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Artigo Científico Original

A CONSTRUÇÃO
INTERCULTURAL DO DIREITO DAS MULHERES INDÍGENAS A
UMA VIDA SEM VIOLÊNCIA: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Lívia Gimenes Dias da Fonseca
Fonseca

A CONSTRUÇÃO INTERCULTURAL
INTERCULTURAL DO CONSTRUCTION OF THE
DIREITO DAS MULHERES RIGHT OF INDIGENOUS
INDÍGENAS A UMA VIDA WOMEN TO A LIFE
SEM VIOLÊNCIA: WITHOUT VIOLENCE: THE
A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA BRAZILIAN EXPERIENCE

Lívia Gimenes Dias da Fonseca


Doutoranda em Direito na Universidade de Brasília com estágio sanduíche no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra (Bolsa Capes/MEC, Processo n. 4564/14-6).

RESUMO ABSTRACT
Ao se aplicar a noção de interculturalida- When applying the notion of intercul-
de aos direitos das mulheres no Brasil se tural for women’s rights in Brazil is fac-
confronta, em especial, com os desafios ing, in particular, the challenges posed
colocados pelo movimento de mulheres by the movement of indigenous women.
indígenas. Uma situação importante que An important situation that points to the
aponta para a complexidade deste pro- complexity of this problem is the reality
blema é a realidade de violência que of violence that indigenous women have
as mulheres indígenas vêm denunciando been reporting as marital violence on
em contexto intra-étnico como violências intra-ethnic context. The challenge that
conjugais. O desafio que se coloca é a arises is the understanding that the an-
compreensão de que as respostas às vio- swers to the violence suffered by women
lências sofridas pelas mulheres não pode can´t be homogeneous in the same way
ser homogênea do mesmo modo que a that their reality is different. The idea of
realidade delas é diversa. Refletir sobre reflect on the state institutions, especially
as instituições estatais, em especial as ju- legal, is for these be more open to diver-
rídicas, para que essas sejam mais aber- sity and dialogue with society, something
tas às diversidades e ao diálogo com a that serves the whole society. The propos-
sociedade é algo que serve a todos e al that arises here is the discussion about
todas. A proposta que aqui se coloca é the possibilities of opening the right to the
a discussão acerca das possibilidades problem-solving dialogue with indigenous
de abertura do Direito para o diálogo women’s organizations, as legitimate so-
problematizador com as organizações cial organization in the formulation and
de mulheres indígenas, como organização expansion of women’s rights so that they
social legítima na formulação e alarga- serve the release of all women.
mento da concepção de direitos das mu- Key words: Indigenous Women; Domestic
lheres para que estes sirvam à libertação violence; Interculturalism.
de todas as mulheres.
Palavras Chaves: Mulheres indígenas;
Violência doméstica; Interculturalidade.

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1. INTRODUÇÃO 1492, ano que para o autor Dussel se-
O direito a uma vida sem violência tem ria também o nascimento da modernida-
sido uma das mais importantes pautas de como ideologia política e epistêmica
do movimento feminista brasileiro que, (DUSSEL, 1992: 08).
junto ao órgão ministerial Secretária de O colonialismo é uma relação de “con-
Políticas para as Mulheres da Presidência trole da autoridade política, dos recur-
da República (SPM/PR), construiu e ga- sos de produção e do trabalho de uma
rantiu a sanção, em 2006, da Lei Maria população determinada domina outra de
da Penha (no 11.340/06) de enfrenta- diferente identidade e cujas sedes cen-
mento a violência doméstica. trais estão, além disso, localizadas noutra
jurisdição territorial”(QUIJANO, 2010:
Todavia, durante o processo de constru-
84, nota 1). Em que pese o fim desse
ção dessa lei não houve a participação
controle de uma autoridade política, o
efetiva de um segmento importante das
colonialismo deixa marcas de padrões
mulheres brasileiras, que são as indíge-
políticos e epistêmicos que se identificam
nas. Em razão disso, o governo brasilei-
com o pensamento moderno. As “colonia-
ro tem tentado realizar desde 2008 um
lidades” seriam as consequências do co-
diálogo com as mulheres indígenas, den-
lonialismo para as relações de poder, de
tre outras pautas, sobre como enfrentar a
hierarquias de classificação social do ser
violência doméstica ocorrida em contex- e para a produção de conhecimento.
tos intra-étnicos.
No mesmo sentido, para Boaventura, a
A análise dos relatórios dos encontros partir do colonialismo se produziu a “ló-
organizados pelo órgão indigenista gica da escala dominante” em forma
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ofi- de universal e global. O universalismo é
cialmente responsável pela promoção e aplicação dessa perspectiva de mundo
proteção dos direitos dos povos indíge- moderno independente do contexto es-
nas no Brasil, permite refletir sobre a ne- pecífico (SANTOS, 2006: 104). O Estado
cessidade de respostas mais plurais para Nação é um exemplo desse universalismo,
a problemática da violência doméstica. pois é um modelo de organização social
Essa reflexão acaba também por deman- difundida globalmente como um modelo
dar um olhar sobre a própria forma mo- único admissível. Essa difusão vem no bojo
derna de se pensar o Direito e o Estado histórico dos processos de colonização
que impossibilita a coexistência plural de realizados pelos países da Europa em
ordenamentos jurídicos e a produção de relação, especialmente, aos países dos
um direito intercultural que possibilite a continentes americanos e africanos.
superação de opressões pelos sujeitos A ideia de Estado Nação, assim, é a
considerando a sua diversidade. universalização de uma forma de políti-
ca comunitária que inclui na sua base o
modo capitalista de produção e o pa-
2. O DESAFIO DA INTERCULTURALIDADE triarcado (CHAKRABARTY, 2000: 41).
NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO DAS Esse modelo único de organização social,
para Aníbal Quijano, advém da “colonia-
MULHERES A UMA VIDA SEM VIOLÊNCIA lidade do poder” que é uma articulação
O processo de colonização tem como heterogênea, descontínua e conflituosa na
marco histórico para a América Latina América Latina do modelo de exploração
a chegada de Cristóvão Colombo em capitalista colonialista que leva a classifi-
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cação dos indivíduos por trabalho, gêne- Estado Nação o espaço único de produ-
ro e raça1. (QUIJANO, 2010: 114). ção do próprio Direito ao igualá-lo com
Assim, da colonialidade do poder se de- a produção de leis. O positivismo teori-
senvolve a colonialidade do ser, isto é, a camente rompe com a tradição do jusna-
criação a partir de uma perspectiva et- turalismo que na sua trajetória histórica
nocêntrica de um(a) “Outro(a)” (o índio, o anterior às revoluções burguesas tinha na
escravo, o oriental, a mulher) como subal- palavra de Deus o conteúdo do Direito.
terno ao eurocentrismo, branco, masculi- Todavia, esse rompimento será apenas
no, heterossexual e patrimonial, no qual a uma dissimulação das bases racionais
cultura (a razão) europeia seria superior já que a tradição judaico-cristã tem que
aos dos demais povos, o que justificou não Deus teria feito o “homem” a sua imagem
só a escravização dos povos africanos e e semelhança. A passagem da tradição
indígenas, mas também a colonização do medieval do conhecimento para moder-
“sul” pelo “norte”. nidade carrega esse principio. Como
A partir dessa classificação social de se- aponta Grosfoguel, a lógica cartesiana
res humanos irá se produzir também a co- de Descartes “substitui Deus, fundamen-
lonialidade do saber. A divisão da socie- to do conhecimento na teopolítica do co-
dade colonial entre “civilizados” e “selva- nhecimento da Europa da Idade Média,
gens/indígenas” constitui uma base epis- pelo Homem (ocidental), fundamento do
temológica que situa os(as) nativos(as) conhecimento na Europa dos tempos mo-
dernos” (GROSFOGUEL, 2010: 460).
como objetos “naturais” da ciência que
os coloca num “tempo-espaço temporal- Por meio dessa crítica à dualidade jus-
mente indeterminados, mas ainda assim positivismo e jusnaturalismo, Lyra Filho irá
periférico”(MENESES, 2010a, p. 226). rejeitar essas como as únicas possibilida-
des de pensar o Direito e irá propor a
A produção de conhecimento a partir da
ideia de um Direito Achado na Rua, isto
lógica da modernidade irá se fundar nes-
é, a compreensão de que o Direito é um
sa colonialidade do saber se constituindo
produto de articulações da própria so-
como uma produção da “não existência”,
ciedade, em especial dos movimentos so-
ou de outro modo, como “monocultura
ciais, na sua atuação e participação ati-
do saber”. O pensamento moderno, des-
va para a destituição de uma realidade
se modo, irá dicotomizar o conhecimento
injusta que nega aos indivíduos sua plena
científico, que será considerado neutro, de
realização. O direito pode até se mani-
outras formas de saberes (SANTOS, 2006:
festar por meio de normas, desde que se
102). Essa suposta neutralidade do conhe-
assegure que estas sejam a expressão de
cimento científico será à base da ideologia
uma “legítima organização social da li-
positivista. Neste sentido, a diferença cul-
berdade” (LYRA FILHO, 2005: 86).
tural na razão moderna assumiu contornos
de hierarquia racial “a partir da articula- Essa proposta quebra com a perspectiva
ção entre o evolucionismo, o positivismo e o universalista de Estado Nação como locus
racismo” (MENESES, 2010b: 74). único de produção do Direito. A crítica
ao universalismo envolve, assim, o reco-
O positivismo na produção de conheci-
nhecimento de uma pluralidade social de
mento sobre o Direito terá no modelo de
produção de sentidos jurídicos e a nega-
ção da imposição de uma cultura sobre a
1 E outras classificações como por identidade de gênero; orientação sexual,
capacitismo, adultismo. A figura, assim, de um ser humano no modelo hegemônico outra. Isso não significa a aceitação da
a quem o pensamento moderno serve é: europeu, masculino, branco, proprietário,
heterossexual, cissexual (não-transsexual); sem deficiência, adulto. concepção relativista que nega qualquer
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tipo de interação entre as culturas e de prática legal e judicial assimilacionista
alteração de algumas delas independen- de dominação colonial. Somente com a
te de seu conteúdo opressor. Constituição Federal de 1988, após mo-
O que se propõe, assim, é que o Direito bilizações e pressões da população indí-
seja reconhecido como fruto das articu- gena, é que foi admitida legalmente a
lações sociais pelo fim de realidades de perspectiva de sujeitos dos/as integran-
opressão que se dão por meio de um tes destes povos.
diálogo intercultural entre diversos gru- Ainda, a Convenção da Organização
pos de oprimidos e oprimidas (SANTOS, Internacional do Trabalho (OIT) no 169
2006: 445). A interculturalidade, segun- introduz a possibilidade do ordenamento
do Walsh, seria um conceito e também estatal ser tratado dentro de uma noção
uma prática de contato e intercâmbio en- pluralista que admite as formas tradicio-
tre culturas de maneira equitativa2 nais dos grupos indígenas de julgar e tra-
tar os comportamentos de seus e de suas
integrantes3. Se por um lado, esta aber-
a partir da relação, comunicação e
tura busca que esses povos não sejam co-
aprendizagem permanentes entre
locados sob completa vulnerabilidade a
pessoas, grupos, conhecimentos, va-
lores, tradições, lógicas e racionali-
uma legislação e modelo estatais de afe-
dades distintas, orientados a gerar, rição de decisões judiciais que são muito
construir e propiciar um respeito mú- fechadas à diversidade cultural que car-
tuo, e um desenvolvimento pleno das regam4, por outro lado ainda não resolve
capacidades dos indivíduos e coleti- o problema do conflito entre as leis e os
vos, acima de suas diferenças culturais costumes dos povos indígenas.
e sociais. Em si, a interculturalidade Uma situação importante que aponta
busca romper com a história hegemô- para a complexidade deste problema é
nica de uma cultura dominante e ou-
a realidade de violência que as mulheres
tras subordinadas e, dessa maneira,
indígenas vêm denunciando que as atinge
reforçar as identidades tradicional-
não somente em contexto interétnico (en-
mente excluídas para construir, tanto
na vida cotidiana como nas institui- tre “brancos” e “indígenas”), mas também
ções sociais, um com-vivir de respeito intra-étnicas como violências conjugais,
e legitimidade entre todos os grupos além de outras práticas discriminatórias
da sociedade (WALSH, 2009: 41). como matrimônios forçados, a prática de
doar filhas a outras famílias e violação
das meninas. Neste sentido, Ela Wiecko
Ao se aplicar a noção de interculturalida- de Castilho (CASTILHO, 2008:12) apon-
de aos direitos das mulheres no Brasil se ta que a Lei no 11.340/2006, conhecida
confronta, em especial, com os desafios como Lei Maria da Penha, a principal nor-
colocados pelo movimento de mulheres
mativa nacional que trata de violações
indígenas. Os/as indígenas por quase
dos diretos das mulheres, não foi pensa-
toda a história brasileira foram trata-
dos/as como incapazes e objetos de uma 3 Convenção OIT no 169, Artigo 9º. 1: Na medida em que isso for compatí-
vel com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessa-
2 Equitativa não quer dizer “neutra”. A interculturaidade é uma proposta que dos recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus
não ignora as assimetrias presentes na sociedade em decorrência da coloniali- membros.
dade. As relações de poder entre agentes de Estado e movimento sociais, por 4 Um exemplo é o fato ocorrido no dia 04/05/2011 em que uma juíza negou
exemplo, são desiguais e a busca por um diálogo equitativo deve ter em conside- o direito aos/as indígenas de utilizarem sua língua nativa, o guarani, nos depoi-
ração essas desigualdades de poder, ao invés de ignorá-la. Nesse caso, o diálogo mentos como testemunhas no júri popular dos acusados pelo assassinato do cacique
intercultural demanda que o poder da fala seja distribuído, mas também que a Marcos Veron, sob alegação de que os/as indígenas presentes falavam português
fala mais valorizada seja aquela silenciada historicamente pelo próprio Estado. (ULTIMA INSTÂNCIA. 2010).

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da para casos de violência em relações Em novembro de 2002, 41 mulheres indíge-


afetivas entre pessoas indígenas. nas, representantes de diversos povos que
Portanto, as mulheres não são um bloco ocupam o território brasileiro, reuniram-se
em Brasília durante a primeira Oficina de
homogêneo. São muitos os fatores que as
Capacitação e Discussão sobre Direitos
tornam culturalmente diferentes para além
Humanos, Gênero e Políticas Públicas, com o
do território. Entretanto, criticar a imposi-
objetivo de debater a inclusão da pauta das
ção de certas mudanças nas realidades
mulheres indígenas nas políticas públicas
das mulheres indígenas numa perspectiva
nacionais (SEGATO, 2003: 01). Em 2006,
ocidental e colonial não quer dizer que
outras oficinas específicas para mulheres
não se deva ter mudança alguma, espe-
foram promovidas pela FUNAI. Neste ano,
cialmente quando a demanda parte de
a Coordenação Geral do Desenvolvimento
uma luta das próprias mulheres indígenas.
Comunitário (CGDC) da FUNAI desenvol-
O desafio que se coloca é a compreensão veu uma atividade denominada de Ação
de que as respostas às violências sofridas de Promoção das Atividades Tradicionais
pelas mulheres não pode ser homogênea das Mulheres Indígenas no Plano Plurianual
do mesmo modo que a realidade delas é (PPA) (KAXUYANA et. al., 2008: 40).
diversa. O que se deve compreender é a Em 2007 foi criada dentro do órgão in-
complexidade das demandas por direi- digenista FUNAI uma Coordenação es-
tos e da necessidade da abertura sobre pecífica para tratar das questões das
os reais objetivos e quais alterações que mulheres indígenas, atualmente denomi-
são almejadas. nada Coordenação de Gênero, Assuntos
Geracionais e Mobilização Social
(COGEM) (SACCHI, 2011: 299).
3. AS DEMANDAS DAS MULHERES
No Brasil, a pauta mais sensível para
INDÍGENAS FRENTE À VIOLÊNCIA o movimento feminista tem sido o en-
DOMÉSTICA EM CONTEXTO INTRA- frentamento a violência doméstica. Em
ÉTNICO 2006, foi criada a Lei Maria da Penha
(no 11.340/06) como uma demanda rea-
Em 2003, a partir da demanda do movi- firmada na I Conferência Nacional de
mento feminista, foi criada a Secretaria de Políticas para Mulheres e foi elaborada
Políticas para as Mulheres da Presidência por um consórcio de entidades feminis-
da República (SPM/PR) com o objetivo de tas (Cfemea, Advocacy, Agende, Cepia,
“promover a igualdade entre homens e Cladem e Themis) e profissionais do
mulheres e combater todas as formas de Direito (FONSECA, 2012: 60).
preconceito e discriminação herdadas de
Segundo o Mapa da Violência
uma sociedade patriarcal e excludente”5.
(WAISELFISZ, 2012) até o ano de 1996
As políticas desenvolvidas pela SPM/PR, as taxas de homicídio eram de 4,6 homi-
que possui status de Ministério, é o de cídios para cada 100 mil mulheres. Desse
transversalizar as políticas para as mu- ano a 2006, as taxas permanecem esta-
lheres junto aos demais órgãos do gover- bilizadas com tendência de queda e no
no, a exemplo, com a Fundação Nacional primeiro ano de vigência da lei Maria da
do Índio (FUNAI). Penha, em 2007, houve um leve decrésci-
mo, entretanto, voltando a subir de forma
5 Informações do site da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidên- rápida até o ano 2010 igualando ao pa-
cia da República (SPM/PR). Disponível em www.spm.gov.br, acessado em 08 de
agosto de 2014. tamar máximo de 1996.
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Esta problemática da violência domés- mente da Lei Maria da Penha e, por fim,
tica tem sido também colocada entre os entre aquelas que demandavam maior
povos indígenas e a FUNAI, por meio da autonomia para o seu povo no tratamen-
COGEM, vem promovendo alguns encon- to deste tema da violência doméstica.
tros específicos de forma a compreender Em relação às propostas que demanda-
como lidar com este tipo de violência na ram maior atuação estatal percebe-se
realidade específica indígena. uma forte preocupação com a juventude
De 2008 a 2010 a FUNAI promoveu 13 indígena como futuro da comunidade. Em
(treze) Seminários Regionais Participativos dos grupos é apresentada inclusive pro-
sobre a Lei Maria da Penha, com a parti- postas de políticas de empregos para
cipação de 457 (quatrocentos e cinquen- os(as) jovens e acaba demandando muito
ta e sete) mulheres indígena represen- mais ações do Estado. Este é o único gru-
tantes de um total de 139 (cento e trinta po que fala de mulheres indígenas não
e nove) etnias6. Como conclusão desses aldeadas, ou seja, há uma realidade lo-
seminários, em 2010, ocorreu o Encontro cal das etnias que compõe este grupo de
Nacional de Mulheres Indígenas para a estarem inseridas em realidade urbanas.
Proteção e Promoção de seus Direitos7. Demanda-se também capacitação de
Nos Seminários Regionais Participativos agentes do Estado que se relacionam com
sobre a Lei Maria da Penha (2008 – estes povos sobre a violência doméstica
2010) foram apresentadas as propostas ao mesmo tempo sobre a legislação es-
das mulheres indígenas de diversas et- pecífica indígena que garante a aplica-
nias para a pauta de violência domésti- ção de uma lei interna. Outras demandas
ca. Esses seminários ocorreram regional- estão relacionadas a instrumentos estatais
mente e tinham como pauta a discussão de acolhimento psicológico das vítimas de
de “três perguntas orientadoras: Quais violência e de agressores que precisam
e como tem sido tratada a questão da estar adaptado à realidade indígena.
violência em sua comunidade? Como as Já quanto às propostas relativas mais
leis podem ajudar no combate a violência diretamente à lei Maria da Penha há
contra a mulher indígena? Como poderia grupos que apresentam propostas aber-
ser tratada a questão da violência con- tas a uma aplicação conjunta da Lei
tra as mulheres indígenas nas aldeias?” Maria da Penha e da lei interna. Há in-
(FUNAI, 2010a). clusive demanda por um dos grupos da
Para realização de uma análise do rela- necessidade do cumprimento de prisão
tório final desses encontros8, as propostas dos agressores. Já outros grupos pre-
foram divididas entre as que expressa- veem aplicação conjunta, mas com prio-
vam uma demanda por alguma atuação ridade a lei interna, inclusive, há uma
estatal; outras que tratavam mais direta- proposta especificando como funciona-
ria: “Colocar o agressor na presença do
6 Atualmente há a presença de 305 etnias diferentes no Brasil (Dados do site
cacique, lideranças e representantes da
do IBGE. 2012. Censo Demográfico. http://indigenas.ibge.gov.br/, acessado em
02/06/2015).
FUNAI, lembrando que terá duas oportu-
7 Os relatórios em formato pdf foram cedidos para estudo pelo órgão COGEM/
FUNAI, pois não estão publicados em nenhuma fonte.
nidades para resolver a questão dentro
8 Os relatórios destes seminários, depois reunidos em um documento único, foram
feitos por consultoras contratadas para tanto e não pelas próprias indígenas, que
da comunidade, na terceira oportunida-
buscaram interpretar as falas em demandas. A fidedignidade das falas pode,
então, estar comprometida, por isso em algumas situações a compreensão do signi-
de será levado a lei do branco” (FUNAI,
ficado da proposta não é possível de se alcançar. Algumas propostas dentro de um 2010a). Em um dos grupos há também a
mesmo grupo parecem incoerentes, mas no relatório foram colocadas as opiniões
que apareceram independente das divergências internas do grupo. Algumas diver- proposta de incluir a lei Maria da Penha
gências podem surgir inclusive em razão de diferenças de realidade entre as etnias
que foram reunidas num mesmo grupo. na lei interna.
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Quadro 1 – Análise das propostas presentes no relatório final dos Seminários Regionais Participativos
sobre a Lei Maria da Penha (2008 – 2010)9

Propostas - aplicação de
Propostas - Atuação Propostas - Lei Maria da
respostas tradicionais
do Estado (com seus Penha como instrumento
próprias de cada etnia
instrumentos) de enfrentamento
(autonomia)
Necessidade de
Conscientização dos jovens conscientizar também os Necessidade de consultar
em relação a uso de homens sobre a violência liderança interna (ou
drogas, bebida e violência contra a mulher e a Lei cacique ou pajé ou ancião).
Maria da Penha
Aplicação conjunta da Lei
Relacionamento da violência
Maria da Penha com lei Aplicação aos casos de
com o uso de bebidas e
interna (com prioridade violência de lei interna
drogas
para a interna)
Fazer palestras; Criação de delegacias Necessidade de
realização de materiais especializadas de organização das mulheres
de conscientização, sobre atendimento a mulher, em para debater essa temática
uso de drogas, bebidas, especial, da mulher indígena e para combater a violência
prostituição, DST/Aids acessível às aldeias contra as mulheres
A resolução de conflitos
Oferta de atendimento Aplicação conjunta da
oriundos de violência
psicológico às vítimas; Lei Maria da Penha com
doméstica deve passar por
agressores e usuários de lei interna (sem apontar
uma decisão interna da
bebidas e drogas prioridade)
comunidade
Realização de intercâmbio
Inclusão do tema nas Criação de núcleo (centro) entre povos para que estes
escolas de atendimento à mulher discutam o problema e
caminhos para solucioná-lo
Capacitação de integrantes
dos órgãos públicos
(delegacias; FUNAI, Criação de Casas de apoio
FUNASA, etc) que atuam às mulheres vítimas de
junto aos povos indígenas violência
quanto à questão da
violência contra a mulher
Garantir a demarcação
e ampliação das terras
indígenas
Fonte: Elaboração da autora a partir de dados da FUNAI (FUNAI, 2010a).

Há apenas um grupo que trata de forma9 nas focando na questão das agressões
expressa da violência para além da fí- físicas. Em um dos grupos aparece a se-
sica, ou seja, trata também da psicológi- guinte afirmativa: “No nosso povo não
ca. Isso levanta a dúvida se as propostas está acontecendo esse tipo de violência
dos outros grupos foram pensadas ape- agressão. Pode tá acontecendo com ou-
tros povos diferentes porque perderam
9 As propostas foram colocadas em ordem decrescente de cima para baixo
em relação ao número de vezes que a proposta aparece em diferentes grupos. a cultura” e “Não aceitamos que a lei
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Maria da Penha interfira na cultura do que foi criada pela comunidade” (FUNAI,
nosso povo, pois não sofremos abusos 2010a). Neste mesmo grupo, há a pro-
por nossos maridos. Nem maus tratos”. posta de “Não usar os recursos da lei dos
Como não aparece de qual etnia são brancos” ao mesmo tempo em que algu-
as pessoas que realizam estas falas não ma participante apresenta que “Sabemos
dá para analisar a qual realidade es- que nós mulheres somos muito discrimina-
pecífica se refere, pois no mesmo grupo das, agora com a ajuda dessa lei [supõe-
aparecem propostas que, ao contrário, -se Maria da Penha] estamos fortalecidas
reforçam a necessidade de enfrentar a e temos nosso direito reconhecido na lei,
violência doméstica. temos que fazer valer a lei que é um di-
reito nosso” (FUNAI, 2010a).
Em 2010, quando este relatório foi de-
batido entre as participantes do Encontro Nesta direção, a resistência por alguma
Nacional de Mulheres Indígenas para a intervenção estatal na questão da vio-
Proteção e Promoção de seus Direitos, uma lência doméstica está associada a uma
das participantes indígena se mostrou desconfiança em relação à atuação do
Estado que pode vir a apenas aprofun-
dar a desestruturação interna promovida
preocupada porque na cabeça de pelo contato com não indígenas. A alta
algumas mulheres parece que os 13 associação da violência doméstica com a
Seminários foram voltados para que bebida alcoólica e uso de drogas pode
as mulheres usassem a Lei Maria da estar relacionada com a percepção de
Penha nas Comunidades. Mas não alguns grupos de que os processos de
foi isso, os Seminários foram para alteração culturais internos provocados
compreender a Lei Maria da Penha pela assimilação da cultura não indíge-
e outros direitos. Não somos nós que na (“dos brancos”) é a causa, em verda-
estamos fazendo a lei, não é questão de, da violência em si. Por isso também
de aceitar ou não a lei. Vamos voltar a presença da demanda da demarca-
para as nossas casas mudadas pelas ção de território como resposta a ques-
novas informações (FUNAI, 2010b). tão da resolução de violência doméstica
intra-étnica.
Em um dos grupos, as mulheres também A alta demanda de que esta temática
afirmaram que não há violência no seu seja discutida com os homens, para além
povo. Assim, a violência doméstica pode da noção que os problemas culturalmente
de fato não existir na realidade em são debatidos sempre com a participa-
questão; ou talvez seja apenas uma afir- ção de toda a comunidade indígena, está
mação de que esta temática não é uma também relacionada a esta questão da
prioridade no momento para o povo em desestruturação cultural, a exemplo do
questão; ou também uma afirmação da que aparece na fala de que “os homens
autonomia do povo de definir e como tra- não eram educados para bater nas mu-
tar este assunto. lheres, perderam a educação, os homens
Em um dos grupos aparece uma fala que têm que ser reeducados, não queremos
orienta para uma outra possibilidade de apanhar” (FUNAI, 2010a).
explicação da não presença de violência Em dois grupos apareceu a questão dos
dentro de algumas etnias: “Há comuni- casamentos com não indígenas ou com
dade que não tem este tipo de violên- pessoas de outra etnia ou fora da tra-
cia, porque tem um grupo de liderança dição, como aspectos a ser associados
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com a violência doméstica. Em um desses participante deste evento e foi analisado


grupos, há a proposta de “que os mem- “para verificar e confirmar se o texto do
bros da comunidade respeitem o cacique, relatório contempla o que foi debatido
inclusive os de outras etnias e os não-in- nos encontros” (FUNAI, 2010b).
dígena” (FUNAI, 2010a). Ainda, há três
Neste encontro, ocorreu a palestra do
grupos que apresentam a proposta do
Dr. Vilmar Guarani que apresentou uma
reforço das práticas culturais de artesa-
proposta de emenda ao projeto de
nato, alimentação, música, entre outras.
lei do Estatuto dos Povos Indígenas (PL
Outro aspecto muito importante para a nº 2057/91)10 que está no Congresso
autonomia decisória dos povos foi o res- Nacional para ser votado, a partir da
peito às leis internas e às decisões das perspectiva de gênero11.
lideranças. Em relação ao papel das li-
deranças, foi apresentado que “Tem que Após a palestra, foi organizado um tra-
ter uma líder mulher que entenda de lei, balho em grupo para leitura e deba-
porque o cacique não vai apoiar” (FUNAI, te do relatório final dos 13 seminários
2010a). Desse modo, foi muito presente participativos sobre Lei Maria da Penha.
propostas relativas à organização das Na apresentação do resultado das dis-
mulheres indígenas, como a de “garantir cussões foram reafirmadas as deman-
a vaga das mulheres dentro das orga- das por “fortalecimento da articulação
nizações e associações, conselhos, dire- das mulheres indígenas”. Ainda, foi re-
toria e comissão indígena criada pelos forçada a questão da necessidade do
homens. As mulheres devem participar enfrentamento pela FUNAI de vendas
de todas as reuniões que dizem respeito de bebidas e drogas para os(as) indíge-
às questões indígenas” (FUNAI, 2010a). nas; a necessidade de capacitação das
Um dos grupos apresentou a necessida- Delegacias de Mulheres no atendimen-
de de “criar um Conselho de Mulheres to às mulheres indígenas e no respeito
com representantes indígenas” (FUNAI, a autonomia decisória de seus povos;
2010a) e o outro grupo apresentou o da importância do incentivo por parte
interesse de ocorrência de intercambio do Estado para a criação de instrumen-
maior entre as mulheres indígenas des- tos de ocupação, criação de empregos
tacando, como outros grupos, a impor- e meios de geração de renda para os
tância da união das mulheres.
10 Até a data de 07/12/2014, quando foi elaborado este trabalho, esta pro-
Por fim, o que foi comum a todos os gru- posta ainda não havia sido incluída como uma emenda na Projeto de Lei (PL) nº
2057/91 conforme se pode confirmar em pesquisa junto ao trâmite desta PL no
pos foi a compreensão de que a Lei Congresso Nacional.
11 A proposição de emenda ao Projeto de Lei nº 2057/91 em tramitação na
Maria da Penha por si só não resolve o Câmara dos Deputados, que visa à modificação e a revisão da Lei nº 6.001/73
(Estatuto do Índio), incluiria “que nas regiões onde foram realizados os encontros
problema da violência contra as mulhe- reconheceuse (sic) que em razão do contato com a sociedade envolvente, novas
práticas tornaramse (sic) parte da realidade de suas comunidades e que em
res indígenas. Houve inclusive uma pro- decorrência do uso de drogas entre os povos indígenas, principalmente do álcool,
posta de criação de um Estatuto para as as mulheres indígenas passaram a sofrer violência doméstica e familiar na forma
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; não ser própria das culturas e tra-
Mulheres Indígenas e de “lei específica dições indígenas a nova realidade ‘violência contra mulheres’, tais conflitos muitas
vezes não conseguem ser resolvidos no âmbito de suas comunidades, necessitandose
para amparar as mulheres indígenas (su- (sic) do auxílio das leis e sistemas. Entre as proposições sugeridas estão: que sejam
consideradas as especificidades de gênero e geracionais em tudo que diz respeito
gerimos o nome da Lei Maninha Xucuru)” a assistência aos povos indígenas; que sejam incluídas no Estatuto dos Povos Indí-
genas as comunidades em contexto urbano; que as medidas no Estatuto garantam
(FUNAI, 2010a). as trabalhadoras e trabalhadores gozem de igualdade de oportunidade e de
tratamento no emprego e de proteção contra o assédio sexual; o Estado adotará
medidas, em conjunto com os povos indígenas, a fim de assegurar que as mulheres,
Em 2010, durante o Encontro Nacional as crianças e os idosos indígenas gozem de proteção e garantias plenas contra
todas as formas de violência e discriminação. As mulheres sugeriram ainda que a
de Mulheres Indígenas para a Proteção FUNAI, o Ministério da Justiça, a Secretaria dos Direitos Humanos, a Secretaria de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República e a Comissão Nacional
e Promoção de seus Direitos, o relatório de Política Indigenista – CNPI do Ministério da Justiça, em colaboração com o movi-
mento indígena devem fazer gestão para o Projeto de Lei nº 2057/91 seja incluído
analisado acima foi entregue para cada na Ordem do Dia da Câmara dos Deputados” (FUNAI. 2014).

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jovens; e houve a defesa da manutenção 4. OS DESENCONTROS NOS DIÁLOGOS
das mulheres indígenas nos programas ENTRE O ESTADO BRASILEIRO E AS
já existentes.
MULHERES INDÍGENAS NA PAUTA DA
Em relação à proposta de criação de uma
Casa de Apoio, com presença de psicólo- VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
gos e enfermeiras, capacitadas para tra- A análise dos relatórios dos encontros
balhar com as mulheres indígenas, a ple- realizados pela FUNAI possibilita per-
nária deste encontro manifestou que esta ceber que as demandas das mulheres
ideia se contraporia ao posicionamento indígenas junto ao Estado brasileiro em
de recusar a aplicação da Lei Maria da geral são em relação à ampliação da
Penha para os povos indígenas. Houve a participação das mulheres indígenas no
sugestão dessa proposta ser encaminha- desenvolvimento de políticas públicas e o
da para a FUNASA e para III Conferência respeito as suas práticas culturais e orga-
de Políticas para as Mulheres. nização interna.
Essa Conferência ocorreu em 2011 e A violência doméstica não está relacio-
teve como resultado o III Plano Nacional nada como um problema étnico e cul-
de Políticas para as Mulheres (III PNPM), tural, mas com a assimilação de práti-
no qual foi reforçada a importância da cas e elementos não indígenas que vem
demarcação de territórios como forma causando uma desestruturação interna
de garantia de direitos e foi colocada nesses povos e por isso a desconfiança
como nova meta a criação de um Fórum quanto à intervenção estatal para a re-
de Mulheres Indígenas para pensar es- solução deste problema. Essa desestru-
tratégias de enfrentamento a violência e turação vem ocorrendo desde o contato
criação de políticas públicas específicas colonial que reorganizou as normas in-
para as mulheres indígenas. ternas dos povos indígenas com outras
Portanto, o Estado brasileiro aos poucos diferentes, apesar de aparentar uma
e de forma recente tem criado espaços continuidade de uma prática mais anti-
de diálogo com as mulheres indígenas de ga (SEGATO, 2012: 118).
forma que estas possam colocar a sua Como exemplo, os valores modernos do
percepção sobre o problema da violên- contrato sexual foram assimilados em
cia doméstica e como gostariam que esta alguma medida por diversos povos indí-
questão fosse tratada. Como resultado genas, em especial, pela prática da cris-
geral, há ainda muita desconfiança quan- tianização forçada que é feita sobre a
to à atuação estatal e sua intervenção na moral rígida e de inferiorização do corpo
prática interna de resolução de conflitos feminino e da limitação dos desejos den-
e a preferência pela autonomia de apli- tro uma heterossexualidade compulsória
cação de uma lei interna. Todavia, como (GARGALLO, 2014: 65 e 75). A própria
a realidade de diversidade de contextos noção de sexualidade sofre impactos na
étnicos é muito variada no Brasil exige medida em “que reduz a objeto o corpo
uma atuação estatal que consiga também das mulheres e ao mesmo tempo inocula a
responder a esta pluralidade desafiando noção de pecado nefasto, crime hedion-
a prática usual de implantação de polí- do e todos os seus correlatos” (SEGATO,
ticas públicas universalizantes, no sentido 2012: 120) o que abre caminho para a
moderno e abstrato, que contraria a lógi- ocorrência de violências mais perversas
ca de um direito intercultural. contra as mulheres.
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Assim, muitas vezes os próprios homens drão moderno que homogeneíza o modo
indígenas utilizam do discurso da práti- de viver em sociedade, ignorando e até
ca tradicional de forma a não debater destruindo outras formas de organização
as discriminações ocorridas internamen- social por não compor a possibilidade de
te em seus povos. Como exemplifica Rita coexistência de pluralidades de organi-
Segato (SEGATO, 2012: 119), o papel zação na sua estrutura interna.
de diálogo com as aldeias vizinhas tra-
No caso da construção dos direitos das
dicionalmente eram feitas pelos homens,
mulheres, como base de políticas públi-
porém a substituição automática deste
cas, essa deve ter por base uma epis-
papel para o diálogo com as agências
estatais podem gerar desequilíbrios. temologia feminista crítica e decolonial
capaz de realizar traduções intercultu-
Esta desestruturação por vezes ocorre rais. Isso significa que na mesma medida
inclusive pela forma de intervenção do que se deve negar a noção de “homem”
Estado, como por exemplo, ao obrigar como padrão de humanidade universal,
que as organizações indígenas sejam deve-se negar a de uma mulher univer-
formalizadas em formato de associações sal (HARDING, 1993, 08), superando o
para receber financiamento. Essas asso- padrão colonial/moderno sobre os seres
ciações possuem seus cargos de diretoria humanos que uniformiza os grupos sociais
ocupados nem sempre pelas lideranças e, no caso, as mulheres num único padrão
tradicionais e isso gera um enfraqueci- de ser.
mento destas lideranças e por consequên-
cia das normas internas de comportamen- Por isso, é muito presente nos relatórios
tos e de resolução de conflitos. dos encontros de mulheres indígenas a
demanda por autonomia decisória dos
Esse modelo organizacional formal de povos indígenas e que a criação de polí-
associação por não respeitar “o modo ticas públicas perpassem por consultas di-
de ser e de fazer dos povos indígenas” retas e, preferencialmente, coletivas junto
(BANIWA, 2012: 219) gera conflitos in- a estes povos.
ternos e diferenciações sociais e econô-
micas que fragilizam a democracia hori- Isso não significa que as mulheres indíge-
zontal “em que o poder de decisão é um nas rejeitam em totalidade a possibilida-
direito inalienável de todos os indivíduos de de aplicação da Lei Maria da Penha,
e grupos que constituem a comunidade” como explica Valéria Paye (KAXUYANA
(BANIWA, 2012: 219). e et. al, 2008: 42). Essa desestruturação
tem atingido o elo mais fraco que são as
Essas desestruturações que as(os) indíge-
mulheres e que “se no passado a ‘lei do
nas confrontam em seus povos, resultantes
branco’ não tinha muito a dizer para o
do processo colonial, devem ser enfrenta-
das com fundamento na decolonização12 universo indígena, hoje parece ser ne-
do poder, isto é, na desconstrução das cessária”. O problema da Lei Maria da
formas modernas de produzir políticas Penha para as indígenas é que ela vem
públicas pelo Estado a partir de um pa- proteger as mulheres em uma situação
em que a rede comunitária que realmen-
12 “Suprimir o “s” e nomear “decolonial” não é promover um anglicismo. Pelo
te as protegia já foi rompida por ações
contrário, é marcar uma distinção com o significado em castelhano [e português] do
“des”. Não pretendemos simplesmente desarmar, desfazer ou reverter o colonial;
do próprio Estado ou por sua omissão
isto é, passar de um momento colonial a um não colonial, como se fosse possível que
seus padrões e rastros desistam de existir. A intenção, em verdade, é para apontar
(SEGATO, 2012: 110).
e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua– de transgredir,
intervir, insurgir e incidir. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínuo Assim, as mulheres indígenas ao lidar com
no qual podemos identificar, visibilizar e destacar “lugares” de exterioridade e
construções alternativas” (WALSH, 2009, p. 15, nota de rodapé 1). o problema da violência doméstica não
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estão pedindo por proteção estatal que a todas as realidades indígenas e tam-
acaba por limitar a autonomia dos povos pouco pode significar o fechamento ao
(CASTILLO, 2001: 19), mas por reconheci- diálogo com essas mulheres. Ao contrá-
mento do seu direito a autodeterminação rio, a sua demanda é para que os espa-
que significa reconhecer as suas formas ços em que elas possam opinar e orien-
de resolução de conflitos internos ou in- tar as políticas públicas sejam cada vez
clusive de recriá-las de forma a permitir maiores. Portanto, não é possível pensar
a expulsão das colonialidades e dos pa- o direito das mulheres numa perspectiva
triarcalismos presentes internamente. libertadora sem as mulheres indígenas.

5. CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
O Estado moderno é marcado por uma BANIWA, Gersem. 2012. A conquista da cida-
dania indígena e o fantasma da tutela no Bra-
lógica monista de produção de normas sil contemporâneo. In RAMOS, Alcida Rita (org.).
algo que adquire aspectos mais exclu- Constituições nacionais e povos indígenas. Belo
dentes na medida em que a sociedade Horizonte: Editora UFMG, pp. 206 – 227.
que seu sistema normativo busca espelhar
é idealizada dentro de uma construção CASTILHO, Ela Wiecko V. de. 2008. A violência
doméstica contra a mulher no âmbito dos povos
histórica em que determinados grupos, indígenas: qual lei aplicar? Em VERDUM, Ricardo
como os indígenas, são invisibilizados. (organizador), Introdução - Mulheres Indígenas, Di-
reitos e Políticas Públicas. Brasília: Inesc, p. 21-32.
A construção de um Estado que seja real-
mente democrático deve ser capaz de re- CHAKRABARTY, Dipesh. 2000. Provicializing Eu-
presentar ou de permitir coexistir grupos rope. Tradução Livre. Princeton University Press:
distintos, porém com a mesma dignidade 27-46
de ter neles sujeitos de direitos. Aqui di- CONVENÇÃO Organização Internacional do Tra-
reito compreendido não como um equiva- balho (OIT) n. 169 de 27 de junho de 1989, ra-
lente a sistemas legais, mas como expres- tificado pelo Brasil por meio do Decreto no 5051
são de uma superação de condições de de 19 de abril de 2004.
opressão por meio da ação organizada
DUSSEL, Enrique. 1994. 1492 – El encubrimiento
legitima por quem a sofre. del Otro – Hacia el origen del “mito de la moder-
Pensar, assim, o direito das mulheres a nidad”. Tradução Livre. Conferencias de Frank-
furt, octubre, 1992, Plural editores – Facultad de
uma vida sem violência deve se levar Humanidades y Ciencia de la Educación - UMSA,
em consideração que em relação a al- La Paz, (colección academia número uno).
guns povos indígenas brasileiros isto se
expressa na consolidação do direito a FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. 2012. A luta
pela liberdade em casa e na rua: a construção
identidade indígena; na demarcação e
do Direito das mulheres a partir do projeto Pro-
não intervenção dos seus territórios; e no motoras Legais Populares do Distrito Federal. Dis-
respeito a sua autonomia normativa, já sertação (Mestrado em Direito). Universidade de
que exatamente a desestruturação cul- Brasília, UnB.
tural causada por uma invasão cultural
FUNAI. 2014. Mulheres Indígenas participam de
ocorrida ao longo de séculos é que deu o Encontro Nacional a Proteção e Promoção dos seus
formato para muitas das violências atual- Direitos. 19 nov. Disponível em http://www.funai.
mente sofridas pelas mulheres indígenas. gov.br/index.php/comunicacao/noticias/2223-
-mulheres-indigenas-participam-de-encontro-na-
Entretanto, isso não pode ser tomado cional-a-protecao-e-promocao-dos-seus-direitos,
como uma resposta única a ser aplicada acessado em 07/12/2014
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