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Figura, Picasso, 1927.

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Contextos
de produção de
sucesso-fracasso
escolar:
interações nas
salas de aula
MARIA DE FÁTIMA CARDOSO GOMES *

N Nas pesquisas acadêmicas brasileiras do final dos anos 70, aparece, de maneira mar-

cante, a preocupação de investigar “quem é o aluno da escola pública”, possivelmente em

decorrência de uma mudança da clientela que demandava a escola e que passou a incluir,

nessa época, um número muito grande de crianças egressas das camadas populares. Esse

último fato mudou radicalmente os objetivos da escola pública e provocou, também, a neces-

sidade de mudar a postura pedagógica, como evidenciam nossas pesquisas nesta área.

* Professora da Educação da Faculdade de Educação da UFMG, pesquisadora do CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita), do
LAPED (Laboratório de Psicologia da Educação) e Coordenadora do Colegiado de Pedagogia da FaE/UFMG.
E-mail: cardosomf@terra.com.br

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As tentativas educacionais de compreensão do salas não são homogêneas, apresentam diferenças mar-
“fracasso escolar” não se restringiram a essas pesquisas, cantes entre elas e dentro delas. Tanto os alunos como
nas quais o centro do debate é a qualidade do ensino, os professores trazem para dentro de suas salas suas his-
mas passaram a incluir a discussão da diversidade cul- tórias escolar e de vida, suas vivências socioculturais e
tural dos alunos, considerando questões de gênero, afetivas; enfim, são seres histórico-culturais. São sujei-
etnia e classe social, de acordo com Terigi & Baquero tos sociais e singulares, únicos, que apresentam diferen-
(1997). Isso implicou mudar o foco do debate do “fra- ças, particularidades. Como os educadores estão lidan-
casso escolar” para os processos de exclusão de alunos do com as particularidades de seus alunos? Tratam as
das camadas populares. Portanto, o objetivo das pes- diferenças socioculturais (étnicas, lingüísticas, religio-
quisas que se desenvolveram ao longo das últimas déca- sas, de gênero, classe social etc.) como deficiências?
das era de aprofundar a análise dos processos de ensi- Sabemos que o par sucesso-fracasso escolar vem
no-aprendizagem do conjunto dos alunos, e não apenas sendo estudado sob vários pontos de vista – psicológi-
daqueles que fracassam na escola. co, sociológico, antropológico, biológico. Dentro dessa
A discussão do par sucesso-fracasso escolar não é diversidade de perspectivas, alguns estudos enfatizam
nova, remonta a velhas e conhecidas práticas e concep- os aspectos individuais, outros os aspectos sociais do
ções de ensino-aprendizagem que, muitas vezes, não fenômeno do fracasso/sucesso escolar. O nosso interes-
estão explícitas dentro da sala de aula. Remete-nos a se é dialogar com esses pontos de vista, colocando ênfa-
reconhecer que a maioria dos educadores, quando se na dinâmica interna das salas de aulas, nas interações
tenta explicitar o sucesso ou o fracasso escolar, centra de sala de aula em que o sucesso e o fracasso escolares
suas explicações nos alunos e em suas famílias. Essas são construídos. Assim, tanto os aspectos individuais
explicações reduzem o peso da cultura escolar na pro- quanto os sociais serão abordados neste estudo, saben-
dução do fracasso, pois apontam exclusivamente as do-se que os aspectos individuais são construídos, teci-
condições socioculturais dos alunos e de suas famílias dos na relação com os outros, ou seja, socialmente.
como as responsáveis pelo fracasso dos estudantes nas Partimos do princípio de que o par sucesso-fra-
escolas. casso escolar representa os dois lados de uma mesma
Sendo assim, a escola passa a ser vítima dos tipos moeda, de que existe um caráter integrado entre suces-
de alunos que recebe. Parece-nos que essa situação de so e fracasso escolar que não está dado, não acontece
escola-vítima permanece nos dias de hoje, pois grande antes de alunos e professores entrarem em suas salas;
parte dos educadores ainda localiza, com muita fre- ele é produzido histórica e socialmente.
qüência, nos alunos e em suas famílias, a “culpa” pela Estamos tratando, então, do par sucesso e fracas-
não-aprendizagem. Para eles, a escola procura fazer so escolar e não apenas de fracasso ou de sucesso.
tudo que pode para ensinar aos alunos, mas como eles Portanto, apontar possibilidades de sucesso escolar nos
não têm limites (não obedecem aos seus professores, parece muito importante neste artigo, pois estamos
não fazem as tarefas, perturbam a disciplina da sala de pretendendo ir além do fracasso escolar, assumindo o
aula), não podem aprender. sucesso como nosso desafio pedagógico.
Estudantes com essas características e com mui- Portanto, neste artigo pretendemos estabelecer rela-
tas outras sempre existiram nas salas de aulas, pois as ções entre os contextos de sucesso e fracasso escolar; anali-

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sar o fenômeno do fracasso escolar em seus aspectos cons- de casos’, sempre fantásticos, contados com riqueza
titutivos e identificar possibilidades de sucesso escolar. de detalhes e acompanhados de muitos gestos e
movimentação. Era considerado pela professora
O caráter integrado do aprender e como uma criança que ‘atrapalhava muito as
do não-aprender aulas’, pois ‘falava demais’.
No início das aulas, Vilmar encontrou uma
Trataremos o par sucesso-fracasso escolar como professora que lhe dava alguma autonomia, permi-
os dois lados de uma mesma moeda. Historicamente, tindo que ele produzisse de acordo com seu ritmo.
convivemos com o fenômeno do “fracasso escolar” que, O menino desenhava muito e constantemente
no entender de Charlot (2000), não existe: “o que vinha me mostrar seu trabalho. Muitas vezes eu lhe
existe são alunos em situação de fracasso” (p.16). São sugeria que escrevesse o que havia desenhado. Às
alunos com histórias escolares que acabam mal. E essas vezes ele tentava, e a cada tentativa revelava novos
histórias são construídas, dia após dia, semana após conhecimentos sobre a escrita – suas normas e fun-
semana, mês após mês, ano após ano pelos professores ções. Curiosamente não usava o código convencio-
e estudantes dentro das salas de aulas (COLLINS & nal para escrever seus ‘textos, mas criava seu pró-
GREEN, 1992; CASTANHEIRA, 2000, 2004; prio código, valendo-se dos conhecimentos que ia
GOMES, 2004). Desse modo, nossa ênfase será discu- adquirindo sobre a escrita.
tir o sucesso e o fracasso escolar do ponto de vista das Um dia ele se aproximou de mim com uma
ações e das interações em sala de aula. Assim, as seqüência de desenhos e contou-me a ‘história de
relações entre professores e alunos, entre alunos e desenho’. Quando terminou, sugeri que escrevesse o
alunos e destes com o objeto de conhecimento serão que me relatara. Imediatamente ele respondeu:
privilegiadas nesta seção e serão tratadas como contex- – Ah, tia. Eu conto e você escreve. Isso tudo
tos de produção de sucesso-fracasso escolar. eu ainda não sei.
Iniciaremos apresentando uma pesquisa realiza- Passei um período sem ir à turma. Quando
da por Esteban (1992), em que a autora analisa “como voltei, havia uma nova professora que encaminha-
o saber e o não saber são vividos no cotidiano da sala va de outro modo o trabalho pedagógico. Este se
de aula e suas implicações para o processo ensino- baseava, agora, na apresentação de palavras e síla-
aprendizagem” (p.75). As situações de ensino-apren- bas – juntando o que já era conhecido para formar
dizagem analisadas por essa autora são de conhecimen- palavras ‘novas’ – e na proposta de cópias e ditados,
to de todos que estão dentro e fora de sala de aula. como recomendava o ‘método de alfabetização’.
Veja-se o seguinte relato: Admirada, constatei que Vilmar, cujos
avanços em seu processo de apropriação da lingua-
Vilmar chamou-me especialmente a atenção gem escrita eu acompanhara, era agora avaliado
por suas mudanças no correr do ano letivo e pelo como tendo ‘dificuldades de aprendizagem’.
que revelavam essas mudanças. Observei Vilmar Vilmar me trouxe um exercício de separação
interagindo com outras crianças e com a professora de sílabas. Tentei conversar com ele sobre o traba-
em sala de aula. Vilmar era um menino ‘contador lho que realizava. Não pareceu muito entusiasma-

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do com a conversa e propôs fazer um desenho para conhecimento, em que os alunos, ao aprender, por
mim. Ao acabar o desenho, entregou-me e eu repe- exemplo, a escrita, desenvolvem a “capacidade de parti-
ti a proposta que já havia feito outras vezes: ciparem em atividades colaborativas qualitativamente
– Escreva a história de seu desenho. novas” (BAQUERO, 1998, p. 115). Entretanto, quando
Vilmar respondeu com insegurança: as interações consideram que o aluno não sabe escrever,
– Ah, tia. “Eu não sei escrever (ESTEBAN, nos fazem pensar muito mais na possibilidade de fracas-
1992, p. 76). so na aprendizagem da escrita do que no sucesso.
Segundo a autora, essas práticas envolveram ações
Essas situações de ensino-aprendizagem relatadas e interações que estiveram relacionadas com as concep-
pela autora nos permitem fazer reflexões sobre as práti- ções do professor de mundo e de homem, concepções
cas de alfabetização em sala de aula e as concepções de estas que estão relacionadas com sua concepção sobre o
ensino-aprendizagem que elas veiculam. Concepções processo de alfabetização, assim como a leitura que faz
que podem funcionar como potenciais de sucesso ou de do desenvolvimento da criança tem relação com a quali-
fracasso escolar ao proporcionarem oportunidades de dade de sua intervenção.
aprendizagem para todos ou para poucos alunos. As A qualidade da intervenção do professor nos leva
interações sociais vividas por Vilmar com as duas profes- a pensar sobre o papel do erro no processo de ensino-
soras e com a pesquisadora nos fazem refletir sobre o aprendizagem, assim como sobre as particularidades de
caráter potencial de sucesso escolar quando elas conside- cada aluno ao construir conhecimentos na sala de aula.
ram que o aluno ainda não sabe; demonstram uma pers-
pectiva de futuro próximo para a aprendizagem da escri-
ta (como nos ensina Vygotsky ao conceituar a Zona de
Desenvolvimento Proximal como “a distância entre o Valorizar o processo de aprendizagem
nível de desenvolvimento real, que se costuma determi-
significa perceber que o conhecimento
nar através da solução independente de problemas, e o
nível de desenvolvimento potencial, determinado atra- é construído e que o não saber faz
vés da solução de problemas sob a orientação de um
parte desse processo.
adulto ou em colaboração com companheiros mais capa-
zes”. Para esse autor, a zona de desenvolvimento proxi-
mal (ZDP) permite uma visão prospectiva, isto é, uma
projeção do futuro, porque diz daquilo que os alunos
ainda podem e devem aprender com ajuda dos professo- De acordo com o relato do processo de Vilmar, a
res ou de colegas e revela o curso interno de seu desen- segunda professora não considera o “erro” como parte do
volvimento. O desenvolvimento proximal pressupõe processo de ensino-aprendizagem. As palavras pronun-
compartilhamento de saberes e ações para que os alunos ciadas pelo aluno em questão (“eu não sei”) indicam que
aprendam e se desenvolvam como sujeitos sociais. Mais tudo que ele havia aprendido não estava sendo conside-
do que um suporte, a zona de desenvolvimento proximal rado. Ele podia escrever “textos” de um modo particular,
é uma possibilidade de construção compartilhada de usando letras e não apenas desenhos. Do ponto de vista

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de quem valoriza apenas o produto da aprendizagem, outro como os professores, os colegas, os bens culturais,
esse tipo de escrita indica o que o aluno não sabe, pois como mediadores entre o sujeito que aprende e o objeto
apenas uma resposta é considerada correta e ela tem que que se tem que aprender-ensinar.
coincidir com a resposta do livro didático ou com a res-
posta esperada pelo professor. Do ponto de vista de
quem valoriza o processo de aprendizagem, escrever de Quando o sujeito internaliza os
um modo particular indica o que o aluno já sabe sobre a
conhecimentos escolares, ele produz
língua escrita e indica pistas para o professor planejar o
que os alunos precisam aprender e ele, ainda, precisa um entendimento singular,
ensinar. Assim, a posição do aluno (“eu ainda não sei”) qualitativamente diferente daquele
indica a possibilidade de ainda saber, ou seja, que ele está
percorrendo um caminho para chegar ao produto espe- que foi aprendido pelos outros
rado pela escola. Valorizar o processo de aprendizagem sujeitos. Dessa forma podemos
significa que o conhecimento é construído e que o não
saber faz parte desse processo. Segundo Esteban (1992), perceber a riqueza das interações

sociais na sala de aula, que muitas


A palavra ainda traz o sentido de movimento, de vir
a ser, e, sobretudo, traz implícita a possibilidade de vezes não são valorizadas pelos
superar e de atingir um novo saber. Ainda sintetiza, professores.
nesse caso, o espaço de desenvolvimento real da
criança e as possibilidades que nela se anunciam.
Estimulado pela aprendizagem, como processo inte- Para Vygotsky (1989), a aprendizagem estimula
rativo, o desenvolvimento potencial pode se tornar processos internos de desenvolvimento, pois o conteúdo
real, criando um novo patamar de desenvolvimento escolar aprendido funciona como instrumento da ativi-
e redimensionando a relação conhecimento/desco- dade mental, primeiro entre pessoas e depois interna-
nhecimento (p.79). mente ao sujeito. Quando o sujeito internaliza os conhe-
cimentos escolares, ele produz um entendimento singu-
Dessa forma, dois olhares podem ser produzidos lar, qualitativamente diferente daquele que foi aprendi-
para se enxergar o processo da criança: um olhar que do com por sujeitos. Dessa forma podemos perceber a
enfatiza e privilegia a falta, revelando impossibilidades riqueza das interações sociais na sala de aula, que muitas
dos alunos; e outro olhar que valoriza o que a criança vezes não são valorizadas pelos professores. Podemos
consegue fazer, explorando seus avanços e possibilidades também perceber a riqueza das diferentes respostas, pois
ou potencialidades, construindo o fenômeno sucesso- se trata de “priorizar a possibilidade de alunos e profes-
fracasso escolar interativamente, na relação com os sores, num processo interativo, construírem novos
outros, compartilhando o que se sabe e o que não se conhecimentos que realimentem o processo” (ESTE-
sabe. Dessa forma, compreender o papel do “outro”, BAN, 1992). E dessa forma podermos abandonar os
nesse processo, torna-se fundamental, entendendo esse padrões rígidos de certo e errado, de saber e de não-

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Contextos de produção de sucesso-fracasso escolar

saber, percebendo a relação dialética entre ambos e subs- considerados como capazes e inteligentes; suas respostas
tituindo a preocupação com o “erro” pela incorporação são sempre certas e estimuladas pelos professores, seus
do conhecimento em sua dimensão processual, dinâmi- hábitos e atitudes já são esperados pela escola, ou seja,
ca e interativa. Trata-se, assim, de fortalecer o sujeito que esse saber que possuem é confirmado na escola, e os
aprende percebido “como potencialmente capaz de resultados escolares antecipam seu sucesso na vida social
superar os limites impostos pelo desconhecido” (ESTEBAN, 1992).
(ESTEBAN, 1992, p. 84). Aqueles alunos que não correspondem ao ideal de
Considerando as particularidades de Vilmar, comportamento e desempenho esperados pela escola são
pode-se constatar que a pesquisadora enfatizou algumas identificados e se identificam com o não-saber. Assim, os
relativas ao gênero, pertencimento social (classe popular) alunos são responsabilizados individualmente pelos seus
e à sua compreensão da língua escrita. Entretanto, fica- próprios fracassos ou sucessos.
mos sem saber quem é o Vilmar do ponto de vista da As sociedades liberais consideram as diversidades
etnia, idade, trajetória escolar, por exemplo, dados que dos sujeitos e as desigualdades justas, sendo umas mais
nos poderiam ajudar a compreender quais saberes socio- justas que outras. É projeto da modernidade que o sujei-
culturais ele trazia para dentro da escola que não estavam to seja livre, seja autor de sua própria vida, e esse projeto
sendo considerados pela segunda intervenção pedagógi- é indissociável da afirmação de igualdade de todos. A
ca, principalmente - pois a primeira nos pareceu respei- igualdade engendra a obrigação de ser livre e de ser res-
tar os ritmos, saberes e processos de Vilmar ao aprender ponsável pelo seu fracasso ou seu sucesso – pressupõe agir
a escrever. de acordo com sua própria medida. É a ideologia do
Partindo do processo vivido por Vilmar, podemos mérito, da responsabilidade de cada um sobre sua liber-
pensar na desqualificação de seu processo de alfabetiza- dade. Todos podem competir, a “performance” e o
ção, por ele próprio, ao pronunciar as palavras “eu não desempenho dependem de cada um – as desigualdades
sei escrever”. A intervenção do professor pode fortalecer são justas, pois repousam sobre o mérito de cada um.
ou não, valorizar ou não os conhecimentos dos alunos, Resumidamente, pudemos perceber, ao relatar a
elaborados e acumulados historicamente por sua classe história de Vilmar, que a referida autora nos mostra que
social, procurando fazer uma ponte entre esses conheci- as crianças entram para a escola com possibilidades de
mentos e aqueles que a escola precisa e deve ensinar. sucesso e de fracasso escolar e que as relações que são
Muitas vezes os conhecimentos trazidos pelos alu- construídas na sala de aula podem funcionar como
nos para dentro da escola, ainda segundo Esteban includentes ou excludentes desses estudantes, tendo em
(1992), adquirem a aparência de não saber, e a forma vista os grupos socioculturais aos quais pertencem.
como o saber e o não saber são vividos no cotidiano esco- Considerar o saber que os estudantes trazem para a esco-
lar é relevante para a compreensão dos mecanismos que la e o processo que constroem para aprender, junto com
possibilitam a construção do sucesso de alguns e o fra- os professores, mostrou-se fundamental para se obter ou
casso de muitos alunos, sejam eles de classes privilegia- não sucesso escolar. A relação entre “eu ainda não sei” e
das ou de camadas populares, como Vilmar. “eu não sei” revelou-se muito importante para se com-
O saber contribui para a construção da auto-esti- preender melhor o par sucesso-fracasso escolar, pois, se
ma positiva daqueles que passam a se considerar e a ser olhamos para os “erros” dos alunos com a perspectiva de

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futuro, ou seja, considerando-se o que se pode ainda 1995, GOMES E SENA, 2001, RESENDE, 2001,
aprender-ensinar, situações de ensino-aprendizagem GRIFFO, 2001). Geralmente, são alunos que não cor-
poderão ser construídas levando-se em conta as diferen- respondem às expectativas de aprendizagem da leitura e
tes necessidades e os diferentes saberes dos estudantes e da escrita, por parte dos educadores das escolas, e que
professores. A construção de oportunidades de aprendi- carregam o peso de rótulos como “preguiçosos”, “malan-
zagem para todos os alunos pode eliminar muitas histó- dros”, “desinteressados”, “sujos”, “lambões”, “infreqüen-
rias de fracasso, como a que Vilmar vivenciou com a tes”, “molezas”, “lerdos”, “imaturos”, “desmemoriados”,
segunda professora. Assim, a postura das professoras “cabeção” etc. (PATTO, 1990; GOMES, 1995;
diante do “erro” pode constituir-se como potencial de MACIEL, 2001; RESENDE, 2001; GRIFFO, 2001).
sucesso-fracasso escolar para muitos alunos. Essas pesquisas mostram que o “fracasso escolar”
Concordamos com a relação que a autora estabe- é produzido nas interações de sala de aula, que ele não
lece entre origem de classe e rendimento dos alunos, existe antes que professores e alunos entrem em suas
embora este não seja um fator suficiente ou exclusivo, salas. Algumas perguntas orientaram o desenvolvimento
pois muitos são os fatores que interferem na construção das pesquisas mencionadas, como, por exemplo: quais
do sucesso-fracasso escolar, como a qualidade da inter- são os processos de ensino-aprendizagem vivenciados
venção dos professores, a cultura escolar, a pertença étni- pelos alunos de camadas populares que os dividem em
ca, a trajetória escolar e de vida, o gênero, a idade dos “bons” e “maus” alunos? Como crianças e adolescentes
alunos. lidam com o próprio fracasso? Apesar de suas dificulda-
Considerar os diversos aspectos que podem levar des, o que elas são capazes de aprender, dentro e fora da
crianças ao sucesso ou ao fracasso escolar nos remete à escola? Como seus familiares se relacionam com o fracas-
próxima seção, que vai tratar dos aspectos constitutivos so de seus filhos na escola? Como os educadores lidam
do “fracasso escolar” de alguns alunos, pois não são com a subjetividade/singularidade de seus alunos? Por
todos que fracassam na escola pública. Quem são, por- que alguns aprendem - e outros não - a ler e escrever?
tanto, aqueles que fracassam na escola pública? Quais (GOMES & SENA, 2001).
explicações para o “fracasso escolar” foram construídas Várias são as respostas produzidas, historicamen-
historicamente? te, para se explicar por que alguns alunos fracassam na
escola. Segundo Sena (1999), “a ausência de um quadro
Origem e desenvolvimento dos teórico específico da Pedagogia faz com que seus profis-
elementos impeditivos da sionais busquem, em outras áreas do conhecimento,
aprendizagem escolar explicações para o fracasso escolar, visando subsídios teó-
ricos que expliquem as dificuldades escolares e que pos-
Pesquisas em educação e, mais especificamente, sam fundamentar propostas de intervenção junto ao
sobre o “fracasso escolar” mostram que os alunos que processo de ensino-aprendizagem dos alunos portadores
fracassam nas escolas públicas são, em sua maioria, dessas dificuldades” (p.72). Essas explicações ora se cen-
pobres, negros, ex-moradores da zona rural, filhos de tram na problemática dos alunos e suas famílias, ora no
pais analfabetos, com grande número de filhos ou, questionamento à escola. Nossa perspectiva é trabalhar
ainda, de mães que sustentam a casa sozinhas (GOMES, na lógica do “e” e não do “ou”, isto é, estamos abordan-

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Contextos de produção de sucesso-fracasso escolar

do o sucesso e o fracasso escolar e suas relações


(GOMES, 1995). Sendo assim, tanto os fatores relativos
às crianças e suas famílias quanto os fatores relativos à
escola, à sociedade e ao sistema de ensino farão parte de
nossa análise.
Ao procurar explicar o fenômeno do “fracasso
escolar”, os educadores vêm utilizando vários termos
como distúrbios de aprendizagem, disfunção cerebral
mínima (DCM), hiperatividade, dislexia, imaturidade,
termos esses advindos de áreas do conhecimento como
a medicina e a psicologia, principalmente. O uso des-
ses termos serviu historicamente – e continua servindo
– mais para classificar os alunos que não correspondem
às expectativas das escolas quanto ao desempenho na
aprendizagem e ao cumprimento de suas regras disci-
plinares, do que para explicar ou avaliar o desempenho
escolar propriamente dito (SENA, 1999; GOMES,
1995).
Segundo Sena (1999), a escola, como instituição
social, tem dificuldade de lidar com as diferenças e, por
meio de mecanismos sutis, termina por marginalizar um rios e nos hospitais. Essa explicação surge na França,
número significativo de alunos. Não conseguindo lidar em 1881, quando a escolaridade se torna obrigatória e
com as diferenças sociais, culturais e pessoais de seus alu- os filhos de trabalhadores da camada mais pobre da
nos, os educadores produziram diversas abordagens para população começam a freqüentar os bancos das escolas.
explicar o “fracasso escolar” que revelam a complexidade Da mesma forma, a divisão técnica do trabalho na
desse fenômeno e seus elementos constitutivos. medicina, propiciando os estudos específicos na área da
Inicialmente, discutiremos as abordagens centradas nos neurologia, favoreceu o surgimento e o fortalecimento
alunos e em suas famílias, para depois discutirmos os de teorias médicas para explicar os distúrbios de apren-
questionamentos à escola. dizagem (SENA, 1999). Esses médicos localizavam as
causas dos distúrbios de aprendizagem no cérebro.
Abordagem organicista Entre os distúrbios de aprendizagem, o mais dissemi-
nado foi a dislexia (termo neurológico que, de modo
A abordagem organicista foi, historicamente, a geral, refere-se à perda do domínio da linguagem escri-
primeira formulação elaborada para explicar o “fracas- ta) e, depois, a cegueira verbal congênita (descrita por
so escolar” de estudantes, na França, no final do século James Hinshelwood, 1865) para designar um distúrbio
XIX e início do século XX, a partir de casos clínicos de leitura provocado por um defeito congênito (MOY-
que os médicos psiquiatras atendiam em seus consultó- SÉS E COLLARES, 1992).

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Abordagem cognitivista

A abordagem cognitivista surge do raciocínio


psicológico, na França, nos EUA e na Grã-Bretanha,
após a primeira guerra mundial, pretendendo romper
com o organicismo e com o diagnóstico de dislexia
para todo e qualquer aluno que apresentasse diferentes
comportamentos e diferentes desempenhos escolares.
Segundo Gomes (1995), essa abordagem marca
uma mudança e, ao mesmo tempo, uma continuidade
em relação à abordagem organicista. A mudança caracte-
riza-se pela passagem do orgânico para o funcional, da
esfera cerebral para a intelectual, das estruturas nervosas
para as funções psicológicas, do físico para o psíquico.
Questiona e opõe-se ao diagnóstico de dislexia como
O Estúdio, Picasso, 1928.

fator orgânico, mas permanece relacionando dislexia


com percepção, ou seja, com déficit de atenção, portan-
to, como fator cognitivo. A continuidade apresenta-se
também quando aponta componentes biológicos (como,
por exemplo, localizar o problema na não-maturação do
A abordagem organicista, desde a década de 60, sistema nervoso) para as dificuldades de aprendizagem. É
participa de estudos psicológicos para explicar os distúr- importante observar que o termo muda: já não se trata
bios de aprendizagem, ou a DCM, ao incluir os déficits de mais de distúrbio de aprendizagem e sim de dificuldades,
percepção e de atenção nos diagnósticos psiconeurológi- pois a causa não é orgânica; não se trata, assim, de uma
cos. Essa parceria entre neurologistas e psicólogos se for- doença.
talece nos anos 80, ao se elaborar o diagnóstico de ADD Para Ajuriaguerra (1951, citado por FIJALKOW,
– Distúrbios por Déficit de Atenção –, permanecendo, 1989), as causas das dificuldades da leitura e da escrita
nas explicações do “fracasso escolar, a predominância do são os transtornos de lateralidade, de organização espa-
raciocínio médico”. cial e temporal, de discriminação auditiva e visual, de
A abordagem organicista, portanto, reduz o social esquema corporal, de coordenação motora, entre outras;
ao biológico e exclui os aspectos pedagógicos das expli- portanto, são os déficits cognitivos relativos à capacida-
cações do “fracasso escolar”, individualizando e patologi- de de adquirir conhecimentos e os motores que são res-
zando esse fenômeno. Os aspectos constitutivos do ponsáveis pelas dificuldades dos alunos.
sucesso e do fracasso escolar estão localizados nas condi- A primeira metade do século XX foi marcada,
ções saudáveis ou patológicas dos estudantes. Dessa ainda, pela influência da Psicometria, identificada pelo
forma, sustenta a formação de “classes especiais” para uso de testes para avaliação de níveis de inteligência e
alunos “disléxicos”, “desatentos”, “imaturos” etc. de aptidões mentais. Um de seus legados pode ser

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Contextos de produção de sucesso-fracasso escolar

exemplificado pelos estudos de correlação entre leitura


e idade mental, por meio da aplicação do teste de QI
(quociente intelectual), de Binet-Simon, que pretende Segundo Tort (1976), “a situação de
avaliar a idade mental de entrada na aprendizagem da
teste não é neutra. Trata-se de uma
leitura e da escrita através de índices obtidos pelas
crianças em tais testes. situação de classe que favorece o
Dessa abordagem surgem, então, os testes psico-
sucesso das crianças segundo a sua
motores para se verificar a prontidão dos alunos para a
alfabetização e o período preparatório (atividades escola- origem social. As questões postas não
res envolvendo ritmo, orientação corporal, espacial e
têm de modo nenhum o mesmo
temporal, discriminação visual e auditiva, lateralidade,
entre outros) como pré-requisitos para se aprender a ler sentido para as diferentes classes
e escrever. Costa (1993), Patto (1990) e Resende
sociais”.
(2001) questionam o caráter ideológico dos testes de
prontidão – e dos testes em geral – elaborados a partir
da concepção e prática de uma classe social, eviden-
ciando que a criança da camada popular “não só é Entretanto, essas autoras não avançam nos estu-
capaz de aprender, mas também apresenta uma especi- dos das funções psicológicas superiores, como Luria e
ficidade própria de pensamento, diretamente relacio- Vygotsky, que as apresentam funcionando articulada-
nada à sua classe social de origem” (RESENDE, 2001, mente e de maneira complexa: memória lógica/mediada,
p.19). Segundo Tort (1976), “a situação de teste não é atenção voluntária e pensamento conceitual. Essas fun-
neutra. Trata-se de uma situação de classe que favorece ções são essenciais para que os estudantes se apropriem
o sucesso das crianças segundo a sua origem social. As dos conceitos ensinados na escola e na vida cotidiana, ou
questões postas não têm de modo nenhum o mesmo seja, nos grupos culturais aos quais pertencem. São fun-
sentido para as diferentes classes sociais” (p.27). ções que se apresentam diferenciadamente, em cada
Segundo Gomes (1995), nos anos 80, com o sur- indivíduo; entretanto, essa diferenciação só pode ser
gimento das pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1985), a construída social e culturalmente. Portanto, as dificulda-
concepção cognitivista marca uma ruptura com a con- des de ensino-aprendizagem que, porventura, algum
cepção organicista, pois essas pesquisadoras questionam estudante apresente na escola podem ser superadas
o caráter essencialmente psicomotor e maturacional das quando alunos e professores constroem diferentes opor-
explicações cognitivistas para as dificuldades de aprendi- tunidades de aprendizagem, por meio de ações e intera-
zagem dos alunos. Elas demonstram que a aprendizagem ções, na sala de aula, pois, de acordo com Vygotsky
é marcadamente conceitual e que as relações da alfabeti- (1989), a aprendizagem desperta diversos processos evo-
zação com os aspectos percepto-motores e maturacionais lutivos internos capazes de operar apenas quando as
não são determinantes da aprendizagem, embora, certa- crianças estão em interação umas com as outras ou com
mente, a influenciem. adultos de seu meio.

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Abordagem afetiva Abordagem do handicap (déficit)


sociocultural
Esta abordagem refere-se aos transtornos afeti-
vos da personalidade dos estudantes. Defende que as De acordo com a abordagem do handicap socio-
perturbações afetivas das crianças são a causa das difi- cultural, ou da deficiência sociocultural, o meio socio-
culdades de aprendizagem, e não os déficits cogniti- cultural-familiar é o grande responsável pelas dificul-
vos ou cerebrais. Considera a dislexia uma forma de dades de aprendizagem da leitura e da escrita. A qual
linguagem, associada a um sintoma neurótico ou psi- meio sociocultural ela se refere? Considerando-se que
cótico. a grande maioria dos alunos que apresentam tais difi-
As dificuldades, para essa abordagem, são resul- culdades é oriunda das camadas populares, o meio
tado de uma inibição intelectual, gerada por um con- sociocultural seria o responsável pelo “fracasso escolar”
flito invasor (consciente e inconsciente). Segundo Sena dessas crianças, pois ele é considerado deficitário, do
(1999): ponto de vista lingüístico e cultural. Argumentam que
os adultos dessas famílias lhes oferecem um “modelo
Para os adeptos dessa abordagem o atraso do aluno é lingüístico pobre” (SENA, 1999, p. 75). Se o contex-
o único meio que ele tem para mostrar suas dificul- to sociocultural é pobre, cabe, então, à escola compen-
dades e é necessário buscar sua origem na dinâmica sar essa pobreza oferecendo uma Educação
familiar. Pelo método clínico, através do estudo de Compensatória (pré-escolar e escolar) com programas
caso, coloca-se uma questão considerada como fun- que compensem os “déficits” dos alunos. A escola
damental; por que a criança elegeu esse sintoma e passa a ser a redentora dos problemas sociais e econô-
não outro? (p.74). micos da camada pobre da população.
O pressuposto básico da teoria do handicap socio-
Essa abordagem aponta para a importância da cultural de que a linguagem e a cultura das crianças de
reação dos pais e professores frente às dificuldades de camadas populares são deficientes foi desmistificado,
aprendizagem da leitura e escrita, pois ela pode provo- principalmente, por estudos de natureza antropológica e
car outras dificuldades e “piorar” as existentes. Dolto e sociolingüística. Tais estudos consideram a cultura e a
Manoni (1965, segundo FIJALKOW, 1989) enfatizam linguagem das crianças de camadas populares como dife-
os fatores provenientes da instituição escolar que rentes, e não deficientes:
poderiam causar dificuldades – como os relacionais.
Assim, os transtornos afetivos podem funcionar tanto O estudo das línguas de diferentes culturas deixa
como causa quanto como conseqüência das dificulda- claro (...) que não há línguas mais complexas ou mais
des. Pela primeira vez, uma explicação envolveu tanto simples, mais lógicas ou menos lógicas: todas elas são
fatores relativos aos alunos e suas famílias quanto os adequadas às necessidades e características da cultura
referentes à escola como constitutivos do “fracasso a que servem e igualmente, válidas como instrumen-
escolar”. tos de comunicação social (SOARES, 1986, p.39).

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Contextos de produção de sucesso-fracasso escolar

Junto a essa abordagem surge uma outra explica- distância entre a variedade escrita do dialeto padrão e os
ção para o fracasso escolar, que localiza a inadequação da dialetos não padrão de que são falantes essas crianças”
escola à realidade de vida cultural desses alunos, produ- (RESENDE, 2001, p.102).
zindo o problema do “fracasso escolar”. Surge então o Há estudos que focalizam a estrutura escolar
questionamento à escola. como a responsável pelo fracasso de crianças de camadas
populares como também de crianças de escolas particu-
Questionamento à escola lares. Segundo Arroyo (1997),

O questionamento à escola surge junto com os Partimos da hipótese de que tanto na escola privada
questionamentos dos movimentos populares existentes quanto na pública a lógica não é muito diferente: há
na sociedade, como os constituídos por negros, mulhe- uma indústria, uma cultura da exclusão. Cultura
res, homossexuais, por exemplo. que não é desse ou daquele colégio, desse ou daquele
professor, nem apenas do sistema escolar, mas das ins-
Enquanto instituição social responsável pela pro- tituições sociais brasileiras, geradas e mantidas, ao
dução e socialização do conhecimento formal, cabe longo deste século republicano, para reforçar uma
à escola possibilitar aos seus alunos a aquisição sociedade desigual e excludente (p. 13).
desses saberes escolares e a vivência de práticas cul-
turais e sociais. Nessa abordagem, as variáveis que Ainda segundo esse autor,
mais condicionam o fracasso das crianças seriam: a
inadequação de métodos pedagógicos; as dificulda- a escola como instituição – não como boas vontades de
des na relação professor-aluno; a precária forma- seus mestres – mantém a mesma ossatura rígida e
ção acadêmica do professor; os conflitos vivencia- excludente. Continua aquela estrutura piramidal,
dos em sua experiência profissional; a falta de uma preocupada apenas com o domínio seriado e discipli-
infra-estrutura das escolas da rede pública de ensi- nar de um conjunto de habilidades e saberes” (p.13).
no etc. Deslocando a questão do aluno que não
aprende para a escola que não ensina, seus segui- Considerando os aspectos relativos aos alunos e
dores pretendem uma modificação na estrutura e suas famílias e aqueles relativos à escola, passaremos, na
organização da escola, a fim de que essa institui- próxima seção, à discussão de possibilidades de promo-
ção cumpra seu papel social (SENA, 1999, ção do sucesso escolar numa visão interativa dos proces-
p.74/75). sos de ensino-aprendizagem.

De acordo com a teoria da diferença cultural, a Possibilidades de promoção do


explicação para o fracasso escolar de crianças de camadas sucesso escolar
populares está na inadequação da escola à sua realidade
cultural. Em consonância com essa teoria estão os estu- Queremos iniciar nossa discussão retomando o
dos sociolingüísticos, que atribuem o fracasso na alfabe- que já dissemos anteriormente acerca de nossas inten-
tização, principalmente, “a problemas decorrentes da ções em discutir o sucesso-fracasso escolar do ponto de

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vista tanto dos alunos quanto das escolas. Partimos, Estudos Sociais somente eram estudados quando o
então, do pressuposto de que a escola é uma instituição tempo permitia. A partir de setembro iniciou-se a pro-
organizada, burocratizada, segmentada, gradeada dução de textos individuais e coletivos, sempre com a
(ARROYO, 1997), cuja estrutura e funcionamento pre- ajuda da professora. Ressaltar a importância da ajuda
cisam ser analisados juntamente com os aspectos refe- da professora é fundamental, pois os alunos necessitam
rentes à singularidade dos alunos – singularidade que é deste suporte para, então, individualmente produzirem
construída nos grupos socioculturais aos quais perten- os próprios textos. É importante que as professoras
cem na relação com os outros, com o mundo e consigo interajam com seus alunos, permitindo-lhes a criação
mesmos (CHARLOT, 2000). Não podemos discutir e de textos coesos e coerentes em que os conhecimentos
analisar a estrutura e funcionamento das escolas sem fonéticos, sintáticos e semânticos possam se manifestar,
relacioná-los com os alunos que ali estudam, ou seja, mesmo que os “erros” apareçam e sirvam de pistas para
com seus pertencimentos étnicos, de classe social, gêne- se ensinar e aprender mais e sempre mais, consideran-
ro, religião, enfim com seus pertencimentos sociocultu- do-se a Zona de Desenvolvimento Proximal, descrita
rais e econômicos que fazem deles seres singulares e por Vygotsky, vista aqui como recurso para criar, obter
sociais. Dessa forma, ao discutirmos possibilidades de e comunicar sentido para e com as crianças acerca do
sucesso escolar, estaremos discutindo histórias de alunos que lêem e escrevem. “Elas vão interiorizando os pro-
que vivenciaram fracasso e sucesso e as causas de tais pro- cessos sociais e culturais que passam a existir dentro
cessos. Estaremos considerando o caráter histórico da delas, como atividades mentais, as quais, por sua vez,
produção desses fracassos e sucessos (PATTO, 1990). vão permitir-lhes maneiras próprias de pensar, de sen-
Estive pesquisando dentro de uma sala de aula
de alfabetização, durante o ano de 1993, e presenciei
cenas de interação entre professora e alunos que nos
sugerem reflexões importantes acerca da promoção ou
É necessário que tomemos
não do sucesso escolar. Dentro da sala de aula estavam
26 alunos, a professora, a pesquisadora e, durante dois consciência das explicações que
meses, havia uma estagiária de magistério. As crianças
elaboramos para justificar as histórias
dessa sala moravam numa favela vizinha à escola, não
haviam freqüentado o pré-escolar, em sua grande maio- de sucesso e de fracasso, pois
ria. A rotina de ensino-aprendizagem da leitura e da
podemos reproduzir ideologias e
escrita seguiu o seguinte parâmetro:
– cópia da ficha completa; crenças que isentam as escolas da
– cópia das famílias silábicas e de palavras for- responsabilidade sobre essas
madas com as famílias silábicas;
– ditado das letras, sílabas, palavras e frases trei- histórias.
nadas;
Depois da merenda, iniciavam-se exercícios de
Matemática, Ciências e Estudos Sociais. Ciências e

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Contextos de produção de sucesso-fracasso escolar

tir, de memorizar, de aprender” (VYGOTSKY, 1989). aula, como, por exemplo: projetos específicos para
Nessa perspectiva, o aprendizado é fundamental para atender aos diferentes estudantes; períodos específicos
o desenvolvimento dos seres humanos que, para para tutoria de pequenos grupos, em função de difi-
Vygotsky, se baseia na interação social, na interferên- culdades específicas, visando a avanços ou ajustes dos
cia direta e indireta de outros indivíduos e na recons- fluxos dos alunos em séries ou ciclos. Implica conside-
trução pessoal da experiência e dos significados (OLI- rar que o conhecimento é construído nas interações
VEIRA, 1993). sociais de sala de aula e que os alunos têm tempos, rit-
É necessário que tomemos consciência das mos e formas diferentes de aprender. Implica conside-
explicações que elaboramos para justificar as histórias rar, nas propostas pedagógicas e metodologias de ensi-
de sucesso e de fracasso, pois podemos reproduzir no-aprendizagem, a singularidade, as particularidades
ideologias e crenças que isentam as escolas da respon- dos estudantes e, portanto, dos grupos socioculturais
sabilidade sobre essas histórias. aos quais pertencem. Implica também a construção de
Precisamos também levar em conta o processo diversas metodologias de trabalho que possibilitem a
de construção dos conhecimentos escolares de nossos diferentes alunos o envolvimento com o conteúdo
alunos e professores, seus conhecimentos prévios sobre estudado; metodologias que considerem tanto os
os conteúdos estudados, pois estudantes e professores conhecimentos procedimentais (experimentos, realiza-
são sujeitos históricos e culturais. A própria instituição ção de entrevistas, excursões) quanto os conceituais -
escolar é um produto histórico, cultural, e age numa resolução de exercícios, escrita de relatórios, cálculos,
trama de complexos processos socioculturais. leitura, interpretação e produção de textos (GOMES,
Falar de cultura escolar, de acordo com Arroyo 2004).
(1997), supõe que “os diversos indivíduos que nela De acordo com Sena (1999), é fundamental que
entram e trabalham adaptam seus valores aos valores, os educadores estimulem a produção dos alunos, não
às crenças, às expectativas e aos comportamentos da recalcando sua curiosidade intelectual e, dessa forma,
instituição. Adaptam-se à sua cultura materializada no possibilitando-lhes serem leitores críticos e autores de
conjunto de práticas, processos, lógicas, rituais consti- seu próprio texto e, finalmente, sujeitos implicados
tutivos da instituição” (p.17). Pensar em possibilida- em seu processo de escolarização.
des para se obter sucesso escolar pressupõe um traba- Enfim, para conseguirmos o sucesso escolar de
lho coletivo em que todos que estão responsáveis pelos nossos estudantes, precisamos aliar as informações
alunos se envolvam na busca de soluções, e não apenas pedagógicas, pessoais, sociais e culturais que temos
que os professores tentem isoladamente, em suas salas, sobre eles com as metodologias e propostas pedagógi-
ensinar a seus alunos os conteúdos escolares. Implica cas que levem em conta seus processos de construção
quebrar a estrutura rígida da cultura escolar, organizar dos conhecimentos e que rompam com a estrutura
tempos e espaços de ensino-aprendizagem alternativos rígida da cultura escolar, seja em escolas públicas ou
aos já existentes nas escolas. Implica também construir em escolas particulares.
situações de ensino-aprendizagem que considerem as
diferentes produções dos diferentes alunos nas salas de

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Referências GOMES, M.F.C. Sucesso e Fracasso Escolar. Caderno


Veredas, módulo VI, v.3, 2004.
Sugestões de leituras
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ARROYO, Miguel G. Fracasso-Sucesso: o peso da cultura & SENA, M.G.C. (Orgs). Dificuldades de Aprendizagem na
escolar e do ordenamento da Educação Básica. In: Alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica/Ceale, 2001.
ABRAMOWICZ, Anete & MOLL, Jaqueline (Orgs). Para além
LURIA, A.R. Desenvolvimento Cognitivo: seus fundamentos
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culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990.
BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar.
MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Pais e Filhos diante do
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CASTANHEIRA, Maria Lúcia. Situating learning within collec- M.G.C. (Orgs). Dificuldades de Aprendizagem na
tive possibilities examining the discursive construction of Alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica/Ceale, 2001.
opportunities for learning in the classroom; These of
MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso & COLLARES, Cecília
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FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da SOARES, Magda B. Linguagem e Escola: uma perspectiva
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GOMES, M.F.C. Construindo relações de inclusão/exclusão


na sala de aula de química: histórias sociais e singulares.
Tese de Doutorado, FaE/UFMG, 2004.

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