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N° 17 | Setembro de 2011 U rdimento

PROBLEMAS TEATRAIS NA
EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA:
EXISTEM CONTEÚDOS EM TEATRO?
Gilberto Icle1

Resumo

Este texto explora os desafios da tarefa de planejar e avaliar as


práticas teatrais na educação escolarizada. Problematiza-se a ideia
de conteúdos e propõe-se a reflexão sobre o conceito de noção por
intermédio do qual o planejamento e a avaliação – como tecnologias
educacionais de controle e performatização – poderiam ser re-
significadas. Apresenta-se o contexto educacional no qual as noções
teatrais podem ser propostas: a criação coletiva de alunos-atores e
professores-diretores. Problematiza-se diferentes características das
noções teatrais que implicam em atravessamentos discursivos e uma
acepção de sujeito para além da ideia de um sujeito emancipado,
uno e totalmente consciente de si.

Palavras-chave: teatro, pedagogia teatral, educação escolarizada,


planejamento, avaliação.

Abstract

This paper explores the challenges of planning and evaluating the


theatre practices in school education. We problematise the idea of
content and propose a reflection on the concept of sense through
which the planning and evaluation – as educational technologies
of control and performatization – could be resignified. We
present the educational context in which theatrical notions can
be proposed: collective creation of students-actors and teachers-
directors. We problematise different notions of theatrical features
that imply discursive crossings and a sense of subject beyond the
idea of an emancipated, unified and fully self-conscious subject.

Keywords: theatre, theatre pedagogy, school education,


planning, evaluation.

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O
trabalho de orientação para além de um dispositivo de controle
de estágios de docência – poderia ser uma tecnologia educacional
em teatro, em escolas re-significada.
de ensino fundamental Desde que o teatro se efetivou como
e médio, permite não componente curricular obrigatório (e,
apenas conhecer um pouco do cotidiano da de fato, esse processo sequer ganhou
educação escolarizada – e, como o teatro é corpo no Brasil, sendo ainda incipiente)
praticado nesse contexto –, como também na educação escolarizada no nosso país,
expõe algumas das dificuldades mais um sem número de fricções ruidosas não
prementes enfrentadas pelos estagiários deixam de ser sentidas nos usos que tal
nas tarefas de ensinar. Tais dificuldades, arte pode ter na escola.
no entanto, são percebidas pouco a pouco. A educação escolarizada institucionalizou-
Elas não são privilégio apenas dos alunos se e operou com força total o seu projeto
em formação, mas orbitam, também, no moderno de educação para todos a partir
ambiente teatral da educação escolarizada do momento em que as nações ocidentais
como um todo – os professores de teatro em começaram a se formar e se solidificar.
trabalho nas escolas, não raro, se deparam Nesse contexto histórico, a industrialização
com desafios muito semelhantes. acelerada exigiu uma escola de
As tarefas de planejar e avaliar estão, massa e, ao mesmo tempo, engendrou
com efeito, no cerne desses problemas. dispositivos capazes de circunscrever os
Como se planeja uma aula de teatro? O elementos necessários para a formação e
que um currículo de teatro deve prever manutenção de uma sociedade disciplinar.
como conteúdos mínimos? Como avaliar O disciplinamento se fez perceber em
os alunos? Existem conteúdos em teatro? instituições um tanto quanto similares do
Quais são os equivalentes teatrais dos ponto de vista discursivo, tais como: a escola,
conceitos científicos que os professores de a prisão, o manicômio, o hospital. É correto,
outras áreas ensinam? pois, afirmar que “as disciplinas existiam há
A eloquência de tais questões, a muito tempo” (FOuCAulT, 1979, p.105), os
vastidão de problemas que elas aduzem e a mosteiros do medievo são exemplos desse
complexidade do alcance que essas dúvidas tipo de organização, mas a Escola de massa
denotam não permitem que se possa tratá- e as demais instituições da mesma ordem
los em conjunto neste trabalho, tampouco se organizaram nos séculos XVII e XVIII,
esses impasses pedagógicos são exclusivos “quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado
do ensino de teatro. como uma nova técnica de gestão dos
Assim, por hora, esse texto irá se homens” (FOuCAulT, 1979, p.105).
ocupar do problema dos conteúdos e Parece notório que nesse contexto de
como tal enunciado não pode alcançar os controle – no qual o saber foi correlato e
fenômenos criativos de que se ocupa o par inseparável do poder (compreendido
teatro. Esse texto, propositivamente, irá para além do modelo hegeliano de uma
discutir o conceito de noção como forma dialética como uma profusão de micro-
por intermédio da qual o planejamento – poderes) as disciplinas tiveram um
papel fundante, pois “disciplinarizar é
tanto organizar e classificar as ciências,
1 Gilberto Icle é ator e diretor de teatro. É graduado em artes
cênicas, mestre e doutor em educação pela Universidade quanto domesticar os corpos e as
Federal do Rio Grande do Sul, na qual é professor no Programa vontades” (GAllO, 2004, p.82). O teatro,
de Pós-graduação em Educação e coordenador do GETEPE – contudo, por mais institucionalizado e
Grupo de estudos em educação, teatro e performance, do qual
faz parte o grupo de teatro UTA-Usina do Trabalho do Ator. É representante da vida burguesa que possa
autor de diversos artigos no país e exterior, além de livros como ser, guardaria (essa é nossa esperança
Teatro e construção de conhecimento, pela Editora Mercado como educadores) um laivo de potência
Aberto; O ator como xamã, pela Editora Perspectiva; Pedagogia
teatral como cuidado de si, pela Editora Hucitec. É, também, dionisíaca: tendência que levaria a uma
editor-chefe da Revista Brasileira de Estudos da Presença. desestabilização do dado, do idêntico,

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da regra; haveria na atividade teatral, práticas de ensino (representadas e previstas


portanto, algo de transgressor, uma pelos planos de curso, pelos planos de aula,
alternativa à disciplina. pelos planos de disciplinas).
Não foi, consequentemente, sem Embora diretrizes e políticas sejam
litígio que o teatro ingressou no contexto formas abertas de planejar a educação, elas,
da educação escolarizada, produzindo ao com efeito, implicam em performatividades
menos dois efeitos: o primeiro relacionado curriculares. Essas performatividades
à desconfiança indagadora sobre a nos convocam a sermos e fazermos
pertinência ou não de uma atividade determinadas performances, ou seja, a
tão livre: poderia ela trazer benefícios desempenharmos determinados papéis
para a aprendizagem? Foi preciso o na escola e a cumprirmos determinadas
estabelecimento do discurso da Escola regras. Essas regras são controladas por
Nova, no início do século XX, para uma uma complexa sequência de avaliações
justificação mais elaborada da presença que tem se multiplicado no Brasil nos
do teatro na escola (PAGE, 2009, p.28). E, o últimos anos: avaliações de desempenho
segundo, como consequência do primeiro, dos alunos, das escolas, dos professores,
tratou de uma adaptação das atividades assim como inspeções escolares das mais
teatrais às rotinas da escola e às tecnologias variadas. Assim, tecnologias como planos
escolares, inclusive aos procedimentos e avaliações institucionais não deixam
burocráticos impostos institucionalmente. de ser sempre modos de controle, sendo
Assim, não é de estranhar que a tarefa que nós mesmo nos performatizamos em
de planejar a aula de teatro seja vista como tais tecnologias na medida em que elas
um modo de controle, como um aparelho “servem como medida de produtividade ou
por intermédio do qual o professor é resultados, como formas de apresentação
assujeitado e conformado à norma. Seria da qualidade ou momentos de promoção
possível re-significar o ato de planejar ou inspeção” (BAll, 2010, p.38).
e torná-lo uma tecnologia produtiva ao Mas existiria alguma potência criativa
trabalho do professor de teatro? nessas tecnologias do planejar, para além
Planejar não é, de qualquer forma, a de fabricações performativas. Haveria
salvação de todos os males e a saída para performances criativas, invenções e produção
todos os impasses. Bem planejar não é, de saberes teatrais em tais técnicas?
necessariamente, sinônimo de educação Ainda que de modo bastante hesitante,
de qualidade. O planejar é apenas uma esforçar-me-ei em mostrar que, para além
companhia com a qual o professor pode da dimensão da fabricação de aparências,
contar no sentido de refletir sobre e melhor pode existir algo de produtivo para a
re-dirigir as práticas desenvolvidas. Trata-se, criação teatral na tarefa de planejar, desde
com efeito, de uma tecnologia performativa. que se possa olhar tal tarefa sob outros
Isso significa dizer que o planejamento, pontos de vista. Nesse sentido, é preciso
como tecnologia de dar forma à tarefa de iniciar pela suspensão do conceito de
ensinar, performatiza os sujeitos partícipes, conteúdos e mesmo substituí-lo. Essa é a
forma e conforma os espaços, os tempos e as intenção a partir daqui.
práticas escolares. Planejar tem, ao menos, duas
dimensões: uma macro, que se refere às políticas
públicas e governamentais para a educação;
O conceito operacional de noção
e, outra, micro, que se circunscreve no “nível
escolar e de ensino” (CORAZZA, 2005, p.114). Parece desnecessário dizer que a
Nessa esfera micro estão contempladas as emergência da necessidade de conteúdos
formas institucionais de currículo (o currículo na educação escolarizada remonta ao
da escola ou as previsões de conteúdos e aparecimento da escola de massa. Qual
atividades de um componente curricular, são os conteúdos necessários para que
além dos planos político-pedagógicos) e as todos tenham um conhecimento mínimo

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do que a humanidade produziu de justo Mas se a ideia de conteúdos é


e bom? Consequentemente, a seleção questionável e relativa no mundo das
desses conteúdos diz sobre as relações de ciências, ela é ainda mais efêmera no
saber/poder em que eles estão enleados. mundo das artes. O que seriam conteúdos
Há, portanto, lutas para determinar quais em teatro? O tema do espetáculo? A
são os saberes que devem ser professados mensagem do texto? Os assuntos das
e ensinados pela escola e quais desses ciências aplicados à cena teatral? Os
estão hierarquicamente abaixo da linha elementos da linguagem teatral? uma
que divide o que pertence e o que não análise de sobrevôo em currículos e
pertence à Escola. planos de ensino mostra um número
É notório, também, que a ideia de infinito de palavras soltas e enunciações
conteúdo aduz ao seu conceito correlato, vazias: o corpo no espaço; expressão
o de forma, e foi no interior desse tipo de corporal; técnica vocal; improvisação;
pensamento dialético que o par conteúdo/ corpo; jogo; estado de jogo; foco; atenção;
forma emergiu e foi tomado como concentração. O que significam essas
verdadeiro. Ora, o que se propõe aqui palavras na prática teatral?
seria justamente desfazer o dualismo e, ao Muitas dessas palavras não significam
mesmo tempo, evidenciar que a separação e não operacionalizam a prática teatral na
entre forma e conteúdo não é senão uma educação escolarizada. Muitos alunos em
falácia, na medida em que separa elementos formação e professores atuantes de teatro
impensáveis de serem separados. não sabem explicar como elas se traduzem
A tarefa mais primitiva das em ação, que saberes elas podem efetivar
tecnologias de planejamento escolar foi e que modos de avaliação elas poderiam
sempre a de listar conteúdos e programar implicar. Em alguns casos, não sabem
os seus tempos e espaços de ocorrência. distinguir o que delas resta como conteúdo
Agregado a isso, as visões mais tecnicistas e o que delas se aplica como método.
enfatizavam o método segundo o qual tais Em função desse quadro complexo e nem
conteúdos seriam transferidos aos alunos sempre apaziguado da prática, eu proponho
num tempo e num espaço suficiente para discutir aqui um conceito operacional para
o aprendizado. a prática teatral na educação escolarizada:
Nas ciências, a partição dos saberes, a o conceito de noção.
distribuição das disciplinas, tantas vezes O que é uma noção teatral?
discutida pela filosofia contemporânea, Antes de elencar algumas características,
não deixa de ser uma construção, não será conveniente lembrar o contexto de sua
tendo nada de natural ou orgânico. aplicação. As noções atravessam o trabalho
A crença num mundo objetivo a ser criativo da cena teatral. Isso significa dizer
descoberto pelo homem possibilitou, de que se trata de um coletivo (de alunos-
fato, o nascimento das ciências sociais: atores e professor-diretor, mesmo que
o próprio homem passa a ser o objeto essas funções possam variar) empenhado
de sua busca (FOuCAulT, 1999). E a em criar uma performance.
semelhança entre as coisas e as palavras Muitas vezes necessitamos realizar
que havia sustentado a epistéme clássica se tarefas em sala de aula que não estão
rompe na modernidade dos séculos XVII diretamente relacionadas com o cerne da
e XVIII; não obstante, tem marcha a partir atividade teatral, mas são preparatórias
daí uma busca desenfreada por ordenar ou requisitos para que o objetivo
e classificar o mundo (FOuCAulT, principal possa se desenvolver. Assim,
1999). É nesse caldo epistemológico que um aquecimento, como forma de iniciar
a ideia de conteúdos assume um papel uma oficina, pode ou não introduzir aos
preponderante na educação escolarizada, participantes uma noção teatral. Ele pode
sobretudo a partir do século XIX. apenas prepará-los, dar condições de início,

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concentrar os alunos. uma conversa ou As noções são ao mesmo tempo


uma avaliação sobre problemas e barreiras privadas e coletivas. Elas são privadas,
que impedem o bom funcionamento da pois requerem um corpo e movimento
oficina não indicam necessariamente em vida para existirem e são coletivas por
palestras ou exposições sobre uma noção que a natureza mesma de sua existência
teatral. Elas podem intervir apenas no coincide com aquela do teatro; as noções
funcionamento da oficina como, por vivem na relação com o outro. Não existe
exemplo, impedir que os alunos sigam sem uma noção teatral que não seja ao mesmo
esclarecimento de determinado assunto ou tempo efêmera (sua forma se desfaz na
sem uma discussão sobre algum aspecto própria existência) e compartilhada (é
do relacionamento pessoal. necessário alguém que seja um espelho da
uma noção teatral, portanto, irrompe no noção, alguém que olhe para o corpo em
contexto da criação de espetáculos – mesmo vida que experiência a noção).
que eles não tenham o objetivo direto de Ela se forma, portanto, no entre-lugar
ir a público externo -, da criação de cenas da palavra. Nós podemos falar da noção e
em oficinas e na criação de improvisações falar constrói as noções, mas a palavra não
ou performances e outros dispositivos que é espaço suficiente para a existência das
possamos nomear como espetáculo vivo, noções. É preciso viver uma noção no corpo,
ainda que restrito à experiência da própria embora possamos explicá-la, traduzi-la em
sala de aula. Esses contextos são tão amplos palavras, discuti-la, re-significá-la.
quanto às modalidades de improvisação e As noções são sempre provisórias.
composição teatral como jogos dramáticos, Elas são operacionais, ou seja, elas existem
jogos teatrais, drama, dramatização; e não se como instrumentos de criação e precisam
restringem à educação escolarizada. Todas ser re-atualizadas a cada momento. Assim,
as formas de criação teatral trabalham com para um grupo de alunos-atores iniciantes,
a construção de noções. talvez seja conveniente trabalhar a noção de
uma noção não se localiza nem na estar em cena e de estar fora de cena. Depois
prática, tampouco na teoria teatral. Ela está que um conjunto de atividades tenha sido
mais ou menos aparente num entre-lugar experenciado para que eles experimentem
da prática e da teoria. Nós não podemos com o corpo a sensação de estar em cena e a
encontrar as noções prontas nas teorias diferença de seu próprio corpo fora de cena
teatrais, embora indícios das noções habitem – e que experimentem também procurar
os textos de teóricos e artistas da cena. olhar no corpo dos colegas essa mesma
Podemos encontrar um indício da noção diferenciação – é provável que essa noção
de irradiação no texto de Michael Chekhov não seja mais necessária e tenhamos que
(1986) ou indícios das noções de contar/ passar a outras mais complexas.
mostrar em Viola Spolin (1986). A irradiação, As noções, ainda, criam vocabulário
por exemplo, não existe como algo dado, próprio para o grupo que trabalha junto,
precisamos que um grupo de pessoas a pois a mesma noção, por exemplo, estar
experimente, precisamos nos sujeitar a ela em cena e estar fora de cena, pode ser
e ao mesmo tempo sermos sujeitos dela. É nomeada com outro vocabulário, dentro
necessário recriá-la no corpo para que ela e fora, sobre o tapete e fora dele, em ação
exista. Trata-se de imaginar que as noções e no cotidiano, presente e não presente;
não estão por aí, no mundo, esperando esse modo de falar depende é claro da
que nós as descubramos; elas precisam ser comunidade de fala a que pertence o grupo,
praticadas, tornadas corpo, experienciadas. da faixa etária, do lugar de enunciação
Indícios das noções podem ser encontrados donde a noção provem, do tipo de relação
nos escritos, mas diferentemente dos que o professor estabelece com os alunos
conceitos científicos, as noções não tem e da sua inventividade em nomear e ser
existência senão na efemeridade da prática. compreendido pelos alunos-atores.

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Substituir os conteúdos por noções e dos caminhos a serem perseguidos em


implica compreender que as noções teatrais seguida. Vejamos a noção de estar em cena
não são temas de trabalho e muito menos e estar fora de cena. Podemos perguntar
os antigos temas geradores. Assim, o amor, aos alunos-atores qual é a diferença, mas
o poder, o envelhecimento, o respeito ao podemos, também, solicitar que apontem
próximo, o trânsito não são noções teatrais, no trabalho cênico dos colegas quando essa
ainda que não possamos dispensar algumas noção é mais evidente e quando ela não
delas em função da vida que pulsa na sala pode ser percebida.
de aula, da mesma forma que não deixamos Esse jogo entre fazer e falar, fazer
de trabalhar com os grandes temas da e observar, fazer e refletir, constitui as
literatura e do espetáculo, mas esses podem noções teatrais. É evidente que as noções
ser mediados com os alunos, a partir de teatrais possuem nesse jogo uma tendência
seus interesses, de suas preocupações. ao lúdico, mas não necessariamente elas
Trabalhar com noções teatrais não significa se constituem em atividades lúdicas,
dizer trabalhar no vazio da forma, os pois, em muitos casos, a repetição, a
temas e assuntos continuam lá no interior composição detalhada e outros artifícios da
funcional da cena, mas não é sobre eles carpintaria teatral requerem um trabalho
que as noções se constroem, tampouco menos interessante e mais aborrecido de
separadas deles que elas se engendram. preparação, para somente num segundo
Noções teatrais possuem uma medida momento restabelecer o elo de ligação
de concretude, assim, vocabulários com a ludicidade.
demasiadamente abertos, como criatividade, Tomar a tarefa de planejar a partir do
imaginação, emoção, não são desejáveis conceito operacional de noção significa,
para operarem como noções teatrais. Eles por sua vez, trabalhar com uma acepção
implicam dificuldades de avaliação, pois específica de sujeito.
não sabemos exatamente do que se trata, As noções teatrais desmancham a
tampouco podemos apontar aos alunos- ideia de um sujeito soberano e racional.
atores que assistem o exercício o quando Não há lugar para “algo como o núcleo
isso ocorre na cena que observamos. As essencial de subjetividade que pode ser
noções teatrais precisam ser facilmente pedagogicamente manipulado para fazer
identificáveis. Elas aduzem a elementos surgir o seu avatar crítico na figura do
corporais concretos. Mesmo noções sujeito que vê a si próprio e à sociedade
complexas como as de tempo-ritmo podem [...], adquirindo, no processo, a capacidade
ser detectadas em cena por um olhar apurado. de contribuir para transformá-la” (SIlVA,
A dimensão criativa é própria das 2000, p.13). Se as noções não são conteúdos
noções teatrais, nelas estão possibilitados a serem aprendidos, se elas precisam ser
espaços de resolução de problemas criadas a partir de um quadro discursivo
concretos para os quais não existe uma que as legitima, visto que têm origem
resposta correta, mais uma multiplicidade sempre num determinado modo de falar
de possibilidades. É por isso que as noções sobre o teatro (posso escolher o modo de
teatrais não são conceitos científicos, elas Stanislavski, de Copeau, de Barba, de
não possuem uma previsibilidade, elas são Boal ou de qualquer outro como ponto
dependentes do contexto de emergência no de partida), elas são exterioridades que
qual elas se constituem. permanecem num vazio de consciência.
Como elas implicam a construção de As noções teatrais existem tanto
um vocabulário particular pelo grupo em no corpo como fenômeno, quanto na
trabalho, elas fornecem os mecanismos para linguagem como modo de falar, no entanto,
a avaliação. Perguntas simples servem como essa expressão da linguagem não guarda
construtoras das noções e ao mesmo tempo em si um significado escondido, guardado
como avaliações do percurso realizado na subjetividade do indivíduo, elas

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produzem linguagem e são produzidas SIlVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Pedagogia


por ela. O centro da produção das noções dos monstros: os prazeres e os perigos da
teatrais não é um sujeito centrado, mas confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
partido, alguém que ocupa um lugar por Autêntica, 2000.
um momento e o deixa tão vazio quanto SPOlIN, Viola. Improvisação para o teatro.
ele já estava antes de ter sido ocupado. São Paulo: Perspectiva, 1986.
As noções teatrais, da forma aqui
abordada, supõem um jogo da linguagem,
elas lembram que os significados são
constantemente renegociados coletivamente
(DERRIDA, 1967).
Nesse jogo sem fim, a tarefa do
professor-diretor não poderá ser outra
senão criar juntamente com os alunos-
atores. Desfaz-se, assim, as hierarquias
mais rígidas, todos são criadores e a tarefa
coletiva do teatro na educação escolarizada
pode ser circunscrita no dever de multiplicar
as noções. As noções nunca cabem em si
mesmas, elas necessitam sempre o trabalho
de noções correlatas, derivadas ou opostas.
Elas têm vocação a se multiplicar: cria-se
uma noção a partir de outra. E o que nos
restaria, a nós professores de teatro, senão
multiplicar as noções teatrais?

Referências bibliográficas

BAll, Sthephen J. Performatividades e


fabricações na economia educacional: rumo
a uma sociedade performativa. Educação &
Realidade. Porto Alegre: uFRGS, v.35, n.2,
2010, p. 37-55.
CHEKHOV, Michael. Para o ator. São Paulo:
Martins Fontes, 1986.
DERRIDA, Jacques. L’écriture et la différence.
Paris: Éditions du Seuil, 1967.
FOuCAulT, Michel. As palavras e as coisas.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOuCAulT, Michel. Microfísica do poder.
Rio de Janeiro: Graal, 1979.
GAllO, Silvio. Repensar a educação:
Foucault. Educação & Realidade. Porto Alegre:
uFRGS, v.29, n.1, jan/jun.2004, p.79-97.
PAGE, Christiane. Pratiques théâtrales dans
l’éducation en France au XXe siècle: aliénation
ou émancipation? Arras: Artois Presses
université, 2009.

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