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Contextos
de produção de
sucesso-fracasso
escolar:
interações nas
salas de aula
MARIA DE FÁTIMA CARDOSO GOMES *
N Nas pesquisas acadêmicas brasileiras do final dos anos 70, aparece, de maneira mar-
decorrência de uma mudança da clientela que demandava a escola e que passou a incluir,
nessa época, um número muito grande de crianças egressas das camadas populares. Esse
último fato mudou radicalmente os objetivos da escola pública e provocou, também, a neces-
sidade de mudar a postura pedagógica, como evidenciam nossas pesquisas nesta área.
* Professora da Educação da Faculdade de Educação da UFMG, pesquisadora do CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita), do
LAPED (Laboratório de Psicologia da Educação) e Coordenadora do Colegiado de Pedagogia da FaE/UFMG.
E-mail: cardosomf@terra.com.br
As tentativas educacionais de compreensão do salas não são homogêneas, apresentam diferenças mar-
“fracasso escolar” não se restringiram a essas pesquisas, cantes entre elas e dentro delas. Tanto os alunos como
nas quais o centro do debate é a qualidade do ensino, os professores trazem para dentro de suas salas suas his-
mas passaram a incluir a discussão da diversidade cul- tórias escolar e de vida, suas vivências socioculturais e
tural dos alunos, considerando questões de gênero, afetivas; enfim, são seres histórico-culturais. São sujei-
etnia e classe social, de acordo com Terigi & Baquero tos sociais e singulares, únicos, que apresentam diferen-
(1997). Isso implicou mudar o foco do debate do “fra- ças, particularidades. Como os educadores estão lidan-
casso escolar” para os processos de exclusão de alunos do com as particularidades de seus alunos? Tratam as
das camadas populares. Portanto, o objetivo das pes- diferenças socioculturais (étnicas, lingüísticas, religio-
quisas que se desenvolveram ao longo das últimas déca- sas, de gênero, classe social etc.) como deficiências?
das era de aprofundar a análise dos processos de ensi- Sabemos que o par sucesso-fracasso escolar vem
no-aprendizagem do conjunto dos alunos, e não apenas sendo estudado sob vários pontos de vista – psicológi-
daqueles que fracassam na escola. co, sociológico, antropológico, biológico. Dentro dessa
A discussão do par sucesso-fracasso escolar não é diversidade de perspectivas, alguns estudos enfatizam
nova, remonta a velhas e conhecidas práticas e concep- os aspectos individuais, outros os aspectos sociais do
ções de ensino-aprendizagem que, muitas vezes, não fenômeno do fracasso/sucesso escolar. O nosso interes-
estão explícitas dentro da sala de aula. Remete-nos a se é dialogar com esses pontos de vista, colocando ênfa-
reconhecer que a maioria dos educadores, quando se na dinâmica interna das salas de aulas, nas interações
tenta explicitar o sucesso ou o fracasso escolar, centra de sala de aula em que o sucesso e o fracasso escolares
suas explicações nos alunos e em suas famílias. Essas são construídos. Assim, tanto os aspectos individuais
explicações reduzem o peso da cultura escolar na pro- quanto os sociais serão abordados neste estudo, saben-
dução do fracasso, pois apontam exclusivamente as do-se que os aspectos individuais são construídos, teci-
condições socioculturais dos alunos e de suas famílias dos na relação com os outros, ou seja, socialmente.
como as responsáveis pelo fracasso dos estudantes nas Partimos do princípio de que o par sucesso-fra-
escolas. casso escolar representa os dois lados de uma mesma
Sendo assim, a escola passa a ser vítima dos tipos moeda, de que existe um caráter integrado entre suces-
de alunos que recebe. Parece-nos que essa situação de so e fracasso escolar que não está dado, não acontece
escola-vítima permanece nos dias de hoje, pois grande antes de alunos e professores entrarem em suas salas;
parte dos educadores ainda localiza, com muita fre- ele é produzido histórica e socialmente.
qüência, nos alunos e em suas famílias, a “culpa” pela Estamos tratando, então, do par sucesso e fracas-
não-aprendizagem. Para eles, a escola procura fazer so escolar e não apenas de fracasso ou de sucesso.
tudo que pode para ensinar aos alunos, mas como eles Portanto, apontar possibilidades de sucesso escolar nos
não têm limites (não obedecem aos seus professores, parece muito importante neste artigo, pois estamos
não fazem as tarefas, perturbam a disciplina da sala de pretendendo ir além do fracasso escolar, assumindo o
aula), não podem aprender. sucesso como nosso desafio pedagógico.
Estudantes com essas características e com mui- Portanto, neste artigo pretendemos estabelecer rela-
tas outras sempre existiram nas salas de aulas, pois as ções entre os contextos de sucesso e fracasso escolar; anali-
sar o fenômeno do fracasso escolar em seus aspectos cons- de casos’, sempre fantásticos, contados com riqueza
titutivos e identificar possibilidades de sucesso escolar. de detalhes e acompanhados de muitos gestos e
movimentação. Era considerado pela professora
O caráter integrado do aprender e como uma criança que ‘atrapalhava muito as
do não-aprender aulas’, pois ‘falava demais’.
No início das aulas, Vilmar encontrou uma
Trataremos o par sucesso-fracasso escolar como professora que lhe dava alguma autonomia, permi-
os dois lados de uma mesma moeda. Historicamente, tindo que ele produzisse de acordo com seu ritmo.
convivemos com o fenômeno do “fracasso escolar” que, O menino desenhava muito e constantemente
no entender de Charlot (2000), não existe: “o que vinha me mostrar seu trabalho. Muitas vezes eu lhe
existe são alunos em situação de fracasso” (p.16). São sugeria que escrevesse o que havia desenhado. Às
alunos com histórias escolares que acabam mal. E essas vezes ele tentava, e a cada tentativa revelava novos
histórias são construídas, dia após dia, semana após conhecimentos sobre a escrita – suas normas e fun-
semana, mês após mês, ano após ano pelos professores ções. Curiosamente não usava o código convencio-
e estudantes dentro das salas de aulas (COLLINS & nal para escrever seus ‘textos, mas criava seu pró-
GREEN, 1992; CASTANHEIRA, 2000, 2004; prio código, valendo-se dos conhecimentos que ia
GOMES, 2004). Desse modo, nossa ênfase será discu- adquirindo sobre a escrita.
tir o sucesso e o fracasso escolar do ponto de vista das Um dia ele se aproximou de mim com uma
ações e das interações em sala de aula. Assim, as seqüência de desenhos e contou-me a ‘história de
relações entre professores e alunos, entre alunos e desenho’. Quando terminou, sugeri que escrevesse o
alunos e destes com o objeto de conhecimento serão que me relatara. Imediatamente ele respondeu:
privilegiadas nesta seção e serão tratadas como contex- – Ah, tia. Eu conto e você escreve. Isso tudo
tos de produção de sucesso-fracasso escolar. eu ainda não sei.
Iniciaremos apresentando uma pesquisa realiza- Passei um período sem ir à turma. Quando
da por Esteban (1992), em que a autora analisa “como voltei, havia uma nova professora que encaminha-
o saber e o não saber são vividos no cotidiano da sala va de outro modo o trabalho pedagógico. Este se
de aula e suas implicações para o processo ensino- baseava, agora, na apresentação de palavras e síla-
aprendizagem” (p.75). As situações de ensino-apren- bas – juntando o que já era conhecido para formar
dizagem analisadas por essa autora são de conhecimen- palavras ‘novas’ – e na proposta de cópias e ditados,
to de todos que estão dentro e fora de sala de aula. como recomendava o ‘método de alfabetização’.
Veja-se o seguinte relato: Admirada, constatei que Vilmar, cujos
avanços em seu processo de apropriação da lingua-
Vilmar chamou-me especialmente a atenção gem escrita eu acompanhara, era agora avaliado
por suas mudanças no correr do ano letivo e pelo como tendo ‘dificuldades de aprendizagem’.
que revelavam essas mudanças. Observei Vilmar Vilmar me trouxe um exercício de separação
interagindo com outras crianças e com a professora de sílabas. Tentei conversar com ele sobre o traba-
em sala de aula. Vilmar era um menino ‘contador lho que realizava. Não pareceu muito entusiasma-
do com a conversa e propôs fazer um desenho para conhecimento, em que os alunos, ao aprender, por
mim. Ao acabar o desenho, entregou-me e eu repe- exemplo, a escrita, desenvolvem a “capacidade de parti-
ti a proposta que já havia feito outras vezes: ciparem em atividades colaborativas qualitativamente
– Escreva a história de seu desenho. novas” (BAQUERO, 1998, p. 115). Entretanto, quando
Vilmar respondeu com insegurança: as interações consideram que o aluno não sabe escrever,
– Ah, tia. “Eu não sei escrever (ESTEBAN, nos fazem pensar muito mais na possibilidade de fracas-
1992, p. 76). so na aprendizagem da escrita do que no sucesso.
Segundo a autora, essas práticas envolveram ações
Essas situações de ensino-aprendizagem relatadas e interações que estiveram relacionadas com as concep-
pela autora nos permitem fazer reflexões sobre as práti- ções do professor de mundo e de homem, concepções
cas de alfabetização em sala de aula e as concepções de estas que estão relacionadas com sua concepção sobre o
ensino-aprendizagem que elas veiculam. Concepções processo de alfabetização, assim como a leitura que faz
que podem funcionar como potenciais de sucesso ou de do desenvolvimento da criança tem relação com a quali-
fracasso escolar ao proporcionarem oportunidades de dade de sua intervenção.
aprendizagem para todos ou para poucos alunos. As A qualidade da intervenção do professor nos leva
interações sociais vividas por Vilmar com as duas profes- a pensar sobre o papel do erro no processo de ensino-
soras e com a pesquisadora nos fazem refletir sobre o aprendizagem, assim como sobre as particularidades de
caráter potencial de sucesso escolar quando elas conside- cada aluno ao construir conhecimentos na sala de aula.
ram que o aluno ainda não sabe; demonstram uma pers-
pectiva de futuro próximo para a aprendizagem da escri-
ta (como nos ensina Vygotsky ao conceituar a Zona de
Desenvolvimento Proximal como “a distância entre o Valorizar o processo de aprendizagem
nível de desenvolvimento real, que se costuma determi-
significa perceber que o conhecimento
nar através da solução independente de problemas, e o
nível de desenvolvimento potencial, determinado atra- é construído e que o não saber faz
vés da solução de problemas sob a orientação de um
parte desse processo.
adulto ou em colaboração com companheiros mais capa-
zes”. Para esse autor, a zona de desenvolvimento proxi-
mal (ZDP) permite uma visão prospectiva, isto é, uma
projeção do futuro, porque diz daquilo que os alunos
ainda podem e devem aprender com ajuda dos professo- De acordo com o relato do processo de Vilmar, a
res ou de colegas e revela o curso interno de seu desen- segunda professora não considera o “erro” como parte do
volvimento. O desenvolvimento proximal pressupõe processo de ensino-aprendizagem. As palavras pronun-
compartilhamento de saberes e ações para que os alunos ciadas pelo aluno em questão (“eu não sei”) indicam que
aprendam e se desenvolvam como sujeitos sociais. Mais tudo que ele havia aprendido não estava sendo conside-
do que um suporte, a zona de desenvolvimento proximal rado. Ele podia escrever “textos” de um modo particular,
é uma possibilidade de construção compartilhada de usando letras e não apenas desenhos. Do ponto de vista
de quem valoriza apenas o produto da aprendizagem, outro como os professores, os colegas, os bens culturais,
esse tipo de escrita indica o que o aluno não sabe, pois como mediadores entre o sujeito que aprende e o objeto
apenas uma resposta é considerada correta e ela tem que que se tem que aprender-ensinar.
coincidir com a resposta do livro didático ou com a res-
posta esperada pelo professor. Do ponto de vista de
quem valoriza o processo de aprendizagem, escrever de Quando o sujeito internaliza os
um modo particular indica o que o aluno já sabe sobre a
conhecimentos escolares, ele produz
língua escrita e indica pistas para o professor planejar o
que os alunos precisam aprender e ele, ainda, precisa um entendimento singular,
ensinar. Assim, a posição do aluno (“eu ainda não sei”) qualitativamente diferente daquele
indica a possibilidade de ainda saber, ou seja, que ele está
percorrendo um caminho para chegar ao produto espe- que foi aprendido pelos outros
rado pela escola. Valorizar o processo de aprendizagem sujeitos. Dessa forma podemos
significa que o conhecimento é construído e que o não
saber faz parte desse processo. Segundo Esteban (1992), perceber a riqueza das interações
saber, percebendo a relação dialética entre ambos e subs- considerados como capazes e inteligentes; suas respostas
tituindo a preocupação com o “erro” pela incorporação são sempre certas e estimuladas pelos professores, seus
do conhecimento em sua dimensão processual, dinâmi- hábitos e atitudes já são esperados pela escola, ou seja,
ca e interativa. Trata-se, assim, de fortalecer o sujeito que esse saber que possuem é confirmado na escola, e os
aprende percebido “como potencialmente capaz de resultados escolares antecipam seu sucesso na vida social
superar os limites impostos pelo desconhecido” (ESTEBAN, 1992).
(ESTEBAN, 1992, p. 84). Aqueles alunos que não correspondem ao ideal de
Considerando as particularidades de Vilmar, comportamento e desempenho esperados pela escola são
pode-se constatar que a pesquisadora enfatizou algumas identificados e se identificam com o não-saber. Assim, os
relativas ao gênero, pertencimento social (classe popular) alunos são responsabilizados individualmente pelos seus
e à sua compreensão da língua escrita. Entretanto, fica- próprios fracassos ou sucessos.
mos sem saber quem é o Vilmar do ponto de vista da As sociedades liberais consideram as diversidades
etnia, idade, trajetória escolar, por exemplo, dados que dos sujeitos e as desigualdades justas, sendo umas mais
nos poderiam ajudar a compreender quais saberes socio- justas que outras. É projeto da modernidade que o sujei-
culturais ele trazia para dentro da escola que não estavam to seja livre, seja autor de sua própria vida, e esse projeto
sendo considerados pela segunda intervenção pedagógi- é indissociável da afirmação de igualdade de todos. A
ca, principalmente - pois a primeira nos pareceu respei- igualdade engendra a obrigação de ser livre e de ser res-
tar os ritmos, saberes e processos de Vilmar ao aprender ponsável pelo seu fracasso ou seu sucesso – pressupõe agir
a escrever. de acordo com sua própria medida. É a ideologia do
Partindo do processo vivido por Vilmar, podemos mérito, da responsabilidade de cada um sobre sua liber-
pensar na desqualificação de seu processo de alfabetiza- dade. Todos podem competir, a “performance” e o
ção, por ele próprio, ao pronunciar as palavras “eu não desempenho dependem de cada um – as desigualdades
sei escrever”. A intervenção do professor pode fortalecer são justas, pois repousam sobre o mérito de cada um.
ou não, valorizar ou não os conhecimentos dos alunos, Resumidamente, pudemos perceber, ao relatar a
elaborados e acumulados historicamente por sua classe história de Vilmar, que a referida autora nos mostra que
social, procurando fazer uma ponte entre esses conheci- as crianças entram para a escola com possibilidades de
mentos e aqueles que a escola precisa e deve ensinar. sucesso e de fracasso escolar e que as relações que são
Muitas vezes os conhecimentos trazidos pelos alu- construídas na sala de aula podem funcionar como
nos para dentro da escola, ainda segundo Esteban includentes ou excludentes desses estudantes, tendo em
(1992), adquirem a aparência de não saber, e a forma vista os grupos socioculturais aos quais pertencem.
como o saber e o não saber são vividos no cotidiano esco- Considerar o saber que os estudantes trazem para a esco-
lar é relevante para a compreensão dos mecanismos que la e o processo que constroem para aprender, junto com
possibilitam a construção do sucesso de alguns e o fra- os professores, mostrou-se fundamental para se obter ou
casso de muitos alunos, sejam eles de classes privilegia- não sucesso escolar. A relação entre “eu ainda não sei” e
das ou de camadas populares, como Vilmar. “eu não sei” revelou-se muito importante para se com-
O saber contribui para a construção da auto-esti- preender melhor o par sucesso-fracasso escolar, pois, se
ma positiva daqueles que passam a se considerar e a ser olhamos para os “erros” dos alunos com a perspectiva de
futuro, ou seja, considerando-se o que se pode ainda 1995, GOMES E SENA, 2001, RESENDE, 2001,
aprender-ensinar, situações de ensino-aprendizagem GRIFFO, 2001). Geralmente, são alunos que não cor-
poderão ser construídas levando-se em conta as diferen- respondem às expectativas de aprendizagem da leitura e
tes necessidades e os diferentes saberes dos estudantes e da escrita, por parte dos educadores das escolas, e que
professores. A construção de oportunidades de aprendi- carregam o peso de rótulos como “preguiçosos”, “malan-
zagem para todos os alunos pode eliminar muitas histó- dros”, “desinteressados”, “sujos”, “lambões”, “infreqüen-
rias de fracasso, como a que Vilmar vivenciou com a tes”, “molezas”, “lerdos”, “imaturos”, “desmemoriados”,
segunda professora. Assim, a postura das professoras “cabeção” etc. (PATTO, 1990; GOMES, 1995;
diante do “erro” pode constituir-se como potencial de MACIEL, 2001; RESENDE, 2001; GRIFFO, 2001).
sucesso-fracasso escolar para muitos alunos. Essas pesquisas mostram que o “fracasso escolar”
Concordamos com a relação que a autora estabe- é produzido nas interações de sala de aula, que ele não
lece entre origem de classe e rendimento dos alunos, existe antes que professores e alunos entrem em suas
embora este não seja um fator suficiente ou exclusivo, salas. Algumas perguntas orientaram o desenvolvimento
pois muitos são os fatores que interferem na construção das pesquisas mencionadas, como, por exemplo: quais
do sucesso-fracasso escolar, como a qualidade da inter- são os processos de ensino-aprendizagem vivenciados
venção dos professores, a cultura escolar, a pertença étni- pelos alunos de camadas populares que os dividem em
ca, a trajetória escolar e de vida, o gênero, a idade dos “bons” e “maus” alunos? Como crianças e adolescentes
alunos. lidam com o próprio fracasso? Apesar de suas dificulda-
Considerar os diversos aspectos que podem levar des, o que elas são capazes de aprender, dentro e fora da
crianças ao sucesso ou ao fracasso escolar nos remete à escola? Como seus familiares se relacionam com o fracas-
próxima seção, que vai tratar dos aspectos constitutivos so de seus filhos na escola? Como os educadores lidam
do “fracasso escolar” de alguns alunos, pois não são com a subjetividade/singularidade de seus alunos? Por
todos que fracassam na escola pública. Quem são, por- que alguns aprendem - e outros não - a ler e escrever?
tanto, aqueles que fracassam na escola pública? Quais (GOMES & SENA, 2001).
explicações para o “fracasso escolar” foram construídas Várias são as respostas produzidas, historicamen-
historicamente? te, para se explicar por que alguns alunos fracassam na
escola. Segundo Sena (1999), “a ausência de um quadro
Origem e desenvolvimento dos teórico específico da Pedagogia faz com que seus profis-
elementos impeditivos da sionais busquem, em outras áreas do conhecimento,
aprendizagem escolar explicações para o fracasso escolar, visando subsídios teó-
ricos que expliquem as dificuldades escolares e que pos-
Pesquisas em educação e, mais especificamente, sam fundamentar propostas de intervenção junto ao
sobre o “fracasso escolar” mostram que os alunos que processo de ensino-aprendizagem dos alunos portadores
fracassam nas escolas públicas são, em sua maioria, dessas dificuldades” (p.72). Essas explicações ora se cen-
pobres, negros, ex-moradores da zona rural, filhos de tram na problemática dos alunos e suas famílias, ora no
pais analfabetos, com grande número de filhos ou, questionamento à escola. Nossa perspectiva é trabalhar
ainda, de mães que sustentam a casa sozinhas (GOMES, na lógica do “e” e não do “ou”, isto é, estamos abordan-
Abordagem cognitivista
Junto a essa abordagem surge uma outra explica- distância entre a variedade escrita do dialeto padrão e os
ção para o fracasso escolar, que localiza a inadequação da dialetos não padrão de que são falantes essas crianças”
escola à realidade de vida cultural desses alunos, produ- (RESENDE, 2001, p.102).
zindo o problema do “fracasso escolar”. Surge então o Há estudos que focalizam a estrutura escolar
questionamento à escola. como a responsável pelo fracasso de crianças de camadas
populares como também de crianças de escolas particu-
Questionamento à escola lares. Segundo Arroyo (1997),
O questionamento à escola surge junto com os Partimos da hipótese de que tanto na escola privada
questionamentos dos movimentos populares existentes quanto na pública a lógica não é muito diferente: há
na sociedade, como os constituídos por negros, mulhe- uma indústria, uma cultura da exclusão. Cultura
res, homossexuais, por exemplo. que não é desse ou daquele colégio, desse ou daquele
professor, nem apenas do sistema escolar, mas das ins-
Enquanto instituição social responsável pela pro- tituições sociais brasileiras, geradas e mantidas, ao
dução e socialização do conhecimento formal, cabe longo deste século republicano, para reforçar uma
à escola possibilitar aos seus alunos a aquisição sociedade desigual e excludente (p. 13).
desses saberes escolares e a vivência de práticas cul-
turais e sociais. Nessa abordagem, as variáveis que Ainda segundo esse autor,
mais condicionam o fracasso das crianças seriam: a
inadequação de métodos pedagógicos; as dificulda- a escola como instituição – não como boas vontades de
des na relação professor-aluno; a precária forma- seus mestres – mantém a mesma ossatura rígida e
ção acadêmica do professor; os conflitos vivencia- excludente. Continua aquela estrutura piramidal,
dos em sua experiência profissional; a falta de uma preocupada apenas com o domínio seriado e discipli-
infra-estrutura das escolas da rede pública de ensi- nar de um conjunto de habilidades e saberes” (p.13).
no etc. Deslocando a questão do aluno que não
aprende para a escola que não ensina, seus segui- Considerando os aspectos relativos aos alunos e
dores pretendem uma modificação na estrutura e suas famílias e aqueles relativos à escola, passaremos, na
organização da escola, a fim de que essa institui- próxima seção, à discussão de possibilidades de promo-
ção cumpra seu papel social (SENA, 1999, ção do sucesso escolar numa visão interativa dos proces-
p.74/75). sos de ensino-aprendizagem.
vista tanto dos alunos quanto das escolas. Partimos, Estudos Sociais somente eram estudados quando o
então, do pressuposto de que a escola é uma instituição tempo permitia. A partir de setembro iniciou-se a pro-
organizada, burocratizada, segmentada, gradeada dução de textos individuais e coletivos, sempre com a
(ARROYO, 1997), cuja estrutura e funcionamento pre- ajuda da professora. Ressaltar a importância da ajuda
cisam ser analisados juntamente com os aspectos refe- da professora é fundamental, pois os alunos necessitam
rentes à singularidade dos alunos – singularidade que é deste suporte para, então, individualmente produzirem
construída nos grupos socioculturais aos quais perten- os próprios textos. É importante que as professoras
cem na relação com os outros, com o mundo e consigo interajam com seus alunos, permitindo-lhes a criação
mesmos (CHARLOT, 2000). Não podemos discutir e de textos coesos e coerentes em que os conhecimentos
analisar a estrutura e funcionamento das escolas sem fonéticos, sintáticos e semânticos possam se manifestar,
relacioná-los com os alunos que ali estudam, ou seja, mesmo que os “erros” apareçam e sirvam de pistas para
com seus pertencimentos étnicos, de classe social, gêne- se ensinar e aprender mais e sempre mais, consideran-
ro, religião, enfim com seus pertencimentos sociocultu- do-se a Zona de Desenvolvimento Proximal, descrita
rais e econômicos que fazem deles seres singulares e por Vygotsky, vista aqui como recurso para criar, obter
sociais. Dessa forma, ao discutirmos possibilidades de e comunicar sentido para e com as crianças acerca do
sucesso escolar, estaremos discutindo histórias de alunos que lêem e escrevem. “Elas vão interiorizando os pro-
que vivenciaram fracasso e sucesso e as causas de tais pro- cessos sociais e culturais que passam a existir dentro
cessos. Estaremos considerando o caráter histórico da delas, como atividades mentais, as quais, por sua vez,
produção desses fracassos e sucessos (PATTO, 1990). vão permitir-lhes maneiras próprias de pensar, de sen-
Estive pesquisando dentro de uma sala de aula
de alfabetização, durante o ano de 1993, e presenciei
cenas de interação entre professora e alunos que nos
sugerem reflexões importantes acerca da promoção ou
É necessário que tomemos
não do sucesso escolar. Dentro da sala de aula estavam
26 alunos, a professora, a pesquisadora e, durante dois consciência das explicações que
meses, havia uma estagiária de magistério. As crianças
elaboramos para justificar as histórias
dessa sala moravam numa favela vizinha à escola, não
haviam freqüentado o pré-escolar, em sua grande maio- de sucesso e de fracasso, pois
ria. A rotina de ensino-aprendizagem da leitura e da
podemos reproduzir ideologias e
escrita seguiu o seguinte parâmetro:
– cópia da ficha completa; crenças que isentam as escolas da
– cópia das famílias silábicas e de palavras for- responsabilidade sobre essas
madas com as famílias silábicas;
– ditado das letras, sílabas, palavras e frases trei- histórias.
nadas;
Depois da merenda, iniciavam-se exercícios de
Matemática, Ciências e Estudos Sociais. Ciências e
tir, de memorizar, de aprender” (VYGOTSKY, 1989). aula, como, por exemplo: projetos específicos para
Nessa perspectiva, o aprendizado é fundamental para atender aos diferentes estudantes; períodos específicos
o desenvolvimento dos seres humanos que, para para tutoria de pequenos grupos, em função de difi-
Vygotsky, se baseia na interação social, na interferên- culdades específicas, visando a avanços ou ajustes dos
cia direta e indireta de outros indivíduos e na recons- fluxos dos alunos em séries ou ciclos. Implica conside-
trução pessoal da experiência e dos significados (OLI- rar que o conhecimento é construído nas interações
VEIRA, 1993). sociais de sala de aula e que os alunos têm tempos, rit-
É necessário que tomemos consciência das mos e formas diferentes de aprender. Implica conside-
explicações que elaboramos para justificar as histórias rar, nas propostas pedagógicas e metodologias de ensi-
de sucesso e de fracasso, pois podemos reproduzir no-aprendizagem, a singularidade, as particularidades
ideologias e crenças que isentam as escolas da respon- dos estudantes e, portanto, dos grupos socioculturais
sabilidade sobre essas histórias. aos quais pertencem. Implica também a construção de
Precisamos também levar em conta o processo diversas metodologias de trabalho que possibilitem a
de construção dos conhecimentos escolares de nossos diferentes alunos o envolvimento com o conteúdo
alunos e professores, seus conhecimentos prévios sobre estudado; metodologias que considerem tanto os
os conteúdos estudados, pois estudantes e professores conhecimentos procedimentais (experimentos, realiza-
são sujeitos históricos e culturais. A própria instituição ção de entrevistas, excursões) quanto os conceituais -
escolar é um produto histórico, cultural, e age numa resolução de exercícios, escrita de relatórios, cálculos,
trama de complexos processos socioculturais. leitura, interpretação e produção de textos (GOMES,
Falar de cultura escolar, de acordo com Arroyo 2004).
(1997), supõe que “os diversos indivíduos que nela De acordo com Sena (1999), é fundamental que
entram e trabalham adaptam seus valores aos valores, os educadores estimulem a produção dos alunos, não
às crenças, às expectativas e aos comportamentos da recalcando sua curiosidade intelectual e, dessa forma,
instituição. Adaptam-se à sua cultura materializada no possibilitando-lhes serem leitores críticos e autores de
conjunto de práticas, processos, lógicas, rituais consti- seu próprio texto e, finalmente, sujeitos implicados
tutivos da instituição” (p.17). Pensar em possibilida- em seu processo de escolarização.
des para se obter sucesso escolar pressupõe um traba- Enfim, para conseguirmos o sucesso escolar de
lho coletivo em que todos que estão responsáveis pelos nossos estudantes, precisamos aliar as informações
alunos se envolvam na busca de soluções, e não apenas pedagógicas, pessoais, sociais e culturais que temos
que os professores tentem isoladamente, em suas salas, sobre eles com as metodologias e propostas pedagógi-
ensinar a seus alunos os conteúdos escolares. Implica cas que levem em conta seus processos de construção
quebrar a estrutura rígida da cultura escolar, organizar dos conhecimentos e que rompam com a estrutura
tempos e espaços de ensino-aprendizagem alternativos rígida da cultura escolar, seja em escolas públicas ou
aos já existentes nas escolas. Implica também construir em escolas particulares.
situações de ensino-aprendizagem que considerem as
diferentes produções dos diferentes alunos nas salas de
FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da SOARES, Magda B. Linguagem e Escola: uma perspectiva
leitura e da escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. social. São Paulo: Ática, 1986.
FIJALKOW, Jacques ¿Malos lectores por que? Madrid: TERIGI, Flávia & BAQUERO, Ricardo. Repensando o fracas-
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ICZ,Anete & MOLL, Jaqueline (Orgs.) Para além do fracasso
GOMES, Maria de Fátima Cardoso. Chico Bento na escola: escolar. Campinas: Papirus, 1997.
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“bons” alunos e suas representações. Dissertação de TORT, M. O quociente intelectual. Lisboa: Notícias, 1976.
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VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente: o desenvolvi-
GOMES, M.F.C. & SENA, Maria das Graças de Castro mento dos processos psicológicos superiores. São Paulo:
(Orgs). Dificuldades de Aprendizagem na Alfabetização. Belo Martins Fontes, 1989.
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