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ESBOÇO DE

, UMA
DOGMATICA

KARLBARTH

..
2006
Capa: Tradução:
Eduardo de Proença Paulo Zacarias
Revisão: Diagramação:
A lceu Lourenço Z-PwblisJl!lJ

ISBN: 85-86671-69-X

Título Original: Esquisse d' Une Dogmatique - 1946

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Sumário

I. Introdução: ATarefa da Dogmática................................................. 7


II. Crer É Ter Confiança.............................................................................. 15
III. Crer Significa Conhecer........................................................................ 25
IV. Crer É Confessar a Sua Fé..................................................................... 33
V. Deus Nos Lugares Altíssimo5.............................................................. 43
VI. Deus, O Pai................................................................................................ 53
VII. O Deus Todo-Poderoso........................................................................ 59
VIII. O Deus Criador........................................................................................ 65
IX. O Céu e a Terra........................................................................................ 79
X. Jesus Cristo............................................................................................... 89
XI. O Salvador e o Servo de Deus............................................................ 101
XII. O Filho Único de Deus.......................................................................... 115
XIII. Nosso Senhor 123
XIV. O Mistério e o Milagre do NataL....................................................... 133
XV. Sofreu... 143
XVI. Sob Pôncio Pilatos.................................................................................. 153
XVII. Foi Crucificado, Morto e Sepultado,
Desceu ao Inferno.................................................................................. 161
XVIII. Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos............................................ 171
XIX. Ascendeu aos Céus, e Está Assentado
À Direita de Deus Pai Todo-Poderoso............................................. 177
XX AVinda de Jesus Cristo, O Juiz.......................................................... 185
XXI. Creio no Espírito Santo......................................................................... 197
XXII. A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade................... 203
XXIII. O Perdão dos Pecados.......................................................................... 215
XXIV. A Ressurreição do Corpo e a Vida Eterna....................................... 221
Introdução:
A Tarefa da Dogmática

A dogmática é a ciência pela qual a Igreja, no nível dos co-


nhecimentos que possui, justifica para si mesma o conteúdo
de sua pregação.

Trata-se de uma disciplina crítica, quer dizer, ins-


taurada segundo a norma da Sagrada Escritura e segundo
os fundamentos das Confissões de Fé.
A dogmática é uma ciência. Em todas as épocas,
tem se refletido, falado e escrito interminavelmente sobre
aquilo que se deve entender por ciência e não podemos
abordar esse problema contentando-nos com uma sim-
ples alusão. Darei uma definição de ciência que certa-
mente é discutível, mas que pode servir de ponto de
partida para nossa exposição. Entendemos por ciência
um ensaio de compreensão e de representação, uma
busca e um ensinamento relacionados a um objeto e a
uma atividade determinados. Nenhum esforço desse gê-
nero pode ter a pretensão de ser algo mais do que uma
tentativa e, ao dizermos isso acerca da própria ciência,
não fazemos nada mais que sublinhar sua dupla natureza:
ela é provisória e limitada. Nos centros onde a ciência é,
de maneira precisa, encarada com a maior seriedade, não
se cria nenhuma ilusão acerca do que o homem pode fa-
zer: ele não está envolvido em um projeto em que se com-
8 - Esboço de lImJ Dogm;íricJ

binam a mais alta sabedoria e a mais refinada arte, pois a


ciência caída do céu, a ciência absoluta, não existe.
A dogmática cristã é, também ela, um ensaio, uma
tentativa de compreensão e de representação; uma tenta-
tiva de ver, entender e fixar determinados fatos para
reuni-los e organizá-los sob a forma de ensinamento.
Em cada ciência encontram-se associados o estudo
do objeto e sua aplicação a um campo de atividade, pois,
nenhuma ciência se reduz à teoria pura ou somente à prá-
tica; a teoria está sempre acompanhada da prática que
dela se origina. Também a dogmática se oferece a nós em
seu duplo movimento: ela é pesquisa e ensinamento, liga-
dos a um objeto e a uma atividade.
O sujeito da dogmática é a Igreja cristã. O sujeito de
uma ciência não pode ser outro senão aquele que man-
tém, com o objeto e a atividade considerados, relações de
presença e de familiaridade. Não é, portanto, uma redu-
ção lamentavelmente limitativa que impomos à dogmá-
tica enquanto ciência quando afirmamos: o sujeito de tal
ciência é a Igreja. A Igreja é o lugar, a comunidade à qual
são confiados o objeto e a atividade próprios da dogmá-
tica, isto é, a pregação do Evangelho. Quando dizemos
que a Igreja é o sujeito da dogmática, entendemos que
desde o instante em que alguém se ocupe de dogmática,
seja para aprendê-la, seja para ensiná-la, esse alguém se
encontra dentro do ambiente da Igreja. Aquele que queira
fazer dogmática, colocando-se conscientemente fora da
Igreja, deve esperar que o objeto da dogmática lhe perma-
neça estranho, e de maneira nenhuma se surpreender ao
ficar perdido logo nos primeiros passos, ou ao parecer
um destruidor.
Em dogmática, como em outros assuntos, deve exis-
tir familiaridade entre o sujeito da ciência e o objeto que
ele estuda, e esse conhecimento íntimo tem aqui por ob-
jeto a vida da Igreja. Isso não significa que a dogmática
A Tarefa da Dogmática - 9

possa se contentar em retomar e relacionar elementos de-


finidos pela autoridade eclesiástica em tempos antigos ou
recentes, de sorte que não teríamos que fazer nada mais
que repetir suas prescrições. A própria dogmática católica
considera sua tarefa diferentemente.
Ao dizer que a Igreja é o sujeito da dogmática, insis-
timos em apenas uma exigência: aquele que se ocupe
dessa ciência, seja como mestre, seja como discípulo,
deve aceitar a responsabilidade de se situar no plano da
Igreja cristã e da obra que ela desenvolve; é uma condição
sine qua nono Mas que não haja mal-entendidos: trata-se
de uma livre participação na obra da Igreja, de uma res-
ponsabilidade, assumida pelo cristão nesse domínio par-
ticular.
A ciência dogmática é um meio pelo qual a Igreja
justifica para si mesma o conteúdo de sua pregação, no
nível dos conhecimentos que ela possui.
Depois do que acabamos de dizer acerca da ciência,
poder-se-ia objetar que ela vai por si mesma. Mas algu-
mas concepções relativas à dogmática me obrigam a repe-
tir que, de forma alguma, ela é uma ciência caída do céu
sobre a terra. Seria completamente maravilhoso, dir-se-á,
se existisse semelhante dogmática, caída do céu, absoluta.
A isso não se pode responder outra coisa senão: sim, se
fôssemos anjos!
Mas, por vontade de Deus, nós não somos anjos e
assim é bom que disponhamos de uma dogmática hu-
mana e terrestre. A Igreja cristã não está no céu, mas na
terra e no tempo; ainda que seja um dom de Deus, ela é
um dom inserido nas realidades humanas e terrestres e o
que se passa dentro da Igreja corresponde a essas realida-
des.
A Igreja cristã vive na terra e na história, guardiã do
bom depósito (2Tm 1.14), que Deus lhe confiou. Gerenci-
adora desse bem precioso, ela segue seu caminho através
10 - Esboço de uma Dogmárica

da história, na força e na fraqueza, na fidelidade e infide-


lidade, na inteligência ou incompreensão do que lhe é re-
velado.
A história desse munc:o se estabelece e se desenrola
em histórias relativas à natureza e à cultura, aos hábitos e
às religiões, às artes e às ciências, às sociedades e aos Esta-
dos. Dentro dessa rede, a Igreja tem também sua história,
uma história humana e terrestre, e essa é a razão pela qual
não se pode contestar inteiramente o que Goethe disse a
seu respeito: ela foi de época em época uma confusão de
erros e de violências. Se formos sinceros, nós cristãos, de-
vemos concordar que a história da Igreja não tem cami-
nhado diferentemente da história do mundo. E dessa
maneira nos é dada a oportunidade de falar modesta e
humildemente da Igreja e da obra eclesiástica que desen-
volvemos aqui sob a forma de dogmática.
A dogmática não pode cumprir seu papel se não
permanecer ligada às atuais circunstâncias da Igreja. A
Igreja está consciente de seus limites, já que ela se sabe
responsável pelo depósito que deve administrar e conser-
var, e que é devedora em relação ao único bom Deus que
lhe confiou esse bem. Ela nunca será capaz de realizá-la
perfeitamente; ao contrário, a dogmática cristã permane-
cerá sempre como um conjunto de reflexões, de pesquisas
e de descrições relativas, passíveis de erros. Ela tenderá a
um saber melhor; outros virão depois de nós, e aquele
que é fiel no seu trabalho espera que esses pensem e di-
gam melhor aquilo que nós tentamos pensar e dizer.
Hoje, devemos fazer nosso trabalho com modéstia e tran-
qüilidade, pondo em jogo os conhecimentos de que dis-
pomos. Não será exigido de nós mais do que recebemos.
Semelhantes ao servo fiel no pouco (Mt 25.23), não nos
lamentamos a respeito deste pouco. Não nos é exigido
nada além da nossa fidelidade.
A T atera da Dogmática - 11

A dogmática como ciência é chamada para justificar


o conteúdo da pregação da Igreja cristã. Não haveria ne-
nhuma dogmática, se a tarefa primordial da Igreja não
fosse a de anunciar o Evangelho, de dar testemunho da
Palavra pronunciada por Deus. Esse dever sempre ur-
gente, esse problema colocado para a Igreja desde as ori-
gens - o problema do ensinamento, da doutrina, do
testemunho, da pregação - permanece como a questão,
não para o teólogo ou para o pastor apenas, mas para a
Igreja toda: o que realmente temos a dizer nós, os cris-
tãos?
Pois a Igreja, sem dúvida nenhuma, deve ser um lu-
gar onde ressoa uma palavra que se dirige ao mundo. As-
sim, uma vez que a missão da Igreja é anunciar a Palavra
revelada por Deus, missão que é, ao mesmo tempo, uma
obra humana, desde o começo surge a necessidade de
constituir-se uma teologia, ou isso que denominamos,
desde o século XVII, de dogmática.
Existe em teologia um problema de fontes (de onde
vem a palavra?) e é a disciplina chamada exegese que está
encarregada de fornecer a resposta. Por outro lado, é pre-
ciso satisfazer-se à questão como: estudar a forma e a con-
dução da pregação confiada à Igreja; estamos agora no
terreno da teologia prática. Entre as duas, existe a dogmá-
tica ou teologia sistemática. A dogmática não pergunta a
respeito de onde vem a mensagem cristã, nem como se
concretiza, mas apresenta uma questão: o que temos para
meditar e para pensar?
Essa questão surgiu, fique bem entendido, tão logo
as Escrituras nos ensinaram onde está a fonte, e ela vem
acompanhada pela preocupação permanente de não ficar
nas declarações teóricas, mas de fazer ressoar concreta-
mente essa mensagem no mundo. Falando precisamente a
partir da dogmática, deve ficar claro que a teologia não é,
por um lado, um mero historicismo, mas uma História
12 - Esboço de lima Dogmática

válida, que penetra a realidade presente, aqui e agora. Por


outro lado, a pregação não se deve degenerar em mera
técnica.
De fato, em nossos dias, a questão de qual deve ser o
conteúdo da mensagem cristã é mais premente do que
nunca antes. Todavia, deve-se sublinhar bem que esse
problema não pode ser resolvido por um recurso exclu-
sivo da exegese ou da teologia prática. É necessário que
haja uma dogmática. Quanto à história da Igreja, que se
poderia cometer o erro de desprezar, eu devo acrescentar
que sua função é enciclopédica: ela tem a honra de ser
constantemente requisitada e ocupa um posto legítimo
dentro do ensinamento cristão.
A dogmática é uma disciplina crítica. Não se trata,
pois, como se acreditou numa ou noutra época, de se
prender a quaisquer fórmulas teológicas, antigas ou no-
vas, e de se crer que tudo está feito. Pois, se existe uma
disciplina crítica que se deva remeter sem cessar ao pro-
pósito de sua obra, essa é justamente a dogmática, exteri-
ormente determinada pelo fato de que a pregação da
Igreja está sempre ameaçada por erros. A dogmática é a
verificação da doutrina e da pregação da Igreja; longe de
constituir um exame arbitrário, fundado sobre um crité-
rio escolhido livremente, é à Igreja que ela vai perguntar
sob qual ponto de vist-a normativo ela deverá se colocar.
Praticamente, é pela escala da Sagrada Escritura, Antigo e
Novo Testamentos, que a dogmática avalia a pregação da
Igreja. A Sagrada Escritura é o documento de base que
tange ao mais íntimo da vida da Igreja, o documento da
Epifania da Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Fora desse documento, nós não temos nada e, onde a
Igreja está viva, ela deve sempre de novo se deixar julgar a
si própria segundo esse critério. Não se pode tratar de
dogmática sem que esse critério permaneça presente e
deve-se, sem cessar, voltar à questão do testemunho. Não
A Tarefa da Dogmática - 13

aquele do meu espírito e do meu coração, mas aquele dos


apóstolos e dos profetas enquanto testemunho do próprio
Deus. Uma dogmática que abandonasse esse critério não
seria uma dogmática objetiva.
Nós indicamos na tese que abre o capítulo: segundo
os fundamentos de suas Confissões de Fé. A Sagrada Escri-
tura e as Confissões de fé não estão em um plano idên-
tico. Reservamos à Bíblia uma estima e um amor que não
temos, no mesmo grau, pela tradição, nem mesmo pelos
mais valiosos de seus elementos. Nenhuma Confissão de
Fé datando da Reforma ou da época atual pode, da
mesma maneira que as Escrituras, elevar-se à pretensão
de solicitar o respeito da Igreja.
Mas isso não retira nada do fato de que a Igreja es-
cuta e aprecia o testemunho de seus Pais. Então, mesmo
que nós não encontremos nele a Palavra de Deus como
em Jeremias ou em Paulo, ele tem para nós um signifi-
cado elevado. Obedecendo ao mandamento "honra teu
pai e tua mãe", nós não nos recusaremos a respeitar, seja
na pregação, seja na elaboração científica da dogmática,
as afirmações de nossos Pais. Diferentemente das Escritu-
ras, as Confissões não têm autoridade que obrigue, mas
devemos, todavia, levá-las seriamente em consideração e
lhes atribuir uma autoridade relativa.
Munida desse critério, a dogmática se lança de ma-
neira crítica à sua tarefa que é justificar o conteúdo da
pregação cristã e da ligação subsistente entre a mensagem
que a Igreja deveria publicar e aquela que ela transmite de
fato. O dogma é para nós a reprodução, a restituição, pela
Igreja, da Palavra de Deus que lhe foi anunciada.
A Igreja deve se interrogar incessantemente acerca
do grau de correlação, de correspondência, entre o
dogma e a mensagem que ela proclama. O objetivo é,
pois, muito simples: trata-se de sempre elaborar melhor a
pregação da Igreja. O aperfeiçoamento, a precisão, o

- ~- - J - , ,J
14 - Esboço de llma Dogm;Ítica

aprofundamento do que é ensinado na nossa Igreja, são


obras próprias de Deus, mas que requerem um esforço do
homem. Uma parte desse esforço é representada pela
dogmática.
Falaremos de dogmática de uma forma elementar,
obrigados que somos, no curso deste breve semestre de
verão, a nos contentar com um esboço. Desse modo, to-
maremos como fio condutor um texto clássico, o Símbolo
dos Apóstolos. 1
Não existe método obrigatório que seja imposto de
antemão à dogmática cristã. Cada um é livre, no mo-
mento em que vai abordar esses assuntos, para escolher
segundo seu saber e sua consciência o encaminhamento
que lhe parecer bom. É verdade que no decorrer dos sé-
culos foi engendrado um procedimento que se tornaria,
de algum modo, usual; ele consiste em retomar em gran-
des linhas o plano do pensamento cristão: Deus Pai, Filho
e Espírito Santo. Isso deu lugar a desenvolvimentos extre-
mamente variados que não cessam de se entrecruzar.
Aqui, ainda, nós temos a escolha. Indo pelo mais
simples, nos deteremos na Confissão de fé que todos vo-
cês conhecem, que é repetida no culto todo domingo.
Deixaremos de lado os problemas históricos. Vocês sa-
bem que o termo apostólico deve ser posto entre aspas:
esse texto não foi redigido pelos apóstolos; no seu teor
atual, ele remonta ao século III e tem sua origem em uma
fórmula conhecida e reconhecida pela comunidade de
Roma. Em seguida, foi divulgado dentro da Igreja, que o
tomou por uma declaração fundamental. Portanto, não é
sem razão que nós o consideramos um clássico.

I. N. Do Ed.: As confissões e credos históricos do cristianismo são comu-


mente denominados Símbolos de fé; o autor constantemente fará refe-
rência ao Credo Apostólico apenas como o símbolo.
Crer É Ter Confiança

A Confissão começa por essas duas palavras carre-


gadas de significação: "eu creio': Tudo o que nós teríamos
a dizer para justificar a tarefa que nos aguarda é coman-
dado por esse preâmbulo. Começaremos por três teses,
que se aplicam à essência da fé.

A fé cristã é o dom do encontro que torna os homens livres


para escutar a Palavra da graça, pronun-
ciada por Deus em Jesus Cristo, de maneira
tal que eles se atêm às promessas e aos
mandamentos dessa Palavra, apesar de tudo,
de uma vez por todas, exclusiva e totalmente.

Vimos que a fé cristã, a mensagem da Igreja, consti-


tui o fundamento e o objeto da dogmática. Mas de que se
trata? Daquilo em que crêem os cristãos e da maneira
como eles crêem. Na prática, não se pode separar a forma
subjetiva da fé, fides qua creditur, da pregação, pois essa
pregação implica necessariamente na presença de ho-
mens que escutaram e receberam o Evangelho; homens
que, juntos, foram evangelizados. Mas o fato de acreditar-
mos pode ser desde logo considerado como secundário
16 - Esboço de uma Dogmática

em relação ao que existe de maior e de autêntico na pre-


gação, ao que crê o cristão, isto é, o conteúdo de sua fé; e
ao que devemos anunciar, isto é, o objeto da Confissão de
Fé: creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
A linguagem popular denomina a Confissão de Fé
de "Credo" e essa expressão deve ao menos nos fazer
compreender o que nós acreditamos. Dentro da fé cristã
trata-se, de uma maneira decisiva, de um encontro.
Creio "em ..." diz a Confissão. Tudo depende desse
"em ...", desse objeto de fé onde vive nossa fé subjetiva. É
notável que, à parte desta introdução "creio ...", o Credo
não diz nada do aspecto subjetivo da fé. Não foi bom
quando os cristãos inverteram esta relação, falando muito
sobre suas ações e sobre a emoção de experimentar aquilo
que ocorre no interior do homem, enquanto permane-
ciam mudos sobre o que devemos crer.
Ao silenciar sobre o lado subjetivo da fé para falar
de seu aspecto objetivo, o Credo se concentra naquilo que
para nós é essencial, no que devemos ser, fazer e viver.
Aqui igualmente é válida a palavra: "aquele que quiser
salvar sua vida, perdê-Ia-á, mas aquele que tiver perdido a
sua vida por minha causa, salva-Ia-á" (Mt 16.25). Aquele
que quiser salvar e conservar a subjetividade perdê-Ia-á,
mas aquele que a abandonar pela preocupação com a ob-
jetividade, reencontra-Ia-á. Eu creio: efetivamente é mi-
nha experiência, uma experiência humana e um fato,
uma forma de nossa existência de homens.
Mas esse "creio" se realiza em um encontro com al-
guém que não é um ser humano, mas Deus, o Pai, o Filho
e o Espírito Santo. E no instante em que creio eu me sinto
completamente preenchido e tomado pelo objeto de mi-
nha fé; o que me interessa não é mais "eu com minha fé",
mas aquele em que eu creio. Quando eu penso nele e olho
Crer É Tcr Confiança - 17

para ele, então sinto que tudo vai melhor para mim.
"Creio em ...", credo in ... , significa: não estou mais só.
Nós, os homens, em nosso esplendor e nossa miséria, não
estamos mais sós. Deus vem ao nosso encontro e ele vem
a nós como nosso Senhor e nosso Mestre. Nos bons e nos
maus dias, em nosso desregramento ou nossa honesti-
dade, vivemos, agimos e sofremos nessa posição de reen-
contro. Eu não estou só. Deus vem ao meu encontro. Em
todas as circunstâncias, eu estou com ele. Eis o que signi-
fica creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Esse encontro com Deus é o encontro com a palavra


da graça que Deus pronunciou em Jesus Cristo. A fé fala
de Deus Pai, Filho e Espírito Santo como daquele que
vem ao nosso encontro, como objeto de nossa fé. Ela
afirma esse Deus que é Uno em si, que foi para nós o
Deus único e que foi de novo para a eternidade nos tem-
pos em que se realizou sua vontade de amor, seu amor
gratuito e incondicional pelo homem, por todos os ho-
mens, conforme a sua graça.
Confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é dizer
que Deus é o Deus da graça. Isso implica em que nós não
podemos provocar a comunhão com ele: nós não a cria-
mos e não criaremos jamais. Assim como nós não fize-
mos por merecer que ele seja nosso Deus, não temos
nenhuma pretensão de fazer valer nenhum direito sobre
ele. É ele, em sua bondade totalmente gratuita, em sua li-
berdade soberana, que desejou ser o Deus do homem,
nosso Deus. E isso ele nos diz. Quando Deus diz: minha
graça está sobre vós, eis a Palavra de Deus, o conceito
central de todo o pensamento cristão. A Palavra de Deus
é a Palavra de sua graça.
18 - Esboço de lima Dogm,üica

E se vocês perguntarem: onde escutamos essa Pala-


vra de Deus? Eu não posso fazer outra coisa senão
mandá-los de volta ao próprio Deus que nos deu a ouvir a
sua Palavra. Refiro-me ao coração da Confissão de Fé, ao
segundo artigo do Símbolo 2 : a Palavra da graça, na qual
Deus nos encontra, é Jesus Cristo, verdadeiro Deus e ver-
dadeiro homem, Emanuel, Deus conosco.
A fé cristã é o encontro com esse "Emanuel", com Je-
sus Cristo e, nele, com a Palavra viva de Deus. Quando
chamamos a Sagrada Escritura de Palavra de Deus (nós a
nomeamos assim por que é bem o que ela é), pensamos
na Escritura como testemunho dado pelos profetas e pe-
los apóstolos à única Palavra de Deus, pensamos no judeu
Jesus, que é o Cristo de Deus 3 , nosso Senhor e nosso Rei
para sempre.
Quando confessamos isso, ao ousarmos chamar a
pregação da Igreja de Palavra de Deus, isso deve ser en-
tendido como o anúncio de Jesus Cristo, daquele que é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem para nossa salva-
ção. É nele que Deus vem ao nosso encontro. Quando di-
zemos: creio em Deus, significa concretamente: creio no
Senhor Jesus Cristo.
Eu falei desse encontro como de um dom. É o en-
contro pelo qual os homens se tornam livres para escutar
a Palavra de Deus. O dom e a libertação são uma só e a
mesma coisa. O dom é o dom de uma liberdade, da
grande liberdade na qual estão compreendidas todas as
outras liberdades. Partindo desse ponto, desejo chegar, no
decorrer deste curso, a fazer com que vocês experimen-
tem de novo essa palavra de liberdade, que tem sido

2. Vide nota n" XXX.


:). N. do T.: Cristo em grego significa "ungido", logo: o Ungido de Deus.
Crer É Ter Confiança - 19

usada de maneira tão abusiva e que permanece, contudo,


como a mais nobre das palavras.
A liberdade é o grande dom de Deus, o dom do en-
contro com ele. Por quê um dom? E por quê, precisa-
mente, o dom da liberdade? É que o encontro de que fala
o Credo não se produz por coisa alguma. Ele não repousa
em uma possibilidade ou uma iniciativa humana, em uma
capacidade que nós, os homens, teríamos de encontrar
Deus, de ouvir sua Palavra. Caso quiséssemos examinar
do que é que somos capazes, nós nos esforçaríamos em
vão por encontrar qualquer coisa que pudesse ser nome-
ada como uma disposição para ouvir a Palavra de Deus. É
o imenso poder de Deus que entra em jogo, sem que nós
o buscássemos por coisa alguma, e que torna possível o
que para nós é impossível. É um dom de Deus, livremente
concedido e sem qualquer preparação de nossa parte, se
encontramos a Deus e em nosso encontro com ele ouvi-
mos sua Palavra.
A Confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo fala
em seus três artigos 4 de uma realidade e de uma obra ab-
solutamente novas, inacessíveis e incompreensíveis a nós
outros, homens. E como essa realidade e essa obra de
Deus Pai, Filho e Espírito Santo são para nós uma graça
de Deus, é ainda uma nova graça que nossos olhos e ouvi-
dos estejam abertos para ele. Aqui a Confissão está fa-
lando do mistério de Deus e nós ficamos exatamente
dentro desse mistério no momento em que ele se ilumina
para nós, no momento em que nos tornamos livres para
reconhecê-lo e para viver nele. "Eu creio", disse Lutero,
"que não é nem por minha razão nem por minhas forças
que eu posso crer em Jesus Cristo e chegar a ele". Eu creio,
é a expressão de um conhecimento pela fé, por meio da

tJ. Vide nota n" XXX.


20 - Esboço de LIma Dogmática

qual eu sei que Deus não se deixa conhecer a não ser por
ele mesmo.
E se posso repetir isto com fé, isso significa que eu
louvo e agradeço pelo fato de que Deus o Pai, o Filho e o
Espírito Santo é o que é e faz que ele faz, e revelou-se para
mim, destinou-se para mim e me destinou para ele. Eu
dou graças por ter sido chamado e escolhido, por ter um
Senhor que me libertou para ele. É daí que parte a minha
fé. O que quer que eu faça, no momento em que eu creio,
não tem a menor importância. Mas, o essencial é saber
para o que eu fui convidado, e em vista do que fui liber-
tado por aquele que pode realizar isso que eu não posso
nem iniciar e nem terminar. Estou fazendo uso do dom
através do qual o próprio Deus se deu a mim. Respiro; e
doravante respiro feliz e livre dentro da liberdade que eu
nem conquistei, nem procurei, nem encontrei dentro de
mim, mas que me foi dada por Deus quando ele veio a
mim. Trata-se da liberdade de escutar a Palavra da graça
de maneira tal que o homem possa se ater a essa Palavra e
que a considere como digna de fé.
O mundo de hoje está repleto de palavras e sabemos
o que significa uma inflação de palavras, quando elas per-
dem o seu '-alor e cessam de ser reconhecidas. Mas
quando se crê no Evangelho, a Palavra reencontra seu
crédito e se faz ouvir de tal maneira que aquele que a es-
cutar não mais lhe possa escapar. Pelo Evangelho, a Pala-
vra recebe seu sentido e se impõe como Palavra. Essa
Palavra maravilhosa, na qual crê a fé, é a Palavra de Deus,
Jesus Cristo, em quem Deus anunciou aos homens a sua
Palavra, de uma vez por todas.
É assim que crer significa ter confiança. A confiança
é o,ato pelo qual um homem se abandona à fidelidade de
um outro, de quem conhece a aquiescência e do qual
aceita as exigências. "Eu creio" significa "tenho confi-
Crer É Ter Confiança - 21

ança". Não é mais em mim mesmo que devo ter confiança;


não necessito mais de me justificar, de me desculpar, de
me salvar, de preservar a mim mesmo. Esse esforço terrí-
vel do homem para se manter a si mesmo e para se atri-
buir uma razão a si mesmo, esse esforço se torna um
esforço sem sentido. Eu creio, não em mim, mas em Deus
Pai, Filho e Espírito Santo. Torna-se supérflua e caduca a
confiança que se atribuía às instituições que se acreditava
serem dignas, àquelas pretensas âncoras às quais era ne-
cessário se agarrar. Supérflua e caduca igualmente se
torna a confiança atribuída a certas divindades erguidas,
honradas e invocadas pelos homens em todos os tempos.
Qualquer que seja o nome que se lhes dê, Idéias ou
Potências do Destino, elas continuam sendo as instâncias
às quais nos entregamos. A fé nos libera da confiança que
atribuímos a tais divindades e do temor que elas nos ins-
piram, e elimina. as decepções das quais elas são a fonte.
Devemos ser livres para ter confiança naquele que merece
nossa confiança; ser livres para permanecermos ligados
àquele que é fiel e que assim permanece, contrariamente a
todas as outras instâncias. De nossa parte, nós não sere-
mos jamais fiéis. Nossa rota está semeada por nossas infi-
delidades ao próximo e ocorre o mesmo com as
divindades deste mundo. Elas não mantêm as suas pro-
messas; assim, nunca há nelas a verdadeira paz e luz.
Não existe fidelidade a não ser em Deus. A fé é a
confiança que permite que nos mantenhamos nele, nas
suas promessas e nos seus mandamentos. Manter-se em
Deus é abandonar-se a essa certeza e vivê-la: Deus está
aqui para mim. Tal é a promessa que Deus nos faz: eu es-
tou aqui, para ti.
Mas essa promessa está acompanhada por um man-
damento. Eu não mais me deixarei conduzir por meus
próprios pensamentos ou segundo meu bel-prazer; eu re-
cebi de Deus uma ordem pela qual devo me conduzir du-
22 - Eshoço de uma Dogmática

rante toda minha existência terrestre. O Credo é sempre


Evangelho, é a Boa Nova de Deus para os homens, desse
Emanuel, Deus conosco, Deus vindo à nós; simultanea-
mente e necessariamente, é uma lei. O Evangelho e a Lei
não devem ser separados, constituem uma única entidade
no interior da qual o Evangelho é a coisa primordial e a
Lei permanece contida na Boa Nova. Visto que Deus é
para nós, nos é permitido ser para ele. Visto que ele se
oferece a nós, nós devemos, por reconhecimento, dar a
ele o pouco que temos para dar.
Agarrar-se a Deus, portanto, sempre significa: rece-
ber tudo de Deus e pôr tudo a seu serviço. E isso, a des-
peito de tudo, de uma vez por todas, exclusivamente e
totalmente.
É em relação a essas determinações que a fé como
confiança deve ser ainda caracterizada. E deve-se estabe-
lecer que na fé isso se trata de uma possibilidade, não de
uma obrigação, pois desde o instante em que se idealiza a
fé, subestima-se a sua grandeza. Essa grandeza não reside
no fato de que sejamos chamados a cumprir algo de ex-
traordinário, que ultrapassaria as nossas forças. A fé é, so-
bretudo, uma liberdade, uma permissão. Aquele que crê
na Palavra de Deus deve poder nela se agarrar apesar de
tudo aquilo que se opõe a essa Palavra. Não se crê "por
causa de" ou "baseado em", mas se é despertado para a fé
a despeito de tudo.
Pensem nos homens da Bíblia. Eles não se tornaram
crentes por causa de uma demonstração qualquer, de uma
prova; mas um belo dia eles se viram colocados em uma
situação que lhes permitia crer e que lhes obrigava a crer,
a despeito de tudo. Fora de sua Palavra, Deus nos está
oculto, mas ele se revela em Jesus Cristo. Se nós passamos
em frente a ele sem o ver, não devemos nos admirar de
não encontrar a Deus, de ir dos erros às decepções, de ver
o mundo repleto de trevas. Se acreditamos, devemos crer,
Crer É Ter Confiança - 23

apesar de tudo, no Deus oculto e, no fato de que ele está


oculto, está o apelo necessário para nos lembrar de nossa
limitação humana. Nós não acreditamos apoiados em
nossa razão ou em nossos próprios recursos. Todo crente
autêntico sabe disso bem.
O maior obstáculo à fé é simplesmente essa eterna
presunção e também essa angústia que subsistem no
nosso coração. Nós não amamos viver pela graça; há sem-
pre em nós alguma coisa que se insurge violentamente
contra a graça. Nós não amamos receber a graça, nós
amaríamos, no máximo, atribuí-la a nós mesmos. A vida
humana é feita desse vai-e-vem entre o orgulho e o deses-
pero, que apenas a fé pode eliminar. Se contar consigo
mesmo, o homem não pode chegar a ela, uma vez que não
podemos, nós mesmos, nos libertar do orgulho e da an-
gústia. Se formos libertos é graças a uma ação que não de-
pende de nós.
Quando se tenta condensar tudo o que representa
essa força de oposição e de contradição, tem-se uma vaga
idéia do que a Bíblia quer dizer quando fala do Diabo.
"Deus o disse verdadeiramente?" (Gn 3.1). A Palavra de
Deus é verdadeira? Quando se crê, despreza-se esse Di-
abo. Mas crer não é um ato de heroismo. Guardemo-nos
de fazer de Lutero um herói. Lutero jamais se considerou
como tal, mas ele sabia de uma coisa: se devemos comba-
ter, afrontar o inimigo, é justamente a título de uma pos-
sibilidade atribuída, de uma permissão, de uma liberdade
recebida na mais profunda humildade.
Estar na fé: trata-se de uma decisão tomada de uma
vez por todas. A fé não é uma opinião que se poderia tro-
car por uma outra. Aquele que crê apenas durante um
tempo não sabe o que é a fé, pois crer supõe uma relação
definitivamente estável. Estar na fé: trata-se de Deus e do
que ele fez por nós de uma vez por todas. Isso não evita,
por certo, que ocorram enfraquecimentos da fé. Mas,
24 - Esboço de uma Dogm,ítica

considerada em relação ao seu objeto, a fé é uma coisa de-


finitiva. Aquele que acreditou uma vez, crê para sempre.
Não se assustem com o que digo aqui, mas o considerem
como um convite. Por certo, podem-se cometer enganos
ou duvidar, mas quem acreditou uma vez, de alguma ma-
neira, porta um character indelebilis: pode assegurar-se
em pensamento que está salvo. É preciso aconselhar aos
que devem combater a incredulidade que não levem
muito a sério essa mesma incredulidade. Nada além da fé
deve ser levado a sério e se temos uma fé semelhante a
um grão de mostarda (Mt 13.31) é o suficiente para que o
Diabo tenha perdido a partida.

Em terceiro lugar 5 , fé está relacionada a nós nos


agarrarmos exclusivamente a Deus. Exclusivamente por-
que Deus é Aquele que é fiel. Existe também uma fideli-
dade humana que tem sua origem em Deus e que deve
incessantemente nos alegrar e nos fortalecer. Mas o fun-
damento dessa fidelidade é sempre a fidelidade de Deus.
A fé é a liberdade de se confiar totalmente apenas nele,
sola gratia et sola fide. Isso não implica, de maneira ne-
nhuma, um empobrecimento da vida humana; ao contrá-
rio, todas as riquezas de Deus assim nos são atribuídas.
Para terminar, devemos nos agarrar totalmente à Pa-
lavra de Deus. A fé não concerne a um setor particular da
vida denominado religioso, ela se aplica à existência em
sua totalidade, à exterior como à interior, à corporal
como à espiritual, às zonas sombrias como às claras. De-
vemos nos confiar a Deus, seja em relação a nós mesmos,
seja em nosso comportamento no interesse do outro, da
humanidade inteira; em relação ao todo da vida e da
morte. Ser livre para uma confiança assim definida é ter
fé.

5. N. do Ed.: A primeira e a segunda considerações, (1) CI despeilo de ludo,


e (2) de uma vez por lodos, foram expostas nos parágrafos anteriores.
Crer Significa Conhecer

A fé cristã é a iluminação da razão que permite aos ho-


mens a liberdade de viver na verdade de
Jesus Cristo e, por esse mesmo
caminho, de conhecer, sem risco de errar,
o sentido de sua vida, bem como a causa e o fim
de tudo o que existe.

Pode ser que vocês fiquem surpresos em ver a razão


intervir aqui. É de maneira intencional que faço uso desse
conceito. Vale a pena lembrar que o famoso conselho:
"despreza a razão e a ciência, essa suprema alavanca do
homem", não vem de um profeta, mas do Mefisto de Goe-
the. Cristãos e teólogos têm sido sempre muito mal inspi-
rados quando, por entusiasmo ou em nome de suas
concepções particulares, acreditaram que deviam se ali-
nhar dentro do campo dos adversários da razão. Acima
da Igreja cristã, resumindo a revelação e a obra de Deus,
encontra-se a Palavra. 6 "A Palavra se fez carne". O logos
(quer dizer o verbo, a razão, a palavra) se fez homem. A
pregação da Igreja é um discurso que, muito longe de ser

6. Em grego, o logos, que significa também a razão. (N.do T.da ed.


francesa).
2(, - Esboço de uma Dogm,írica

acidental, arbitrário, caótico ou ininteligível, pretende ser


verdadeiro e procura se impor como tal contra a falsi-
dade. Não aceitemos abandonar essa posição perfeita-
mente clara! A palavra que a Igreja tem a vocação para
pregar não é a verdade em um sentido provisório, secun-
dário' mas no sentido primeiro e forte do termo; trata-se
do logos que se manifesta e se revela na razão do homem,
no seu entendimento, com toda a sua significação e em
toda a sua verdade. A pregação cristã está ligada ao logos,
à ratio, à razão, fonte da revelação na qual o homem com
suas faculdades racionais pode, em seguida, se reencon-
trar. Pregação e teologia nada têm a ver com a verborra-
gia, o falar em línguas ou a propaganda, incapaz de
sustentar suas asseverações. Nós conhecemos bem esse
gênero de discursos edificantes, proferidos com muita
eloquência e ênfase, mas que - é muito claro! - não resis-
tem à simples questão no tocante à verdade do que afir-
mam. O Credo cristão assenta-se em um conhecimento.
Por toda a parte onde ele é pronunciado e confessado, ele
não faz mais que criar esse conhecimento. A fé cristã não
é, de maneira nenhuma, irracional, anti-racional ou su-
pra-racional. Bem entendida, ela é, ao contrário, racional.
A Igreja que recita o Credo e que se apresenta com a pre-
tensão inaudita de pregar, de anunciar a boa nova, pode
fazê-lo porque ela entendeu, compreendeu alguma coisa?
e porque ela deseja simplesmente que isso seja compreen-
dido, percebido por outros. Não se pode considerar como
felizes as épocas em que, na história da Igreja, a teologia e
a dogmática pensaram poder separar a gnosis da pistis, o
conhecimento da fé. A fé bem compreendida é conheci-

7. Em alemão Vernunfi (razão) vem de uernehmen (compreender,


entender, perceber), assim como entendimento, em francês, vem de entender.
(f\J. cio T da cd. francesa).
Crer Significa Conhecer - 27

mento, O ato pelo qual se crê é também um ato de conhe-


cimento. Crer significa conhecer.
Ditas essas coisas, podemos estabelecer que a fé
cristã comporta uma iluminação da razão. A fé cristã tem
um objeto preciso do qual fala o Credo: é Deus, o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. A particularidade desse objeto, a
particularidade de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo
é, seguramente, a de permanecer imperceptível ao ho-
mem entregue a seus próprios meios de conhecimento.
Para permitir que o homem o perceba, é necessário nada
menos que a intervenção do próprio Deus agindo com
plena liberdade e decidindo soberanamente. Entregue às
suas próprias forças, o homem poderá, no máximo, se-
gundo o grau de suas faculdades naturais, de seu entendi-
mento e de sua intuição, reconhecer a existência de um
ser supremo, absoluto, de uma potência superior, de uma
entidade que domina toda a realidade. Mas tal descoberta
não tem nenhuma relação com o próprio Deus. Ela é
fruto das intuições e das possibilidades - limites do pen-
samento e do esforço do homem, que pode, com certeza,
imaginar um ser supremo sem que, apesar disso, tenha
encontrado Deus. Descobre-se e conhece-se Deus
quando ele se dá a conhecer a si mesmo, dentro da sua in-
teira liberdade. Chegaremos mais tarde a falar de Deus,
de seu ser e de sua natureza, mas desde já devemos espe-
cificar bem que ele permanece sendo sempre aquele que
se dá a conhecer em sua livre revelação e não um ser ima-
ginado pelo homem e ao qual este último cola uma eti-
queta "Deus". A linha divisória entre o verdadeiro Deus e
os falsos deuses se estabelece já claramente a partir do
problema do conhecimento. Conhecer Deus não se inclui
no quadro das possibilidades discutíveis. Deus é o con-
teúdo e a soma de toda a realidade tal como esta se revela
para nós. O conhecimento de Deus ocorre desde que efe-
28 - Esboço de lima Dogmârica

tivamente ele fale, desde que ele se apresente ao homem


de tal forma que o homem não possa deixar de vê-lo e
ouvi -lo, desde que, numa situação em que não possui
mais o controle e na qual ele se torna um enigma para si
mesmo, o homem se vê colocado diante do fato que vive
com Deus e Deus com ele, porque Deus se agradou disto.
Para que ele tenha conhecimento de Deus, é necessário
que tenha revelação divina, sendo o homem ensinado, es-
clarecido e persuadido pela intervenção do próprio Deus.
Começamos por dizer que a fé cristã nasceu de um en-
contro. Podemos precisar a coisa dizendo que a fé cristã e
o conhecimento que se possa ter existem desde que a Ra-
zão divina, o Logos de Deus, dirige sua lei ao seio da ra-
zão humana, sendo esta, segundo sua natureza, obrigada
a se conformar a essa lei.
É dentro desse evento que o homem chega ao verda-
deiro conhecimento, pois, a partir do fato de que Deus
ocupa seu pensamento, seus sentimentos e seus sentidos,
o homem e sua razão são revelados a si mesmos. A revela-
ção de Deus ao homem é, pois, ao mesmo tempo uma re-
velação da verdadeira natureza do homem, que
permanece incapaz de provocar o evento que o ilumina e
do qual apenas Deus é o autor. Pode Deus ser conhecido?
Sim, Deus pode ser conhecido porque ele se dá a conhe-
cer e não pode ser conhecido senão por ele mesmo. Esse
evento confere ao homem a liberdade, a capacidade, o po-
der de conhecer Deus - a coisa permanecendo em si um
mistério. O conhecimento de Deus é um conhecimento
absolutamente determinado e criado pelo seu objeto, isto
é, pelo próprio Deus. Mas isso é precisamente o que é um
conhecimento autêntico e, no sentido mais profundo da
palavra, um conhecimento livre. Certamente ele perma-
nece um conhecimento relativo, encerrado nos limites da
criatura. E é para seu sujeito que ele se satisfaz muito par-

I I
Crer Significa Conhecer - 29

ticularmente de falar do tesouro que carregamos dentro


dos vasos de barro (2Co 4.7). Nossos conceitos são im-
próprios para conter esse tesouro. É impossível não ver
que nesse clima toda forma de orgulho está excluída
desde logo. O homem permanece sendo o que é, impo-
tente, sua razão estando submissa aos limites do estado da
criatura. Mas é nesse quadro que convém a Deus se reve-
lar. E acontece que aqui, igualmente, é estando louco que
o homem se torna sábio, é sendo pequeno que se torna
grande, e que Deus se revela eficaz onde o homem se re-
vela impotente (ICo 1.25; 3.18). "Minha graça te basta!
Pois a minha potência se realiza na tua fraqueza" (2Co.
12.9). Esta palavra se aplica também ao problema do co-
nhecimento.
Segundo a tese formulada no começo deste capítulo,
a fé cristã é a iluminação da razão que nos dá a liberdade
de víver dentro da verdade de Jesus Cristo. É essencial
para a inteligência da fé cristã compreender que a verdade
de Jesus Cristo e o conhecimento dessa verdade referem-
se à vida. Assim, isso não significa que, por essa razão,
deva-se abandonar a idéia de que a fé é um conhecimento
para considerá-la como um conhecimento obscuro, uma
experiência ou uma intuição irracional. A fé é verdadeira-
mente um conhecimento, ela está ligada ao logos de Deus
e, por conseguinte, constitui algo inteiramente lógico. A
verdade de Jesus Cristo é, no sentido mais rigoroso da pa-
lavra, uma verdade objetiva. Seu ponto de partida, a res-
surreição de Jesus é, segundo os dados do Novo
Testamento, um fato que se produziu no tempo e no es-
paço. Os apóstolos não se contentaram em descrever e
defender uma experiência puramente interior. Eles fala-
ram do que viram com seus olhos, do que ouviram com
seus ouvidos e do que tocaram com suas mãos. Assim a
verdade de Jesus Cristo entra no quadro de uma reflexão
.)0 . Esboço de lima Dogmática

humana absolutamente clara, lógica e livre, precisamente


porque ligada a seu objeto. Mas - não separemos as duas
coisas - essa verdade diz respeito à vida. Aquilo que se
chama ciência, o saber, não saberia o suficiente em si para
descrever essa verdade. Para poder compreender ao que
isso remete, é necessário voltar principalmente à noção
de sabedoria própria do Antigo Testamento, à sophia dos
gregos, à sapientia dos latinos. Sapientia se distingue de
scientia, sabedoria de ciência, no que ela implica em um
saber eminentemente prático que engloba a totalidade da
existência humana. A sabedoria é o saber que nos permite
viver de fato em uma situação que é a nossa; ela une a
prática e a teoria. O segredo da sua eficácia é que ela é
aplicável de imediato e governa nossa existência como
uma luz sobre o nosso caminho (SI 119.105). Não uma
luz qualquer, oferecida para nossa estupefação ou para
nossas reflexões, não uma luz que ofereça a ocasião para
fazer fogos de artifício - mesmo quando se trate das mais
sábias reflexões filosóficas! -, mas a luz que, muito sim-
plesmente, ilumina nosso caminho, nossas palavras e
nossos atos, que brilha sobre nossos dias de saúde e sobre
nossos dias de doença, sobre nossa pobreza e sobre nossa
riqueza; que nos acompanha quando acreditamos ver
com clareza, bem como quando nos desencaminhamos.
Essa luz que não cessa de estar aqui quando tudo se extin-
gue e a morte nos sobrevém.
Conhecimento cristão significa viver na verdade de
Jesus Cristo. É nele que temos a vida, o movimento e o ser
(At 17.28), a fim de que possamos ser nele, por ele e para
ele (Rm 11.36). Esse conhecimento coincide, pois, abso-
lutamente com o que denominamos a confiança em Deus
e em sua Palavra. Não nos deixemos imobilizar quando
nos é proposto distinguir, separar, nessa matéria. Não
existe confiança real, sólida, autêntica, vitoriosa em Deus
Crer Significa Conhecer - 31

e em sua Palavra que não seja baseada na verdade de


Deus e de sua Palavra, como não existe conhecimento
cristão, de teologia, de confissão de fé e mesmo de ver-
dade bíblica que não porte ao mesmo tempo o caráter de
verdade viva e real. É preciso que uma e outra, confiança
e conhecimento, vida e fé, sejam incessantemente verifi-
cadas, controladas e confirmadas uma pela outra.
E é precisamente porque nos é dado viver como
cristãos na verdade de Jesus Cristo, à luz do conheci-
mento de Deus que ilumina nossa razão, que podemos
conhecer com convicção o verdadeiro sentido de nossa
vida, assim como a razão de ser e o objetivo de tudo o que
existe. Daí o alargamento prodigioso de nosso horizonte:
compreender dentro de sua verdade o objeto da fé é, nem
mais nem menos, tornar-se capaz de conhecer todas as
coisas, quer dizer, a si mesmo, o homem, o mundo e a to-
talidade do cosmos. A verdade de Jesus Cristo não é uma
verdade entre outras, pois ela é a verdade de Deus, a
prima veritas, e é ao mesmo tempo a ultima veritas. Não
criou Deus todas as coisas em Jesus Cristo CCI 1.16), nós
mesmos aí compreendidos? Não existimos senão nele,
quer o saibamos ou não, e o universo inteiro não existe
senão nele, sustentado pela sua Palavra potente. O conhe-
cer é conhecer todas as coisas. Ser tocado e tomado pelo
seu Espírito é ser conduzido para dentro de toda a ver-
dade (J o 16.13). Crer em Deus e conhecê-lo torna, pois,
impossível a questão do sentido da vida. Ao crer eu vejo o
sentido da minha vida, o sentido do meu estado de cria-
tura, da minha individualidade com seus limites e seu ca-
ráter falível, tributário a cada instante do pecado, mas
também do auxílio que Deus me concede ao intervir sem
cessar em meu favor, apesar de mim e sem nenh~'m mé-
rito de minha parte. Em tudo isso eu conheço e identifico
a tarefa que me é atribuída, a esperança que a acompanha
32 - Esboço de lima Dogm,ítica

em razão da graça na qual vivo, a realidade da glória que


me está prometida e na qual eu já estou secretamente en-
volvido aqui e agora, com toda a fraqueza da minha con-
dição presente. Crer é reconhecer que tal é precisamente
o sentido de minha vida.
O Credo afirma que Deus é a razão de ser e o obje-
tivo de tudo que existe. A razão de ser e o objetivo do uni-
verso é Jesus Cristo. Eis o inaudito em todo esse assunto: a
fé cristã, que implica essa confiança total em Deus e em
sua Palavra, esse conhecimento íntimo e profundo da ra-
zão de ser e do objetivo de todas as coisas; assim o ho-
mem vive, a despeito de tudo que possa ser dito ao
contrário, nessa paz que supera todo entendimento (Fp
4.7) e que, nisso mesmo, é a luz que ilumina nosso enten-
dimento.

I I
Crer ÉConfessar a Sua Fé

A fé cristã é a decisão que dá aos homens a liberdade de de-


clarar publicamente sua confiança na
Palavra de Deus e seu conhecimento
de Jesus Cristo, tanto na linguagem da Igreja,
como na linguagem do mundo, e sobretudo pelas ações
e atitudes subseqüentes.

A fé cristã é uma decisão, esse é o nosso ponto de


partida neste quarto capítulo. Certamente a fé é um acon-
tecimento dentro do mistério da relação entre Deus e o
homem, acontecimento que manifesta a liberdade da qual
Deus faz uso em direção ao homem, ao mesmo tempo em
que lhe oferece essa mesma liberdade. Mas isso não ex-
c1ui, bem ao contrário, que a fé se traduza por uma histó-
ria, quer dizer, que o homem que crê seja levado a agir
através do tempo.
A fé é o mistério de Deus que irrompe em nosso
mundo: ela manifesta a liberdade de Deus e a liberdade
do homem em ação. Se ela não se traduzir por nenhum
fato - visível e audível - não é fé. Ao falar de Deus, o Pai,
o Filho e o Espírito Santo, o Credo quer significar que o
próprio Deus em sua essência, em sua vida profunda, não
é um Deus passivo, inativo, um Deus morto, mas que ele
34 - Esboço de uma Dogmática

existe em uma relação interna, em um movimento que se


pode, com fundamento, descrever como uma história,
um devir.
Deus não está acima da história. Ele próprio é a his-
tória. Por toda a eternidade, concebeu em si mesmo um
propósito do qual a Confissão de Fé exprime linhas gerais
e que nossos pais s denominaram decreto da criação, da
aliança e da salvação. Esse propósito Deus executou, de
uma vez por todas, sobre o plano da história na obra e na
mensagem de Jesus Cristo, as quais testemunha concreta-
mente o quarto artigo do Símbol0 9 : "padeceu sob Pôncio
Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado ...".
A fé é o que corresponde, por parte do homem, a
essa existência e a essa ação de Deus. Seu objeto é esse
Deus histórico em sua essência e seu propósito visa, põe
em movimento e realiza a história. Uma fé que não seja
ela mesma história não é mais a fé cristã, perdeu o seu ob-
jeto.
A autêntica fé cristã determina sempre um fenô-
meno histórico: a aparição, entre os homens de uma
mesma época e de todas as épocas, de uma comunidade,
de uma reunião, de uma comunhão. Mas ao mesmo
tempo ela suscita no próprio seio dessa comunidade uma
pregação, uma mensagem dirigida ao exterior, em direção
ao mundo de fora. Uma luz se acende e "ela ilumina a to-
dos os que estão dentro da casa" (Mt 5.15). Em suma: a fé
dá nascimento e vida a uma comunidade cuja vocação é a
de estar no e para o mundo; e é Israel que surge no meio
dos povos, e é a Igreja que se reúne, a comunhão dos san-
tos, todos os que constituem o corpo de Cristo. Não que

S. N. do Ed.: As primeiras gerações dos Reformadores, que sistematizaram


estas doutrinas.
9. Vide nota n° I.

I I
Crer f, Confessar a Sua Fé - 35

Israel e a Igreja sejam um fim em si mesmos, pois estão


aqui unicamente para significar a vinda do servidor que
Deus suscitou para todos.
Há a história, portanto, e aqui é o lugar de falar
dessa correspondência entre a ação do homem e a obra
que Deus realizou na livre decisão da sua graça. Essa his-
tória é possível desde que o homem responda, quer dizer,
obedeça.
A fé é obediência e não adesão passiva. Obedecer é
escolher. Escolher a fé e não a incredulidade, decidir-se
pela confiança contra a dúvida, pelo conhecimento con-
tra a ignorância. Crer é fazer uma escolha entre a fé e o
que não é ela, o erro e a superstição. A fé é o ato de obedi-
ência e de decisão pelo qual o homem se apresenta a Deus
como Deus o exige. Esse ato implica que se deixe de ser
neutro face a face com Deus, que se abandone essa atitude
de indiferença e de irresponsabilidade que impede toda
decisão verdadeira; que se deixe, enfim, seu próprio uni-
verso para ousar escolher e se ligar abertamente, publica-
mente. Uma fé que permaneça algo privado, que não se
manifeste para o exterior, não será mais do que uma in-
credulidade escondida, uma falsa fé, uma superstição.
Pois a fé que tem por objeto Deus, o Pai, o Filho e o Espí-
rito Santo não pode não se manifestar publicamente.
Dissemos que "a fé cristã é a decisão que dá aos ho-
mens a liberdade de declarar publicamente sua confiança
na Palavra de Deus". A responsabilidade pública que o
cristão assume implica que ele recebeu o direito, a per-
missão; quer dizer que ele conhece uma evidente liber-
dade. À liberdade de crer e de conhecer, soma-se aquela
de se engajar. Impossível separar uma da outra. Uma con-
fiança em Deus que pretenda viver sem conhecimento,
não seria verdadeira. E o homem transbordante de confi-
ança e de conhecimento que não se sinta livre para de-
.)6 . Esbo~'o de uma DognlCÍrica

clará-los publicamente, merece que dele se diga "sua


confiança e seu conhecimento não valem nada!" O pró-
prio Deus, tal como o confessa a Igreja, não é aquele que,
longe de permanecer oculto e de querer existir para si
mesmo, saiu do seu mistério e da sua majestade divina
para descer e se manifestar dentro da sua criação? Não é
aquele que se desvela, que se mostra?
Quando se crê nele, não se pode ter escondidos a
graça, o amor, a consolação e a luz que vêm dele, nem
guardar para si a confiança que se põe na sua Palavra e o
conhecimento que se tem dele.
É impossível que as palavras e os atos do crente per-
maneçam palavras neutras, atos que não se comprome-
tam. Desde que exista a fé, a glória de Deus (doxa, gloria)
deve necessariamente brilhar sobre a terra. Se a glória de
Deus não se manifesta de uma maneira ou de outra, se ela
pode ser obscurecida ou deformada por nossa própria sa-
bedoria ou por nossa fraqueza, deve-se concluir que a fé
está ausente e que a consolação e a luz que Deus concede
não foram recebidas de fato. A glória de Deus entra no
cosmos e seu nome é santificado sobre a terra toda vez
que aos seres humanos é dado crer, toda vez que se reúne
e se põe em marcha o povo, a comunidade de Deus.
A fé dá ao homem, tal como ele é, com todos os seus
limites e sua impotência, em toda a sua perdição e toda a
sua loucura, a liberdade real para fazer resplandecer a
glória e a honra de Deus, de refletir sua luz incomparável
sobre a terra. Não nos é exigido mais do que isso, mas isso
nos é exigido. Essa liberdade de testemunhar publica-
mente sobre a nossa confiança na Palavra de Deus e sobre
nosso conhecimento da verdade que está em Jesus Cristo,
isso é O que nos termos da Igreja se chama confessar sua
fé.

I I
Crer É Confessar a Sua Fé - 37

Confessar sua fé é declarar publicamente na lingua-


gem da Igreja, mas é também testemunhar através de de-
cisões profanas e, sobretudo, pelas ações e atitudes
conseqüentes. Temos aqui, parece-me, as três formas ab-
solutamente inseparáveis - impossíveis de se opor umas
às outras e que devem ser vistas sempre ao mesmo tempo
- do testemunho cristão, que é em si mesmo uma das ma-
nifestações essenciais da fé. As explicações que se seguem
formam, portanto, um todo indivisível.

1. A fé nos dá a liberdade de afirmar publicamente


nossa confiança e nosso conhecimento, na linguagem pró-
pria da Igreja. O que queremos dizer com isso? A igreja
teve e tem sua linguagem para ela em todas as épocas. É
assim. No desenvolvimento histórico, ela possui sua his-
tória particular, sua própria via. Ao confessar sua fé, não
pode abstrair essa história. Ela vive em um contexto his-
tórico absolutamente preciso que não cessará de lhe im-
por uma determinada linguagem. Assim, a fé cristã - e o
testemunho público dessa fé -necessariamente extrairá
seu modo de expressão da Bíblia, das línguas da Bíblia, o
grego e o hebraico, e das traduções que têm sido feitas, as-
sim como da tradição da Igreja, das formas de pensa-
mento, conceitos e idéias que a Igreja utilizou no decorrer
dos séculos para formular, adquirir, defender e desenvol-
ver seus conhecimentos. Existe uma linguagem própria
da Igreja. É normal. Ousemos chamá-la por seu nome: o
"dialeto de Canaã". Nenhum cristão, chamado a confessar
a fé, quer dizer, chamado para fazer brilhar externamente
a luz que está acesa nele, poderá fazê-lo sem utilizar essa
linguagem, que é a sua. Vejamos as coisas como elas são:
desde que se torne necessário exprimir com precisão as
coisas da fé, desde que se deva falar de nossa confiança
em Deus, em sua Palavra no que ela tem, por assim dizer,
3B - Esboço de lima Dogmática

de específico - e nós devemos bem reconhecer que isso é


terrivelmente necessário para que os problemas se tornem
claros - devemos de saída falar o dialeto de Canaã! Te-
nhamos essa coragem! Pois certas direções, certos conse-
lhos e certas exortações não podem ser comunicados aos
outros senão nesse "dialeto". Não é necessário ser delicado
demais nesse assunto, nem medir excessivamente as pala-
vras. "Eu creio", dizemos freqüentemente, "mas minha fé
é algo tão íntimo e pessoal que estipulei para mim mesmo
uma regra de evitar citar a mínima palavra bíblica, e que
sinto um forte embaraço ao pronunciar até mesmo o
nome de Deus, isso sem falar de Jesus Cristo, de seu san-
gue ou do Espírito Santo ..." Eu respondo: "Caro amigo,
admito que possa ter uma fé profunda, cuide somente de
tornar-se capaz de declará-la publicamente! Caso contrá-
rio, esse pudor de sentimentos que reclama poderia
muito bem não ser mais do que o medo dissimulado de
ter de sair de seu estado de neutralidade interior. Pense!"
Sem dúvida, uma vez que a Igreja não ousa confessar sua
fé na linguagem que é a sua, ela adquire o hábito de não
confessar coisa nenhuma! Torna-se, então, uma comuni-
dade silenciosa, senão muda. A fé, desde que existe, le-
vanta imediatamente a questão: não se deve, alegremente
e sem temor, falar a linguagem da Bíblia, exprimir-se
como fez a Igreja no passado e como deve fazer hoje?
Forte pela liberdade e segurança que são suas, a fé não
deixa de suscitar, por toda a parte e sempre, semelhante
linguagem para o louvor e a glória de Deus.

2.Mas isso ainda não pode constituir todo o teste-


munho da Igreja. Confessar significa ainda mais. Guar-
demo-nos de pensar que a confissão de fé não é mais do
que uma coisa espiritual, reservada exclusivamente ao
domínio da Igreja e consistindo simplesmente em dar
Crer f: Confessar a Sua Fé - 39

uma certa extensão à sua mensagem. A verdadeira mol-


dura da Igreja é o mundo, como se pode notar já à pri-
meira vista a partir do fato que, dentro de uma aldeia ou
dentro de uma cidade, o templo ocupa seu lugar ao lado
da escola, do cinema e da estação. A linguagem falada
pela Igreja não poderia ter um propósito em si mesma. É
necessário perceber que a Igreja está verdadeiramente
aqui para o mundo; é preciso que a luz brilhe nas trevas
00 1.5). Assim como Cristo não veio para ser servido,
mas para servir, não é conveniente que os cristãos exis-
tam simplesmente para eles mesmos. Quer dizer que a fé,
que se manifesta exteriormente como uma confiança e
como um conhecimento, determina certas decisões no
século e que, por constituir um testemunho claro e autên-
tico, ela deva poder se traduzir perfeitamente na lingua-
gem do Senhor Todo-Mundo, do homem da rua, enfim,
na língua daqueles que não têm nem o hábito de ler a Bí-
blia nem o de cantar os cânticos, e de quem os meios de
expressão e os centros de interesse são absolutamente di-
ferentes. É para o mundo que Cristo enviou seus discípu-
los e é no mundo que nós vivemos. Nenhum de nós é
apenas cristão; todos somos ao mesmo tempo cidadãos
desse mundo. O mesmo vale para nossas decisões cristãs,
para a tradução de nosso testemunho na língua de qual-
quer um. A confissão de fé, com efeito, pretende se apli-
car à vida tal qual ela é, às circunstâncias de nossa
existência quotidiana com todas as questões teóricas ou
práticas que ela nos propõe. Se nossa fé é real, ela deve
necessariamente entrar na nossa vida. Em sua forma pu-
ramente eclesiástica, o testemunho cristão corre sempre o
risco de fazer crer que o crente considere seu credo como
algo pessoal e privado e que, no mundo tal como é, são
outras as verdades que têm valor. O mundo vive sobre
esse mal-entendido e considera o cristianismo como uma
40 - Esboço de lima Dogrn,irica

agradável "magia" pertencente ao "domínio religioso",


certamente respeitável, mas que não convém mexer e
tudo está dito~ Mas esse mal-entendido pode muito bem
existir entre os próprios cristãos dispostos de bom grado
a fazer da fé seu objetivo, com a condição de não mexer
com ela jamais. Não é de ontem que se tenta apresentar o
problema das relações entre a Igreja e o mundo como um
problema de boa vizinhança, cada um permanecendo
prudentemente nas posições cuidadosamente preparadas,
a despeito de algumas escaramuças que possam acontecer
nos postos avançados. A Igreja não pode considerar esse
"acordo de cavalheiros" como definitivo. De seu ponto de
vista uma só coisa conta: que seu testemunho possa res-
soar igualmente no seio da sociedade que a cerca, dessa
vez não no dialeto de Canaã, mas na linguagem mais só-
bria e menos eclesiástica que o mundo costuma falar.
Trata-se, para a Igreja, de traduzir sua mensagem no es-
tilo dos jornais, por exemplo. Trata-se de repetir, de uma
maneira profana, o que dizemos com as palavras e a lin-
guagem da Igreja. O cristão não deverá temer, portanto,
usar de uma fala pouco "edificante". Se ele se sentir inca-
paz, que se pergunte se o que se diz dentro da Igreja é
sempre edificante! Nós conhecemos bem esse jargão pas-
toral e clerical que para as pessoas de fora, produz o efeito
do chinês! Tomemos cuidado de não nos isolarmos e de
não recearmos falar claro ao mundo. Um exemplo: em
1933, numerosos foram aqueles que na Alemanha soube-
ram confessar e viver sua fé de uma maneira profunda e
autêntica, e nós louvamos a Deus por isso; infelizmente,
esses testemunhos foram de alguma maneira bloqueados
pela linguagem que servia para formulá-los. Não se soube
traduzir, então, em decisões políticas, o que estava exce-
lentemente expresso na língua da Igreja; caso contrário, a
Igreja evangélica desse país veria claramente que ela deve-
Crer É Confessar a Sua Fé - 41

ria dizer não ao nacional-socialismo e isso desde o co-


meço. E foi assim, então, que não houve, sob a forma
inteiramente profana, a verdadeira confissão de fé. Imagi-
nemos o que teria acontecido se a Igreja tivesse sabido
formular em termos políticos suas convicções espirituais!
Ela não foi capaz e as conseqüências estão diante de nos-
sos olhos. Um segundo exemplo: hoje, igualmente, exis-
tem manifestações de fé cristã séria, autêntica. Estou
persuadido de que os acontecimentos atuais elevaram
tanto a fome e a sede da Palavra de Deus, que a Igreja está
a ponto de viver um momento importante. Mas não é su-
ficiente que ela se limite a se corrigir, a se consolidar a si
própria e que os cristãos permaneçam uma vez mais entre
eles. Em verdade, hoje é indispensável fazer teologia com
uma consagração muito maior. Mas, oxalá possamos ver e
compreender melhor do que há pouco tempo a necessi-
dade de se traduzir em decisões e em tomadas de posi-
ções políticas o que se passa no seio da Igreja! Uma Igreja
evangélica que pretenda hoje permanecer muda sobre a
questão da culpabilidade que os acontecimentos que aca-
bamos de viver levantam, ou que simplesmente acredi-
tasse poder negligenciá-la, quando esta exige uma
resposta em razão mesmo do futuro, se condenaria, desde
o princípio, à esterilidade. Da mesma forma, uma Igreja
que não compreenda sua vocação em relação às pessoas
em aflição, e para a qual o ensinamento e a pregação não
correspondam aos problemas levantados pela situação
atual, uma Igreja que não se ponha inteiramente no tra-
balho de responder à urgência dessa tarefa esmagadora,
celebrará o seu próprio funeral. Oxalá cada cristão indivi-
dualmente possa ver claramente o que sua fé implica: en-
quanto ela não passa de uma espécie de agradável torre de
marfim que o dispensa de pensar em outrem, enquanto
ela lhe oferece um tipo de álibi fácil e faz dele um ser du-
42 - Esboço de LIma Dogmática

pIo, ela não é autêntica. Por outro lado, não se pode de


maneira nenhuma viver dentro de uma torre de marfim!
O homem é um todo e não pode verdadeiramente existir
senão como um todo.
3-Recordemos enfim a última frase de nossa tese
inicial: pelas ações e atitudes subseqüentes. É intencional-
mente que falo num terceiro ponto, distinto do prece-
dente. De que serviria a um homem falar e confessar sua
fé na linguagem mais forte que pudesse existir, se não
houvesse a caridade? Confessar sua fé, testemunhar, é um
ato estreitamente ligado à vida. Crer é ser chamado para
arriscar-se. Tudo depende disso.
Deus Nos Lugares
Altíssimos

Segundo a Sagrada Escritura, Deus é aquele que está


presente, vive, age e se dá a conhecer para nós
pela obra que ele determinou e realizou em
Jesus Cristo na liberdade de seu amor, ele o Único.

o Símbolo dos Apóstolos, que nos serve de ponto


de partida, abre-se com as seguintes palavras: creio em
Deus. Nós pronunciamos assim o conceito maior, o termo
decisivo do qual o Credo cristão não é mais do que a ex-
plicação e o desenvolvimento. Deus é o objeto da fé de que
falamos nas nossas últimas aulas. É, sumariamente fa-
lando, o conteúdo da pregação da Igreja. Contudo, ocorre
que Deus parece ser, de uma maneira ou de outra, uma
realidade familiar a todas as religiões e a todas as filoso-
fias.
Antes de prosseguir, é necessário, pois, determo-nos
um instante para perguntar a nós mesmos: que relação
existe entre a palavra "Deus", no sentido em que a em-
prega a fé cristã, e naquele que esse nome encobre em to-
das as religiões e filosofias de todos os povos e de todas as
épocas?
Vamos esclarecer a significação habitual desse vocá-
bulo fora da fé cristã. Quando o homem fala de Deus, da
44 - Esboço de LIma Dogmática

natureza ou da essência divina, pretende traduzir o senti-


mento de nostalgia e de desorientação que ele experi-
menta com todos os seus semelhantes e que o empurra
para procurar uma unidade entre os seres, uma razão de
ser para sua existência e um sentido para o universo. Ele
pensa na existência e na natureza de um ser em uma rela-
ção mais ou menos coerente com a estonteante diversi-
dade de fenômenos e que deveria considerar como a
essência suprema que regula e domina toda a realidade.
E, se lançamos agora um olhar sobre esse vasto campo de
pesquisas, onde se dá livre curso à nostalgia e às hipóteses
humanas, nossa primeira impressão é a de uma faculdade
de invenção infinitamente diversa, que se conjuga com
todas as arbitrariedades e todas as fantasias.
De fato, encontramo-nos diante de uma montanha
de incertezas e de contradições. Quando, pois, falamos de
Deus na moldura da fé cristã, devemos ter em mente que
nós não estamos acrescentando mais uma noção a todas
aquelas que já existem no inventário religioso da humani-
dade. Deus, segundo a fé cristã, não é mais um Deus entre
os outros. Ele não pertence ao panteão da piedade hu-
mana e da engenhosidade religiosa.
Portanto, não é uma questão de se postular no seio
da natureza humana a existência de uma tendência uni-
versal e inata ao divino, de um conceito geral de Deus que
englobaria, num dado momento, o que cremos e confes-
samos quando falamos de Deus enquanto cristãos, de tal
sorte que nossa fé seria uma fé entre outras, um caso par-
ticular dentro de uma regra geral. Um Pai da Igreja disse
com razão: Deus non est in genere - Deus não pertence a
nenhum gênero!
Quando falamos de "Deus", nós, cristãos, podemos e
devemos claramente nos dar conta que esse termo signi-
fica de imediato o "totalmente Outro" e que estamos ver-
Deus Nos Lugares Altíssimos - 45

dadeiramente libertos da pesada moldura das buscas, das


hipóteses, das imaginações, das ilusões e das especulações
humanas. Não é questão, não mais, de se pensar que o ho-
mem em busca do divino poderia, enfim, depois de muito
sofrimento, alcançar um degrau de conhecimento tal que
coincidisse praticamente com o conteúdo da fé cristã.
O Deus que a fé cristã confessa não é, à maneira dos
deuses deste mundo, um ser que se encontra ou se in-
venta, uma divindade que se oferece ao homem ao tér-
mino de seus esforços; ele não é o coroamento, seja ele o
mais perfeito, de uma procura que pudéssemos iniciar
sem mais nada e alcançar por nós mesmos.
É o Deus que, ao contrário, ocupa já e sem retorno o
lugar de tudo aquilo que os homens costumavam chamar
"Deus" e, que, excluindo de imediato todas as demais pre-
senças, exceto a sua, reivindica o privilégio de ser dele so-
mente a verdade. Se não se compreende isso, permanece-
se incapaz de entender aquilo que a Igreja quer dizer
quando confessa: creio em Deus. Trata-se aqui de um en-
contro do homem com a realidade a qual ele permanece
para sempre incapaz de buscar e encontrar por si mesmo.
"O que o olho não viu, o que o ouvido não escutou e o
que não subiu ao coração do homem, Deus o revelou aos
que o amam" (lCo 2.9). Assim se exprime o apóstolo
Paulo a respeito dessa realidade. E não se pode falar dife-
rentemente.
Deus, no sentido da fé cristã, tem uma existência
absolutamente diferente daquilo que habitualmente se
chama o divino. Sua natureza é, portanto, totalmente dis-
tinta daquela dos seres que se chamavam "deuses". Nós re-
sumimos tudo o que se pode dizer a respeito de Deus,
segundo a fé cristã, na expressão: Deus nos lugares altíssi-
46 - Esboço de uma Dogm;ítica

mos. Ela se encontra, como vocês sabem, nas narrativas


do Natal (Lc 2.14). É esta pequena frase "nos lugares altís-
simos", in excelsis, que eu quero tentar explicar agora.
"Nos lugares altíssimos" significa simplesmente, de-
pois do que acabamos de dizer: Deus está acima de nós,
acima de todas as nossas intuições, de todos os nossos es-
forços, de todos os nossos sentimentos, sejam eles os mais
sublimes, acima de todos os produtos de nosso espírito,
sejam eles os mais admiráveis. E isso significa, em se-
guida, como já vimos, que Deus não deposita coisa al-
guma de sua razão de ser em nós mesmos e que ele não
corresponde a nenhuma disposição ou possibilidade de
nossa natureza, mas que ele não existe e nem tem reali-
dade, senão em si mesmo. Como tal, ele não se revela a
nós através de nossa procura, nossas descobertas, nossos
sentimentos e nossos pensamentos, mas exclusivamente
por ele mesmo.
É precisamente esse Deus que está sentado nos luga-
res altíssimos que se tornou tal para o homem, se deu, se
fez conhecer a si. Deus nos lugares altíssimos não signi-
fica, portanto, que ele não tem nada a ver conosco, que ele
não nos concerne, que ele permanece eternamente estra-
nho, mas, segundo a fé cristã, isso quer dizer, ao contrá-
rio, que ele veio, desceu até nós, que ele se tornou nosso
Deus. É o Deus que afirma e prova sua autenticidade,
aquele que nossa mão não pode conter e que, precisa-
mente por essa razão, tomou-nos pela mão; aquele que,
numa palavra, é o único que merece o nome de Deus, à
diferença de toda as divindades inventadas e que, radical-
mente distinto de tudo o que existe, está contudo ligado a
nós. Quando dizemos com o Símbolo dos Apóstolos:
Creio em Deus, é esse Deus que nós estamos confessando.
Tentaremos agora formular de uma maneira mais
precisa o que acaba de ser dito. Segundo a Sagrada Escri-
Deus Nos Lugares Altíssimos - 47

tura, Deus é um ser presente, vivo, atuante e que se faz co-


nhecer. Por essa definição, as coisas se tornam muito
diferentes do que seriam se eu tentasse simplesmente
apresentar a vocês alguns conceitos relativos a um ser su-
premo e infinito. Nesse caso eu estaria fazendo especula-
ção. Mais eu não convido vocês a fazer especulação, pois é
um método vicioso, uma vez que, longe de conduzir a
Deus, esse método não pode senão nos levar a designar
sob esse nome uma realidade que não é ele. Deus está
presente no Antigo e no Novo Testamento que falam dele.
E a definição cristã de Deus consiste simplesmente em di-
zer: esses livros falam dele, portanto escutemos o que eles
estão nos dizendo. Aquilo que se pode ver e entender nas
Escrituras é Deus.
Observemos bem: a Bíblia, Antigo e Novo Testa-
mentos, não contém jamais a menor tentativa de provar
Deus. Semelhantes tentativas não existem senão fora da
Bíblia e por toda parte onde se esquece com quem se está
lidando quando se fala de Deus. Elas são familiares para
vocês: consistem em postular a existência de um ser per-
feito a partir do próprio fato de que tudo o que existe é
imperfeito; afirmar que a ordem geral do mundo pressu-
põe uma potência ordenadora; partir de nossa consciên-
cia moral para afirmar a existência de um ser supremo,
etc. Não tenho a intenção de sair em guerra contra essas
diversas "provas" da existência de Deus. Não sei se vocês
se dão conta de imediato do que elas têm, ao mesmo
tempo, de frágil e de trágico. Aplicando-se aos deuses fa-
miliares a esse mundo, elas são perfeitamente aceitáveis e,
se eu tivesse de entretê-los com essas divindades, não dei-
xaria de recorrer às cinco famosas provas da existência de
Deus. A Bíblia não conhece esse gênero de demonstração:
48 - Esboço de uma Dogm;itica

para ela, Deus não tem necessidade de ser provado. Ele é


quem, de uma extremidade a outra, prova-se por si
mesmo: eis-me, diz ele, e a partir do fato que eu existo,
vivo e ajo, torna-se inútil provar a minha existência. É
com relação a essa demonstração que Deus dá de si
mesmo que falam os profetas e os apóstolos. Impossível
falar de Deus de maneira diferente dentro da Igreja. Deus
não tem nenhuma necessidade de nossas provas. Aquele
que se chama Deus, na Sagrada Escritura é insondável, o
que quer dizer que ele não pode ser descoberto por nin-
guém. Quando se trata dele na Bíblia e ele é referido com
uma grande familiaridade, mais próximo de nós do que
nós mesmos jamais seremos e mais real que toda outra
realidade, isso não ocorre por ser dado a certos homens
particularmente religiosos a possibilidade de alcançá-lo,
mas porque ele se revelou, ele, o Deus oculto.

Disso resulta que não apenas nós não podemos des-


cobrir e provar Deus, mas ainda que ele nos permanece
incompreensível. A Bíblia nunca busca definir Deus, vale
dizer, fazer com que ele se encaixe em nossos conceitos;
mas, quando ela pronuncia seu nome, afirma sem cessar
um sujeito que vive, que age, que se faz conhecer por si
mesmo, ao contrário da entidade definida pelos filósofos
como um ser supremo, infinito, longínquo e pairando so-
bre o universo. A Bíblia conta Deus, relata o que ele fez, a
história muito precisa realizada neste mundo entre os ho-
mens por aquele que se assenta nos lugares altíssimos. Ela
assinala a significação e o alcance dessa ação, dessa histó-
ria e é assim que prova a existência de Deus e descreve
sua natureza. Conhecimento de Deus, segundo a Bíblia e
segundo a confissão de fé da Igreja é, pois, conhecimento
da sua presença, de sua vida, de sua ação, de sua revelação

i I
Deus Nos Lugares Airíssimos - 49

na obra que ele realizou. Assim, a Bíblia não é um livro de


filosofia, mas um livro de história, o livro dos poderosos
atos de Deus, no qual Deus se faz conhecido de nós.
I.A Escritura descreve uma obra: a obra da criação.
Deus faz surgir ao seu lado uma realidade outra, distinta
dele, "a criatura", sem necessidade, na liberdade de seu
poder absoluto e na superabundância de seu amor.
2. Uma aliança se estabeleceu entre ele e uma de
suas criaturas, entre Deus e o homem. Existe aqui, ainda,
uma coisa incompreensível: por que essa aliança entre
Deus e o homem, esse homem de quem a Bíblia afirma de
uma ponta a outra que é um ingrato, um rebelde, um pe-
cador? Apesar disso, sem querer levar isso em conta e se
abstendo de endireitar a situação, Deus se dá a si mesmo
à sua criatura. E o faz, tornando-se o Deus de um pe-
queno povo desprezado do Oriente Médio, Israel. Faz
isso, tornando-se um membro desse povo, uma criança e,
finalmente, morrendo.
3.Enfim - mas tudo isso não é mais que uma única
e mesma obra -, existe a redenção, a revelação da intenção
de Deus que ama na liberdade, no que concerne ao ho-
mem e ao mundo, o aniquilamento de tudo aquilo que se
opõe a essa intenção, a manifestação de novos céus e da
nova terra. Tudo isso, um nome o significa e exprime, Je-
sus Cristo, o homem em quem o próprio Deus se fez visí-
vel e tornou-se ação sobre a terra; Jesus Cristo, o objetivo
da história de Israel, em quem a Igreja começa e termina,
chave da revelação, da redenção e da nova criação. Toda a
obra de Deus está contida nessa única e mesma pessoa.
Falar de Deus, segundo a Sagrada Escritura, é necessaria-
mente falar de Jesus Cristo.
É dentro dessa obra da criação, da aliança e da re-
denção que Deus está presente, vive, age e se faz conhe-
50 - Esboço de uma Dogmática

cer. Não é permitido fazer-se abstração dessa obra


quando se quer saber algo da existência e da essência de
Deus. Deus em pessoa está presente nessa obra e é preci-
samente o sujeito dela. Ele age na liberdade de seu amor.
Certamente a palavra liberdade e a palavra amor são con-
venientes quando se trata de caracterizar o que ele faz e o
q ue ele é. Mas deve-se tomar cuidado para não se cair de
novo do concreto no abstrato, da história nas idéias. Eu
teria medo de dizer: Deus é liberdade ou Deus é amor, se
bem que esta segunda fórmula seja bíblica (lJo 4.8). Nós
ignoramos o que seja o amor, nós ignoramos o que seja a
liberdade, mas Deus é amor, Deus é liberdade. É dele que
temos que aprender sobre uma e sobre outro. Ele é aquele
que ama na liberdade. É como tal que se manifesta na
obra da criação, da aliança e da redenção. E aqui é que ve-
mos em que consiste o amor: essa necessidade do outro
como tal, o Deus único deixando de ser só para se unir
totalmente à pessoa do outro. Tal é o amor, o livre amor
de Deus.

Mesmo sem a criação, Deus não está só. Ele não ne-
cessita dela e contudo ele a ama. Esse amor não pode ser
concebido senão dentro do absoluto da liberdade divina.
O amor de Deus consiste nisso: que Deus o Pai ama o Fi-
lho que é, ele mesmo, Deus. Sua obra não é mais do que a
manifestação do mistério do seu ser íntimo onde tudo é
amor e liberdade.
Quem sabe agora possamos compreender melhor o
sentido do nosso título: Deus nos lugares altíssimos. É
porque Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo na obra
que ele realizou em Jesus Cristo, que ele está precisa-
mente nos lugares altíssimos. Ele, cuja natureza consiste

I I
Deus Nos Lugares Alríssimos - 51

em se abaixar; ele, cuja existência se manifesta no ato de


descer ao fundo do abismo; ele, o misericordioso que se
dá à sua criatura a ponto de partilhar a sua decadência
mais profunda, é ele o Deus altíssimo. Ele o é, não apesar
disso, em virtude de um paradoxo surpreendente, mas
devido ao fato mesmo de que ele se abaixe assim. É nesse
livre amor que ele está acima de tudo. Ver em Deus uma
outra grandeza é não ter compreendido que ele é "total-
mente Outro", é, como os pagãos, buscar Deus na infini-
dade. Mas ele difere totalmente da idéia que fazemos de
nossos "deuses" humanos. Ele chama Abraão, conduz um
povo miserável através do deserto, recusa, por séculos in-
teiros' deixar-se desconcertar pela infidelidade e desobe-
diência desse povo, aceita se tornar um humilde recém-
nascido no estábulo de Belém e morrer no GÓlgota. Ele é
o Senhor teu Deus. Vocês compreendem o que significa o
monoteísmo para a fé cristã? Deus não quer saber nada
dessa mania de unidade! Deixemos de lado essa mania do
número um e compreendamos que Deus é o sujeito ao
mesmo tempo único e absolutamente distinto de tudo o
que existe, radicalmente diferente das divindades ridícu-
las imaginadas pelos homens. Quando se compreende
isso, não se pode deixar de rir deles, como o faz a Bíblia.
Aqui onde o verdadeiro Deus é reconhecido, os ídolos se
desmancham na poeira e só ele permanece. "Eu sou o Se-
nhor teu Deus ... tu não terás outros deuses diante da mi-
nha face" (Ex 20.2-3). Isso quer dizer: tu não podes ter
outros deuses. Tudo o que se chama "deus" ao lado dele
não é mais que o reflexo da nostalgia doentia que está in-
cubada no coração do homem com desastrosas conseqü-
ências. Nessa perspectiva, o segundo mandamento se
52 - Esboço de urna Dogmâtica

torna muito claro também: "tu não farás imagem enta-


lhada, nem nenhuma representação ... tu não te prostra-
rás diante deles e tu não os servirás!". Também é
completamente falso postular aqui um conceito filosófico
sobre a invisibilidade de Deus, assim como ver aí uma ex-
pressão típica da mentalidade israelita. O próprio Deus já
fez tudo para se apresentar ele mesmo a nós. Como o ho-
mem poderia querer representá-lo? Dizemos a propósito
disso que a arte cristã é certamente movida pelas melho-
res intenções do mundo, mas impotente, porque Deus já
nos deu a sua imagem. Quando se compreende verdadei-
ramente que Deus está nos lugares altíssimos, não se pode
mais querer representá-lo quer seja por pensamentos,
quer seja por imagens.

I I
Deus O Pai

o único Deus verdadeiro é por natureza e pela eternidade o


Pai, origem de seu Filho e, unido a ele, origem do
Espírito Santo. Em virtude dessa maneira
de ser, ele é, pela graça, o Pai
de todos os homens, que ele chama em seu Filho
e pelo Espírito Santo para serem seus filhos.

o Deus único, o Altíssimo, é um Pai. Desde que


pronunciamos essa palavra, desde que, com o primeiro
artigo do Símbolo, nós dizemos Deus, o Pai, devemos
logo nos lembrar do segundo artigo: Deus é o Filho, e do
terceiro: ele é o Espírito Santo. Os três artigos do Símbolo
nos falam a cada vez do mesmo Deus. Não existem aqui
três divindades, não há em Deus divisão, ruptura. Longe
de afirmar três tipos de "Deus", a Trindade fala, pelo con-
trário, estritamente de um único e mesmo Deus. É assim
que a Igreja tem interpretado sempre e a própria Escri-
tura não nos diz nada de diferente. A Trindade cessa de
ser uma construção teórica desde que se queira não sepa-
rar os três artigos do Credo e reconhecer que o tema nes-
ses três artigos trata do mesmo Deus criando o mundo,
intervindo com Jesus Cristo e agindo pelo Espírito Santo,
e não de três departamentos divinos que têm cada um seu
54 - Esboço de lima Dogndrica

"diretor"! Nós tratamos com uma só e mesma obra do


único e mesmo Deus, mas esta obra é, ela mesma, um mo-
vimento. Pois o Deus em quem acreditamos não é um
Deus morto, nem um Deus solitário, mas, sendo inteira-
mente o Único, ele não fica, contudo, só em si mesmo, re-
colhido em sua majestade divina: a obra que ele realiza,
na qual ele nos encontra e que nos permite conhecê-lo, é
uma ação dinâmica e viva, por natureza e para a eterni-
dade; e para nós que vivemos no tempo da sua graça, ele é
o Deus único em suas três maneiras de ser. A Igreja antiga
afirma: Deus é um só em três pessoas. Se tem-se em conta
a significação que esse último conceito recobria para ela,
a Igreja antiga forneceu aqui uma definição inatacável.
Com efeito, em latim e em grego, "pessoa" quer dizer exa-
tamente aquilo que tentei indicar pela expressão "maneira
de ser". Hoje, o termo pessoa evoca para nós, quase que
irresistivelmente, a idéia de uma individualidade. E, nessa
acepção, ela não é muito conveniente para exprimir o ser
de Deus Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calvino disse em
algum lugar, não sem ironia, que não era permitido re-
presentar o Deus trinitário à maneira da maioria dos pin-
tores que se contentam em mostrar sobre a tela três
"figuras estranhas". Isso não tem nada a ver com a Trin-
dade. Quando a Igreja cristã fala do Deus trinitário, pre-
tende dizer que ele é ao mesmo tempo e também o Pai
que é o Filho e o Espírito Santo. Trata-se, portanto, por
três vezes do único e mesmo Deus, de suas três maneiras
de ser, de sua Trindade de Pai, de Filho e de Espírito
Santo; tal ele é nos lugares altíssimos e tal ele é em sua re-
velação.
É necessário, pois, desde o começo precisar que,
afirmando que Deus, o Pai, é "nosso Pai", estamos di-
zendo uma coisa válida e justa, correspondendo à sua na-
tureza mais profunda, eternamente verdadeira. Deus é o

I I
Deus O Pai - 55

Pai. Do mesmo modo como quando falamos do Filho e


do Espírito Santo. Esse nome de Pai, dado a Deus, não é
acidental, um título provisório que nós atribuímos a ele
pensando: "porque nós sabemos por experiência o que é
um pai humano, é bem natural que nós tenhamos apli-
cado a Deus essa idéia; mas fica bem entendido que ela
não tem nenhuma ligação com a real natureza de Deus,
que é inteiramente outra. Dizer que Deus é um Pai, não
tem portanto valor exceto pela ligação com sua revelação,
pela ligação conosco. O que Deus é por si mesmo, na eter-
nidade, ignoramos. Todavia, agrada-lhe deixar seu misté-
rio e é assim que, para nós, ele é o Pai". Falar desse modo é
não ver finalmente o que esse nome nos traz de verdade.
Quando as Escrituras e a Confissão de Fé chamam de Pai
a Deus, elas querem dizer que é assim antes de tudo,
desde o princípio. É o Pai em si mesmo, por natureza e
pela eternidade e, em seguida, a partir daí, ele é o nosso
Pai, o Pai de suas criaturas. Não há, pois, que começar
uma paternidade humana e, em seguida, por analogia,
uma pretensa paternidade divina. O contrário é que é
correto: a verdadeira paternidade, a paternidade autêntica
e primeira, está em Deus e é ela que funda todas as nossas
paternidades humanas. A paternidade divina é aquela da
qual procedem todas as outras. A epístola aos Efésios diz:
"é dele que tira seu nome toda família - em grego patriá -
no céu e sobre a terra" (Ef3.14-15). Estamos bem dentro
da verdade, a verdade primeira e fundamental quando,
nessa perspectiva radical, reconhecemos Deus como
nosso Pai e nos chamamos de seus filhos. Falando de
Deus, o Pai, nós exprimimos uma primeira maneira de
ser de Deus, que condiciona uma segunda, diferente, mas
que lhe é contudo aplicável, já que lhe pertence propria-
mente. Deus é Deus sendo um Pai, o Pai de seu Filho, em
quem ele estabelece e define de novo, por si mesmo, sua
56 - Esboço ue uma Dogm,írica

qualidade de Deus. Dizemos bem que ele estabelece e de-


fine, não que a criou - o Filho foi engendrado e não cri-
ado! Todavia, essa relação entre o Pai e o Filho não esgota
ainda o mistério de Deus, sua natureza profunda, além
de, por outro lado, não ameaçar a unidade divina. Acon-
tece que o conjunto Pai e Filho afirma uma terceira vez
essa unidade na presença do Espírito Santo. De Deus o
Pai e de Deus o Filho, procede o Espírito Santo. Spiritus
que procedit a Patre Filioque. É isso que jamais compreen-
deram completamente os infelizes representantes da
Igreja do Oriente: o Pai e o Filho selando sua unidade no
Espírito Santo que a realiza. O Espírito Santo foi cha-
mado, às vezes, de vínculo da caridade, vinculum carita-
tis. Não é apesar de, mas por causa da presença em Deus
do Pai e do Filho que existe unidade. Deus é Deus ao se
estabelecer em si mesmo e por si mesmo como Deus, ao
mesmo tempo diferente e idêntico a si mesmo em sua di-
vindade. E é assim que ele não está só em si mesmo. Em
si, porque é o Deus trinitário, existindo a vida em toda a
sua riqueza, a ação e a comunhão em toda a sua pleni-
tude. Ele é o movimento e o repouso. Nós podemos com-
preender assim tudo o que ele é por nós: o Criador que se
dá a nós em Jesus Cristo e nos une a ele pelo Espírito
Santo; é a obra de sua livre graça, a superabundância de
sua plenitude. Superabundância misericordiosa e gra-
tuita! Deus não quer permanecer o que ele é em si mesmo
e por si mesmo; aquele cuja presença preenche a eterni-
dade quer ser para nós. Que Deus, na plenitude de sua pa-
ternidade eternal, por pura graça, - não por que é seu
"ofício" - queira também ser nosso Pai, é uma verdade so-
bre a qual não temos nenhuma influência. Porque ele é o
Pai eterno, toda sua obra não pode deixar de levar sua
marca. Se ele cria, se ele faz nascer seres que, ao contrário
de seu Filho, são distintos dele, se ele aceita existir para

I I
Deus O Pai - 57

eles, isso não pode significar outra coisa que: ele quer nos
fazer participar de sua vida, "a fim de que nos tornemos
participantes da natureza divina" (2Pe 1.4). Ao chamar-
mos Deus de nosso Pai, nós não dizemos outra coisa. A
nós é permitido dar-lhe o nome que ele se dá a si mesmo
em seu Filho. Em si mesmo, o homem não é um filho,
mas uma criatura de Deus,jactus et non genitus! Essa cri-
atura, o homem, está sob todos os aspectos em revolta
aberta contra ele, um sem -Deus e, contudo, Deus o
chama de seu filho. Se podemos, nós mesmos, nos cha-
mar de seus filhos, é unicamente por causa do ato de sua
livre graça, por causa de seu aviltamento e de sua miseri-
córdia, apesar de nós, por que ele é o Pai e nos dá o poder
de participar de sua vida. Nós somos seus filhos em seu
Filho e pelo Espírito Santo e, portanto, não porque haja
uma relação direta entre Deus e nós, mas porque Deus
nos faz participar, a partir de seu próprio movimento, de
sua natureza, de sua vida e de seu ser. É assim que o bom
grado e a vontade de Deus, o próprio mistério da sua es-
sência divina, o mistério da sua relação com seu Filho,
contêm, de fato, a chave da sua relação conosco; e que
nele, seu Filho, podemos nos chamar seus filhos pelo Es-
pírito Santo, quer dizer, pelo mesmo vínculo de caridade
que une o Pai e o Filho. É nessa terceira maneira de ser de
Deus, o Espírito Santo, que se acha contida nossa vocação
segundo a mesma e eternal decisão do Pai. O que Deus é e
faz em seu Filho, concerne diretamente a você, vale para
você e lhe beneficia. O que é verdadeiro na eternidade, no
próprio Deus, torna-se verdadeiro aqui e agora no tempo.
De que se trata? Nem mais nem menos que de uma repeti-
ção da vida divina, repetição que nós não podemos nem
provocar, nem suprimir, que o próprio Deus suscita no
mundo que ele criou, vale dizer, fora dele. Glória a Deus
nos lugares altíssimos! É isso que estamos dizendo
58 - Esboço de uma Dogm,ítica

quando chamamos Deus de nosso Pai. Mas porque ele


não é o Pai somente, mas também o Filho - vale dizer,
Deus conosco -, devemos acrescentar também: "paz so-
bre a terra entre os homens que ele quer bem".
o Deus Todo-Poderoso

o que distingue a potência de Deus da fraqueza, o que a


eleva acima de todos os outros poderes e o que
a opõe vitoriosamente à "força em si",
é que ela é a potência do direito
decorrente do amor que ele fez brilhar
em Jesus Cristo. Em conseqüência, a potência
de Deus contém, qualifica e delimita todo o domínio do
possível e domina absolutamente o conjunto do real.

Pelo adjetivo "Todo-poderoso", o Símbolo 10 enuncia


uma qualidade de Deus, uma perfeição daquele que ele
denomina Deus, o Pai. É a única que ele menciona. Mais
tarde, quando se tentou falar de Deus de uma maneira
sistemática e descrever o seu ser houve menos concisão.
Falou-se de sua asseidade (isto é, de seu ser enquanto de-
pendente de nada além de si mesmo), de sua infinitude
no tempo e no espaço, de sua eternidade. Acrescentou-se,
em seguida, sua santidade e sua justiça, sua misericórdia
e sua paciência. É preciso prestar muita atenção quando
se aplicam assim a Deus os conceitos humanos: eles não
podem ser justificáveis, exceto a título indicativo, sem a

10. Vide nota nO. 1.


60 - Esboço de uma Dogmárica

pretensão de compreender o ser do próprio Deus. Porque


Deus é incompreensível. Não se trata, por conseguinte, de
definir, por exemplo, sua santidade ou sua bondade a par-
tir das idéias que temos de santidade ou de bondade; es-
ses dois atributos não podem ser definidos a não ser a
partir do próprio Deus, daquilo que ele é. Ele é o Senhor,
ele é a verdade. É indireta e secundariamente que sua pa-
lavra pode ser retomada por lábios humanos. No lugar e
na posição de todas as qualificações que podem ser utili-
zadas para descrever a natureza de Deus, o Símbolo dos
Apóstolos não usa mais que uma única palavra: o adjetivo
Todo-poderoso, servindo como qualificativo para o subs-
tantivo "Pai". Essas duas palavras devem ser interpretadas
uma pela outra: o Pai é o Todo-Poderoso, o Todo-Pode-
roso é o Pai.
Deus é Todo-poderoso. Isso significa, a prinCIpIO:
ele é potência. Potência quer dizer poder, recurso, virtua-
lidade em relação a uma dada realidade. Toda realidade
dada, determinada e subsistente pressupõe um poder
fundador. A respeito de Deus nos é dito que ele tem esse
poder de criar, de determinar, de manter; mais, que ele
tem onipotência, isto é, que ele tem tudo em sua mão e
constitui a medida do conjunto do real e do possível. Não
existe realidade da qual ele não seja ao mesmo tempo a
possibilidade. Nada de possibilidade, nada de poder sus-
cetível de limitar ou de impedir sua ação. Ele pode tudo o
que quer. Poder-se-ia, então, também descrever a potên-
cia de Deus como a expressão de sua liberdade. Deus é
absolutamente livre. Isso implica a eternidade, a ubiqüi-
dade e a infinitude. Ele tem a potência sobre toda a cadeia
de possíveis conteúdos no tempo e no espaço e dos quais
ele é o fundamento e a medida. Ele é sem limites. Tudo
isso a filosofia pressente corretamente, mas nós estamos
ainda muito longe da realidade que implica esse conceito

I I
o DeLIs Todo-Poderoso - 61

de onipotência divina. Existem muitos fenômenos aos


quais facilmente se prestam os atributos da potência ou
da onipotência divina e que não têm nenhuma ligação
com a onipotência de Deus. Conservaremos, então, as de-
finições gerais.
Nossa tese inicial indica três graus: a potência de
Deus se distingue da fraqueza, ela ultrapassa todos os ou-
tros poderes e ela se opõe, vitoriosamente, à "força em si".
A potência de Deus se distingue de todas as formas
de fraqueza. A fraqueza pode, com efeito, dispor de uma
certa potência e o impossível de uma certa margem de
possibilidade. Mas Deus não é de nenhuma maneira fraco
nesse sentido, sua potência é real, efetiva. Ele não pode
ser aquele que nada poderia nem aquele que não poderia
tudo, mas ele se distingue de todas as outras potências
porque ele pode tudo o que ele quer. Falar de impotência
de Deus é muito simplesmente ter esquecido que se fala
dele. Representar-se Deus como um personagem longín-
quo, fora do mundo, é com certeza ter mudado de objeto,
é imaginar um ser qualquer, fraco e impotente. Deus não
tem nada de uma sombra, de um fantasma inofensivo; ele
é o contrário da impotência.

Essa potência de Deus ultrapassa todos os outros po-


deres. Esses outros poderes ou potências exercem sobre
nós uma pressão aparentemente muito mais forte do que
o próprio Deus. Eles parecem ser as únicas coisas reais.
Contudo, Deus não faz parte das potências deste mundo,
ele nem mesmo é a mais alta, mas ele as ultrapassa infini-
tamente, ele é o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, cujo
poder nada limita nem condiciona. De sorte que todas es-
sas outras potências, que como tais existem certamente,
encontram-se por definição sob seus pés. Elas não sabe-
riam lhe fazer concorrência.
G2 - Esboço de uma Dogm,ítica

E eis o último ponto, que é o mais importante por-


que o mais suscetível de dar lugar a toda sorte de confu-
sões: Deus não é a 'força em si". É muito sedutor imaginar
Deus como a soma de todas as potências reunidas, de
fazê-lo, no sentido neutro e abstrato, um sinânimo do ser,
da liberdade, do poder, da força em si. Seria Deus, dentro
dessa perspectiva, a "condensação" daquilo que os latinos
chamavam potentia? Constatamos que se tem falado
dessa maneira com muita freqüência e que é extrema-
mente tentador para o espírito considerar a potência em
si como um domínio sagrado, como a verdade última e a
chave do mistério do ser. Quem não se lembra de Hitler
falando de Deus e chamando-o de "Todo-Poderoso"?
Ora, o "Todo-Poderoso" não é Deus e não é o caso de se
partir da idéia de onipotência para se definir Deus. Falar
de "Todo-Poderoso" é expor-se ao terrível perigo de pas-
sar ao largo de Deus. Invocar ao "Todo-Poderoso" ou "a
potência em si" é abrir o abismo, liberar o caos, chamar o
diabo. Não há precisamente melhor definição do diabo
do que a que consiste em imaginar um poder em si, neu-
tro, independente, soberano. É isso que a Bíblia chama de
caos, o tohuwabohu 11 que Deus abandonou e rejeitou
quando criou os céus e a terra. A antítese de Deus, o pe-
rigo que não cessa de ameaçar sua criação, é precisamente
esse ataque, essa ofensiva impossível do livre-arbítrio, da
potência em si, buscando se impor e dominar como tal.
Desde que a potência em si reivindique a honra e o res-
peito, desde que ela entenda ser autoridade e ditar o di-
reito, estamos em face da "revolução do niilismo". A

II. N. do T.: Em hebraico no original. Tohuwabohu é a expressão que se en-


contra no segundo versículo do Gênesis e refere-se à situação da terra
no princípio da sua criação, podendo ser traduzida por vazia e vaga,
conforme a Bíblia de Jerusalém, ou mesmo por o deserto e o vazio
numa tradução mais literal.
o Deus Todo-Poderoso - 63

potência em si não é outra coisa senão o nada e quando


ela se desencadeia e busca se impor é a revolução e não a
ordem que ela traz. A potência em si é o mal, o fim de
tudo. Ela tem contra si a potência de Deus, a única que é
verdadeira. A potência de Deus não somente a ultrapassa,
mas ainda é contra ela. Deus diz não à revolução do nii-
lismo. Mas é um não vitorioso, ou seja, a intervenção de
Deus provoca o mesmo fenômeno que o sol dissipando a
bruma: a potência em si perde todo o seu poder e toda
sua realidade. Desde o instante em que ela é desmasca-
rada em todo o seu horror, ela é privada do respeito que
se lhe manifestou. Os demônios fogem. Deus e a potência
em si se excluem mutuamente. Deus significa o possível, a
potência em si, o impossível.
Mas em que medida Deus se opõe à força em si, em
que medida ultrapassa todos os outros poderes e em que
medida se distingue de todas as formas da impotência? A
Sagrada Escritura nunca fala da potência de Deus, de suas
manifestações e de suas vitórias, separando-a do direito.
A potência de Deus é, de um ponto a outro, uma potência
de direito. Ela é, não potentia, mas potestas, vale dizer, po-
tência legítima, fundada no direito.
Mas o que é o direito? Retomando o que já foi dito,
podemos afirmar que a potência de Deus é a do direito
porque ela é a onipotência de Deus, o Pai. Vamos lembrar
aqui como falamos do vínculo que une o Pai e o Filho,
dessa vida de Deus que, longe de ser solidão é, ao contrá-
rio, movimento, mudança, comunhão íntima. Portanto, a
onipotência de Deus é, conforme o direito, a potência da-
quele que, em si mesmo, é o amor. Tudo o que ameaça o
amor - a solidão e a afirmação de si mesmo - constitui
uma injustiça e permanece sem poder real. Deus o re-
nega. O que ele aprova é a ordem conforme a que reina
nele mesmo entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A po-
64 - Esboço de uma Dogll1,itica

tência de Deus é uma potência de ordem. A potência de


Deus é boa, santa, justa, misericordiosa, paciente. Por
fim, o que distingue a potência de Deus da impotência é
que aquela é a do Deus trinitário.
Essa potência é a do amor que foi iluminado e reve-
lado livremente em Jesus Cristo. É, pois, ainda a obra de
Deus que nos vai servir de critério do possível e do real. O
conteúdo de todo poder, de toda virtualidade, de toda li-
berdade' coincide exatamente com o que Deus é e faz. A
potência de Deus não é uma potência neutra, anónima;
pedir a ele, por exemplo, que faça com que dois e dois se-
jam cinco é infantil e sem propósito, porque atrás de
questões desse gênero se esconde precisamente uma idéia
abstrata do "poder". E uma potência suscetível de mentir
cessaria de ser real. Ela não seria mais que impotência,
potência de negação, pretendendo dispor de tudo se-
gundo a sua vontade. Ela não tem nada a ver com Deus,
vale dizer, com a potência real. A potência de Deus é uma
potência autêntica; como tal, ela está acima de tudo. "Eu
sou o Deus Todo-poderoso, anda em minha presença e sê
íntegro" (Gn 17.1). É esse "Eu" que define o Deus Todo-
poderoso e, portanto, a própria onipotência. "Todo poder
me foi dado no céu e sobre a terra" (Mt 28.18). É a ele, Je-
sus Cristo, que todo o poder foi dado. É portanto na obra
de seu Filho que a onipotência de Deus se torna visível e
viva, enquanto potência salutar e boa. E é desse modo que
Deus é o conteúdo, a definição e a limitação de todos os
possíveis; transcendente no sentido em que ele domina
absolutamente o conjunto do real; imanente no sentido
em que ele habita toda forma do real - ele, o Sujeito
eterno que pronuncia sua Palavra e realiza a sua obra se-
gundo seu desejo de amor e para o nosso bem.
o Deus Criador

b'm se fazendo homem, Deus manifestou e atestou que ele


não quer existir unicamente para si nem ficar
solitário, Para o mundo distinto dele, ele
concede propriamente a realidade, a
liberdade e uma maneira de ser.
Sua Palavra é a força que anima todo
ente criado. Deus suscita, mantém e dirige
toda criatura para que ela manifeste sua glória,
da qual o homem é chamado a ser a testemunha ativa
pela sua posição no centro da criação.

Creio em Deus, o Pai Todo-poderoso, criador do


céu e da terra. Quando nós abordamos esse ponto de
Credo cristão, nós não saberíamos suficientemente nos
dar conta de que nos encontramos aqui, igualmente, face
ao mistério da fé, que implica na intervenção da revelação
divina como única garantia de nossos conhecimentos. O
primeiro artigo do Símbolo, não é uma espécie de átrio
dos gentios, um tipo de área de entendimento preliminar,
onde cristãos, judeus e pagãos, crentes e não-crentes, pu-
dessem se encontrar e reconhecer com uma certa unani-
midade a existência de um Deus criador. A significação
dessa última expressão, como, por outro lado, aquela da
66 - Esboço de uma Dogm;ítica

própria criação, permanece tão misteriosa para nós, ho-


mens, quanto todas as outras afirmações do Credo. Não
nos é muito mais fácil crer no Deus criador do que crer
na concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo e no
nascimento virginal. É falso pretender que a declaração
relativa a Deus criador nos seria por assim dizer, direta-
mente acessível e que apenas o conteúdo do segundo ar-
tigo necessitaria de uma revelação especial. Encontramo-
nos, ao contrário, nos dois casos, colocados diante do
mistério de Deus e sua obra, e há apenas uma única e
mesma abordagem.
Com efeito, o Símbolo não fala do mundo ou, em
todo o caso, ele não o cita senão de passagem quando
menciona o céu e a terra. Não está dito: "Eu creio no
mundo criado", nem mesmo: "Eu creio na obra da cria-
ção". Está dito: "Eu creio em Deus, o criador". E tudo o que
está afirmado a respeito da criação, depende desse único
e mesmo sujeito divino. É sempre a mesma regra: Deus é
o sujeito agente, todo o resto é predicado. Aqui, como
alhures, toda a ênfase se apóia no conhecimento de Deus
cuja obra não pode ser compreendida senão a posterior, a
partir do sujeito criador.
a Credo fala do Deus criador e, em conseqüência,
fala de sua obra, a criação do céu e da terra. Por pouco
que nós sejamos sérios, vemos claramente que não se
trata aqui de um domínio, de alguma maneira, acessível à
reflexão ou à intuição humana. As ciências naturais po-
dem excitar nossa imaginação e nossa sede de saber ao
nos propor diversas teorias para a evolução, ao fazer dan-
çar diante dos nossos olhos os milhões de anos no decor-
rer dos quais o universo se teria formado pouco a pouco;
mas quando elas teriam conseguido chegar à origem do
mundo tal como é? Continuidade é bastante diferente
deste começo absoluto, com o qual os conceitos de Cria-

i I
o Deus Criador - 67

dor e de criação se relacionam. Certamente é um erro ca-


pital falar de um mito da criação. O mito pode, no
máximo, constituir um paralelo à ciência exata, pois a sua
função também consiste em pensar no que é e será sem-
pre.
O mito trata dos problemas inevitáveis e eternos co-
locados para o homem de todas as épocas pela existência
da vida e da morte, do sonhar e do acordar, do nasci-
mento e da morte, do dia e da noite, do amanhecer e do
entardecer, etc. Tais são os temas do mito. O mito consi-
dera o mundo, por assim dizer, a partir de seus limites,
mas trata-se do mundo já existente. Não existe mito da
criação pela simples razão de que a criação como tal, per-
manece inacessível ao mito. É assim, por exemplo, com o
mito babilônico da criação, onde estamos claramente tra-
tando com um mito sobre crescimento e decadência, que
não tem conexão alguma com Gênesis 1 e 2. Pode-se, no
máximo, afirmar que o texto de Gênesis conservou al-
guns traços mitológicos. Mas a maneira pela qual a Bíblia
os utiliza é sem paralelo na mitologia. Se tivermos de dar
um nome ao relato bíblico ou classificá-lo dentro de um
gênero literário, pode-se falar de saga.
Em Gênesis 1 e 2, a Bíblia fala de acontecimentos
que escapam ao nosso conhecimento histórico. Mas ela
está falando com base em um conhecimento e se reme-
tendo a uma história. A característica dos relatos bíblicos
da criação é que eles estão estreitamente ligados à história
de Israel, vale dizer, à história da ação de Deus desencade-
ada pela sua aliança com o homem. Segundo o Antigo
Testamento, essa história começa já com a criação do céu
e da terra. Os dois relatos da criação são, um e outro, ex-
pressamente ligados ao tema de todo o Antigo Testa-
mento: o primeiro mostra a aliança na instituição do
(,8 - Esboçc de uma Dogm,ítica

Shabat; O segundo a mostra como continuação da obra de


criação.
É impossível separar o conhecimento do Criador e
de sua obra da ação de que o homem é o objeto da parte
de Deus. É somente quando nos é apresentada a interven-
ção operada em nosso favor por Deus em Jesus Cristo,
que podemos conhecer a pessoa do Criador e o sentido
de sua obra. A criação é a analogia temporal, distinta de
Deus, do que se passa no próprio Deus, vale dizer, do
mistério em virtude do qual ele é o Pai de seu Filho. O
mundo não é Filho de Deus, ele não é "engendrado", mais
criado. Contudo, a ação de Deus como criador somente
pode ser compreendida, do ponto de vista da fé cristã,
como um eco, um reflexo, uma imagem provinda da rela-
ção interna e profunda que existe entre Deus, o Pai e
Deus, o Filho. E é a razão pela qual o Símbolo dos Após-
tolos atribui a obra da criação ao Pai. Isso não significa
que apenas o Pai seja o criador, mas não deixa de subli-
nhar essa analogia entre a criação e a relação viva que une
o pai e o Filho. O conhecimento da criação é o conheci-
mento de Deus e, por conseqüência, conhecimento de fé,
no sentido mais rigoroso e mais exclusivo. Ela não é uma
espécie de antecâmara onde a teologia natural pudesse ter
livre curso. Como pretenderíamos reconhecer a existên-
cia do Pai se ele não nos tivesse sido revelado de antemão
cm seu Filho? Nós não saberíamos extrair a idéia de um
Deus criador a partir da existência do mundo como tal,
em toda a sua diversidade. O mundo tal como é, com to-
dos os seus pesares e alegrias, jamais poderá ser para nós
mais do que um espelho obscuro, mais que uma ocasião
de exprimir nosso otimismo ou nosso pessimismo; ele
permanece incapaz de nos fornecer o mínimo conheci-
mento do Deus criador. Ao contrário, cada vez que o ho-
mem quis partir das coisas criadas - o céu estrelado

I I
o Deus Criador - 69

acima dele, sua própria imagem no fundo de si mesmo -


para atingir a verdade, ele não conseguiu mais do que in-
ventar um ídolo. Se Deus pode ser conhecido para, em se-
guida, ser reconhecido dentro da criação que se torna
assim um canto de louvor à sua glória, é porque ele não
pode ser buscado e encontrado em outro lugar que não
naquele onde ele está realmente: em Jesus Cristo. Pela en-
carnação, Deus tornou manifesto e digno de fé o fato de
que ele é o Criador do mundo. Não há dois tipos de reve-
lação.
o artigo do Credo que fala do Criador e de sua obra
quer afirmar que Deus não existe para ele mesmo, mas
que ele fez surgir uma realidade distinta e diferente de si,
o mundo. De onde o sabemos? Não temos já todos nos
perguntado se todo esse universo que nos rodeia não se-
ria mais do que, finalmente, uma aparência, um sonho?
Não aconteceu a vocês de, por vezes, experimentarem
uma dúvida absolutamente radical - não a propósito de
Deus, o que seria uma bobagem! - mas a propósito da re-
alidade da existência de vocês? De se perguntar se a vossa
vida inteira não seria uma ilusão e se o que nós chama-
mos de real não seria nada mais do que "o Véu de
Maya",12 isto é, irreal? E pensar que a única coisa que nos
resta a fazer é deixar de sonhar o mais rápido possível a
fim de entrar no "nirvana" de onde saímos? A afirmação
da criação é o oposto dessa atitude de desespero. De onde
podemos saber, com toda a verdade, que uma tal atitude é
absurda, que a vida não é um sonho, mas uma realidade,
que eu sou eu mesmo e que o mundo existe? A fé cristã
não conhece senão uma resposta: ela afirma com o se-
gundo artigo do Símbolo, que foi do agrado de Deus tor-

12. N. do Ed.: Na filosofia indiana, Véu de Maya designa a própria realidade,


considerada ilusória.
70 - Esboço de uma Dogm;írica

nar-se um homem, que em Jesus Cristo nós lidamos com


o próprio Deus, o Criador feito criatura, com Deus que
viveu como todos nós na moldura de nosso tempo e de
nosso espaço, entre nós, em tal lugar, em uma tal época.
Se isso é justo, se é bem verdade que Deus estava em
Cristo e se esse axioma do qual tudo depende não é um
logro, então existe um lugar onde podemos encontrar e
conhecer a criatura. Com efeito, se é exato que o Criador
se tornou ele mesmo criatura, se Deus se fez homem - e o
conhecimento cristão começa com essa afirmação - Jesus
Cristo nos entrega o segredo do Criador e de sua obra, o
segredo da natureza, e esse é o conteúdo do primeiro ar-
tigo. A partir do fato de que Deus se fez homem, não é
mais possível colocar em dúvida a existência da criatura.
Quando olhamos para Jesus Cristo e compreendemos que
ele viveu nossa vida, aqui, essa existência nos é anunciada
como Palavra de Deus; essa Palavra concerne ao Criador,
ela concerne à sua obra e à parte mais surpreendente
dessa obra: o homem.
Segundo a fé cristã, o mistério da criação não reside,
em primeiro lugar, como o pensam aqueles que os salmos
chamam os "insensatos" (SI 14.1), na questão relativa à
existência de uma causa primeira que se chamaria Deus,
pois, na interpretação cristã, não poderíamos pressupor a
existência do mundo para se perguntar em seguida se po-
deria existir também um Deus. Mas nosso único ponto de
partida é Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E é daqui
que surge, em seguida, o grande problema cristão! Seria
verdade que Deus não deseja ser um Deus para si, mas
que chama o mundo para uma existência independente,
de tal sorte que nós existimos como seres distintos ao lado
e fora dele? Aqui está o enigma. Aquele que busca, mesmo
que um pouco, conhecer Deus, compreendê-lo e contem-
plá-lo tal como ele se revela a nós "nos lugares altíssimos",

I I
o Deus Criador - 71

no seu mistério, na sua onipotência, na sua trindade, não


pode deixar de se surpreender ao constatar que nós exis-
timos e que o mundo existe fora e ao lado dele. Deus não
tem nenhuma necessidade de nós, ele não tem nenhuma
necessidade do universo, do céu e da terra. Ele mesmo é
sua própria riqueza. Ele possui a plenitude da vida, ele
detém toda a glória, toda beleza, toda bondade, toda san-
tidade. Ele é auto-suficiente. Ele vive da sua própria beati-
tude. Por que, então, o mundo? Tudo é plenamente nele, o
Deus vivo. Como pode ele ter alguma coisa ao lado dele,
alguma coisa da qual não necessita? Tal é o enigma da cri-
ação. E eis a resposta da doutrina da criação: Deus, que
não tem nenhuma necessidade de nós, criou o céu e a
terra, me criou a mim mesmo, "sem que eu fosse digno,
pela sua pura bondade e misericórdia paternal. Eu devo,
por todos esses benefícios, bendizê-lo e render-lhe gra-
ças, servi-lo e obedecê-lo. É isso que eu creio firme-
mente". Vocês compreendem, através dessas palavras de
Lutero, o aturdimento do crente em face da criação, este
maravilhamento diante da bondade de Deus, que não
quer ficar solitário, mas deseja que ao lado dele, uma ou-
tra realidade exista?
A criação é uma graça: diante de uma tal afirmação
se quereria poder ficar imóvel no medo, no tremor e no
conhecimento. Deus confere a esse que não é ele o privi-
légio de existir e lhe concede uma realidade própria, uma
maneira de ser e uma liberdade. A existência da criatura,
ao lado de Deus, tal é o grande enigma, tal é o milagre in-
compreensível, a questão fundamental à qual nos é pe-
dido e permitido responder, tal é o verdadeiro problema
existencial, radicalmente distinto do enganoso e seguro
problema: existe um Deus? Que exista um universo, eis o
inaudito, eis o milagre da graça de Deus. Não é para nós
um perpétuo motivo de aturdimento o ser e o ver os se-
72 - Esboço de lima Dogmática

res? Eu posso existir, o mundo pode existir, ainda que seja-


mos, um e outro, distintos de Deus, ainda que nos não
sejamos Deus, nem um, nem o outro. O Deus altíssimo, o
Deus triúno, o Deus Todo-poderoso, o Pai, não é um ti-
rano, ele concede o ser ao que não é ele, ele o deixa ser;
mais, ele lhe dá o ser. Nós existimos, o céu e a terra exis-
tem na sua pretensa infinitude, porque Deus concede
existência. Tal é a grande afirmação desse primeiro artigo.
Mas dizer que Deus concede o ser ao mundo, lhe dá
a sua realidade, sua maneira de ser e sua liberdade, signi-
fica precisamente, contra as afirmações reiteradas do
panteísmo, que o mundo não é Deus. As coisas são tais
que nós não somos Deus, mas que estamos perpetua-
mente expostos à tentação perniciosa de "querer ser como
Deus". Do mesmo modo, não é o caso de seguir as espe-
culações da gnose antiga ou nova, afirmando que o que a
Bíblia denomina o Filho de Deus, nada mais é, em defini-
tivo, do que o mundo criado, ou que o universo é, por es-
sência, gerado por Deus. Não se trata ainda de considerar
o mundo como uma emanação de Deus, comparável a um
rio que teria sua fonte nele. Nesse caso, não se poderia
mais falar de criação, mas somente de um movimento vi-
tal, saído de Deus e exprimindo seu ser. Criação significa
outra coisa, uma realidade diferente de Deus. Enfim, o
mundo não deve ser compreendido como uma simples
manifestação de Deus, o qual não seria, finalmente, mais
do que uma idéia. Deus, que é o único real, o único essen-
cial e o único livre, é uma coisa, o céu e a terra, o homem
e o universo sendo outra, que não deve ser confundida
com Deus, mas que não existe senão por Deus. Essa reali-
dade diferente não é, pois, autônoma: não existe de um
lado, o mundo e de outro, Deus, como duas realidades in-
dependentes, Deus não sendo para nós mais do que uma
divindade distante e ausente, de sorte que haveria dois

I I
o Deus Criador - 73

reinos, dois mundos separados: de um lado, o mundo,


com sua própria estrutura e leis e, de outro, em algum lu-
gar mais longe, Deus, seu reino e seu universo próprios,
se prestando às nossas mais ricas descrições, nos ofere-
cendo mesmo uma via de acesso na qual o homem pode-
ria ser considerado "em marcha" em direção aos cumes.
O mundo assim compreendido não seria a criação de
Deus, não lhe pertenceria inteiramente nem estaria fun-
damentado nele.
Não; o que Deus confere ao mundo é a realidade de
criatura, a natureza da criatura, e a liberdade de criatura,
uma existência apropriada à criação, o mundo. O mundo
não é uma aparência, o mundo existe, mas existe en-
quanto criatura. É-lhe permitido existir ao lado de Deus.
A realidade que Deus lhe confere, repousa sobre uma cre-
atio ex-nihilo, sobre uma criação a partir do nada. Deus
faz surgir uma realidade diferente dele aqui onde não ha-
via nada, nenhuma matéria primeira. Se existe um uni-
verso, se nós mesmos existimos pela única operação da
graça divina, não podemos nos esquecer um só instante
que na origem de nossa existência e da existência do uni-
verso, há não somente uma ação, mas uma criação de
Deus. Tudo o que existe fora de Deus permanece constan-
temente subtraído por ele ao nada. A maneira de ser que
Deus concede à criatura significa ser dentro do tempo e
dentro do espaço; o fato de possuir um começo e um fim,
de vir a ser para cessar de ser. Para toda criatura, há um
tempo em que ela não era ainda e um tempo em que ela
não será mais. Há, portanto, uma pluralidade de seres. Há
o passado e o presente, o imediato e o distante. Dentro da
passagem de um para outro, o mundo encontra suas duas
dimensões: o tempo e o espaço. Deus é eterno. Isso não
quer dizer que não há nele o tempo, mas que trata-se de
um tempo diferente do nosso que, finalmente, não é
74 - Esboço de lima Dogm;írica

nunca um verdadeiro presente e para o qual o espaço sig-


nifica sempre separação. Para Deus, o tempo e o espaço
são livres de limites sem os quais para nós eles permane-
cem impensáveis. Deus é o Senhor do tempo e do espaço.
A partir do fato que ele é a origem dessas duas formas da
realidade, ele escapa à limitação e à imperfeição insepará-
veis do estado de criatura.
Enfim, a liberdade que Deus dá à criatura significa:
existe uma contingência, uma possibilidade de ação da
criatura, vale dizer, uma liberdade de decisão, um certo
poder de ser. Mas essa liberdade não pode ser mais do
que aquela própria ao estado de criatura que quer que nós
não tenhamos nossa realidade em nós mesmos e que nós
sejamos ligados formalmente às categorias do tempo e do
espaço. Visto que essa liberdade é real, ela é limitada, de
uma parte pelas leis que regem o universo e, de outra
parte, pela soberania de Deus. Pois nós não somos verda-
deiramente livres a não ser porque Deus, o Criador, é, ele
mesmo, infinitamente livre. Toda liberdade humana não é
mais que um reflexo imperfeito da liberdade divina.
A criatura está ameaçada pela possibilidade - exclu-
ída para Deus e para ele somente - do nada e da ruína.
Ela não pode pretender subsistir em sua maneira de ser a
menos que Deus o queira. Caso contrário haverá por to-
dos os lados a irrupção do caos. Por si mesma, a criatura
não saberia nem subsistir nem escapar ao caos. E a liber-
dade de decisão tal qual Deus a confere ao homem, não é
a de escolher entre o bem e o mal. O homem não é, no
pensamento de Deus, o asno de Buridan. Com efeito, o
mal não entra no quadro das possibilidades próprias às
criaturas de Deus. A liberdade de decisão dada ao ho-
mem, consiste em liberdade para escolher o único Ser a
quem a criatura de Deus pode escolher, em louvar Aquele
que a criou, em cumprir a sua vontade - isso significa: li-
o DeLIs Criador - 75

berdade de obedecer. Mas trata-se de decisão em liber-


dade. E é aqui que aparece o perigo. Se acontece de a
criatura fazer um outro uso de sua liberdade que não o
único uso possível, se ela pretender sair de seu papel e de
sua realidade, vale dizer "pecar", se separar de Deus e de si
mesma, ela não poderia mais do que cair, na seqüência de
sua desobediência - sua queda sendo coincidente com a
impossibilidade mesma dessa desobediência, com essa
eventualidade para sempre excluída da própria criação! A
partir de então, ela não pode mais estar dentro do espaço
e do tempo a não ser para sua desgraça, sua existência no
quadro do passado, do presente e do futuro significando a
infelicidade. É a queda dentro do nada. Poderia ser dife-
rente? Se abordo esse tema, é unicamente para mostrar
que esse vasto domínio que nós chamamos o mal, a
morte, o pecado, o diabo e o inferno, não é criação de
Deus, mas, ao contrário, é o que está excluído pela pró-
pria criação, aquilo para o que Deus diz não. E se existe
uma realidade do mal, não pode ser senão esta realidade
ao mesmo tempo excluída e negada, à qual Deus voltou as
costas e que transpôs ao criar o mundo e ao criá-lo bom.
"E Deus viu tudo o que havia criado, e eis que isso era
muito bom': O mal não foi criado por Deus e não possui a
qualidade de criatura; se se desejar a qualquer preço de-
fini-lo evitando uma fórmula puramente negativa, deverá
ser dito que ele nada mais é que a potência do ser que
surge sob o efeito do "não" pelo qual Deus barra a rota ao
nada!
Não nos é permitido buscar trevas onde tudo é luz.
Deus é o Pai da luz. Uma vez que nos pomos a falar de um
Deus absconditus caímos na idolatria. É Deus, o Criador,
que concede à criatura seu ser. E tudo o que é, tudo o que
tem realidade, não existe fora da graça de Deus.
76 - Esboço de lima [)ogndtica

A Palavra de Deus é a força que permite a todas as


criaturas serem o que elas são. Deus as criou, as governa e
as mantêm para servir de teatro à sua glória. A esse res-
peito, eu gostaria ainda de precisar alguns pontos concer-
nentes ao fundamento e o fim da criação, os quais são, em
definitivo, uma só e a mesma coisa.
o fundamento da criação é a graça de Deus. Que
exista uma graça de Deus é o que se impõe a nós de uma
maneira viva e efetiva em sua Palavra. No momento em
que Deus fala e falou dentro da história de Israel, em Je-
sus Cristo e dentro da sua Igreja, no momento em que diz
sua Palavra hoje e que a dirá amanhã, a criação foi, é, e
será. O que existe não existe por si mesmo, mas pela Pala-
vra de Deus, por causa dessa Palavra, dentro do sentido e
em conformidade à intenção dessa Palavra. Deus suporta
todas as coisas, ta panta, pela sua Palavra (Hb 1.2; cf. Jo
1.1 ss e CI 1). Tudo foi criado por ele, por causa dele. A
Palavra de Deus, tal como está atestada na Sagrada Escri-
tura, a história de Israel, de Jesus Cristo e de sua Igreja, eis
o que está primeiro na ordem das realidades; o mundo
com todas suas luzes e sombras, seus abismos e seus
cumes, vem em segundo. É pela Palavra que o mundo é.
Que reviravolta de todos os nossos hábitos de pensar!
Não nos deixemos perturbar pela dificuldade que possa
surgir para nós por causa de nossa concepção habitual do
tempo! O mundo veio a existir, foi criado e é carregado
pela criança nascida na manjedoura de Belém; pelo ho-
mem que morreu na cruz do Gólgota e ressuscitou no ter-
ceiro dia. Tal é a Palavra criadora da origem de tudo o que
existe. É aqui que se encontra o sentido, o fundamento da
criação, e é por isso que a Bíblia se abre com as palavras:
"No princípio, Deus criou os céus e a terra. E Deus disse:
"Que haja ..." Desde as primeiras palavras desse estranho
primeiro capítulo da Escritura, Deus fala essa linguagem
o Deus Criador - 77

atordoante! Que não se veja aí uma palavra mágica, ope-


rando uma espécie de encantamento universal, mas, an-
tes, que se siga palavra a palavra o texto bíblico que nos
mostra como tudo surgiu dessa Palavra que estava no
princípio: a luz, o céu e a terra, as plantas e os animais e,
por fim, o homem.

Se nos perguntarmos agora qual é o objetivo da cri-


ação, a quais fins correspondem o universo, o céu, a terra
e todas as outras criaturas, eu não conheço senão uma
resposta: tudo isso deve servir de teatro à glória de Deus.
Que Deus seja glorificado, tal é o sentido de toda a reali-
dade. Doxa, gloria, vem de um verbo que significa sim-
plesmente: ser desvelado, manifesto. Deus quis se tornar
visível dentro do universo e, nessa perspectiva, a criação é
um ato plenamente significativo: "Eis que tudo era muito
bom". A despeito de todas as objeçães que possam ser le-
vantadas contra a realidade do mundo, sua excelência
consiste indiscutivelmente no fato que ele é chamado
para ser o teatro da glória de Deus, e o homem, a ser a
testemunha dessa mesma glória. Não nos é permitido
procurar, antes de tudo, conhecer o que é o bom em si
para em seguida protestar quando constatamos que o
mundo não corresponde a essa definição. O universo é
bom por causa do objetivo pelo qual Deus o criou. "Tea-
tro da glória de Deus, theatrum gloriae Dei", diz Calvino.
De sua parte, o homem admitido no seio desse concerto
de louvores é uma testemunha, uma testemunha ativa e
não passiva, no sentido de que ele deve contar o que viu.
Tal é a natureza do homem, tal é sua faculdade essencial:
ser testemunha das obras de Deus. E tal propósito de
Deus o "justifica" por ter criado o mundo.
o Céu e a Terra

a céu é a parte da criação incompreensível para o homem,


a terra é a que ele pode compreender.
a próprio homem é a criatura posta
no limite do céu e da terra.
A aliança entre Deus e o homem
dá o seu sentido e seu objetivo, seu fundamento
e seu valor ao céu e à terra bem como a toda criatura.

o Símbolo fala do "Criador do céu e da terra". Essas


duas grandezas tomadas isoladamente e no seu conjunto,
podem ser consideradas como objeto daquilo que se con-
vém chamar doutrina cristã da criação. Contudo, elas não
saberiam coincidir com uma imagem do universo qual-
quer que seja, saída da reflexão humana mesmo que se
deva reconhecer que nelas se refletem alguns elementos
de uma antiga cosmologia. Não é o papel da Sagrada Es-
critura, nem o da fé cristã que nos ocupa neste momento,
elaborar ou defender uma ou outra representação precisa
do mundo. A fé não é, de maneira nenhuma, ligada a uma
certa imagem do universo, antiga ou moderna. Numero-
sas são as teorias cosmológicas que se encontram no seu
caminho, no curso dos séculos. E os cristãos estiveram
sempre muito mal aconselhados quando acreditaram de-
80 - Esboço de uma Dogm,ítica

ver considerar um ou outro sistema como a expressão


adequada do pensamento da Igreja a propósito da criação
encarada sem referência à Palavra de Deus. A fé cristã é
absolutamente livre em relação a todas as cosmologias
que possam existir, o que significa: livre em relação a to-
das as tentativas de explicação do real conduzidas se-
gundo o critério e com os recursos das correntes
científicas que predominem em um ou outro momento
da história. Enquanto cristãos, nós não saberíamos acei-
tar deixar-nos alienar por uma teoria desse gênero, não
importa qual, seja antiga ou, ao contrário, que tenha to-
dos os atrativos da novidade. Sobretudo, não temos o di-
reito de ligar a causa da Igreja a uma ou outra concepção
do mundo. Uma concepção do mundo implica algo mais
do que uma simples imagem do mundo, no sentido em
que ela subentenda uma certa interpretação filosófica e
metafísica do homem. Oxalá a Igreja e os cristãos não
queiram se deixar levar por esse terreno tão perigosa-
mente vizinho da "esfera religiosa"! A Bíblia, no que ela
tem de decisivo, o Evangelho de Jesus Cristo, não nos diz,
em nenhum lugar que temos de adotar essa ou aquela
concepção de mundo. Toda tentativa de compreender o
real a partir de nós mesmos, de buscar chegar ao fundo
da realidade para chegar a um sistema de mundo com ou
sem Deus, é um empreendimento do qual estamos defini-
tivamente dispensados enquanto cristãos. Se acontecer de
vocês encontrarem tal tentativa, mesmo cristã, eu os
aconselho a colocarem-na, sem hesitar, entre parênteses.
No atual clima intelectual da Alemanha, essa advertência
merece ser dada duas vezes em lugar de uma! Com efeito,
o termo "concepção de mundo" (Weltanschauung) não
existe em nenhum outro idioma além do alemão, como
também o termo "Blitzkrieg", e quando os anglo-saxões,
por exemplo, desejam empregá-lo, eles se deparam com a

I I
o Céu c a Terra - 81

impossibilidade de encontrar um equivalente exato em


sua própria língua e devem se limitar a transcrevê-lo!
É impressionante que o conteúdo da criação seja de-
signado pela expressão "o céu e a terra". "No princípio,
Deus criou os céus e a terra ..." O Credo não faz, portanto,
nada mais do que retomar essa afirmação com a qual se
abre a Bíblia. É-nos permitido, contudo, perguntar se os
dois conceitos "o céu e a terra" são completamente ade-
quados ao seu objeto, isto é, à descrição da criação. Em
seu Pequeno Catecismo, Lutero tentou resolver a dificul-
dade, dizendo: "Eu creio que Deus me criou assim como a
todas as outras criaturas ..." Ele substituiu, assim, o céu e
a terra pelo homem e muito particularmente, pelo "eu".
Essa alteração ou, se quisermos, essa ligeira correção do
Credo é certamente legítima. Pois ela também nos remete
'a criatura da qual fala essencialmente o Símbolo, a saber:
o homem. Mas então porque a confissão de fé procede di-
ferentemente' porque ela fala do céu e da terra e não do
homem? Deve-se seguir Lutero ou deve-se, talvez, ver
nessa omissão do Credo a prova de que ele considera o
homem em uma altura tal que não vê nenhuma necessi-
dade de mencioná-lo? Não deveríamos simplesmente
compreender que, ao falar, como faz, do céu e da terra, o
Símbolo está designando de uma maneira profundamente
original o quadro natural que acontece de ser o do ho-
mem? A omissão do homem não constituiria aqui uma
maneira muito significativa de falar indiretamente dele? O
céu e a terra definem um cenário destinado a uma ação
muito precisa e da qual, em nosso ponto de vista, o ho-
mem ocupa o centro. Não teríamos nós aqui, uma descri-
ção da criação precisamente em função do homem? Em
todos os casos, fica entendido que o céu e a terra não
constituem realidades independentes que se poderiam
compreender e explicar por si mesmas, mas que, com a
82 - Esboço de uma Dogndtica

presença significativa do homem no seu centro, o cosmos


provém de Deus, pertence a Deus e deve ser considerado
dentro da perspectiva do Símbolo como a soma de toda a
realidade criada em relação com a vontade e a ação divi-
nas. É aqui que aparece a diferença fundamental que se-
para qualquer outra concepção de mundo do ponto de
vista da Sagrada Escritura e da fé cristã. Toda concepção
de mundo implica que se tome seu ponto de partida do
existente como sendo ele mesmo a sua própria razão de
ser, para alcançar gradualmente a idéia da divindade; a
Escritura, ao contrário, fala do céu e da terra, portanto do
homem, unicamente no quadro de uma relação: "Eu creio
em Deus, criador do céu e da terra". O genitivo mostra
claramente que acreditamos, não na criação, mas em
Deus, o Criador.
O céu é a parte da criação incompreensível para o
homem, a terra é a parte que é compreensível para ele. In-
cluo aqui o que o Credo Niceno fala como invisibilia e vi-
sibilia. Tentei traduzir essas duas expressões "coisas
visíveis" e "coisas invisíveis" pelos termos "compreensí-
vel" e "incompreensível': Quando a Escritura - da qual re-
tomamos aqui a terminologia - fala do céu, ela não quer
dizer simplesmente aquilo que temos o costume de no-
mear assim, o céu atmosférico e mesmo estratosférico,
mas uma realidade criada, que domina absolutamente o
nosso "céu" puramente físico. O homem da antigüidade e,
particularmente, o habitante do Oriente Próximo repre-
sentava o mundo visível como inteiramente recoberto por
uma enorme abóbada chamada firmamento. Essa abó-
bada constituía, em relação ao homem, o começo do do-
mínio celeste, invisível. Acima do firmamento se
encontrava um imenso oceano, separado da terra pelo fir-
mamento. Além desse oceano, enfim, haveria o próprio
céu, o verdadeiro céu, formando o trono de Deus. Se estou

I I
OCéueaTerra-83

dando esses detalhes, é unicamente para mostrar a repre-


sentação em algum tipo "cosmológico" que se encontra
por detrás do conceito bíblico de "céu". Trata-se de uma
realidade que se opõe ao homem e o domina absoluta-
mente, mas que, ela também, está na ordem das coisas cri-
adas. Tudo o que está além do que escapa ao homem e se
opõe a ele, assustando-o e exaltando-o alternadamente,
não deve ser confundido com Deus. A presença do inin-
teligível acima de nós não é, de maneira nenhuma, a pre-
sença do próprio Deus: é a presença do céu,
simplesmente. Chamá-lo Deus é divinizar a criatura, da
mesma maneira que o assim chamado "homem primi-
tivo", que adora o sol. São muito numerosos os filósofos
que, nesse sentido, renderam culto à criatura. O limite
imposto à nossa inteligência não passa entre Deus e nós,
ele passa entre o que o Símbolo chama de céu e de terra.
Existe, no seio do mundo criado, essa realidade que consti-
tui para nós um puro mistério: o céu. Se ela não é o pró-
prio Deus, ela faz parte de sua criação. Observemos, de
passagem, que o fato mesmo de ser uma criatura com-
porta em si um profundo mistério, o mistério do ser,
fonte incessante de terror e de alegria. É de maneira ho-
nesta que os filósofos e os poetas de todos os tempos pro-
curaram exprimir esse mistério. É-nos permitido,
enquanto cristãos, igualmente, saber essas coisas, conhe-
cer os altos e baixos da existência humana; sim, a vida tal
como é comporta já toda sorte de mistérios e feliz o ho-
mem que sabe "que há mais coisas entre o céu e a terra do
que pode sonhar nossa vã filosofia!" A criação possui,
pois, uma estrutura celeste, misteriosa para o homem,
mas que não representa, contudo, nada a temer nem a ve-
nerar como algo de divino. Nós estamos postos em um
mundo que comporta essa realidade; essa dimensão do
céu nos lembra, sem cessar, sob a forma de parábola, uma
84 - Esboço de uma Dogndrica

presença completamente diferente, a de Deus, o Criador


do céu e da terra, de tal maneira, contudo, que não con-
fundamos jamais o signo com a coisa significada.
No lado oposto do céu, a parte superior da criação,
se encontra a terra, o mundo de baixo, cujo conteúdo nos
é compreensível. É a parte da criação situada no interior
do limite que circunscreve o domínio onde nós podemos
ver, ouvir, sentir, pensar, contemplar, no sentido mais am-
plo. É toda essa esfera, submetida ao poder do homem, aí
compreendido o mundo da inteligência e da intuição, que
o Símbolo chama de terra. No interior dessa moldura ter-
restre, por outro lado, está compreendido aquilo que o fi-
lósofo denomina o domínio da razão e das idéias. Nesta
parte inferior se pode discernir igualmente as diferenças
de valor, por exemplo, entre os objetos sensíveis e os obje-
tos inteligíveis, mas eles permanecem limitados a esse
mundo. É dessa mesma esfera terrestre que o homem tira
sua origem: Deus forma o homem da poeira da terra (Gn
2.7). O mundo do homem, o teatro de sua existência e de
sua história ao mesmo tempo que o de seu fim natural
("retornarás ao pó"), tal é a terra. Se o homem possui,
contudo, uma outra origem e um outro fim que não esse,
é unicamente por causa da aliança, instituída por Deus
entre ele e sua criatura. É, pois, falar da graça, quando ve-
mos no homem mais do que um ser terreno, de quem a
terra é o lugar natural e o céu é o limite. Não existe
mundo humano in abstracto. O homem estaria enga-
nando a si mesmo, recusando-se a reconhecer que esse
mundo que ele compreende, se acha limitado por um ou-
tro mundo que ele não compreende. Nós devemos estar
agradecidos porque sempre existiram poetas, crianças e
também filósofos para fazer sensível a existência deste li-
mite superior. Esse mundo terrestre não é realmente mais
que um aspecto da criação. Contudo, não mais que o céu,
OCéueaTerra-85

a terra não saberia nos dar posse sobre o domínio de


Deus; é isso o que nos ensinam os dois primeiros manda-
mentos: "Tu não farás imagem entalhada, nem nenhuma
outra representação das coisas que existem no alto dos
céus e em baixo sobre a terra ..." Não há nenhuma potên-
cia sobre a terra ou acima no céu que mereça nosso temor
ou nosso amor.
o próprio homem é uma criatura situada no limite
do céu e da terra, ele está sobre a terra e sob o céu. Ele é o
ser capaz de compreender seu meio natural, o mundo
aqui em baixo; é-lhe permitido ter a posse sobre ele pelos
seus sentidos e pela sua inteligência, numa palavra, do-
miná-lo: "Eis que tu tens tudo posto sob seus pés!" (SI
8.6). É, dentro do quadro que lhe é próprio, o ser livre por
excelência. Mas ele permanece colocado sob o céu: face à
face com os invisibilia, as coisas invisíveis, incompreensí-
veis e inacessíveis à sua razão, ele permanece absoluta-
mente impotente e dependente. O homem toma
verdadeiramente consciência de sua condição de criatura
terrestre na mesma medida em que ele reconhece sua ig-
norância no que concerne ao mundo celeste. Parece que,
no limite que é o seu, ele tenha por função indicar o
mundo do alto e o de baixo, de ser um signo de seu pró-
prio destino, em função de uma relação que ultrapassa in-
finitamente essa que é figurada pelo complexo céu-terra.
O homem é, no quadro da criação, o lugar onde a criatura
se realiza completamente na superação de si mesma. O
homem é o ser capaz de dar livremente a Deus o louvor
que lhe é devido.
Nós não teríamos, contudo, dito nada ainda, se não
acrescentássemos logo que é a aliança entre Deus e o ho-
mem que dá seu sentido e sua finalidade, seu fundamento
e seu valor ao céu, à terra, assim como a toda criatura. Di-
zendo isso, parecemos forçar um pouco o conteúdo obje-
86 - Esbo~-o de lima Dogm;\rica

tivo do primeiro artigo do Símbolo. Mas isso não é mais


do que uma aparência. Pois mencionar a aliança de Deus
e do homem, é falar de Jesus Cristo. Essa aliança não é um
elemento secundário, sobreposto de alguma maneira, ela
coincide, de fato, com a própria criação. Desde que o
criou, Deus começou a se ocupar do homem. Pois tudo o
que existe está a tal ponto subordinado à existência do
homem que nisso já se pode ler a intenção de Deus, tal
como ela se manifestará efetivamente no mistério da ali-
ança em Jesus Cristo. Por conseqüência, não somente essa
aliança coincide com a criação, mas, ainda, ela a precede
no tempo. Antes da criação do mundo, antes da existên-
cia do céu e da terra, há a decisão, o decreto de Deus afir-
mando sua vontade de comunhão com o homem, tal
como ela se realizou de uma maneira incompreensível e
perfeita em Jesus Cristo. Também, quando procuramos a
razão de ser e o objetivo de tudo o que existe é, de imedi-
ato, dessa aliança entre Deus e o homem que devemos
nos lembrar.
Se voltamos agora à criação tal como tentamos des-
crevê-la ao falarmos do céu e da terra, com a presença do
homem no limite desses dois grandes domínios, certa-
mente nos será lícito afirmar, sem parecer muito temerá-
rio e sem que nos acusem de ceder à especulação, que
existe a mesma relação entre o céu e a terra e entre Deus e
o homem no seio da aliança, de tal sorte que o simples ato
da criação constitui em si um signo único e decisivo, o
signo do desejo eterno de Deus. Coexistência e encontro
do alto e do baixo, do inteligível e do ininteligível, do fi-
nito e do infinito, eis a criação. Isso tudo é o mundo. Ou,
a partir do fato mesmo de que esse mundo comporta efe-
tivamente um alto e um baixo que não cessam de se opor;
do fato de que, dentro de cada um de nossos suspiros,
dentro de cada um de nossos pensamentos, dentro de

I I
o Céu e a Terra - 87

cada uma de nossas expenencias de viventes, o céu e a


terra estão sempre presentes, se confrontam, se atraem e
se repelem sem cessar de formar um todo, nós constituí-
mos, pela nossa simples existência de criaturas, um signo,
uma demonstração e uma promessa da destinação final
de toda a criação: esse encontro, essa intimidade, essa co-
munhão e, em Jesus Cristo, essa unidade perfeita do Cria-
dor e da criatura.
Jesus Cristo

o objeto e o centro da fé cristã é a Palavra


idêntica à
ação pela qual Deus, por toda a eternidade,
decidiu para nosso bem se tornar
homem em Jesus Cristo, tornou-se efetivamente
no tempo e o ficará pelos séculos dos séculos.
A obra do Filho pressupõe, assim,
a do Pai e implica a do Espírito Santo.

Com este capítulo, abordaremos o centro mesmo da


Confissão de fé, como se pode julgar já ao primeiro golpe
de olhos pelo lugar considerável que ocupa o segundo ar-
tigo. Existe, aqui, mais que uma questão de redação. Já na
introdução, quando se tratou da fé e em nossa primeira
parte, quando falamos de Deus, o Pai Todo-poderoso,
Criador do céu e da terra, não fizemos mais que remeter
constantemente a esse centro. Nossa explicação do pri-
meiro artigo teria carecido totalmente de pertinência se
não o tivéssemos incessantemente apoiado, por antecipa-
ção, no segundo. Este ultimo, não é simplesmente a se-
qüência do primeiro e o prefácio do terceiro, mas sim a
fonte luminosa que esclarece um e outro. Historicamente,
aliás, provou-se que o Credo cristão provém de um texto
primitivo mais curto e mesmo de uma formula efetiva-
90 - Esboço de LIma Dogndtica

mente breve, que coincide, quanto ao essencial, com o


conteúdo do atual segundo artigo. Supõe-se mesmo que a
confissão de fé da Igreja primitiva era constituída por es-
tas simples palavras: "Jesus Cristo (é) o Senhor". O pri-
meiro e o segundo artigos não teriam sido acrescentados
senão mais tarde a esse núcleo central. O processo histó-
rico não se deveu ao simples acaso. Mesmo de um ponto
de vista puramente objetivo, não é sem significação o fato
de saber que o segundo artigo é historicamente a fonte
dos outros. É cristão aquele que confessa o Cristo. E uma
confissão de fé cristã tem por objeto Jesus Cristo, o Se-
nhor.
É a partir desse centro decisivo, e como uma ex-
plicação complementar, que se deve compreender as
afirmações do Símbolo relativas a Deus, o Pai, e a Deus,
o Espírito Santo. Os teólogos cristãos fizeram uma má
escolha cada vez que procuraram edificar diretamente e
no abstrato uma teologia do Deus criador, apesar de
todo o respeito e seriedade com que eles se empenha-
ram nisso.
O mesmo deve ser dito sobre aqueles que tenta-
ram partir de uma teologia do terceiro artigo, de uma
teologia do Espírito, da experiência espiritual, por opo-
sição à do Deus criador. Poder-se-ia talvez encontrar
uma explicação da teologia moderna, tal como a en-
tende Schleiermacher, no fato de que a partir de certas
premissas próprias dos séculos XVII e XVIII, ela teria
se tornado unicamente uma teologia do terceiro artigo;
ao declarar-se do Espírito Santo, ela se acreditava auto-
rizada, sem se dar conta de que o terceiro artigo não é
mais que uma explicação do segundo, uma maneira de
precisar o que Jesus Cristo significa para nós. É a partir
de Jesus Cristo somente que nós podemos tentar ver e
compreender do que se trata, dentro da ótica cristã,

I I
JeSllS Cristo - ') 1

quando abordamos o grande problema - que não deixa


de nos aturdir e que só podemos formular correndo os
mais graves riscos de errar - da relação entre Deus e o
homem. Temos apenas uma resposta para esse pro-
blema: Jesus Cristo.
Dessa maneira, não podemos compreender a rela-
ção entre a criação, a criatura, a existência, de uma
parte, e a Igreja, a redenção, Deus, de outra, partindo
de uma verdade geral ou dos dados da História das reli-
giões, mas unicamente a partir da relação que exprime
a pessoa de Jesus Cristo. É nele que nos discernimos o
que significa: Deus acima do homem (r· o artigo) e Deus
com o homem (30 artigo). É porque o segundo artigo, a
cristologia, é a pedra de toque de todo conhecimento de
Deus, no sentido cristão da palavra, o critério de toda
teologia. "Dize-me qual é a tua cristologia que eu te di-
rei quem tu és". É aqui que os caminhos se separam, é
aqui que se precisam as relações entre a teologia e a fi-
losofia, entre o conhecimento de Deus e o conheci-
mento do homem, entre a revelação e a razão, entre o
Evangelho e a Lei, entre a verdade divina e a verdade
humana, entre o domínio da alma e o do corpo, entre a
fé cristã e a política.
É aqui que tudo se torna brilhante ou obscuro,
claro ou confuso. Nós estamos no centro. E, por mais
fora de alcance, misterioso, difícil que possa nos pare-
cer esse centro, podemos afirmar sem medo: doravante
tudo se torna extremamente simples, elementar, infan-
til. Sim, no momento mesmo em que, como professor
de teologia sistemática, meu dever é gritar a vocês:
"Atenção! Isso é sério: ou bem fazemos ciência ou bem
caímos nas piores bobagens!" acontece que me vejo en-
tre vocês como um monitor de escola dominical diante
92 - Esboço de uma Dogm;ítica

de seus pequenos alunos, com uma mensagem que um


garoto de quatro anos poderia já compreender: "Em um
mundo perdido, Cristo desceu - Cristãos, rejubilai-
vos!"
o
centro de que falamos é a Palavra que atua ou,
se preferirmos, a ação da Palavra de Deus. Desde logo,
tenho de chamar a atenção de vocês para o fato de que
nesse centro vivo da fé cristã, a oposição tão freqüente
entre palavra e ação, doutrina e vida, não tem nenhum
sentido. Pois a Palavra, logos, aqui se identifica com a
obra, ergon, Verbum coincide com opus. Por tratar-se de
Deus e do próprio coração da nossa fé, essas diferenças
que nos parecem tão interessantes e essenciais são, não
apenas supérfluas, mas ainda perfeitamente absurdas.
Deus fala, Deus age, Deus ocupa o centro de tudo: a
verdade se traduz em ato, o ato se manifesta com a força
da verdade. A Palavra é ação, uma ação tal que é, ela
mesma Palavra, revelação.
Quando pronunciamos o nome Cristo não é o
simples suporte verbal de uma realidade superior (o
platonismo não intervém aqui!). Trata-se, sob esse
nome e sob esse título, da sua pessoa mesmo. Não de
uma pessoa fortuita, de um "fato histórico acidental"
como entende Lessing, por exemplo. As verdades eter-
nas da razão, eis o tipo de fato histórico "acidental"! As-
sim, o nome de Jesus Cristo não serve para designar um
produto da história humana. Os homens sempre acredi-
taram ter feito uma grande descoberta quando conse-
guiram demonstrar que Jesus Cristo não podia deixar
de ser o ponto culminante de toda história. Achado me-
díocre, na verdade! Mesmo a história do povo de Israel
não saberia se prestar a uma tal demonstração. Certa-
mente, a posteriori, é lícito e mesmo necessário afirmar:
nesse homem, nesse povo, a história se realizou ... ; mas

I I
Jesus Cristo - 93

ela o fez seguindo uma linha absolutamente nova e es-


candalosa do ponto de vista dos fatos históricos! Lou-
cura para os gregos, escândalo para os judeus! (1 Co
1.23) Enfim, o nome de Jesus Cristo não esconde um
postulado do homem, não designa o produto de seus
desejos mais nobres nem o tipo de redentor criado pela
sua inquietude. O homem nem é capaz de reconhecer
por si mesmo sua inquietude e seu pecado. É-lhe neces-
sário primeiro conhecer Jesus Cristo: é em sua luz que
nós vemos a luz que nos revela nossas próprias trevas.
Todo conhecimento que mereça esse nome, segundo a
fé cristã, provém do conhecimento de Jesus Cristo.
Mesmo o primeiro artigo adquire um sentido in-
teiramente novo quando o lemos sob a perspectiva da fé
em Jesus Cristo. Ele confessa o Deus criador do céu e da
terra, o Deus eterno, inacessível, oculto, incompreensí-
vel' cujo mistério domina absolutamente mesmo aquele
do mundo celeste. E eis que o segundo artigo confessa
uma verdade aparentemente contraditória, em todos os
casos completamente insólita, da qual somente o con-
teúdo do primeiro é que nos dá a dimensão do caráter
paradoxal e enigmático: Deus toma uma forma, um
nome ressoa, um ser humano toma o lugar do Altíssimo
diante de nós! Deus Todo-poderoso parece ter perdido
sua onipotência.
Nós falamos de sua eternidade, de sua ubiqüidade.
E eis-nos mergulhados no tempo, em face de um evento
temporal e localizado, de um acontecimento particular
na trama da história humana, de um fato cujo contexto
é o começo de nossa era em um lugar bastante definido
no globo terrestre. Depois de Deus, o Pai, tal como o
confessa o primeiro artigo, o mesmo Deus provindo da
misteriosa unidade de seu ser, se apresenta sob a figura
do Filho. Doravante, Deus é esse Outro nele mesmo, ao
94 - Esboço de lima Dogmâtica

mesmo tempo idêntico e distinto. Ao passo que o pri-


meiro artigo do Símbolo descreve o Criador como o ab-
solutamente distinto de tudo o que existe, e a criatura
como soma de todos os seres distintos do ser de Deus, o
segundo significa: o Criador se tornou ele mesmo cria-
tura. Ele, o Deus eterno, tornou-se não a soma de todas
as criaturas, mas sim uma criatura.
Ele que, por toda a eternidade, decidiu para nosso
bem tornar-se homem em Jesus Cristo, tornou-se ho-
mem efetivamente no tempo e permanecerá sendo pe-
los séculos dos séculos. Eis Jesus Cristo. Já me ocorreu
de citar o nome da romancista inglesa Dorothy L.
Sayers que, como se diz, voltou-se para a teologia com
um interesse notável. Em um pequeno escrito, ela mos-
tra o caráter insólito, "interessante", inaudito dessa no-
vidade: Deus se fez homem. Imagine-se, um belo dia,
na primeira página de um jornal! Sim, trata-se de uma
novidade verdadeiramente sensacional que relega todas
as outras à última página! É esse fato, absolutamente
perturbador, incomparável e único em seu gênero, que
constitui o centro do cristianismo.
O complexo Deus-homem cedeu lugar a toda
sorte de combinações, em todas as épocas da história.
Por exemplo, a mitologia conhece a idéia da encarna-
ção. O que distingue a mensagem cristã da mitologia,
qualquer que seja é que, para esta última, a encarnação
é, no fundo, a expressão de uma idéia geral, de uma ver-
dade universal. O mito continua dominado pelo ritmo
dos fenômenos, a sucessão do dia e da noite, da prima-
vera e do inverno, da vida e da morte; para o mito, a re-
alidade tem um caráter intemporal, infinito. O
Evangelho de Jesus Cristo não tem nada em comum
com o mito. Ele se distingue, já de um ponto de vista
formal, pelo fato de que se inscreveu plenamente den-

I I
JeSllS Crisro - 95

tro da história: ele afirma que na existência de tal ho-


mem particular, Deus se encarnou de tal maneira que a
existência desse homem e a de Deus são uma só e
mesma coisa. A mensagem cristã está, nesse ponto de
vista, plenamente inserida na trama da história. É pre-
ciso considerar-se em conjunto, no mesmo momento, a
eternidade e o tempo, Deus e o homem, para compre-
ender o que realmente significa o nome de Jesus Cristo!
Jesus Cristo é a realidade da aliança entre Deus e o ho-
mem. É apenas referindo-se a ele que podemos falar,
com o primeiro artigo, de Deus nos lugares altíssimos,
porque então nós conhecemos o homem pela aliança
que o liga a Deus: em sua pessoa concreta, enquanto ele
é esse mesmo homem. Da mesma maneira, quando o
terceiro artigo nos fala de Deus no homem, de Deus
trabalhando por nós e em nós, poderia se tratar aqui de
uma ideologia, de uma lição de entusiasmo, de uma
descrição da vida interior do homem, de suas experiên-
cias e de suas aspirações, da projeção do que se passa
em nós quanto a uma divindade imaginária que se
chama Espírito Santo. Mas quando observamos a ali-
ança que Deus realmente concluiu conosco, homens,
sabemos que não se trata disso. Nos é lícito falar com
segurança da realidade do Espírito Santo, em razão
mesmo dessa aliança que proclama que Deus, para to-
dos os homens, se fez homem em Jesus Cristo.
"á homem, é para teu bem que Deus se encarnou
e é teu sangue que corre nas veias do Filho de Deus". Tal
é a mensagem do Natal. Nós tentamos marcar os três
aspectos. Primeiramente o acontecimento histórico: o
tempo que é o nosso, possui um centro que se constitui
na chave; com todas as suas contradições, seus cumes e
seus abismos, nossa história se vê colocada dentro de
uma determinada relação com Deus. No centro de
96 - Esboço de uma Dogm,hica

nosso tempo está esse acontecimento decisivo: Deus se


fez homem para nosso bem. Mas o caráter único desse
acontecimento, nos obriga a reconhecer que ele não po-
deria ser um simples acidente, um fato histórico entre
outros. Somos levados a vê-lo como o acontecimento
por excelência desejado por Deus por toda a eterni-
dade. Sob esse segundo aspecto, a mensagem do Natal
nos remete ao primeiro artigo do Símbolo; ela afirma o
vínculo entre a criação e a redenção. Nos é possível,
desde logo, pensar no Deus criador cuja existência pre-
cede absolutamente a das suas criaturas, fazendo abs-
tração da sua vontade tal como ela se cumpre e se
manifesta no curso da história. A vontade eterna de
Deus é inseparável dessa forma temporal. Mesmo do
ponto de vista da eternidade, não há outro Deus além
desse cuja vontade se encarnou dentro do aconteci-
mento histórico de sua ação e de sua Palavra. Tudo isso
não tem nada a ver com a especulação. A pregação de
Jesus Cristo não é uma verdade entre outras. É a ver-
dade. Nosso pensamento, uma vez orientado para Deus,
não pode fazer abstração do nome de Jesus Cristo. En-
fim, há o terceiro aspecto da mensagem do Natal, "Deus
que em toda a eternidade decidiu, para o nosso bem,
tornar-se homem em Jesus Cristo, o permanecerá pelos
séculos dos séculos". O fato de seu caráter histórico, o
fato que ela se manifestou no quadro do espaço e do
tempo, a aliança ou se preferirmos, a unidade de Deus e
do homem, não é uma verdade passageira. Jesus Cristo
é o rei cujo reino não terá fim. "Jesus Cristo é o mesmo
hoje, ontem, eternamente" (Hb 13.8). Tal é nossa situa-
ção diante de Deus. Ele nos rodeia verdadeiramente por
todos os lados, em Jesus Cristo. Impossível escapar-se-
lhe. Impossível também sucumbir dentro do nada. In-
vocar Jesus Cristo é se comprometer sobre um caminho

, I
Jesus Cristo - 97

seguro. "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" 00


14.6). Trata-se de um caminho que atravessa os tempos
e cujo centro é o próprio Jesus Cristo; a origem desse
caminho não se perde na noite da história, ela corres-
ponde exatamente ao que é. Enfim, esse caminho não
conduz à escuridão, pois que todo o futuro diante de
nós porta esse mesmo nome: Jesus Cristo. Jesus Cristo é
o que foi, o que é e o que vem, como o exprime o fim do
segundo artigo: ''''De onde virá para julgar os vivos e os
mortos". Ele é o Alfa e o Ômega (Ap. 1.8), o princípio e
o fim. Quando podemos, com o Símbolo, confessar o
nome de Jesus Cristo, isso significa que nós encontra-
mos Aquele que, mesmo se o ignorarmos, nos tem in-
teiramente dentro de sua mão.
Tudo isso, nós o dissemos, é "para nosso bem". É
preciso sublinhar. A aliança de Deus, sua revelação em
Jesus Cristo, não é simplesmente um milagre, um mis-
tério interessante, digno de nossa mais séria atenção.
Claro que é isso também, mas com certeza não teremos
compreendido nada se nós imaginamos poder fazer
disso um objeto de pura contemplação intelectual.
Mesmo que pretenda se apoiar no Novo Testamento in-
teiro e dar lugar aos mais belos discursos, o conheci-
mento puro, a gnose, seria apenas um bronze que
ressoa, um címbalo que retine. A palavra de Melan-
chton é completamente justa (Loci communes, 1521), a
despeito do uso abusivo que se tem feito na teologia
moderna: Hoc est Christum cognoscere, beneficia Christi
cognoscere. Em particular, o erro de Ritschl e de sua es-
cola consistiu em repudiar completamente o mistério
da encarnação para apresentar o Cristo unicamente sob
o aspecto de um ser excepcional, de quem o homem
pode obter certos benefícios no sentido em que eles re-
presentam para ele um certo "valor". Ora, não se pode
98 - Esboço de uma Dogmática

falar abstratamente dos benefícios de Cristo. É preciso


conhecê-los concretamente para poder reconhecê-los.
Se existe benefício, ele está única e exclusivamente
dentro desse fato da revelação: Deus se fez homem, ele
se fez homem para o nosso bem. Assim somos auxilia-
dos. A partir do fato de que esse ato de Deus foi feito
para nós, seu reino já está aqui. Pronunciar o nome de
Jesus Cristo é reconhecer que alguém se ocupa de nós e
que nós não estamos perdidos. Jesus Cristo é a salvação
do homem apesar de tudo o que possa ensombrar sua
vida, inclusive o mal que provém dele mesmo. Não
existe nenhum mal que já não esteja mudado em bem
pelo evento da encarnação de Deus. Finalmente, nada
mais resta a fazer do que redescobrir sem cessar que
isto é assim. Nossa vida não é mais um sombrio
enigma. Nós vivemos para Aquele que, desde antes do
nosso nascimento, foi misericordioso para conosco. Se
é verdade que nós vivemos longe de Deus, se é verdade
que nós somos inimigos e rebeldes, ainda é verdade que
Deus nos preparou o caminho da reconciliação muito
antes que entrássemos em luta contra ele. E se é verdade
que, a respeito de seu distanciamento de Deus, o ho-
mem não pode ser considerado mais que um ser deses-
peradamente perdido, é ainda infinitamente mais
verdadeiro que Deus agiu, age e agirá por nós de tal
sorte que ele terá, para toda perdição, uma salvação
preparada. Tal é a fé para a qual somos chamados na
Igreja, pelo Espírito Santo.
Acontece que todos os nossos motivos de queixa,
mas também tudo aquilo de que possamos ser acusados
com razão, todos os suspiros dos homens, todas as suas
lamentações e seus desesperos - dos quais não contes-
tamos a legitimidade - se distinguem radicalmente de
todas as formas de amargura no seguinte: é que, reduzi-

, I
JeSLlS Cristo - 99

dos ao nosso papel de acusados ou de acusadores, nossa


força para protestar reside no fato de que nos reconhe-
cemos como objetos da misericórdia divina. É unica-
mente quando nos é dado medir a profundidade do que
Deus fez por nós que podemos tomar consciência da
nossa miséria. Pois quem conhece a real miséria do ho-
mem senão aquele que conhece a autêntica misericór-
dia de Deus?
A obra do Filho pressupõe a do Pai e implica a do
Espírito Santo como conseqüência. O primeiro artigo
indica a origem, o terceiro a finalidade de nossa marcha.
O segundo é o caminho onde nos é dado andar pela fé e
que estende diante de nós a obra de Deus em toda a sua
plenitude.
o Salvador e o Servo
de Deus

o nome de Jesus e seu título, o Cristo, designam a pessoa e


a obra do homem, objeto de escolha divina,
em quem se encontra manifesta e cumprida, a missão pro-
fética, sacerdotal e real do povo de Israel.

o segundo artigo do Símbolo se abre por dois ter-


mos de origem estrangeira e que comandam todo o seu
conteúdo: Jesus Cristo. O primeiro é um nome próprio
que designa um indivíduo em particular, o segundo é um
título que caracteriza a sua função. Ao pronunciarmos
esse nome e esse título, "Jesus, o Cristo", somos colocados
de imediato no contexto da história e da linguagem do
povo de Israel. Eis, pois, bem delimitado o assunto que
vai nos ocupar agora: Jesus, nascido em Israel, esse ho-
mem particular cuja função precisa consiste em manifes-
tar e cumprir o ser e a missão desse povo. Desde o início,
as coisas assumem uma fisionomia muito particular, a
partir do fato de que o nome "Jesus" pertence à termino-
logia hebraica: Jesus é, com efeito, o equivalente de Josué,
um nome que se encontra com muita freqüência no An-
tigo Testamento, e, notadamente num caso, com um certo
relevo. Em troca, o título "Cristo" é de origem grega ou,
mais exatamente, a tradução do termo hebraico "Messias"
102 - Esboço de uma [)ogm;ítica

que quer dizer: o ungido. Acontece, pois, que o complexo


"Jesus Cristo" já é, por si mesmo, o indício de um certo
movimento histórico. Que um judeu, que um israelita,
que um hebreu de nome Jesus seja o Cristo, eis o que já
constitui um certo corte da história, de uma história que
passa através de um pequeno povo, Israel, para emergir
entre os gregos, vale dizer, no mundo. Não se pode disso-
ciar o nome de Jesus Cristo para reter somente um de
seus componentes. Jesus Cristo não seria mais ele mesmo
se não estivesse, em sua pessoa, o Cristo, oriundo de Is-
rael, idêntico ao judeu Jesus. Inversamente, o judeu Jesus
não seria ele mesmo se não existisse, na sua função, o
Cristo de Deus, atestando no seio dos povos e no coração
da humanidade, o mistério e o alcance da vocação de Is-
rael. Para poder compreender toda a significação do
nome de Jesus Cristo, é preciso considerá-lo sempre com
essa dupla significação particular e universal. Uma vez
que se esqueça de um em favor de outro, acontece que se
estará falando, na realidade, de algum outro.
O nome próprio de Jesus significa literalmente:
"Yahvé (o Deus de Israel) ajuda!" O título de Cristo, de
Messias, servia para designar, entre os judeus do tempo
de Jesus, o homem dos últimos tempos, esperado por Is-
rael e designado para fazer brilhar aos olhos de todos a
glória de Deus, ao mesmo tempo oculta e prometida a seu
povo. Designava o homem chamado para libertar os ju-
deus da miséria e da opressão e que, ele mesmo oriundo
de Israel, devia reinar sobre os povos. E quando Jesus de
Nazaré aparece e prega, quando, saído de um humilde vi-
larejo da Galiléia, ele emerge em plena história de Israel -
essa história de que, desde sempre, Jerusalém parece ter o
dever de anunciar a realização - nós aprendemos que, sob
essa misteriosa figura, na pessoa do filho de José, é o es-
perado Messias, o homem dos últimos tempos que está

I I
o Salvador e o Servo de Deus - 103

aqui; é como tal que Jesus se apresenta e é como tal que é


reconhecido. Acontece que, entre todos os que portavam
o nome de Jesus (Deus ajuda, Salvador), muito comum na
época, só um concretiza em sua pessoa, porque tal é do
agrado de Deus, a realização da promessa divina. E, ao
mesmo tempo, essa realização concerne ao destino de Is-
rael, e marca a realização e a revelação de sua vocação es-
pecífica no seio da história universal para todos os povos,
para o conjunto da humanidade. É significativo que a
Igreja primitiva não tenha falado de Jesus, o Messias, mas
sim de Jesus Cristo: é a porta aberta para o mundo. Con-
tudo, o nome judeu de Jesus permanece, atestando que é
de Israel que a salvação se estende para o mundo inteiro.
Talvez vocês achem estranho que eu insista dessa
maneira no nome de Jesus e no seu título. É que, no povo
de Israel, como de resto em toda antigüidade, os nomes e
os títulos não tinham, como é o caso hoje, um caráter pu-
ramente exterior e fortuito. Assim, o nome e o título de
Jesus Cristo exprimem realmente algo, eles constituem,
no sentido mais concreto, uma revelação. Não é, pois,
questão de ver aí um simples signo exterior, um chama-
mento, um ornamento arbitrário. Lembremo-nos, é o
anjo que declara a Maria: "Tu lhe darás o nome de Jesus"
(Deus ajuda, Salvador, Soter em grego!) (Mt 1.21). Da
mesma maneira, o título "Cristo", longe de ser uma adjun-
ção acidental, pertence ao homem que ele designa em vir-
tude de uma necessidade interna. É impossível dissociá-lo
do nome que o qualifica; ao contrário, deve-se dizer que o
homem que porta esse nome é feito para portar esse tí-
tulo. Não se trata de uma dualidade entre o nome de um
personagem e sua vocação. É desde o nascimento que Je-
sus foi coroado com o título de Cristo, de sorte que sua
pessoa não existe sem seu título, nem seu título existe
sem a sua pessoa. Ele é o Josué por excelência, o Deus
104 - Esboço de uma Dogm,ítica

"que ajudà' porque foi escolhido para realizar a obra e a


função do Cristo o servo de Deus, oriundo de Israel, no
seu ofício profético, sacerdotal e real.
É preciso que nos detenhamos aqui para sublinhar a
importância do fato de que é dentro da pessoa concreta
do homem Jesus Cristo que se realiza e se manifesta a
missão específica desse povo único que é o povo de Israel,
o povo judeu. Cristo, o servo de Deus para todas as na-
ções, e Israel, o povo do qual é oriundo, não podem ser
separados; são duas grandezas ligadas indissoluvelmente
pelo tempo e pela eternidade. Israel não é nada sem Jesus
Cristo e, inversamente, Jesus Cristo não seria Jesus Cristo
sem Israel. Portanto, é preciso que comecemos por olhar
Israel para podermos ter uma visão correta de Jesus
Cristo.
Israel, o povo do Antigo Testamento, é o povo da
aliança. Sua história é a da aliança que Deus conclui com
ele sob formas sempre renovadas. É no contexto de Israel
que esse conceito insólito de uma aliança entre Deus e o
homem nasce e se encontra em seu verdadeiro lugar. E é
porque essa aliança é a de Deus com o povo de Israel que
não se pode confundi -la com uma idéia filosófica, uma
idéia geral. Longe de sermos solicitados por uma idéia,
com efeito, encontramo-nos postos diante do fato de que
Deus chamou Abraão no meio dos povos para se ligar a
ele e à sua "posteridade" (Gn 17.7). Toda a história do
Antigo Testamento e, por conseguinte, toda a história do
povo de Israel, coincide exatamente com a da aliança de
Deus com o seu povo, desse povo com esse Deus que se
chama Yahvé. Tendo reconhecido que a fé cristã se dirige
a todos os povos e que o Deus que ela prega é o Deus do
mundo inteiro, nós não devemos nos esquecer que o
ponto de partida dessa mensagem universal, englobando
todos os homens, é uma ação particular de Deus, ação in-

I I
o Salvador e o Servo de Deus - 105

sólita e que nos parece terrivelmente arbitrária pela qual


ele se torna o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. De sorte
que a pedra de toque de toda ação de Deus entre os ho-
mens deve ser sempre de novo esta ação particular do
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. O povo de Israel, tal
como aparece no Antigo Testamento, o chamado povo
eleito, posto à parte, com todos os seus enganos e todas as
suas fraquezas, objeto incessante do amor e da misericór-
dia de Deus, mas também dos seus julgamentos mais ra-
dicais, é a figura histórica da livre graça de Deus para
todos nós. Mas não se trata somente de um fato histórico:
a livre graça de Deus brilhando sobre Israel, sobre os ju-
deus, não é uma coisa que os cristãos de hoje, oriundos
do paganismo, possam considerar com um certo desliga-
mento sob o pretexto de que ela não lhes diz respeito. De
fato, nós não estamos "livres" da história de Israel! Um
cristão que dissociasse completamente a Igreja da Sina-
goga mostraria com isso que ele não compreendeu nem
uma, nem outra. Por toda parte onde se pretendeu erguer
um muro entre a Igreja e o povo judeu, a comunidade
cristã se viu diretamente ameaçada. Pois essa é toda a rea-
lidade da revelação divina que assim se renega implicita-
mente; desde então, por pouco que tal filosofia ou tal
ideologia venha a se impor, assiste-se ao advento de um
cristianismo do tipo helênico, germânico ou outro. (Re-
conhecemos, a esse respeito, que existe desde há muito
tempo um "cristianismo helvético" que não vale nada
mais que seu equivalente germânico!).
Vocês conhecem o episódio que exprime mais per-
feitamente o significado do povo judeu? Frederico II um
dia pediu a seu medico pessoal, o suíço Zimmermann,
originário de Brugg, na Argóvia: "Diga-me, Zimmer-
mann, você pode me dar uma só prova a favor da existên-
cia de Deus?" E o outro responde: "Senhor, os Judeus!"
106 - Esboço de llma Dogm,üica

Ele quis dizer com isso: caso se queira uma prova absolu-
tamente visível, evidente para todos e irrefutável da exis-
tência de Deus, é para os judeus que se deve olhar. Pois, é
um fato, os Judeus existem ainda hoje. Às centenas, as pe-
quenas nações do Oriente Próximo desapareceram da
cena histórica, todas as antigas tribos de origem semítica
se dispersaram ou desapareceram na massa dos outros
povos; só, dentre todos, esse pequeno povo subsistiu. E
quando se fala de semitismo ou de anti-semitismo, é
nesse pequeno povo que se pensa, miraculosamente pre-
servado, com as particularidades físicas e intelectuais que
o fazem reconhecido e nas quais se baseia para afirmar de
qualquer um: "É um não-ariano, um meio, um quarto de
não-ariano"! Sim, caso se deseje absolutamente uma
prova da existência de Deus, não se deve buscar mais
longe! Pois, na pessoa de um judeu é um testemunho que
nós encontramos, o testemunho da aliança de Deus com
Abraão, Isaac e Jacó e, pois, com nós todos! Mesmo quem
não compreenda a Bíblia pode aqui literalmente ver uma
lembrança.
E não vêem vocês no que reside todo o verdadeiro
alcance teológico, toda a significação intelectual e espiri-
tual disso que foi o movimento do Nacional-socialismo?
Não é no fato de que ele foi, desde o começo, violenta-
mente anti-semita, não é precisamente dentro da nitidez
demoníaca com a qual afirmou sem cessar: o Judeu, eis o
inimigo? Sim, sem nenhuma dúvida, o inimigo de uma tal
empresa não poderia ser outro que não o judeu. Pois é no
seio do povo judeu que se conservou, viva e real, até este
dia, a revelação de Deus no que ele tem de único e escan-
daloso para a razão.
Foi Jesus, o Cristo, o Salvador e o Servo de Deus,
quem cumpriu e tornou manifesta a missão do povo de
Israel, foi ele quem realizou a aliança selada entre Deus e

I I
o Salvador e o Servo de Deus - 107

Abraão. Assim, quando a Igreja declara sua fé nele, reco-


nhece-o como o Salvador e o Servo de Deus para nós e
para todos os homens, incluída a imensa multidão dos
que não têm nenhum vínculo direto com o povo de Israel,
ela o faz não apesar do fato de que Jesus foi um judeu
(como se existisse nisso alguma coisa de infamante!).
Nem se poderia também dizer que, depois de tudo, se Je-
sus Cristo é judeu, é por um simples acaso histórico e que
ele poderia muito bem ter nascido de um outro povo. Isso
seria um erro grave. A rigor devemos ao contrário afir-
mar que esse Jesus Cristo que nós, cristãos, oriundos do
paganismo, chamamos nosso Salvador e em quem sauda-
mos a realização da obra de Deus para nós, foi necessaria-
mente um Judeu. É impossível passar ao largo desse fato,
inseparável da manifestação concreta de Deus, de sua re-
velação. Jesus Cristo é, com efeito, ao mesmo tempo a re-
alização da aliança de Deus com Abraão, Isaac e Jacó e a
realidade desta aliança - e não o inventor de uma idéia a
respeito desta ou daquela forma de aliança - cuja realiza-
ção e realidade é a razão de ser e o objetivo de toda a cria-
ção, vale dizer, de tudo o que existe em distinção a Deus.
O problema de Israel é, sendo inseparável do problema de
Cristo, o problema da existência. O homem que tem ver-
gonha de Israel tem vergonha de Jesus Cristo e, por isto
mesmo, de sua própria existência.
Eu me permiti sublinhar a existência dessa questão
em razão mesmo do caráter fundamentalmente anti-se-
mita do Nacional-socialismo. Não é por acaso, com
efeito, que aqui mesmo na Alemanha, nós pudemos escu-
tar o famoso slogan: Judá, eis o inimigo. É possível, bem
entendido, lançar semelhante slogan, certas circunstân-
cias podem mesmo tornar a coisa necessária, mas que se
preste atenção então ao que se faz! Atacar Judá é atacar
em sua base a própria obra de Deus e sua revelação sem
108 - Esboço de lima Dogmática

as quais muito simplesmente não existe nada. Sim, é a


própria obra de Deus e toda sua revelação que foram pos-
tas em questão pelo que se passou na Alemanha sob o
reino do Nacional-socialismo e de seu anti-semitismo ra-
dical; e isso não somente no plano das idéias e das teorias,
mas dentro da própria vida, no plano dos acontecimentos
quotidianos. Certamente pode-se afirmar que um tal
conflito fosse inevitável, mas então que não se fique atur-
dido pela maneira como ele terminou. Um povo - e esse
era o outro aspecto do Nacional-socialismo - que se de-
clara eleito e se apresenta pelo critério absoluto de toda
verdade, acaba por se chocar, cedo ou tarde, com o verda-
deiro povo eleito. Já essa simples pretensão constituiu, an-
tes mesmo que fosse questão de anti-semitismo, uma
negação radical de Israel, vale dizer, de Jesus Cristo e, fi-
nalmente, do próprio Deus. O anti-semitismo é uma
forma de ateísmo ao lado do qual o ateísmo corrente tal
como se encontra, por exemplo, na Rússia, é uma coisa
bem anódina. Pois o ateísmo na base do anti-semitismo
toca em realidades, quer seus iniciadores e seus represen-
tantes estejam conscientes disto ou não. Logo ele se vê em
conflito com o próprio Cristo. Teologicamente falando -
não faço política aqui - semelhante empresa devia neces-
sariamente ecoar e se desmoronar. Há aqui uma rocha
contra a qual vêm se quebrar todos os assaltos do homem,
por mais potentes que eles sejam. Pois a missão do povo
de Israel, sua vocação profética, sacerdotal e real é idên-
tica à vontade de Deus e à sua obra de salvação tais como
se acham cumpridas e manifestadas em Jesus Cristo.
Mas qual é, então, justamente essa missão de Israel
que pressupõe toda a Bíblia quando ela fala da escolha
desse povo, de seu caráter único, de sua existência à
parte? Ela consiste em representar Deus no seio da huma-
nidade. Israel só existe na medida em que completa essa

I I
o Salvador e o Servo de Deus - 109

missão temível: ser uma comunidade, um povo, uma hu-


manidade a serviço de Deus no mundo. Não é, pois, para
sua própria glória nem para satisfazer seu orgulho nacio-
nal que esse povo foi posto à parte, mas sim para os ou-
tros povos, para ser seu servo. Ele é o mandatário de Deus
sobre a terra. Está encarregado de anunciar a sua palavra:
essa é a sua missão profética. Ao mesmo tempo ele deve
testemunhar por toda a sua existência que Deus não se li-
mita a falar, mas que intervém ele mesmo e se sacrifica:
essa é a sua missão sacerdotal. Enfim, através de sua im-
potência política, precisamente, ele deve atestar entre os
povos a soberania de Deus sobre todos os homens: essa é
sua missão real. A humanidade necessita desse triplo tes-
temunho. É essa missão particular de Israel, sob seus três
aspectos, que o Antigo Testamento quer colocar sob nos-
sos olhos quando celebra a fidelidade de Deus a esse pe-
queno povo cuja existência está constantemente
salvaguardada. Sua missão profética aparece mais parti-
cularmente através de certos personagens cujo protótipo,
depois de Abraão, é Moisés, o fundador da unidade israe-
lita, ao qual sucedem essas figuras tão espantosamente di-
versas que são os profetas. Mas, ao mesmo tempo, através
da existência do Tabernáculo, do Templo e dos sacrifí-
cios, pode-se ver se definindo o segundo aspecto desse
testemunho: o aspecto sacerdotal. É durante o reinado de
Davi que aparece de uma maneira exemplar a missão de
Israel: ser o representante da soberania de Deus sobre a
terra. Contudo - e isto nos concerne diretamente - é fi-
nalmente no homem, Jesus de Nazaré, oriundo de Israel,
indissoluvelmente ligado a Israel, que se cumpre em todo
o seu rigor a missão confiada a esse povo.
A missão de Israel deve ser considerada como ple-
namente revelada e cumprida em Jesus Cristo. É porque,
ao longo de toda história desse povo, ela permaneceu, de
1 1() - Esboço de LIma Dogm,ítica

início, oculta e sem efeito. Quando se deseja ler atenta-


mente o Antigo Testamento, se percebe de imediato e
quase a cada página, que esse livro não se preocupa nem
um pouco em exaltar Israel como "raça" ou nação. Ao
contrário, a imagem que ele dá do homem israelita é ex-
traordinariamente pouco edificante: é a de um ser que se
opõe constantemente à escolha e à vocação da qual é ob-
jeto, que se mostra indigno de sua missão e que, precisa-
mente porque recusa a graça que lhe é feita, se vê sempre
sob os golpes do julgamento de Deus. História medíocre,
essa do povo de Israel, que caminha de catástrofe em ca-
tástrofe, por causa de suas repetidas infidelidades. A infi-
delidade só pode significar a infelicidade e a ruína,
conforme o anuncia ou confirma a pregação dos profetas.
E qual é o resultado dessa história lamentável? A profecia
cessa e não resta a esse povo mais que uma lei escrita,
marcada pela esterilidade. O templo de Salomão, que
simbolizava a esperança de Israel e sua missão sacerdotal,
não é mais que ruína e cinzas. E o que ocorreu com a
reino de Davi? Quanto pesar para todos os israelitas pen-
sar em tudo o que eles perderam sob os golpes do julga-
mento de Deus, cujo amor foi sempre tão mal-
recompensado. E quando enfim aparece o Messias que
eles esperaram durante tão longo tempo, eles o crucifi-
cam, confirmando por esse ato supremo o que tinha sido
sua atitude no curso de toda a sua história. Eles vêem nele
um blasfemador, eles o entregam aos pagãos e a Pilatos,
para que ele seja pendurado no madeiro. Eis Israel, eis o
povo eleito, eis o que ele faz da sua escolha, da sua mis-
são: ele se julga e se condena a si próprio. O anti-semi-
tismo vem tarde demais! A sentença sobre Israel já está
pronunciada e comparados a essa sentença, todos os ou-
tros julgamentos conduzidos sobre esse povo são insigni-
ficantes. Daí se segue que a missão desse povo tenha se
o Salvador c o Servo de Deus - 111

tornado caduca? Não, pois o Antigo Testamento não se


cansa de afirmar: a escolha de Deus é coisa séria, ela per-
manece eternamente válida. O homem, tal como Israel
no-lo mostra, é e permanece, a despeito de tudo, o eleito
de Senhor, seu mandatário no mundo. A fidelidade de
Deus triunfa sobre a infidelidade. E é assim que em tudo
sendo uma demonstração viva da indignidade do ho-
mem, Israel torna-se ao mesmo tempo o sinal da livre
graça de Deus, a qual, sem querer levar em consideração
nossa atitude nos dá o benefício de um prodigioso "ape-
sar de tudo". O homem não é mais que objeto da miseri-
córdia divina e desde que ele queira ser mais do que isso,
deve necessariamente protestar contra a existência do
povo de Israel. Israel depende totalmente e exclusiva-
mente de Deus. Está para sempre reduzido a recorrer a
ele somente. Leiam os Salmos: "Tu sozinho ..." O homem
não pode mais que escutar Deus que lhe fala e cuja sobe-
rania domina-o constantemente, quaisquer que sejam
suas tentativas para lhe escapar. E é quando a missão de
Israel se cumpre com todo o seu rigor, isto é, por ocasião
da crucificação de Jesus de Nazaré, que se pode compre-
ender, enfim, o mistério desse povo. Pois quem é, então,
esse Jesus crucificado senão, ainda uma vez, esse mesmo
Israel pecador e ímpio, Israel, o blasfemador? Mas, dora-
vante, ele se chama Jesus de Nazaré. Se considerarmos
agora a história desses dois milênios onde o judeu apa-
rece sem cessar como um milagre e um absurdo, como
um obstáculo que desencadeia o ódio dos povos - e cada
um poderia colocar aqui seu pequeno refrão anti-semita!
-, o que pode ser essa história estranha senão a confirma-
ção da rejeição de Israel, tal como Deus a manifesta no
Gólgota, mas também da escolha desse povo ao qual Deus
permanece fiel, através de todas as vicissitudes? Podemos
afirmar isso porque essa fidelidade de Deus triunfou so-
112 - Esboço de lima DognLítica

bre O Calvário. Onde Deus esteve mais perto de seu povo


senão no Gólgota? Onde esteve ele, através desse povo,
mais fortemente do lado de todos os homens, de todos os
povos? Vocês pensam que estaria em nosso poder excluir
os judeus da fidelidade de Deus? Vocês acreditam verda-
deiramente que poderíamos privá-los dela? A fidelidade
de Deus com relação a Israel é precisamente a garantia de
sua fidelidade com relação a nós, com relação a todos os
homens.
Mas é preciso virar a página. Jesus Cristo é o coroa-
mento e a realização de Israel. Se voltarmos ao Antigo
Testamento, não deixamos de encontrar nele igualmente,
por toda a sua extensão, homens que, apesar de sua re-
volta e de sua perdição, sabem, às vezes - coisa impressio-
nante -, reconhecer sua escolha. Mas essa espécie de eco
fiel, de resposta da piedade, longe de provir do próprio Is-
rael, é um fruto renovado da graça de Deus. Com efeito, a
graça, desde que está aqui, obriga os homens a louvar a
Deus contra sua vontade e a fazê-los entender a resposta
que não pode deixar de suscitar neles, como um simples
reflexo, a luz que os visitou. Há uma graça dentro do jul-
gamento. O Antigo Testamento a testemunha não como
uma qualidade do homem israelita, mas como um mila-
gre de Deus. É apesar das virtudes e dos pecados desse
povo que sua história contém sempre os testemunhos que
se abrem por estas palavras: "Assim fala o Eterno ..." (Is
43.1). Não são mais que respostas, ecos do milagre da fi-
delidade de Deus. O Antigo Testamento fala de um "re-
manescente". O que distingue esse remanescente não é a
virtude ou a piedade, mas o fato de ter sido chamado. Ele
contém os pecadores mantidos no freio pela graça, pecca-
tores justi.
A revelação atinge seu ponto culminante na existên-
cia de Jesus de Nazaré. Jesus é oriundo de Israel, nascido
o Salvador e o Servo de Deus - 113

da Virgem Maria e, contudo, ele vem de outra parte, do


alto; como tal, ele revela e cumpre a aliança. Israel não
um doente que se recupera, é aquele que ressuscita dos
mortos. Desde que Jesus aparece, é o julgamento de Deus
que brilha; este julgamento vai ao encontro de todos
aqueles que o homem pronuncia contra si mesmo, ele
lhes retira sua última aparência de realidade. A fidelidade
de Deus triunfa no oceano da miséria e pecado humanos.
Deus tem misericórdia do homem. Este se liga a ele no
mais íntimo de seu ser. Ele jamais deixa de atrair com
cordas de amor povo infiel. E eis que este homem de Is-
rael, não por sua natureza, mas por um milagre da graça,
de novo se ergue em Israel, triunfa da morte é elevado à
direita de Deus!
Israel é, no fundo, a projeção da livre graça de Deus.
Ele forma o quadro do acontecimento decisivo onde,
dentro da sua relação com o homem, Deus se torna visí-
vel: a ressurreição de Jesus Cristo. O homem aparece dora-
vante dentro da luz da glória de Deus. Tal é a graça, o
fruto da condescendência de Deus para com o homem. E
o lugar desse evento é o homem Jesus, oriundo de Israel.
E a conseqüência desse evento que ilustra uma vez mais o
caráter positivo da graça, é essa extensão prodigiosa da
aliança de Abraão a todos os outros homens.
"Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda
criatura" (Mc 16.15). Tal é a graça: sua natureza é se es-
tender, ir do particular ao geral. Mas, porque a salvação
vem dos judeus, esse povo está não somente sob o golpe
do julgamento, mas também sob o benefício da graça. A
graça que repousa sobre Israel, enquanto povo eleito e
chamado, é visível até os nossos dias na Igreja, que é es-
sencialmente composta por judeus e pagãos. Na epístola
aos Romanos, capítulos 9-11, o apóstolo Paulo não se
cansa de dizer que não há uma Igreja de judeus e uma
114 - Esboço de uma Dogmática

Igreja de pagãos, mas que a Igreja é a comunidade única


de homens oriundos de Israel e de pagãos. Essa dupla ca-
racterística é constitutiva da Igreja e longe de sentir ver-
gonha, ela deve considerar como um título de glória o
fato de contar em seu seio com descendentes autênticos
de Abraão. A existência de cristãos de origem judaica é a
marca visível da unidade do povo de Deus que, visto de
um lado, se chama Israel, e, de outro, Igreja. E se existe
ainda, ao lado da Igreja uma Sinagoga que tira sua exis-
tência da rejeição de Jesus Cristo e da vã ambição de con-
tinuar a história de Israel, de fato, já há muito terminada,
não podemos ver aí mais do que um tipo da Igreja, como
sua sombra através dos séculos; como tal, ela continua a
participar, quer queira quer não, do testemunho dado a
Deus e à sua revelação. A videira não está morta. O que
conta, é que Deus a plantou, é o que ele fez nela e o que
ele lhe deu; e tudo isso tornou-se manifesto em Jesus
Cristo, o homem oriundo de Israel.
o Filho Único de Deus

A revelação de Delis /lO !Il)rflL:11I }t:sus Cristo é compulsória


e exclusiva e se traduz por uma ação plenamente
salutar, porque Jesus Cristo não é um ser
diferente de Deus, mas o Filho
único do Pai, isto é,
o próprio Deus vivo, sua graça,
sua verdade e sua onipotência em pessoa;
como tal, é o único verdadeiro Mediador entre Deus
e todos os homens.

Eis-nos chegados à questão relativa à verdadeira di-


vindade de Jesus Cristo. De fato, no ponto em que chega-
mos, a resposta a essa questão não deixa mais dúvida.
Tentemos apenas perceber em que termos essa reposta se
impõe a nós.
Ao longo de nossa exposição, temos constantemente
topado com o conceito de revelação ou da Palavra de
Deus. Trata-se do ato pelo qual Deus se faz conhecer, da
mensagem que ele mesmo nos dá. No mundo existem nu-
merosas revelações, oráculos e mensagens se arrogando a
qualidade de "Palavras de Deus". Trata-se, pois, de saber -
e nós iremos tomar posição quanto a isso - em que me-
dida isso que nós mesmos entendemos aqui por revelação
11 (, - Esboço de uma Dogm,írica

de Deus se impõe e deve ser aceito como tal. É certo que a


história da humanidade no seu conjunto como a dos indi-
víduos particulares é fértil em eventos de toda natureza,
capazes de nos fazer sentir "uma presença misteriosa" que
se impõe a nós de maneira irresistivel, nos subjuga e não
nos deixa mais. Nós poderíamos facilmente ilustrar a
coisa. A vida humana é como que pontuada de "revela-
ções", quer se trate de amor, quer de potência, quer de be-
leza, etc. Porque seria necessário, então, que isso que aqui
denominamos revelação de Deus, ou seja, o evento coin-
cidente com a vinda de Jesus Cristo, fosse uma revelação
exclusiva? A essa questão (sobre o "absolutismo" do cris-
tianismo, veja Troeltsch), deve-se responder: de fato, esta-
mos cercados por muitas outras "revelações" mais ou
menos compulsórias ou legítimas. Mas do ponto de vista
da fé cristã nós temos o direito de afirmar que lhes falta
uma autoridade última, absoluta, indiscutível. Pode-se
percorrer a surpreendente diversidade, deixando-se vez
por outra iluminar, convencer ou subjugar; não é menos
verdade que nenhuma delas possui esse supremo poder
de impedir que aquele que elas capturaram por um ins-
talHe, se desprenda em seguida, tal como um homem que,
depois de ter visto seu reflexo num espelho, continue seu
caminho e imediatamente esqueça o que viu. É evidente
que um elemento capital falta a esse tipo de revelações: a
força compulsória. Não que elas sejam impotentes, insig-
nificantes, ineficazes, mas, e é aqui que a fé cristã nos
força a reconhecer, elas são, enfim, apenas revelações da
grandeza, da potência, da bondade e da beleza tal como
essas existem nesta terra criada por Deus. A terra está
plena de glória e magnificência. Ela não seria nem a cria-
çâo de Deus, nem o quadro que ele fixou para nossa vida,
se ela não estivesse repleta de revelações. Os filósofos, os
poetas, os músicos e os profetas de todos os tempos o sa-
o Filho Único de Delis - 117

bem. Portanto, falta a essas revelações, próprias da terra, a


autoridade capaz de prender definitivamente o homem.
O homem pode atravessar o mundo inteiro sem se sentir
preso a nada. Mas, poderiam se tratar de revelações celes-
tes, quer dizer, revelações do mundo invisível e incompre-
ensível que nos rodeia por todos os lados e exerce sobre
nós uma pressão contínua. Quantos motivos de espanto,
de encantamento, existem nesse imenso domínio e nos
escapam! O que seria o homem sem essa presença cons-
tante do mundo celeste acima de sua cabeça? Contudo, as
revelações que se pode obter ali, pertencem também à or-
dem da criação: elas não possuem a autoridade derra-
deira. Falta-lhes algo. Todo o domínio celeste permanece,
como o terrestre, submisso à contingência. Ele se apre-
senta para nós como embaixador extraordinariamente
brilhante de um grande monarca; contudo, nós sabemos
que ele não é esse monarca, mas somente o seu mensa-
geiro. É assim com todas as potências do céu e da terra,
com todas as suas "revelações". Sabemos que existe ainda
"alguma coisa" acima delas. Por mais formidáveis que elas
pudessem ser, mesmo que elas alcançassem a enverga-
dura da bomba atômica, elas não seriam capazes de nos
prender em última instância, nem nos subjugar definiti-
vamente. Si fractus illabitur orbis, impavidum ferient rui-
nae! (Horácio). A humanidade não demonstrou, mais de
uma vez, através desses últimos anos de guerra, que ela
permanece invulnerável aos piores acontecimentos? Na
verdade, fora do próprio Senhor, não há senhor capaz de
partir o coração do homem. Impassível, a humanidade
atravessa todas as ruínas e pode resistir a todas as potên-
cias deste mundo.
Quando, pois, a Igreja cristã fala de revelação, não é
dessas manifestações terrestres ou celestes, por mais altas
que sejam elas, que ele quer falar e sim da potência que se
118 - Esboço de uma [)ogmârica

encontra acima de todas as potências, quaisquer que se-


jam; numa palavra, trata-se da revelação do próprio Deus
e não da revelação de um divino cá de baixo ou lá de
cima. Se, pois, a verdade que é o objeto desta conversação,
a saber, a revelação de Deus em Jesus Cristo, tem um ca-
ráter compulsório e exclusivo, se ela é verdadeira e total-
mente salutar, é porque ela não destaca uma realidade
diferente e separada de Deus, celeste ou terrestre, mas sim
o ser íntimo de Deus, a própria pessoa de Deus Altíssimo,
criador do céu e da terra do qual nos fala o primeiro ar-
tigo do Símbolo. Nas inumeráveis passagens onde Jesus
de Nazaré (que a Igreja primitiva reconheceu e declarou
como sendo o Cristo) é chamado o Senhor (Kyrios), o
Novo Testamento não faz outra coisa senão retomar o
termo "Yahvé" pelo qual o Antigo Testamento designa o
próprio Deus. Esse Jesus de Nazaré que atravessa das ci-
dades e vilas da Galiléia, e sobe a Jerusalém, onde foi acu-
sado, condenado e crucificado, é o Eterno (Yahvé) de
quem fala o Antigo Testamento, é o Criador, é o próprio
Deus. Um homem como todos nós, pois, situado no
tempo e no espaço, possui todos os atributos de Deus,
sem deixar, contudo, de ser homem, isto é, plenamente
criatura. O próprio Criador se torna, sem enfraquecer em
nada sua divindade, não um semi-deus, não um anjo, mas
muito simplesmente, muito realmente, um homem. Eis o
que quer dizer a Confissão de fé quando afirma que Jesus
Cristo é o Filho único de Deus. Ele é o Filho de Deus, isto
é, Deus no ato soberano pelo qual ele dispõe de si mesmo.
Esse Deus que dispõe assim de seu ser, esse Filho único
de Deus, é esse homem particular, Jesus de Nazaré. Porque
Deus não é somente o Pai, mas também o Filho, porque
seu ser íntimo é o lugar desse movimento continuo (ele é
Deus, mas, dentro do próprio ato de seu ser, ele é o Pai e o
Filho), ele tem a faculdade de ser, ao mesmo tempo, o
o filho Único de Deus - 119

Criador e a criatura, como é, ao mesmo tempo, o Pai e o


Filho. Porque essa ação, essa revelação de Deus é a obra
do Filho eterno de Deus ela ocupa, em completa legitimi-
dade, um lugar absolutamente único em relação ao con-
junto da criação. Sim, porque aqui, o próprio Deus
intervém, porque esta criatura é seu Filho, o aconteci-
mento que se efetiva no homem Jesus de Nazaré possui
um caráter compulsório, exclusivo e plenamente salutar.
Ele se distingue de todos os outros acontecimentos que se
produzem ao nosso redor e que são também, bem enten-
dido, um efeito da vontade e do desejo de Deus. A revela-
ção e a ação de Deus em Jesus Cristo não são um efeito
qualquer da sua vontade, mas o próprio Deus intervindo
na criação.
No ponto em que chegamos, me parece bastante in-
dicado dar a palavra à Igreja do século IV que, no con-
texto da controvérsia relativa à divindade de Cristo, se
exprime assim: "Cremos num só Senhor, Jesus Cristo, Fi-
lho único de Deus, nascido do Pai antes de todos os sécu-
los, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,
gerado e não criado, de uma mesma substância que o Pai
e por quem tudo foi feito, que, por nós, homens, e por
nossa salvação, desceu dos céus ..." (Credo Niceno, 381
d.C). Não faltaram vitupérios contra essa fórmula ao
longo dos séculos e vocês encontrarão, certamente, du-
rante seus estudos, numerosos sábios e mesmo professo-
res que não compreendem e deploram profundamente
que a Igreja tenha podido chegar aqui. Eu gostaria que
agora vocês se lembrassem um pouco dessas lições e to-
massem um tempo para refletir um instante. Pois, todos
esses ataques contra o que se chama "ortodoxià' fazem re-
a Imente pensar nos ".
UlVOS d os Io b os,,,13 aos quaIS,
. mesmo

1:3. No texto alemão: Wolfsgeheul. (N. do T.).


120 - Esboço de uma Dogm,itica

que se lhes atribua um mínimo de cultura, devemos recu-


sar juntar-nos. Sim, há algo de bárbaro nos insultos pro-
feridos contra os Pais da Igreja antiga. Parece-me que,
mesmo sem ser cristão, deve-se ter um pouco de respeito
para reconhecer a envergadura das tentativas teológicas
deles, em particular no problema que nos ocupa. Houve a
presunção de que as fórmulas do Símbolo de Nicéia não
fossem bíblicas. Mas há muitas verdades, reconhecida-
mente necessárias e boas que não estão formuladas com
todas as letras na Bíblia. A Bíblia não é um livro de recei-
tas, é um documento único da revelação divina. É preciso
que a revelação nos fale de maneira que possamos com-
preendê-la. Em cada época, a Igreja viu-se na obrigação
de responder ao que lhe era dito na Bíblia. Ela viu-se
obrigada a fazê-lo, cada vez, com uma outra língua e com
outras palavras, diferentes daquelas da Escritura. O texto
de Nicéia é uma dessas respostas da Igreja que foram tes-
tadas em combate. Nesse caso, em particular, era absolu-
tamente necessário que fosse conduzido esse combate por
um iota 14 : Jesus Cristo era o próprio Deus ou um simples
herói celeste ou terrestre? Não se tratava de uma questão
qualquer, vê-se; mas nesse iota é o Evangelho como um
todo que estava em jogo. Ou bem seria com o próprio
Deus que nos relacionaríamos em Jesus Cristo, ou bem
com uma criatura. A história das religiões conhece à pro-
fusão seres divinos ou semi-divinos. Lutando até o san-
gue sobre o ponto que nos ocupa, a teologia antiga sabia,
pois, o que fazia.
Certamente esse combate não foi sempre tão edifi-
cante; ele se misturou bastante com o "humano". Mas será

1<1. N. do Ed.: É o nome da menor letra do alfabeto grego, usada aqui


para significar um detalhe que alguns poderiam considerar sem im-
portância (cf. uso semelhante por Jesus em Mt 5.18).
o Filho Único de Delis - 121

que esse lado desagradável merece tal interesse? Cada um


sabe que os próprios cristãos não tiveram nunca a preten-
são de ser e não são anjos. Não é lícito, quando uma ques-
tão essencial está em jogo, invocar, com um grande gesto
abençoado, a paz, a paz a qualquer preço; deve-se, ao
contrário, empenhar todas as forças em um combate que
deve ser mesmo levado até o fim, sem se considerar nin-
guém. Graças a Deus, os Pais do século IV por mais ab-
surdos, mais humanos, mais pedantes que possam nos
parecer hoje, não temeram conduzir um tal combate. To-
das as suas fórmulas queriam dizer uma só e a mesma
coisa: é que o Filho único nascido do Pai antes de todos
os séculos, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus, não é uma criatura, mas o próprio Deus, da mesma
substância (e não de substância semelhante) que o Pai,
Deus em pessoa. "Por quem tudo foi feito e quem por nós,
os homens ( ... ) desceu dos céus". Desceu a nós: eis Jesus
Cristo. E eis como a Igreja antiga o viu, eis como ele se
impôs a ela e o testemunho que ela deu a ele na sua Con-
fissão de fé, e que nos chama também a uma confissão se-
melhante. É ainda possível, quando se compreende isso,
deixar de aderir ao grande consensus da Igreja? Que in-
fantilidade permanecer em lamentações estéreis a propó-
sito da ortodoxia e da teologia gregas! Isso não tem
nenhuma ligação com a questão em si. E se as circunstân-
cias que cercaram a redação dos antigos símbolos cristãos
não foram sempre "edificantes", não será porque tudo o
que empreendemos nós, os homens, permaneça forçosa-
mente sujeito à caução, repleto de confusão e de insufici-
ência? Mas é muito importante passar por isso para
atingir um resultado mesmo que pouco claro e perti-
nente. Dei providentia et hominum confusione!
Muito simplesmente e muito praticamente, o con-
teúdo dos antigos símbolos deve nos permitir ver com
122 - Esboço de lima Dogm:ítica

clareza; ao confessar a sua fé no Filho de Deus sob a


forma que se conhece, os homens de Nicéia puseram o
dedo sobre o que distingue e distinguirá sempre a fé cristã
disso que se chama religião. Nós temos ligação com o
próprio Deus e não com quaisquer deuses. É próprio da fé
cristã nos fazer "participar da natureza divina" (2Pe 1.4).
Do que se trata, de fato? Do acontecimento pelo qual
Deus se aproximou de nós a tal ponto que, pela fé, nós
participamos de seu ser. Jesus Cristo é, pois, o Mediador
entre Deus e os homens. É dentro dessa perspectiva que
tudo deve ser interpretado: Deus se põe no nosso nível
para nos elevar ao dele. Que um tal milagre devesse se
produzir e se tenha efetivamente produzido, eis o que nos
faz medir nosso pecado e nossa miséria em toda a sua
verdadeira profundidade. É sobre esse milagre inaudito,
esse acontecimento que nos ultrapassa totalmente, que a
Igreja e toda a cristandade têm os olhos postos. Deus se
deu ele mesmo a nós. E é por isso que toda palavra, toda
proposição cristã tem algo de absoluto, o que não seria
possível às outras palavras humanas. A Igreja não tem
"opiniões", pontos de vista, convicções, ela não se deixa
levar por uma idéia. Ela crê e ela afirma sua fé, quer dizer,
ela fala e age a partir da mensagem fundada em Cristo
que ela recebe do próprio Deus. Daí o caráter exclusivO de
seu ensinamento, de suas consolações e de suas exorta-
ções das quais toda a força procede não dela mesma, mas
do acontecimento prodigioso pelo qual Deus quis ser
para nós, em Jesus Cristo, seu Filho único.
Nosso Senhor

A exislêllCÚZ do /wmern Jesus Cristo é, em virtude da sua


divindade, a decisão soberana sobre a existência de
todo homem. Ela está baseada no fato de que,
pela dispensação de Deus,
este Alguém representa tudo e,
portanto, tudo está ligado e subjugado a este
Alguém. Sua comunidade sabe disso.
E é isto que deve ser proclamado ao mundo.

Perguntei a mim mesmo se, ao invés destas senten-


ças, simplesmente não copio a explanação de Martinho
Lutero sobre o segundo artigo: "Creio que Jesus Cristo,
verdadeiro Deus nascido do Pai na eternidade, e também
verdadeiro homem nascido da Virgem Maria, é meu Se-
nhor...". Nestas palavras, Lutero expressou o conteúdo
completo do artigo segundo. Se olharmos para o texto,
talvez pareça, exegeticamente, um ato arbitrário, porém,
seguramente, um ato arbitrário de um gênio. Afinal, Lu-
tero, na verdade, não fez mais do que remontar ao mais
original e mais simples vocabulário do Credo, Kyrios Jesus
Christos, Jesus Cristo é o Senhor. Ele comprimiu e redu-
ziu a este denominador tudo o que está declarado no se-
gundo artigo. Na sua formulação a verdadeira Divindade
124 - Esboço de uma Dogmática

e a verdadeira humanidade se tornam o predicado deste


sujeito. A obra completa de Cristo é a obra completa do
Senhor. A declaração integral que este Senhor nos propõe
é de que sejamos sua possessão; "para que eu viva sob ele
no seu reino e o sirva", porque ele é meu Senhor, que "me
redimiu quando estava perdido e condenado, adquiriu-
me, livrou-me de todos os pecados, da morte e do poder
do mal". E a promessa cristã, na sua integralidade, está di-
recionada para "que eu o sirva em retidão eterna, inocên-
cia e glória", de acordo com sua glória. A integralidade se
torna uma analogia da exaltação de Cristo.
Não queria iniciar esta exposição desta parte do
Credo sem chamar sua atenção enfaticamente para o texto
de Lutero. Mas vamos tentar trazê-la para bem perto da
nossa própria linha de pensamento. O que se quer dizer
quando dizemos que Jesus Cristo é nosso Senhor? Cos-
tumo parafrasear, dizendo que a existência de Jesus
Cristo é a soberana decisão sobre a existência de todo ho-
mem. Uma soberana decisão foi tomada sobre nós, ho-
mens. Se estamos conscientes dela e lhe fazemos justiça,
isto é outra questão. Temos a declaração de que ela foi to-
mada. Esta decisão não tem nada que ver com um des-
tino, uma determinação neutra e objetiva do homem, que
poderia, de alguma forma, ser lida da natureza e história
do homem; porém esta decisão soberana sobre a existên-
cia de todo homem consiste na existência do homem Je-
sus Cristo. Porque ele é, foi e será, esta decisão soberana é
imposta sobre todo homem. Você se lembra que, no iní-
cio da nossa aula, enquanto era exposto o conceito de fé,
decidimos que a fé cristã deve ser vista absolutamente
como uma decisão do homem, que é tomada à vista de
uma decisão divina. Quando dizemos que Deus é nosso
Senhor e Mestre, como cristãos não estamos pensando, à
semelhança de todo misticismo, como algo divino e des-
Nosso Senhor - 125

conhecido e de certa forma indefinível e final, que paira


sobre nós como um poder e nos domina. Porém, estamos
pensando da figura concreta, o homem Jesus Cristo. Ele é
nosso Senhor. Uma vez que ele existe, Deus é nosso Se-
nhor. Precedendo toda existência humana, como um a
priori, assim é a existência de Jesus Cristo. É isto que a
Confissão de fé cristã nos diz. O que significa esta prece-
dência dele? Não deixe a idéia de uma precedência tem-
poral ser proeminente. Ela aconteceu, mas acabou, há
este grande histórico perfeito, no qual o senhorio foi esta-
belecido sobre nós, nos anos 1-30 na Palestina - porém,
não é este o caso. Quando a precedência temporal ad-
quire sua importância, é devido à existência deste homem
preceder nossa existência em virtude da sua incompará-
vel importância. Ele precede nossa existência em virtude
da sua autoridade sobre nossa existência, no poder da sua
divindade. Voltemos ao que dizíamos na última aula.
Agora podemos ver o que se queria dizer quando dizía-
mos que a existência deste homem é, em palavras simples,
a existência do próprio Deus. É nisto que constitui o valor
deste homem, que é o conteúdo da sua vida, que é seu po-
der sobre nós. Uma vez que Jesus Cristo é o único Filho
gerado por Deus, "de uma substância com o Pai", por-
tanto, também de sua natureza, seu ser humano, é um
acontecimento no qual a decisão soberana está consu-
mada. Sua humanidade é, na verdade, humanidade, a es-
sência de toda humanitas. Não como um conceito ou
idéia, mas como uma decisão, como história. Jesus Cristo
é o homem, e a medida, a determinação e limitação de
todo ser humano. Ele é a decisão quanto ao propósito e
objetivo de Deus, não somente para ele, mas para todo
homem. É neste sentido que a Confissão cristã chama Je-
sus Cristo "nosso Senhor".
126 - Esboço de uma Dogmárica

Esta soberania, decisão régia em Jesus Cristo, está


fundamentada sobre o fato de que pela disposição de
Deus este único homem representa todos. Está funda-
mentada, isto é, esta decisão soberana de Deus - ou seja,
o senhorio de Jesus Cristo - não é um ato cego de poder
em si mesmo voltado para nós, homens. Você se lembra
como falamos da onipotência de Deus e como sublinhei a
declaração de que "o poder em si mesmo é maligno; que o
poder pelo poder é o Diabo". O senhorio de Jesus Cristo
não é poder pelo poder. Quando a igreja cristã confessa
que "Creio que Jesus Cristo é o Senhor", portanto, não
está pensando numa lei cega pairando ameaçadoramente
sobre nós, não em um poder histórico, não em um des-
tino ao qual o homem está exposto indefeso, diante do
qual sua percepção final consistiria apenas em reco-
nhecê-lo como tal; mas ela está pensando no próprio se-
nhorio do seu Senhor. Seu senhorio não é apenas
potentia; ele é potestas. Ele se torna reconhecível para nós
como ordenança não apenas de uma vontade insondável,
mas como ordenança de sabedoria. Deus é justo e sabe o
que está fazendo, assim ele é nosso Senhor e quer ser co-
nhecido e reconhecido por nós como tal. Evidentemente,
esta base do senhorio de Cristo nos conduz ao mistério.
Eis algo objetivo, uma ordem que está acima de nós e se-
parada de nós, uma ordem à qual o homem deve sujeitar-
se, a qual deve reconhecer, a qual ele deve apenas ouvir e
obedecer. Como poderia ser de outra forma, uma vez que
o próprio senhorio de Cristo já foi fundado e consiste no
poder da sua Divindade? Onde Deus é rei, o homem só
pode prostrar-se e adorar. Mas adorar na presença da sa-
bedoria de Deus, da sua justiça e santidade, do mistério
da sua misericórdia. Esta é a reverência cristã diante de
Deus e o louvor do cristão para Deus, do serviço cristão e
Nosso Senhor - 127

obediência. A obediência está no ouvir e o ouvir significa


receber a palavra.
Gostaria de tentar e indicar esta base do senhorio de
Cristo resumidamente. A declaração de abertura diz que
esta decisão soberana está baseada no fato de que este
Unigênito da dispensação de Deus representa todos. O
mistério de Deus, e dessa forma, o de Jesus Cristo, é que
ele, o Unigênito, este homem, pelo seu ser Único - não
uma idéia, mas Único que é totalmente concreto neste
tempo e lugar, um homem que carregou um nome e vem
de um lugar, e que, como todos nós, tem um histórico de
vida no tempo - não apenas existe por si mesmo, mas é
Único para todos. Você pode tentar ler o Novo Testa-
mentú do ponto de vista deste "para nós". Pois a existência
inteira deste homem, que permanece no centro, é deter-
minado pelo fato de que ela é uma existência humana, re-
alizada e cumprida não apenas dentro do seu próprio
referencial e com seu próprio significado em si mesmo,
mas para todos os outros. Neste homem único Deus vê
todo homem, todos nós, como se através de um espelho.
Através deste meio, através deste Mediador somos conhe-
cidos e vistos por Deus. Desta forma, podemos e devería-
mos entender a nós mesmos como homens vistos por
Deus nele, neste homem, como homens feitos conhecidos
para ele. Ante seus olhos na eternidade Deus mantêm os
homens, cada homem, nele, neste Unigênito; e não ape-
nas diante dos seus olhos, mas amados e eleitos e chama-
dos e feitos sua possessão. Nele, desde a eternidade, ele se
amalgamou a si mesmo a cada homem, a todos os ho-
mens, ao longo de todo o espectro que abrange o ser cri-
ado como homem, através da miséria humana até a glória
prometida ao homem. Tudo que se refere a nós é decidido
nele, neste único homem. É à semelhança deste Único, à
semelhança de Deus, após a qual o homem foi criado ho-
128 - Esboço de uma DogmáricJ

mem. Este Único em sua humilhação carrega o pecado, a


perversidade, a estupidez, o sofrimento e a morte de to-
dos. A glória deste Único é a glória que foi intencionada
para todos nós. Para nós sua intenção é que podemos
servi-lo em eterna justiça, inocência e bem-aventurança,
uma vez que ele ressuscitou, vive e governa na eternidade.
Assim é a sabedoria da dispensação de Deus, esta coesão
de cada homem e todos os homens com o Único; esta é,
visto assim para falar de cima, a base do senhorio de
Cristo.
E agora a mesma coisa vista do lado do homem.
Uma vez que esta dispensação de Deus existe, uma vez
que iniciamos nesta coesão, uma vez que Jesus Cristo é o
único homem e permanece diante de Deus em nosso fa-
vor, e nós nele somos amados, sustentados, conduzidos e
gerados por Deus, somos propriedade de Jesus Cristo, por
obrigação estamos ligados nele, este Proprietário. Ob-
serve bem que esta nomeação de nós para ser sua propri-
edade, esta conexão de nós para ele não possui em
primeira instância algo como uma moral ou mesmo uma
qualidade religiosa, mas ela repousa sobre um estado de
obrigações, sobre uma ordem objetiva. O elemento moral
e religioso é a cura posterior. Evidentemente, o resultado
necessariamente também incluirá um elemento de mora-
lidade e religião. Porém, no primeiro caso o fato é sim-
plesmente que pertencemos a ele. Em virtude da
dispensação de Deus o homem é propriedade de Cristo,
não apesar de, mas na sua liberdade. Pois assim como o
homem conhece e vive sua liberdade, ele vive na liber-
dade que lhe é oferecida e criada para ele pelo fato de que
Cristo intercede por ele na presença de Deus. Esta é a
grande boa ação de Deus, anunciada nisto, que Jesus
Cristo é o Senhor. É a divindade desta boa ação, a divin-
dade da misericórdia eterna que, antes de existirmos ou
Nosso Senhor - 129

pensarmos nele, fomos buscados e achados nele. Nesta


misericórdia divina que também é para nós a base do se-
nhorio de Cristo e que nos libera de todos os outros se-
nhorios. É esta misericórdia divina que exclui o direito de
todos os outros senhores falarem e torna impossível esta-
belecer outra autoridade ao lado desta autoridade e outro
senhor ao lado deste Senhor, e ouvi-lo. É esta eterna mi-
sericórdia, na qual esta dispensação sobre nós está inclu-
ída, que torna impossível recorrer ao passado o Senhor
Jesus Cristo para outro senhor e contar mais uma vez
com o destino, história ou natureza, como se fossem estas
coisas que, na verdade, tivessem nos dominado. Uma vez
que vimos que a potestas de Cristo está baseada na mise-
ricórdia de Deus, bondade e amor, somente então aban-
donamos todas as reservas. Então a divisão entre a esfera
religiosa e outras esferas cessa. Cessamos de separar entre
corpo e alma, entre serviço de Deus e política. Todas estas
separações cessam, pois o homem é um, e como tal está
sujeito ao senhorio de Cristo.
A comunidade sabe que Jesus Cristo é nosso Se-
nhor, isto é conhecido na igreja. Mas a verdade "nosso Se-
nhor" não depende do nosso conhecimento ou
reconhecimento, ou da existência de uma congregação
onde ela é entendida e tem sua expressão; é porque Jesus
Cristo é nosso Senhor que ele pode ser conhecido e pro-
clamado como tal. Mas ninguém conhece como uma ob-
viedade que todos os homens têm seu Senhor nele. Este
conhecimento é uma questão da nossa eleição e chamado,
uma questão da comunidade reunida junto pela sua Pala-
vra, uma questão da Igreja.
Citei a exposição de Lutero do segundo artigo. Al-
guém poderia objetar esta exposição, onde Lutero faz do
"nosso" Senhor um "meu" Senhor. Evidentemente, não
me aventuraria a fazer disto uma acusação contra Lutero;
130 - Esboço de uma Dogm;írica

pois esta concentração de Lutero sobre a exposição indi-


vidual adquire uma urgência e um peso extraordinário.
"Meu Senhor!" - através desta confissão O todo alcança
uma realidade e existencialidade fantásticas. Mas não de-
vemos perder de vista o fato de que, em concordância
com a expressão aceita do Novo Testamento, a Confissão
diz, "nosso Senhor". Da mesma forma que na Oração do
Senhor, oramos no plural, não como uma multidão, mas
em companheirismo. A confissão "nosso Senhor" é a con-
fissão daqueles que são chamados em sua congregação
para serem irmãos e irmãs, com a comissão geral para en-
frentar o mundo. São aqueles que conhecem e confessam
Jesus Cristo como a pessoa que ele é. Eles o chamam
"nosso" Senhor. Mas uma vez que estamos cientes de que
existe tal lugar de conhecimento e confissão, devemos
olhar mais uma vez para fora, para a cena completa; e não
devemos considerar o "nosso Senhor" em qualquer sen-
tido limitado, como se a congregação dos cristãos tivesse
seu Senhor em Jesus Cristo, mas outras assembléias e co-
munidades tivessem outros senhores. O Novo Testa-
mento não deixa dúvidas para o fato de que existe apenas
um Senhor e este Senhor é o Senhor do mundo, Jesus
Cristo. É isto que a comunidade tem de pregar para o
mundo. A verdade e realidade da Igreja pertence ao ter-
ceiro artigo. Mas este tanto pode ser dito aqui, que a co-
munidade de Jesus Cristo não é a realidade que existe por
si mesma; ela existe porque tem uma comissão. O que ela
conhece ela tem de dizer ao mundo. "Deixe sua luz bri-
lhar diante dos homens" (Mt 5.16). Fazendo isto, sendo
como era desde o princípio, a única e viva advertência
contra o mundo, a proclamação da existência do Senhor,
dessa forma não levantando falsos reclamos para si
mesma, por sua fé ou seu conhecimento. Não, Jesus
Cristo é o Senhor.
Nosso Senhor - 131

Entretanto, aqui também o Credo de Nicéia tem


feito pouco progresso comparado com o Credo dos Após-
tolos - assim chamado, unicum dominum, o sole Senhor.
Expressar e proclamar isto é a comissão da Igreja. Entre
os cristãos e na congregação devemos considerar o que é
chamado o "mundo", como a priori nada mais do que o
domínio, do que aqueles homens, que devem ouvir isto
mesmo, e além disso, de nós. Tudo o mais que concebe-
mos que conhecemos sobre o mundo, todas as manifesta-
ções de incredulidade são proposições secundárias e não
nos preocupam fundamentalmente. O que interessa e nos
preocupa como cristãos não é que o mundo está onde nós
estamos, que ele fecha seu coração e cabeça à fé, mas sim-
plesmente isso, que estes homens são pessoas que devem
ouvir de nós, para quem nós podemos proclamar o Se-
nhor.
Neste ponto eu gostaria, a propósito, de responder a
pergunta que se me tem colocado várias vezes durante es-
tas semanas: "Você não está ciente de que há muitos dos
que estão sentados nesta classe que não são cristãos?"
Sempre sorrio e digo: "Isto não faz nenhuma diferença
para mim". Deveria ser completamente temeroso se a fé
dos cristãos objetivasse a separação e separasse uns dos
outros. Ela é, na verdade, o motivo mais forte para reunir
homens e ligá-los todos juntos. E o que os liga, simples-
mente e desafiadoramente, ao mesmo tempo, a comissão
que a comunidade tem para proclamar sua mensagem. Se
considerarmos a questão mais uma vez do ponto de vista
da comunidade, isto é, do ponto de vista daqueles que se-
riamente desejam ser cristãos - "Senhor, eu creio: ajuda-
me na minha descrença!" (Mc 9.24) - devemos lembrar
que tudo dependerá não de o cristão pintar para o não-
cristão em palavra e ação um quadro do Senhor ou uma
idéia de Cristo, mas sobre seu sucesso em, com suas pala-
132 - Esboço de uma Dogm,ítica

vras humanas e idéias, apontar o próprio Cristo. Pois esta


não é a concepção dele, não o dogma de Cristo que é o
Senhor verdadeiro, mas ele que é confirmado na palavra
dos Apóstolos. Diga-se a todos os que se consideram
crentes: Que nos seja concedida não fundamentar uma
imagem, quando falamos de Cristo, um ídolo cristão, mas
em toda nossa fraqueza apontar Aquele que é o Senhor e
assim, no poder da sua Divindade, a soberana decisão so-
bre a existência de todo homem.
o Mistério e o Milagre
do Natal

A verdade da concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo


e seu nascimento da Virgem Maria nos conduz
à verdadeira Encarnação do verdadeiro Deus,
realizada na sua manifestação
histórica, e lembra a forma
especial através da qual este início
do ato divino da graça e revelação, que
aconteceu em Jesus Cristo, foi distinguido de
outros acontecimentos humanos.

Chegamos agora a um dos pontos, e talvez, na ver-


dade, ao ponto, no qual sempre, e até mesmo em larga es-
cala na comunidade cristã, somos insultados. Talvez seja
a sua experiência também, uma vez que esteve pronto a
seguir a explanação até aqui, embora ocasionalmente
constrangido quanto a saber onde isto nos levará; você é
levado ao assunto repentinamente pelo que está para vir
agora - e que não é minha invenção, mas a Confissão da
Igreja! Não vamos ficar apreensivos, mas tendo cami-
nhado até aqui em paz relativa, queremos abordar esta se-
ção da mesma forma, pacificamente e objetivamente, a
seção "concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem
Maria". Aqui também nosso interesse deve ser simples-
134 - Esboço de uma [)ogm,írica

mente a verdade; mas também devemos nos aproximar


com muita reverência, para que as questões que nos dei-
xam apreensivos, como "devemos acreditar nisto?", não
seja a última, mas que talvez mesmo aqui possamos res-
ponder um "Sim" com muita alegria.
Temos de tratar com o início de uma série completa
de pronunciamentos sobre Jesus Cristo. O que estivemos
ouvindo até agora foi a descrição de um sujeito. Todavia,
agora ouvimos uma quantidade de definições - conce-
bido, nascido, padecido, crucificado, sepultado, desceu,
subiu novamente, assentou-se à direita de Deus, por esta
razão ele voltará... que descrevem uma ação ou um
evento. Estamos interessados com a história de uma vida,
começando com geração e nascimento como qualquer
vida humana; uma vida inteira notavelmente comprimida
em uma pequena palavra "padeceu", uma história de pai-
xão e, finalmente, a confirmação divina desta vida em sua
Ressurreição, sua Ascensão e ainda a conclusão formidá-
vel que, devido a tudo isso, ele voltará para julgar os vivos
e os mortos. Ele, que vive e age, é Jesus Cristo, o Filho de
Deus, nosso Senhor.
Se quisermos entender o significado de "concebido
pelo Espírito Santo e nascido da Virgem Maria", sobre-
tudo devemos tentar ver que estas duas declarações for-
midáveis asseguram que o Deus da livre graça tornou-se
homem, um homem real. A Palavra eterna se fez carne.
Este é o milagre da existência de Jesus Cristo, a vinda do
Deus dos altos céus até nós - o Espírito Santo e a Virgem
Maria. Este é o mistério da Natividade, da Encarnação.
Nesta parte, a Confissão da Igreja Católica faz o sinal da
cruz. E nos mais variados cenários, compositores têm re-
produzido este et incanatus est. Este milagre celebramos
anualmente, quando celebramos o Natal.
o Mistério c o Milagre do Natal - 135

Se este milagre devo compreender


Então permaneça reverente meu espírito

Tal in nuce é a revelação de Deus; podemos apenas


compreendê-la, somente ouvi-la como início de todas as
coisas.
Porém não há nenhuma dúvida aqui sobre a con-
cepção e o nascimento em geral, mas de uma concepção e
nascimentos específicos. Por que concebido pelo Espírito
Santo e porque nascido da Virgem Maria? Por que este
milagre especial que se pretende expresso na Encarnação?
Por que o milagre da Natividade anda lado a lado com o
mistério da Encarnação? Uma declaração no ética é colo-
cada, por assim dizer, ao lado de uma declaração ontoló-
gica. Se na Encarnação tratamos com o elemento em si,
aqui tratamos com o símbolo. Os dois não podem ser
confundidos. O elemento envolvido na Natividade é ver-
dadeiro por si mesmo. Contudo, ele é relembrado, ex-
posto no milagre do Natal. Porém, seria injusto concluir
que, embora "apenas" um símbolo esteja envolvido, isto
signifique que se possa subtraí-lo do mistério. Deixe-me
alertá-lo contra isto. É raro na vida ser capaz de separar
forma e conteúdo.
"Verdadeiro Deus e verdadeiro homem". Se conside-
rarmos em primeiro lugar esta verdade cristã básica à luz
de "concebido pelo Espírito Santo", a verdade evidente é
que o homem Jesus Cristo simplesmente tem sua origem
em Deus, isto é, ele deve sua origem na história ao fato de
que Deus em pessoa tornou-se homem. Isto significa que
Jesus Cristo é, na verdade, homem, verdadeiro homem,
mas ele não é apenas um homem, não somente um dom
extraordinário ou um homem especialmente orientado,
para não dizer um super-homem; mas, enquanto homem,
136 - Esboço de uma Dogm,üica

ele é o próprio Deus. Deus é um com ele. Sua existência


começa com a ação especial de Deus; como homem ele
está fundamentado em Deus, ele é verdadeiro Deus. O su-
jeito da história de Jesus Cristo é, portanto, o próprio
Deus, tão verdadeiro quanto é um homem que vive, sofre
e age. Tão seguramente quanto está envolvida nesta vida,
da mesma forma esta iniciativa humana tem seus funda-
mentos no fato de que nele e através dele Deus tomou a
iniciativa. Deste ponto de vista não podemos deixar de
dizer que a Encarnação de Jesus Cristo é análoga à cria-
ção. Mais uma vez Deus age como criador, mas agora não
como o Criador a partir do nada; pelo contrário, Deus
adentra a criação e cria juntamente com ela um novo co-
meço, um novo começo na história e, além do mais, na
história de Israel. Na continuidade da história humana
um ponto se torna visível no qual o Próprio Deus apressa-
se ao encontro da criatura e se torna um com ela. Deus se
fez homem. Desta forma esta história começa.
Agora, temos de virar a página e nos achegar à se-
gunda declaração expressa relacionada a isto, quando di-
zemos "nascido da Virgem Maria". O fato realçado é que
estamos na terra. Há uma criança humana, a Virgem Ma-
ria; assim como enviado por Deus, Jesus também veio
deste ser humano. Deus deu-se a si mesmo uma origem
humana terrena, este é o significado de "nascido da Vir-
gem Maria". Jesus Cristo não é "apenas" o verdadeiro
Deus; isto não seria encarnação verdadeira - nem é ele
um ser intermediário;. ele é um homem como todos nós,
um homem sem restrição. Ele não apenas se assemelha
conosco; ele é o mesmo que nós. Como Deus é o sujeito
na vida de Jesus Cristo, assim o homem é o sujeito nesta
história, porém, não no sentido de um sujeito sendo in-
fluenciado, mas de um homem que está na ação. O ho-
mem não se torna um marionete neste encontro com
o Mistério e o Milagre do Natal- 137

Deus, mas se há humanidade genuína, aqui está, onde o


próprio Deus se fez homem.
Isto configuraria o círculo que pode ser visto aqui;
isto é, a verdadeira divindade e verdadeira humanidade
em completa unidade. No Concílio de Calcedónia, em
451, a Igrej a tentou cercar esta unidade contra todos os
equívocos; contra a unificação monofisista, que resultou
do assim chamado docetismo, que estava fundamental-
mente desapercebido de qualquer humanidade verda-
deira em Cristo Deus se fez homem apenas
aparentemente - e contra a tentativa nestoriana de au-
mentar a distância entre Deus e homem, que queria sim-
plesmente separar, e segundo a qual a divindade de Cristo
pode ser considerada a todo instante como separada da
sua humanidade. Além disto, esta doutrina retoma um
erro mais antigo, aquele dos assim chamados ebionitas. A
partir destes ebionitas o caminho conduz aos arianos que
desejaram entender Cristo simplesmente como uma cria-
tura especialmente exaltada. O Concílio de Calcedónia
formulou a tese de que a unidade é "sem confusão, sem
mudança, sem divisão, sem separação". Talvez você esteja
inclinado a descrever isto como "teólogos abandonados"
ou como "escaramuças de clérigos". Todavia, em todas es-
tas disputas a preocupação nunca foi deixar o mistério de
lado, como se quiséssemos por esta fórmula resolver a
questão racionalmente; mas os primeiros esforços da
Igreja eram - e isto que a torna digna de nossa atenção -
conduzir os olhos dos cristãos de uma forma adequada a
este mistério. Todas as outras tentativas foram tentativas
para solucionar o mistério dentro de uma capacidade de
compreensão humana. O próprio Deus e o homem miste-
rioso, isto podia ser entendido; até mesmo a única coinci-
dência deste Deus e deste homem na forma de Jesus
poderia ser explicada. Mas estas teorias, contra as quais a
1.~8 - Esboço de lima Dogmitica

igreja primitiva se voltou, não atentam para o mistério.


Mas a ortodoxia primitiva estava interessada em unir ho-
mens sobre este centro, e ao homem que recusasse acredi-
tar deveria ser ignorado; mas nada deve ser diluído aqui;
este sal não deve perder seu sabor. Eis a razão da grande
aplicação de esforços pelos primeiros concílios e teólogos.
Há uma grosseria de nossa parte, nos dias de hoje, como
resultado de uma intelectualidade de alguma forma bár-
bara, dizer que eles foram "muito longe" naqueles dias, ao
invés de sermos gratos pelo trabalho fundamental que
então realizaram. Você não precisa, evidentemente, subir
ao púlpito e recitar esta fórmula; mas você deveria assu-
mir a questão como absolutamente fundamental. A cris-
tandade tem visto e estabelecido o que está envolvido no
milagre da Natividade, ou seja, a unia hypastatica, a uni-
dade genuína do verdadeiro Deus e do verdadeiro ho-
mem no único Jesus Cristo. E somos convidados a nos
agarrar a isto.
Certamente, todos vocês agora observam que, nes-
tas expressões "concebido pelo Espírito Santo" e "nascido
da Virgem Maria", algo especial ainda está sendo manifes-
tado. A declaração é de uma procriação e de um nasci-
mento raros. A isto dá-se o nome de nativitas Jesu Christi.
Um milagre leva ao mistério da verdadeira divindade e da
verdadeira humanidade, o milagre desta procriação e
deste nascimento.
O que se quer dizer com "concebido pelo Espírito
Santo?" Não significa que o Espírito Santo é suposta-
mente o pai de Jesus Cristo; em sentido restrito, apenas a
negação está declarada através dela, de que o homem Je-
sus Cristo não tem pai. Em sua procriação não acontece o
início da existência humana, mas sua humana existência
inicia na liberdade do próprio Deus, na liberdade na qual
o Pai e Filho são um na ligação do amor, no Espírito
o Mistério c o Milagre do Natal - 139

Santo. Assim, quando olhamos para o início da existência


de Jesus, na verdade estamos olhando para o profundo da
Divindade, na qual o Pai e Filho são um. Esta é a liber-
dade da vida mais íntima de Deus, e nesta liberdade a
existência deste homem começa em 1 a. C. Por este acon-
tecimento, pelo próprio Deus muito concretamente ini-
ciar neste ponto consigo mesmo, este homem que de si
mesmo não estava capacitado ou propenso, pode não
apenas proclamar a Palavra de Deus, mas por si mesmo
ser a Palavra de Deus. No meio da velha humanidade, a
nova se inicia. Este é o milagre do Natal, o milagre da
procriação de Jesus Cristo sem um pai. Isto não tem nada
que ver com os mitos narrados em diversos lugares na
história da religião, mitos de procriação de homens por
deuses. Não temos nada que ver com este tipo de procria-
ção. O próprio Deus assumiu-se como Criador e não
como um parceiro desta Virgem. A arte cristã de tempos
mais remotos tentou reproduzir este fato, isto é, de que
não havia nenhuma questão de um evento sexual. E tem
sido bem confirmado que esta procriação se concretizou
especialmente pelo ouvido de Maria, que ouviu a Palavra
de Deus.
"Nascido da Virgem Maria". Mais uma vez e agora
de um ponto de vista humano, o macho é excluído. O ma-
cho não teve nenhuma participação neste nascimento. O
que está envolvido aqui, se você preferir, é o ato divino de
julgamento. Para o que agora se inicia, o homem em nada
contribuiu através da sua ação e iniciativa. O homem não
está simplesmente excluído, pois a Virgem está presente.
Mas o macho, como agente específico da ação humana na
história, com sua responsabilidade no direcionamento da
espécie humana, deve agora retirar-se para segundo
plano, com a impotente figura de José. Esta é a resposta
cristã à questão da mulher: aqui, a mulher permanece ab-
140 - Esboço de uma Dogm,üica

solutamente em primeiro plano, além disso, virgo, a Vir-


gem Maria. Deus não escolheu o homem em seu orgulho
e em sua rebeldia, mas o homem em sua fraqueza e hu-
mildade, não o homem em seu papel histórico, mas o ho-
mem na fraqueza de sua natureza assim representada pela
mulher, a criatura humana que pode confrontar Deus
apenas em palavras, "Sou serva do Senhor; que aconteça
comigo conforme a tua palavra" (Lc 1.38). Esta é a coope-
ração humana nesta questão, isto e apenas isto! Não deve-
mos pensar no mérito da existência desta serva nem
tentar mais uma vez atribuir poder à criatura. Mas Deus
tem visto o homem em sua fraqueza e em sua humildade,
assim como Maria expressou o que somente a criação
pode expressar em seu encontro. Assim Maria o fez e as-
sim, portanto, a criatura diz "Sim" para Deus, como parte
da grande aceitação que chega ao homem da parte de
Deus.
o milagre do Natal é a forma atual do mistério da
união pessoal de Deus com o homem, a unia hypostatica.
Repetidas vezes a igreja cristã e sua teologia tem insistido
que não devemos postular que a realidade da Encarnação,
o mistério do Natal, tinha que, por absoluta necessidade,
tomar a forma deste milagre. A verdadeira Divindade e a
verdadeira humanidade de Jesus Cristo em sua unidade
não dependem do fato de Cristo ter sido concebido pelo
Espírito Santo e nascido da Virgem Maria. Tudo o que
podemos dizer é que foi do agrado de Deus deixar o mis-
tério real e tornar-se manifesto em sua forma. Nova-
mente, isto não pode significar que contra esta forma
fatual do milagre estamos como que livres para afirmá-lo
ou não, subtrair algo e dizer que temos ouvido, mas que
temos reservas, que esta questão pode estar em outra
forma para nós. Talvez entendamos melhor a relação da
questão e forma, que está presente aqui, dando uma
o Mistério e o Milagre do Natal- 141

olhada na história, familiar a todos, da cura do paralítico:


"Mas, para que vocês saibam que o Filho do homem tem
na terra autoridade para perdoar pecados... Levante-se,
pegue a sua maca e vá para casa" (Mc 2.10, 11). "Para que
vocês saibam..."; desta forma o milagre do nascimento
virginal deve ser também entendido. O que está em ques-
tão é o mistério da Encarnação como a forma visível do
milagre. Entenderíamos mal Marcos 2, se quisermos in-
terpretar em sua leitura que o milagre principal foi o per-
dão dos pecados e o milagre corporal apenas um
incidente. Uma coisa obviamente pertence necessaria-
mente à outra. Da mesma forma deveríamos dar um
alerta, também, contra considerar o milagre da nativitas à
parte, e aderir ao mistério como tal. Uma coisa deve ser
dita definitivamente, que, toda vez que as pessoas querem
fugir do milagre, uma teologia vem como ajuda, que ces-
sou de entender e também de honrar o mistério, e tem,
pelo contrário, se esforçado em exorcizar o mistério da
unidade de Deus e homem em Jesus Cristo, o mistério da
graça livre de Deus. Por outro lado, onde este mistério se
faz entendido e onde os homens evitam qualquer tenta-
tiva da teologia natural, uma vez que eles não têm neces-
sidade dela, o milagre chega para ser graciosamente e
alegremente reconhecido. Ele se torna, podemos dizer,
uma necessidade interna neste ponto.
Sofreu ...

A vida de Jesus Cristo não é um triunfo, mas uma humi-


lhação, não um sucesso, mas uma falha, não uma
alegria, mas sofrimento. Por esta mesma razão
ela revela a rebelião dos homens
contra Deus e a ira de Deus
contra o homem, que se segue
necessariamente; mas ela também
revela a misericórdia na qual Deus se
envolveu nos negócios próprios do homem
e conseqüentemente em sua humilhação, falha e sofri-
mento, para que, dessa forma, não
necessitassem ser mais da alçada do homem.

No Catecismo de Calvino podemos nesta passagem


ler a extraordinária conclusão que na Confissão a vida de
Jesus é ignorada até a Paixão, porque o que aconteceu
nesta vida até à Paixão não pertence à "substância da
nossa redenção". Tomo a liberdade de dizer que aqui Cal-
vino está errado. Como pode alguém dizer que o resto da
vida de Jesus não é substancialmente para nossa reden-
ção? Neste caso qual seria seu significado? Uma narrativa
meramente supérflua? Penso que está envolvido na vida
completa de Jesus algo que recebe seu início no artigo "ele
144 - Esboço de uma Dogmática

padeceu". Em Calvino temos um exemplo prazeroso ante


os nossos olhos, de alunos de um grande mestre sempre
vendo melhor do que ele; pois no Catecismo de Heidel-
berg, composto pelos discípulos de Calvino, Olevian e
Ursino, a Questão 37 pergunta: "O que tu entendes pela
pequena palavra 'sofrer'?" "Que ele durante todo o tempo
da sua vida na terra, mas especialmente ao fim disso, car-
regou em seu corpo e alma a ira de Deus contra o pecado
de toda a raça humana". A favor da visão de Calvino pode,
claro, ser aduzido que Paulo, e as epístolas do Novo Testa-
mento em geral, raramente referem-se a esse "todo o
tempo" da vida de Cristo, e que os apóstolos também, se-
gundo Atas, parecem ter mostrado consideravelmente
pouco interesse na questão. Para eles, aparentemente,
apenas uma coisa sobressaia, que, traído pelos judeus, ele
estava liberado para os gentios, foi crucificado e ressurgiu
da morte. Mas se os cristãos da igreja primitiva estavam
com seu olhar tão completamente concentrado no Cruci-
ficado e Ressurreto, isto não é para ser tomado como ex-
clusividade, mas de forma inclusiva. O fato de que Cristo
morreu e ressurgiu é uma redução da vida completa de Je-
sus; mas nisto devemos também ver seu desenvolvi-
mento. A vida completa de Jesus vem sob o título
"padeceu".

Este é um fato extremamente surpreendente, para o


qual não temos sido preparados diretamente pelo que
tem sido dito. Jesus Cristo, o Filho único de Deus, nosso
Senhor, concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem
Maria, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do ho-
mem - qual a relação destas coisas com o desdobramento
de toda a sua vida sob o signo de que ele "padeceu"? Podí-
amos esperar algo diferente, algo resplandecente, triun-
fante, bem sucedido, jubiloso. De qualquer forma, não
ouvimos uma palavra disso, mas, predominante na pleni-
Sofreu ... - 145

tude de sua vida, a asserção de que "ele padeceu". Na ver-


dade, é a última palavra? Não podemos negligenciar
como esta vida completa termina: no terceiro dia ele res-
surge da morte. Assim, a vida de Jesus não é completa-
mente desprovida de um sinal da alegria vindoura e da
vitória vindoura. Não sem motivo tanto é dito sobre glo-
rificação e, não sem motivo há a figura da alegria do casa-
mento tantas vezes mencionada. Embora, certamente,
não é sem admiração que várias vezes ouvimos Jesus cho-
rando, mas nunca que ele riu, e há ainda para ser dito que
continuamente através do seu sofrimento houve uma es-
pécie de centelha de alegria na natureza à sua volta, em
crianças e, sobretudo, de alegria em sua existência e em
sua missão. Ouvimos mais uma vez que é dito que ele se
regozijou sobre o fato de que Deus havia ocultado este co-
nhecimento do sábio, mas revelado aos ingênuos. Assim
nos milagres de Jesus há triunfo e alegria. Cura e alegria
aqui irrompem na vida dos homens. Parece que se tornou
visível quem está agindo. Na história da Transfiguração,
na qual é relatado que os discípulos viram as vestes de Je-
sus mais alvas do que a neve, o que na terra é perfeita-
mente possível, este outro algo, a questão da sua vida -
podemos também dizer, seu início e origem - se tornam
visíveis por antecipação. Bengel está indubitavelmente
certo quando diz dos Evangelhos antes da Ressurreição
que podemos dizer de todas estas histórias de Jesus que
eles spirant resurrectionem. Mas, mais do que isso, não
podemos, na verdade, dizer. Há uma fragrância do início
e do fim, uma fragrância de Divindade triunfante que
está na ação.
Mas o tempo presente da sua vida está, na verdade,
sofrendo desde o início. Não há dúvida de que para os
evangelistas Lucas e Mateus a infância de Jesus, seu nasci-
mento e a manjedoura em Belém, já estavam sob o signo
146 - Esboço de uma Dogmática

do sofrimento. Este homem é perseguido toda sua vida,


um estranho para sua própria família - que declarações
chocantes ele profere! - e para sua nação; um estranho
nas esferas do Estado, da Igreja e da civilização. Que ca-
minhos de incompreensão ele trilhou! Em que completa
solidão e tentação ele permaneceu entre os homens, os lí-
deres da sua nação, até mesmo confrontando as massas
do povo e no próprio círculo dos seus discípulos! Neste
círculo estreitíssimo ele encontrou seu traidor; e no ho-
mem ao qual ele diz: "Tu és a Rocha.. :', o homem que o
negou três vezes. Finalmente, é aos discípulos de quem se
é dito que "todos o abandonaram" e o povo clama em
coro: "Fora com ele! Crucifica-o" A vida completa de Je-
sus é vivida nesta solidão e, assim, já na sombra da cruz. E
se a luz da ressurreição ilumina aqui e ali, isto é uma ex-
ceção que comprova a regra. O filho do homem deve su-
bir a Jerusalém, lá deve ser condenado, torturado e
crucificado - ressurgir novamente no terceiro dia. Mas
primeiro é este dominante "deve" que o leva à morte.
O que isto significa? Não é o oposto do que pode-
mos esperar das novas de que Deus se fez Homem? Aqui
há sofrimento. Observe que é aqui pela primeira vez na
Confissão que o grande problema do mal e sofrimento
encontra-nos diretamente. Já nos referimos claramente
com freqüência a isso. Mas segundo a carta esta é a pri-
meira vez que temos uma indicação do fato de que na re-
lação Criador e criatura tudo não é o melhor, que a
ilegalidade e a destruição dominam, que dor é acrescen-
tada ao sofrimento. Aqui, pela primeira vez, o lado som-
brio da existência penetra em nosso campo de visão, e
não no primeiro artigo, que fala de Deus o Criador. Não
na descrição da criação como céu e terra, mas aqui na
descrição da existência do Criador que se tornou criatura,
o mal aparece; aqui a distante morte se torna visível. O
Sofreu ... - 147

fato de que isto é assim, no mínimo, significa isto: que a


discrição é exigida em todas as descrições da fraqueza e
do mal como sendo, em alguma medida, independentes.
Quando isto foi realizado mais tarde, foi relativamente
negligenciado que tudo isto entra em campo unicamente
em conexão com Jesus Cristo. Ele sofreu, ele deixou visí-
velo que é a natureza do mal, da revolta do homem con-
tra Deus. O que conhecemos do mal e do pecado? O que
sabemos do que é chamado sofrimento, ou o que significa
a morte? Aqui conseguimos entendê-lo. Aqui aparece esta
treva completa em sua realidade e verdade. Aqui as quei-
xas são destacadas e punidas, aqui a relação entre Deus e
o homem é, na verdade, clarificada. O que são todas as
nossas visões, o que é tudo o que o homem pensa que
sabe sobre sua estupidez e pecaminosidade e sobre o es-
tado perdido do mundo, o que é toda especulação sobre o
sofrimento e morte confrontado com o que se tornou ma-
nifesto aqui? Ele, ele sofreu, aquele que é verdadeiro Deus
e verdadeiro homem. Toda conversa independente sobre
o assunto - isto é, conversa separada dele - necessaria-
mente será inadequada e imperfeita. A menos que a con-
versa sobre esta questão parta do centro, ela será irreal.
Que o homem pode suportar os mais terríveis golpes do
Destino e atravessar intocado como quem atravessa uma
pancada de chuva, isto pode ser visto por nós hoje em dia.
Estamos simplesmente intocados tanto pelo sofrimento
quanto pela própria realidade do mal; sabemos disto
agora. Portanto, podemos repetidamente escapar do co-
nhecimento da nossa culpa e pecado. Podemos apenas
conseguimos um conhecimento adequado, quando co-
nhecemos que ele que é verdadeiro Deus e verdadeiro ho-
mem, padeceu. Em outras palavras, é preciso fé para ver o
que é o sofrimento. Aqui houve sofrimento. Tudo o mais
que conhecemos como sofrimento é sofrimento irreal
148 - Esboço de uma Dogmática

comparado com o que aconteceu aqui. Somente deste


ponto de vista, compartilhando do sofrimento que ele so-
freu, podemos reconhecer o fato e a causa do sofrimento
em todo lugar no cosmos criado, secretamente e aberta-
mente.
Se olharmos para este "ele padeceu", podemos co-
meçar do fato de que ele era Deus que se fez homem em
Jesus Cristo, que agora tem de sofrer, não da imperfeição
do mundo criado, nem por qualquer padrão da natureza,
mas de homens e de sua atitude para com ele. De Belém à
cruz ele foi abandonado pelo mundo que o cercava, repu-
diado, perseguido, finalmente acusado, condenado e cru-
cificado. Estes são os ataques dos homens sobre ele, sobre
o próprio Deus. Aqui há uma revelação da rebelião do
homem contra Deus. O Filho de Deus é negado e rejei-
tado. Com o Filho de Deus os homens podem apenas fa-
zer o que eles fizeram segundo a parábola do viticultor:
"Este é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e a herança
será nossa". Esta é a resposta do homem à graciosa pre-
sença de Deus. Para sua graça, ele não expressa nada além
de um "Não" cheio de ódio. É a nação de Israel que rejeita
em Jesus seu Messias e Rei. É a nação de Israel que não
conhece nada melhor a fazer com o Líder prometido de
toda a sua história, à qual ele dá significado, conclui e
cumpre, do que entregá-lo, finalmente, aos gentios. As-
sim Israel lidou com seu Salvador. E o mundo gentílico na
forma de Pilatos pôde, por sua parte, apenas aceitar esta
entrega. Ele executa o julgamento que os judeus pronun-
ciaram, e desta forma participam semelhantemente nesta
rebelião contra Deus. O que Israel faz aqui é a revelação
de um conteúdo que está presente na história completa de
Israel: os homens enviados por Deus não são recebidos
com júbilo como auxiliadores, confortadores e curadores;
mas, de Moisés em diante, e aqui mais uma vez, conclusi-
Soti-eu... - 149

vamente, eles enfrentam o fato de que o homem diz Não


para eles. Este Não toca diretamente o próprio Deus. As-
sim, somente neste ultimato, a mais íntima e direta pre-
sença de Deus, que expressa a distância do homem dele,
se torna manifesta. Aqui se torna manifesto o que é o pe-
cado. Pecado significa rejeitar a graça de Deus como tal,
que nos envolve e está presente em nós. Israel pensa que
pode ajudar a si mesmo. Visto deste ponto, devemos dizer
que tudo o que pensamos que sabemos como pecado é in-
significante e casual e uma simples aplicação do pecado
original. Da mesma forma que no Antigo Testamento to-
dos os mandamentos não têm nada além do que uma in-
tenção, a de conduzir o povo de Israel para o pacto da
graça de Deus, portanto a transgressão de todos os man-
damentos é perversa e má, porque manifesta o protesto
do homem contra a graça de Deus. O fato de que Jesus, o
Filho de Deus sofreu sob os judeus e gentios revela - e so-
mente ele revela - o mal em sua realidade. Somente deste
ponto podemos compreender o fato, a extensão e o con-
teúdo do impedimento do homem, pois, pela primeira
vez somos aqui desafiados com a raiz de toda grande e in-
significante transgressão. Enquanto nós, em toda nossa
pecaminosidade e nossa culpa mútua em grandes e insig-
nificantes formas, não reconhecemos esta raiz e vemos
nós mesmos acusados no sofrimento de Cristo, vemos
nós mesmos mais uma vez nesta rebelião do homem con-
tra o próprio Deus, todo conhecimento ou reconheci-
mento de culpa é vã. Pois de todo conhecimento de culpa
além deste conhecimento, nós podemos nos livrar mais
uma vez, como um poodle molhado que se seca balan-
çando todo o corpo. Enquanto não virmos a perversidade
em sua natureza real, não estamos presos (mesmo se fa-
larmos com veemência sobre nossa culpa) à confissão,
"pequei contra os céus e perante ti". Este "perante ti" se
150 - Esboço de LIma Dogmâlica

torna óbvio aqui, e óbvio como o âmago e significado de


toda culpa individual na qual estamos envolvidos. Esta
culpa individual não se torna, portanto, incidental. O que
é feito por homens em ações individuais, desde a ação de
Pilatos até aquela de Judas, é a rejeição da graça de Deus.
Mas o que é feito pelos homens adquire sua importância
completa do que foi feito para Deus. Pois nosso conheci-
mento completo do mal dependerá do nosso reconheci-
mento de que o homem está sob acusação de ser ofensor
contra Deus. Somente podemos ver a culpa infinita na-
quilo em que permanecemos contra Deus; o Deus que se
fez homem. Onde somos culpados com respeito ao ho-
mem, somos automaticamente lembrados deste homem.
Pois cada homem que temos ofendido e torturado é um
daqueles que Jesus Cristo chamou seus irmãos. Agora, o
que temos feito para ele, temos feito para Deus.
É verdade que na vida de Jesus e na história da sua
Paixão é também a vida simples de um homem que se de-
senrola. Pense nas grandes obras de arte cristãs, da visão
de Grünewald no "Sofredor sobre a Cruz", até as tentati-
vas menos talentosas, na obra conhecida "Caminhos da
Paixão", da piedade católica? Tudo isto é este homem em
seu tormento, enquanto ele mergulha pelos degraus dos
desfiladeiros da tribulação, de ser golpeado e, finalmente,
de ser morto. Mas mesmo visto deste aspecto não é ape-
nas o homem em sua imperfeição que como um ser mor-
tal pode ser atormentado, embora não sendo Deus; pois a
figura do Jesus sofredor é a figura daquele condenado e
punido. Desde o início, o que causou o sofrimento de Je-
sus é a ação legal da sua nação, que finalmente se torna
completamente explícita. Eles o vêem como o suposto
Messias que é diferente daquele esperado por eles, contra
cujo clamor eles podem, portanto, apenas protestar.
Pense na atitude dos fariseus, adentrando o Sinédrio: lá
Sofreu ... - 151

você tem o pronunciamento de um veredicto. Este vere-


dicto expressa o julgamento mundano executado por Pi-
latos. Os Evangelhos colocam ênfase precisamente sobre
este ato legal. Jesus é a Pessoa acusada, condenada e pu-
nida. Aqui nesta ação legal é revelada a rebelião do ho-
mem contra Deus.
Mas nisso há também a revelação da ira de Deus
contra o homem. "Padeceu" é explicado no Catecismo de
Heidelberg como Jesus carregando a ira de Deus por sua
vida inteira. Desta forma, ser um homem significa estar
diante de Deus e merecer esta ira. Nesta unidade de Deus
e homem, o homem está limitado a ser este condenado e
golpeado. O homem Jesus em sua unidade com Deus é a
figura do homem golpeado por Deus. Mesmo a justiça do
mundo, que cumpre este julgamento, o faz pela vontade
de Deus. O Filho de Deus se fez homem a fim de deixar o
homem ser visto sob a ira de Deus. O Filho do homem
deve sofrer, ser entregue e crucificado, diz o Novo Testa-
mento. Nesta Paixão a conexão se torna visível entre a
culpa infinita e a reconciliação que necessariamente se se-
gue sobre esta culpa. Torna-se claro que, onde a graça de
Deus é rejeitada, o homem se apressa para a sua própria
perdição. É aqui, onde o próprio Deus se fez homem, que
a mais profunda verdade da vida humana é manifesta: o
sofrimento total que corresponde ao pecado total.
Ser um homem significa estar tão situado na pre-
sença de Deus como Jesus está, isto é, ser o portador da
ira de Deus. Isto nos pertence, e seu fim é a morte. Toda-
via, este não é o final, nem a rebelião do homem, nem a
ira de Deus. Mas o mais profundo mistério de Deus é
este, que o próprio Deus, no homem Jesus, não se esqui-
vou de tomar o lugar do homem pecador e de ser (aquele
que não conhecia pecado, ele o fez pecado) o que o ho-
mem é, um rebelde, carregando nele o sofrimento tal
152 - Esboço de LIma Dogmática

como homem, para ser ele mesmo o culpado completo e a


reconciliação completa! Foi isto que Deus fez em Jesus
Cristo. Isto é, sem dúvida, o elemento absoluto oculto
desta vida, que vê primeiro a luz na ressurreição de
Cristo. Mas a paixão de Cristo pode ser erroneamente in-
terpretada' se não fôssemos além da queixa sobre o ho-
mem e seu destino. Na verdade, o sofrimento de Cristo
não foi exaurido neste desafio de protesto contra o ho-
mem e o terror diante da ira de Deus (este é apenas um
lado da Paixão e mesmo o Antigo Testamento aponta
além dela). A aliança de paz permanece também acima
desta insurgente e assustadora figura do homem. Deus é
aquele que se fez culpado e reconciliação. Portanto, o li-
mite se torna visível, ajuda total contra a culpa total. Esta
é a última coisa, como ela também foi a primeira, que
Deus está presente e sua bondade é infindável. Mas o sig-
nificado disto pode apenas se tornar claro no contexto
posterior. Devemos passar para a consideração, que está
interposta numa forma extraordinária, quer dizer, "sob
Pôncio Pilatos".
Sob Pôncio Pilatos

Em virtude do nome de Pôncio Pilatos estar conectado com


ele, a vida e a paixão de Jesus Cristo é um evento
na mesma história mundial na qual
nossa vida também acontece.
E com a cooperação deste estadista
ela adquire visivelmente o caráter de urna
ação na qual o compromisso e retidão divinos,
assim corno a perversão humana e a injustiça da ordena-
ção do Estado do que acontece
no mundo, se tornaram efetivas e manifestas.

Como Pôncio Pilatos entrou para o Credo? De certa


forma grosseira e sarcástica, a resposta pode ser antes de
tudo: como um cachorro num belo quarto! Da mesma
forma como a política envolve a vida humana e depois, de
uma forma ou outra, a vida da Igreja também! Quem é
Pôncio Pilatos? Na verdade, uma figura desagradável e in-
significante com um caráter detestável. Quem é Pôncio
Pilatos? Um funcionário extremamente subalterno, uma
espécie de comandante militar do governo aliado que
ocupava o poder em Jerusalém. O que ele fazia lá? A co-
munidade judaica local expediu uma resolução, para a
execução da qual não tinha suficiente autoridade. Foi tra-
154 - Esboço de uma Dogm,ítica

zida uma sentença de morte, que agora deveria ser legali-


zada pelo poder executivo de Pilatos. Depois de alguma
hesitação, ele faz o que exigiam dele. Um homem insigni-
ficante num papel completamente externo; pois tudo que
havia de importante e espiritual foi exaurido entre Israel e
Cristo no Sinédrio que o acusa e o rejeita. Pilatos se posta
em seu uniforme e é usado, e seu papel não é nada hon-
roso; ele reconhece que o homem é inocente e mesmo as-
sim o encaminha para a morte. Ele era forçado a agir
estritamente segundo a lei, mas não age assim e se deixa
determinar pelas "considerações políticas". Ele não se
aventura a manter a decisão judicial, mas se rende ao cla-
mor popular e entrega Jesus. Ele cumpriu a crucificação
pelas suas coortes. Quando no meio da Confissão da
Igreja Cristã, no momento em que estamos no ponto de
entrarmos na área do mais profundo mistério, tais coisas
vêm à mente, e alguém pode até exclamar como Goethe,
"um negócio sujo! Que vergonha! Uma fraude política!"
Mas lá está "sob Pôncio Pilatos..."; portanto, devemos per-
guntar a nós mesmos o que isto significa. A romancista
Dorothy L. Sayers, escreveu uma peça para a rádio inglesa
intitulada The man born to be King [O homem nascido
para ser rei], e nela interpreta o sonho de Procla, a esposa
de Pilatos, onde esta mulher ouviu num sonho, atraves-
sando os séculos em cada língua, este mesmo brado: "So-
freu sob o poder de Pôncio Pilatos". Como pôde Pôncio
Pilatos entrar para o Credo?
O nome em conexão com a Paixão de Cristo deixa
inequivocamente claro que esta Paixão de Jesus Cristo,
este desvelar da rebelião do homem e da ira de Deus, ape-
sar da sua misericórdia, não aconteceu no céu ou em al-
gum planeta remoto, ou mesmo em algum mundo das
idéias; aconteceu em nosso tempo, no centro da história
mundial na qual nossa vida humana é vivida. Portanto,
Sob Pôncio Pilatos - 155

não devemos escapar desta vida. Não devemos alçar vôo


para uma terra melhor, para alguma altura ou outro lugar
desconhecido, nem para outra Terra do Faz-De-Conta es-
piritual, nem para um conto de fadas cristão. Deus veio
para nossa vida em sua mais completa amabilidade e te-
mor. Que a Palavra se fez carne também significa que ela
se tornou temporal, histórica. Ela assume a forma que
pertence à criatura humana, na qual há pessoas tais como
o próprio Pôncio Pilatos - o povo ao qual pertencemos e
que somos nós mesmos em qualquer tempo numa escala
ligeiramente grande! Não é necessário fechar nossos
olhos para isto, pois Deus também não fechou os seus; ele
a assumiu com tudo. A Encarnação da Palavra é um
evento extremamente concreto, no qual um nome hu-
mano pode fazer parte. A Palavra de Deus tem o caráter
de hic et nunc. Não há nada da opinião de Lessing de que
a Palavra de Deus é uma "verdade eterna da razão", e não
uma "verdade acidental da história". A história de Deus é,
na verdade, uma verdade acidental da história, como este
insignificante comandante. Deus não se envergonhou de
existir neste estado acidental. Aos fatores que determi-
nam nosso tempo humano e história humana, também
pertencem, em virtude do nome de Pôncio Pilatos, a vida
e Paixão de Jesus. Não somos abandonados neste mundo
assustador. Neste mundo alienado, Deus veio até nós.
Sem dúvida, fica claro que este mesmo fato de que
Jesus Cristo sob o poder de Pôncio Pilatos pode apenas
sofrer e morrer, caracteriza a história mundial como um
fato extremamente questionável. Aqui se torna óbvio que
temos a ver com este mundo passageiro, a velha era, o
mundo cujo representante típico, Pôncio Pilatos, con-
fronta Jesus em completa impotência e desamparo. O po-
der mundial de Roma está exposto, assim como Pilatos, o
tenente do grande senhor em Roma está exposto. Esta é a
156 - Esboço de uma Dogmática

forma como a ação política total aparece à luz da aproxi-


mação do Reino de Deus: tudo direcionado para um rom-
pimento e previamente contraditado. Este é um lado: este
mundo no qual Cristo veio, é iluminado por ele em sua
completa fragilidade e estupidez.
Mas não seria correto pararmos aqui, pois o episó-
dio de Pilatos, em todos os quatro Evangelhos, tem ainda
muito mais importância, para que estejamos satisfeitos
com declarações de que Pilatos é apenas um homem deste
mundo. Ele não é apenas isto, mas o estadista e político;
portanto, este encontro entre o mundo e o Reino de Deus
é, na verdade, muito especial. Não é uma questão de en-
contro entre o Reino de Deus e o conhecimento humano,
a sociedade humana, o trabalho humano, mas do encon-
tro entre o Reino de Deus e a polis. Pilatos, assim, repre-
senta a ordem que confronta a outra ordem representada
por Israel e a Igreja. Ele é o representante do imperador
Tibério. Ele representa a história mundial, no que diz res-
peito estar sob as ordens do Estado. Que Jesus Cristo so-
freu sob Pôncio Pilatos, significa, portanto, também que
ele aceitou a ordem deste Estado. "Não terias nenhum po-
der sobre mim, se do céu não te fosse dado" 00 19.11). Je-
sus Cristo estava falando muito sério quando disse: "Dai a
César o que é de César" (Mt 22.21). Ele deu-lhe o que era
dele; ele não atacou a autoridade de Pilatos. Ele sofreu,
mas não protestou contra Pilatos proferir um julgamento
sobre ele. Em outras palavras, a ordem do Estado, a polis,
é a área na qual sua ação também, a ação da eterna Pala-
vra de Deus, acontece. É a área na qual, segundo a per-
cepção humana, sob a ameaça e aplicação da força física,
a decisão é tomada quanto ao certo e errado na vida ex-
terna dos homens. Este é o Estado, isto é o que chamamos
política. Tudo o que acontece no domínio da política é, de
alguma forma, uma aplicação desta tentativa. O que
Sob Pôncio Pilatos - 157

acontece no mundo é sempre igualmente ordenado pelo


Estado, embora, felizmente, não somente pelo Estado! No
meio deste mundo de ordenanças do Estado, surge Jesus
Cristo. Pelo fato de sofrer sob Pôncio Pilatos, ele também
participa desta ordem, portanto é digno de consideração
o que este fato deve significar, como as ordens externas se
parecem, como a realidade total de Pôncio Pilatos parece
do ponto de vista do sofrimento do Senhor.
Este não é o lugar para desenvolver a doutrina cristã
do Estado, que não é para ser separada da doutrina cristã
da Igreja. Todavia, umas poucas palavras devem ser ditas
aqui, pois neste encontro de Jesus e Pilatos tudo está reu-
nido in nuce, daquilo que seria considerado e dito do lado
do Evangelho com relação ao domínio da polis.
Ordem do Estado, poder do Estado, como represen-
tado por Pôncio Pilatos vis-à-vis Jesus, torna-se visível em
sua forma negativa, em toda perversão e injustiça huma-
nas. Alguém pode, na verdade, dizer que se em algum lu-
gar o Estado é visível como o Estado do erro, esse lugar é
aqui; e se em algum lugar o Estado tem sido exposto e sua
política provou-se monstruosa, então mais uma vez este
lugar é aqui. O que fez Pilatos? Ele fez o que políticos fa-
zem mais ou menos sempre, e o que sempre se identificou
com a realização da política em todos os tempos: ele ten-
tou resgatar e manter a ordem em Jerusalém e, dessa
forma, ao mesmo tempo preservar sua própria posição de
poder, por meio de subordinar a clara lei, para a proteção
da qual ele estava, na verdade, instalado. Extraordinária
contradição! Sua ocupação é decidir sobre o certo e o er-
rado; esta é sua raison d'etrê; e a fim de manter sua posi-
ção, "temendo os judeus", renuncia a fazer exatamente o
que estava obrigado a fazer: ele cede. Na verdade, ele não
conden'a Jesus - ele não pôde condená-lo, ele não o acha
culpado - todavia, ele o entrega. Ao entregar Jesus, ele
158 - Esboço de uma Dogmática

também está se entregando. Por tornar-se o protótipo de


todos os perseguidores da Igreja e pelo que Nero veria
nele, pelo Estado injusto que está atuando aqui, como um
Estado caído em desgraça. Na pessoa de Pilatos o Estado
abandona sua própria base de existência e se transforma
em covil de ladrões, um Estado gângster, o ordenamento
de uma camarilha irresponsável. Isto é a polis, isto é polí-
tica. É de se admirar que alguém queira tapar o rosto di-
ante disso? Se o estado tem, durante anos e décadas se
apresentado a si mesmo somente nesta aparência, não é
de se admirar que alguém se canse do domínio completo
da política? Na verdade o Estado assim observado, o Es-
tado após o padrão de Pilatos, é a polis em sua mais pura
oposição à Igreja e ao reino de Deus. Este é o Estado
como ele é descrito no Novo Testamento, em Apocalipse
13, como a Besta do abismo, com a outra Besta com o
grande focinho que a acompanha, a qual a primeira Besta
continuamente glorifica e adora. A paixão de Cristo se
torna o desmascaramento, o julgamento, a condenação
desta Besta, cujo nome é polis.
Mas isto não é tudo, e não podemos parar neste
ponto. Se Pilatos, antes de tudo, traz à superfície a deteri-
oração do Estado e, portanto, o Estado injusto, devemos
também não falhar em reconhecer neste espelho côncavo
o bom preceito de Deus que está aqui estabelecido, e
mantém -se, e efetivo, o Estado justo, que é, na verdade,
desgraçado pela injustiça das ações humanas, mas que,
tanto quanto a Igreja correta, não pode ser completa-
mente posto de lado, porque repousa sobre a instituição e
mandato divino. O poder que Pilatos demonstra não é
menos concedido a ele porque ele abusa dele. Jesus o re-
conhece, exatamente na forma em que mais adiante Paulo
reunia os cristãos romanos para reconhecer, mesmo no
estado de Nero, a instituição e mandato divinos, para
Sob Pôncio Pilatos - 159

conformar a este mandato e assim renunciar a todo cristi-


anismo não-político, e, particularmente, reconhecer sua
responsabilidade para a manutenção do Estado. Que a or-
dem do Estado está correlacionada como sendo uma or-
dem de Deus, está também claro no caso de Pilatos, nisto
- enquanto como um mau estadista ele entregou Jesus à
morte, ele não pode senão, como um genuíno estadista,
declará-lo inocente. Também se torna visível com uma
força excepcional, que Pilatos, um mau estadista, tem po-
der e vontade para fazer exatamente o contrário do que
como um genuíno estadista ele podia ter desejado e feito
- libertar Barrabás e levar Jesus à morte, e portanto (quão
diferente da forma que lemos em 1 Pedro 2.14!) "honrar
os que praticam o mal e punir o bem" - mas, como resul-
tado (que não o exime, mas justifica a sabedoria de
Deus!), ele deve cumprir também a suprema lei. Que Je-
sus, o justo, deveria morrer no lugar do injusto, que con-
seqüentemente este homem - Barrabás! - deveria ser
libertado no lugar de Jesus, foi, na verdade, a vontade de
Deus no sofrimento de Jesus Cristo. E desta forma foi seu
sofrimento sob Pôncio Pilatos, o estadista mau - justo
contra sua vontade. E foi a vontade de Deus no sofri-
mento de Jesus Cristo, que Jesus deveria ser entregue pe-
los judeus para os pagãos, que a Palavra de Deus pode
sair do seu estreito domínio da nação de Israel para o
mundo gentio. O gentio que aceita Jesus - desde as mãos
imundas de Judas, dos sumo-sacerdotes e do povo de Je-
rusalém, ele próprio um homem com mãos sujas - este
gentio é o estadista perverso, Pôncio Pilatos - justo con-
tra sua vontade! Num certo aspecto, ele também é, como
Hamann o chamou, o executor do Novo Testamento,
num certo sentido o fundador da Igreja de judeus e gen-
tios. Assim, Jesus triunfa sobre aquele, sob cujas perversi-
dades ele tem de sofrer. Assim, Jesus triunfa sob o
160 - Esboço de lima Dogm,ítica

mundo, no qual trilhando-o ele tem de sofrer. Assim, ele


é o Senhor também onde ele é rejeitado pelos homens.
Assim a própria ordem política, independentemente de
sua corrupção através da culpa humana quando Jesus foi
por ela subjugado, está destinada a tornar claro que está,
na verdade, subjugada a ele. Eis por que os cristãos devem
orar pelos governantes. Eis por que eles tornam-se res-
ponsáveis por sua manutenção. Eis por que a tarefa dos
cristãos é buscar o melhor para a cidade, honrar a divina
indicação e instituição do Estado, escolhendo e desejando
no melhor do seu conhecimento, não o Estado errado,
mas o Estado direito, o Estado que faz do fato de que seu
poder vem "de cima", não uma vergonha, como Pilatos,
mas uma honra. E além disto eles estão confiantes de que
a lei de Deus na vida política, mesmo onde ela é ignorada
pelos homens e pisoteada, é a parte mais forte, por causa
da Paixão de Jesus - o Jesus para quem todo poder no céu
e na terra é dado. A provisão foi feita para que o mal e pe-
queno Pilatos se inquietasse à toa, no final das contas.
Como, neste caso, poderia um cristão tomar partido dele?
Foi Crucificado,
Morto e Sepultado,
Desceu ao Inferno

Na morte de Jesus Cristo, Deus humilhou a si mesmo e en-


tregou a si mesmo, a fim de cumprir sua lei
sobre todo homem pecador,
assumindo seu lugar e,
assim, de uma vez por todas,
removendo do homem para si mesmo
esta maldição que o afetou, a punição que o
homem merecia, o passado que quer ver corrigido,
o abandono no qual ele caiu.

o mistério da Encarnação se desdobra no mistério


da Sexta-feira Santa e da Páscoa. E mais uma vez é como a
vemos sempre presente no mistério completo da fé, ou
seja, de que devemos sempre ver as duas coisas interliga-
das, devemos sempre entender uma pela outra. Na histó-
ria da fé cristã, na verdade, sempre esteve latente que o
conhecimento dos cristãos sempre pendeu mais para um
lado do que para outro. Temos isto na decisiva inclinação
da Igreja Ocidental em relação à theologia cru eis - isto é,
uma tendência em tornar público o fato de que ele foi en-
tregue pelas nossas transgressões. Enquanto que a Igreja
Oriental acentua mais o fato de que ele ressuscitou para
nossa justificação, e, portanto, inclina-se para a theologia
162 - Esboço de lima Dogmática

gloriae. Nesta questão não há nenhum sentido em querer


jogar uma contra a outra. Você sabe desde o início que
Lutero enfatizou a tendência ocidental - não a theologia
gloriae, mas a theologia crucis. O que Lutero pretendeu
dizer com isto está certo. Mas não devemos erigir e con-
firmar qualquer oposição; pois não há nenhuma theologia
cru eis que não tenha seu complemento na theologia glo-
riae. É evidente que não há nenhuma Páscoa sem a Sexta-
feira da Paixão, mas do mesmo modo não há Sexta-feira
da Paixão sem a Páscoa! Demasiada tribulação e sobrie-
dade são facilmente lavradas no cristianismo. Mas se a
cruz é a Cruz de Jesus Cristo e não uma especulação so-
bre a cruz, que qualquer pagão fundamentalmente tam-
bém possa tecer, então não pode nem por um segundo
ser esquecido ou ignorado que o Crucificado ressurgiu da
morte no terceiro dia. Celebraremos, neste caso, a Sexta-
feira da Paixão completamente diferente, e talvez seria
desejável não cantar na Sexta-feira da Paixão os hinos
tristes e desconsolados da Paixão, mas começar a cantar
os hinos da Páscoa. Não foi uma coisa triste e pesarosa
que aconteceu na Sexta-Feira da Paixão; pois ele ressusci-
tou. Quero ser o primeiro a declarar que você não pode
tomar abstratamente o que temos a dizer sobre a morte e
a Paixão de Cristo, mas já olhar além para o lugar onde
sua glória é revelada.
Este âmago da cristologia tem sido descrito na velha
teologia sob dois conceitos principais de exinanitio e o
exaltatio de Cristo. Qual o significado que a humilhação e
a exaltação assumem aqui?
A humilhação de Cristo inclui o todo, começando
com "sofreu sob Pôncio Pilatos", e decididamente visível
em "foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao in-
ferno". O que ocorreu primeiro, certamente, foi a humi-
lhação deste homem que sofreu, morreu e transitou pelas
~oi Crucificado, Morto e Sepultado, Desceu ao Inferno - 163

mais densas trevas. Mas o que primeiro dá sua significa-


ção para a humilhação e o abandono deste homem é o
fato de que este homem é o Filho de Deus, e de que não é
outro senão o próprio Deus que se humilha e se entrega a
si mesmo.
Assim, quando este fato é contrabalançado com o a
exaltação de Jesus Cristo como o mistério da Páscoa, esta
glorificação é, na verdade, uma auto-glorificação de
Deus; é para sua honra que este triunfo aconteça: "Deus
bradou em alta voz". Mas o mistério verdadeiro da Páscoa
não é que Deus é glorificado nele, mas que o homem é
exaltado, elevado pela mão direita de Deus e permitido
triunfar sobre o pecado, a morte e o diabo.
Quando sustentamos estes dois pontos juntos, então
o quadro que temos diante de nós é de uma inconcebível
troca, de uma katalage, isto é, uma substituição. A recon-
ciliação do homem com Deus acontece ao colocar Deus a
si mesmo no lugar do homem e o homem no lugar de
Deus, como o mais puro ato da graça. É este milagre in-
concebível que se torna nossa reconciliação.
Quando a própria Confissão já acentua este "crucifi-
cado, morto e sepultado..." numa forma puramente ex-
terna através de uma franqueza e integridade de um
registro que não é superabundante em palavras; além
disso, quando os Evangelhos prolongam a história da
Crucificação até um certo ponto, e quando em todos os
tempos a Cruz de Jesus é evidenciada como o centro real
de toda a fé cristã; quando em todos os séculos se ouve
repetidas vezes, Ave crux única spe mea, temos de ser cla-
ros em que o ponto não é a glorificação e ênfase na morte
em martírio de um fundador de uma religião - há histó-
rias indubitáveis de mártires mais impressionantes, mas
nas quais não estamos interessados - e nem mesmo é a
expressão do universal sofrimento-do-mundo sobre a
164 - Esboço de lima Dogmâ(ica

Cruz como uma espécie de símbolo do limite da experi-


ência humana. Por meio disso nos distanciamos do co-
nhecimento daqueles que têm testemunhado o Jesus
Cristo crucificado. No sentido do testemunho apostólico,
a crucificação de Jesus Cristo é a ação concreta do pró-
prio Deus. Deus muda a si mesmo, o próprio Deus se
torna mais próximo, Deus pensa que não é uma explora-
ção ser divino, isto é, ele não se apega aos despojos como
um salteador, mas Deus reparte consigo mesmo. Tal é a
glória da sua Divindade, aquela onde ele pode ser "abne-
gado", aquela onde ele pode, na verdade, perdoar a si
mesmo em alguma coisa. Ele se mantém genuinamente
verdadeiro para si mesmo, mas somente por meio de não
ter de limitar-se à sua Divindade. É a profundeza da Di-
vindade, a grandeza da sua glória que é revelada no pró-
prio fato de que ela também pode se esconder em sua
mais pura oposição, na mais profunda das rejeições e na
maior das misérias da criatura. O que acontece na Cruci-
ficação de Cristo é que o Filho de Deus assume para si
mesmo é que deve se tornar a criatura em estado de re-
volta, que quer libertar-se da sua condição de criatura e
declarar-se a si mesmo o Criador. Ele se põe a si mesmo
nas necessidades da criatura e não a abandona a si
mesma. Além disso, ele não apenas a ajuda de fora e a
saúda de longe; ele faz sua a desgraça da sua criatura.
Com que propósito? Para que sua criatura seja livre, para
que o fardo que carrega sobre si seja tirado. A própria cri-
atura deve estar em frangalhos, mas Deus não deseja isto;
ele quer ver a sua salvação. É tão grande a ruína da cria-
tura que qualquer coisa menos que a auto-entrega de
Deus não seria suficiente para o seu resgate. Mas Deus é
tão grande, que foi sua vontade entregar a si mesmo. Re-
conciliação significa Deus tomando o lugar do homem.
Deixe-me acrescentar que nenhuma doutrina deste mis-
foi Crucificado, Morto c Sepultado, Desceu ao Inferno - 165

tério central pode compreender com precisão e exaustão


ou expressar até onde Deus interveio por nós. Não con-
funda minha teoria da reconciliação com a própria re-
conciliação. Todas as teorias da reconciliação não passam
de indicadores. Mas esteja atento também para este "por
nós": nada pode ser subtraído dele! O que quer que a
doutrina da reconciliação procure expressar, ela deve di-
zer isto.
Na morte de Jesus Cristo, Deus tem cumprido sua
lei. Na morte de Jesus Cristo, ele atuou como Juiz para
com o Homem. O homem se colocou num ponto no qual
o veredicto de Deus é declarado sobre ele e tem de ser
carregado inevitavelmente. O homem permanece diante
de Deus como um pecador, como um ser que está sepa-
rado de Deus, que se rebelou contra aquilo que ele deve
ser. Ele se rebelou contra a graça; como se isso fosse
pouco, ele virou as costas para a gratidão. Tal é a vida hu-
mana, este constante afastar-se, este vulgar e sutil pecado.
O pecado leva o homem à necessidade inconcebível: ele
se torna impossível diante de Deus. Ele se coloca onde
Deus não pode vê-lo. Ele colocou-se, por assim dizer, por
detrás das costas da graça de Deus. Mas as costas do
"Sim" de Deus é o divino "Não"; é o julgamento. Assim
como a graça de Deus é irresistivel, assim também seu
julgamento é irresistível.
Agora podemos entender o que foi declarado de
Cristo, que ele foi "crucificado, morto e sepultado.. :',
como a expressão daquilo que está, na verdade, cumprido
sobre o homem.
Crucificado. Quando um israelita era crucificado,
significava que ele era amaldiçoado, banido, não apenas
do domínio da vida, mas da aliança com Deus, removido
do círculo dos eleitos. Crucificado significava rejeitado,
ser entregue à morte da forca infligida aos pagãos. Vamos
166 - Esboço de LIma Dogm,ítica

deixar claro o que está envolvido no julgamento de Deus,


no qual a criatura humana tem de sofrer do lado de Deus
como uma criatura pecadora; ele está envolvido na rejei-
ção, na maldição. "Maldito todo aquele que for pendu-
rado no maneiro". O que recaiu sobre Cristo é o que
deveria recair sobre nós.
Morto. A morte é o fim de todas as possibilidades
presentes de vida. Morrer significa exaurir a última das
possibilidades que nos foi dada. Quer desejemos interpre-
tar morrer fisicamente e metafisicamente, seja o que for
que aconteça, uma coisa é certa, que acontece o último
ato que pode acontecer na existência da criatura. Seja o
que for que aconteça além da morte deve, pelo menos, ser
algo diferente da continuidade desta vida. A morte real-
mente significa fim. Este é o julgamento perante o qual
nossa vida está: a espera da morte. Nascer e crescer, ama-
durecer e envelhecer, é caminhar em direção ao momento
no qual para cada um de nós será o fim, definitivamente o
fim. A questão vista deste lado, é uma questão que trans-
forma a morte num elemento em nossa vida, sobre o qual
preferimos não pensar.
Sepultado. Ele permanece lá tão discretamente e
numa simples superficialidade. Mas ele não está lá por
nada. Algum dia seremos enterrados. Algum dia um pu-
nhado de homens se dirigirão ao cemitério onde descerão
um caixão e todos retornarão para casa; mas alguém não
voltará, e este tal serei eu. O selo da morte será que eles
me enterrarão como uma coisa que é supérflua e pertur-
badora na terra dos vivos. "Sepultado" dá à morte o cará-
ter de passagem e declínio e à existência humana o
caráter de transitoriedade e corruptibilidade. Então, qual
o significado da vida humana? Significa apressar-se para
a sepultura. O homem apressa-se para encontrar o seu
passado. Este passado, no qual não há mais futuro, será a
Foi Crucificado, Morto c Sepulrado, Desceu ao Inferno - 167

coisa final: tudo o que somos terá ido e terá sido corrom-
pido. Talvez a memória permanecerá, enquanto houver
homens que gostem de lembrar-se de nós. Mas algum dia
eles também morrerão e a memória deles também se ex-
tinguirá. Não há um grande nome na história humana
que num dia ou outro não será esquecido. Este é o signifi-
cado de ser "sepultado"; e este é o julgamento sobre o ho-
mem, que no túmulo ele é deixado ao esquecimento. Esta
é a resposta de Deus para o pecado: não há nada mais
para ser feito com o homem pecador, exceto enterrá-lo e
esquecê-lo.
Desceu ao inferno. No Antigo Testamento a imagem
de inferno é algo diferente do que se desenvolveu posteri-
0rmente. Inferno, o lugar do inferi, Hades no sentido do
Antigo Testamento, é, na verdade, o lugar de tormento, o
lugar de completa separação, onde o homem continua a
existir apenas como um não-ser, como uma sombra. Os
israelitas pensavam neste lugar como um lugar onde os
homens se perpetuavam suspensos a rodear como som-
bras furtivas. E a parte ruim sobre estar no inferno no
sentido do Antigo Testamento é que na morte não po-
diam mais louvar a Deus, não podiam mais ver sua face,
não podiam mais cumprir as regras do Sabath de Israel. É
um estado de exclusão de Deus, o que torna a morte tão
temerosa, e que faz do inferno o que ele é. O homem estar
separado de Deus significa estar num lugar de tormento.
"Choro e ranger de dentes" - nossa imaginação não está
adequada para esta realidade, esta existência sem Deus. O
ateu não está consciente do que é a não-existência de
Deus. A não-existência de Deus é a existência no inferno.
O que mais além disto é oferecido como resultado do pe-
cado? O homem não se separou de Deus por seu próprio
ato? "Desceu ao inferno" é simplesmente a confirmação
disto. O julgamento de Deus é justo - isto é, ele oferece ao
168 - Esboço de uma Dogmitica

homem o que ele quer. Deus não seria Deus, o Criador


não seria o Criador, a criatura não seria a criatura e o ho-
mem não seria o homem, se este veredicto e sua execução
pudessem ser detidos.
Porém, agora, a Confissão nos diz que a execução
deste veredicto é efetivada por Deus desta forma, que ele,
o próprio Deus, em Jesus Cristo seu Filho, uma vez verda-
deiro Deus e verdadeiro homem, assumiu o lugar do ho-
mem condenado. O julgamento de Deus é executado, a lei
de Deus assume seu curso, mas de uma tal forma que o
que o homem tinha de sofrer é sofrido por Aquele, que
como Filho de Deus sofreu por todos. Tal é o senhorio de
Jesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, to-
mando sobre si o que nos pertencia. Nele, Deus se faz res-
ponsável, até ao ponto no qual somos amaldiçoados e
culpados e perdidos. Ele estava em seu Filho, que na pes-
soa deste homem crucificado suporta no Gólgota tudo
aquilo que deveria ser levado por nós. Desta forma ele
põe um fim à maldição. Não é da vontade de Deus que o
homem pereça; não é da vontade de Deus que o homem
pague o que estava sujeito a pagar; em outras palavras,
Deus extirpa o pecado. Ele o faz, não a despeito da sua
justiça, mas é a própria justiça de Deus que ele, o Santo,
intervenha a favor nós, os profanos, que ele queira salvar-
nos e assim o faça. Justiça no Antigo Testamento não é a
justiça do juiz que faz o devedor pagar, mas a ação de um
juiz que no acusado reconhece o vilão que ele deseja aju-
dar dando-lhe os direitos. É isto que significa justiça. Jus-
tiça significa assentar o direito. E é isto que Deus faz.
Certamente, não sem a punição ser suportada e toda a
angústia irromper, mas através de ele colocar-se no lugar
do culpado. Ele que pode e faz isto é justificado pelo fato
de que ele assume o papel da sua criatura. A misericórdia
de Deus e a justiça de Deus não são divergentes entre si.
Foi Crucificado, Morro e Sepulrado, Desceu ao Inferno - 169

"Seu Filho não é igualmente querido para ele,


Ele o entregou; pois ele
Do fogo eterno através do seu sangue
Me resgataria,"

Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão.


Mas, na verdade, estamos olhando para além da
Sexta-feira da Paixão, quando dizemos que Deus vem em
nosso lugar e assume nosso castigo sobre si. Deste modo,
ele, na verdade, o toma de nós. Todo sofrimento, toda
tentação, assim como nosso morrer, é apenas a sombra do
julgamento que Deus já executou a nossa favor. Aquilo
que na verdade nos afetava e podia nos afetar, foi, na ver-
dade, lançado fora de nós na morte de Cristo. Isto está
atestado pelas palavras de Cristo na Cruz: "Está consu-
mado!" Portanto, na visão da Cruz de Cristo somos con-
vidados, por um lado, a perceber a magnitude e peso do
nosso pecado e o custo do nosso perdão. Num sentido
mais rigoroso não há conhecimento do pecado exceto à
luz da Cruz de Cristo. Pois somente compreende o que é
o pecado, quem sabe que seu pecado é perdoado. Por ou-
tro lado podemos perceber que o preço é pago ao nosso
favor, pois somos absolvidos do pecado e suas conseqü-
ências. Não somos mais tratados e vistos por Deus como
pecadores, que devem passar sob o julgamento por sua
culpa. Não temos mais nada para pagar. Somos absolvi-
dos gratuitamente, sola gratia, pela própria intervenção
de Deus por nós.
Ao Terceiro Dia
Ressurgiu dos Mortos

Na Ressurreiçclo de Jesus Cristo, o homem é, de uma vez


por todas, exaltado e levado a descobrir com Deus
seu direito contra todos os seus adversários
e assim libertar-se para viver uma nova vida, na qual ele
não mais terá pecado e, portanto, a maldição, a morte, o
túmulo e o inferno à sua frente, mas atrás de si.

"Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos" é a mensa-


gem da Páscoa. Ela assegura que não foi em vão que Deus
se humilhou em seu Filho; fazendo assim ele seguramente
agiu também para sua própria honra e para a confirma-
ção da sua glória. Pela sua misericórdia triunfou em sua
própria humilhação, o resultado sendo a exaltação de Je-
sus Cristo. E quando dissemos anteriormente que na hu-
milhação o Filho de Deus estava envolvido e, portanto, o
próprio Deus, devemos agora enfatizar que o que está en-
volvido na exaltação é o homem. Em Jesus Cristo o ho-
mem é exaltado e levado para a vida para a qual Deus o
libertou na morte de Jesus Cristo. Deus, por assim dizer,
abandonou a esfera da sua glória e o homem pôde agora
tomar seu lugar. Esta é a mensagem da Páscoa, o objetivo
da reconciliação, a redenção do homem. É o objetivo que
já era visível na Sexta-feira da Paixão. Através da interces-
172 - Esboço de LIma Dogmática

são de Deus pelo homem - os escritores do Novo Testa-


mento não estavam temerosos em usar a expressão
"pagando" - o homem é uma criatura resgatável.
Apolytrosis é um conceito legal que descreve o resgate de
um escravo. O alvo é que o homem seja transferido para
outro status na lei. Ele não pertence mais àquilo que tinha
direito sobre ele, ao domínio da maldição, morte e in-
ferno; ele é traduzido para o reino do querido Filho de
Deus. Isto significa que seu posição, sua condição, seu
status legal como um pecador é rejeitado em toda forma.
O homem não é visto mais seriamente por Deus como
um pecador. O que quer que ele possa ser, tudo que existe
para ser dito dele, tudo que possa vir a reprová-lo, Deus
não o leva mais a sério como um pecador. Ele morreu
para o pecado; lá na Cruz do GÓlgota. Ele não está mais
presente para o pecado. Ele é reconhecido e estabelecido
diante de Deus como um homem justo, como aquele que
é justo diante de Deus. Assim como se apresenta, ele tem,
evidentemente, sua existência em pecado e, assim, em sua
culpa; mas ele o tem atrás dele. A mudança foi comple-
tada, de uma vez por todas. Mas não podemos dizer, "Eu
abandonei de uma vez por todas, eu experimentei" - não;
"de uma vez por todas" é o "de uma vez por todas" de Je-
sus Cristo. Mas se cremos nele, então é nosso. O homem
está em Cristo Jesus, que morreu por ele, em virtude da
sua Ressurreição, o Filho amado de Deus, que vive por e
para o bom grado de Deus.
Se esta é a mensagem da Páscoa, então você percebe
que na Ressurreição de Jesus Cristo há a revelação do
fruto ainda escondido da morte de Cristo. É este exato
ponto decisivo que está ainda escondido na morte de
Cristo, oculto sob o aspecto no qual o homem lá aparece
consumido pela ira de Deus. A partir de agora o Novo
Testamento nos torna testemunhas de que este aspecto do
Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos - 173

homem não é o significado do evento no Gólgota, mas


que por trás deste aspecto o real significado deste evento
é aquele que é revelado no terceiro dia. Sobre este terceiro
dia começa uma nova história do homem, tanto que po-
demos até mesmo dividir a vida de Jesus em dois grandes
períodos, os trinta e três anos até sua morte, e o bem
curto e decisivo período dos quarenta dias entre sua
morte e a Ascensão. Ao terceiro dia começa uma nova
vida de Jesus; mas, ao mesmo tempo, no terceiro dia co-
meça um novo Aeon, uma nova forma de mundo, depois
do velho mundo ter sido completamente acabado e qui-
tado na morte de Jesus Cristo. A Páscoa é a novidade de
um novo tempo e mundo na existência do homem Jesus,
que agora começa uma nova vida como conquistador,
como um condutor vitorioso, como o destruidor do fardo
do pecado do homem, que foi posto sobre ele. Nesta sua
existência diferenciada a primeira comunidade viu não
apenas a continuação sobrenatural da sua vida anterior,
mas uma nova vida completa, aquela do exaltado Jesus
Cristo e simultaneamente o início de um novo mundo.
(Os esforços para relacionar a Páscoa a certas renovações,
como as que ocorrem na natureza, como a primavera, ou
até mesmo no despertar do homem pela manhã, e assim
por diante, não têm qualquer força. Depois da primavera
segue-se, inexoravelmente, um inverno, e depois do des-
pertar, o cair no sono novamente. O que temos aqui são
movimentos cíclicos renováveis. Mas tornar-se novo na
Páscoa é tornar-se novo de uma vez por todas.) Na res-
surreição de Jesus Cristo o reivindicação está feita, se-
gundo o Novo Testamento, de que a vitória de Deus em
favor do homem na pessoa de seu Filho já foi ganha. A
Páscoa é, na verdade, o grande penhor da nossa espe-
rança, mas ao mesmo tempo este futuro já está presente
174 - Esboço de lima Dogm,ítica

na mensagem da Páscoa. É a proclamação da vitória já


vencida. A guerra está no fim - embora aqui e acolá tro-
pas estejam atirando, porque ainda não ouviram nada so-
bre a capitulação. O jogo está vencido, embora o jogador
ainda faça alguns movimentos adicionais. Na verdade, ele
já está derrotado. O relógio está parando, embora o pên-
dulo ainda oscile lentamente para lá e para cá. É neste es-
paço interino que estamos vivendo: as coisas velhas já
passaram, eis que tudo se fez novo. A mensagem da Pás-
coa nos conta que nossos inimigos, o pecado, a maldição
e a morte foram vencidos. No final das contas, eles não
podem mais causar danos. Eles ainda se comportam
como se o jogo ainda não tivesse acabado, a batalha não
terminada; devemos ainda contar com eles, mas funda-
mentalmente devemos parar de temê-los de uma vez por
todas. Se você ouviu a mensagem da Páscoa, você não
pode mais andar por aí com uma face trágica e uma con-
duta existencial desanimada de um homem que não tem
esperança. Uma coisa ainda está segura, e somente esta
coisa deve ser levada a sério: que Jesus é o Vitorioso. A se-
riedade de quem olha para trás, como a esposa de Ló, não
é a seriedade cristã. Pode estar queimando lá atrás - e
verdadeiramente está queimando -, porém devemos
olhar, não para isso, mas para o outro fato, de que somos
convidados e convocados a tomar com seriedade a vitória
da glória de Deus neste homem Jesus e se regozijar nele.
Só então podemos viver em gratidão e não em medo.
A Ressurreição de Jesus Cristo revela e completa
esta proclamação de vitória. Não devemos transmutar a
Ressurreição em um evento espiritual. Devemos ouvi-la e
deixá-la contar-nos a história de como houve um túmulo
vazio, que uma nova vida além da morte tornou-se visí-
vel. "Este [homem arrebatado da morte] é o meu Filho
Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Morros - 175

amado, no qual tenho prazer". O que foi anunciando no


batismo no Jordão agora se torna um evento e manifesto.
A todos que conhecem este evento, a ruptura entre o ve-
lho mundo e o novo é proclamada. Eles ainda têm uma
pequena linha para terminar, até que se torne visível que
Deus em Jesus Cristo já cumpriu tudo para eles.
Ascendeu aos Céus,
e Está Assentado À Direita
de Deus Pai Todo-Poderoso

o objetivo da obra de Jesus Cristo,que aconteceu de uma


vez por todas, é o fundamento da sua Igreja através
do conhecimento, confiado às testemunhas da
sua ressurreição, de que a onipotência de
Deus e a graça de Deus, que são ativas e
aparentes nele, são uma e a mesma
coisa. Assim, o fim desta obra é também o início
do tempo-final, isto é, do tempo no qual a Igreja tem
de proclamar para todo o mundo a graciosa onipotência e a
onipotência graça de Deus em Jesus.

o curso do texto da Confissão de Fé mostra-nos ex-


teriormente que estamos nos aproximando de um obje-
tivo, o objetivo da obra de Jesus Cristo, desde que ela
aconteceu de uma vez por todas. Nessa estrada ainda há
uma parte pendente, que é futuro e que se tornará visível
ao final da Confissão, "de onde ele há de vir" mais uma
vez... Mas o que aconteceu de uma vez por todas, agora se
apresenta consumado diante de nós em uma série com-
pleta de verbos no tempo perfeito: gerado, concebido,
nascido, sofrido, crucificado, morto, sepultado, desceu,
ressuscitou; e agora, subitamente um presente: "Está as-
sentado à direta de Deus ...". É como se tivéssemos esca-
178 - Esboço de uma Dogmática

lado uma montanha e agora alcançado seu cume. Este


presente é completado por um final no perfeito, que ele
ascendeu aos céus; o que por sua parte completa o "res-
surgiu dos mortos".
Com este "está assentado à direita de Deus Pai" ob-
viamente passamos para um novo tempo que é nosso
tempo presente, o tempo da igreja, o tempo-final, inaugu-
rado e fundado pela obra de Jesus Cristo. No Novo Testa-
mento o relato deste evento constitui a conclusão dos
relatos da Ressurreição de Jesus Cristo. Há - quase aná-
logo aos milagres da Natividade - uma linha tênue rela-
tiva no Novo Testamento, que fala da ascensão de Cristo
aos céus. Aqui e acolá apenas a Ressurreição é mencio-
nada e então diretamente a parte sobre estar à mão direita
do Pai. No Evangelho também a ascensão aos céus é men-
cionada de modo relativamente escasso. O que está envol-
vido é esta transição, a mudança do tempo da revelação
para o nosso tempo.
Qual é o significado da Ascensão? Segundo o que
temos dito sobre céus e terra, ela significa em qualquer
medida que Jesus deixa o espaço terreal, o espaço, isto é,
que foi concebido para nós e que ele criou por amor a
nós. Ele não pertence mais a ele como nós pertencemos.
Isto não significa que se tornou alienado para ele, que este
espaço não é seu espaço também. Pelo contrário, uma vez
que ele permanece acima deste espaço, ele o preenche e se
torna presente para ele. Mas agora, evidentemente, não
mais na maneira do tempo da sua revelação e da sua ativi-
dade terreal. A Ascensão não significa que Cristo subiu
para outro domínio do mundo criado, para o domínio do
que é inconcebível para nós. ''À direita de Deus" significa
não apenas a transição do concebível para o inconcebível
no mundo criado. Jesus é removido na direção do misté-
rio do espaço divino, o que está absolutamente oculto ao
Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai Todo-Poderoso - 179

homem. Não são os céus a sua morada; ele está com


Deus. O Crucificado e o Ressurreto está onde Deus está.
A meta da sua atividade sobre a terra e na história é que
ele vai para lá. Envolvido na Encarnação e na Crucifica-
ção está a humilhação de Deus. Mas na Ressurreição de
Jesus Cristo está envolvida a exaltação do homem. Cristo
está agora, como o Condutor da humanidade, como
nosso Representante, no lugar onde Deus está e na forma
na qual Deus é. Nossa carne, nossa natureza humana, está
exaltada nele para Deus. O fim da sua obra é que estamos
com ele em ascensão. Estamos com ele ao lado de Deus.
Deste ponto inicial temos que olhar para trás e para
frente. Se entendermos o Novo Testamento corretamente,
com seus testemunhos para esta conseqüência da vida e
atividade de Jesus Cristo, esta conseqüência é caracteri-
zada em um caminho duplo.
Deste Último surgiu a luz, que é vista pelos seus
Apóstolos. O conhecimento conclusivo está confiado às
testemunhas da sua Ressurreição. No Evangelho segundo
São Mateus permanecem as palavras de Cristo (28.18):
"Poi-me dada toda autoridade nos céus e na terra'. É sábio
e necessário trazer estas palavras em conexão com a parte
"à direita de Deus Pai Todo-poderoso". O conceito de oni-
potência aparece nos dois pontos. Em Efésios 4.10 o
mesmo conhecimento é declarado: ''Aquele que desceu é
o mesmo que subiu acima de todos os céus, a fim de en-
cher todas as coisas..."; enchê-las com sua vontade e sua
Palavra. Ele agora está nas maiores alturas; ele agora é o
Senhor, e revelado como tal. Voltamos a esta passagem
para coisas que nós tocamos acima na exposição do pri-
meiro artigo. Se falamos corretamente do Deus Todo-po-
deroso que está sobre todas as coisas, então nunca
devemos entender por onipotência de Deus qualquer
coisa além da realidade da qual o segundo artigo fala. O
180 - Esboço de Llma Dogmática

conhecimento que os Apóstolos adquiriram com base na


Ressurreição de Cristo, cuja conclusão é a Ascensão de
Cristo, é essencialmente este conhecimento básico de que
a reconciliação que aconteceu em Jesus Cristo não é uma
história casual, mas que nesta obra da graça de Deus nós
lidamos com a palavra da onipotência de Deus, de que
aqui a última e suprema coisa entra em ação, atrás da qual
não há nenhuma outra realidade. Não há nada para além
deste evento, do qual o segundo e o terceiro artigos falam.
Cristo é aquele que tem todos os poderes, e com ele esta-
mos engajados, se acreditamos. Reciprocamente, a onipo-
tência de Deus é revelada e ativa inteiramente na graça da
reconciliação de Jesus Cristo. A graça de Deus e a onipo-
tência de Deus são idênticas. Nunca devemos entender
uma sem a outra. Aqui, mais uma vez, temos de lidar com
a revelação do mistério da Encarnação, que este homem é
o Filho de Deus e o Filho de Deus é este homem. Jesus
Cristo tem este lugar, esta função sobre todos nós, e ele as
tem na realidade final. Ele está em relação a Deus como o
Único para o qual o poder de Deus é absolutamente con-
fiado; como um Governador ou um Primeiro Ministro,
para quem seu Rei transferiu todo seu poder. Jesus Cristo
fala como Deus e age como Deus; e reciprocamente, se
quisermos sa1)er da fala e ação de Deus, precisamos ape-
nas olhar para esse homem. Esta identidade de Deus e
homem em Jesus Cristo é o conhecimento, a revelação do
conhecimento, pelo qual a obra de Jesus Cristo, cumpriu-
se de uma vez por todas, alcançou sua conclusão.
"Está assentado à direita de Deus Pai" - o cume foi
alcançado, o passado permanece atrás de nós e entramos
no domínio do presente. É isto que temos para dizer do
nosso tempo - que é a primeira e última coisa que im-
porta para nossa existência no tempo. Nesta base está esta
existência de Jesus Cristo, assentado à direita de Deus Pai.
Ascendeu aos Céus, e Esd Asscntado à Direita de Dcus Pai Todo-Poderoso - 181

Qualquer que seja a prosperidade ou derrota que acon-


teça em nosso espaço, qualquer que seja a mudança, ou o
que quer que passe, há uma constante, uma coisa que per-
manece e continua, é este seu assentar à direita de Deus
Pai. Não há nenhum ponto decisivo histórico que se apro-
xime disto. Aqui temos o mistério do que chamamos his-
tória mundial, história da Igreja, história da civilização;
aqui temos a coisa que fundamenta tudo. Este primeiro
de tudo absoluto, simplesmente significa a coisa que está
expressa mais uma vez no final do Evangelho de São Ma-
teus, pelo tão conhecido mandato missionário: "Ide por
todo o mundo e fazei discípulos, batizando-os e ensi-
nando-os a observar as coisas que tenho mandado".
Como conseqüência, este conhecimento, de que a "onipo-
tência de Deus é a graça de Deus", não é um conheci-
mento inútil. E a conclusão do tempo da revelação não é
o fim de um espetáculo, onde a cortina se fecha e os es-
pectadores podem ir para casa, mas ela termina com um
desafio, com um mandamento. O evento da salvação
torna-se agora a ponta de um evento mundial. O que
agora se torna visível para os Apóstolos corresponde ao
fato de que aqui também na terra, como uma história hu-
mana, como uma ação dos discípulos, há um lugar ter-
reno que corresponde ao lugar celestial, uma vida e ação
de testemunhas da sua Ressurreição. Com a partida de Je-
sus Cristo para o Pai, algo é estabelecido na terra. Sua
partida significa não apenas um fim, mas também um
início, mesmo que não como uma continuação do seu ad-
vento. Para isto não seria dito que a obra de Jesus Cristo
simplesmente continua na vida de cristãos e na existência
da Igreja. A vida dos santos não é o prolongamento da re-
velação de Jesus Cristo sobre a terra. Isto contradiz o seu
"Está consumado". O que aconteceu em Jesus Cristo não
precisa de continuação. Mas, evidente, o que aconteceu
182 - Esboço de uma Dogm,ítica

de uma vez por todas possui no que agora acontece sobre


a terra uma correspondência, um reflexo; não uma repe-
tição, mas uma semelhança. E toda esta vida cristã é na fé
em Cristo, tudo isto é chamado de comunidade, é esta se-
melhança, este sombreamento a partir da existência de Je-
sus Cristo como a Cabeça do seu corpo. Cristo funda sua
Igreja ao ir para o Pai, ao fazer-se conhecido para seus
Apóstolos. Este conhecimento significa o chamado de
"Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda cria-
tura". Cristo é o Senhor. Isto é o que toda criação, o que
todas as nações devem conhecer. A conclusão da obra de
Cristo é, portanto, não uma oportunidade dada para os
Apóstolos para inatividade, mas o serem enviados para o
mundo. Aqui não há repouso possível; aqui há, pelo con-
trário, correria e corrida; aqui está o início da missão, o
enviar da Igreja ao mundo e para o mundo.
Este tempo que agora vivemos, o tempo da Igreja, é
ao mesmo tempo o tempo-final, o tempo no qual a exis-
tência ou o significado da existência do mundo das cria-
turas alcança seu objetivo. Ouvimos, quando falamos da
Cruz de Cristo e Ressurreição, que a batalha foi vencida,
o relógio está parando, mas Deus ainda tem paciência,
Deus ainda está esperando. Para este tempo da sua paci-
ência ele colocou a Igreja no mundo, e o significado deste
último tempo é, que ele está repleto da mensagem do
Evangelho e que o mundo tem seu mandamento, para ou-
vir esta mensagem. Podemos chamar este tempo que ir-
rompeu com a Ascensão de Jesus aos céus, "o tempo da
Palavra', talvez também o tempo do abandono e, em certo
sentido, da solidão da Igreja na terra. É o tempo no qual a
Igreja está unida com Cristo apenas na fé e pelo Santo Es-
pírito; é o tempo interino entre sua existência terrena e
seu retorno em glória; é o tempo da grande oportunidade,
da tarefa da igreja voltada para o mundo; é o tempo da
Ascendcu aos Céus, c Esd Assentado à Diteita de Deus Pai Todo-Poderoso - 183

missão. Como dissemos, é o tempo da paciência de Deus,


no qual ele está esperando pela Igreja, e, com a Igreja,
pelo mundo. Pois o que tem acontecido conclusivamente
em Jesus Cristo como o cumprimento do tempo, obvia-
mente não é para ser realizado sem a participação do ho-
mem, sem o louvor a Deus dos seus lábios, sem os seus
ouvidos, que podem ouvir a Palavra, sem os seus pés e
mãos, pelos quais eles podem se tornar mensageiros do
Evangelho. Que Deus e homem tornaram-se um em Jesus
Cristo pode ser visto, primeiro pelo fato de que há ho-
mens de Deus na terra, a quem é concedido serem suas
testemunhas. O tempo da Igreja, o tempo-final - o que
torna o tempo tão significante e grandioso, não é que ele
seja o tempo-final, mas que ele deixa oportunidade para o
ouvir, crer e arrepender, para proclamar e compreender a
mensagem. É tempo que se concretiza para Jesus Cristo
no relacionamento do "Eu estou à porta, e bato". Ele está
mais próximo. Ele deseja entrar; tão próximo e ainda do
lado de fora, diante da porta, e já podemos ouvi-lo e ficar
à espera da sua entrada. - Neste tempo interino e tempo-
final, neste tempo de espera e da paciência divina, nele
chega a ordem dupla da divina providência, as conexões
entre Igreja e Estado, das esferas internas e externas em
sua oposição e coordenação. Elas não são as últimas or-
dens ou a última palavra; mas, corretamente entendidas,
elas são as boas ordenanças para o objetivo, que corres-
pondem à graça de Deus. A Ascensão é o começo deste
tempo em que vivemos.
A Vinda de Jesus Cristo,
o Juiz

A memória dez Igreja é também sua expectativa, e sua


mensagem para o mundo é também a esperança
do mundo. Pois Jesus Cristo, de cuja palavra
e obra a Igreja conscientemente, e o
mundo ainda inconscientemente,
origina, é o mesmo que veio ao encon-
tro da Igreja e do mundo, como o objetivo
do tempo que está chegando ao fim, a fim de tornar
visível, finalmente e para todas as pessoas, a decisão to-
mada nele a graça e o reino de Deus
como a medida pela qual a humanidade
inteira e cada existência humana é medida.

"... De onde há de vir julgar os vivos e os mortos".


Depois de muitos perfeitos e o presente, segue-se o futuro
- "ele voltara'. Podemos analisar gramaticalmente todo o
segundo artigo em três tempos, que ele veio, que ele está
assentado à direita de Deus e que ele voltará.
Primeiro, deixe-me dizer algo sobre o conceito cris-
tão do tempo. Não podemos deixar de perceber que aqui
uma luz estranha cai sobre o que num sentido genuíno e
apropriado é chamado de tempo real - o tempo à luz do
tempo de Deus, a eternidade.
186 - Esboço de uma Dogmática

Jesus Cristo veio, todos aqueles tempos passados,


responderiam pelo que denominamos passado. Mas quão
inapropriado seria dizer deste evento que ele foi um pas-
sado. O que Jesus sofreu e realizou não é certamente pas-
sado; pelo contrário, é o velho que foi passado, o mundo
do homem, o mundo da desobediência e desordem, o
mundo da miséria, pecado e morte. O pecado foi cance-
lado, a morte foi vencida. O pecado e a morte existiram, e
toda a história humana, incluindo aquela que segue seu
curso post Christum, exatamente em nossos dias, existi-
ram. Tudo isto é passado em Cristo; podemos apenas
pensar em tudo isto olhando para trás.
Mas Jesus Cristo assentou-se ao lado do Pai, como
aquele que sofreu e ressurgiu dos mortos. Isto é o pre-
sente. Assim ele está presente como Deus está presente,
como isto já se admite que ele voltará como a pessoa que
ele uma vez foi. Ele que é hoje o mesmo que foi ontem,
também será o mesmo amanhã - Jesus Cristo ontem e
hoje, e o mesmo para a eternidade. Uma vez que Jesus
Cristo existe como a pessoa que foi, obviamente ele é o
início de um tempo novo, diferente daquele que conhece-
mos, um tempo no qual não há desvanecimento, mas o
tempo real que tem um ontem, um hoje e um amanhã.
Mas o ontem de Jesus Cristo é também o seu hoje e seu
amanhã. Não é ausência do tempo, uma eternidade vazia
que tem lugar no seu tempo. Seu tempo não está no fim;
ele continua seu movimento desde ontem para hoje, até o
amanhã. Ele não possui a temerosa efemeridade do nosso
presente. Quando Jesus Cristo assentou-se à direita do
Pai, a existência dele com Deus, sua existência como o
possuidor e representante da divina graça e poder outor-
gada aos homens, não tem nada que ver com o que ridi-
culamente concebemos como eternidade - isto é, uma
existência sem o tempo. Se esta existência de Jesus Cristo
A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 187

à direita de Deus é uma existência real e como tal a me-


dida de toda existência, então ela também existe no
tempo, embora em outro tempo além desse que conhece-
mos. Se o senhorio e governo de Jesus Cristo à direta do
Pai é o significado do que vemos como a existência da
nossa história do mundo e nossa história de vida, então
esta existência de Jesus Cristo não é uma existência sem o
tempo, e a eternidade não é uma eternidade sem o tempo.
A morte é sem o tempo, o nada é sem o tempo. Então so-
mos homens sem o tempo quando estamos sem Deus e
sem Cristo. Assim, não temos o tempo. Mas esta ausência
de tempo ele venceu. Cristo tem o tempo, a plenitude do
tempo. Ele assentou-se à direita de Deus como aquele que
veio, aquele que agiu e sofreu e triunfou na morte. Sua
parte à direita de Deus não é apenas o extrato desta histó-
ria; é o eterno dentro desta história.
Paralelamente a esta existência eterna de Cristo há
também sua existência transformadora. O que era, veio; o
que aconteceu acontecerá. Ele é o Alfa e o Ômega, o cen-
tro do tempo real, o tempo de Deus; que não é o tempo
sem significado que passa. Não o presente como nós o co-
nhecemos, no qual todo "agora" é apenas um salto do
nunca-mais para o ainda-não. Seria este presente a agita-
ção na sombra do Hades? Na vida de Jesus Cristo outro
presente nos encontra, que é o próprio passado, e, por-
tanto, não uma ausência de tempo que leva ao nada. E
quando se diz que Cristo está voltando, este retorno não é
um objetivo localizado no infinito. A "infinitude" é uma
atividade desconfortável e não um predicado divino, mas
aquilo que se refere à natureza da criatura caída. Este fim
sem um fim é apavorante. É uma imagem da perdição do
homem. O homem se encontra em tal estado que ele é
precipitado numa interminável falta de propósito. Este
ideal do infindável nada tem que ver com Deus. Um li-
188 - Esboço de lima Dogmática

mite é, pelo contrário, preparado para este tempo. Jesus


Cristo é e traz o tempo real. Mas o tempo de Deus tam-
bém tem um fim, assim como um início e um meio. O
homem está circundado e envolto em todos os lados. Isto
é a vida. Portanto, a existência do homem se torna visível
no segundo artigo: Jesus Cristo com seu passado, pre-
sente e futuro.
Quando a comunidade cristã olha para trás ao que
aconteceu em Cristo, na sua primeira vinda, sua vida,
morte e ressurreição, quando ela vive nesta memória, en-
tão não é uma mera lembrança, não o que chamamos his-
tória. Isto que aconteceu de uma vez por todas, pelo
contrário, é o poder da divina presença. O que aconteceu
ainda acontece e, como tal, acontecerá. O ponto do qual a
comunidade cristã origina-se, com sua confissão de Jesus
Cristo, é o mesmo ponto ao qual ela vai ao encontro. Suas
recordações são também suas expectativas. E quando a
comunidade cristã aborda o mundo, sua mensagem à pri-
meira vista tem certamente o caráter de uma narrativa
histórica, então a fala é de Jesus de Nazaré, que sofreu sob
Pôncio Pilatos, depois de nascer sob o Imperador Au-
gusto. Mas que angústia se a mensagem cristã para o
mundo tivesse parado neste evento. O conteúdo e obje-
tivo desta narrativa seria inevitavelmente de um homem
que viveu o "era uma vez" ou uma figura lendária para a
qual muitas nações olhariam para trás de uma maneira
semelhante, um fundador de uma religião entre outros.
Quão decepcionado o mundo estaria sobre o que fez e faz
existir a verdade, sobre as boas novas que "Cristo veio
para nossa reconciliação; regozijai, ó cristandade!" Este
perfeito "Cristo veio" também deve ser proclamado em
sua contextualização contra o mundo como aquilo que
este mundo mais espera, e em cujo encontro a história
mundial também vai.
A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 189

Além disso, a fé cristã poderia ser vista como expec-


tativa e esperança; mas esta expectativa podia ser de um
caráter vazio e generalizado, Uns esperam por melhores
tempos, melhores circunstâncias "nesta vida", ou na
forma de outra vida no tão-chamado "além". Assim, sutil-
mente a esperança cristã se torna uma expectativa inde-
terminada por alguma espécie de glória desejada. Alguns
se esquecem do verdadeiro conteúdo e objetivo da expec-
tativa cristã - ou seja, de que aquele que vem é o mesmo
que foi. Estamos para encontrar aquele de quem viemos.
Isto também deve, na relação entre a Igreja e o mundo,
ser a substância da sua mensagem: ela não aponta para o
vazio quando concede coragem e esperança para os ho-
mens; ela pode dar coragem e esperança em vista do que
aconteceu. "Está consumado" é completamente válido. O
tempo perfeito cristão não é imperfeito; mas correta-
mente entendido o perfeito tem a força do futuro. "Meu
tempo está em tuas mãos!" (5131.15). Assim nos admira-
mos como Elias na força deste alimento quarenta dias e
quarenta noites para o Monte de Deus, também chamado
Horebe. Ainda é a caminhada e não o objetivo, mas uma
caminhada direcionada pelo objetivo. Eis a maneira como
nós, cristãos, podemos falar aos não-cristãos, Não deve-
mos nos sentar entre eles como corujas melancólicas, mas
na certeza do nosso alvo, que sobrepuja todas as outras
certezas. Todavia, quantas vezes nos postamos envergo-
nhados entre os filhos do mundo, e quão freqüentemente
nós as compreendemos se a nossa mensagem não as satis-
faz. Aquele que entende que "nosso tempo está em tuas
mãos" não tratará altivamente os homens do mundo que,
na esperança precisa que muitas vezes nos envergonha,
seguem seu caminho; mas ele os entenderá melhor do
que eles entendem a si mesmos. Ele verá a esperança deles
como uma parábola, um sinal de que o mundo não está
190 - Esboço de lima Dogmática

abandonado, mas tem um início e um propósito. Nós,


cristãos, devemos transportar o verdadeiro Alfa e Ômega
ao coração da esperança e pensamento seculares. Mas só
podemos fazer isso se excedermos o mundo em confi-
ança.
Portanto, a situação é que o mundo origina-se in-
conscientemente, enquanto que a Igreja origina-se cons-
cientemente de Jesus Cristo, da sua obra. O fato objetivo é
que Jesus Cristo veio e que falou sua palavra e fez sua
obra. Isto existe, independentemente de se nós, homens,
cremos ou não. Isto vale para todos, para os cristãos e
para os não-cristãos. Derivamos do fato de que Cristo
veio e devemos olhar o mundo de acordo com isto. Que o
mundo seja "mundano" não quer dizer nada. Mas é o
mundo no meio do qual Jesus Cristo foi crucificado e res-
surrecto. A Igreja também surgiu dele e está na mesma
posição que o mundo. Mas a Igreja é o lugar onde a pes-
soa tem conhecimento disto e isto, na verdade, faz a tre-
menda diferença entre a Igreja e o mundo. Nós, cristãos,
podemos saber isso, podemos ver com olhos abertos a luz
que ressurgiu, a luz da parúsia. Nisto reside uma graça es-
pecial, na qual podemos nos alegrar a cada manhã. Na
verdade, não merecemos esta graça; os cristãos não são
melhores do que os filhos do mundo. Portanto, isto pode
ser apenas uma questão de sua apresentação, a partir do
seu conhecimento, algo para os outros que não conhe-
cem. Eles devem deixar brilhar a tênue luz, que foi conce-
dida a eles.
Tanto a Igreja quanto o mundo estão diante daquele
de quem eles se originam. E para os dois o milagre é que
este alvo de esperança não está em algum lugar, devendo
nós construir laboriosamente a estrada que nos conduz a
ela, porém o que está dito na Confissão é Venturus est.
Não que devemos vir; é ele quem vem. Aonde chegare-
A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 191

mos com nossa preocupação e correria? A história do


mundo, com sua diligência, com suas guerras e seus ar-
mistícios, a história da civilização com suas ilusões e im-
probabilidades - é este o caminho? Temos de sorrir. Mas
quando ele vem, ele que é o Ator, então tudo aquilo que é
tão miserável em nossa "progressividade" é visto sob uma
nova luz. A fraqueza e temeridade tolas da Igreja e do
mundo são elevadas por ele. "Cristo nasceu". Mais uma
vez o Advento. A vinda de Cristo mais uma vez é a vinda
daquele que está presente. Portanto, a tolice dos pagãos e
a fraqueza da Igreja não têm desculpas, mas elas entram
na luz do dia de Páscoa: "O mundo estava perdido, Cristo
nasceu". Todavia, Cristo não apenas intercedeu por nós;
ele também intercederá por nós. Desta forma a existência
- ambas, humana e cristã - é mantida desde o início até o
seu fim. Cristo não foi e nem será envergonhado de ser
chamado nosso Irmão.
"... De onde há de vir". Neste "de onde" está contido
sobre tudo este fato, de que ele emergirá da obscuridade
onde ele está para nós hoje, onde ele é proclamado e crido
pela Igreja, onde ele está presente para nós apenas na sua
Palavra. O Novo Testamento diz deste futuro porvir que
"ele virá sobre as nuvens dos céus com grande poder e
glória" e "assim como o relâmpago sai do Oriente e vai
para o Ocidente, assim será a vinda do Filho do homem"
(Lc 21.27; Mt 24.27). São metáforas, mas metáforas das
realidades finais, que ao menos indicam que isto não
acontece mais em mistério, mas é completamente reve-
lado. Ninguém mais será capaz de enganar-se sobre esta
realidade vivente. Portanto, ele virá. Ele rasgará os céus e
se postará diante de nós como a pessoa que ele é, assen-
tado à direita da divina onipotência. Ele vem como aquele
em cujas mãos nossa existência inteira está selada. Nele
esperamos, ele está voltando e ele será manifesto como
192 - Esboço de lima Dogmática

aquele a quem já conhecemos. Em suas mãos estão todos


estes eventos; a única coisa à espera é aquilo que está en-
coberto para ser removido para que todos o vejam. Ele já
cumpriu isto e ele tem o poder de fazê-lo manifesto. Em
suas mãos se encontra o verdadeiro tempo e não o tempo
sem fim no qual nunca temos o tempo. Mesmo neste mo-
mento este cumprimento pode existir. Nossa vida tem um
cumprimento e este cumprimento será manifesto. Nosso
futuro consiste em nosso ser mostrado que tudo foi cor-
reto e bom em nossa existência e nesta história do mundo
má e - milagre dos milagres! - nesta ainda mais má histó-
ria da Igreja. Não podemos vê-lo: o que está em Heussi 15
não é bom, e o que está nos jornais não é bom. Todavia,
algum dia será manifesto como reto, porque Cristo foi o
centro. Ele governa, assentado à direita do Pai. Isto virá à
luz e toda lágrima será enxugada. Este é o milagre do qual
podemos ir ao encontro, e o qual em Jesus Cristo será ex-
posto a nós como já existente, pois ele virá em sua glória,
como um relâmpago que brilha do Oriente e se estende
para o Ocidente.
"... Para julgar os vivos e os mortos". Se desejarmos
entender corretamente aqui, devemos desde o início su-
primir certas imagens do julgamento do mundo, até onde
podemos, e fazer um esforço para não pensar o que elas
estão descrevendo. Todas estas visões, como os grandes
pintores as representaram, sobre o julgamento do mundo
(Miguelangelo na Capela Sistina), Cristo avançando com
o punho cerrado, dividindo aqueles que estão à direita
daqueles que estão à esquerda, enquanto o olhar de al-
guém se mantém fixo naqueles da esquerda! Os pintores
imaginaram, até certo ponto com prazer, como estes con-

15. () alemão Karl Heussi (1877-1961), historiador da igreja, cuja obra era
bastante crítica.
A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 193

denados naufragavam no lago do inferno. Mas não é este


o caso. A Pergunta 52 do Catecismo de Heidelberg per-
gunta: "Que conforto terás com a vinda de Cristo para
julgar os vivos e os mortos?" Resposta: "De que em todos
os meus sofrimentos e perseguições possa olhar com mi-
nha cabeça ereta para o próprio Cristo, que antes se en-
tregou a si mesmo por mim no julgamento de Deus e
levou sobre si todas as minhas maldições, para vir como
Juiz dos céus.. :' Há uma observação diferente e chocante
aqui. O retorno de Jesus Cristo para julgar os vivos e os
mortos são boas novas de alegria. "Com a cabeça ereta", o
cristão e a Igreja podem de devem confrontar este futuro.
Pois aquele que vem é o mesmo que anteriormente ofere-
ceu a si mesmo para o julgamento de Deus. É pelo seu re-
torno que esperamos. Se tivesse sido concedido a
Miguelangelo e outros artistas ouvir e ver isto!
Jesus Cristo vindo novamente para julgamento, sua
última e universal manifestação sempre é descrita no
Novo Testamento como a revelação. Ele será revelado,
não somente para a Igreja, mas para todos, como a pessoa
que ele é. Ele não apenas será o juiz, ele é já o é; mas então
pela primeira vez ele se tornará visível, que isto não é uma
questão do nosso Sim e Não, nossa fé ou nossa falta de fé.
Na claridade e publicidade plenas o "está consumado"
virá à luz. Por isto a Igreja está esperando; e sem o saber o
mundo está esperando também. Estamos todos na rota de
encontro desta manifestação. Não parece, todavia, que a
graça e a justiça de Deus são, na verdade, válidas como a
medida pela qual a humanidade completa e cada indiví-
duo em si são medidos. Ainda temos dúvidas e ansieda-
des. Ainda há lugar para a justiça pelas obras e orgulho
pela piedade assim como pela impiedade. Isto pode ainda
ser visto. A Igreja proclama Cristo e a decisão feita nele.
Porém ainda se vive neste tempo que é chegado ao fim e é
194 - Esboço de lima Dogmática

portador de todas as marcas de grande fraqueza em si. O


que traz o futuro? Mais uma vez, não um ponto decisivo
na história, mas a revelação do que é. É o futuro, mas o
futuro daquilo que a Igreja rememora, daquilo que já
aconteceu de uma vez por todas. O Alfa e o Ómega são a
mesma coisa. A volta de Jesus Cristo provará que Goethe
estava certo quando escreveu:
':4 Deus pertence o Oriente e o Ocidente;
De Norte a Sul repousam as terras
Na profunda paz das próprias mãos de Deus."
Na perspectiva bíblica o juiz não é primariamente
aquele que recompensa alguns e pune outros; ele é o ho-
mem que cria a ordem e restaura o que foi destruído. Po-
demos encontrar este juiz, esta restauração ou, melhor, a
revelação desta restauração em confiança incondicional,
porque ele é o juiz. Em confiança incondicional, porque
viemos da sua revelação. O tempo presente parece tão
mesquinho e desprezível e não nos satisfará, nem mesmo
o presente tempo da Igreja e da cristandade. Mas é esta
cristandade que pode e deve deixar-se chamar repetidas
vezes, chamada de volta à sua origem e ao mesmo tempo
a encontrar o futuro de Jesus Cristo, O deslumbrante e
glorioso futuro do próprio Deus, que é o mesmo ontem e
hoje e para sempre. Para a seriedade da idéia de julga-
mento nenhum dano será feito, pois será manifesto que a
graça de Deus e a justiça de Deus são a medida pela qual
toda a humanidade e cada homem será medido. Venturus
judicare: Deus sabe tudo o que existe e acontece. Então
podemos ficar bem apavorados, e neste ponto estas visões
do Juízo Final não são simplesmente sem significado.
Aquele que não provém da graça e da justiça de Deus não
pode existir. Tanto a "grandeza" humana quanto a cristã
talvez mergulhe infinitamente para a mais profunda das
A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 195

trevas. Que existe um tal Não divino, de fato está pressu-


posto neste judicare. Mas no momento em que admitimos
isto devemos reverter para a verdade de que o Juiz que se-
para alguns para a esquerda e os outros para a direita, é,
na verdade, aquele que se entregou a si mesmo para o jul-
gamento de Deus no meu lugar e levou todas as minhas
maldições sobre si. Foi ele quem morreu na Cruz e res-
suscitou na Páscoa. O temor de Deus em Jesus Cristo não
pode ser nenhum além daquele que permanece na alegria
e confiança da pergunta: "Na vinda de Cristo o que te
conforta?" Isto não nos leva à apostasia. Há uma decisão
e uma divisão, mas através dele, que intercede por nós.
Existe nos dias de hoje uma divisão mais aguda e um de-
safio mais urgente do que a mensagem sobre este Juiz?
Creio no Espírito Santo

Quando os homens pertencem a Jesus Cristo de tal ma-


neira que eles têm liberdade para reconhecer
sua Palavra como destinada também a eles,
sua obra como realizada também para eles,
a mensagem sobre ele como também
sua tarefa; e assim,
por sua parte, liberdade para
esperar pelo melhor de todos os outros
homens, isto acontece, na verdade, como sua
experiência e ação humanas, e mesmo que não em vir-
tude da sua capacidade, determinação e
esforço humanos, mas somente
na base do Dom gratuito de Deus,
no qual tudo isto é concedido a eles. Neste
ato de conceder e dar, Deus é o Espírito Santo.

Neste ponto do Credo mais uma vez repete-se a pa-


lavra "creio". Isto não tem apenas um significado estilís-
tico; aqui a atenção é chamada com urgência para o fato
de que o conteúdo da Confissão Cristã é levantado mais
uma vez para uma nova luz, e o que agora se segue não
está obviamente conectado com o que veio antes. É como
198 - Esboço de uma Dogmárica

se fizesse uma pausa; é uma pausa notável entre a Ascen-


são e o Pentecostes.
As afirmações do terceiro artigo estão direcionadas
ao homem. Enquanto o primeiro artigo fala de Deus, o
segundo do Deus-homem, agora o terceiro fala do ho-
mem. Não devemos neste ponto, evidentemente, separar
os três artigos; devemos entendê-los em sua unidade. Es-
tamos ocupados com o homem que participa no ato de
Deus, e, além disso, participa ativamente. O homem per-
tence ao Credo. Este é o mistério que não foi ouvido, do
qual estamos agora nos aproximando. Há uma fé no ho-
mem, desde que este homem participe ativamente e livre-
mente no trabalho de Deus. E isto que na verdade
acontece, é a obra do Espírito Santo, a obra de Deus na
terra, que tem sua analogia na obra oculta de Deus, na
emanação do Espírito da parte do Pai e do Filho.
Qual é o significado desta participação do homem
na obra de Deus, de seu livre e ativo compartilhar? Não
seria nada confortável se tudo permanecesse objetivo. Há,
também, um elemento subjetivo; podemos ver a moderna
exuberância deste elemento subjetivo, que já foi introdu-
zido na metade do século dezessete, e trazido por Schlei-
ermacher para a ordem sistemática, como uma tentativa
forçada de trazer a verdade do terceiro artigo.
Há uma conexão geral de todos os homens com
Cristo, e todo homem é seu irmão. Ele morreu por todos
os homens e ressuscitou por todos os homens; portanto,
todo homem é enfocado pela obra de Jesus Cristo. Que
seja assim, é a promessa para toda a humanidade. Esta é a
base mais importante, e a única que abrange tudo, do que
chamamos humanidade. Aquele que uma vez percebeu o
fato de que Deus se fez homem não pode falar e agir de-
sumanamente.
Creio no Espírito Santo - 199

Mas, antes de tudo, quando falamos do Espírito


Santo, não vamos olhar para todos os homens, mas para
homens especiais que pertencem, de uma maneira espe-
cial, a Jesus Cristo. Quando falamos do Espírito Santo, es-
tamos falando de homens que pertencem a Jesus Cristo
de uma maneira especial que eles têm a liberdade de reco-
nhecer sua Palavra, sua obra, sua mensagem em uma ma-
neira precisa, e também esperar de sua parte o melhor
para todos os homens.
Quando falamos de fé, acentuamos o conceito de li-
berdade. Onde estiver o Espírito do Senhor, aí há liber-
dade (2Co 3.17). Se desejarmos parafrasear o mistério do
Espírito Santo, é melhor escolher este conceito. Receber o
Espírito, ter o Espírito, viver no Espírito significa se liber-
tar e se permitir viver em liberdade. Nem todos os ho-
mens são livres. Liberdade não é uma coisa natural e não
é simplesmente um predicado da existência humana. To-
dos os homens estão destinados à liberdade, mas nem to-
dos estão nesta liberdade. Onde passa a linha de
separação está oculto a nós, homens. O Espírito sopra
onde ele quer 00 3.8). Não verdade, não é uma condição
natural do homem para ele ter o Espírito; isto sempre será
uma distinção, um Dom de Deus. O que importa aqui é,
simplesmente, pertencer a Jesus Cristo. Não nos ocupa-
mos com Espírito Santo como algo novo e diferente dele.
Esta sempre foi uma concepção errônea do Espírito
Santo. O Espírito Santo é o Espírito de Jesus Cristo. "Re-
ceberá do que é meu e vos dará" 00 16.14). O Espírito
Santo não é nada mais do que uma certa relação da Pala-
vra com O homem. No derramamento do Espírito Santo
no Pentecostes, há um movimento - pneu ma significa
vento - de Cristo para o homem. Ele soprou sobre eles:
"Recebei o Espírito Santo!" Cristãos são todos aqueles so-
prados por Cristo. Portanto, num certo aspecto, nunca
200 - Esboço de uma Dogm,ítica

poderemos falar de modo suficientemente solene do Es-


pírito Santo. O que está envolvido é a participação do ho-
mem na Palavra e obra de Cristo.
Mas esta simples coisa é ao mesmo tempo algo su-
premamente inconcebível. Pois esta participação do ho-
mem significa participação ativa. Vamos ainda ponderar
o que isto significa em sua mais profunda verdade: ser
trazido ativamente para a grande esperança de Jesus
Cristo que sustenta todos os homens, não é verdadeira-
mente uma coisa natural. É uma resposta para a pergunta
que se renova diante de nós a cada manhã. Ela envolve a
mensagem da Igreja Cristã; e através do meu ouvir esta
mensagem ela torna-se minha própria tarefa. Esta mensa-
gem também passa por mim, como cristão; também me
torno portador dela. Mas, por meio dela, sou colocado na
posição de, por minha parte, considerar os homens, todos
os homens, muito diferentemente de antes; já não posso
mais fazer outra coisa senão esperar o melhor para todos.
Ter ouvidos internos para a Palavra de Cristo, ser
agradecido por sua obra e ao mesmo tempo responsável
pela mensagem dele e, por último, ter confiança nos ho-
mens por amor a Cristo - esta é a liberdade que obtemos,
quando Cristo sopra sobre nós, quando ele nos envia seu
Santo Espírito. Se ele não vive mais num lugar remoto
histórico ou celestial, teológico ou eclesiástico para mim,
se ele se aproxima de mim e toma posse de mim, o resul-
tado será que eu ouço, que sou agradecido e responsável e
que, finalmente, posso esperar por mim mesmo e por to-
dos os outros; em outras palavras, que eu posso viver de
uma maneira cristã. É uma coisa tremendamente grande
e de modo algum uma coisa natural, obter esta liberdade.
Devemos, portanto, cada dia e cada hora orar Veni Crea-
tor Spiritus, ouvindo a Palavra de Cristo e em ação de gra-
ças. Este é um círculo fechado. Não "possuímos" esta
Creio no Espírito Santo - 201

liberdade; ela é, repetidas vezes, concedida a nós por


Deus.
Na expos1çao do primeiro artigo da Confissão eu
disse que a criação não era um milagre menor do que o
nascimento virginal de Cristo. E agora, em terceiro lugar,
gostaria de dizer que o fato de que há cristãos, homens
que têm esta liberdade, não é um milagre menor do que o
nascimento virginal de Jesus Cristo do Espírito Santo e da
Virgem Maria, ou do que a criação do mundo a partir do
nada. Pois, se lembrarmos o que, e quem, e como somos,
devemos clamar. "Senhor, tem misericórdia de nós'~ Para
este milagre os discípulos esperaram dez dias após a As-
censão do Senhor aos céus. Não senão depois desta pausa
o derramamento do Espírito Santo aconteceu e com isso
uma nova comunidade surgiu. Lá aconteceu um novo ato
de Deus, que, como todos os atas de Deus, é uma confir-
mação dos anteriores. O Espírito não pode ser separado
de Jesus Cristo. "O Senhor é o Espírito", diz Paulo.
Quando os homens podem receber e possuir o Espí-
rito Santo, isto é naturalmente uma experiência humana e
um ato humano. É também uma questão de entendi-
mento e de vontade e, posso dizer na verdade, da imagi-
nação. Isto também pertence ao ser um cristão. O homem
completo, até nas mais íntimas regiões do tão chamado
"inconsciente", é tomado em clamor. A relação de Deus
com o homem inclui o homem completo. Mas não deve
haver má compreensão: o Espírito Santo não é uma forma
de espírito humano. A teologia é tradicionalmente reco-
nhecida como uma das "ciências do intelecto". Isto pode
passar como piada de bom gosto. Mas o Espírito Santo
não é idêntico ao espírito humano, porém o encontra.
Não desejaríamos degradar o espírito humano -é parti-
cularmente necessário tratá-lo com um pouco de carinho
na nova Alemanha - e mesmo os teólogos não deveriam
202 - Esboço de LIma Dogmática

se desviar numa atitude papista e arrogante. Mas esta li-


berdade da vida cristã não vem do espírito humano. Ne-
nhuma capacidade humana, ou possibilidades, ou
esforços de qualquer espécie podem alcançar esta liber-
dade.
Quando acontece de o homem obter liberdade tor-
nando-se um ouvinte, responsável, agradecido, uma pes-
soa esperançosa, não é por causa de um ato do espírito
humano, mas somente por causa do ato do Espírito Santo.
Portanto isto é, em outras palavras, um Dom de Deus.
Isto tem que ver com um novo nascimento, com o Espí-
rito Santo.
A Igreja, Sua Unidade,
Santidade e Universalidade

Desde que aqui e acolá, através do Espírito Santo, os ho-


mens se encontram com Jesus Cristo e,
desta forma, também um com o outro,
a comunidade cristã visivelmente
surge e existe aqui e acolá.
É uma forma do único, universal
e santo povo de Deus, e uma comunhão
de homens e obras santas, que se submete
ao governo único de Jesus Cristo, em quem ela
está fundamentada, que também almeja viver somente no
cumprimento do seu serviço como
embaixadora, reconhecendo seu
objetivo unicamente na sua esperança,
que é o seu limite.

Devemos ser breves nesta parte, que por direito de-


veria ser tratada muito completamente. Nossas horas de
palestra são numeradas. Mas talvez não haja nenhum
prejuízo nisso. Hoje, há coisas demais ditas sobre a Igreja.
Há algo melhor: vamos ser a Igreja!
Seria um grande lucro, se o urgente desejo de Lutero
tivesse sido cumprido e a palavra "congregação" tivesse
tomado o lugar da palavra "Igreja". Claro que podemos
204 - Esboço de uma Dogmárica

achar na palavra "Igreja" o que é bom e verdadeiro, uma


vez que Igreja significa Kyriake Oikia, a Casa do Senhor;
ou, originada de circa, um espaço circular fechado. As
duas explanações são possíveis, mas ekklesia certamente
significa congregação, um ajuntamento, que surge da
convocação para a assembléia nacional que se encontra
ao chamamento do mensageiro, ou melhor, ao som da
trombeta do arauto.
Uma congregação é o ajuntamento daqueles que
pertencem a Jesus Cristo através do Espírito Santo. Ouvi-
mos que estes homens especiais pertencem, de uma
forma especial, a Jesus Cristo. Isto acontece quando os
homens são chamados pelo Espírito Santo para participa-
rem na Palavra e obra de Cristo. Esta associação especial
tem sua analogia ao nível horizontal na associação daque-
les homens uns com os outros. O derramamento do Espí-
rito Santo afetou diretamente o ajuntamento destes
homens. Não podemos falar do Espírito Santo - isto por-
que é neste ponto que a congregação aparece imediata-
mente - sem a continuação do credo ecclesiam, creio na
existência da Igreja. Reciprocamente, ai de nós, quem so-
mos nós quando falamos da Igreja sem estabelecê-la to-
talmente na obra do Espírito Santo~ Credo in Spiritum
sanctum, mas não Credo in ecclesiam: Creio no Espírito
Santo, mas não na Igreja. Ao contrário, creio no Espírito
Santo, e, portanto, também na existência da Igreja, da
congregação. Portanto, devemos eliminar todas as idéias
de outra assembléia humana ou sociedades que têm exis-
tido, parcialmente pela natureza, parcialmente peIa histó-
ria, na base de acordos e organizações. A congregação
cristã surge e existe, nem por natureza nem pela decisão
histórica humana, mas como uma divina convocatio.
Aqueles chamados ao ajuntamento pela obra do Espírito
Santo congregam-se ao serem convocados por seu Rei.
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 205

Onde a Igreja coincide com a vida natural da comuni-


dade, com, por exemplo, aquela das nações, o perigo de
uma má compreensão sempre é ameaçador. Ela não pode
ser formada por mãos humanas; por isto a entusiasmada
e rápida fundação de igrejas, tal como acontece na Amé-
rica e também algumas vezes na Holanda, é um negócio
duvidoso. Calvino gostava de aplicar à Igreja uma con-
cepção militar, a de la compagnie des fideles. Uma compa-
nhia geralmente vem do ajuntamento sobre a base de um
comando e não sobre a de um livre acordo.
Através de homens se congregando aqui e acolá no
Espírito Santo surge aqui e acolá uma congregação cristã
visível. É melhor não aplicar a idéia de invisibilidade para
a Igreja; somos todos inclinados a escorregar com isto na
direção de uma civitas platonica ou alguma espécie de
"terra de cucos nas nuvens", na qual os cristãos estão uni-
dos intimamente e invisivelmente, enquanto a Igreja visí-
vel é desvalorizada. No Credo dos Apóstolos ela não é
uma estrutura invisível que é planejada, mas um ajunta-
mento completamente visível, que se origina com os doze
Apóstolos. A primeira congregação era um grupo visível,
que causou um alvoroço público visível. Se a Igreja não
tem esta visibilidade, então não é a Igreja. Quando digo
congregação, estou pensando primariamente na forma
concreta de uma congregação em local particular. É claro
que cada uma destas congregações tem seus problemas,
como a congregação de Roma, de Jerusalém etc. O Novo
Testamento nunca apresenta a Igreja fora dos seus proble-
mas. Sempre que um problema de variação na congrega-
ção individual aparece, pode levar a uma divisão. Tudo
isto pertence à visibilidade da Igreja, que é o objeto do se-
gundo artigo. Cremos na existência da Igreja - o que sig-
nifica que cremos que cada congregação em particular
seja uma congregação de Cristo. Guarde bem isto: uma
206 - Esboço de uma Dogm,írica

pessoa que não crê que nesta congregação à qual per-


tence, incluindo aqueles homens e mulheres, viúvas e cri-
anças, a congregação de Cristo existe, não crê na
existência da Igreja. Credo ecclesian significa que creio
que aqui, neste lugar, nesta assembléia visível, a obra do
Espírito Santo acontece. Por isto não pretendo uma deifi-
cação da criatura; a Igreja não é o objeto da fé, não cre-
mos na Igreja; mas cremos que nesta congregação a obra
do Espírito Santo se torna um evento. O mistério da
Igreja é que para o Espírito Santo não é pouca coisa ter
tais formas. Conseqüentemente, existem na verdade não
muitas Igrejas, mas uma Igreja em termos desta ou da-
quela igreja concreta, que reconheceria a si mesma como
uma Igreja e todas as outras também.
Credo unam ecclesiam: creio em uma forma do povo
de Deus que ouviu a voz do Senhor. Existem também di-
ferenças arriscadas como aquela, por exemplo, entre a
nossa e a Igreja Católica Romana, na qual não é simples
reconhecer uma Igreja. Mas, mesmo assim, a Igreja ainda
é mais ou menos reconhecível. Mas, antes de tudo, os
cristãos são simplesmente convocados para crer em Deus
como a origem comum, o objetivo comum da Igreja para
o qual eles são chamados. Não somos colocados numa
torre, da qual podemos vislumbrar todas as variedades de
Igrejas; simplesmente estamos na terra num lugar defi-
nido e existe a Igreja, a única Igreja. Cremos na unidade
da Igreja, na unidade das congregações, se cremos na
existência da nossa Igreja concreta. Se cremos no Espírito
Santo nesta Igreja, então mesmo na pior das hipóteses
não somos absolutamente separados das outras congrega-
ções. Os verdadeiros cristãos ecuménicos não são aqueles
que vulgarizam as diferenças e flutuam acima delas; mas
são aqueles que em suas respectivas igrejas são concreta-
mente a Igreja. "Onde dois ou trés estiverem reunidos em
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 207

meu nome, aí estarei" (Mt 18.20) - isto é a Igreja. Nele,


apesar de todas as variedades nas congregações individu-
ais, estaremos unidos, de alguma forma, uns com os ou-
tros.
"Creio na santa... Igrejà'. Qual é o significado de
sancta ecclesia? Segundo o costume do termo, ele significa
"estar separado'~ Pensamos na origem da igreja, daqueles
chamados do mundo. "Igrejà' sempre significará uma se-
paração. Ouvimos que há também sociedades naturais e
históricas, mas somente a congregação cristã é a ecclesia
saneta. Ela é distinta de toda estas sociedades por causa
da sua comissão, seu fundamento e seu objetivo.
"Creio na santa igrej a católica [universal] ..." - eccle-
sia catholica. O conceito de catolicidade está manchado
para nós, porque em conexão com isso pensamos da
Igreja Católica Romana. Mas os Reformadores indubita-
velmente fizeram uma reivindicação sobre este conceito
para si mesmos. O que está envolvido é o povo único,
santo e católico de Deus. Fundamentalmente os três con-
ceitos fazem a mesma declaração: ecclesia catholica signi-
fica que através de toda a história a Igreja permanece a
mesma consigo mesma. Ela não altera sua natureza. Há,
evidentemente, diferentes formas nas principais igrejas.
Há também fraquezas, perversões, erros em todas elas.
Mas não há igrejas substancialmente diferentes. A oposi-
ção a elas poderia ser apenas aquela de que há verdadeiras
e falsas igrejas. Faremos bem em não incluir esta oposição
com muita rapidez e freqüência dentro da discussão.
A Igreja é a comunhão dos santos, communio sanc-
tOfum. Aqui existe um problema de exegese: é o nomina-
tivo sancti ou sancta? Não quero decidir esta disputa, mas
apenas falar se não existe a intenção de uma ambigüidade
notável num sentido mais profundo. Pois somente
quando as duas interpretações são assimiladas lado a
20S - Esboço de uma Dogmática

lado, a questão recebe seu completo e melhor significado.


Saneti significa não especialmente um povo excelente,
mas, por exemplo, povo como os "santos em Corinto", que
foram santos extremamente esquisitos. Mas estes compa-
nheiros esquisitos, a quem também pertencemos, são
saneti. A congregação é o lugar onde a Palavra de Deus é
proclamada e os sacramentos são solenizados e o compa-
nheirismo da oração acontece, não mencionando os dons
e obras interiores, que são o significado daqueles exterio-
res. Então, saneti pertence a saneta e vice-versa.
Deixe-me recapitular: Credo eeclesiam significa que
creio que a congregação à qual pertenço, na qual tenho
sido chamado à fé e sou responsável pela minha fé, na
qual tenho meu ministério, é aquela Igreja santa e univer-
sal. Se não acredito nela, não acredito em nada dela. Nem
falta de beleza, nem "rugas e manchas" nesta congregação
podem desviar-me do caminho. O que está envolvido
aqui é um artigo de fé. Não há sentido, quando buscamos
a "verdadeira' congregação, abandonar a congregação
concreta. Em todo lugar estamos nos "relacionando com
homens'~ Claro, a separação não pode ser excluída; ela
pode ser objetivamente necessária. Mas nenhuma divisão
jamais levará o "relacionamento com homens" a ser ex-
cluído completamente em uma recém-separada congre-
gação do Espírito Santo. Quando os Reformadores
chegaram e a Igreja Romana permaneceu atrás da Igreja
Reformada e separada dela, não estava em ação na Igreja
evangélica nenhuma Igreja imaculada, pois ela também
estava cheia de "manchas e rugas" até nossos dias. Pela fé
certifico que a congregação concreta a qual pertenço e
pela vida da qual sou responsável, está designada para a
tarefa de fazer neste lugar, nesta forma, aquela santa
Igreja universal visível. Dizendo Sim para isto, como
aquele que pertence a outras congregações pelo Espírito
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 209

Santo, espero e tenho esperança de que o Espírito Santo


de Jesus Cristo atesta nisto e através disto também aos ou-
tros e confirma que nisto aquela natureza santa e univer-
sal da Igreja se tornará visível.
No Credo de Nicéia um quarto ponto é acrescen-
tado a estes três predicados da Igreja, que eu creio na-
quela una, santa, católica e apostólica Igreja. Mas este
quarto predicado não permanece simplesmente numa fi-
leira com os outros três predicados, mas procura explicá-
los. Qual é o significado de Unidade, Catolicidade, Santi-
dade? O que distingue a congregação de todas as outras
sociedades do tipo natural ou mesmo histórico? Talvez
possamos dizer que ela é a ecclesia apostolica - isto é, a
Igreja fundada sobre o testemunho dos Apóstolos - que
transmite seu testemunho e que foi constituída e será
constituída sempre em novidade pelo fato de que ela ouve
o testemunho dos Apóstolos. Somos desafiados com a
completa totalidade da existência da Igreja e ao mesmo
tempo com a totalidade dos problemas, nos quais não te-
mos tempo nem espaço para entrar. Mas tentarei tornar
visível em três linhas o que a apostolicidade da Igreja sig-
nifica.
Nossa declaração de abertura diz que a congregação
cristã é "uma comunhão de homens e obras santas, que se
submete ao governo único de Jesus Cristo, em quem ela
está fundamentada, que também almeja viver somente no
cumprimento do seu serviço como embaixadora, reco-
nhecendo seu objetivo unicamente na sua esperança, que
é o seu limite". Aqui você vê as três linhas que estão envol-
vidas.
Onde a Igreja Cristã está, estamos obviamente co-
nectados de uma forma ou outra com Jesus Cristo. Este
nome indica a unidade, santidade e universalidade da
Igreja. Quer esta base e apelo aconteça de jure é a questão
210 - Esboço de lima Dogmática

que deve ser levantada em cada congregação em todo lu-


gar. Onde a Igreja Apostólica está, a Igreja que ouve e
transmite o testemunho dos Apóstolos, um sinal defini-
tivo estará vivo, uma nota ecclesiae, de que Jesus Cristo, a
saber, não é apenas aquele de quem a igreja se origina,
mas que Cristo é aquele que governa a congregação. Ele, e
somente ele! Em nenhum lugar ou espaço a Igreja é uma
autoridade que se sustenta a si mesma, mas - e aqui se se-
gue um importante princípio com relação ao governo da
Igreja - fundamentalmente a Igreja não pode ser gover-
nada nem monarquicamente nem democraticamente.
Aqui Jesus Cristo governa sozinho, e qualquer governo
do homem pode apenas representar este governo dele. E
deve deixar-se medir por este governo. Mas Jesus Cristo
governa em sua Palavra pelo Espírito Santo. O governo da
Igreja é, assim, idêntico com a Sagrada Escritura, através
do seu testemunho dele. Portanto, a Igreja deve continua-
mente estar ocupada com a exposição e aplicação da Es-
critura. Onde a Bíblia se torna um livro morto com a cruz
sobre a capa e margens douradas, o governo de Jesus na
Igreja é inativo. Neste caso, a Igreja não é mais aquela
santa Igreja universal, mas permanece a ameaça de rup-
tura naquilo que é profano e separatista. Evidente que até
mesmo esta "Igreja" se chamará pelo nome de Jesus
Cristo. Entretanto, não são as palavras, mas a realidade
que interessa; e tal Igreja não estará numa posição para
trazer a realidade à ação.
A vida da única santa Igreja universal está determi-
nada pelo fato de que ela é o cumprimento do ministério
de embaixadora ordenado sobre ela. A Igreja vive como
outras comunidades vivem, mas neste ministério da
Igreja sua natureza aparece - proclamação da Palavra de
Deus, administração dos sacramentos, um maior ou me-
nor desenvolvimento litúrgico, a aplicação da lei da Igreja
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 211

(a tese de R. Sohm é um trabalho fantástico, pois até


mesmo a primeira congregação tinha ao menos um orde-
namento como Igreja, isto é, Apóstolos e congregação) e,
por último, uma teologia. O grande problema, que a
Igreja tem de responder repetidas vezes, é este - o que
acontece em e por meio de todas estas funções? É uma
questão de edificação? É a bem-aventurança de indiví-
duos ou tudo que o envolve? É o cultivo da religião viva,
ou objetivamente uma ordem (segundo o conceito onto-
lógico de Igreja) que deve simplesmente ser cumprida
como a obra de Deus? Onde a vida da Igreja está exaurida
no auto-serviço, tem-se o gosto de morte; o elemento de-
cisivo foi esquecido, de que a vida inteira é vivida apenas
no exercício do que chamamos ministério de embaixador
da Igreja, proclamação, kerygma. Uma Igreja que reco-
nhece sua comissão não desejará, nem estará apta a petri-
ficar em quaisquer de suas funções, para ser uma Igreja
em interesse próprio. Há o "grupo dos crentes em Cristo";
mas este grupo foi enviado: "Ide e pregai o Evangelho!".
Ele não diz, "Ide e celebrai o ministério!"; "Ide e edificai a
vós mesmos com o sermão!"; "Ide e celebrai os Sacramen-
tos!"; "Ide e apresentai-vos na liturgia, que porventura re-
pita a liturgia celestial!"; "Ide e deixai o legado de uma
teologia que possa gloriosamente se desdobrar como a
Summa de Thomas de Aquino!" Claro, não há nada que
proíba tudo isto; pode haver uma boa causa para fazer
tudo isto; mas nada, nada afinal para seu interesse pró-
prio! Nela, todas aquelas coisas devem prevalecer: "Pregai
o Evangelho a toda criatura!" A Igreja corre como o
arauto para entregar a mensagem. Não é um caracol que
transporta sua pequena casa sobre suas costas e está tão
bem acomodado, que apenas ocasionalmente liga suas
antenas, e depois pensa que a "exigência de publicidade"
foi satisfeita. Não, a igreja vive pela sua comissão como
212 - Esboço de lima Dogmática

arauto; ela é la compagnie de Dieu. Onde a Igreja está viva,


ela deve perguntar a si mesma se está servindo esta co-
missão ou se tornou-se um objetivo em si mesma? Se o
último for o caso, então como regra ela começa a ter o
gosto pelo "sagrado", com afetos de piedade, a agir como
sacerdote e murmurador. Qualquer um com nariz agu-
çado sentirá o cheiro e achará formidável! O Cristianismo
não é "sagrado"; pelo contrário ele respira o ar fresco do
Espírito. De outra forma, não é Cristianismo. Pois ele é
algo "mundano" exposto para toda humanidade: "Ide por
todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura".
Agora, o último ponto, de que onde a Igreja estiver,
também haverá um alvo, o reino de Deus. Este objetivo
da Igreja está destinado a constituir uma contínua inquie-
tação para os homens na Igreja, cuja ação não tem ne-
nhuma relação com a grandeza do objetivo. Não devemos
permitir que a existência cristã, isto é, a existência da
Igreja, a existência teológica, seja privada deste. Pode
acontecer que queiramos largar a mão do arado, quando
comparamos a Igreja com este objetivo. Podemos, com
freqüência, ter uma aversão pela vida da Igreja como um
todo. Se você não conhece esta opressão, se você simples-
mente sente-s? bem dentro das paredes da Igreja, você
certamente nâo viu a verdadeira dinâmica desta questão.
Na Igreja podemos ser como um pássaro na gaiola que
está sempre se debatendo contra as grades. Algo bem
maior está em jogo do que nosso punhado de pregação e
liturgia! Mas onde a Igreja Apostólica está viva, alguém
conhece, verdadeiramente, este anseio, nós ansiamos pela
mansão preparada para nós, mas não fugirmos, simples-
mente não abandonamos. Pela esperança do reino, nós
não nos permitimos ser impedidos de permanecer como
um soldado raso na compagnie de Dieu, e assim avançar
para o alvo. O limite nos é marcado pelo alvo. Se real-
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 213

mente esperamos pelo reino de Deus, então podemos su-


portar a Igreja em sua insignificância. Então não
ficaremos envergonhados em descobrir na congregação
concreta a única Igreja santa e universal, e então nenhum
indivíduo será envergonhado da sua confissão particular.
A esperança cristã, que é a coisa mais revolucionária que
somos capazes de pensar e além da qual todas as outras
revoluções são meros cartuchos vazios, é uma esperança
disciplinada. Ela orienta o homem nas suas limitações:
nela você persevera. O Reino de Deus é chegado, por-
tanto, você não deve começar a luta pelo Reino de Deus.
Tome seu lugar e esteja em seu lugar como um verdadeiro
minister verbi divini. Você pode ser um revolucionário,
mas você pode ser também um conservador. Onde este
contraste entre revolucionário e conservador está unido
em um homem, onde ele pode ser de uma vez completa-
mente ansioso e completamente tranqüilo, onde ele pode
estar com os outros desta maneira na congregação, na
qual os membros reconhecem um ao outro em anseio e
em humildade na luz do divino humor, ele fará o que tem
de fazer. Nesta luz toda nossa ação na Igreja é permitida
e, na verdade, recomendada. Portanto, a Igreja, esperando
e apressando, caminha ao encontro da vinda do Senhor.
o Perdão dos Pecados

o homem cristão olha para trás e, apesar do seu pecado,


recebe o testemunho, através do Espírito Santo
e através do santo batismo, da morte de
Jesus Cristo e assim da justificação
da sua própria vida.
Sua fé, por último, está fundada
no fato de que o próprio Deus, tomando
o lugar do homem em Jesus Cristo,
assumiu responsabilidade
incondicional por seu caminho.

Este é o caminho do homem cristão, que foi consti-


tuído pela graça de Deus e que tem seu lugar na congre-
gação. Não devemos, portanto, sob circunstância alguma,
separar o que temos ouvido agora, perdão dos pecados,
ressurreição do corpo e vida eterna, do fato de que Deus,
pelo Espírito Santo, age de maneira tal que há homens
que ouvem, e surge uma congregação. O caminho do cris-
tão é derivado do perdão dos pecados e conduz à ressur-
reição do corpo e vida eterna. Esta origem do homem
cristão está concentrada, realmente e substancialmente
num único ponto. Este ponto é o centro do segundo ar-
tigo, a paixão e ação de Jesus Cristo. Estamos juntos com
216 - Esboço de uma Dogmática

ele no Espírito Santo. Somos a sua congregação, e tudo


que é nosso é originalmente e particularmente dele. Vive-
mos pelo que ele é. Não devemos nos afastar deste centro
de toda a verdade. Perdão dos pecados, ressurreição, vida
eterna não são coisas externas a Cristo, mas são a ação de
Deus na sua luz. Ele, o Único, ilumina, e o homem cristão
move-se em sua luz. O que distingue o homem cristão é
que ele permanece neste feixe de luz que vem de Cristo.
Mas esta existência na luz não é um propósito egoísta, po-
rém o homem cristão move-se nesta luz, a fim de ter luz
em si mesmo. Deus amou o mundo de tal maneira que
deu o seu único Filho. Cristãos são mensageiros no lugar
de Cristo. Mas aqui na congregação ele é reconhecido, ele
é visto e experimentado, o que Cristo é para o homem,
para todos os homens, a fim de que o testemunho possa
ser conduzido daqui.
Creio no perdão dos pecados - este é o ponto no
qual o cristão obviamente olha para trás no caminho do
qual ele vem. Não somente no momento da sua 'conver-
são', mas é o que acontece sempre quando o cristão olha
para trás: ele está olhando para o perdão dos pecados.
Este é o acontecimento que o confronta e o impele para
uma atitude, isto e nada mais. Não se acrescenta a isto,
como perdão dos pecados e minha experiência ou perdão
dos pecados e minhas realizações! O que está em retros-
pecto, sabemos por nós mesmos, somente pode ser isto,
que vivemos através do perdão. Para sermos honestos, so-
mos indigentes.
Se perdão dos pecados significa tudo que ficou para
trás de nós, então um julgamento passou sobre nossa
vida. Não há nenhum mérito, aquele da gratidão, diga-
mos, no qual tenho oferecido toda espécie de coisas ao
querido Deus. Tenho sido um lutador! Tenho sido um te-
ólogo! Talvez tenha escrito livros! Não, isto não justifica.
o Perdão dos Pecados - 217

Tudo que fomos e fizemos estará sujeito ao julgamento de


que estava em pecado. E pecado significa transgressão,
desvio. Se havia alguma coisa a mais, sempre foi a coisa
que veio de cima, da qual não temos de que nos jactar,
mesmo porque é a misericórdia de Deus. Todo dia deve-
mos começar, podemos começar com a confissão: "Creio
no perdão dos pecados". Na breve hora da nossa morte
ainda teremos mais para dizer. Talvez possamos melhor
clarificar o conceito de perdão ou remissio, como alguma
coisa que foi gravada em escritos, por exemplo, nossa
vida; agora um grande golpe, e ele é retirado por inteiro.
Ele merece ser retirado e - graças a Deus! - será retirado.
Apesar do meu pecado, agora posso aceitar um testemu-
nho de que meu pecado não será mais lembrado para
mim. Não posso, por mim mesmo, removê-lo de mim
mesmo. O pecado significa a perdição eterna do homem.
Como poderíamos por nós mesmos conduzir esta remo-
ção? Que tenho pecado significa que sou um pecador.
Mais uma vez tudo isto nos leva ao testemunho do
Espírito Santo, o testemunho da Palavra de Deus ouvida e
o testemunho do batismo. Pois a relevância do santo ba-
tismo é esta, de que podemos durante toda a nossa vida
pensar no fato de que somos batizados; assim como Lu-
tero na tentação apanhou um giz e escreveu na lousa,
baptizatus sumo O batismo fala de mim completamente,
independentemente se sempre estive atento ao testemu-
nho do Espírito Santo com a mesma vivacidade. Há algo
de errado com a nossa percepção. Há um sobe e desce
nela; algumas vezes a Palavra não é viva para mim, e é
aqui onde o fato pode intervir, de que sou batizado. Mais
uma vez em minha vida um sinal foi estabelecido, de que
estou seguro mesmo quando o testemunho do Espírito
Santo não me alcança. Assim como nasci, também fui ba-
tizado. Como uma pessoa batizada, tornei-me uma teste-
218 - Esboço de uma Dogm;Í(ica

munha para mim mesmo. O batismo não confirma nada


além do que o Espírito Santo confirma, porém como uma
pessoa batizada posso por mim mesmo ser uma testemu-
nha para o Espírito Santo e restaurar a mim mesmo por
este testemunho. O batismo me lembra do ministério do
testemunho, uma vez que ele me leva ao arrependimento
diário. Ele é um sinal estabelecido em nossa vida. Como
as braçadas do nadador estão sempre em movimento para
que ele não afunde, assim o batismo nos chama de volta
ao testemunho.
Mas este testemunho é a Palavra de Deus para nós,
dizendo: Você, ó homem, com seu pecado, pertence com-
pletamente, como propriedade de Jesus Cristo, ao domí-
nio da misericórdia inconcebível de Deus, que não nos vê
como aqueles que vivem por viver e agem por agir, mas
diz para nós, 'Você está justificado'. Para Mim você não é
mais um pecador, mas onde você está também Eu estarei.
Olhe para este Outro. Se você está ansioso sobre como se
arrepender, deixe apenas que se lhe diga: "Teus pecados
foram perdoados". Se você perguntar "que mais posso fa-
zer, como adequar minha vida em companheirismo com
Deus", deixe a resposta chegar até você de que a expiação
por sua vida já foi realizada e sua comunhão com Deus
completada. Sua reação, ó filho do homem, consiste ape-
nas na aceitação desta situação, de que Deus o vê agora
mais uma vez e o recebe mais uma vez em Sua luz, como a
criatura que você é. "Fomos sepultados com ele na morte
por meio do batismo" (Rm 6.4). Batismo é a representa-
ção da morte de Cristo no meio da nossa vida. Ele nos diz
que quando Cristo foi morto e sepultado também fomos
mortos e sepultados, nós transgressores e pecadores.
Como aquele que foi batizado, você pode ver você mesmo
como morto. O perdão dos pecados repousa no fato de
que este morrer aconteceu no tempo no GÓlgota. O ba-
o Perdão dos Pecados - 219

tismo diz a você que aquela morte foi também a sua


morte.
o Próprio Deus, em Jesus Cristo, tomou a iniciativa
de dar o primeiro passo no lugar do homem. Pensamos
mais uma vez na nossa declaração de que a reconciliação
é uma troca. Deus agora assume a responsabilidade por
nós. Agora somos sua propriedade, e ele nos tem à sua
disposição. Nossa própria indignação não nos afeta mais.
Vivemos agora pelo fato de que ele faz isto, o que significa
não uma existência passiva, mas uma existência extrema-
mente ativa. Se pudermos usar a figura, podemos pensar
em uma criança desenhando um objeto. Ela não consegue
fazê-lo. Então o professor senta-se no lugar do aluno e de-
senha o mesmo objeto. A criança fica ao seu lado e ape-
nas olha, enquanto o professor traça os finos desenhos
em seu próprio caderno de exercícios. Isto é justificação -
Deus realizando em nosso lugar o que não podemos rea-
lizar. Fui desembaraçado das formas minúsculas; agora,
se ainda há algo a ser dito contra mim, verão que isto não
mais me diz respeito, mas àquele que sentou-se no meu
lugar. E todos os que têm alguma reclamação contra mim,
o diabo e suas legiões e aqueles queridos companheiros,
se ousarem erguer-se contra mim, verão ele sentado em
meu lugar. Esta é minha situação. Assim, sou inocente,
posso me rejubilar completamente, porque as acusações
contra mim cessaram. A justiça de Jesus Cristo agora é
minha justiça. Isto é o perdão de pecados. "Como és tu
justo diante de Deus? Somente pela fé em Jesus Cristo"
(Pergunta 60, Catecismo de Heidelberg). Foi assim que a
Reforma viu a questão e a expressou. Deus nos concedeu
que aprendamos como adquirir mais uma vez a verdade
completa da vida que resulta dela.
Agora não devemos dizer que isto não é suficiente
para viver pelo perdão 'somente'. Esta objeção foi levan-
220 - Esboço de lima Dogm,ítica

tada contra o Credo e fortemente contra os Reformado-


res. Que tolice! Como se quisesse dizer que o perdão dos
pecados, não fosse a única coisa pela qual vivemos, o po-
der de todos os poderes! Como se tudo não estivesse la-
tente na frase! É precisamente quando estamos
conscientes de que 'Deus é por mim', que sou no verda-
deira sentido responsável. Pois deste ponto de vista e so-
mente dele há uma ética verdadeira, temos um critério do
bem e do mal. Portanto, viver pelo perdão não significa
de qualquer maneira passividade, mas o viver cristão em
sua plenitude. Se preferirmos descrevê-la como a grande
liberdade ou uma disciplina estrita, como a piedade ou
como verdadeiro mundanismo, como moralidade parti-
cular ou como moralidade social, se olhamos para esta
vida sob o signo da grande esperança ou sob o signo da
paciência diária, de qualquer forma vivemos apenas pelo
perdão. Aqui está a distinção entre o cristão e o pagão, o
cristão e o judeu. O que não passa sobre esta lâmina afi-
ada do perdão de pecados, ou graça, não é cristão. Por
isto seremos julgados, sobre isto o Juiz um dia questio-
nará, quer você viva pela graça ou já escolheu deuses para
si mesmo, ou talvez queira se tornar como um. Você tem
demonstrado a fé de um servo, que não tem do que se jac-
tar? Neste caso você é aceito; desta forma você certa-
mente tem sido misericordioso também e tem perdoado
seus devedores; também tem seguramente confortado ou-
tros e sido a luz, suas obras também têm se demonstrado
boas, obras que fluem do perdão dos pecados. A pergunta
sobre estas obras é a pergunta do Juiz, que temos de en-
frentar.
A Ressurreição do Corpo
e a Vida Eterna

o olhar do cristão para além e apesar da sua morte, re-


cebe do Espírito Santo e da Ceia do Senhor
o testemunho da ressurreição de
Jesus Cristo e assim da
conclusão da sua própria vida.
Sua fé nisto está fundamentada no fato
de que, uma vez que ao homem é permitido tomar,
em Jesus Cristo, o lugar de Deus, foi-lhe concedido a par-
ticipação incondicional na glória de Deus.

Um cristão olha para trás, falamos na declaração de


abertura anterior. Um cristão olha para frente, dizemos
agora. Este olhar para o passado e olhar adiante consti-
tuem a vida do cristão, a vita humana Christiana, a vida
de um homem que recebeu o Espírito Santo, que pode vi-
ver na congregação e é chamado para ser nela uma luz
para o mundo.
Um homem olha adiante. Fazemos uma volta, como
se fosse de 180 graus: atrás de nós está o nosso pecado e
diante de nós a morte, o morrer, o caixão, o túmulo, o
fim. O homem que não leva isto seriamente, o fato de que
estamos olhando para este fim, o homem que não percebe
o que o morrer significa, que não fica apavorado com isto,
222 - Esboço de lima Dogndrica

que não tenha talvez a alegria suficiente na vida e assim


não conhece o temor do fim, que ainda não entendeu que
esta vida é um Dom de Deus, que não tem inveja da lon-
gevidade dos patriarcas, que não tinham apenas cem, mas
trezentos, e quatrocentos, ou mais anos, o homem que,
em outras palavras, não assimilou a beleza desta vida, não
pode compreender o significado da "ressurreição". Pois
esta palavra é a resposta ao terror da morte, o terror de
que esta vida algum dia chegará ao fim, e este fim é o ho-
rizonte da nossa existência. "No meio da vida somos afi-
velados à morte.. :: A existência humana é uma existência
sob esta ameaça, marcada por este fim, por esta contradi-
ção continuamente levantada contra nossa existência:
você não pode viver! Você crê em Jesus Cristo e pode ape-
nas crer, e não ver. Você está diante de Deus e gostaria de
se regozijar e pode se regozijar, todavia deve experimen-
tar a cada dia como seu pecado é novo a cada manhã. Há
paz, e, todavia, apenas a paz que pode ser confirmada por
meio da luta. Aqui entendemos, e, todavia, ao mesmo
tempo entendemos tão pouco. Há vida, mas a vida ainda
no vale da sombra da morte. Estamos lado a lado, porém
um dia nos separaremos um do outro. A morte põe seu
selo sobre tudo; é o salário do pecado. A conta está fe-
chada, o caixão e a corrupção são a última palavra. A dis-
puta está decidida, e decidida contra nós. Isto é a morte.
Agora o cristão olha adiante. Qual o significado da
esperança cristã nesta vida? Uma vida após a morte? Um
evento fora da morte? A pequena alma que, como a bor-
boleta, esvoaça sobre a sepultura e ainda é preservada em
algum lugar, a fim de viver em imortalidade? É assim que
os pagãos vêem a vida após a morte. Mas isto não é a es-
perança cristã. "Creio na ressurreição do corpo". Corpo
na Bíblia é simplesmente o homem; homem, além disto,
sob o signo do pecado, homem caído. Para este homem é
A Ressurreição do Corpo c a Vida Eterna - 223

dito "Tu ressuscitarás': Ressurreição significa não a conti-


nuação desta vida, mas sua conclusão. Para este homem
um "Sim" é dito onde a sombra da morte não pode alcan-
çar. Na ressurreição, nossa vida está envolvida, nós, ho-
mens como somos e estamos situados. Nós ressuscitare-
mos, ninguém mais tomará nosso lugar. "Seremos
transformados" (lCo 15); isto não quer dizer que uma
vida diferente se inicia, mas "o corruptível se revestirá de
incorruptibilidade e o mortal de imortalidade". Então será
manifesto que "a morte foi tragada pela vitória". Portanto,
a esperança cristã afeta nossa vida como um todo: as nos-
sas vidas serão completadas. Esta que foi semeada em de-
sonra e fraqueza ressuscitará em glória e poder. A espe-
rança cristã não nos conduz para longe desta vida; pelo
contrário, é a revelação da verdade na qual Deus vê nossa
vida. É o triunfo sobre a morte, mas não um vôo para o
Além. A realidade desta vida está envolvida. A escatolo-
gia, corretamente entendida, é a coisa mais prática que
pode ser considerada. Nela, a luz cai sobre nossas vidas.
Esperamos por esta luz. "Nós te oferecemos esperança",
disse Goethe. Talvez até ele mesmo sabia desta luz. A
mensagem cristã, em toda medida, de modo confiante e
confortante, proclama esperança nesta luz.
É verdade que não podemos nos conceder ou persu-
adir de que temos esta esperança de que nossa vida será
concluída. Ela deve ser crida, apesar da morte. O homem
que não conhece o que é a morte também não conhece o
que é a ressurreição. É necessário o testemunho do Espí-
rito Santo, o testemunho da Palavra de Deus proclamada
e ouvida na Escritura, o testemunho do Jesus Cristo res-
surreto, a fim de que se creia que haverá luz e que esta luz
completará nossa vida incompleta. O Espírito Santo, que
fala a nós na Escritura, nos ensina que podemos viver esta
grande esperança.
224 - Esboço de uma Dogmática

A Ceia do Senhor pode ser mais compreendida do


ponto de vista da Páscoa, do que geralmente a vemos.
Não é primariamente uma refeição de luto ou fúnebre,
mas a antecipação da festa de casamento do Cordeiro. A
Ceia é uma refeição alegre: o comer da carne dele, Jesus
Cristo, e beber do seu sangue, é comida e bebida da vida
eterna no meio da nossa vida. Somos convidados à sua
mesa e assim jamais seremos separados dele. Portanto,
neste sinal o testemunho da sua refeição está unido ao
testemunho do Espírito Santo. A Ceia verdadeiramente
nos diz, "você não morrerá, mas viverá", e proclama a
obra do Senhor! Você! Somos convidados à Mesa do Se-
nhor, que não é apenas uma imagem; é um aconteci-
mento. "Todo o que crê em mim terá vida eterna". Sua
morte está posta na morte. Você já está, na verdade,
morto. O terror que você enfrenta, você já deixou com-
pletamente para trás. Você deve viver como um convi-
dado para esta mesa. Você deve ir na força desta comida
quarenta dias e quarenta noites. Nesta força isto é possí-
vel. Deixe prevalecer isto, que você comeu e bebeu; deixe
tudo que é mortal que o circunda ser conquistado. Não
acalente seu lamento com ternura; não faça um pequeno
jardim disso com salgueiros chorões suspensos! "Não tor-
nemos a cruz e a dor maiores do que a nossa melancolia".
Somos chamados para uma situação diferente. "Se morre-
mos com Cristo, cremos que também com ele viveremos"
(Rm 6.8). O homem que crê nisto já começou aqui e
agora a viver a vida plena.
A esperança cristã é a semente da vida eterna. Em
Jesus Cristo não estou mais num ponto no qual posso
morrer; nele nosso corpo já está no céu (Pergunta 49, Ca-
tecismo de Heidelberg). Desde que recebemos o testemu-
nho da Ceia do Senhor, já vivemos aqui e agora na anteci-
pação do eschaton, quando Deus será tudo em todos.

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