Trat. III, 3.
49
Cf. Trat. II, 3.
28
dá continuidade ao pensamento sobre a Imago Dei e leva para lugar central de sua reflexão o
tema do humano.
Devido ao diálogo com o mundo grego, Agostinho leva para a antropologia cristã
a compreensão do ser humano como um composto de corpo e alma 52. “Corpo e alma são duas
realidades distintas: uma externa, a outra interna, são também duas realidades diversas entre
si, enquanto desempenham funções distintas. O homem não é só um ou o outro” 53. Para o
Bispo de Hipona, não foi segundo a forma corpórea que a pessoa foi criada à imagem e
semelhança de Deus, mas sim segundo a sua alma racional 54; portanto, a parte mais nobre do
humano encontra-se na alma racional (mens55). É por ela que a pessoa conhece ou pode
conhecer seu Criador, descobrir que é imagem de Deus56.
Agostinho parece não conseguir ver o ser humano separado da idéia de pecado.
Por mais que anuncie a graça de Deus agindo no mundo e sua misericórdia que, longe de
punir justamente o humano, manifesta-lhe amor gratuitamente59, até isso aponta para a
50
Cf. PIERETTI, Antonio. Doctrina antropológica agustiniana. In: OROZ RETA, José et al. El pensamiento de
San Agustín para el hombre de hoy: la filosofía agustiniana. Valencia: EDICEP, 1998. v. 1, p. 356.
51
Cf. DT, XV 2,2.
52
Cf. DT, XV 7,11.
53
PIERETTI, op.cit., 365.
54
Cf. DT, XII 7,12.
55
Cf. DT, XV 7,11.
56
Cf. DT, XIV 14,20.
57
Cf. DT, XV 24,44b.
58
Cf. DT, XIII 12,16.
59
Cf. Trat. III, 8.
29
fraqueza e pobreza humanas. Discutindo sobre por que não existem pessoas que cumpram a
Lei, Agostinho afirma:
Escravo das realidades sensíveis pelo amor de si, o homem não retoma a
vida por seus próprios meios. Seu pecado não é somente momentâneo, mas é
a condição de toda a sua vida. Sua vida tornou-se uma enfermidade, e essa
enfermidade arraigada sempre mais no tempo numa situação de cegueira e
de surdez para um Deus que vem a ele e a ele se endereça 64.
A visão negativa do humano, contaminado pelo pecado, faz com que Agostinho
afirme que toda a criação reconhece seu Criador; entretanto, o ser humano, que é imagem e
semelhança de Deus65, amando o mundo revela desconhecer o Criador e exterioriza o mal
trazido pelo pecado. Agostinho comenta o v. 10c do Prólogo joanino da seguinte forma:
Quando se diz, pois, que o mundo não o conheceu, se entende aqueles que
amam o mundo, aqueles que habitam nele com o coração. É mau o mundo
porque são maus os que vivem nele, como é má a casa não por seus muros,
senão pelos que nela vivem66.
60
Trat. III, 3.
61
Cf. Ibid.
62
Cf. Trat. III, 14.
63
LADARIA, L. F. Antropología teológica. Madrid: UPCM; Roma: Università Gregoriana Editrice, 1983.
p. 225-226.
64
HARDY, op.cit., p. 111.
65
Cf. Trat. III, 4. – Agostinho estabelece nesse artigo a diferença entre o ser humano e o animal. O humano
carrega em si a imagem de Deus. Onde está essa imagem? Agostinho a compreende como estando na alma
humana.
66
Trat. III, 5.
30
Todos viemos daquela semente de que fala Adão com soluços e gemidos: Eu
fui concebido na iniqüidade e em pecado minha mãe me alimentou em seu
ventre. Cordeiro, pois é somente aquele que não veio nessas condições. Não
foi concebido na iniqüidade, já que não foi concebido por obra de mortal,
nem o alimentou na iniqüidade sua mãe quando o teve em seu ventre, porque
virgem o concebeu e virgem o deu à luz. O concebeu pela fé e pela fé o
criou. Eis aqui, pois, o Cordeiro de Deus. Não há nele a semente de Adão.
67
Cf. Trat. XIV, 6: “Agora examina a natureza do humano: nasce e cresce e aprende o que todos os homens
aprendem. Que sabe ele que é da terra, senão terra? Fala do que é humano e só isto entende e saboreia; e, como
carnal que é, carnalmente julga e carnalmente pensa; isso é todo o humano”.
68
Cf. LADARIA, L. F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998. p. 110.
69
Cf. VANNIER, Marie-Anne. Pelagianismo. In: DCT. p. 1376-1377. – Também sobre o mesmo assunto:
LADARIA, L. F. Teología del pecado original y de la gracia. Madrid: Editorial Católica, 1993. p. 86-91.
– Pelágio propugna em suas obras a liberdade humana e a participação na graça do Criador. Assim, por suas
próprias forças, o ser humano pode tornar-se verdadeira imagem de Deus. A graça original seria a característica
do humano e não o pecado original. Essa auto-suficiência do humano, apresentada por Pelágio, é que provoca a
reação agostiniana. Tal reação do Bispo de Hipona ainda é marcada pelo desejo de defender a universalidade da
redenção em Cristo.
70
Cf. VANNIER, Marie-Anne. Agostinho de Hipona. In: DCT, p. 70-71.
71
HARDY, op. cit., p. 129.
31
Toma de Adão a carne, não o pecado. Só este, que não toma de nossa massa
o pecado, e é quem tira nossos pecados72.
Jesus é um homem que oculta a sua divindade 73. Será na sua fraqueza humana e
ocultando sua divindade que o Cristo experimentará a morte. Para Agostinho, a cruz tem um
significado de sacrifício redentor74. E será por ela que toda a humanidade poderá ter acesso ao
Pai. A cruz é necessária para a redenção do gênero humano, pois nela morre pelos pecadores
aquele que não tinha motivos para experimentar a morte, pois fora concebido sem pecado 75.
Mas em sua morte se dá a vida76.
Hardy argumenta que, para Agostinho, não é a morte de Cristo que cura a
humanidade, mas aquele que morre por essa humanidade. O crucificado é aquele que cura 77.
Este crucificado não surge somente no momento da paixão, mas lhe é anterior. Portanto não é
somente o crucificado que porta a salvação, mas sim o Cristo na sua existência total.
Imprescindível, então, para tal, a encarnação.
O Filho do homem tem alma e tem corpo. O Filho de Deus, que é o Verbo,
tem o homem, como a alma tem o corpo. Como a alma com o corpo não há
duas pessoas, senão um só homem, assim o Verbo com o homem não faz
duas pessoas, senão um só Cristo. Que é o homem? Uma alma racional que
tem um corpo. Que é o Cristo? O Verbo de Deus que possui o homem 81.
Preocupado com as afirmações arianas acerca do Filho, Agostinho insiste que o
Verbo é eterno e que o Cristo é a visibilidade de Deus 82. Enquanto Ário afirmava a condição
de simples criatura para a pessoa de Jesus, Agostinho insiste na sua divindade 83. “Cristo não é
nem o Verbo nem a carne simplesmente, senão o Verbo feito carne para viver conosco”84.
Afirmo que o próprio Verbo de Deus se fez carne, ou seja, se fez homem,
não porém no sentido de que se tenha transformado e mudado no que se fez,
mas de tal modo se fez, que nele se encontra não somente o Verbo de Deus e
a carne do homem, mas também a alma racional humana; e assim este todo
pode-se denominar Deus pela natureza divina e homem pela natureza
humana85.
A passagem acima já introduz a questão do significado de “carne” para Agostinho
em sua leitura de Jo 1,14a. “Carne” é sinônimo de humano, natureza humana composta por
alma e corpo. A alma racional é que permite ao ser humano conhecer a Deus. O corpo,
embora parte integrante do homem, é tido como realidade inferior a alma. O esquema Cristo-
Deus e Cristo-homem, que reforça ainda mais a distinção entre alma e corpo, será lembrado
inclusive quando se fala da ressurreição, acentuando que por um a alma é ressuscitada e por
outro, a carne86. É apenas uma distinção formal, pois Agostinho já afirmou que as duas
naturezas estão no Verbo eterno.
81
Trat. XIX, 16. Cf. DT, I 6,9: “Ora está escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, é consubstancial ao Pai. Assim
não é somente Deus, mas verdadeiro Deus.”
82
Cf. Trat. III, 18.
83
Cf. Trat. XXVI, 5.
84
Trat. XVIII, 2.
85
DT, IV 21,31; II 6,11.
86
Cf. Trat. XIX, 16.
87
Cf. Trat. XII, 10-11.
33
história88. Tendo “vindo na carne”, Cristo se torna para a humanidade um referencial, ou seja,
modelo e exemplo. Novamente encontramos o sentido dado por Agostinho a Jo 14,6. O
Cristo, Verbo eterno feito homem, é o caminho. Seguindo o Cristo, Deus visível, o cristão
poderá ter a visão direta de Deus na eternidade89.
Embora Agostinho tenha uma visão do humano marcada pelo pecado, concebe o
“Jesus-carne” como aquele que veio guiar a humanidade para o que a ela está destinado, a
pátria celeste. “Carne” para Agostinho é a condição mortal e, em Jesus, comunhão de Deus
com aqueles que o desprezaram ao pecar. Como se viu, as disputas com os hereges
influenciaram sobremaneira a obra de Agostinho, fazendo-o concentrar a sua reflexão sobre a
grandeza de Deus em detrimento de qualquer grandeza do humano.
88
Cf. Trat. XXIII, 12. – DT, II 5,9: “O certo é que o próprio Verbo de Deus, que estava junto de Deus e era
Deus, isto é, a própria sabedoria de Deus que existia fora do tempo, nesse mesmo tempo, manifestou-se na carne.
O certo é que ele devia aparecer na carne, no tempo [...]”.
89
Cf. HARDY, op.cit., p. 119.
90
Cf. Trat. XV, 6.8.9.
91
Cf. RUELLO, F. La Christologie de Thomas d´Aquin. Paris: Beauchesne, 1987. p. 279.
34
sua índole, quer livrar as pessoas da ignorância. Mais que um estudioso, que se dedicou a dar
cientificidade à elaboração da teologia, Tomás se mostra um místico. Repassa na sua reflexão
todos os mistérios da fé e procura elucidar questões contemporâneas e outras anteriores
resolvidas insatisfatoriamente.
Se Tomás estava livre dos debates e controvérsias promovidos pelas heresias, que
ocuparam o pensamento dos Santos Padres, não estava isento de esclarecer temas e assimilar,
de acordo com os princípios cristãos, as novidades de seu tempo. A influência da filosofia
aristotélica apresentada pelos árabes exigiu uma integração da mesma, pois as simples
condenações já não produziam o mesmo efeito do passado. Tomás de Aquino é, então, aquele
que assume a empreitada de dialogar com a filosofia de Aristóteles 92. É mérito de Tomás abrir
o cristianismo ao mundo e às idéias que lhe eram contemporâneas.
Tendo começado sua Suma pelo estudo sobre Deus e as coisas criadas, propõe,
então, o retorno a Deus pela vida nova redimida na pessoa do Verbo encarnado, dedicando a
esse tema toda a Terceira Parte. Claramente influenciado por questões filosóficas, Tomás irá
discutir as relações do mistério da encarnação no contexto de uma teologia marcada por
conceitos como substância, subsistência, natureza, pessoa, conveniência etc.
Nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, para salvar seu povo de seus
pecados, segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si mesmo o
caminho da verdade, através do qual possamos chegar pela ressurreição à
bem-aventurança da vida imortal93.
Muito semelhante à interpretação feita por Agostinho, “Jesus, Caminho, Verdade
92
Cf. BRAGUE, Rémi. Aristotelismo cristão. In: DCT. p. 184.
93
ST III, Pro.
35
e Vida” (cf. Jo 14,6) é a síntese emblemática de Tomás no que tange ao Verbo feito “carne”.
Jesus é, a um só tempo, caminho, pelo qual a humanidade precisa passar para reencontrar o
Criador; e o termo do caminho, pois nele a humanidade reconhece aquilo a que foi chamada
desde a criação94. Percebe-se, pois, uma concatenação de idéias que conduz a uma
compreensão do mistério da encarnação no contexto dessa cristologia. Pela encarnação o
Caminho torna-se acessível à humanidade, e é nela que todo ser humano se reconhece filho na
visão beatífica. O “Jesus-carne”, além de comunicar a Verdade e a Vida, faz com que todo ser
humano possa nele se reconhecer como filho(a) de Deus. “Jesus-carne” é o Caminho por onde
devem passar os que desejam ver a Deus.
Fora do Cristo não haveria possibilidade de encontro com o Pai. Ele, o Cristo, é o
mediador que veio restaurar a comunhão e comunicar à humanidade todos os bens da parte do
Pai; é a Verdade, pois é Aquele que existe desde todo o sempre junto do Pai e que recebeu
deste todo o poder. Dessa forma, quem quiser conhecer toda a verdade – e em Deus jamais
existirá falsidade ou mentira – precisa aderir ao Verbo.
[…] deve-se dizer que se encarnando, Deus não diminuiu sua majestade: por
conseguinte, não diminui razão da reverência que lhe é devida. Ela cresce
com o aumento do conhecimento que dele podemos ter. E ao querer tornar-
se nosso próximo encarnando-se, tanto mais nos atraiu para conhecê-lo 96.
Para Tomás, o movimento divino provoca no ser humano um desejo de
conhecimento. Na medida em que se conhece Deus, Verdade e Vida, o humano é exortado a
se tornar semelhante a “Jesus-carne”. Ele é o modelo a ser seguido por aqueles que desejam
conhecer a Deus e que têm na pessoa do Filho encarnado a graça da realização de tal anseio.
É certo que Cristo veio a esse mundo não só para apagar o pecado
transmitido originalmente aos pósteros, mas também para apagar todos os
pecados que depois foram acrescentados. Não que todos efetivamente sejam
apagados, em razão da deficiência dos homens que não aderem a Cristo, [...],
mas porque ele realizou o que foi suficiente para apagar todos os pecados 103.
Não haveria uma contradição no fato de que Deus, sendo bom e justo, tomasse
para si uma “carne” marcada pelo pecado? Segundo Tomás, a natureza humana está enferma e
é esta mesma natureza que o Verbo assume, mostrando assim o poder de Deus que é capaz de
vencer o antigo inimigo pela recuperação da dignidade humana em Cristo. Deus prefere usar a
linhagem ferida pelo pecado104. Tal escolha divina teve também suas conseqüências, pois será
o fato de usar dessa linhagem que ocasionará o sofrimento no Cristo. Ele sofrerá não por ser
culpado, pois a pena da morte é conseqüência do pecado; sofrerá por escolha livre pela
miséria humana105, pois assumiu a “carne” nos seus limites e sofrimentos, ou seja, nas
conseqüências do pecado e não na condição de pecador106.
100
Ibid., p. 55.
101
Cf. ST III, q. 1, a. 3.
102
Cf. ST III, q.1. a. 3, 4, 5.
103
ST III, q. 1, a. 4.
104
Cf. ST III, q. 4. a. 6 resp.
105
Cf. ST III, q. 14, a. 1 resp. – Ainda nesse artigo, Tomás afirma: “Deve-se dizer que a enfermidade assumida
pelo Cristo não impediu o fim da encarnação, mas o ajudou ao máximo, como foi dito. Embora sua divindade
ficasse escondida por essas enfermidades, manifestava-se a humanidade, que é o caminho para se chegar à
divindade”.
106
Cf. ST III, q. 4. a.6.
38
Tomás apresenta uma idéia bastante peculiar, posto que devedor de Agostinho,
quando afirma que o pecado não faz parte da condição humana e, por isso, o Verbo, ao
encarnar-se, assume tudo o que pertence a essa condição e o fato de não pecar não o torna
inabilitado para a missão que se propõe de satisfação em nome da humanidade. “O pecado
não demonstra a verdade da natureza humana que é causada por Deus e, assim, o pecado a ela
não pertence. Ao contrário, é oposto à natureza e foi introduzido pela ‘semeadura do
demônio’, como diz Damasceno”107. Além de que, segundo Tomás, o Cristo não esteve em
Adão, como os demais, pois esteve nele somente segundo a matéria108.
107
ST III, q. 15, a.1 resp.
108
Cf. ST III, q.15, a. 1. resp. – Neste artigo Tomás responde à questão: “Em Cristo, houve pecado?”. No que
concerne à linhagem de Adão, a Escritura afirma que ‘nele todos pecaram’ (Rm 5,12). Diante disso, Tomás
afirma que “nós estivemos em Adão, segundo a razão seminal e segundo a substância do corpo” e que o Cristo
assume a substância visível da “carne” de modo diferente (concepção virginal).
109
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O mistério da Trindade: reflexão especulativa e elaboração da linguagem. O
“Filioque”. As relações trinitárias. In: O Deus da salvação (séculos I – VIII). São Paulo: Loyola, 2002.
p. 268-272.
39
A antropologia tomista também foi elaborada sobre a obra do sexto dia da criação,
porém compreendida a partir da consciência da complexidade humana 112. No que diz respeito
à “carne”, como Tomás compreende o ser humano? O ser humano é como o horizonte, onde a
terra e o infinito se encontram. Uma pessoa humana é formada por uma alma racional e um
corpo. Diferentemente da postura agostiniana em que alma e corpo, pela influência platônica,
eram tidos como elementos concorrentes, Tomás afirma a indissociabilidade da alma ao
corpo/carne humana. A alma não é alguma coisa colocada sobre o corpóreo, nem tampouco o
corpóreo é um aprisionamento da alma. Um não existe independente do outro.
Deve-se dizer que a alma é parte da espécie humana. Assim, pelo fato de
guardar, embora estando separada, a aptidão natural para a união, não se
pode chamá-la de substância individual, que é a hipóstase ou substância
primeira. [...] Eis por que nem a definição nem o nome de pessoa lhe
convém113.
110
ST III, q. 2., a. 4. resp. – Tomás retoma um dos anátemas do Concílio de Éfeso (431). – Cf. DZ 114 e 263: “Se
alguém não confessa que o Verbo de Deus Pai se uniu à carne segundo a hipóstase e que Cristo é um com sua
própria carne, a saber, que o mesmo é Deus ao mesmo tempo que homem, seja anátema”.
111
Cf. ST III, q. 2, a. 6. resp.
112
Cf. CHÁVARRI, Eladio. La condición humana en Tomás de Aquino. Salamanca: San Esteban, 1994. p. 118.
113
ST I, q. 29, a. 1.
40
O que constitui a pessoa humana é o fato de ser um corpo/carne, que não subsiste
por si mesmo, e ser uma alma, que, embora sendo ato, só se constitui realidade se vinculada
ao corpo. A alma é, pois, uma substância autônoma. Tomás mantém a prioridade da realidade
espiritual do humano, ou seja, a sua alma racional, que permite ao ser conhecer e encaminhar-
se para a verdade. Por outro lado, na antropologia tomasiana, o corpo não é desvalorizado, já
que está unido à alma.
No caso de Cristo, essa alma racional está ligada ao Verbo eterno, colocando-o em
íntima comunhão com Deus e recebendo dele todo o influxo de sua graça. O Verbo eterno e
preexistente desce à humanidade: “[...] o Verbo de Deus perfeito assumiu como própria a
imperfeição de nossa natureza, segundo o que diz o Evangelho de João: ‘Desci do céu’ (Jo
6,38-51)”114. O Verbo só começa a existir no mundo, enquanto exteriorização, na pessoa de
Cristo.
114
ST III, q. 33, a. 3.
115
Cf. RUELLO, op. cit., p. 322.
116
NICOLAS, M-J., op.cit., p. 56.
41
“Carne, pecado e dor” formam uma tríade praticamente inseparável, pois é pela
“carne” que a humanidade transmite o pecado original (idéia da razão seminal). Há muito de
Agostinho nessa compreensão de Tomás. O Doutor Angélico discordará, inclusive, da
possibilidade da imaculada concepção de Maria118. Para ele, é impossível alguém ser
purificado do pecado na concepção, pois não há ali ainda uma alma racional capaz da graça
purificadora. O ser humano, pós-pecado original, é intrinsecamente corrompido. A “carne” de
Cristo é isenta do pecado pelo fato de que em Deus não há imperfeição. Todavia, há também
uma visão do humano como ser que, naturalmente, deseja ver a Deus. Se o pecado
impossibilita essa visão, a graça de Deus vem em auxílio da natureza humana e a torna capaz
para conhecer a Deus, pois esse é o único fim da humanidade.
117
Cf. ST III, q.1, a. 1.
118
Cf. ST III, q. 27, a. 2, 2ª obj. e sol.; q. 14, a. 3.
42
Na questão 16 da Parte III da Suma, em que discute sobre o que convém a Cristo
segundo o ser e o vir-a-ser, Tomás reflete no artigo 6 a proposição “o Filho de Deus se fez
homem”. Retoma a Epístola a Epicteto de Atanásio, em que se afirma que, “ao dizer que o
Verbo se fez carne, é como se dissesse: ‘fez-se homem’”. Novamente ressalta que o fazer-se
homem ocasiona mudança no gênero humano e não em Deus 119. Marie Lamy de la Chapelle
assinala que o termo homem, nesse caso, atribuído à pessoa do Cristo, necessita ser pensado
não isoladamente da divindade:
Mas será no seu Comentário sobre o Evangelho de João que Tomás se deterá
mais explicitamente sobre o termo “carne”. Segundo sua compreensão, o Evangelho de João
teria por finalidade mostrar a divindade do Verbo123. Essa chave-interpretativa marcará toda a
sua leitura dos vv. 1 a 8 do Prólogo.
119
Cf. ST III, q. 16, a. 6.
120
CHAPELLE, M. L. de la. Fils jusque dans la chair: le mystère de l’Incarnation dans la pensée de S. Albert le
Grand, Alexandre d’Halés, S. Bonaventure et S. Thomas d’Aquin. Doctor Communis, Cidade do Vaticano, v. 33,
n. 2, p. 159, mai/ago. 1980 [grifo do autor].
121
ST III, q. 2, a. 2.
122
Cf. MONDIN, Battista, Incarnazione. In: Dizionário enciclopédico del pensiero di san Tommaso d’Aquino.
Bologna: Studio Domenicano, 1991. p. 317.
123
Cf. CESJ (23), p. 65.
43
Diante da proposição “o mundo não o conheceu” (v. 10c), evoca Tomás o motivo
para o desconhecimento humano acerca de Deus: a falta humana. Esta é definida como um
amor ao mundo de maneira desordenada, sinal da ignorância em relação a Deus 126. Dessa
maneira, o Verbo, ao fazer-se “carne”, deu-se a conhecer ao mundo.
Numa elaboração mais formal, Tomás apresenta três motivos para Deus fazer-se
“carne”: 1) a perversidade da natureza humana, que, pela sua própria malícia, teria se
submetido às trevas dos vícios e da ignorância; 2) a insuficiência do testemunho dos profetas,
que, por eles mesmos, não poderiam iluminar o mundo; 3) a deficiência das criaturas,
incapazes de se conduzirem ao conhecimento do Criador127.
124
Cf. CESJ (129), p. 104.
125
CESJ (129), p.105.
126
Cf. CESJ (138), p.108.
127
Cf. CESJ (141), p.109.
128
CESJ (144), p.110 [grifo do autor].
44
Santo. Tomás capta esse movimento trinitário na sua interpretação de duas palavras “todos
aqueles” do v. 12129. E o fruto da vinda na “carne” é a adoção filial.
No parágrafo 166, diz Tomás que “o Verbo se fez carne; isso significa que ele
assumiu a carne, e não que o Verbo, ele mesmo, seria carne, ela mesma” 130. Essa afirmação de
Tomás se justifica em função da recordação que faz do eutiquismo, heresia monofisista. Além
de assegurar a verdadeira humanidade do Cristo, como na Suma Teológica, Tomás de Aquino,
de forma minuciosa, repassa possíveis erros cristológicos, recorda as heresias e seus autores
(Êutiques, Ario, Apolinário, Nestório), para numa síntese formular: “O Verbo assumiu uma
carne animada de uma alma racional”131. O “Jesus-carne” é uma alma racional.
A preocupação com a questão das duas naturezas e o como se deu tal união na
pessoa do Cristo remete à Suma Teológica e suas questões. “A união do Verbo à “carne” é tal
que Deus é feito homem e o homem é feito Deus; quer dizer que ele é tal que Deus seria
homem”133. Tal união implica uma nova relação entre Deus e o homem nascida do
conhecimento que teve iniciativa em Deus e se concretizou em “Jesus-carne”.
129
Cf. CESJ (146), p. 111.
130
CESJ (166), p.117.
131
CESJ (168), p.118.
132
Cf. CESJ (169), p.118.
133
CESJ (170), p.119.
45
Para Karl Rahner, o ser humano possui um a priori que lhe é característico e que
fundamenta todo o seu ser no mundo. Tal a priori é a possibilidade de conhecimento que
existe em todo ser humano e, na medida em que desenvolve o seu conhecimento do mundo
dado, na sua relação com as coisas, vai constituindo o seu a posteriori. O que torna possível o
conhecimento categorial ou a posteriori é justamente o a priori.
134
Cf. RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p.162-163.
46
indefinível ou, como diz Rahner, o mistério 135. Sempre haverá o que conhecer. O ser humano
conhece e é conhecido, mas permanece carente de conhecimento e de conhecer-se, por isso é
o ser que se indaga. Sempre existirá um mais a que será chamado. Daí que todo ser humano,
ao se indagar sobre as verdades últimas de sua existência, anseia por uma resposta, e somente
no abandonar-se no mistério de si pode encontrar aquele que lhe responde e é a resposta.
Se a relação da pessoa humana com Deus é conhecimento, tal não pode ocorrer, a
não ser na liberdade, posto que todo conhecimento não se dá pela posse do outro, mas sim
pelo encontro dialogal com o outro. Deus já se revelou na criação, e o humano, como ser
apetecível, o encontra nas coisas, na medida em que procura perceber o bem que há nelas.
Dessa forma, a pessoa humana já está em contato com o Luminoso. Mas ele, Deus, pode-se
135
Cf. Ibid., p. 83.
136
RAHNER, Karl. L’homme a l’écoute du verbe: fondements d’ une philosophie de la religion. Paris: Mame,
1968.
137
RAHNER, L’homme, p. 88.
47
reservar o direito de, na criatividade de seu ser, estabelecer uma outra forma de revelação. E,
para que tal seja possível, é necessário que o humano tenha a possibilidade de acolher essa
possível autocomunicação de Deus.
E se o humano é o ser capaz de ouvir a possível palavra de Deus que a ele pode
ser expressa, ele deve estar sempre atento à eventual palavra divina. “O humano é o ente que
em sua história deve pôr-se a ouvir a revelação histórica de Deus, possivelmente efetuada em
forma de palavra humana”138. A humanidade ouve e pode ouvir a Deus. E se uma palavra de
Deus lhe é dirigida, essa palavra pode encontrar resposta e eco no seu criatural. Nem Deus é
um Absoluto fechado em si, nem o humano um contingente desprovido da capacidade de agir.
A comunicação de Deus ressoa no ser humano como resposta ao seu mistério indecifrável e
convida a uma confiança inabalável naquele que o criou.
Rompendo com uma tradição teológica que apresentava a graça como algo que
poderia ser ou não dado à humanidade e intrinsecamente ligado à dimensão do pecado,
Rahner, reatando com os primeiros Santos Padres, propõe que toda a história é em si marcada
138
Ibid., p. 284-285.
139
RAHNER, L’homme, p. 307-308.
48
pela graça, sendo uma realidade permanente do humano, e não um adicional divino que pode
lhe ser acrescentado. A graça é sobrenatural, pois não é algo que o humano adquiriu por suas
próprias forças; ao contrário, é presente gratuito de Deus, que ao criar toda pessoa a constitui
partícipe de seu ser. Essa graça acompanha o ser humano no desenvolver e desenrolar de sua
história, respeitando sempre sua liberdade140.
O tema da encarnação é tido, por Rahner, como premente para uma teologia que
queira dialogar com o mundo e a cultura modernos; pois, para ele, parte da estranheza diante
do mistério da encarnação deve-se às formulações metafísicas do enunciado religioso 142. Para
uma teologia transcendental, marcada por uma antropologia também assim adjetivada, o lugar
da encarnação é justamente o eixo no qual se articula a consolidação de uma inusitada
experiência de Deus, que é nova, tanto para o humano como para o próprio Deus, que
desejou-se e fez-se humano. Nas palavras de Rahner: “A cristologia é fim e princípio da
antropologia e esta, na sua realização mais radical – a cristologia – é eternamente teologia”143.
140
Cf. RAHNER, Karl. O homem e a graça. São Paulo: Paulinas, 1970. – Esta obra apresenta de forma sucinta o
pensamento de Rahner sobre a graça.
141
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 233. – Em hipótese alguma, Rahner faz uma apologia do pecado,
mas afirma que essa realidade de recusa a Deus, caminho na direção falsa, não pode ser uma absurdidade.
Também o pecado vivido pode ter um elemento positivo e ser considerado como parte autêntica da realização do
humano, na medida em que ali se exerce a liberdade e cada ser impregna naquela realidade sua própria marca
pessoal. Em outro escrito, Rahner situa a realidade da concupiscência no âmbito da liberdade e termina por
afirmar: “Nem no bem, nem no mal, o homem jamais se possui totalmente”. – Outra referência sobre o mesmo
tema: RAHNER, O homem e a graça, p. 165.
142
Cf. RAHNER, O homem e a graça, p. 88.
143
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 78.
49
144
Cf. WEGER, K-H. Karl Rahner: Uma introdução ao seu pensamento teológico. São Paulo: Loyola, 1981.
p. 155. – Recorda Weger que, para Rahner, Calcedônia não pode significar o fim, mas, antes, a reivindicação de
um novo começo.
145
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 33. – Ainda sobre o tema da possível compreensão da fé, pelo homem
moderno, como mitologização: WEGER, op. cit., p.155s.
50
tanto pelo mundo moderno quanto por uma teologia que com ele queira dialogar e permanecer
fiel aos enunciados do passado.
Nesse contexto, há, sem dúvida, uma constatação de certo monofisismo cristão 147,
que, de acordo com Rahner, se expressa numa incompreensão da verdade mais plena de
alegria afirmada no Evangelho. A verdade é repetida até mecanicamente, o enunciado é
decorado; no entanto, o seu significado e sua implicação para a pessoa humana nos diversos
contextos em que se encontra não são percebidos. Os cristãos dizem “a Palavra se fez carne”,
porém permanecem numa desconfiança em relação ao humano e a tudo que a ele está
relacionado. Numa reflexão sobre o Natal, pronuncia-se Rahner sobre tal monofisismo:
Deus se fez homem. Ah! Com que facilidade o dizemos, e com que facilidade
(ainda depois de termos entrado na exatidão das fórmulas ortodoxas) o
entendemos de maneira monofisista ou nestoriana (e não só os ascéticos e os
‘desmitologizados’). Demasiado facilmente concebemos o homem que Deus
se fez (Deus é nessa proposição sujeito e não predicado) como uma espécie de
disfarce, como uma roupa do ‘bom Deus’, de maneira que Deus, no fundo,
permanece sendo Deus, e não se sabe exatamente se ele (e não só seu signo)
está realmente aqui, onde nós estamos 148 .
O risco de diluir a verdade da fé neotestamentária e transformar o Cristo num
“simulacro de humano” é imenso e perceptível. Já o era no passado e ainda assim permanece.
Rahner entende o conceito “carne” do Prólogo como sinônimo de humano. Afirma que Jesus
é um humano como todas as pessoas que pertencem a essa condição. Ele não se passou por
humano. Ele o foi em totalidade. E o fato de ser humano não diz algo novo apenas em relação
ao humano, mas também, e acima de tudo, sobre Deus. Pelo fato de tornar-se “carne”,
146
Cf. Ibid., p. 136-137.
147
Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981, p. 9.
– Sobre o tema do “monofisismo recente” interpretado por Rahner, González Faus afirma que: “Karl Rahner
disse, em mais de uma ocasião, que nas cabeças de quase todos os cristãos havia uma espécie de ‘monofisismo
latente’. Isso significa que a maioria dos cristãos, lá no fundo de seu coração, não chega a conceber Jesus como
um homem autêntico. Talvez lhe atribuam um autêntico corpo de humano, mas não uma autêntica psicologia e
uma autêntica vida de homem. [...] Pois isso é exatamente monofisismo: crer que Jesus, para ser verdadeiramente
Deus, tinha de ser um pouco mais ou um pouco menos homem do que somos nós e, portanto, crer que Deus só
pode ser totalmente Deus se o homem for menos homem”.
148
RAHNER, Karl. “Sobre la teologia dela celebraccion de la navidad” In: Escritos de Teologia. Madrid:
Taurus, 1961. v. III, p. 40. – Também: RAHNER, Teologia e antropologia, p. 80; 123.
51
humano, Jesus não deixa sua divindade, mas tão pouco tem sua humanidade meramente como
um acréscimo circunstancial à sua pessoa149.
Jesus pode ser colocado como referencial justamente porque é realização plena do
humano e é aquele que comunga com a humanidade por sua entrada na condição histórica,
espaço-temporal. É um como os outros. Sua diferença é a plenitude demonstrada a que todo
cristão vê-se nele convidado. Diferença não no que diz respeito à graça, posto que toda a
humanidade é marcada pela capacidade de ouvir uma possível revelação de Deus em palavra
humana.
Em Jesus, Deus diz a última palavra sobre si e sobre o humano. Todo ser humano
é marcado pela graça, mas, na pessoa de Jesus, o próprio Deus vem tocar a “carne” da
humanidade de uma vez por todas, de modo irrevogável e irreversível. E fazendo de sua
natureza humana algo que lhe é próprio, torna-se para a humanidade, ele mesmo em si, um
dom, a realização da promessa de salvação. Ele vem ao encontro e, em Jesus, Deus se oferta a
toda humanidade.
Rahner quer evitar também que sua cristologia existencial seja interpretada, no
que se refere ao Cristo pleno, como uma recusa ao humano na sua finitude. Tal interpretação
poderia surgir em função da tradicional colocação do problema da relação entre Deus e o
humano a partir da idéia de distância e proximidade. Cristo é a possibilidade que a
149
Cf. RAHNER, Karl. Graça divina em abismos humanos. São Paulo: Herder, 1968. p. 22.
150
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 77.
151
Ibid., p. 70-71.
52
humanidade tem de ouvir Deus na “carne”. Ela é assumida e não pode ser tida como um
estorvo a Deus, mas sim como a condictio sine qua non da comunicação de Deus na história
por uma palavra direta ao humano. Assim diz Rahner:
152
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 270.
153
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 114.
154
RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 237.
53
155
Ibid., p. 267.
156
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 146.
157
Ibid., p. 153.
158
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 54.
54
O próprio Deus experimentou com um coração assim e nos disse que era
possível. A sua experiência é mais decisiva e fidedigna do que a nossa: nós
podemos ser melhores do que julgamos. É possível fazer mais do que
suspeitamos. Nunca nos engrandecemos demais, se ao próprio Cristo
aprouve engrandecer-se em nós. Somos mais do que podemos imaginar 159.
Rahner atribui uma extrema positividade em relação à vida humana e uma
esperança inabalável na entrega do ser a Deus. E, com o fato da “carne” ser assumida por
Jesus, tal confiança transforma-se no humano em direito adquirido de nunca querer ser menos
do que um irmão do Verbo eterno feito carne 160. “Deus fez o mundo e o homem melhores do
que ordinariamente pensamos”161.
159
RAHNER, Graça divina em abismos humanos, p. 27-28.
160
Cf. Ibid., p. 27.
161
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 223.
162
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 83-84 [grifo do autor].
55
Conclusão
Rahner, por sua vez, ao inverter o ponto de partida: falar de Deus não a partir dele,
que é o objeto inacessível de estudo da teologia, mas sim a partir de Jesus de Nazaré e da
condição humana como tal; construiu toda uma cristologia ascendente, em que o
conhecimento de Deus só é dado na “carne”. A postura de Rahner, sem ferir em nada o dogma
da encarnação, confere ao “Jesus-carne” a primazia de auto-expressão de Deus ao humano. E,
por ele, o pleno acesso ao Deus Absoluto, não nas alturas, mas na finitude do contingente
eterno do Filho encarnado. A dimensão do mistério afasta toda e qualquer pretensão de
solução e concede ao humano um lugar nunca dito.
olhos uma nova palavra, dada na limitação do humano. Após essas incursões interpretativas,
cabe, agora, analisar o termo “carne” no interior mesmo da Sagrada Escritura, explicitando
como tal conceito é apresentado no judaísmo, no helenismo-cristão e no contexto mesmo do
Evangelho segundo João.
CAPÍTULO II: “JESUS-CARNE” EM Jo 1,14a
termo “carne” em Jo 1,14a. Mostraremos, ainda, como os vocábulos hebraicos rf'B' e raev..
foram assimilados com grande liberdade no universo grego pela LXX.
Na última parte deste capítulo, são verificadas as ocorrências do termo “carne” nas
Epístolas de João. Das três menções, duas falam do Cristo. Há de se comprovar nessas duas
menções que o termo “carne” parece ser um elemento fundamental da doutrina a ser
anunciada e confessada pela comunidade cristã. Além de princípio cristológico, o afirmar
“Jesus-carne” explicita uma incidência na ética cristã.
Não tivemos aqui a pretensão de abarcar todas as ocorrências do termo “carne” nas
Escrituras. Não abordamos as menções do termo nos sinópticos, em outras Cartas Católicas
nem no Apocalipse; contudo acreditamos que as passagens analisadas serão suficientes para a
elaboração do significado de “carne” em Jo 1,14a.
No que diz respeito a este momento da pesquisa, pode-se afirmar que o contexto
amplo é todo o AT, enquanto formulação escrita de uma palavra revelada em linguagem
humana, no contexto histórico e comunitário de um povo, ao qual se pode ter acesso parcial
pela leitura da Tanak. Já o contexto imediato é a relação mais próxima do termo analisado no
conjunto que o circunscreve, ou seja, sua densidade semântica e teológica na relação com a
perícope ou versículo em particular em que se localiza.
59
1.1 – rf'B'
ocorre a expressão lWGPi rf;B., que significa “carne abominável”. O profeta Ezequiel, por
1
Cf. JÓZEFCZUK, Matias. “Conduzi-vos pelo Espírito” (Gl 5,16): Ética cristã em Gálatas. Belo Horizonte:
CES, 1999. Dissertação de Mestrado. p. 32.
2
Cf. BAUMGÄRTEL, Friedrich. Flesh in the Old Testament. In: TDNT, p. 105.
3
Cf. OSWALT, John N. rf'B'. Bāśār. Carne (r. pele, parente, corpo). In: DITAT, p. 227.
4
Cf. LYS, Daniel. L´arrière-plan et les Connotations vétérotestamentaires de sarx et de soma. Vetus
Testamentum, Leiden, v. 36, n. 2, p. 170, abr./jun. 1986 (apud JÓZEFCZUK, op.cit., p. 32).
5
Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,1975. p. 43.
60
meio de uma ação simbólica, propõe um diálogo com Deus. O contexto (todo o cap. 4 e o 5)
fala do cerco a Jerusalém e do desespero causado pela fome e sede, ocasionando a tomada de
alimentos de forma indiscriminada, contrariando a Lei e perdendo-se a distinção entre sagrado
e profano6. O comer “carne abominável” é, nesse caso, a confirmação da falta de
discernimento do povo, um indício de sua decadência religiosa. Acerca do uso do termo em
Ez 4,14, John Taylor faz o seguinte comentário:
Como os animais têm “carne”, o texto hebraico, algumas vezes, refere-se a eles,
como se percebe, simplesmente como “carne”, suprimindo a especificação do animal.
No que se refere ao ser humano, o vocábulo é utilizado, por vezes, como sinônimo
de pele ou relacionado a ela. A forma composta Arf'B.-rA[ mencionada em Lv 13,2ss
significa “pele de carne” e o texto retrata o exame para diagnóstico da lepra. Nesse mesmo
capítulo do livro do Levítico, apresenta-se a forma composta yx; rf'B' que pode ser
6
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, José Luís. Profetas. São Paulo: Paulinas, 1991. v. II, p. 716.
7
TAYLOR, John B. Ezequiel. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 78 [grifo do autor]. – Ao associar Ez 4,14 a
Is 65,4 (“Que habita entre as sepulturas e passa as noites junto aos lugares secretos; come carne de porco e tem
caldo de coisas abomináveis nos seus vasos.”), Taylor demonstra bem o peso que a expressão adquire e como
também se vincula aos contatos de judeus com práticas estrangeiras que demonstram a degradação religiosa.
8
Cf. MONLOUBOU, L. O Antigo Testamento à mesa. In: MARCHADOUR, Alain et al. A eucaristia na Bíblia.
2. ed. São Paulo: Paulus, 1985. p. 12-13. – Monloubou afirma que o “sacrifício de comunhão” tem por
característica, além da imolação da vítima, a partilha das partes do sacrifício entre Deus (parte queimada sobre o
altar), o sacerdote e o oferente. – Também: VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São
Paulo: Teológica, 2003. p. 455-456. Roland de Vaux também comenta esse “sacrifício de comunhão”, mostrando
suas variações de forma e matéria, mas sempre tendo como marca o fato de se consumir em família parte do que
foi oferecido.
61
bem esse tipo de ampliação os paralelos de rf'B' com ~c,[, (ossos): Gn 2,2312; Sl 38,4; Jó
2,5; 33,21; Lm 3,4; Pr 14,30. Com esses paralelos o autor bíblico objetiva compreender e
afirmar a totalidade da pessoa. No exemplo abaixo, a totalidade é expressa pelos componentes
“carne” e “ossos” e concorda com a expressão “não existe”, que também marca totalidade.
Além disso, há uma correlação nas causas: “teu furor”// “meu pecado”13.
Ex.: Sl 38,4
9
Cf. BROWNE, Stanley George. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. Viçosa, MG: Ultimato, 2003. p. 24.
10
Cf. KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1991. p. 121. – Kidner
comenta que “a circuncisão mesma era largamente praticada no Oriente Próximo. Os filisteus do oeste eram
considerados estranhos por não praticá-la. A característica nova era seu novo significado – assinalar o limiar, não
da virilidade (como os árabes modernos), mas da aliança; daí sua precoce ministração (v.12)”.
11
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 873. – Os autores comentam que a menção a
circuncisão em Ez 44,7.9 está intimamente ligada ao exclusivismo moral e religioso do resto de Israel. Ao tratar
da incircuncisão, o profeta exclui os estrangeiros e reafirma a identidade de seu povo.
12
Cf. ADINOLFI, Marco. L’uomo e la donna in Gen 1-3. In: GENNARO, G. de (cura). L’antropologia bíblica.
Napoli: Dehoniane, 1981. p. 108-109. – Em Gn 2,23, segundo Adinolfi, o autor afirma a relação de parentela
existente entre Adão e Eva, pois os dois formam uma só carne, ou ainda uma extensão de seu ser. – Também:
LOSS, Nicolo M. La dottrina antropológica di Genesi 1-11. In: GENNARO, op.cit., p. 185. Loss interpreta a
expressão “uma só carne” de Gn 2,23 como significando “uma só pessoa”.
13
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 1-72 – Tradução, introdução e
comentário. São Paulo: Paulus, 1996. v. I, p. 549-550.
62
yae
^m,[.z: ynEP.mi por causa do teu furor;
São numerosas as citações nas quais a idéia de “toda carne” é utilizada para
significar todo ser vivente, particularmente o humano, e até mesmo a sua totalidade, enquanto
raça ou nação. Nesse sentido, Jr 25,31c apresenta rf'B'-lK' como “todos os homens” ou
“humanidade”. Em Jr 32,27, ocorre outra forma rf'B'-lK' yhel{a,, que, literalmente, seria o
“Deus de toda carne” e que quer significar o “Deus de todos os humanos”.
de mais um termo. Nas duas passagens, encontra-se rf'B'-lk;'. txoWrh' yhel{a/, “Deus é o
Senhor dos espíritos de toda carne”. Reflete-se aqui a idéia do espírito insuflado no humano.
Não há uma dissociação entre “carne” e “espírito”, mas sim a afirmação de que o ser humano
é uma “carne animada”, viva, ser vivente.
14
Cf. VAUX, op.cit., p. 80-86. – Roland de Vaux apresenta, de forma bastante detalhada, os cuidados com o
cadáver. Embora o tocar o cadáver fosse ato que tornava a pessoa impura (Lv 21,1-4.11; Nm 6,6; 19,11-16;
Ag 2,13), há uma preocupação com o corpo, a carne humana, por assim dizer, que sugere a importância dada à
mesma. Como a distinção entre alma e corpo é estranha à mentalidade hebraica, a morte não é compreendida
como uma separação desses elementos. O morto é considerado uma “alma morta”; assim, enquanto subsiste
parte do corpo, subsiste também parte da alma. O Antigo Testamento considera como pior maldição o deixar um
cadáver sem sepultura, permitindo que seja devorado pelos abutres e outros animais (1Rs 14,11; Jr 16,4; 22,19;
Ez 29,5). Também considera como castigo o não ser sepultado no túmulo da família (1Rs 13,21-22), o que revela
o valor da relação familiar e dos vínculos por ela estabelecidos através da “carne”.
63
ao Norte. Os pontos cardeais completam a idéia de conjunto não só geográfico, mas também
étnico e religioso15, reforçando a idéia de totalidade.
Aparecem também algumas expressões nas quais rf'B' explicita o tipo de relação
de uma pessoa para com outra. Ser “carne da mesma carne” (yrIf'B.mi rf'B'), como se
encontra em Gn 2,23, estabelece vínculo e serve como elemento de identificação no contexto
do clã. Expressa ainda a idéia de participar da mesma condição, ou seja, ser da “mesma
carne”, da mesma finitude.
Quando o texto hebraico quer reforçar ainda mais um grau de parentesco adiciona
o termo sangue a rf'B'. Assim, os dois elementos asseguram o composto humano, a finitude e
a vitalidade da pessoa como o que é semelhante a outro. É o caso da expressão “do meu
sangue e da minha carne” (yrif'b.W ymic.[;) ou “é nossa carne e nosso sangue” (Wnref'B.
Wnyxia') que podem ser encontradas em: Gn 29,14; 37,27; 2 Sm 5,1; 19,13s; Jz 9,2; 1Cr
11,118. Numa sociedade como a israelita, as genealogias têm papel fundamental para a
identificação da pessoa e sua participação na história do povo. A menção aos pais, à “carne” e
ao “sangue” de origem, seja no sentido imediato, seja na vinculação mais remota, permite a
integração social e a identidade religiosa.
15
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 781.
16
Cf. CANIZZO, Antonio. The corporate personality. In: GENNARO, op.cit., p. 601. – Antonio Cannizzo
afirma que é comum na Bíblia uma identificação do indivíduo com o grupo, de tal forma que passa a existir uma
personalidade corporativa. Não há uma disputa de existência entre o indivíduo e o grupo, pois o primeiro sente-
se legitimamente representado e incluído naquele espaço corporativo. O indivíduo e o grupo passam a formar
uma só realidade.
17
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 974-975.
18
Por vezes as traduções apresentam “da minha carne e dos meus ossos”.
64
Para o judaísmo, só Deus é eterno. O humano é visto como carente de domínio até
sobre seu próprio hálito, pois é Deus quem cria a pessoa e lhe concede a cada dia o existir
(Cf. Jó 27,3; Sl 104,29; 139,13). Os autores têm consciência da fragilidade humana e a
expressam como recordação de que toda vida humana ordena-se para Deus20. Em Is 40,5-721,
encontra-se a comparação da “carne”, ser humano, com a erva que não tem domínio e
segurança sobre si mesma, podendo, a qualquer momento, experimentar o termo de sua vida.
A mesma recordação apresenta-se também no Sl 78,39, que diz que o ser humano,
“o de carne”, não passa de um alento fugaz. Esse v. do Sl 78 encontra paralelos em Ecl 3,19-
21, que afirma que o ser humano ao perder o alento voltará ao pó, e em Gn 6,3, que menciona
que o motivo do alento de Deus não permanecer no ser humano é justamente o fato dessa
19
Cf. HARRISON, Roland K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996. p. 171-172.
Segundo Harrison, as proibições apresentadas em Lv 18,6ss abordam seis graus de parentesco de
consangüinidade (vv. 7.9.10.11.12.13) e oito de afinidade (vv. 8.14.15.16.17.18); determinam, então, que a
proximidade de parentesco é um impedimento às relações sexuais.
20
Cf. MARQUES, Valdir. “EIKÓN” em Paulo: investigação teológica e bíblica à luz da LXX. Roma: PUG,
1985. Dissertatio ad Doctoratum. v. 2, p. 638. Diz Marques: “ O gênero humano não é posto no mundo criado
sem um ponto de referência: todos os demais gêneros dos seres vivos são criados ‘segundo seus gêneros’ . E o
Gênero Humano deve ser criado segundo um gênero. E tal ‘gênero’ não se encontra no mundo criado, mas no
Criador. O Gênero Humano portanto é o único gênero terrestre que na sua definição é descrito como semelhante
com um ‘gênero’ celeste, isto é, Deus e os seres que consulta”.
21
Cf. RIDDERBOS, J. Isaías. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 317. – A propósito de Is 40,5-7 o autor afirma: “O
profeta tece considerações a respeito da metáfora da erva, dizendo que a erva se seca e a flor murcha e cai
quando sopra sobre elas o hálito do Senhor (cf. Sl 103,16). Esta declaração é uma referência ao vento que é,
antropomorficamente, chamado de hálito do Senhor, como algures o trovão é chamado de Sua voz; e o raio, de
Sua língua (30,27). Essas figuras pretendem especialmente expressar o poder e a majestade do Deus de Israel em
contraste com a fragilidade humana”.
65
criatura ser “carne”22. A ameaça da ira divina na narrativa do dilúvio (Cf. Gn 6,13) demonstra
que essa finitude coloca o humano em condição de igualdade com os animais; porém, ao
humano ainda é possível a conversão.
22
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 73-150 – Tradução, introdução e
comentário. São Paulo: Paulus, 1998. v. II, p. 1013.
66
Quando o texto hebraico utiliza rf'B', não pretende afirmar oposição a vp<n< ;
pelo contrário, a combinação dos dois permite compreender a totalidade da existência
humana. Aos dois pode-se, ainda, acrescentar ble e x;Wr, formando não um quadrífido, mas
sim uma unidade. Alento ou espírito, coração ou mente, carne ou corpo, necessidade ou
desejo – esse aglomerado distinto apenas didaticamente, mas pensado sempre em perfeita
harmonia e jamais em oposição – é a indicação do ser humano com tudo que lhe é possível 24.
Ao falar rf'B', o autor hebraico afirma o ser humano como tal, a sua existência finita, a sua
condição mortal, o seu ser perecível, sua total distinção e dependência em relação ao Criador.
23
Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. I, p. 742.
24
Cf. BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo: superação de um mal-entendido. São Paulo: Loyola,
1999. p. 233-240.
25
.
Cf. COHEN, Gary G. raev . In: DITAT, p. 1508.
26
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p. 107.
67
Num sentido figurado, pode-se tomar Mq 3,3, em que se diz que o opressor come
a “carne do povo”. Nesse v. a expressão utilizada yMi[; raev. está diretamente ligada à idéia
Fica evidente que raev. é uma expressão que, embora designe “carne”, não é
sinônimo de existência humana na sua totalidade e caráter perecível, como é o caso de rf'B'.
acréscimos, glosas e omissões28. A helenização dos termos rf'B' e raev. pela LXX provoca
não somente mudanças na leitura como também na eventual interpretação dos seus
significados.
Texto hebraico:
`vyai-rf;B.-lK' x;Wrw> yx''-lK vp,n< Ady"B. rv<a:
Em sua mão está a respiração dos viventes e o espírito de toda carne do homem.
Texto da LXX:
Eiv mh.evnceiri. auvtou/yuch.pa,ntwntw/n zw,ntwnkai. pneu/ma panto.j
avnqrw,pou.
Em sua mão está a alma de todo ser vivo e o espírito de todo homem.
O termo rf'B' foi totalmente absorvido por a;nqrwpoj (pessoa humana), o que do
ponto de vista da antropologia pode ser um agravante, pois parece anular a idéia de integração
da criatura, caracterizada no v. como “espírito de carne”. A formulação grega, ao substituir o
termo “carne”, consegue traduzir, na intenção, a totalidade do humano, mas, permite também
compreender a;nqrwpoj como o humano na sua existência de oposição entre “espírito” e
“carne”.
Um outro exemplo pode ser tomado de Is 58,7 e ilustra bem a alteração de rf'B'.
Nesse v. o termo ^r>f'B.mi é traduzido por spe,rmato,j. O termo hebraico abarca a idéia de
parentela, mas também sublinha a fragilidade humana comum a todos. De maneira diversa, o
termo grego, literalmente, diz “semente”, sugerindo quase que somente a idéia de parentela e
de forma bastante imediata (laços de filiação).
dualismo ético, pois ressalta a distinção entre o Criador e as criaturas, acarretará também uma
visão do humano como ser de “espírito” e de “carne”. Um bom exemplo disso encontra-se em
Nm 16,22 (// Nm 27,16). Observe:
Texto hebraico:
rf'B'-lk'l. txoWrh' yhel{a/
Deus dos espíritos de toda carne.
Texto da LXX:
Para o autor hebraico afirmar que o Senhor é Deus de todos os viventes, usando
para isso as expressões x;Wr e rf'B', não tem por finalidade distinguir entre o que é espírito e
o que é carne; mas sim afirmar a relação que a criatura estabelece com seu Criador, que é o
Senhor de sua existência. Na tradução da LXX, há uma cisão, permitindo interpretar que Deus
é Senhor de um e de outro elemento, mas que os dois existem dissociados.
31
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.
32
Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. II, p. 1010.
70
1.4 – Conclusões
Com esta breve reflexão sobre o termo “carne” na LXX, concluímos o estudo
proposto sobre o significado do mesmo na perspectiva judaica. Ficou evidente que a
polissemia do vocábulo “carne” permite diversas aplicações, bem como interpretações. É
irrefutável sua relação com a situação de criatura, numa posição de dependência dos “de
carne” em relação a Deus.
Após percorrer esse caminho, abre-se espaço, pois, para uma leitura do termo no
Novo Testamento. Para efeito de comparação, tomamos os escritos paulinos e buscamos
71
33
Cf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 93. – Também: SEEBAS,
Horst. Carne. In: DITNT. v. 1, p. 277. – JÓZEFCZUK, op.cit., p. 34. Com uma pequena alteração nos dados,
Matias Józefczuk afirma 152 ocorrências de sa,rx no NT, especificamente 94 nos escritos paulinos.
34
Cf. DUNN, op.cit., p. 82. – Dunn recorda o perigo de uma conclusão precipitada a partir da constatação de
utilização de elementos antropológicos na teologia paulina. Nesse aspecto, menciona Bultmann que aplicou
categorias filosóficas modernas na interpretação de Paulo, abrindo veredas para Herbert Braun. Se no mestre
Bultmann os elementos antropológicos permitiram afirmar que “toda afirmação sobre Deus é simultaneamente
afirmação sobre o homem e vice-versa; podendo concluir, por essa razão e nesse sentido, que a teologia de Paulo
é, ao mesmo tempo, antropologia”; no discípulo, elas conduziram ao pensamento de que o elemento essencial do
NT é a ‘autocompreensão da fé’. – Também: BAUMERT, op.cit., p. 241. Baumert faz breve alusão a Bultmann
como precursor na aplicação de conceitos modernos na interpretação de textos paulinos.
35
Cf. THISELTON, Anthony C. Carne. In: DITNT, v.1, p. 281. – JEWETT, R. Paul’s antropological term: a
study of their use in conflict settings. Leiden: Brill, 1971. p. 49-166. Jewett estuda o termo sa,rx levando-se em
conta o contexto literário, a datação e as questões a que Paulo procurava responder.
36
Cf. DUNN, op.cit., p. 93.
37
Acerca do termo sw/ma nas cartas de Paulo: STRIEDER, Inácio R. Die Bewertung der Leiblichkeit in den
Hauptbriefen des Apostels Paulus und in seiner kulturwelt. Münster: Wilhelms-Universität, 1975. Inaugural-
Dissertation.
72
Paulo, fariseu por formação (Cf. Fl 3,5; At 22,3), é devedor das concepções do
AT, particularmente, na sua versão grega 38. Paulo é um judeu39 e pensa como tal, o que não o
impede de ser extremamente aberto ao universo cultural helenista. Pode-se afirmar, pois, que
Paulo é influenciado pelo judaísmo como também pelo helenismo.
Paulo concebe o termo sa,rx com o mesmo sentido do hebraico rf'B', ou seja, no
seu significado básico de substância carnal comum aos seres humanos e aos animais, portanto
relativa apenas às coisas criadas. Paulo usa o vocábulo como um elemento na percepção da
totalidade do ser humano40. Apenas uma única vez a palavra sa,rx é usada também para
definir a carne dos animais (1Cor 15,39). Para se referir à “carne” dos animais Paulo parece
preferir o termo kre,aj (Rm 14,21; 1Cor 8,13)41. No que se refere ao uso de sa,rx para
designar alimento, não há nenhuma implicação negativa.
Ainda calcado no sentido hebraico de rf'B', Paulo utiliza sa,rx para designar
laços familiares ou de nacionalidade. Em Rm 1,3, Paulo diz que Cristo descende de Davi
kata. sa,rka (segundo a carne)42, associando a pessoa de Jesus aos patriarcas; mostrando,
assim, a íntima ligação do Messias com a nação e cultura israelitas (Rm 9,5). Como idéia de
parentesco, Paulo reconhece a paternidade de Abraão “segundo a carne” (Rm 4,1) e sua
vinculação com a história do povo eleito. Refere-se a seu povo como o “Israel segundo a
carne” (1Cor 10,18) e coloca-se nessa mesma linhagem (Rm 9,3).
38
Cf. MARQUES, op.cit., v. 1, p. 33.
39
Cf. MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000. p. 60-63. – Também:
ROBINSON, John A.T. El cuerpo: estúdio de teologia paulina. Barcelona: Ariel, 1968. p. 27-28.
40
Cf. BAUMERT, op.cit., p. 233.
41
Cf. ROBINSON, op.cit., p. 26. – Também a LXX fazia essa opção.
42
Cf. FABRIS, Rinaldo. À Igreja de Romanos. In: ______. As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1991. v. 1,
p. 135. – Segundo Fabris, Paulo jamais aplica a Cristo a antítese “segundo a carne – segundo espírito” e em
nenhum outro texto paulino encontra-se o tema da descendência davídica de Jesus.
73
e proximidade com a nação. Assim, sa,rx é termo que implica relação de um humano com
outro ou com uma coletividade.
Paulo utiliza sa,rx, em algumas passagens, como designativo do ser humano na sua
totalidade (cf. Rm 7,18; Ef 2,15). Interessam aqui, particularmente, duas ocorrências que
dizem respeito à pessoa de Jesus. Elas traduzem com fidelidade a idéia hebraica de rf'B' ao
apresentarem o humano na sua integralidade de ser, existindo na condição mortal.
a) Rm 8,3:
To. ga.r avdu,naton tou/ no,mou evnw-| hvsqe,nei dia. th/j sarko,j(
O que era impossível para a lei visto sua debilidade pela carne,
Na primeira menção a sa,rx, Paulo aponta para a presunção dos que se confiavam
ao poder da lei e não percebiam a sua suposta confiança na força da criatura 43. A carne
humana é frágil, perecível44 e, como tal, necessita estar referenciada em Deus e não em
supostos atributos sugeridos pelo cumprimento da lei e, de modo inverso, também não pode
ser a referência para a lei. A lei não tem força contra o pecado, embora pronuncie a
condenação de Deus sobre este, e está inerentemente ligada à situação resultante da queda do
ser humano45.
43
Cf. DUNN, op.cit., p. 98.
44
Cf. ROBINSON, op.cit., p. 28. – O autor afirma que a “fraqueza”, o ser perecível, é qualidade inerente da
“carne”.
45
Cf. CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 173.
46
Cf. Ibid., p. 172. – Cranfield menciona quatro possibilidades de interpretação do termo “semelhança”: 1)
Jesus seria semelhante à carne decaída, porém não idêntico (mas se era justamente a natureza decaída que
precisava de redenção, como compreender que o Redentor veio apenas em aparência?); 2) Paulo usou
“semelhança de” para evitar a impressão de que Cristo realmente pecou por ter-se associado à humanidade;
3) Semelhança como sinônimo de forma; 4) Paulo usa a expressão “semelhança de” para indicar que Cristo não
foi transformado em humano, mas que assumiu a natureza humana, permanecendo ainda ele mesmo, ou seja,
conservando sua divindade. Jesus assume a mesmíssima natureza humana decaída, porém nunca deixa de ser o
Filho de Deus.
74
ou seja, ele assume a condição humana na sua caducidade, na sua fraqueza, porém não
experimenta o pecado, como bem o diz Paulo em 2Cor 5,21. Murphy-O’Connor, após afirmar
a complexidade do termo “carne” no léxico paulino, comenta a expressão “semelhança na
carne do pecado” da seguinte maneira:
Quando Paulo diz que Jesus tinha ‘corpo de carne’, ou que ele era judeu
‘segundo a carne’, simplesmente evoca a dimensão física de sua existência.
‘Carne pecaminosa’, por outro lado, implica claramente julgamento negativo
de valor, e a ênfase de Paulo é que, embora partilhando da facticidade da
existência humana, Jesus não caiu sob o julgamento de valor ligado àquela
existência por causa do pecado humano 47.
A terceira menção propõe que o lugar da vitória sobre o pecado é justamente a
“carne”, pois nela o Filho de Deus derrota definitivamente as forças do mal, dá início a uma
nova criação e o humano encontra sua libertação. De acordo com Cranfield, Paulo pensava
que toda a ira de Deus contra o pecado foi colocada sobre a carne de Jesus na cruz 48.
Rompendo aquilo que separava a humanidade do Criador, é na pessoa de Jesus Cristo que
todo ser humano pode aproximar-se de Deus. Em Jesus a humanidade está representada.
Paulo demonstra um princípio de solidariedade de Deus com a condição humana, que, revoga
qualquer tentativa de aproximação de Deus por outras forças humanas além daquela que é o
Cristo. Nessa terceira menção, fica nítido que Paulo se refere à “carne” de Jesus como o todo
de sua pessoa. O v. 4 apresenta a oposição entre “viver segundo a carne” e “viver segundo o
Espírito”, a libertação oferecida por Cristo tem por objetivo permitir ao cristão “viver segundo
o Espírito”49.
b) Ef 2,14b:
tou/ fragmou/lu,saj( th.ne;cqranevnth/|sarki. auvtou/(
Em sua carne, destruiu o muro de separação: a hostilidade.
Paulo aqui compreende th/| sarki, com o mesmo sentido de rf'B'. Em Jesus, toda
separação existente entre pagãos e judeus é destruída, pois nele se dá a possibilidade de
compreensão de uma nova humanidade. Carne, novamente, é sinônimo da existência total de
Jesus. A fim de mostrar o realismo da nova humanidade, Paulo remete ao “Jesus-carne”, em
quem se deu na história a unificação entre os mundos opostos50.
47
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. A antropologia pastoral de Paulo: tornar-se humanos juntos. São Paulo:
Paulus, 1994. p. 79.
48
Cf. CRANFIELD, op.cit., p. 173.
49
Cf. JEWETT, op.cit., p. 148.
50
Cf. FABRIS, Rinaldo. Carta aos Efésios. In: As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1992. v. II, p. 164.
75
Conclui-se que, longe de negar a tradição recebida das Escrituras, Paulo conserva,
nos casos acima (Rm 8,3; Ef 2,14b), a idéia de existência total e “carne” não tem nenhuma
conotação pejorativa ou de tendência para o mal. “Carne” é a notação da condição escolhida
por Deus, ou seja, o Filho vir na “condição mortal”, para conduzir a humanidade até a
verdadeira liberdade. Cerfaux, analisando o tema da encarnação de Cristo nos escritos
paulinos considera que Paulo não compreende a encarnação já como um fator salvífico, ela
está ordenada para a morte e ressurreição que têm realmente a função salvífica 51. Visão
bastante diferente da leitura que os Padres Gregos fariam sobre o mistério da encarnação!
Paulo confronta “carne”, como realidade de apego à força humana, com Espírito,
princípio inaugurador dos novos tempos da salvação. A “carne” em si não é um erro nem um
mal, mas sim o “confiar na carne”53 ou o chamado “orgulho da carne”. Aquele que vive
“segundo a carne” depara-se também com outro dualismo: vida/morte, pois resistir ao Espírito
e seguir os princípios da “carne” é encaminhar-se para a morte 54. Paulo não descarta o
significado e valor da “carne”, pois, ao afirmar sua possível destruição pela morte,
inversamente afirma sua real valorização se colocada sob a guia do Espírito.
Dunn afirma que “carne” funciona como um contraponto ao qual Paulo liga outros
termos, sempre partindo da idéia de fragilidade: “É o contínuo da mortalidade humana, a
pessoa caracterizada e condicionada pela fragilidade humana, que dá à sarx seu espectro de
significado e que fornece o elo entre os diferentes usos do termo que Paulo faz” 56. O pecado é
que é mal, não a carne! Mas é na esfera dela que o pecado pode agir, daí a oposição kata.
sa,rka/kata pneu/ma. Viver segundo a carne é o viver manipulado pelos desejos e
necessidades da carne57. A expressão kata. sa,rka indica a orientação para o transitório,
distinta da expressão evnsarki,, que afirma a condição inevitável do ser humano58.
2.5 – Conclusões
Embora seja necessária uma análise específica em cada ocorrência, é certo que
Paulo não usa “carne”, aplicado ao humano, no sentido pejorativo, mas sim como afirmação
da sua fugacidade. Portanto, o Apóstolo permanece vinculado ao pensamento hebraico e ao
significado dado ao termo no AT; como se afirmou anteriormente, a “carne” não é má, o que
52
Cf. JÓZEFCZUK, op.cit. – Toda a dissertação versa sobre a proposta de elaboração de uma ética cristã em
Gálatas a partir da acolhida do Espírito.
53
Cf. SCHWEIZER, Eduard. sa,rx, sarkikovj, sa,rkino,j. In: TDNT, p. 135.
54
Cf. DUNN, op.cit., p. 96-97.
55
Cf. KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 13.
56
DUNN, op.cit., p. 98.
57
Cf. Ibid., p. 102.
58
Cf. Ibid., p. 100.
77
Quando Paulo aplica o termo “carne” à pessoa de Jesus, o faz de maneira bastante
sóbria, insistindo na idéia de solidariedade e igualdade com a raça humana. Demonstra
sempre uma preocupação em afirmar a historicidade do Cristo, sua vinda na “carne”, mas sua
total isenção de contato com o pecado. O fato de não partilhar com a humanidade a situação
de pecado não anula a igualdade dele com a humanidade. Em si mesmo o humano não se
compreende, mas olhando para o humano Jesus, Deus na “carne”, toda pessoa tem a
oportunidade de se conhecer e descobrir que a meta de sua vida está além daquilo que é a
condição carnal59. A antropologia paulina vincula-se, pois, à cristologia e à soteriologia! O ser
humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a buscar a salvação em Jesus,
imagem de Deus que se encarnou e se tornou visível no Cristo ressuscitado60.
Em Paulo, o ser humano torna-se ainda mais caduco à medida que ignora que a
condição “carnal” é chamada a deixar-se aperfeiçoar na ação do Espírito. A “carne” não é
suplantada, mas considerada com relatividade e, em alguns momentos, colocada como
oposição ao Espírito por ser o lugar onde o humano pode ser cooptado pelo pecado. A “carne”
é, pois, o lugar da decisão, do confronto, do embate. É nela que se verifica o quanto o mal
assedia o humano e o coloca sob o perigo da pretensão de poder salvar-se a si mesmo.
59
Cf. KAESEMANN, op.cit., p. 39-41. – Também: SCHWEIZER, E. Sa,rx, sarkikovj, sa,rkinoj: the New
Testament. In: TDNT, p. 135.
60
Cf. MARQUES, op.cit., v. 2, p. 641.
61
BLANK, Josef. O evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 4/1a, p. 56.
78
João quer pregar Jesus de um jeito novo, diferente dos sinóticos, embora servindo-
se do material recebido da tradição64, mas com especial atenção à situação histórica de sua
comunidade65. João anuncia que em Cristo o Reino de Deus já acontece e que a pessoa do
“Jesus-carne” é a evidência dessa novidade. O Reino chega de modo surpreendente. Tuñí
Vancells e Blank concordam que João é marcado por uma ênfase na pessoa de Jesus, uma
cristologia que traz para o presente a escatologia e não permite descuidar da realidade
histórica66.
62
Cf. VITÓRIO, Jaldemir. “Vou preparar-vos um lugar”: leitura e interpretação de Jo 14 na perspectiva da
Tradição do êxodo. Rio de Janeiro: PUCRJ, 1995. Tese de doutorado. v. 2, p. 436-433.
63
Cf. BROWN, Raymond E. A comunidade do Discípulo Amado. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1983. – A obra
versa sobre a experiência eclesial que deu origem ao Quarto Evangelho, procurando salientar as fases de
desenvolvimento da mesma e como se deu a elaboração da fé em cada uma delas. – Ainda sobre o tema do
ambiente joanino: CALLE, Francisco de la. A Teologia do quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1985.
p. 15-18. La Calle relembra cinco hipóteses para explicar o mundo ambiental joanino: “Antigo Testamento,
judaísmo pós-bíblico em geral, a literatura sapiencial especialmente, Qumran e, por último, a gnose”. – BLANK,
op.cit., p.56. Blank pondera que, no que diz respeito à possível influência gnóstica, as pesquisas não chegaram a
concluir se existe em João uma tendência antignóstica ou antidocetista. – Também: MAGGIONI, Bruno. O
Evangelho de João. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1992. v. II,
p. 266-267. Maggioni pondera também que tampouco seria o Evangelho de João uma cristologia de “docetismo
ingênuo” como propôs Käsemann.
64
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. I, p. 88s. – O
autor faz análise bastante profunda acerca do possível contato de João com a tradição marcana.
65
Cf. BLANK, op.cit., p. 37.
66
Cf. BLANK, op.cit., p. 36. – Blank afirma que, diferentemente dos sinóticos, “em João, [...] o centro e o
conteúdo da mensagem é o próprio Jesus, sua própria pessoa, e seu significado como revelador e Filho de Deus,
como salvador escatológico [...]. Salvação e juízo já acontecem no presente, em relação com a pessoa e a palavra
de Jesus”. – Também: TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Imagen actual del cuarto evangelio. Jesús-hombre,
revelador de Dios. Sal Terrae, Santander, v. 65, n. 2, p. 103, feb. 1975. Comparando João a Mateus que insiste
no anúncio do Reinado de Deus, Vancells diz: “O quarto evangelho não desvia a atenção da pessoa de Jesus,
porque nele – muito mais que nos sinóticos e de modo distinto – o reino é Jesus. Nele Jesus não prega o Reino,
mas se prega a si mesmo; não o explica com parábolas, mas propõe alegorias sobre o mistério de sua própria
pessoa; não fala de receber o reino, mas exorta a que se receba a ele mesmo; não se deve ir ao reino, mas sim ir a
Jesus”. Desnecessário insistir que, ao afirmar a centralidade de Jesus, os autores o compreendem como o único
revelador do Pai; sendo assim, o Cristo é caminho para o Pai e o seu agir é o agir do Pai na história humana.
79
João apresenta o Jesus confessado pela comunidade 67. O Evangelho não tem por
finalidade ser crônica de episódios ou compor uma biografia, mas permitir que o próprio Jesus
fale e apresente-se através de sua comunidade.
67
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Jesus y el evangelio em la comunidad juánica: introducción a la lectura
cristiana del evangelio de Juan. Salamanca: Sigueme, 1987. p. 176.
68
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 22.
69
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 264. – Também: BLANK, op.cit., p. 40s.
70
Cf. FEUILLET, A. O prólogo do quarto Evangelho: estudo de teologia joânica. São Paulo: Paulinas, 1971.
p. 178. – Acerca do caráter literário do Prólogo, Feuillet diz: “O prólogo joânico constitui a ‘introdução’ ao
Evangelho, no mesmo sentido em que se emprega a palavra ‘ouverture’ para a linguagem musical”. Segundo
esse autor, é o todo do evangelho que dá o real significado ao prólogo e não o contrário.
71
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. I, p. 40-42. –
Chega-se à conclusão que se trata de um hino, mas isso não significa o final da questão; é apenas uma etapa que
se abriu para diversas outras interpretações, já que parece impossível refazer a pré-história do Prólogo.
80
Por fim, ainda vale reafirmar que o Prólogo é parte integrante do texto evangélico,
e João não poderia ter escolhido melhor forma para iniciar sua narrativa sobre a pessoa de
Jesus. Assim, o Prólogo, juntamente com Jo 20,31, funciona também como uma certa
moldura na qual o testemunho de fé da comunidade fica evidente e apresenta-se a finalidade
da compilação do Evangelho.
Antes de qualquer definição acerca do termo “carne”, é preciso analisar onde ele
se encontra e como dialoga com os outros elementos do mesmo versículo. Na estrutura do
v. 14 do Prólogo, nota-se uma doxologia cristã74. A comunidade proclama a vinda da Palavra
(Logos) ao mundo e a participação na glória do Filho que passa a habitar na história. O v. 14
pode ser subdividido para evidenciar ainda mais o contexto imediato em que o termo “carne”
é encontrado. Segue-se uma possível estruturação do versículo75:
b kai. evskh,nwsenevnh`mi/n(
e habitou entre nós
C kai. evqeasa,meqath.ndo,xanauvtou/(
e nós contemplamos a sua glória
d do,xanw`j monogenou/jpara.patro,j(
glória do Filho único do Pai,
No v. 14, os termos “a” e “b” estão ligados pela partícula kai.. O uso dessa
conjunção coordenativa remete ao Logos mencionado no v. 1 como aquele que habita junto de
Deus e participa de sua divindade, chamando agora a atenção para o fato inusitado que será
mencionado77. A menção ao Logos nos vv. 14 e 1 serve também para contrastar o ser eterno
da Palavra com o seu existir temporal78. Podendo-se afirmar, como Potterie, que no v. 14b se
trata de um kai. exegético, pois inicia e convida a compreender o sentido teológico da
encarnação79.
A novidade anunciada não se concentra tanto no fato do Logos vir ao mundo, pois
isso já foi apresentado ao longo do Prólogo, inclusive fazendo-se referência à sua acolhida ou
rejeição (vv. 1-4; 10-12). O Logos não é um estranho a este mundo, ele participou da criação
do mundo e nele sempre esteve presente 80. A ênfase está na forma como o Logos agora se
manifesta. Se antes era um Logos supratemporal, agora se tem um adentrar na história
humana81.
76
Cf. MÜLLER, Ulrich B. A encarnação do Filho de Deus: concepções da encarnação no cristianismo
incipiente e os primórdios do docetismo. São Paulo: Loyola, 2004. p. 43.
77
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 282
78
Cf. BROWN, Raymond E. El Evangelio según Juan. Madrid: Cristiandad, 1979. v. 1, pt. 1, p. 207.
79
Cf. POTTERIE, Ignace de la. Studi di cristologia giovannea. 2 ed. Genova: Marietti, 1992. p. 50.
80
Cf. CALLE, op.cit, p. 43-45.
81
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.
82
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283.
82
insistir na participação do Logos na criação do mundo, agora evge,neto serve como prova
irrefutável de que o ocorrido com o Logos não é mera aparência ou uma criação nova que
anulasse o seu ser; ao contrário, trata-se de uma mudança radical na forma de se comunicar.
Aquele Logos permanece o mesmo, mas agora se manifesta de forma nova 83. Se as
afirmações dos vv. 1.4.9.10 manifestavam uma existência celeste, totalmente distinta da
terrestre, o evge,neto(v. 14) mostra que o Logos entra realmente na realidade humana84.
pensa sa.rx como rf'B'. Nesse sentido, “carne” é termo mais profundo que meramente
“humano” (a;nqrwpoj). Schnackenburg, tratando sobre o porquê dessa escolha de João, afirma
o seguinte:
O sa.rx que está aqui em forma absoluta não é uma mera paráfrase em lugar
de ‘homem’ (como pasasa.rx 17,2), é um termo que no pensamento joanino
expressa o ligado à terra (3,6), o caduco e perecedouro (6,63), algo assim
como o típico do modo humano de existir, diferente de todo o divino
celestial, do espiritual divino87.
“Carne” é designação da natureza humana na sua totalidade e na sua situação de
fragilidade. O termo se enquadra bem no estilo joanino de apresentar oposições ou contrastes
(trevas-luz; céu-terra). “Carne” funciona como referência à condição finita e perecível do
humano, daquilo que pertence a terra em contraste com o próprio Deus, que é ser eterno e
imperecível88.
O Logos que participou da criação de tudo o que existe é o mesmo que agora se
tornou pessoa humana89. Não é alguém indeterminado, mas sim um homem chamado Jesus;
83
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.
84
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283. – Também: Konings, op.cit., p. 80. – OLIVEIRA, Carlos-Josaphat P.
Evangelho da unidade e do amor: texto e doutrina do Evangelho de S. João. São Paulo: Duas Cidades, 1966.
p. 38.
85
Cf. KONINGS, op.cit., p. 55.
86
Cf. BUSSCHE, Henri van den. Jean: commentaire de l’évangile spirituel. Paris : Desclée de Brower, 1967.
p. 97.
87
SCHNACKENBURG, op.cit., p. 284.
88
Cf. PANIMOLLE, Salvatore Alberto. L’evangelista Giovanni: pensiero e opera letteraria del quarto
evangelista. Roma: Borla, [1985 ?]. p. 106.
89
Cf. BRUCE, op.cit., p. 45.
83
nascido num território geográfico bastante circunscrito (Galiléia); num período determinado
da história90; num contexto religioso, a saber o judaico. A presença do Logos supratemporal
no mundo não é negada, mas intensifica-se o sentido de sua presença agora na “carne”,
condição mortal própria de quem vive a história terrena.
Qual a novidade trazida pelo Prólogo? Por certo, a idéia de uma comunicação das
divindades com os seres humanos não era algo estranho ao povo judeu. Afinal, as Escrituras
mencionavam encontros de Deus com seu povo (Gn 18 = visita do Senhor a Abraão;
Gn 28,10-22 = escada de Jacó; Gn 32,23-33 = luta de Deus com Jacó; novela de Tobias). Do
lado dos gregos, a comunicação divina com a humanidade também não seria algo
extraordinário, pois as divindades gregas vinham até a terra na “forma” de pessoas humanas
ou até de animais. Embora se tratasse de um panteão nos céus, havia um contato com os seres
humanos. Inclusive a manipulação destes últimos pelas divindades. Todavia, no helenismo
não se encontra paralelo quanto a Deus fazer-se “carne” nem quanto ao tornar-se “homem”93.
90
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 173.
91
LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 95. – BLANK, op.cit, p. 116.
92
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 57.
93
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 94. – Também: SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 284-285. – MÜLLER,
op.cit., p. 46-47. – DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
p. 334-337.
84
94
Cf. DODD, op.cit., p. 337-338.
95
Cf. BROWN, op.cit., p. 48-49.
96
FLITTER, Lance. Jesus e eu. In: BRUTEAU, Beatrice (org.). Jesus segundo o judaísmo: rabinos e estudiosos
dialogam em nova perspectiva a respeito de um antigo irmão. São Paulo: Paulus, 2003. p. 177.
97
Cf. CALLE, op.cit., p. 46.
98
Cf. BLANK, op.cit., p. 97.
99
KONINGS, op.cit., p. 80.
85
ser alcançada na humanidade de Jesus e não fora dele. O Deus, que desde o início quis se
comunicar e foi rejeitado pela humanidade, não desiste de levar a bom termo seu desejo. Jesus
é o ato supremo de Deus para encontrar-se com a humanidade. Segundo Müller, comentando
Jo 1,14, “a Igreja cristã enaltece o mistério ao qual tem acesso: que o Logos responde à
vigente rejeição pelos seres humanos com sua dedicação definitiva”100.
100
MÜLLER, op.cit., p. 44.
101
Cf. BLANK, op.cit., p. 116.
102
Cf. BROWN, Raymond E. Evangelho de João e Epístolas. São Paulo: Paulinas, 1975. p. 67-68.
86
103
Cf. RUSCONI, Carlo. Yuch,, yuciko,j. In: DGNT, p. 501-502. – O termo yuch, pode ser traduzido como
vida, no sentido de existência humana; o termo yuciko,j está relacionado com o que é naturalmente humano,
perecível e, até mesmo, oposto a espírito.
104
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. II, p. 118.
– A propósito: AUSEJO, Serafim de. El concepto de “carne” aplicado a Cristo. In: Estudios Bíblicos, Madrid,
v. 17, n. 4, p. 414, oct/dic. 1958. Segundo Serafin de Ausejo, haveria mais uma razão para o uso de sárx no lugar
de soma: o evangelista procuraria ser fiel à palavra que possivelmente Jesus utilizou em seu discurso, pois esta é
mais apropriada no vocabulário hebreu para dizer a totalidade da pessoa e, no caso específico, expressar o
próprio de Jesus na sua vida terrestre, na sua entrega e na sua morte.
105
Cf. LÉON-DUFOUR, Ibid., p. 118. – MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318-319. – PACK, Frank. O
Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983. p. 109-110.
106
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318.
107
Cf. BRUCE, op.cit., p. 143.
108
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 319.
87
109
Cf. KONINGS, op.cit., p. 163.
110
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo:
Paulinas, 1989. p. 257. – Segundo os autores, “sangue” é símbolo de vida e, se derramado, sinal de morte
violenta. É realidade que pertence somente a Deus e daí a proibição de seu consumo (Gn 9,4; Lv 17,14). No
sangue encontra-se a sede da vida. Constata-se, pois, que, juntamente com “carne”, “sangue” equivale a dizer a
“totalidade do ser” de Jesus, que deve ser assumida por quem o aceita.
111
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 123.
112
Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 108.
113
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 319-320.
88
Espera-se que com essa análise de Jo 6,51-56 tenha ficado mais evidente que a
realidade da “carne” é o único e legítimo lugar por onde se dá o encontro com Jesus, o
humano verdadeiro e selado no Espírito, que doa plenamente sua vida como alimento para os
que nele têm fé. E que tal alimento, numa leitura sacramental e encarnacionista, é expressão
do desejo do “Jesus-carne” de fazer-se “carne”, realidade histórica, transformadora, nos
membros de sua comunidade.
114
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio Según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. II, p. 109-113.
– Também: BLANK, op.cit., p. 410.
115
Cf. KONINGS, op.cit., p. 162.
89
116
Cf. SEGALLA, Giuseppe. Volontà di Dio e dell’uomo in Giovanni. Brescia: Paideia, 1974. p. 254.
117
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 281-282. – Schnackenburg esclarece que alguns Santos Padres,
interpretando evgennh,qh, ou seja, o verbo no singular, propunham o v. 13 como alusivo à encarnação do
Verbo. Nesse caso, o mencionar “sangue, carne e varão” estaria afirmando a concepção virginal de Jesus.
Contudo, a forma no singular não encontra apoio nos códices mais antigos. Além disso, o problema dessa
possível alusão à encarnação é justamente antecipar o que é mencionado no v. 14a. E mais, faz com que o texto
entre em contradição também com o v. 12.
118
Ibid., p. 281.
119
Cf. SEGALLA, op.cit., p. 255-256.
120
Cf. NICCACCI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis: Vozes,
1981. p. 40.
90
superior surge novamente nesta antítese entre o primeiro nascimento (sangue, carne, varão) e
o segundo121.
que o texto apresenta é o fato de que o nascimento no Espírito é que permite ao ser humano,
“carne”, ver e experimentar o reinado de Deus (v. 3b). Ainda, o v. 6, ao mencionar o novo
nascimento em oposição ao de “carne”, remete ao Prólogo (v. 13), o qual, como se viu, trata
dos que nasceram da vontade de Deus e não simplesmente do desejo humano ou da “carne”125.
pois em João não há uma desconfiança gnóstica ante o material como tal. Carne se refere ao homem tal como
nasce neste mundo, um estado em que participa do espiritual e do material, como realça Gn 2,7. O contraste
entre carne e Espírito se refere à oposição que há entre o homem mortal (na expressão hebraica, ‘um filho de
homem’) e entre o que chegou a ser filho de Deus, entre o homem tal como é e este mesmo homem como Jesus
pode fazer que chegue a ser ao dar-lhe o dom do Espírito Santo”.
125
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. I, p. 225-226.
126
Cf. MANNUCCI, Valerio. Giovanni il Vangelo narrante: introduzione all’arte narrativa del quarto Vangelo.
Bologna: Dehoniane, 1993. p. 294.
127
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 326-327.
128
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 350-351.
129
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 367.
92
No “julgamento segundo a carne” não há, pois, uma idéia de “carne originalmente
pecaminosa”, mas sim uma nova alusão à resistência das autoridades judaicas em aceitar a
forma surpreendente com que Deus escolheu manifestar-se ao seu povo. E, novamente,
explicita-se a necessidade de se ter o Espírito de Jesus para ver além das aparências, ou seja,
enxergar Deus naquele homem galileu. A conclusão a que o evangelista conduz é a de que os
fariseus não conhecem a verdadeira personalidade de Jesus. Por isso mesmo, o julgamento
que fazem é sempre desprovido de razão, pois superficial. Em outras passagens da Escritura,
encontra-se a expressão “julgar segundo a carne”; logo, julgar segundo o pensamento humano
(1Sm 16,7; Is 11,3; Pr 28,21; Mc 12,14; Mt 22,16; Lc 20,21; Jo 7,24; 2Cor 10,7; Col 3,22).
O final do v. 2 é singular ao afirmar que Jesus concederá a vida eterna aos que lhe
foram confiados pelo Pai. Jesus não pretende excluir ninguém, mas expressar a sua
competência salvífica universal. É a forma utilizada por João para referir-se àqueles que
realmente acolhem a proposta de Jesus. Embora a destinação da vida eterna fosse direcionada
a todos, João frisa que parte da humanidade é que a acolheu na pessoa de “Jesus-carne”.
Sendo assim, a liberdade do ser humano é elemento imprescindível para a ação que o Cristo
quer realizar: conceder sua própria vida, a vida divina.
entrega da cruz é mais um elemento no conjunto das entregas que o “Jesus-carne” realizou.
Com relação ao v. 14a do Prólogo, pode-se recordar que o que permitiu a entrega da vida na
cruz e a doação da vida eterna foi justamente o fato de Deus ter se revelado na “carne” e não
em realidades legais ou mágicas. É o fato de ser frágil, perecedouro, crucificável que permitiu
ao Filho de Deus entregar-se por completo. O “Jesus-carne” de João é o protótipo de todo ser
humano plenificado, no qual o projeto de Deus alcança o seu objetivo. Em “Jesus-carne”, o
projeto de Deus é levado a bom termo e toda a sua glória-amor 132 é partilhada com a
humanidade.
3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo
Uma pergunta que pode ser feita diante do Evangelho segundo João é a da
possibilidade de se tomar o termo “carne” como sua chave de leitura. E já que é um evangelho
centrado no Cristo, haveria a possibilidade de uma cristologia “sarcológica”? Tuñí Vancells
comenta que um dos aspectos que dificulta a compreensão cristológica em João é o fato de o
Evangelho ser usado ora para sublinhar a humanidade de Jesus, o Cristo, ora para sublinhar a
sua divindade133. O que se pretende aqui não seria o tomar o vocábulo “carne” como
determinante da humanidade em detrimento da divindade. Mas, talvez, explicitar o que a
comunidade joanina pretendia ao aplicar a palavra “carne” à pessoa de Jesus, utilizando-o
como uma forma de aproximação à mensagem proposta no Evangelho.
132
Cf. MATEOS & BARRETO, Vocabulário, p. 116-120.
133
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 69-70.
134
Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 479.
94
138
Cf. BROWN, Raymond E. Jésus dans les quatre évangiles : introduction à la christologie du Nouveau
Testament. Paris : Cerf, 1996. p. 282-285.
139
Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 26.
140
Cf. BROWN, A comunidade, p. 46. – Acerca da compreensão messiânica dos samaritanos: Brown tece o
seguinte comentário: “É muito improvável que um samaritano crente aclamasse Jesus como o Messias, no
sentido davídico, pois toda a teologia samaritana era orientada contra as pretensões da dinastia davídica e de
Jerusalém, a cidade de Davi. De fato, o termo ‘Messias’, é de consenso geral, não aparece em escrito samaritano
antes do século XVI. Com efeito, os samaritanos esperavam um Taheb (aquele que volta, o restaurador), um
mestre e um revelador; e pode ter sido nesse sentido que os samaritanos aceitaram Jesus como o ‘Messias’ –
note-se que a samaritana diz em 4,25: ‘Sei que o Messias (que se chama Cristo) está para vir. Quando ele vier,
nos anunciará tudo’”. – Também: MAGGIONI, op.cit., p. 317.
96
permanece o grande desafio cristão, partir da humanidade para reconhecê-lo como Messias.
Há um movimento em que do humano chega-se ao caráter salvífico/redentor.
Jesus é o humano que diz a verdade do Pai, justamente porque dela participa
(v. 40; 46). A idéia de participação na vida de Deus está presente durante todo o texto,
141
Cf. TUÑÍ VANCELLS, J.-O. El testimonio del evangelio de Juan: Introducción al estúdio del cuarto
evangelio. Salamanca: Sigueme, 1983. p. 109.
142
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 315.
143
As traduções tendem a suprimir anthropos porque parece ter apenas o valor do pronome indefinido tíj. A
citação acima foi feita a partir da tradução de João Ferreira de Almeida que é mais literal. Assim diz o texto
grego: “nu/n de. zhtei/te, me avpoktei/nai a;nqrwpon o]j th.n avlh,qeian u`mi/n lela,lhka
h]n h;kousa para. tou/ qeou/\ tou/to VAbraa.m ouvk evpoi,hsen”. – BROWN, El Evangelio, v.1,
pt. 2, p. 596. De acordo com Brown, o termo “humano” no v. 40 é apenas um semitismo com o significado de
“alguém”. Apesar do mencionado acima, achou-se por bem refletir essa passagem pela relação do termo com a
questão da humanidade. Tão humano a ponto de ser apenas “alguém”, mais um dentre outros frágeis e
impotentes diante das ações de uma religião desvinculada da vida e submissa ao poder romano.
97
afirmando que a palavra de Jesus deveria ser acolhida como verdade vinda de Deus. Pode-se
concluir que a comunidade joanina tinha como assegurado o valor da humanidade de Jesus e o
proclamava como elemento de sua fé. Não isolado, mas em harmonia com a revelação da
glória divina. Ademais, a imagem apresentada de Jesus é a do humano obediente ao Pai e a
rejeição a este enviado prova que a pretensa filiação a Abraão nada mais significa 144.
Adicione-se a tudo isso a ironia presente no texto, pois se Abraão foi sensível e escutou a voz
de Deus (Gn 12,1-9 = busca de uma nova terra; Gn 15,1-6 = promessa de descendência
numerosa; Gn 22,1-19 = sacrifício de Isaac), seus filhos (judeus) deveriam também fazê-lo. A
situação das autoridades judaicas, no texto acima, enquadra-se perfeitamente no v. 11 do
Prólogo.
A resposta do que fora cego, que volta a enumerar as ações de Jesus (cf. 9,6),
evidencia a importância do relato de cura. O curado considera Jesus homem
como ele (9,1: um homem; 9,11: este homem). Sabe que se chama Jesus, que
no contexto poderia aludir ao seu significado etimológico, “Deus salva”, mas
não o conhece. O certo é que, seguindo as suas instruções, obteve a vista 146.
A aproximação que Mateos e Barreto fazem das duas menções do termo “homem”
(na verdade, a;nqrwpoj, portanto “humano”) é bastante justa. De acordo com ela, pode-se
concluir que realmente a utilização do vocábulo “humano” indica a condição humana de Jesus
e a identificação com a humanidade. A partir do ponto de vista dos que não crêem em Jesus
como o Messias, ele não passa de mais um ser humano.
Mais uma vez, tem-se a impressão de que o evangelista insiste não em afirmar uma
humanidade em oposição a pensamentos docetistas, mas sim como sinal da dificuldade que a
comunidade judaica experimentou diante de uma manifestação divina imprevista e
surpreendente: o Altíssimo revelado no humano. O anacronismo usado para apresentar o
conflito da Igreja com a sinagoga é meio hábil para mostrar que o discípulo precisa escolher
entre o ensinamento da sinagoga ou a fidelidade a Cristo148.
149
Cf. DODD, op.cit., p. 349-350.
150
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 454-455.
100
não está claro se suas lágrimas (11,35) são de tristeza por causa do amigo ou
por causa da falta de fé151.
Adicione-se aos elementos de Brown o fato de que nos vv. 41-42 enfatiza-se a
intimidade de Jesus com o Pai. Sua oração é plena de confiança, e o sinal é colocado como
elemento que ajudará a comunidade a crer na missão de Jesus como enviado. A construção
narrativa aponta para a ressurreição de Jesus, que, diferentemente de Lázaro, se libertará das
amarras da morte definitivamente. Novamente, como no texto da Samaritana, o que parecia
ser indício de humanidade de Jesus (tristeza) acaba por ser rechaçado.
Resta uma menção do termo “humano” na cena de Jesus com Pilatos. Depois de
mandar açoitar Jesus, Pilatos o apresenta simplesmente como “o humano” (v. 5). Há certo
desprezo na palavra de Pilatos153. Tal atitude parece ser uma manobra do evangelista com
duplo propósito: Pilatos constata a humanidade de Jesus e a comunidade de fé a professa
como realização da salvação. Colocada no discurso dos adversários (ironia joanina 154), a
afirmação de que Jesus se fez filho de Deus (v. 7), é a proclamação de fé no “homem Jesus”
como enviado e revelador do Pai.
151
BROWN, A comunidade, p. 119-120.
152
Cf. BUSSCHE, op.cit., p. 353.
153
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 72.
154
Cf. BROWN, Evangelho, p. 16.
101
evoca o título de “Filho do Homem”, que no Quarto Evangelho exprime o mistério cristão 155.
Há, possivelmente, um desejo do evangelista de afirmar a humanidade de Jesus como lugar
único de manifestação do sagrado. Para a comunidade cristã, o dito “Eis o humano” (v. 5) soa
como sinônimo de “o Logos fez-se carne”.
o escrito como sua confirmação; c) o mensageiro categorizado, que recebia o assunto para
expô-lo e desenvolvê-lo segundo as circunstâncias 162. “Jesus-carne” é aquele que, não faz a
sua própria vontade nem diz a sua própria palavra, somente faz e anuncia a vontade Pai que o
enviou (Jo 7,16ss; 12,44ss); na condição mortal e no pleno exercício de sua liberdade, ele é
aquele mensageiro categorizado que na história realiza o agir de Deus 163. O agir e o ser de
Jesus são condizentes com a incumbência que ele tem de revelar o Pai. “Jesus-carne”, na sua
existência na provisoriedade terrestre, é o mensageiro elevado ao grau máximo, pois ele
mesmo já é a mensagem do Pai.
162
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. A Palavra Inspirada. São Paulo: Loyola, 1992. p. 51. – Também: RAD,
Gerhard von. Sabiduria en Israel: Proverbios, Job, Eclesiasteés, Eclesiástico, Sabiduría. Madrid: Cristiandad,
1985. p. 30.
163
Cf. VITÓRIO, op.cit., p. 439. – O autor valoriza a idéia de movimento, de êxodo, em direção ao Pai. Jesus
tem papel fundamental nesse movimento e age em nome daquele que o enviou, não é um mero mediador, mas
sim um agente legítimo do Pai.
164
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 61.
165
Ibid., p. 68.
166
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 67.
167
Cf. VITÓRIO, Jaldemir. op.cit., v. 1, p. 124. – Segundo o autor, a metáfora utilizada por Jesus, “caminho”, dá
à experiência humana de relação com Deus um dinamismo que supõe ruptura com determinada situação e
colocar-se em marcha na direção do objetivo a ser alcançado.
103
visibilidade do Pai (Jo 14,9)168, é uno com o Pai (Jo 17,22). A pessoa de Jesus é a via para se
chegar à plenitude do próprio Deus169.
O termo “carne” em João situa-se nesse contexto da cristologia do envio. Deus não
se faria conhecer realmente aos humanos senão se fizesse “carne”. Ao romper com todas as
outras imagens de Deus, o Verbo encarnado mostra a face de um Deus até então
desconhecida. Um Deus que para falar aos seus e comunicar-lhes a salvação é capaz de
assumir a condição de fragilidade, própria da humanidade. O Deus onipotente fez-se frágil.
Numa meditação, Von Balthasar diz:
O Verbo veio, pois, ao mundo. A vida eterna tomou o lugar dum coração
humano. Resolveu habitar nessa frágil morada e, aí, deixar-se atingir. Logo,
a sua morte era coisa assente. Porque a origem da vida é indefesa 170.
Em “Jesus-carne”, a condição mortal, é fator determinante para a plena realização
do projeto de Deus de tornar a humanidade participante de sua vida eterna, que é conhecê-lo
(Jo 17,3). Na “carne” de Jesus, a “carne” de cada pessoa, ou seja, sua existência, é
contemplada e convocada ao seu destino último: participar da glória de Deus, o Deus que foi
glorificado pelo agir de “Jesus-carne” (Jo 17,4).
A cruz é, para João, uma exaltação que se insere na missão de Jesus. Importante
recordar como o relato da paixão em João é marcado por um Jesus que tem controle absoluto
sobre a situação, ele é que está decidido a dar a sua vida (Jo 10,11), ele é o grão caído na terra
que produzirá muito fruto (Jo 12,24). A existência na “carne” não é a definitiva, mas é real,
não podendo ser amenizada. Verdadeiramente Jesus toca a realidade humana 171. E a morte de
Jesus é passagem, saída do mundo, para retornar Àquele que o enviou. Da mesma forma que
ele veio, ele deve voltar e só pode fazê-lo após cumprir com êxito sua missão 172. Na morte
irrompe definitivamente a revelação de Deus à humanidade. A ressurreição é a ocasião, em
que o Pai revela a íntima ligação existente com o Filho, que não se rompeu pela encarnação
nem pela morte de cruz.
173
Cf. Ibid., p. 72-73.
174
Cf. THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 56-57.
175
Cf. MURPHY-O’CONNOR, A antropologia, p. 33. – Comentando acerca da aplicação do conceito de
humano à pessoa de Jesus no contexto das cartas paulinas, Murphy-O’Connor diz: “[...] nas cerca de 60.000
biografias de Jesus escritas durante os séc. XVIII e XIX, o retrato de Jesus que emerge está condicionado
principalmente pela subjetividade do autor que cria um herói em conformidade com suas próprias aspirações.
Em conseqüência, Jesus surge de várias maneiras como idealista, racionalista, romântico, socialista etc”. –
Também: THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 24. Os autores recordam a afirmação de A. Schweitzer de que “cada
imagem de Jesus da teologia liberal revelava a estrutura de personalidade que, aos olhos do autor, valia como o
ideal ético mais digno de almejar”.
105
Um Deus que entra na história (“Jesus-carne”), mas que tem sua história narrada a
partir do ponto de vista teológico: um escrito sem preocupação com datas; contendo algumas
incongruências topográficas; marcado por personagens e diálogos ficcionais; silencioso em
relação a alguns episódios dos sinópticos e original na narração de outros não-mencionados
por eles176. Assim é João, quanto à sua forma de apresentar Jesus. Porém, pode-se ver no texto
uma história implícita que fala tanto da comunidade quanto da realidade vivida por Jesus, ou
seja, o duplo pano de fundo. Tal tarefa não é tão simples, mas intenta elucidar o que seria de
um ou outro momento histórico (de Jesus ou da comunidade) ou dos dois tempos. O que se
pretende aqui não é realizar tal empreitada, mas apenas sinalizar o valor histórico do Quarto
Evangelho. Um dos problemas que pode surgir é o de se fazer perguntas ao texto que o seu
autor não se fazia no momento de sua compilação. Ou ainda, o de ver no texto questões que
são da atualidade dos leitores.
história humana com tudo o que ela permite. João assegura a realidade histórica da existência
de Jesus pela declaração de que o Logos preexistente faz-se ser humano e estabelece morada
na terra.
Dizer que o Logos fez-se “carne” não significa em João um deixar de ser Deus,
pois ele permanece o mesmo e agora adquire algo novo, ou seja, a participação na condição
mortal dos humanos; e, ao mesmo tempo, revela outra novidade, Deus faz-se igual aos
humanos, “fala a mesma língua”. “Carne” no v. 14a do Prólogo também não se relaciona com
pecado, ela é sinônimo de enriquecimento da humanidade, chamada a reconhecer no “Jesus-
carne” aquilo a que todo ser humano é convidado a participar, a saber, a glória divina. O fato
de se encarnar é justamente o que possibilita ao Logos manifestar, na doação irrestrita de si na
cruz, todo o amor que Deus tem pelos seus. Não só a cruz salva, mas a encarnação já é a
possibilidade de encontro com a salvação que é “Jesus-carne”. Ele não veio para condenar o
mundo, mas sim para salvá-lo (cf. Jo 3,17).
de elaboração do Quarto Evangelho. Os judeus não tinham problemas em aceitar que Jesus
fosse ser humano; ao contrário, só viam nele o ser humano, portanto, não havia uma
preocupação com o docetismo. No diálogo com os da sinagoga, a comunidade joanina
enfrentou o desafio de convencê-los acerca da missão de “Jesus-carne” como Filho de Deus e
partícipe de sua divindade. João não tinha a pretensão de distinguir em Jesus o que era
humano e o que era divino. O anúncio do Evangelho era justamente o de que naquele ser
humano Deus manifestava-se. João não escreve um Evangelho a partir do alto; se fala do
Logos preexistente, é porque o enviado na “carne” permitiu conhecer o alcance do mistério de
Deus. Para João, falar de “Jesus-carne” é falar de Jesus por completo, ou seja, a preexistência
do Logos, a sua existência terrena e, também, a sua exaltação na cruz e ressurreição. Tuñí
Vancells o diz da seguinte maneira:
179
TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 92.
108
Em 1Jo 2,16, tratando sobre o agir do cristão no mundo, o autor da carta escreve:
“Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo”. A expressão “concupiscência da carne”
apresenta o termo evpiqumi,a. O substantivo evpiqume,w, no NT, tem várias
possibilidades de tradução, girando sempre em torno da idéia de desejo, cobiça. Segundo
Schönweiss, nos escritos joaninos, o desejo tem sempre uma fonte mais antiga; não tendo sua
origem no humano, mas sim no mundo 180. Pode-se compreender evpiqumi,a como um
desejo ardente, tão desenfreado a ponto de gerar preocupações, concupiscência. Pois bem,
ligado ao substantivo sarkój, a expressão completa indica “todo desejo desordenado ligado à
carne”.
Na verdade, “carne”, nesse caso então, seria a oposição ao mundo de Deus 181 e a
explicitação de toda pretensão humana de se auto-sustentar. “Carne” no contexto joanino é o
ser humano na sua fugacidade, na sua precariedade de mortal (Jo 1,14), na sua totalidade
terrestre, na sua necessidade de aperfeiçoamento; sendo assim, o que é condenado na epístola
é o apegar-se a essa condição terrestre, o ser conquistado e aprisionado pelos sentidos. Pode-
se chegar a essa conclusão pela indicação dos v. 15 e 17. Em ambos, a oposição entre mundo
e Deus, ou entre amor ao mundo e o amor a Deus, ou ainda, entre mundo (realidade dominada
pelo Maligno – 1Jo 5,19) perecível/transitório e o Deus imperecível/eterno 182; evidencia que o
deixar-se levar pela cobiça da “carne” terá como conseqüência o herdar o que é próprio da
“carne”, ou seja, a extinção, a corrupção total. Ao contrário, aqueles que se apegam ao amor
de Deus e se recusam a seguir a “concupiscência da carne” estão assegurando sua
perenização (1Jo 2,17). O autor exorta a que os cristãos vençam o que é característico da
sociedade pagã e firmem-se no seguimento de Jesus183.
180
Cf. SCHÖNWEISS, Hans. evpiqumi,a. In: DITNT. v. 1, p. 525.
181
Cf. TILBORG, Sjef van. A Primeira Carta de João. In: THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e
Judas. São Paulo: Loyola, 1999. p. 215. – Também: FLEINERT-JENSEN, Flemming. Commentaire de la
Première Épître de Jean. Paris: Cerf, 1982. p. 49.
182
Cf. FORT, P. Le. As Epístolas. In: COTHENET, op.cit., p. 181-184. – Tratando do dualismo em João, o autor
afirma que, tal antítese, além de manifestar a oposição entre as esferas do poder de Deus e do poder do maligno,
obriga o cristão a tomar uma decisão. Há um imperativo prático, no qual se transfere para a vida comunitária o
mesmo dualismo. Segundo Le Fort, não se trata de um dualismo estático, em 1Jo 2,18 o autor afirma que já se
encontram na hora em que a confusão entre crentes fiéis e pessoas das trevas chegará ao fim; nesta hora o
império de Deus triunfará.
183
Cf. BROWN, Evangelho, p. 188.
109
Le Fort ainda diz que: “No plano doutrinal, a Epístola combate certa insipidez do
cristianismo que anula a existência física de Jesus e descura a exigência do amor fraterno” 189.
Morgen também concorda com esse pensamento e alerta sobre o perigo de uma identificação
muito imediata dos falsos profetas da epístola com a corrente docetista; pois parece que o
problema era o não aceitar a unidade joanina que valoriza a “carne” de Jesus. Segundo
Morgen, os falsos profetas de 1 Jo “[...] não negavam a encarnação, nem a realidade física da
humanidade de Jesus; por outro lado, para eles, o que Jesus foi ou fez-se ‘carne’ não tinha
incidência em sua salvação”190. No pensamento joanino, “Jesus-carne” é quem conseguiu
convocar o ser humano à condição de “carne” vivificada pelo Espírito.
184
Cf. BONNARD, op.cit., p. 187.
185
Cf. FLEINERT-JENSEN, op.cit., p. 85-87.
186
Cf. BONNARD, op.cit., p. 193.
187
Cf. TILBORG, op.cit., p. 247.
188
Cf. FORT, op.cit., p. 173.
189
Ibid., p. 173.
190
MORGEN, Michèle. As Epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 70.
110
O autor não tem pretensão de ensinar um preceito novo, mas sim recordar o
mandamento já anunciado do amor mútuo (2Jo 5). Reconhece que alguns permanecem no
caminho da verdade (2Jo 4) e alerta para o perigo da pregação dos impostores (2Jo 7). Qual
seria o erro doutrinal presente na pregação dos que são o Anticristo? O v. 7 explicita que se
trata da negação da humanidade de Jesus. O mistério cristão proclamava a “carne mortal” de
Cristo como dado essencial para a fé. Fica novamente muito evidente que nessa ocorrência do
termo “carne” seu significado é o mesmo já apresentado da finitude e fragilidade humanas.
Para Tilborg, “o uso do tempo presente [evn sarki,] significa que também agora importa
vencer o escândalo da dimensão sárquica. Jesus é homem como nós, mas é ele que devemos
confessar”193.
Mais uma vez, parece que o autor da Epístola quis insistir na ética cristã. Ele
associou o v. 7 ao conjunto que falava do caminho da verdade e da prática do amor
mútuo (vv. 4-6). Os vv. 8-11 continuam denunciando o perigo da pregação do Anticristo, na
qual, em nome de certo desenvolvimento espiritual, acaba-se chegando a excessos e
afastando-se do ensinamento autêntico. Quem é da luz deve rejeitar os que são das trevas e
suas ações. Mas, na prática, o que significa confessar que “Jesus veio na carne”? Confessar o
Cristo com a Igreja, permanecendo no caminho da verdade, é traduzir em obras o seu jeito de
191
Cf. TILBORG, op.cit., p. 194.
192
Cf. MORGEN, op.cit., p. 13. Michèle Morgen propõe interpretar o Prólogo da Epístola justamente em chave
pascal, apontando para a relação do verbo “ver” com as experiências do discípulo amado (Jo 20,8), de Madalena
(Jo 20,18), dos discípulos (Jo 20,25) e de Tomé (Jo 20,29); do verbo “apalpar” com as evocações de toques no
corpo de Jesus por Madalena (Jo 20,17) e Tomé (Jo 20,27). Embora Morgen não associe o verbo ouvir a
nenhuma passagem, pode-se facilmente constatar que em todas as experiências que a comunidade faz do
Ressuscitado-crucificado acontecem diálogos que também frisam o aspecto real da ressurreição.
193
TILBORG, op.cit., p. 282-283.
111
agir. Morgen vê na expressão “Jesus veio na carne” o nexo entre amor ao irmão e cristologia,
acentuando que:
Uma vez que Cristo respondeu ao amor do Pai pelos homens, tornando-se
carne, a nossa resposta ao amor de Deus só será verdadeira e adequada se,
por nossa vez, inventarmos a encarnação do amor de Deus, e isso tanto em
palavras (liturgia, confissões de fé etc.) como em nossas obras (amar ao
próximo)194.
Conclui-se que, com relação ao termo “carne”, a Segunda Epístola reforça a
prática do amor já anunciada na Primeira Epístola. A realidade reveladora do amor de Deus
para com a humanidade está em “Jesus-carne” e, em conseqüência dessa assunção do gênero
humano, todo amor a Deus será verificável na prática do amor aos irmãos (1Jo 4,7-21).
Conclusão
194
MORGEN, op.cit., p. 93 [grifo da autora].
112
Quanto à aplicação do termo à pessoa de Jesus, como se viu, Paulo faz um uso
moderado, insistindo sempre na condição de igualdade com os seres humanos e ressaltando
sua isenção de pecado. Paulo credita à “carne” de Jesus uma missão de redenção. O mistério
da encarnação não é ainda a ação salvífica, ela se dá na paixão e ressurreição. No sacrifício de
“Jesus-carne”, o pecado é derrotado e o ser humano pode dar um novo sentido à sua condição
de criatura. Quando usa “carne” para referir-se a Jesus, Paulo não quer afirmar parte ou
componente do ser do Filho de Deus, ele está apontando para o todo de sua vida, a totalidade
de sua existência que se revela plenamente na cruz.
Afirmar que em João existe apenas uma cristologia descendente é não reconhecer
que no seu evangelho há um forte indício de que a humanidade de Jesus era dado pacífico e
que o desafio foi afirmar a sua participação na divindade. Mais que isso, em João, há uma
cristologia do envio, que contempla o terreno, pois é justamente na esfera do efêmero, do
transitório, do perecível, do carnal, do mortal que Deus se revela em Jesus. A redenção que o
Cristo comunica só pode ser vislumbrada na existência histórica de Jesus. Sendo assim, a vida
terrena de Jesus é essencial para a compreensão que se tem dele na fé.
O estudo das outras ocorrências da palavra “carne”, não aplicadas a Jesus, em João
assinalou que há mais de um sentido, bem semelhante ao AT, e que a ênfase encontra-se
sempre numa crítica ao apego às coisas terrestres. “Carne” é usado justamente para
demonstrar que a vida humana diante de “Jesus-carne” é um lugar de escolhas, de decisão. A
oposição joanina é um convite a perceber que o humano não tem o pleno domínio sobre si; no
Cristo, ele pode encontrar a verdade e a liberdade. A análise do conceito “humano” propôs
uma aproximação com “carne” e ajudou a demonstrar o quanto para a comunidade joanina a
confissão de fé na humanidade de Jesus era algo determinante, mostrando que é no Cristo
total que se encontra a plena realização do projeto criador de Deus.
113
Ainda sobre Jo 1,14a, ficou patente que não há nenhuma intenção do evangelista
de formular um princípio doutrinal acerca das duas naturezas de Jesus. Como se disse há
pouco, para João só é possível anunciar Jesus, o Cristo, como aquele que na “carne” revelou a
glória de Deus. É o Jesus terrestre que, compreendido pela comunidade à luz da Páscoa,
permite a essa mesma comunidade confessar num hino que o Cristo existe desde todo o
sempre. Ao dizer Jesus, João quer dizer aquele que, existindo desde sempre veio a este
mundo, nele viveu provisoriamente e agiu pela força do próprio Pai e, após cumprir sua
missão, a ele retornou e foi exaltado.
As duas passagens das Epístolas que se referem a Jesus são declarações que
compõem o credo comunitário cristão e ligam-se ao mistério da redenção. Em ambas, há uma
crítica a todo descuido em relação à humanidade de Jesus. Mais que em Jo 1,14a, as duas
referências das cartas apontam explicitamente que aceitar o Cristo na “carne” é dado
fundamental da fé. No Evangelho, a menção à “carne” alude mais ao fato de Deus comunicar-
se na história e assumir de uma vez por todas a humanidade como lugar transitório de sua
revelação.
Por fim, uma última incidência diz respeito à importância de “Jesus-carne” para o
diálogo com o mundo moderno1, tentando elucidar a questão da relação entre Deus e o
humano não como díspares, mas sim como parceiros que em Jesus encontram-se e vinculam-
se. “Jesus-carne” revela o quanto Deus pode surpreender o humano e como o ser humano só
pode entender-se no voltar-se para Deus. Ainda na relação com a modernidade, buscamos
refletir sobre o valor do “Jesus-carne” para o tema tão candente da solidariedade. Ela
ultrapassa os limites religiosos e surge como uma proposta secularizada, que pode receber do
“Jesus-carne” um complemento significativo.
O estudo de Jo 1,14a abre perspectivas para uma reflexão sobre a atual concepção
eclesial acerca da imagem e pessoa de Jesus. A leitura do “Jesus-carne” de João é um apelo
para voltar-se ao início do cristianismo e perceber que a fé na pessoa de Jesus é, inicialmente,
um ato de adesão a um ser humano que re-significou as relações da humanidade com Deus,
manifestando-se como o revelador do Pai. Os primeiros cristãos só puderam elaborar a
releitura de Jesus após o evento pascal, porque esse galileu não era fantasiosamente
imaginado por um grupo, mas um humano que existiu, agiu e pregou em meio à história de
homens e mulheres também reais.
O desafio lançado aos primeiros ouvintes de Jesus e de João permanece atual: ver
naquele ser humano a revelação plena e definitiva de Deus e o único acesso ao Pai. A reflexão
teológica está muito além da compreensão da fé vivida, celebrada e ensinada pelos cristãos. O
1
Considera-se aqui como “mundo moderno” o advento, concretização e expressão da autonomia da razão,
englobando seus momentos ou nuances, tais como “pré-modernidade” e “pós-modernidade”.
2
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 216-217.
116
Jesus, tantas vezes propagado pelo cristianismo, está muito aquém da pessoa do “Jesus-
carne”, que habitou em meio à humanidade (Jo 1,14), e de sua densidade salvífica. “Jesus-
carne” permanece como verdade anunciada pelo cristianismo, mas também como uma grande
incógnita que desafia o fiel, a liturgia e a catequese.
palavra sobre a encarnação está visivelmente encoberta por uma série de conceitos e
preconceitos que não permitem uma leitura de Jo 1,14a como novidade de fé. Sendo assim,
uma nova cristologia não pode fugir à tarefa de dizer, em conformidade com a Tradição, a
verdade cristã acerca do Enviado pelo Pai. Entretanto, depois do advento da razão moderna, a
cristologia não pode se permitir apenas afirmar algo, mas deve sim explicitar racionalmente,
com direito ao uso de todos os elementos necessários, o que o cristianismo propõe.
6
Cf. QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Cristologia: sondagens para um novo paradigma. São Paulo:
Paulinas, 1999. p. 311.
7
Cf. GILBERT, Pierre. Pequena história da exegese bíblica. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 197. 201.
8
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Pedagogia do Cristo: elementos de cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas,
1997. p. 71.
9
Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 333.
118
Há, em João uma cristologia que concilia o agir terrestre de Jesus com o
significado último de sua exaltação. Não poderia ser glorificado aquele que não assumiu a
humanidade. Longe de ser um argumento para justificar a preexistência do Filho de Deus,
Jo 1,14a é o anúncio da missão de Jesus, ou seja, o vir na carne para comunicar-se à
humanidade em nome do Pai. A encarnação como a paixão são momentos extremos da vida
de “Jesus-carne”, elas não são em si a definição do seu ser e agir, elas enquadram-se no arco
da existência da pessoa humana Jesus que cumpre sua missão, chegando ao limite da morte.
Jesus foi um judeu comum. “Jesus-carne” é um judeu insatisfeito com as barreiras impostas
aos que desejam conhecer Deus. São também de grande utilidade as pesquisas em torno das
literaturas circunvizinhas aos evangelhos, revelando o valor do gênero literário, dos esquemas
mentais comuns ao Oriente e da semântica utilizada na composição da boa-nova13.
Outra questão que se verifica é a da tensão entre o Jesus histórico e o Cristo da fé.
Jo 1,14a não permite essa dissociação. O Evangelho de João compreende o Jesus histórico, ou
seja, a sua existência terrestre, enquanto momento daquele que será proclamado na fé como
Cristo. Jesus(-carne) é o Cristo, o enviado, e foi isto que João procurou transmitir à sua
comunidade.
Fica evidente, portanto que não se pode mais elaborar uma cristologia que
prescinda do “Jesus-carne” proposto em Jo 1,14a como revelador e aquele que atua no mundo
em íntima consonância com o Pai. “Jesus-carne” é a afirmação de que em Jesus o ser criatura
perecível foi elemento insubstituível para o anúncio do amor do Pai para com a humanidade.
Proposição: A teologia, enquanto ciência, tem feito enormes avanços na reflexão acerca da
pessoa de Jesus e de sua humanidade, contudo há um abismo entre essa reflexão teológica e
o substrato que dela chega até os fiéis, manifestando suas ressonâncias na vida cotidiana. Há
um cristianismo infantil coexistente com o cristianismo oficial e formal. Essa disparidade no
nível do conhecimento da fé tem-se revelado prejudicial ao anúncio do evangelho.
13
Cf. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. – Relacionado ao
mesmo tema: MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do segundo Templo. São
Paulo: Loyola, 2005.
120
pensada, elaborada teologicamente, e a fé professada, vivida pela maioria dos fiéis 14. Esse
fosso pode ser reconhecido na liturgia, na catequese e nas manifestações mais populares de
religiosidade cristã. A bem da verdade, várias questões teológicas intimamente ligadas ao
mundo bíblico são de total desconhecimento do grande público, o que causa determinados
constrangimentos quando os meios de comunicação anunciam como extraordinárias
novidades conclusões e descobertas que pertencem ao domínio de teólogos e exegetas há mais
de duas décadas15. A impressão passada com essa realidade é a de que, por vezes, subestima-
se a capacidade intelectual dos cristãos.
A visão de um Jesus glorioso, que tudo pode e tudo sabe, fortemente introjetada
nos cristãos, demonstra certa dificuldade para se aceitar um “Jesus-carne”, tão humano a
ponto de revelar realmente o rosto de Deus. Talvez, o aspecto mais aceito da humanidade de
Jesus encontra-se na extrema valorização dada pelos cristãos, principalmente pela devoção
popular, ao seu sofrimento e à sua morte16. Nem mesmo esse viés permanece isento de
exageros, basta recordar uma obra cinematográfica recente sobre a paixão de Cristo 17 na qual
se apresentava Jesus como homem dotado de um poder extraordinário, excepcional, para
suportar o sofrimento.
14
Cf. CALVANI, Carlos Eduardo B. Desafios para o ensino da Teologia Latino-americana em nossos dias. In:
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 354-356, abr. 2005.
15
Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 311, nota 32.
16
Cf. COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. Jesus Cristo: ontem,
hoje e sempre. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 44-48.
17
Cf. LISBOA, Walter Eduardo. A Paixão de Cristo segundo Mel Gibson: uma história bem contada?. São
Paulo: Paulinas, 2005. p. 15. – Segundo Lisboa, no filme Paixão de Cristo, co-produção EUA/Itália, apresentada
em 2004, seu diretor Mel Gibson para “completar” os evangelhos sinóticos, privilegia um escrito de inícios do
século XIX, a saber, as visões de Anne Emmerich (1774-1824). Essa alemã, mística estigmatizada, foi bem
conhecida e reverenciada em círculos católicos nas décadas de 1940-1950 e por ocasião do lançamento do filme
foi publicada no Brasil a tradução de seu livro: EMMERICH, Anna. Vida, paixão e glória do Cordeiro de Deus:
as meditações de Anna Emmerich. São Paulo: MIR, 2004.
121
A catequese cristã católica, comumente de cunho mais doutrinal que bíblico, não
conduz o iniciando a uma verdadeira compreensão da fé. O Deus ensinado na catequese,
apesar das inovações metodológicas, continua praticamente o mesmo: um Deus que não é, em
hipótese alguma, aquele que “Jesus-carne” quis dar a conhecer. As imagens de Deus
transmitidas pela catequese cristã católica enquadram-se entre aquelas das chamadas “etapas
pré-cristãs da compreensão de Deus”18.
O mundo e a história dos homens, em que Deus quer realizar a salvação, são
a base de toda realidade salvífica: é aí que primordialmente se realiza a
salvação... ou se recusa e se realiza a não-salvação. Neste sentido, vale:
“extra mundum nulla salus”, fora do mundo dos homens não há salvação 19.
Exegese e teologia, por um lado, e liturgia e catequese, por outro, sinalizam o
quanto é urgente uma reflexão sobre a humanidade de Jesus e o acreditar na capacidade de
18
Cf. SEGUNDO, J. L.; SANCHIS, J. P. As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus: uma chave para a análise
do cristianismo (latino-americano). Petrópolis: Vozes, 1968. – Os autores mostram como as imagens de Deus
presentes no Antigo Testamento permanecem nas concepções atuais. O Deus apresentado por Jesus é
praticamente um desconhecido.
19
SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 29-30.
122
assimilação dos cristãos20. O cristianismo urge por partilhar o conhecimento e começar a criar
acesso ao que a exegese e teologia elaboram, a fim de que o “Jesus-carne” joanino possa
ajudar o humano contemporâneo a reconhecer-se na sua condição de privilegiado interlocutor
de Deus. Isso permitiria uma leitura da história humana marcada pela graça universal da
salvação, compreendida como momento dentro da história de Deus, evitando um desejo de
nova fuga mundi, que é sintoma de uma incompreensão do humano que em “Jesus-carne”
recebeu prerrogativa de comunhão com o divino.
Proposição: Os cristãos, nas suas mais diversas denominações eclesiais, têm no “Jesus-
carne” o apelo irrecusável para que na unidade em torno da defesa do humano se dê a
experiência da verdadeira comunhão e o testemunho irrefutável da compreensão, aceitação e
vivência do evangelho como prática do amor.
20
Cf. CNBB. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003. n. 22, p. 25.
123
Não mais vivendo em tempos nos quais se afirmava Extra Ecclesiam nulla salus21,
a Igreja Católica defronta-se com o desafio do diálogo ecumênico. Qual a incidência do
“Jesus-carne” para o diálogo ecumênico? O cristianismo encontra-se mais que nunca diante
do paradoxo da profissão do nome cristão, pois atualmente existem mais de uma forma de
cristianismo. Embora o anúncio eclesial, por mais diversificado que seja, proponha a Boa-
Nova, atribuindo-a à pessoa de Jesus, o que se nota é uma disparidade que ultrapassa o
meramente ritual e o estritamente doutrinal, chegando a questionar se realmente há uma
fidelidade à proposta de Cristo. Nominalmente se confessa o mesmo Cristo, mas nem sempre
ele é compreendido a partir dos mesmos elementos.
21
Cf. DZ 714. – O Concílio de Florença (1442), afirmava: “Firmemente crê, professa e proclama que ninguém
fora da Igreja Católica, não só pagãos, senão também judeus, hereges ou cismáticos, participará da vida eterna,
mas cairá no fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,41), a não ser que antes de sua
morte se unir a ela”. – Acerca da expressão em questão: LIBANIO, João Batista. “Extra Ecclesiam nulla salus”.
In: Perspectiva Teológica, São Leopoldo, v. 1, n. 8, p. 21-49, jan./jun. 1973. Libanio comenta que a expressão
Extra Ecclesiam nulla salus surgiu no séc. III num contexto apologético e intra-eclesial, não se tratando portanto
da problemática da salvação de toda a humanidade. Cipriano de Cartago tinha diante de si a problemática dos
movimentos cismáticos. A intenção era guardar a unidade da Igreja sob a autoridade do bispo e impedir assim a
ruptura dentro da comunidade. Libanio ainda traça o desenvolvimento histórico da expressão e reflete sobre a
possível atualidade teológica da mesma.
22
Cf. NASCIMENTO, Claudemiro Godoy do; ALBUQUERQUE, Klaus Paz de. A experiência de macro-
oikoumene em tempos incertos: desafios e utopias. In: Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258,
p. 317-322, abr. 2005. – Os autores abordam parte da história do movimento ecumênico.
124
vinculados ao projeto capitalista neoliberal. Tais grupos são realmente cristãos? 23 Sem dúvida
existem grupos religiosos pentecostais e neopentecostais que revelam, principalmente pela
atuação de suas lideranças, um comprometimento com o anúncio do evangelho enquanto
libertação do humano24.
23
Cf. TIMM, Albert R. Teologia da Prosperidade: Breve Análise Crítica. In: Parousia, São Paulo, v. 1, n. 1,
p. 55-56, jan./jun. 2000.
24
Cf. ALTMANN, Walter. O pluralismo religioso desafio ao ecumenismo na América Latina. In: SUSIN, Luiz
Carlos (org.). Sarça ardente: teologia na América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 399.
25
Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto?. 2. ed. São Paulo: Paulus,
2005. p.12; 37-38.
26
Cf. RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Perspectivas teológicas para o combate à idolatria. In: Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 281, abr. 2005.
125
O cristianismo não pode fugir ao diálogo e a tudo o que esse termo significa, ou
seja, partilha, posicionamentos, confrontos, comunhão, busca da verdade, humildade para
reconhecer que nenhum grupo possui a totalidade da verdade sobre Deus 29. O fenômeno da
multiplicidade religiosa leva o cristianismo a rever coerentemente o que diz sobre si mesmo e
como vê as outras religiões. Como em todo diálogo, os parceiros não podem descuidar-se de
seus elementos característicos e pontos essenciais; ao mesmo tempo em que buscam acolher a
contribuição oriunda de cada participante30. Marcelo Azevedo faz a seguinte indicação:
O diálogo supõe que cada um dos parceiros seja ele mesmo e como tal se
manifeste e seja acolhido. Seu fruto principal é a percepção da diferença
entre ambos e, por conseguinte, a intuição mais aguda das respectivas
identidades. Ao conhecer melhor o outro, cada um se conhece melhor a si. O
que poderia parecer um fator que aprofunda a discrepância e alarga a
distância torna-se caminho privilegiado de uma nova perspectiva 31.
No que tange ao diálogo inter-religioso, o cristianismo enfrenta duas objeções por
parte dos que propõem o pluralismo religioso:
29
Cf. DUPUIS, op.cit., p. 517.
30
Cf. Ibid., p. 516.
31
AZEVEDO, Marcelo. Prólogo. In: TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto (org.). Diálogo dos pássaros: nos
caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 18. – Faz afirmação semelhante: KONINGS,
Johan. Ser cristiano: fe y práctica. México: Buena Prensa, 2005. p. 7.
127
Após apresentar as duas objeções mais comuns e a possível resposta cristã a elas,
cabe ressaltar que o “Jesus-carne” é, em si mesmo, a possibilidade de diálogo inter-religioso,
pois nele o ser humano encontra-se plenamente valorizado. Mais que discutir formulações
doutrinais e religiosas, às vezes infrutíferas, o diálogo inter-religioso deve esforçar-se por ser
instância em que o ser humano, como criatura única que pode dialogar com o Criador pela
religião, encontra-se no centro. Longe do centro dos diálogos e dos interesses, o ser humano
permanece como vítima de uma sociedade que o trata de forma oposta ao que ele é. A
Declaração do Parlamento das Religiões Mundiais formulou esse pensamento assim:
Todos sabemos: em toda parte no mundo, hoje como ontem, seres humanos
são tratados de forma desumana. São privados de suas chances de vida e de
sua liberdade, seus direitos humanos são pisoteados, desconsidera-se sua
dignidade humana. Mas poder não é o mesmo que Direito! Diante de toda
desumanidade, nossas convicções religiosas e éticas exigem: todo ser
humano tem de ser tratado de forma humana!38
A pessoa de “Jesus-carne” deve ser um reforço para a percepção de que toda
forma de religiosidade torna-se legítima à medida que visa ao bem, a realização, à dignidade
36
QUEIRUGA, Andrés Torres. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997 (Comunidade e missão). p. 60
[grifo do autor].
37
Cf. GEFFRÉ, Como fazer, p. 224. – O autor evidencia aquilo que se pode chamar de universalismo cristão da
seguinte maneira: “É enquanto Universal concreto, isto é, enquanto Deus feito homem, que Jesus é universal.
Cremos que Cristo não é uma manifestação entre outras do Absoluto que é Deus. Ele mesmo é Deus tornado
histórico. Mas o que dizemos do Cristo como mediação de Deus não podemos dizer do cristianismo histórico.
Por outro lado, a missão universal da Igreja não depende do caráter absoluto do cristianismo como religião
histórica. O cristianismo não tem o monopólio da ação salutar de Deus: a graça é oferecida a todos os homens
segundo vias conhecidas só de Deus. A Igreja, como realidade histórica, não tem o monopólio dos sinais do
reino; Deus é mais do que os sinais históricos pelos quais ele manifestou sua presença”.
38
CONSELHO DO PARLAMENTO DAS RELIGIÕES DO MUNDO. A Declaração do Parlamento das
Religiões do Mundo. In: KÜNG, Hans; SCHMIDT, Helmut. Uma ética mundial e responsabilidade globais:
duas declarações. São Paulo: Loyola, 2001. p. 74-75 [grifo do autor].
129
do humano39. O contributo cristão dá-se pela partilha de uma experiência em que o “Jesus-
carne” mostra que o caminho para o encontro com Deus não se dá num vazio abstrato, mas no
descobrir-se como próximo do outro, da mesma natureza humana. Nos diversos seguimentos
religiosos encontra-se a chamada “Regra de Ouro”, em que se fundamenta o agir humano e
apresenta um princípio de eqüidade nas relações sempre postulado na relação com o
semelhante40. O “Jesus-carne” pode ser compreendido como mais um que soma a tantos
outros no desejo de se respeitar o próximo, afinal também é característico do cristianismo
aquilo que Hans Küng apresenta como o elemento de validade e aceitação: “as religiões que
não concretizam em si mesmas os direitos humanos não são hoje mais dignas de fé” 41. Por
fim, qualquer forma religiosa que aviltar o ser humano rompe com a imagem de Deus
proposta por “Jesus-carne” e com o sentido último da religião enquanto experiência de
encontro com o Criador.
39
Cf. GEFFRÉ, Claude. Le dialogue des religions défi pour un monde divisé. Le Supplement, Paris, n. 156,
p. 118, abr. 1986. – Diz Geffré: “Eu creio poder dizer que todas as religiões que são inumanas estão condenadas
a morrer. O futuro das grandes tradições religiosas passa pelo rosto do homem”.
40
Cf. KÜNG, Hans. História, importância e método da Declaração para uma Ética Global. In: op.cit., p. 74-75. –
Hans Küng lista algumas formulações da Regra de Ouro nos diversos textos sagrados, revelando o quanto há de
semelhanças entre as religiões quando se coloca o humano como referência para o diálogo. Eis as formulações:
Confúcio (c. 551-489 a.C.): “O que tu mesmo não queres, não faças a outra pessoa” (Ditos 15.23); Rabi Hillel
(60 a.C. a 10 d.C.): “Não faças aos outros o que não queres que eles façam a ti” (Shabbat 31a); Jesus de Nazaré:
“Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31); Islã:
“Ninguém é crente enquanto não desejar a seu irmão o que deseja para si mesmo” (Quarenta Hadith de an-
Nawawi, 13); Jainismo: “Os seres humanos deveriam ser indiferentes às coisas mundanas e tratar todas as
criaturas do mundo como eles mesmos desejariam ser tratados” (Sutrakritanga I, II, 33); Budismo: “Um estado
que não é agradável ou aprazível para mim também não será para ele; e como posso impor ao outro um estado
que não é agradável ou aprazível para mim?” (Samyutta Nikaya V, 353.3-342.2); Hinduísmo: “Não se deve agir
em relação ao outro de modo desagradável para si mesmo: é esta a essência da moralidade” (Mahabharata XIII
114,8).
41
Ibid., Em busca de um “ethos” mundial das religiões universais. In: Concilium, Petrópolis, v. 2, n. 228, p.132,
abr./mai.1990.
130
Diante dessas imagens errôneas, tanto de Deus quanto do ser humano, o “Jesus-
carne” é um convite a repensar a existência, a relação, a previsibilidade, tanto do Criador
quanto da criatura. O cristianismo, ao propor que num ser humano concreto Deus deu-se a
conhecer, afirma que todo ser humano é legítimo e válido em sua própria existência. O fato de
ser humano, o seu existir, sem nada fazer, já tem em si o seu valor. A vida humana em todas
44
GEFFRÉ, Como fazer, p. 159.
45
Cf. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O Projeto da Modernidade: autonomia, secularização e novas
perspectivas. Brasília: Liber Livro, 2005. p. 55; 59.
46
GEFFRÉ, Como fazer, p. 158.
47
Cf. MARTINI, Antonio. O provisório e o transcendente. In: _____, et al. O humano, lugar do sagrado. 6. ed.
São Paulo: Olho d’Água, 2001. p. 36.
132
as suas formas é tida como sagrada e, no ambiente secularizado, deve ser tida como realidade
a ser respeitada justamente por não ser totalmente compreendida.
48
Cf. ECO, Umberto; MARTINI, C. M. Em que crêem os que não crêem?. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 75.
– Numa resposta a Umberto Eco, o cardeal Martini afirma que o que constitui a dignidade humana é o fato de
que cada ser humano é uma pessoa aberta para algo mais alto e maior que ela própria.
49
BRITO, Ênio. O diálogo pelo avesso. In: MARTINI, Antonio et al., op.cit., p. 61.
133
bastar-se a si mesma e poder ter o acesso à compreensão total de si. A psicologia ajudou em
muito para uma visão mais humana da pessoa de Jesus e, conseqüentemente do humano em
geral. Algumas correntes psicológicas, como a Logoterapia, têm procurado implementar em
suas ações a questão religiosa, já que essa é uma das dimensões do humano50.
Indubitável é o fato de que o cristão não pode mais agir no mundo como se dele
não fizesse parte ou não fosse por ele interpelado. A cultura moderna atribui ao humano um
lugar inigualável, mas nem sempre consegue vislumbrar a construção de uma história mais
justa. A autonomia da razão e o mito da cientificidade acabam por tornar o ser humano vítima
de suas próprias pretensões, pois arrisca negar a sua dimensão religiosa.
Para o cristão, o reinado de Deus não se confunde com nenhuma forma de poder
neste mundo, mas uma determinada forma de poder permite, por vezes, manifestar
50
Cf. PETER, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo: Paulus, 1999. p. 82-98. – Sobre a
relação psicologia e religião: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.). Espiritualidade e prática
clínica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. – DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Crer depois de
Freud. São Paulo: Loyola, 2003. – ALMEIDA, Dalton Barros. Psicologia e fé, uma relação possível?. Rhema,
Juiz de Fora, v. 6, n. 23, p.62-87, set./dez. 2000.
51
A propósito: HÜNERMANN, P. Cristología. Barcelona: Herder, 1997.
134
parcialmente aquilo a que o humano é chamado na sua essência, ou seja, encaminhar-se para a
plenitude no respeito de sua dignidade e capacidade de interlocutor do mistério52.
52
Cf. SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração: pobreza e neoliberalismo – um desafio a
evangelização. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 124. – Sung assim se pronuncia acerca de uma escatologia intra-
histórica: “A sacralização ou a absolutização de um sistema, seja capitalista ou socialista, significa a gestação de
um totalitarismo. A distinção entre o projeto histórico e a utopia transcendental (ou, na linguagem de Dussel, a
utopia histórica e a utopia escatológica) é fundamental na luta por uma sociedade mais humana. A utopia
transcendental, não factível historicamente, deve acompanhar o projeto histórico, sendo uma fonte de inspiração
e o fim a ser aproximado, mas não atingido; e, ao mesmo tempo, fonte de crítica ao projeto e às estratégias
históricos”.
53
Cf. SCHILLEBEECKX, op.cit, p. 300. – O autor comenta o uso inicial do termo secular “solidariedade” como
designativo do cristão “amor ao próximo”.
54
Cf. SESBOÜÉ, Jésus-Christ, p. 367-375.
135
a) Busca da paz: os interesses das grandes nações têm produzido um sem fim de
conflitos armados, tendo como mais prejudicados não os líderes nacionais, mas sim as
camadas populares, os mais sofridos entre os humanos. A paz cristã, que não se
confunde com a Pax Romana nem com a ausência de guerras, é apelo à proteção da
integridade pessoal e ao diálogo como meio unicamente válido para se construir uma
sociedade mais justa. Justiça esta que produzirá a verdadeira paz. O cristão é, pela sua
matriz geradora, um fomentador da paz nascida da justiça. Ele vê em toda forma de
violência contra o ser humano um risco e uma ameaça à paz. O sacrifício do “Jesus-
carne” repete-se no sacrifício de todos os homens e mulheres que são vitimados pela
violência e é um clamor aos que consideram o humano como realidade a ser priorizada
em todas as circunstâncias. O cristão não professa um deus sacrificado, mas sim um
Jesus que na sua “carne” recebeu do mundo uma resposta negativa às suas propostas.
O sacrifício da cruz, longe de ser um incentivo à submissão diante do sofrimento, é um
clamor para que não se repita com ninguém nenhuma forma de violência.
b) Garantia dos direitos humanos: inúmeros grupos, organizados cada qual em torno
de um objetivo particular, buscam defender os direitos inalienáveis dos seres humanos.
A disparidade econômica entre países superdesenvolvidos e aqueles marcadamente
empobrecidos exige do cristão um engajamento, para que todos tenham o necessário à
sua subsistência. “Jesus-carne”, que se deu como verdadeiro alimento para os seus
seguidores, exige dos mesmos o assumir sua forma de agir no mundo e todos os
esforços possíveis para sanar as deficiências sociais. “Jesus-carne”, que viveu e
55
SUNG, Jung Mo. Solidariedade e condição humana. In: Convergência, São Paulo, v. 36, n. 340, p. 100, mar.
2001.
136
assumiu a história humana como espaço de anúncio daquilo a que todo humano é
chamado a ser, exige do cristão uma postura de compromisso diante da história como
espaço em que se dão as verdadeiras escolhas da fé e no qual se explicita a vitalidade
do evangelho. Na luta em defesa do ser humano não importam os credos, mas a
legitimidade da ação que se realiza. Aí o cristão pode descobrir outros cristãos que não
professam por palavras o evangelho, mas o vivem na intensidade da prática da
solidariedade.
No agir e pelo agir dos homens é preciso ficar claro que Deus, ajudado pelo
homem, quer a salvação para sua criação inteira. Para a Bíblia, “o homem” é
o representante de Deus na terra: para a salvação do homem, da natureza e
da história do mundo. E por mais que pareça que o homem, em sua tarefa de
criatura, falha mais do que tem sucesso, essa percepção de fato abre espaço
para uma ética verdadeiramente humana regulando nossa atitude e
comportamento para com o mundo e a natureza. Deus convida e dá forças:
“Vamos, homem amado, tu não estás só!”57.
56
Cf. BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma. In: ANJOS, Márcio
Fabri dos. Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 86.
57
SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 311-312.
137
Conclusão
Isso exige daqueles que crêem em “Jesus-carne” reconhecer que onde se encontra
um ser humano ali se encontra novamente o apelo da encarnação. Exige, ainda, reconhecer
que toda prática secular que visa à dignidade humana é, em si mesma, testemunho do que o
“Jesus-carne” propõe e espera de seu “corpo místico”. Num mundo moderno, as parcerias são
imprescindíveis e podem ser espaço para novos conhecimentos, revisão de antigos conceitos e
preconceitos, tentativa de responder a tantas inquietações que afligem os que são humanos e
têm o ser humano como referência máxima para o seu agir. O cristão é parceiro, na sua
própria identidade, de todos aqueles que evitam que mais uma vez o sacrifício da cruz impere
sobre a vida.
constantemente desafiada pelo mistério que lhe constitui a essência. Aceitar a condição
humana como o perecível chamado ao eterno, somente possível pela entrega e pelo agir
condizentes com o que é próprio do humano e que se evidenciou de forma inelutável em
“Jesus-carne”.
O novo de João é a proclamação de que Deus adentrou a fronteira última que lhe
impedia tocar o humano, ele mesmo fez-se humano e deixou-se conhecer em Jesus como
Deus frágil, humilde, perecedouro, companheiro até o fim naquilo que é a trajetória humana.
Um Deus que em “Jesus-carne” revelou que sua glória é o amor, que seu encontro com a
humanidade dá-se para salvá-la, que sua entrega é resposta inequívoca à vocação plantada
pelo Pai em seu ser, a saber: a capacidade de doar-se no amor.
140
CONCLUSÃO
As Escrituras trazem em si uma reserva semântica que, como numa espiral, faz
com que uma só palavra abra uma série de perspectivas, significados e, conseqüentemente,
remeta a outras tantas palavras. A partir do termo “carne”, o estudo aqui realizado tinha como
proposta inicial ver o seu significado aplicado à pessoa de Jesus (Jo 1,14a). Diante de mistério
tão grandioso e fascinante que é a encarnação, a elucidação de um vocábulo a ele relacionado
é sempre um exercício atual e com implicações bastante concretas para o cristianismo.
Paulo não rompe com o pensamento hebraico sobre o vocábulo “carne”, porém
percebe as ameaças ao agir de Deus quando o humano tem a pretensão de se salvar pelas suas
próprias forças, não colocando mais a sua vida em referência ao Criador. A “carne” do pecado
é o orgulho humano, a vaidade da auto-suficiência que gera a ilusão de bastar-se a si mesmo.
Paulo levou o termo “carne” para o âmbito religioso e deu a ele um caráter teológico,
142
tornando quase impossível pensar sua teologia sem alusão ao mesmo. No que diz respeito à
pessoa de Jesus, o uso que Paulo faz de “carne” indica a existência de Jesus, a sua condição
humana, a totalidade de sua vida.
massivo de adesão a um Deus distante da realidade, ora mágico, ora salvador, ora estranho e
incomunicável. Uma imagem de Deus, extremamente puritano, presente no cristianismo ou o
pseudo-cristianismo, em que a realidade terrena é negada em função do divino, leva a teologia
a repensar o seu lugar de fala sobre Deus e fala com Deus. O Deus apresentado por “Jesus-
carne” permanece, para muitos, um desconhecido. Na oficialidade dos catecismos, manuais,
escritos, há uma afirmação de que “o Logos se fez carne”, porém a forma como isso é
compreendido, principalmente a nível pastoral, desvia-se bastante daquilo que João propunha.
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