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O PORQUÊ DAS COISAS

Versão teatral de Fernando Bernués, baseada na obra de Quim Monzó.

O PORQUÊ DAS COISAS

-Olá! (VOZ DE MULHER.) Sou eu.


(O HOMEM SE APRUMA. ESMAGA O CIGARRO NO CINZEIRO QUE ESTÁ AO LADO
DO TELEFONE. FALA EM VOZ BAIXA.)
-Eu já lhe falei mil vezes para não ligar para minha casa.
-É que…
-Eu falei para você para ligar sempre para o escritório.
-Você pode falar agora?
-Claro que não. E você sabe disso.
-Onde ela está...?
-No quarto.
-Ela pode nos ouvir…ouvir você?
-Não. Mas pode entrar aqui a qualquer momento.
-Me perdoe. Eu sinto muito. Mas precisava ligar para você agora. Não podia esperar até
amanhã, no trabalho.
(PAUSA. O HOMEM QUEBRA O SILÊNCIO.)
-Por quê?
-Porque esta situação está me fazendo sofrer muito.
-Que situação?
-A nossa. Qual seria a outra?
-Mas...deixe eu ver se a gente se entende...
-Não! Não. Não diga nada. Deixe para lá. Ela pode ouvir você.
-Agora não está me ouvindo. Escute...
-Acho que chegou o momento de tomarmos uma decisão.
-Que decisão?
-Você não faz ideia?
-Não estou com vontade de brincar de adivinhação, Maria.
-Eu tenho que escolher. Entre você e ele.
-É?
-E como você não pode me dar tudo o que eu quero…não vamos nos enganar: para você
eu nunca vou ser nada, além de...você não quer deixá-la, não é? Nem sei porque lhe
pergunto isso. Eu já sei a resposta.
-Que barulho é esse?
-Estou ligando de uma cabine telefônica.
-Nós já falamos sobre isso mil vezes. Sempre fui sincero com você. Nunca escondi de você
em que pé estavam as coisas. Nós nos damos bem, não? Então…
-Mas eu estou muito ligada a você. E você, eu sei, não está nada ligado a mim.
-Eu sempre lhe disse que não quero magoar você. Nunca prometi nada a você. Alguma vez
eu prometi alguma coisa a você?
-Não.
-É você quem vai decidir o que devemos fazer.
-Sim.
- Eu sempre disse a você que é você quem vai decidir o que vamos fazer, não?
-Sim. E é por isso que eu estou ligando para você. Porque eu já tomei uma decisão.
-Eu sempre joguei limpo com você. (SE DETEM.) Que decisão você tomou?
-Decidi... deixar de ver você.
(A MULHER DIZ ISSO E COMEÇA A CHORAR. CHORA POR UM BOM TEMPO. POUCO
A POUCO OS SOLUÇOS VÃO DIMINUINDO.O HOMEM APROVEITA PARA FALAR.)
-Sinto muito. Mas se é isso o que você quer realmente...
-Mas você não entende que eu não quero deixar de ver você?
(QUANDO O CHORO PARA O HOMEM FALA.)
-Maria...
-Não. (ASSOA O NARIZ.). Prefiro que você não diga nada.
(O HOMEM AUMENTA O TOM DE VOZ SUBITAMENTE.)
-Homem, eu escolheria um carro que te rendesse mais.
-O que?
-Sobretudo se você tem que rodar tantos quilômetros. (PARA UM MOMENTOS.) Sim. (FAZ
OUTRA PAUSA.) Sim, eu entendo. Eu, claro, nesse caso nem sei o que aconselhar para
você. Mas me parece que seria mais conveniente para você um carro com muito mais...eu
concordo...mas consome muito combustível.
-Você não está podendo falar?
-Claro que não.
-Ela está perto de você?
-Sim.
-Na sua frente?
-Sim. Mas esse modelo não tem tanta diferença de preço em relação aos carros japoneses.
E os japoneses...
-Você aí com a sua mulher na sua frente, e eu do lado de cá sem saber o que fazer. (CADA
VEZ MAIS INDIGNADA.) Sem conseguir me decidir por acabar de vez com essa
inquietação.
-O ideal é compra um carro de quatro portas. Para vocês, o ideal é o de quatro portas.
-Você percebe que não há outra solução? Desse jeito não podemos continuar. Não
podemos nem ter uma conversa civilizada.
-Mas esse gasta uns seis litros e meio.
-Você aí, falando de carros, de litros de gasolina, se de quatro portas, e eu, aqui, sem ter
coragem de decidir sequer se vou desligar ou não o telefone.
-Um momento.
(O HOMEM TAPA O TELEFONE COM A MÃO. A MULHER OUVE UM DIÁLOGO
ABAFADO. TIRA A MÃO DO TELEFONE)
-Diga a ela... (VOLTA A TAPAR O TELEFONE COM A MÃO.VOLTA A RETIRAR A MÃO.)
Diga a Luísa que Ana falou que o bolo ficou perfeito.
-Com quem você pensa que está falando, hem?
-Certo, logo nos veremos...
-Você quer que eu desligue ou...? Mas antes de desligar, me diga se vamos nos ver
amanhã.
-Sim.
-Eu não tenho jeito mesmo. Ligo para dizer a você que vamos terminar a relação e termino
perguntando se amanhã...ficamos onde estamos, não é
-Sim.
-Na mesma hora?
-Exato.
-E (AGORA FALA COM UMA VOZ MELOSA.) Faremos o de sempre? Imagino você, de
joelhos, levantando a minha saia...você vai me lamber? Você vai me morder? Vai me
machucar muito, hem?
-Siim. (SUBITAMENTE VOLTA A FALAR BAIXO.) Porra, Maria! Por muito pouco ela não
percebeu. Agora ela está na cozinha, mas pode voltar a qualquer momento. E se ela tivesse
me pedido o telefone para falar com você?
-E por que ela iria querer falar comigo?
-Não foi isso que eu quis dizer. Se ela pedisse o telefone para falar com a pessoa que ela
achava que eu estava falando.
-Não há quem entenda você. E nem a mim. Nem eu mesma me entendo. Estou me
remordendo por dentro, decido terminar, e basta ouvir a sua voz, para que todas as minhas
decisões virem pó. Eu gostaria muito de estar com você agora. Vem. Você não pode vir?
Claro que não. Tudo bem. É que eu fico angustiada quando não posso ouvir a sua voz.
Você me quer?
-Claro que sim.
-É melhor desligar. Tchau.
-Onde você está?
-Estou em um bar, já lhe disse.
-Não. Você me disse que estava numa cabine telefônica.
-Se você já sabia que eu estava numa cabine telefônica, porque você tornou a perguntar?
-Mas você não está numa cabine telefônica, está num bar. Ao menos foi isso o que você
me disse agora.
-Um bar, uma cabine telefônica: dá no mesmo.
-Oh, “dá no mesmo”, “dá no mesmo”...
-Escute aqui: para mim chega!
-E agora, o que você está pensando fazer?
-Agora? Você quer dizer com a nossa situação?
-Não. Quero dizer agora mesmo. Você está pensando em ir ao cinema? Você já comeu?
Está em segurança?
-Escute: vou desligar.
-Espere um momento.
-É que...
-Às vezes, Maria, penso que poderíamos conseguir que as coisas corressem bem entre
nós, sem tantas tensões, bastava que ficássemos só com o que nós dois queríamos, e com
o que nos propusemos a fazer de verdade.
-Certo, sim, certo.
-Sim, o que foi?
-Sim.
-O que é que está acontecendo com você aí? Você não está podendo falar? Tem alguém
aí do seu lado, e por isso você não pode falar?
-Mmm... Sim.
-Você marcou com ele num bar e ele já chegou, é isso? Ou ele estava aí com você, o tempo
todo, e agora se aproximou do telefone? Sim ou não? O que é que está acontecendo?
-Eu vou lhe devolver o livro logo, pode ficar tranquila.
-Agora você está me tratando no feminino.
-Bem, até logo. Me ligue. E me lembre de devolver o seu livro.
-Ah, não. Agora você não vai desligar! Você me deixou aqui, angustiado, por escutar a sua
voz sem poder conversar com você direito, e agora...
-Esse eu não conheço. Qual é o título?
-Perfeito. Você está se comportando muito bem. Agora você vai dizer qual é o título do livro.
Ou não?
-Isso...
-Muito bem, gostei do “isso”. Dá verossimilhança, faz parecer real o diálogo com essa
garota com a qual se supõe que você está falando.
-O amor à tarde?
-Que título é esse: uma indireta, um convite?
-Mas muito melhor do que “O amor à tarde” era “As cem cruzes”. Vá lá, ao menos para
mim, não?
-Esse...você quer saber? Eu não li. É um romance?
-As cem cruzes, muito chata?
(DE REPENTE O HOMEM VOLTA A FALAR COM VOZ GRAVE.)
-Homem, eu já falei para você. Consome menos que o outro.
-Mas a protagonista de O amor à tarde é mais verossímil.
-E como uma montadora como a Peugeot não previu uma coisa dessas?
-Mas isso acontecia em Agora estamos os dois na mesma situação. Estou enganada?
-Em absoluto.
-E então?
-Nada. (PAUSA BREVE.)
-Você percebe que não há nada que possamos fazer? Agora já posso falar novamente.
(OUTRA PAUSA.) Você não me diz nada? Acabou a sua brincadeira, ou você quer deixar
o ramo do automóvel e passar para outro?
-Quero deixar claro que não estou grávida. Você acha eu sou uma boba? Isso me ocorreu,
para ver como você reagiria numa situação dessa. Por acaso, você acha que se eu ficasse
grávida, ia ligar para pedir a sua opinião sobre o que fazer, ou não?
(A VOZ SOA IRRITADA.)
-Escute, Maria...!
(A MULHER O DESAFIA.)
-O que? O que é que eu tenho que escutar?
-Você sabe que eu não tolero que você me fale nesse tom, nem que me desafie!
-Ah, não?
-Vou quebrar a sua cara.
-Ah, é?
-Vou deixar a sua cara inchada, de tanto murro.
-Sim...
-Até que você comece a gritar.
-Sim...
-Vou amarrar você no pé da cama.
-Sim... sim...
-Vou cuspir na sua boca.
-Sim!
-E vou lhe dar tantas bofetadas, até você sangrar.
-Sim! Sim!
-Vou te obrigar a...
-A quê? A quê?
-Vou te obrigar a...
-A quê?
-Vou encher a sua boca. Vou obrigar você a engolir tudo: você não vai deixar cair nem uma
só gota. Nem uma.
(A MULHER RESPIRA AGITADAMENTE. O HOMEM ESTÁ EXCITADO.)
-Nem uma, já disse! Lamba essa que está escorrendo pelo seu lábio.
-“Porca”, me chame de “porca”.
-Porca. Fique de joelhos e abra a boca.
(A MULHER FICA OFEGANTE.)
-Basta. Eu tenho que falar para você, independentemente do que possa acontecer. Não
tem sentido continuar com essa coisa. (FICA CALADA, COMO QUE PARA TOMAR
CORAGEM.) Me ouça: eu não sou Maria.
-O que quer dizer isso, você não é Maria?
-É isso mesmo que quer dizer: que eu não sou Maria... Maria está... Mara me pediu para
ligar para você e falar como se fosse ela.
-Você está de brincadeira comigo.
-Maria teve que ir. E queria que...
-Teve que ir para onde?
-Saiu da cidade. Ela queria que você acreditasse que ela estava aqui, e não...é que...eu
não posso continuar fingindo. Veja: Eu e Maria somos colegas de trabalho. Eu também sou
enfermeira. Ela me pediu para ligar, e para provocar você, até que brigássemos. Porque
amanhã vocês têm um encontro, e ela ainda não vai ter voltado para a cidade. Está
ouvindo?
-Onde ela está?
-Vai passar uma semana fora, com um namorado.
-Com quem?
-Com Jaime.
-Com Jaime?
-Sim.
-Com que Jaime?
-Jaime Ibarra.
-Escute aqui, Jaime Ibarra sou eu. Você achou que estava falando com quem? Para que
número que você?
-Você é Jaime?
-Sim.
-Merda!
-Você pensou que estava falando com quem?
-Com João.
-Com João? Ou seja, Maria e João...
-Só agora me dei conta, confundi os números.
-E como você conseguiu o número do meu telefone?
-Maria me deu os dois números. Eu me equivoquei, e marquei os nomes errados.
-Porque ela deu meu número para você, se você não tinha que me ligar? Ou você tinha que
ligar para mim também? Mas se você disse que pensava que ela tinha viajado comigo... (A
MULHER O INTERROMPE.)
-Um momento. Você é Jaime mesmo? Mas se Jaime não vive com ninguém. O que tem
mulher é João! Por que você me disse que a sua mulher estava na sua frente?
-Você também não é a personificação da verdade.
-Se você acreditou que estivesse falando com Maria, por que queria me fazer acreditar que
vivia com uma mulher?
-É que eu e Maria, às vezes, fazemos esse tipo de coisas, é como um jogo.
-Ela nunca me falou sobre isso.
-E por que ela ia contar isso para você? Ela, por acaso, lhe conta tudo?
-Quase tudo.
-Ah, sim? E o que ela falou para você sobre mim?
-Uf.
-O que quer dizer esse “uf”?
-Quer dizer que ela me conta tudo do que é interessante.
-Nos mínimos detalhes?
-Nos mais mínimos detalhes, sem deixar escapar nada.
-Onde você está?
-Eu estou em um bar, como já lhe disse antes.
-Você me disse, também, que estava em uma cabine telefônica.
-Lá vem você com essa da cabine telefônica!
-O que você está fazendo agora?
-Você já me perguntou isso antes.
-Quando você era Maria. Agora que você é Carmem, pode ser que você esteja fazendo
outra coisa. Além do mais, quando você era Maria, também não me respondeu à pergunta.
(MORDE UM LÁBIO.) Por que não nos vemos?
-Quando?
-Hoje?
-Vai ter que ser à noite. Trabalho à tarde.
-À noite, então.
-Onde?
-No bar da Estação?
-Combinado.
-Às oito?
-Saio do trabalho às oito horas. Vamos marcar às oito e meia.
-Como vou reconhecer você?
-Vou com a jaqueta de couro que você deu a Maria, de presente, um mês antes...vou estar
vestida com a jaqueta de couro.
-Um mês antes, de que? (A MULHER SE CALA.) A jaqueta: eu dei a jaqueta a ela, de
presente, um mês antes, de que?
-Jaime, eu tenho que dizer isso a você. Senão eu vou arrebentar.
-Então diga logo.
-Maria está morta. Você deu a jaqueta a ela um mês antes dela morrer. Escute...não teria
que...eu sabia o quanto vocês se amavam. E quando ela morreu, eu decidi...
-Tudo isso está me parecendo uma brincadeira de muito mal gosto.
-Vamos nos encontrar e conversar. Às oito e meia, certo? Ou se você quiser, peço
permissão para...
-Eu a vi na semana passada.
-Ela está morta há cinco meses, Jaime.
-Estive com ela muitas vezes nestes últimos cinco meses. Estive com ela na semana
passada. Ela estava bem viva, linda. E não era nenhum fantasma.
-Há cinco meses você vem saindo com uma Maria que não é Maria.
-E de acordo com o que você está falando...quem está se fazendo passar por Maria esse
tempo todo?
-Eu.
-Eu teria percebido.
-Eu estou lhe dizendo a verdade.
-Se isso fosse verdade, por que você teria decidido não vir ao encontro de amanhã?
-Eu cansei de me fazer passar por Maria.
-No entanto, agora você aceitou me ver.
-Porque agora vou estar como Carmem, e não como Maria. Por favor, Jaime, depois eu
explico isso para você.
-E como você não se deu conta de que eu não era João, e sim Jaime?
-E você acha que eu não sabia para que tinha ligado? Claro que você é Jaime. Eu conheço
você, perfeitamente. Estamos namorando a cinco meses. E cinco meses são um bom
tempo, dá para perceber muita coisa. Dá para saber, inclusive, que... (A VOZ DA MULHER
SE QUEBRA.) ...que eu me apaixonei por você como uma imbecil. E que eu quero acabar
com essa farsa.
-Não estou acreditando em nada disso que você está falando. O que você fez...todas as
vezes que nos vimos, todas as vezes que você disse que nos vimos, para que eu não
notasse que você não era Maria?
-Eu sou professora de teatro.
-Por mais teatro que você possa fazer! Como você pode querer me fazer acreditar que eu
não teria percebido a diferença? A única coisa que me falta agora é você me sair com uma
história de gêm...mas...Maria tem, tinha, uma irmã gêmea.
-Sou eu.
-Eu nunca a vi.
-Eu sei que você a viu. Quero dizer: eu sei que você já me viu! Estamos nos encontrando,
duas vezes por semana, há cinco meses. Em algumas semanas, nos vimos só uma vez; e
é justamente sobre isso que nós precisamos falar. Porque eu quero ver você mais, e com
mais frequência. Ficamos com o que combinamos? Às oito e meia?
LA SENSATEZ

Sou uma mulher sensata, e, cada vez que durmo com alguém, conto tudo o que fiz ao meu
marido, não por um ataque circunstancial de luxúria, mas porque eu me apaixono. Não é
que eu tenha que me sentir culpada, em relação ao meu marido, pois nós temos um pacto
dos mais claros e flexíveis, mas se quando eu durmo com alguém, deixo bem claro para
ele que o fiz por estar apaixonada, não sei, é como se eu me sentisse mais limpa. Por outo
lado, toda vez que meu marido se envolve com alguém, eu acho que o faz por pura luxúria,
e isso me irrita. Não é que seja ciumenta. Absolutamente, não. Eu não sou ciumenta.
Simplesmente me incomoda que o meu marido seja tão vulgar, tão carnal. Meu marido,
sim, fica enciumado, quando sabe que eu dormi com outro homem. Mas o ciúme dele é
compreensível, porque eu me apaixono. E se pessoa com a qual você tem um pacto de
convivência se apaixona por outra pessoa, por mais elástico que seja esse pacto, é lógico
sentir ciúmes.
Que tipo de escala eu aplico para decidir que os meus assuntos de cama são produtos do
amor, e os de meu marido são produtos da luxúria? Meu marido diz que é uma escala muito
simples: que eu sou eu mesma, e, portanto, justifico a mim mesma por tudo, e que ele, não
só não é eu, mas também é homem, com toda a carga história que recai sobre os homens.
Eu nego. Ainda que os anos tenham me ensinado que, em geral, homens e mulheres se
comportam de maneira diferente, não digo isso a ele. Essa é uma crença sobre a qual tenho
cada vez menos dúvidas, é verdade, mas generaliza muito, e sempre há exceções...
Apesar de que, é preciso reconhecer que a frase feita, que assegura que todos os homens
são iguais, ainda que seja preconceituosa, e, portanto, repugnante, é, pelo menos,
parcialmente certa. Talvez não todos, mas a grande maioria dos homens, sim. São iguais.
Sou uma mulher sensata, e sei do que estou falando. Me apaixonei por muitos homens, e
todos, invariavelmente, e por mais que tentassem disfarçar, no fundo, se envolveram
comigo somente por causa da luxúria. Luxúria essa, à qual eu termino cedendo, muitas
vezes, tenho que reconhecer...Sempre fui terrivelmente apaixonada, desde muito pequena,
e o amor me embriaga, de tal maneira, que se um homem me pega pelos ombros, me beija
o lóbulo da orelha, e põe a mão entre as minhas pernas, por mais que eu abra a boca para
dizer não, o não nunca sai, e sempre...
(DÁ A ENTENDER QUE SUCUMBE, AO SEU MARIDO, QUE, DURANTE TODO O
MONÓLOGO, ESTÁ AO SEU LADO, TENTANDO FALAR, E ACEITANDO O FATO DE
QUE ELA ESTÁ FALANDO.)
Você não me deixa nem falar tranquila, e se apresse, vamos, que você vai perder o avião.
LA HONESTIDAD

-Enfermeira chefe, o paciente do quarto 93 morreu. (A ENFERMEIRA CHEFE OLHA PARA


O RELÓGIO.)
-É mesmo, Maria?
-Se ele estiver de fingindo, sabe fazer isso muito bem: Não move nem uma pálpebra, e está
sem pulso. E, só para deixar bem claro, eu sou Carmem.
-Me desculpe, eu nunca acerto. É que para mim, neste momento, não é nada bom que um
paciente tenha morrido. Só faltam quinze minutos para o meu turno terminar, e hoje, mais
do que nunca, eu preciso sair na hora certa. Preciso aproveitar que o meu marido está em
Roma, e que o namorado da minha melhor amiga quer me ver.
-Sei, para falar da sua amiga, não é?
-Sim. Apesar de que, pelo que me disse minha amiga, sei que ele não é homem de meias
palavras, e que, falar, é, precisamente, a coisa que menos lhe interessa nesse mundo. Eu
não tenho a menor dúvida de que, se ele me convidou para jantar com ele, na sua casa, é
para ir direto ao assunto, ali mesmo, em cima da mesa, entre as velas, e os pratos de
espaguete. Minha amiga disse que ele faz macarrão para o jantar, quase sempre.
-Romântico.
-É verdade. Por isso, se ficam sabendo que o paciente do 93 morreu agora, querendo ou
não, eu vou ter que ficar por aqui por mais um tempo, mesmo que entre pelo próximo turno
de trabalho, que começa, justamente, daqui a quinze minutos. Os mortos exigem uma
papelada...
-Sei, e agora?
-Isso significa que eu vou me atrasar para o encontro.
-Você pode ligar para ele, explicar o que aconteceu, e pedir para marcar para mais tarde,
ou para outro dia.
-A experiência já me ensinou, que remarcar a hora, ou o dia, dos primeiros encontros,
costuma se fatídico. Quando você remarca um encontro por um motivo, na próxima vez
esse encontro é remarcado por outro motivo. Hoje por uma coisa, amanhã por outra...
-Não me ocorre uma solução para o problema...
-Sim, mulher, você poderia fazer de conta que não percebeu...uma enfermeira do próximo
turno vai descobrir que o paciente morreu, e a enfermeira chefe do turno vai se encarregar
dos trâmites necessários.
-Eu poderia fazer isso, mas não me parece ético.
-Maria. Para os...
-Carmem.
-Carmem, para os do próximo turno dá no mesmo. Vão estar começando a trabalhar, e um
morto a mais, ou a menos, não vai aumentar a jornada deles.
-Por que você não pede um favor à enfermeira chefe do próximo turno?
-Porque sentimos um ódio mútuo, à primeira vista. (GESTO DE O QUE VAMOS FAZER.)
-Escute aqui, Mari, Carmem, esse tipo de devoção à ética é coisa de principiantes.
-Tenho que acabar a ronda.
-Por favor, Car-Mar-Ca. Maria do Carmo! Hoje foi um dia terrível para mim, e estou com
uma vontade louca de acabar, ir à casa dele, e me entregar.
-Pois a coisa está preta para você. (SAI.)
-Sim, meia-irmã.
(A ENFERMEIRA CHEFE VOLTA A OLHAR PARA O RELÓGIO. ESTÁ CADA VEZ MAIS
NERVOSA. JUSTAMENTE NO PIOR MOMENTO, QUANDO O NERVOSISMO ESTÁ A
PONTO DE IMPEDIR QUE ELA ENCONTRE UMA SAÍDA, VÊ A SOLUÇÃO ENTRANDO
PELA PORTA: O MÉDICO NOVO, QUE COMEÇOU A TRABALHAR NO HOSPITAL A
POUCO TEMPO, E QUE SEMPRE LHE SORRI, COM UM SORRISO ENTRE
INSINUANTE E INTERROGATIVO. É A SUA ÚNICA POSSIBILIDADE.)
- Doutor Ibarra, posso lhe pedir um favor?
-Com certeza, se estiver em minhas mãos...
-Tenho um compromisso inadiável, e o paciente do leito 93 acaba de falecer...
-Eles sempre morrem no momento mais inoportuno...
-Com certeza! Se o senhor puder me fazer o favor de se encarregar do morto.
-Não se preocupe, e vá tranquila: eu me encarrego de tudo.
-Muito obrigada, doutor...
-Por favor, me chame de Jaime.
-O senhor..., você é muito amável.
(A ENFERMEIRA CHEFE SE AFASTA PELO CORREDOR, E, ANTES DE ENTRAR NO
VESTUÁRIO, OLHA PARA TRÁS UMA ÚLTIMA VEZ, PARA OLHAR PARA ELE, E
COMPROVAR QUE ELE, EFETIVAMENTE, TAMBÉM ESTAVA OLHANDO PARA ELA;
ELE AINDA ESTÁ OLHANDO PARA ELA, SORRIEM, UM PARA O OUTRO, E ELA VOLTA
PARA O LADO DELE. PEGA O CELULAR, E LIGA.)
- Sim, sou eu, aconteceu uma complicação aqui no hospital, e eu não vou poder ir sair...
sinto muito... (DESLIGA.) Vamos resolver logo o problema do morto, Jaime?
POR QUE OS PONTEIROS DO RELÓGIO GIRAM NO SENTIDO DOS PONTEIROS DO
RELÓGIO?

Um home de aparência angustiada se aproxima dele. (O HOMEM DEMORA QUATRO


SEGUNDOS PARA RESPONDERE.)
-Por que você veio me contar isso?
-Porque desde esse dia eu não vivo.
-Por que? Você a ama tanto, a ponto de querer viver com ela? Ela não ama você, e isso
lhe deixa angustiado?
-Não.
-Será que é por remorso?
-Não. O que está acontecendo, é que ela não me deixa viver. Me persegue no trabalho.
Liga para mim o tempo todo. E, se eu não atendo, ela vem até a minha casa. Se eu não
estou em casa, ela sai me procurando em todos os lugares. Diz que não pode viver sem
mim.
-E?
-Eu perdia a minha tranquilidade. Desde que eu a conheci, não consegui tirá-la de cima de
mim um só dia. Você não notou nada?
-Quando você a conheceu?
-Há um mês e meio. Você estava em Roma.
-Como você sabe que eu estava em Roma?
-Ela me disse, quando a conheci. Você não acredita em mim? Ela está me esperando,
temos um encontro.
-Bem, e o que você quer de mim?
-Que você me ajude a me livrar dela. Não é que eu não goste da sua mulher. Ela é
extraordinária, inteligente, sensual. O que mais posso dizer? Mas...
-Ela é muito absorvente.
-Não é mesmo? (DIZ, CONTENTE, AO PERCEBER QUE O HOMEM ENTENDE O QUE
ELE ESTÁ PASSANDO.)
-Você quer que ela lhe deixe em paz, que saia do seu pé...
-Francamente, sim.
-Ela não o deixa em paz um só minuto, não é? Se ela vê que você está sozinho, fumando
um cigarro, tomando um ar, lendo um jornal, vendo o programa de televisão que você mais
gosta, cai imediatamente em cima de você e começa a fazer carinho.
-Além disso, se você não está absolutamente dependente dela, ela acha que está
incomodando, e fica daquele jeito. Por isso, apesar de saber que eu não tenho nenhum
direito, quero lhe pedir um favor: converse com ela, arme uma cena de ciúmes, faça
ameaças. Qualquer coisa. Qualquer coisa, desde que nós não nos encontremos mais.
-É verdade que você quer se livrar dela?
-Sim, por favor.
-Nada mais fácil. Faça como eu: deixe de evitá-la; não se esconda dela; seja amável com
ela; trate-a com ternura; e demonstre consideração por ela. Faça mais caso dela, do que
ela de você. Ligue para ela. Diga a ela que a ama como jamais amou ninguém. Prometa a
ela que lhe dedicará a vida inteira. Case com ela.
-Sim, eu vou me casar, mas é com a minha noiva.

COM O CORAÇÃO NA MÃO

Decidem se livrar dos problemas mais ou menos amorosos que cada um tinha até agora, e
se casam no final do ano, justamente à meia noite, enquanto na cidade as pessoas se
abraçam, nas casas, nas ruas, e nos salões de festas. Para os dois, acaba a época da
amizade, e começa o casamento. Vão ter filhos? Isso vão decidir mais adiante; agora a
emoção é muito forte. Se olham nos olhos, e juram amor e fidelidade eternos. Prometem
ser completamente sinceros um com o outro; não mentir para o outro nunca.
-Seremos completamente sinceros um com o outro. Não vamos mentir para o outro nunca,
em hipótese alguma, e sob nenhuma desculpa.
-Uma só mentira seria a morte para o nosso amor.
(ESTAS PROMESSAS OS DEIXAM CADA VEZ MAIS EMOCIONADOS. ÀS CINCO DA
MANHÃ, DORMEM NO SOFÁ, CANSADOS, UM NOS BRAÇOS DO OUTRO. LEVANTAM
MEIO DIA, COM RESSACA.)
-Vamos comer? (DIZ ELE.)
-Sim. Por mim, pouca coisa. Fico satisfeita com um ou dois petiscos. Mas você deve estar
com muita fome. (ELE ESTÁ A PONTO DE DIZER QUE NÃO, QUE QUALQUER COISA
VAI BEM, MAS LEMBRA DA PROMESSA.)
-Sim. Estou com fome. Mas me satisfaço com uns petiscos. Você come dois, e eu como
mais.
-Não. Você está querendo sentar numa mesa. Não prefere ir a um restaurante? (ELES
PROMETERAM SER COMPLETAMENTE SINCEROS UM COM O OUTRO. PORTANTO,
ELE NÃO PODE DIZER A ELA QUE VAI FICAR TUDO BEM SE COMER UNS PETISCOS
NUM BAR, COMO DISSE ANTES. AGORA ELE TEM QUE RECONHECER QUE
REALMENTE PREFERE IR A UM RESTAURANTE, E SENTAR-SE À MESA. ELE TEM
DÚVIDAS SE A PROMESSA EXIGE ISSO OU NÃO, MAS COMO PREFERE QUEBRAR A
PROMESSA POR EXCESSO DO QUE POR FALTA, FALA O QUE PENSA.)
-Precisamente, uma das coisas que mais me desgostam em você, é essa sua vontade de
ir sempre a esses restaurantes que substituem a boa cozinha por relações públicas. Essa
é uma atitude que você acha que é chique, mas, no fundo, é brega e grosseira.
-Sinceramente, você é um imbecil.
-Não me sinto nada imbecil e estou convencido de que, se tivéssemos que demonstrar
quem de nós possui o cérebro mais potente, o seu, com certeza, não seria o ganhador.
-Você é um imbecil, um imbecil crônico, para toda a vida. E eu não quero voltar a ver você
nunca mais.

A FÉ

-Talvez seja porque você não me ama.


-Eu amo você.
-Como você sabe?
-Não sei. Eu sinto. Eu percebo.
-Como você pode ter certeza de que o que você sente, percebe, é que me ama, e não outra
coisa?
-Amo você, porque você é diferente de todas as mulheres que eu conheci na minha vida.
Amo você, como nunca amei ninguém, e como nunca vou poder amar de novo. Amo você,
mais que a mim mesmo. Por você, eu daria a minha vida, me deixaria esfolar vivo, permitiria
que jogassem com os meus olhos, como se fossem gudes. Que me jogassem num mar de
ácido clorídrico. Amo você. Amo cada dobra do seu corpo. Para mim, basta olhar nos seus
olhos para ser feliz. Eu me vejo pequeno, em suas pupilas.
(ELA MOVIMENTA A CABEÇA, INQUIETA.)
-Você está falando a verdade? Oh, se eu soubesse que você me ama de verdade, que eu
posso acreditar em você, que você não está se enganando sem saber, e, por isso, termina
por me enganar também...você me ama de verdade?
-Sim. Eu amo você como ninguém foi capaz de amar nunca. Eu continuaria a amar você,
mesmo que você não aceitasse o meu amor, e, se você não quisesse me ver mais, eu ia
continuar amando você, em silêncio, às escondidas. Eu esperaria que você saísse do
trabalho, só para ver você de longe. Como é possível que você duvide do meu amor?
-E como não duvidar? Que prova real eu tenho do seu amor? Sim, você diz que me ama.
Mas são palavras, e as palavras não são nada mais do que convenções. Eu sim, sei que
amo você, muito. Mas, como posso ter certeza de que você me ama?
-Olhando nos meus olhos. Você não é capaz de ler, nos meus olhos, que eu a amo de
verdade? Olhe nos meus olhos. Você acredita que eles poderiam lhe enganar? Assim você
me decepciona.
-Eu lhe decepciono? Você não deve me amar tanto assim, se por tão pouco eu lhe
decepciono. E você ainda me pergunta por que eu duvido do seu amo. (O HOMEM A OLHA
NOS OLHOS E PEGA AS MÃOS DELA.)
-Amo você, ouviu bem? Eu te amo.
-Oh, “te amo”, “te amo”... É muito fácil dizer “eu te amo”
-O que é que você quer que eu faça? Que me mate para provar o meu amor?
-Não seja tão melodramático. Eu não gosto nem um pouco desse tom. Você já está
perdendo a paciência. Se você me amasse de verdade, não ia perder a paciência tão
facilmente.
-Eu não estou perdendo a paciência, coisa nenhuma. Só lhe faço uma pergunta: o que é
que eu posso fazer para demonstrar que eu te amo?
-Isso não sou eu quem tem que dizer. É preciso que isso venha de você. As coisas não
são tão fáceis como parecem. (FAZ UMA PAUSA. OLHA PARA JAIME E SUSPIRA.) O
melhor que eu posso fazer é acreditar em você.
-Mas é claro que você tem que acreditar em mim!
-Mas, por quê? O que me assegura que você não está me enganando, ou mesmo, que,
apesar de estar convencido de que me ama, bem lá no fundo, mesmo sem o saber, você
não me ama de verdade? Pode ser que você esteja equivocado. Não acredito que você
esteja agindo de má fé. Acho que quando você me diz que me ama, o faz porque acredita
mesmo nisso. Mas, e se você estiver enganado? E se o que você sente por mim não é
amor, e sim afeto, ou algo parecido? Como você amor de verdade?
-Você está me deixando aturdido.
-Me perdoe.
-A única coisa que eu sei, é que eu te amo, e que você está me deixando desconcertado,
com tantas perguntas. Você está me irritando com isso.
-Talvez seja porque você não me ama.

O CIÚME

ELA DORMIU, COM A CABEÇA SOBRE O PÚBIS DO HOMEM, QUE NÃO PARA DE
PENSAR.
-“Gosto muito da sua rola. Gosto muito da sua rola. Gosto muito da sua rola...” por que ela
sempre me diz a mesma coisa? Desde que nos conhecemos, quantas vezes ela me disse
isso? Inumeráveis. Ela nunca me disse que gosta muito do meu braço direito, ou das minhas
omoplatas, é sempre a mesma coisa, a rola (IMITANDO A VOZ DELA.): “Gosto muito da
sua rola”; “você tem uma rola linda”; “Gosto muuu...” (ELA COLOCA A MÃO SOBRE A
ROLA DELE.) Porra, outra vez! Mesmo dormindo ela se aferra à minha rola. Que cisma é
essa com a minha rola! Será que, de mim, ela só gosta da rola? E eu, ela não gosta de
mim? Ela nunca me disse isso. No começo, essa veneração tinha uma certa graça. Era
terna e excitante. Como quando eu dizia para ela: adoro estar dentro de sua concha. Mas,
pouco a pouco, isso foi tomando um aspecto obsessivo: “Muuuito, muuuuuito”. (O HOMEM
ACORDA A MULHER DE FORMA VIOLENTAE.)
-O que é que você está fazendo?
-Escute aqui, se eu não tivesse rola, você ia me amar do mesmo jeito?
-O que é que está acontecendo com você?
-O que é que você acha que está acontecendo comigo? Você não fala de outra coisa, só
da minha rola.
- De sua rola.
- Sim, você nunca me disse que gosta de mim.
- Você está ficando louco.
- Louco não. Mas eu também existo. Não lhe parece?

A SUBMISSÃO

Eu tenho uma coisa muito clara em minha cabeça. Procuro um homem de verdade, que vá
direto ao ponto, que não perca tempo com detalhes galantes, com gentilezas inúteis, e vou
continuar procurando, até que o encontre. Quero um homem que não preste atenção ao
que eu queira lhe dizer, que me pegue, na mesa, enquanto estivermos comendo. Não
suporto homens que tentam se compreensivos, e que dizem querer compartilhar meus
problemas. Quero um homem que não se preocupe com os meus sentimentos. Nunca
consegui suportar os molecotes que passavam o dia de me falando de amor, nem quando
era adolescente... de amor! Eu quero um homem que nunca me fale de amor, que nunca
me diga que me ama. É patético ver um homem, com olhar apaixonado, dizendo: “eu te
amo”. Eu sim, posso dizer, e vou dizer sempre, porque vou amá-lo de verdade, e, quando
disser eu isso, vou receber em troca, encantada, o olhar de compaixão dele. É esse o tipo
de homem que eu quero. Um homem que me use na cama do jeito que quiser, sem se
preocupar comigo, porque o meu prazer vai ser o prazer dele. Não tem coisa que me deixa
mais exasperada do que esses homens que, em um momento ou outro da transa, ficam
perguntando se a gente chegou ou não ao orgasmo. De uma coisa eu não abro mão: tem
que ser um homem inteligente, que tenha vida própria, intensa, e que tenha êxito na
carreira. Que viaje, e que tenha outras mulheres. Isso não me incomoda, porque esse
homem, ele vai saber, que, basta simples um assovio, e estarei aos seus pés, para eu ele
faça de mim o que quiser. Quero um homem que mande em mim, que me bote no bolso, e
que me domine. Um homem que, quando lhe der vontade, passe a mão em mim, de forma
ousada, sem nenhum pudor, na frente de todo o mundo. E que, se, por essas coisas da
vida, tenho um acesso de pudor, me tasque uma bofetada, sem se importar com quem
esteja olhando. Quero, também, que ele me bata, em casa, em parte porque eu gosto disso,
fico loucamente feliz quando me pegam, e em parte porque estou convencida de que com
toda esta oferta, ele jamais vai poder prescindir de mim. (APARECE UM HOMEM COM UM
SORVETE E COM UM JORNALNA MÃO.)
-Carmem? Rafa. Boa ideia essa do sorvete. Nunca tive um encontro desse tipo, mas é que
aquele seu anúncio era selvagem... “Quero, também, que ele me bata, em casa...”. Gosto
muito do seu senso de humor.
-Sim, só não sei por que o fato de ser carinhosa, romântica, e terna...não consegue chamar
a atenção.
-Vamos jantar? Você me lembra alguém que eu conhe...
-Maria... Não é a primeira vez que alguém me diz isso.

NÃO TENHO O QUE VESTIR

-Estou atrasado, mamãe! Que camisa eu boto? A branca? Não. O branco me engorda. As
que ficam melhor em mim são a cinza e a preta. Mas estou cansado de usar sempre a cinza
e a preta! Apesar de que, se eu escolher qualquer uma das duas, posso usar a calça cinza...
não é?..., ou o jeans preto..., é boa ideia!
Como será que ela vem? Será que ela vai usar um vestido luxuoso, ou vem vestida com
uma roupa mais simples? Mas, se ela viesse com uma roupa mais esporte, eu ficaria bem,
com o jeans preto e a camisa cinza, ou com a camisa preta. Merda! A camisa está
amassada!
Porque essa é outra: Uso o blazer cinza ou o xadrez? O cinza? É que, se eu escolher a
camisa preta, o blazer xadrez vai quebrar um pouco a seriedade da camisa e da calça, você
não acha, mamãe? É claro que uma gravata pode suavizar a austeridade cinza-preto da
camisa e da calça. Que gravata eu boto? Uma lisa, uma listrada? É verdade, a xadrez! Não,
não, com o blazer xadrez vai ficar um pouco espalhafatoso. Ah, a senhora estava
brincando? Ou não! Talvez a superposição do xadrez produza um efeito interessante,
precisamente pelo exagero. Eu também posso ir sem gravata, não é, mamãe? Mas, e se
eu não colocar a gravata, e ela vier muito bem vestida, vou ficar parecendo um pobretão.
E se eu vestir a calça de linho? Blazer xadrez, camisa cinza, gravata xadrez, e calça de
linho. E o sapato? Escute aqui, mamãe, não me deixe mais agoniado do que já estou! E se
ela vier com um vestido de cor parecida com a da minha calça, isso, parecida, mas não
exatamente igual, o que é pior nessas combinações?
Mamãe, me ajude! Como será que ela vai estar vestida? Ela não me disse a que tipo de
festa nós vamos. Bem, a verdade é que ela não me disse nada, estava tão
diferente...inclusive, quando eu lhe perguntei se estava gripada, ele me respondeu com
uma evasiva e desligou o telefone. Acho que a melhor coisa a fazer, é não apostar na
combinação de xadrez, vai que ela vem vestida de xadrez, aí nós vamos ficar parecendo
dois palhaços.
O que é que a senhora está fazendo, mamãe? A senhora acha eu devo usar ao blazer
cinza, é isso, mamãe? Mas se eu usar o blazer cinza, a camisa cinza, e a calça de linho, e
ela chegar aqui de jeans, pulôver e sobretudo, eu vou ficar parecendo um santarrão.
Se eu a visse chegar, poderia decidir que roupa usar, no último momento. Mas, é que para
mim é muito importante que a nossa roupa esteja em harmonia, sabe, mamãe? Acho até,
que possa ter um certo charme, se eu estiver vestido de uma maneira, e ela de outra, não
é, mamãe? O que a senhora acha? Mamãe! Já sei, já sei, o que eu tenho que fazer, ao
invés de ficar aqui quebrando a cabeça com essas bobagens, é usar o que me faça sentir
melhor. E que roupa me cai melhor, mamãe?
Mamãe! Porra, Maria, você me deu um baita susto! Não me diga que nós vamos a uma
festa a fantasia...
Não.

O SACRIFÍCIO

MARIDO E MULHER CONTEMPLAM A SILHUETA DA TORRE. A MULHER SE SENTE


ESPECIALMENTE TERNA, E ABRAÇA O MARIDO.
-Eu tinha muita vontade de fazer essa viagem.
(SE BEIJAM. O MARIDO ACARICIA OS CABELOS DA MULHER. VOLTAM A OLHAR
PARA A TORRE.)
-Que horas temos que estar em Florença? (A MULHER DIZ.)
-À noite. Você está com fome? Podemos comer em algum lugar por aqui?
-Sim. Mas primeiro vamos subir na torre.
-Na torre? Nem pensar.
-Como não? Se viemos até Pisa, como vamos embora sem subir na torre?
-Mas é claro que não. Eu é quem não subo.
-E por que não?
-Porque a torre não é segura. Eu não ia achar graça nenhuma se a torre caísse, justamente
quando nós estivéssemos subindo para fazer uma visita turística.
-Como assim, vai cair? Faz séculos que ele se aguenta de pé, assim. Você não acha
mesmo que ela vá cair precisamente quando nós dois subirmos, não é?
-Faz séculos que ela está inclinada. Mas não é verdade que faça séculos que ela esteja tão
inclinada assim. Está cada vez mais inclinada. E algum dia vai cair. Todo o mundo vai dizer:
“Viu, foi hoje, quem poderia imaginar”? Mas eu não quero estar lá dentro no dia que isso
acontecer.
-Você não sabe que a torre ficou fechada durante anos, até se certificarem de que estava
tudo bem, até que uma comissão de geólogos, arquitetos, e não sei quem mais lá, decidiu
que não havia perigo?
-Precisamente por isso, o fato de que ela ter sido mantida fechada, por tanto tempo, quer
dizer que ela é perigosa. Quando ela cair, aí sim, vai deixar de ser perigosa. Porque
ninguém mais vai poder subir. O problema é enquanto ela não cai. Além do mais, a única
coisa que eles fizeram para resolver o problema, foi: envolver a torre com uns anéis de aço;
firmar a estrutura numa plataforma de cimento; e colocar nela um contrapeso de chumbo.
O fato de que só possa subir um número determinado e reduzido de pessoas por turno
confirma que eles não resolveram o problema.
-Não. O que isso confirma, é que foram adotadas as medidas de segurança necessárias.
Agora já está tudo bem. Você me deixa louca. É verdade que você não quer subir? Viemos
até Pisa, e você não vai subir na torre comigo?
-É um risco desnecessário.
-Tudo é um risco desnecessário. Subir num avião. Andar de carro. Fumar. Até ficar em
casa. Pode acontecer que a vizinha do andar de baixo não tenha desligado o gás direito,
que alguém acenda um palito de fósforo, e que exploda o prédio todo.
-Você é um porre.
-Eu vou subir. Se você quiser, me espere aqui.
(O VENTO SOPRA DE MANEIRA APAVORANTE. O LENÇO QUE A MULHER USA NA
CABEÇA GRUDA NO ROSTO DELA. ELA O TIRA COM A MÃO; OLHA PARA O MARIDO
COM UMA CARA DE OFENDIDA. O MARIDO COMPREENDE QUE SE ELE NÃO FOR
COM ELA, VAI ABRIR UMA FENDA NO MURO OS MANTÉM UNIDOS, UM MURO QUE
FORAM CONSTRUINDO COM A FORÇA DOS ANOS. E, PORQUE FARIA QUALQUER
COISA PARA QUE ESSE MURO NÃO SE QUEBRASSE, TERMINA ACEITANDO IR COM
ELA.)
-Venha, vamos.
(A MULHER SORRI, O ABRAÇA PELA CINTURA, VÃO ATÉ A TORRE, COMEÇAM A
SUBIR, E NÃO TÊM TEMPO NEM DE DAR-SE CONTA DESSA PROVA DE AMOR.)

VIDA MATRIMONIAL

NO HOTEL, DÃO A ELES UM QUARTO COM DUAS CAMAS DE SOLTEIRO.


-Vamos juntar as camas?
-Bah, é só por uma noite...
(CADA UM SE METE EM SUA CAMA E PEGA UM LIVRO. POUCOS MINUTOS MAIS
TARDE, ELES OUVEM UM BARULHO, E PECEBEM QUE ESTÃO TRANSANDO NO
QUARTO AO LADO. OUVEM, CLARAMENTE, O CHIADO DO COLCHÃO, OS GEMIDOS
DA MULHER, E UM POUCO MAIS BAIXO, A RESPIRAÇÃO OFEGANTE DO HOMEM.
OLHAM UM PARA O OUTRO, SORRIEM, FAZEM ALGUM COMENTÁRIO DIVERTIDO A
RESPEITO, SE DESEJAM BOA NOITE, E APAGAM A LUZ. ELE, EXCITADO PELA
TREPADA EU CONTINUA OUVINDO ATRAVÉS DA PAREDE, PENSA EM DIZER
ALGUMA COISA A ELA. PODE SER QUE ELA TENHA FICADO TÃO EXCITADA QUANTO
ELE. PODERIA SE APROXIMAR, SENTAR NA CAMA DELA, FAZER UMA PIADINHA
SOBRE OS VIZINHOS, E, COMO QUEM NÃO QUER NADA, ACARICIAR OS CABELOS
DELA, O ROSTO, OS SEIOS. MUITO PROVAVELMENTE, ELE FICARIA PRONTA EM UM
SEGUNDO. MAS. E SE ELA NÃO SE EXCITAR? E SE ELA TIRAR A MINHA MÃO E FIZER
UM MUCHOCHO? OU PIOR, E SE ELA ME DISSER QUE “NÃO ESTÁ COM VONTADE”.
HÁ ALGUNS ANOS, ELE NÃO TERIA DÚVIDAS. TERIA SABIDO, ANTES MESMO DE
APAGAR A LUZ, SE ELA ESTAVA COM VONTADE OU NÃO, E SE OS GEMIDOS DO
QUARTO AO LADO A TINHAM EXCITADO, OU NÃO. MAS AGORA, COM TANTOS ANOS
DE TEIAS DE ARANHA EM CIMA, NADA ESTÁ CLARO. VIRA DE LADO, E SE
MASTURBA, PROCURANDO NÃO FAZER BARULHO. DEZ MINUTOS DEPOIS QUE ELE
ACABOU DE SE MASTURBAR.)
-Você está dormindo?
-Ainda não.
(ELA SE LEVANTA, VAI ATÉ A CAMA DELE. AFASTA OS LENÇÓIS, SE DEITA, E
COMEÇA A ACARICIAR-LHE AS COSTAS. A MÃO DELA VAI DESCENDO, DAS COSTAS
ATÉ AS NÁDEGAS.)
-Não estou com vontade.
(ELA PARA A CARÍCIA, HÁ UM BREVE SILÊNCIO, MUITO LONGO, E ELA VOLTA PARA
A CAMA. ELE OUVE COMO ELA AFASTA OS LENÇÓIS, COMO SE ENFIA NA CAMA, E
COMO SE MEXE, PARA LÁ, E PARA CÁ. A CADA MOVIMENTO DELA, SE MULTIPLICAM
OS REMORSOS DELE, POR TER SE MASTURBADO SEM AO MENOS TENTAR SABER
SE ELA QUERIA TRANSAR. POR OUTRO LADO, SE SENTE CULPADO, POR NÃO TER
DITO A VERDADE PARA ELA.)
-É tão pouca, assim, a confiança que temos um no outro? Já nos tornamos tão estranhos
um para o outro, que nem isso eu tenho mais coragem de dizer a ela?
(PRECISAMENTE PARA DEMONSTRAR QUE NÃO SÃO DE TODO ESTRANHOS, QUE
AINDA HÁ UMA CENTELHA DE CONFIANÇA, QUE TALVEZ POSSA REACENDER A
FOGUEIRA, REUNE CORAGEM, SE VOLTA PARA ELA E DIZ:)
-Eu me masturbei há alguns minutos, porque pensei que você não ia querer transar. Foi por
isso que eu lhe disse que não estava com vontade.
(MINUTOS DEPOIS, PELOS SONS DISSIMULADOS QUE CHEGAM ATÉ ELE, SUPÕE
QUE ELA ESTÁ SE MASTURBANDO. SENTE UMA TRISTEZA IMENSA, PENSA NO
QUANTO A VIDA É GROTESCA E INJUSTA. GRITA, COM UM GRITO QUE É O GEMIDO
FINAL QUE ELA SUFOCA.)

O AMOR

-Meu primeiro amor era uma enfermeira. Uma mulher morena, bonita...com traços faciais
graciosos e intensos; inteligente, divertida, e tinha o que as pessoas costumam chamar de
caráter.
-Ele foi o meu primeiro amor, era jogador de futebol. Um homem moreno, bonito...com
traços faciais graciosos e intensos, inteligente, divertido... E tinha o que as pessoas
costumam chamar de caráter.
-A enfermeira me tratava com desdém. Era seca e displicente comigo.
-De vez e quando, quando ele me ligava, sempre era ele quem ligava, eu nãoligava para
ele nunca. Mesmo que não tivesse nada para fazer, eu sempre lhe dizia que não ia poder
sair com ele...
-Ela me dava a entender que tinha outros amantes.
-Eu fazia isso, para que ele não achasse que tinha algum direito sobre mim.
-Eu acho que ela me tratava com desdém porque, no fundo, me amava muito.
-Eu pensava, que se não o tratasse com desdém, cairia na armadilha, e me apaixonaria por
ele, tanto quanto ele estava apaixonado por mim. Cada vez que eu decidia ir para a cama
com ele, ele ficava tão feliz, que até chorava!
-Eu chorava de alegria! Como nunca chorei com nenhuma outra mulher. Por que?
-Eu sabia que, às vezes, o jogador de futebol saia com outras mulheres.
-Sim... saia com outras porque já não suportava mais que ela me tratasse como um objeto,
que me usasse como a uma escova de dentes, para depois me ignorar.
-Mas ele sempre voltava. Nenhuma mulher dava a ele o prazer que eu lhe dava.
-Uma tarde, enquanto a enfermeira fumava, e me observava tirando a roupa, decidi falar
com ela.
-Ele me disseque eu não deveria ser tão seca assim com ele, tão esquiva. Que eu não
tivesse medo de me mostrar tal qual eu era... que ele não ia se aproveitar de nenhuma
fraqueza minha. Que, se...
-Se ela me mostrasse toda essa ternura que escondia de mim, eu a amaria ainda
mais...muito aborrecida (irada), me respondeu que quem eu pensava que era, para lhe dizer
o que ela tinha que fazer ou deixar de fazer.
-Eu mandei ele sentar, e o esbofeteei.
-Essa tarde eu gozei mais do que nunca. (PAUSA.) Mas, no dia seguinte, quando nos
encontramos, ela não se mostrou tão carrancuda, como de costume.
-Eu cheguei a ser terna com ele.
-Uma noite, nós estávamos na cama. Eu estava tão emocionado, que me comovia com
cada gesto, com cada carícia...era tal a ternura, que eu não tinha nem vontade de fazer
sexo.
-Para nós, bastava ficar abraçados, dizendo o quanto nos amávamos. Eu nunca mais voltei
a tratá-lo com desprezo.
-Ela estava tão apaixonada por mim, que me dizia isso pela manhã, à tarde, e à noite...
-Eu dava presentes a ele, camisas, livros...me entregava, sempre que ele queria.
-Nos víamos todos os dias. Era ela quem ligava, e cada vez mais. E uma noite, ela me fez
a proposta.
-Vamos viver juntos? (PAUSA.) Ele me olhou friamente, com um olhar vidrado...
-Nem eu mesmo estava entendendo o que estava acontecendo comigo! Até aquele
momento, eu daria a minha perna direita, para que ela me fizesse essa proposta.
-Não voltei a vê-lo, nunca mais. Desde então, eu me sinto como se estivesse num conto de
fadas: sou o sapo que espera o beijo do príncipe.
(SE NCONTRAM NA SAÍDA DAS SUAS RESPECTIVAS CONSULTAS. SE OLHAM, SE
RECONHECEM, E SE BEIJA.)
-Maria.
-Até que enfim, você chegou.
-Eu sempre soube que ia lhe encontrar.
-Era como se este momento não fosse chegar nunca.
-Pois agra chegou.
-Sim.
-Que bom, não?
-Você está feliz?
-Sim. E você?
-Eu também, como num conto de fadas.
-Até que enfim...
-Sim...
-Veja como são as coisas...
-Esperar tanto, e, de repente, como num passe de mágica, acontece.
-Sim...acontece.
-Que bom, não?
-Sim. Ui! Deixei uma mancha de batom em você.

A MONARQUIA

-Tudo isso, por causa daquele sapato que eu perdi quando tive que sair correndo do baile,
porque à meia noite acabava o encantamento. Sempre fiquei maravilhada, porque aquele
sapato só coubesse em mim, porque o tamanho do meu pé, de número 36, não é, em
absoluto, tão raro assim, e outras garotas d povoado deviam calçar o mesmo número. Ainda
me lembro da expressão de assombro das minhas duas meias-irmãs, quando viram que
era eu, a jovem que iria casar com o príncipe, e que, alguns anos depois, eu me
transformaria na nova rainha.
-O rei sempre foi um marido atencioso e fogoso. Tive uma vida de sonhos, até o dia que
descobri uma mancha de batom na camisa real. Que o rei tem uma amante, isso não resta
a menor dúvida. As manchas de batom nas camisas sempre foram a prova clara de
adultério. Quem pode ser a amante do meu marido? E por que o rei procurou uma amante?
Por acaso eu não o satisfaço suficientemente? Será que foi porque eu me nego a certas
práticas que considero perversão? Será que foi porque eu não quis saber dessa coisa de
urinar nele durante o sexo, e porque eu não permiti a sodomia, que ele foi procurar essas
coisas fora de casa? Eu devo dizer a ele que descobri, ou dissimular, fazer de conta que
não sei, como é a tradição entre as rainhas, nesses casos, para não colocar em risco a
instituição da monarquia?
-Não vou lhe dizer nada. Vou me calar. Me calo, inclusive nos dias que ele só chega no
quarto ás oito da manhã, com olheiras de um palmo, e cheirando a mulher. Onde será que
eles se encontram? Num hotel, na casa dela, aqui mesmo, no palácio? Este palácio tem
tantos quartos, que ele, facilmente, poderia manter a amante em qualquer das
dependências que não conheço. Tampouco digo nada, quando os nossos contatos íntimos,
que antes aconteciam com uma regularidade cronometrada, noite sim, noite não, vão se
espaçando. Já se passaram mais de dois meses da última vez que estivemos juntos.
-Há noites em que eu choro em silêncio, no quarto real, agora o rei nunca dorme comigo.
A solidão está me fazendo murchar. Eu teria preferido não ir àquele baile, nunca, ou que
aquele sapato tivesse calçado no pé de outra mulher qualquer, ao invés de ter calçado no
meu. Eu teria preferido, até, que uma das minha meias-irmãs calçasse 36, em vez de 40 e
41, que são números muito grandes para uma garota.
(O REI APARECE.)
-Boa noite, querida. Não precisa me esperar acordada, porque eu vou voltar tarde. (SAI.)
-De que me adianta ser uma rainha, se eu não tenho o amor do rei? Eu daria tudo, para ser
essa mulher com a qual o rei está copulando fora do casamento. Prefiro mil vezes ser a
protagonista das noites de amor adúltero do rei, do que repousar no vazio do leito conjugal.
Antes ser amada do que ser uma rainha.
(ELA O SEGUE, POR CORREDORES QUE DESCONHECE, POR ALAS OCULTAS DO
PALÁCIO, ATÉ ESTÂNCIAS DE CUJA EXISTÊNCIA SEQUER
IMAGINAVA.FINALMENTE, ELE SE TRANCA EM UM QUARTO, E ELA FICA NO
CORREDOR, ÀS ECURAS. LOGO COMEÇA A OUVIR VOZES. A DO SEU MARIDO, SEM
DÚVIDA, E O CACAREJAR DE UMA MULHER. MAS, SUPERPOSTA A ESSA RISADA, A
ESSE CACAREJAR, OUVE, TAMBÉM, A RISADA DE OUTRA MULHER.)
-Ele está com duas mulheres?
(POUCO A POUCO, PROCURANDO NÃO FAZER BARULHO, ENTREABRE A PORTA
DO QUARTO. SE JOGA NO CHÃO, PARA QUE ELES NÃO A VEJAM, E COLOCA A
METADE DO CORPO PARA DENTRO DO QUARTO. A LUZ DOS CANDELABROS
PROJETA AS SOMBRAS DE TRÊS CORPOS QUESE ACOPLAM. ELA GOSTARÍA DE
SE LEVANTAR, PARA VER QUEM ESTÁ NA CAMA, PORQUE AS RISADAS E OS
SUSSUROS NÃO PERMITEM QUE ELA IDENTIFIQUE AS MULHERES. DE ONDE ELA
ESTÁ, DEITADA NO CHÃO, NÃO PODE VER QUASE NADA; SÓ CONSEGUE VER, AOS
PÉS DA CAMA, JOGADOS DE QUALQUER JEITO, OS SAPATOS DO SEU MARIDO, E
DOIS PARES DE SAPATOS DE MULHER, DE SALTOS MUITO ALTOS.)
-Um preto, tamanho 40, e outro vermelho, tamanho 41.

A MITOLOGIA

-Níscalos, rebozuelos, oronjas, agáricos*...


OBS.: *(SÃO ESPÉCIES DE COGUMELO, NÃO CONSEGUI TRADUZIR E NÃO
CONSEGUI RESOLVER O PROBLEMA TALVEZ A SOLUÇÃO SEJA UMA FALA
ININTELIGÍVEL QUALQUER)
-O que é que você está fazendo em minha cama?
-Bom dia, bom homem. Sou o gnomo da sorte, que nasce de algumas almanitas* quando
elas se desintegram. Você é um homem afortunado. Somente uma, de cada cem mil
amanitas, tem um gnomo da sorte. Expresse um desejo, que eu vou lhe conceder.
-Isso só acontece nos contos de fadas.
-Não. Acontece na realidade também. Ande, expresse um desejo, e eu vou lhe conceder
realizá-lo...
-Não posso acreditar nisso.
-Você vai acreditar. É só expressar um desejo, que você vai ver como, peça você o que
pedir, ainda que pareça uma coisa muito grande, ou inalcançável, eu vou realizar esse
desejo seu.
-Como é que eu posso lhe pedir alguma coisa, se eu não consigo acreditar que existam
gnomos que possam me dar qualquer coisa que eu peça para eles?
-Você tem diante de si um homenzinho de ceroulas, de óculos, com um gorro na cabeça,
de bigodes, e com um charuto na boca, flutuando na sua cama, e ainda assim, você não
acredita? Venha, expresse um desejo.
-Nunca me imaginei numa situação como essa. O que pedir? Riquezas? Mulheres? Saúde?
Felicidade? Fidelidade?
-Peça coisas tangíveis. Nada de abstrações. Se você quer riquezas, peça tal quantidade
de ouro, ou um palácio, ou uma empresa de tais e quais características. Se você quer
mulheres, diga quais as que você quer, de forma concreta. Se o que você pedir vai lhe fazer
feliz ou não, isso já é um problema seu.
-Coisas tangíveis? Um Range Rover? Uma mansão? Um iate? Bem... e, por que não uma
companhia aérea? Porque eu não gosto de viaja. E... Sarita Montiel? (CARA DE
DESAGRADO DO GNOMO.) Sara Montiel quando tinha vinte anos.... (O GNOMO FICA
IMPACIENTE.)
Não posso ficar esperando eternamente. Eu não lhe falei antes, porque pensei que você
não ia demorar tanto para decidir, mas você tinha cinco minutos para me dizer qual é o seu
desejo, já se passaram três. Portanto, só lhe restam dois. (O GNOMO COMEÇA A FICAR
CADA VEZ MAIS IMPACIENTE. VOCÊ PRECISA DECIDIR O QUE QUER, E DEVE
DECIDIR LOGO.)
-Quero...
-O que é que você quer? Diga logo.
-É que decidir uma coisa dessas, assim, com pressa, é muito difícil. Numa ocasião como
essa, talvez a única em toda uma vida, é preciso ter mais tempo para tomar uma decisão.
Não se pode pedir a primeira coisa que passe pela cabeça.
-Só lhe resta um minuto e meio.
-Talvez, ao invés de pedir coisas, seja melhor pedir dinheiro: uma quantia concreta. Mil
bilhões, por exemplo. Com mil bilhões eu poderia ter de tudo. E porque não dez mil, ou cem
mil bilhões? Ou um trilhão. Não consigo me decidir por nenhuma quantia, porque, na
verdade, numa situação como esta, tão carregada de magia, pedir dinheiro me parece
vulgar, pouco sutil, nada engenhoso.
-Um minuto.
-E se eu pedisse Poder?
-Trinta segundos.
-Ui... eu não sei...
-Quinze segundos.
-Um trilhão, então? Ou um milhão de trilhões? E um trilhão de trilhões?
-Quatro segundos.
-Renuncio definitivamente ao dinheiro. Um desejo tão excepcional como este, deve ser
mais sofisticado, mais inteligente.
-Dois segundos. Diga logo.
-Quero outro gnomo igual a você.
-Bom dia, bom homem. Sou o gnomo da sorte, que nasce de algumas amanitas, quando
elas se desintegram. Você é um homem afortunado. Somente uma, de cada cem mil
amanitas, tem um gnomo da sorte. Expresse um desejo, que eu vou lhe conceder.
-Quero outro gnomo igual a você.
-Bom dia, bom homem...
-Quero outro gnomo igual a você...

A BELA ADORMECIDA

-Tive um sonho magnífico:


Eu cavalgava, montado em um cavalo branco, através de um bosque, e, de repente, no
meio de uma clareira, vi o corpo de uma jovem belíssima, deitado sobre uma cama feita
com ramos de carvalho, rodeada de flores de todas as cores. Desmonto rapidamente, e me
ajoelho a seu lado. Pego uma das mãos dela. Está fria. Ela está com o rosto muito branco,
como se estivesse morta. E com os lábios finos e entumecidos. Consciente do meu papel
na história, eu a beijo com doçura. De imediato, a garota abre os olhos, uns olhos grandes,
amendoados, e olha para mim, com um olhar surpreso, que, em seguida, se enche de
ternura. Seus lábios vão perdendo o tom arroxeado, e, uma vez recobrado o vermelho da
vida, se abrem em um sorriso. Tem uns dentes lindos. Suas bochechas já não estão com
a brancura da morte, estão rosadas, sensuais, dá vontade de morder.
Me aproximo, e estendo as minhas mãos para ajudá-la a levantar da cama. E então,
enquanto a garota se aproxima, sem deixar de me olhar nos olhos, apaixonada, me dou
conta de que a uns vinte ou trinta metros, mais adiante, antes que a clareira dê lugar ao
bosque, há uma outra garota adormecida, tão bela como essa que eu acabo de despertar,
igualmente deitada numa cama de ramos de carvalho, e rodeada de flores de todas as
cores.

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