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“EU NÃO SEI ESCREVER!


O QUE IMPEDE UM ALUNO DE SE ALFABETIZAR NA IDADE
CERTA

Marlene Maria Machado da Silva 1 - FAE/UFMG

Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Este artigo pontua algumas iniciativas educacionais brasileiras, vivenciadas nos últimos 25
anos, na tentativa de responder ao fracasso escolar de um grupo de alunos. Uma das primeiras
foi em 1990 quando participei de um curso destinado à divulgação da Psicogênese da Língua
Escrita. Tal iniciativa configurou-se em um marco no conhecimento sobre como a crianças se
alfabetiza. Em seguida, apresentarei o trabalho desenvolvido em uma escola especial de Belo
Horizonte, no atendimento e acompanhamento de alunos com deficiência, em seu processo de
integração, durante no período de 1995 a 2000. Esta vivência proporcionou o conhecimento
do que é particular nas dificuldades de alfabetização, de quem possui uma deficiência mental.
Posteriormente, o relato da experiência de, em 2005, retornar para uma escola regular e
trabalhar com uma turma projeto, destinada aos alunos de 2º ciclo com problemas de
comportamento e aprendizagem, tratará a discussão dos diferentes fatores que compõem o
currículo na abordagem das dificuldades de aprendizagem. Através dos relatos demostro
como que as referências teóricas foram se introduzindo e contribuindo na mudança de minhas
intervenções pedagógicas, principalmente quanto à escuta dos alunos quanto às suas
dificuldades de alfabetização. Se no início, o que prevalecia era mais a intuição, no decorrer
dos anos, as reflexões teóricas guiavam a prática e, esta, fazia um retorno, na busca de algo
mais. Na dinâmica ação/reflexão/ação, localizarei a temática e descobertas que fiz durante o
mestrado, a partir dos dizeres dos alunos sobre seus impasses na alfabetização, com a
utilização do nome próprio. Tais descobertas foram confirmadas através da atuação como
membro do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação. Finalmente,
explicito como que, os relatos apresentados, constituíram a elaboração do projeto de pesquisa
do doutorado, o qual consiste em investigar o que impede uma criança de se alfabetizar na
idade certa.

Palavras-chave: Alfabetização. Fracasso Escolar. Subjetividade. Formação Docente.

1
Mestre em Educação pela FAE/UFMG, Professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, membro
do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação-NIPSE/FAE/UFMG. Realiza estudos sobre as
dificuldades do processo de alfabetização, principalmente aquelas relacionadas às questões de inibição
intelectual. E-mail: marlenem@pbh.gov.br.

ISSN 2176-1396
42322

Introdução

Durante quase 30 anos de trajetória profissional, atuando com alunos de escolas da


periferia, tive várias oportunidades para dialogar com produções cientificas que tentavam
investigar e explicar o fenômeno do fracasso na alfabetização. Na prática, foi possível
vivenciar a dificuldade em alfabetizar todos os alunos que estavam sob minha intervenção
pedagógica e de colegas, que comigo compartilhavam suas angústias. Algumas destas
experiências e estudos foram fundamentais para a delimitação do objeto de pesquisa do
doutorado e serão apresentadas nos três itens deste relato.
O primeiro, denominado Na prática, a teoria é a mesma aborda a questão da simetria
entre estas, demonstrando como que, mesmo guiada pela intuição, a prática de uma
alfabetizadora é norteada por teorias. Neste item, relaciono as contribuições de pesquisas que
pretendem explicar as possíveis causas do fracasso na alfabetização, com a minha trajetória
profissional, em particular, como professora alfabetizadora. O segundo, intitulado As
pesquisas sobre aqueles que fracassam, apresenta as reflexões teóricas sobre o fenômeno do
fracasso escolar e alguns de seus efeitos; o relato da entrada no mestrado e as descobertas, a
partir dos dizeres dos alunos, sobre os impactos pedagógico e subjetivo do uso do nome
próprio no processo de alfabetização; a trajetória como pesquisadora do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação – NIPSE/FaE/UFMG (antes mesmo
do encerramento do mestrado), o que os alunos nos ensinaram sobre suas dificuldades na
alfabetização e, por fim, como tais experiências constituíram o objeto de investigação do
doutorado, título deste texto. O terceiro apresenta Considerações Finais.

Na prática, a teoria é a mesma

Uma das primeiras experiências como alfabetizadora foi em 1990, quando fui
selecionada para participar do curso Por uma alfabetização sem fracasso 2, o qual tinha como
objetivo a capacitação de aproximadamente trezentos profissionais da alfabetização e, ao
mesmo tempo, a construção de um modelo de capacitação docente que pudesse ser utilizado
por esses multiplicadores, mas não só por eles (WEISZ, 1992, p. 13). Este curso foi
ministrado pela educadora Telma Weisz, uma das precursoras da pesquisa de Emília Ferreiro

2
Este curso foi parte integrante de um projeto mais amplo que se desenvolveu durante quatros anos (1988-1991)
no âmbito do Sistema Estadual de Educação Pública de São Paulo.
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sobre a Psicogênese da Língua Escrita no Brasil. Na época, os resultados e descobertas de tal


pesquisa produziu uma mudança radical na concepção que se tinha de alfabetização e,
consequentemente, de suas práticas (FERREIRO, 1985).
Trabalhar com alunos de 7 anos, enturmados no primeiro ano do ensino fundamental,
foi condição para participação do curso, uma vez que durante um ano iríamos ler e analisar o
livro Psicogênese da Língua Escrita (FERREIRO, 1985); reaplicar os testes realizados por sua
autora, com um grupo de alunos com os quais trabalharíamos e gravar e analisar as aulas para
refletirmos sobre os efeitos de nossas intervenções pedagógicas, sobre o processo de
alfabetização de nossos alunos. Ao final do ano, dos 30 alunos da minha turma, os quais não
haviam frequentado a educação infantil, 25 já dominavam a base alfabética, 4 ainda
utilizavam a hipótese silábico-alfabética para produção de suas escritas e 1 aluno não
conseguia avançar da hipótese pré-silábica (FERREIRO, 1985). Na época, levantava-se a
hipótese da não alfabetização de alguns alunos ser decorrente de algum tipo de deficiência
mental. Ao longo dos primeiros cinco anos, trabalhei com turmas de alfabetização do ensino
fundamental e da educação de jovens e adultos, repetindo-se a situação de um grupo de alunos
ainda não se encontrava alfabetizado, ao final do ano.
Em 1995, mudando para a cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, fui trabalhar na
Rede Municipal de Ensino, numa escola de educação especial. Nesta escola, atuei no Serviço
de Atendimento Complementar-SAC responsável pelo acompanhamento pedagógico dos
alunos que eram integrados na rede regular de ensino. No SAC tive a oportunidade de
trabalhar com alfabetização de alunos com deficiência mental, podendo constatar que as
respostas postuladas na psicogênese da língua escrita se confirmavam no processo de sua
alfabetização. A diferença, entretanto, estava relacionada ao tempo de elaboração de suas
hipóteses cognitivas, a consciência que tinha do seu processo de aprender e a dificuldade em
trabalhar com metáforas e com representações que necessitassem de maior abstração.
Entretanto, havia alguns alunos que, independente da marca da deficiência sob a qual estavam
submetidos, demonstravam impasses no fazer pedagógico que sugeriam ser de uma outra
ordem, que não processual ou oriunda de uma deficiência.
Outro aspecto que compunha este trabalho era visitar as escolas dos alunos integrados.
Nestas visitas, ouvia as queixas de seus professores e observava que havia uma tendência das
escolas em agrupar todos os alunos problemas numa mesma sala, denominada “turma-
projeto”, como alternativa para não comprometer as demais turmas e tentar garantir que, no
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mínimo, estes alunos conseguissem se socializar. Trabalhar com uma turma considerada
“projeto” se apresentou como um novo desafio, o qual se concretizou e foi registrado, por
mim, em 2005 através do artigo “Os alunos da sala 11” (SILVA, 2006, p. 17).
A turma da sala 11 era compota de 22 alunos entre 9 e 10 anos, enturmados no 2º ano
do 2º ciclo. Esta sala era considerada “turma projeto” porque os alunos apresentavam
extremas dificuldades no processo de aprendizagem, além de problemas de indisciplina e
comportamento. Eram extremamente agitados e por qualquer motivo davam chutes, socos, se
agredindo física e moralmente. Os alunos apresentavam resistência a qualquer proposta,
alegando que eram burros, não sabiam nada e não adiantava aprender. Tinham dificuldades de
aceitar qualquer tipo de intervenção. A reação deles era a mesma diante de um elogio ou da
intervenção sobre um erro. Cristalizados sob o estigma de “crianças-problemas” (PATTO,
2000), não conseguiam acreditar na própria possibilidade de mudanças e capacidade para
aprender.
Com relação à aprendizagem, os alunos demonstravam grandes dificuldades e
resistência para se expressarem através da linguagem oral e/ou escrita. A linguagem corporal
era a que prevalecia como mediadora em sua relação com colegas, adultos e com o próprio
conhecimento.
Segundo Cordié (1996), a criança diante da situação de fracasso escolar

[...] reage por meio de distúrbios do comportamento. Para compensar seu fracasso,
ela procura se fazer notar por outros meios que não os escolares [...]. As condutas
desviantes, se se perpetuarem, acentuam a rejeição. Da rejeição escolar, com a
revolta que se segue a ela, chega-se à rejeição social com as atitudes de
marginalização e de delinquência. O jovem desde agora se fez uma “reputação”,
alguma coisa da qual lhe será muito difícil sair foi fixada (p. 33).

Um grande desafio para o trabalho com alunos de turmas heterogêneas é ajudá-los a


reconhecer e aceitar suas diferenças, ao mesmo tempo em que constroem algo em comum que
os unifiquem naquele espaço, tempo e produção de conhecimento (CIAMPA, 1994).
A iniciativa da escola de enturmar os alunos com problemas disciplinares e de
aprendizagem em uma mesma sala, com o objetivo de desenvolver um trabalho que atendesse
a suas necessidades, acabou por reforçar uma imagem negativa destes para com eles mesmos,
com a escola e seus familiares.
Segundo Correa & MacLean (1999),
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O impacto que a escola exerce na vida da criança vai além do relacionado ao seu
desenvolvimento intelectual. A entrada na escola introduz a criança em outro
contexto social, no qual um novo papel lhe é reservado e novas expectativas lhe são
atribuídas acerca de seu próprio desenvolvimento (p. 02).

Nesse sentido, era extremamente importante criar espaços e tempos para os alunos
expressarem seus pensamentos e sentimentos na tentativa de romperem com uma autoimagem
negativa e voltarem a acreditar na sua capacidade de aprender. Com isso, esperava que eles se
abrissem para a (re) construção de novas perspectivas do trabalho escolar. Isso porque, como
assevera Ciampa (1994):

[...] só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como


representante de meu ser real quando ocorrer a negação da negação, entendida como
deixar de presentificar uma apresentação de mim que foi cristalizada em momentos
anteriores –deixar de repor uma identidade pressuposta –ser movimento, ser
processo... (p. 70).

Para tanto, juntamente com outro professor que trabalhava com esta turma, desenvolvi
um projeto pedagógico com o qual procurava abordar as várias facetas que compõem um
currículo (SILVA, 1999): a avaliação participativa e formativa; a construção da rotina
pedagógica com a participação dos alunos; a busca de uma relação diferente com as famílias,
recuperando a sua crença na capacidade de seus filhos aprenderem os conhecimentos
ensinados na escola; a utilização das várias formas de linguagem e a ressignificação dos
conteúdos utilizando-os a serviço da experiência escolar dentre outras questões. Nosso
objetivo era considerar os alunos como sujeitos corresponsáveis pelo processo de ensino-
aprendizagem.
Ao final do semestre, os alunos haviam modificado sua relação com o conhecimento e
somente três alunas ainda não dominavam a base alfabética da escrita. Mais uma vez, um
grupo de alunos não conseguiu avançar na alfabetização, como os demais colegas. Essa
situação somada às leituras, reflexões e diálogo com colegas de escola, possibilitaram
constatar que os alunos que não avançavam demonstravam ter o intelectual preservado e, por
isso, não acreditávamos se tratar de dificuldades inerentes a algum tipo deficiência, as quais
seriam a resposta para a sua não alfabetização. Surge então a hipótese de que as dificuldades
poderiam ser de ordem emocional, uma vez que em determinadas situações, tais alunos
conseguiam apresentar respostas diferentes das habituais. Outro aspecto observado por mim e
também relatado pelos professores, com os quais conversava, é que percebíamos que os
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alunos que não se alfabetizavam também não sabiam ler e escrever seu nome ou se recusavam
a fazê-lo; no entanto, não conseguíamos avaliar e compreender o porquê de tal fenômeno.

As pesquisas sobre aqueles que fracassam

Com o aumento do público das escolas, a partir do processo de universalização do


ensino, conviver com diferentes ritmos de aprendizagem passou a ser um desafio do cotidiano
escolar. Várias pesquisas surgiram na tentativa de explicar as diferenças de ritmos de
aprendizagem que, com o tempo, foram sendo nomeadas de fracasso escolar. Em decorrência
dessas pesquisas, algumas hipóteses surgiram na tentativa de interpretar tal fenômeno, dando
origem a diferentes abordagens, tais como: Organicista, Instrumental Cognitivista, Afetiva,
Questionamento da escola e “Handicap” Sociocultural3.
Segundo Santiago (2005), nessas abordagens, as dificuldades de aprendizagem, ao
serem submetidas ao discurso científico, acabam marcadas por um ato diagnóstico que,
embora se mostre oscilante entre uma “patologia” e uma “disfunção”, não vacila em
prescrever um déficit para o aluno avaliado (p. 13).
Angelucci et al. (2004) em sua produção sobre o estado da arte das pesquisas sobre
fracasso escolar revelou o surgimento de novas abordagens e mudanças de perspectivas: da
explicação localizada no aluno e seus familiares; passou-se a considerar os aspectos e sujeitos
envolvidos no processo escolar, como um todo.
Segundo a autora, essas novas abordagens apresentam o fracasso escolar como sendo
um problema de ordem psíquica, técnica, institucional ou política. A autora afirma que surge
uma ruptura epistemológica, pois do conhecimento sobre a criança fracassada, o professor
incompetente, as famílias desestruturadas, as pesquisas passam a incorporar a fala dos alunos,
dos profissionais da escola, das famílias, numa proposta de resgate da legitimidade de seus
saberes, experiências e percepções.
A existência de diversas possibilidades explicativas para o fenômeno do fracasso
escolar indica a necessidade de cautela ao diagnosticar as dificuldades e os problemas
apresentados pelos alunos, uma vez que não existe uma única explicação para todos os casos
de alunos que fracassam no propósito de aprendizagem escolar (BATISTA, 2005).

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Não pretendo discorrer sobre as diferentes abordagens sobre as causas do fracasso escolar, pois já há uma
bibliografia extensa sobre o tema.
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As situações de fracasso escolar produzem nos alunos, um sentimento de impotência e,


como defesa, a sua saúde mental exige que eles se desinteressem das atividades escolares,
pois é da condição humana não suportar o fracasso continuo (WEISZ, 2006). Este mesmo
sentimento pode ser observado nos discursos de um número significativo de professores
quando relatam não suportar a situação em que se encontram na sala de aula ao perceberem
que seu saber-fazer pedagógico não é suficiente para atrair a atenção de seus alunos e ensiná-
los.
Uma possível saída para tal situação de impotência se encontra na afirmação de
Santiago (2005), quando diz que é preciso que o aluno não seja visto como mero objeto do
conhecimento, mas sujeito do processo ensino-aprendizagem, o qual tem o que dizer sobre
seus impasses, suas dificuldades. Ainda, segundo a autora, nas diferentes abordagens que
tentam explicar o fracasso escolar, o que se instaura é o “paradoxo de uma avaliação que,
isolando o indivíduo fracassado do grupo dos escolarizáveis, sabota e inviabiliza seu próprio
objetivo de readaptação da criança” (p. 42). Assim sendo, é fundamental considerar e
compreender a singularidade dos alunos, pois há um grupo significativo que nos diz, através
das avaliações sistêmicas e dos índices de alfabetização, que há algo que escapa aos modelos
e estereótipos do que seria esperado como dificuldades próprias do processo de aquisição da
língua escrita.
Nesse sentido, as contribuições da Psicanálise têm se apresentado como fundamentais
para compreender os dizeres dos alunos, que fracassam em sua aprendizagem, sobre seus
impasses. Este novo diálogo teórico justificou e subsidiou a pesquisa de mestrado desta
autora: “Entre a letra e o nome: alfabetização de alunos em situação de fracasso escolar a
partir de intervenção de orientação psicanalítica”. (SILVA, 2008).
A hipótese formulada era de que poderia haver algo da subjetividade do aprendiz da
língua se fazendo presente como sintoma de fracasso escolar. A coleta de dados ocorreu
utilizando o diagnóstico clínico-pedagógico, de inspiração psicanalítica, o qual nos
proporcionou investigar as dificuldades de alfabetização de 8 alunos, entre 8 e 11 anos,
indicados por seus professores, por ainda não se encontrarem alfabetizados. As investigações
constataram que, no caso de alguns alunos, o processo de alfabetização a partir da escrita do
nome próprio, toca em algo da sua subjetividade, fazendo com que estes se encontrem
capturados pelo sentido que atribuem às letras do seu nome. Desta maneira, eles não
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conseguem utilizar as letras esvaziadas de sentido, como afirma Lacan (1962), ou somente
como letras que são, segundo Ferreiro (1982), para a produção de outras palavras.
O resultado da pesquisa do mestrado pode ser confirmado durante minha participação
no Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanalise e Educação-NIPSE, realizando
intervenção pedagógica com alunos de escolas da Rede Municipal de Ensino de Belo
Horizonte, no período de 2007 a 2010. Esta intervenção fazia parte do projeto de parceria
entre o NIPSE e a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte com o objetivo de
intervir junto às escolas que apresentaram Índice de Desenvolvimento da Educação Básica -
IDEB, abaixo do esperado. O projeto era composto de várias ações, tais como: conversação
com professores; conversação com turmas de alunos; entrevistas clínicas; entrevista com
familiares, teatro-conversação com jovens e intervenção pedagógica. Todas as ações eram
circunscritas sob orientação psicanalítica.
No caso das ações direcionadas aos alunos, estes eram indicados por seus professores
e pela coordenação por apresentarem grandes dificuldades de aprendizagem e
comportamento. Alguns alunos somente participaram da entrevista clínica ou da intervenção
pedagógica. Porém, houve aqueles que, a partir de uma ou outra ação, participaram das duas.
Um princípio que conduzia a intervenção pedagógica era não ter acesso ao que de singular era
apresentado pelo aluno durante as entrevistas clínicas, evitando-se, assim, a contaminação da
intervenção pedagógica pelo discurso clínico. A intenção era que, mesmo inconscientemente,
não ocorresse um processo de enquadramento dos dizeres dos alunos ao quadro clínico por
parte da pesquisadora.
A intervenção pedagógica foi realizada com aproximadamente 180 alunos, entre 8 e
15 anos, de 6 escolas das periferias de Belo Horizonte. Os alunos participantes da intervenção
pedagógica eram indicados por seus professores devido apresentarem grandes dificuldades na
alfabetização ou, ainda, não estarem alfabetizados. A princípio, o número de indicados foi
maior, entretanto, diante de uma lista de indicação, realizava-se uma avaliação para identificar
o nível de escrita destes alunos, priorizando aqueles que ainda não dominavam a base
alfabética da escrita. A média era de 30 alunos por escola, divididos em grupos de 3 a 6, em
cada. A intervenção ocorria semanalmente e, quando necessário, eram realizados encontros
individuais.
Uma marca recorrente nos dizeres da maioria dos alunos era acreditarem que não
sabiam nada e erravam tudo. A simples intervenção pedagógica, com o objetivo de mostrar
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aos alunos em que seus pensamentos sobre a escrita estavam corretos, bastava para mudar,
significativamente, suas respostas nas atividades posteriores. A possibilidade de se verem
capazes de aprender levou os alunos a apresentarem seus impasses de ordem pedagógica. As
questões mais recorrentes foram:
a) demonstrar desconhecimento da função social da escrita;
b) demonstrar desconhecimento sobre a relação fonema/grafema;
c) não saber diferenciar o que seria sílaba e palavra. Esta ideia encontrou eco na
pronúncia acentuada das sílabas;
d) não saber a diferença entre palavra oral e escrita;
e) demonstrar desconhecimento das letras do alfabeto e do que seria ordem alfabética;
f) apresentar a ideia de que cada sílaba é representada por uma única letra (antes) ou por
duas (pós domínio da base alfabética), como se prosseguissem na hipótese silábica da
construção da escrita;
g) compor as sílabas oral e corretamente, mas registrá-las de maneira silábica;
h) utilizar o nome da letra para representar uma sílaba;
i) escrever as palavras utilizando as sílabas canônicas ou regularizando as não-
canônicas;
j) utilizar os diferentes traçados de letra: impressa maiúscula e minúscula e cursiva,
como se fossem línguas distintas. Aqui encontrou-se o ponto de resistência à
aprendizagem da maioria dos alunos e um aspecto que interferia, substancialmente, na
maneira de utilizarem seus conhecimentos sobre o código escrito, no momento de suas
produções;
k) demonstrar existir diferença entre nomear e identificar as letras. Este foi um
ensinamento específico de um aluno que nos mostrou que era possível identificar as
letras e suas funções na construção das palavras sem, no entanto, saber nomeá-las.
Mesmo não tendo as condições de intervenção pedagógica adequadas, com que o
diagnóstico clínico-pedagógico foi realizado na pesquisa do mestrado, foi possível observar
que alguns impasses dos alunos, sob minha intervenção pedagógica, eram de uma outra
ordem que não a conceitual-pedagógica.
Diante do impasse para escrever, ao serem questionados, cerca de 90% dos alunos,
além de terem grandes dificuldades na alfabetização, apresentaram impasses na leitura ou
escrita do seu próprio nome, além de desconhecerem várias informações contidas em sua
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certidão de nascimento. Esse dado equivale àqueles identificados durante a pesquisa do


mestrado e corrobora com a afirmação de Ferreiro (1982) sobre a escrita do nome próprio ser
fundamental no processo de alfabetização e ainda se constituir na diferença drástica entre a
evolução psicogenética da aquisição da escrita entre crianças de classe média e classe baixa.
Segundo a autora, neste último caso, se a aquisição da escrita do nome próprio não for
aprendida na escola, os alunos ficarão na penumbra, por não terem a quem recorrer. Esta
situação pode configurar-se como fracasso escolar, porém sob sintoma de uma possível
inibição intelectual (SANTIAGO, 2005).
Segundo Soares (2006), há duas condições fundamentais para que o aprendiz tenha
acesso ao mundo do conhecimento: o domínio da tecnologia da escrita (sistema alfabético e
ortográfico) e o domínio de competências de uso dessa tecnologia (saber ler e escrever em
diversas situações e contextos). Entretanto, o que os alunos participantes da pesquisa de
mestrado, somados àqueles participantes da intervenção pedagógica do NIPSE nos ensinaram
através dos seus dizeres, em análise com as contribuições de Ferreiro (1982) e Lacan (1962), é
que haveria uma condição, anterior, necessária para serem capazes de ter acesso ao código
escrito, a saber: utilizarem as letras de seu nome próprio, como significante puro. Para tanto,
seria necessário que os alunos esvaziassem, ou não atribuíssem às letras do seu nome próprio,
o sentido inconsciente, do que supõem sobre a posição que ocupam no desejo do par parental,
para utilizá-las em suas produções escritas.
Neste sentido, considerando que os alunos investigados durante o mestrado já se
encontravam em situação de fracasso na alfabetização e não conhecíamos como ocorreu o
acesso deles ao processo de domínio da construção da língua escrita é que se constituiu o
objetivo da pesquisa de doutorado desta autora, o qual pretende identificar o que impede um
aluno de se alfabetizar, na idade certa. Para tanto, a pesquisa consiste em acompanhar,
sistematicamente, o acesso dos alunos ao domínio da tecnologia da escrita e do
desenvolvimento da competência de seus usos e funções no 1º ano do 1º ciclo; oferecer a eles,
atividades pedagógicas especificas sobre o nome próprio, compatíveis às questões
apresentadas durante o mestrado, ao longo deste 1º ano; identificar, após o primeiro ano de
alfabetização, se algum aluno ainda apresenta dificuldades para avançar no processo de
domínio da base alfabética da escrita; identificar os impasses destes diante da dificuldade de
realizar atividades de alfabetização, através da participação do diagnóstico clínico-
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pedagógico; analisar a partir de seus dizeres, de que ordem seriam seus impasses para se
alfabetizarem e intervir sobre aqueles que sugerirem ser de ordem conceitual-pedagógica.
O diagnóstico clínico-pedagógico somente será aplicado quando o aluno apresentar
algo de particular na realização das atividades do processo de alfabetização a tal ponto que o
impeça de avançar. O referido diagnóstico, de inspiração psicanalítica, tem por objetivo
“identificar o estatuto da dificuldade em duas esferas distintas: uma conceitual-pedagógica e
outra relativa à economia subjetiva do aluno”. (SANTIAGO, 2005, p. 29).

O método é inspirado na clínica psicanalítica, na medida em que a criança é


interrogada sobre sua dificuldade, tal como se interroga alguém a respeito de seu
sintoma. Nessa perspectiva, busca-se esclarecer a trajetória intelectual que a criança
desenvolve na solução de uma tarefa, até o ponto preciso de seu impasse
(SANTIAGO, 2005, p. 29).

Segundo Santiago, a condução desse processo do diagnóstico clínico-pedagógico,


somente é possível se aquele que o realiza, no caso, pedagogo ou educador, se despojar do
“lugar tentador de mestre” e se colocar na “posição de não-saber diante do outro“ (2005, p.
29). Será preciso acreditar que o dizer da criança é que poderá indicar possibilidades de
intervenções que, efetivamente, possam ajudar na construção de uma saída possível para seu
impasse e sua dificuldade.
Santiago afirma que antes de uma intervenção analítica que visa o sintoma
inconsciente, é importante que seja realizado este diagnóstico clínico-pedagógico com o
objetivo de identificar “o processo particular do sujeito diante da apreensão daquilo que é da
ordem da lei do significante e do arbitrário do sentido”. (2005, p. 26). Tal diagnóstico permite
que a questão da criança seja desvelada pela palavra e não apenas falada por meio de uma
dificuldade de aprendizagem (idem, 2005, p. 41).
O diagnóstico clínico-pedagógico exerce uma função clínica, ao possibilitar que a
criança fale sobre seu sintoma, assim como o analisante fala ao analista. Entretanto, quem o
aplica, sempre que necessário deve nomear o impasse e dar informações que ajudem a criança
a se (re) posicionar diante dele, sem, no entanto, realizar algum tipo de interpretação clínica.
A proposta de investigar o que impede uma criança de se alfabetizar na idade certa,
trabalha sob duas perspectivas temporais para a expressão idade certa: (a) período destinado a
alfabetização e (b) momento certo para investigar o surgimento das primeiras dificuldades
para o aluno se alfabetizar. A ideia é intervir logo no início do surgimento das dificuldades, ao
invés de investigá-las, quando já cristalizadas sob estigma de fracasso escolar.
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Considerações Finais

Considero ser de extrema importância às contribuições acadêmicas sobre o processo


de alfabetização, as possíveis causas do fracasso escolar, a constituição psíquica do sujeito e
as dimensões que compõem o processo ensino-aprendizagem, porém, os alunos participantes
da pesquisa do mestrado, juntamente com os do projeto do NIPSE nos ensinam que é em seus
dizeres que tais produções ganham sua real dimensão e contribuição.
Avalio que as contribuições da Psicanálise, em diálogo com a Educação, têm se
colocado como um terreno fecundo a ser investigado à luz do que os alunos têm a dizer sobre
seus impasses para aprenderem. O grande desafio é acreditarmos que, de fato, o aluno é
sujeito do seu processo de alfabetização e, como tal, tem um saber a ser apresentado sobre
suas dificuldades. Para tanto, basta que saibamos ouvir o que ele tem a nos dizer.

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