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Resenha - Territorialidade: trajetória e usos do conceito – Emília Pietrafesa de Godoi

Emilia Pietrafesa de Godoi é professora doutora do departamento IFCH/UNICAMP e tem

vasta experiência em antropologia rural, principalmente em com relação aos temas: populações

rurais, direitos, etnicidade, memória social, terra e território. Escreveu este artigo na ocasião de uma

conferência de abertura do I Seminário do Laboratório de Estudos sobre Tradições. Ocasião em que

busca revisitar o debate teórico acerca do conceito de territorialidade e seus associados

territorialização, desterritorialização, reterritorialização. Uma vez que nas últimas décadas o

conflito causado pela pressão sobre territórios de populações que constroem seus espaços de vida

sob lógicas não hegemônicas, “levou à organização dessas populações, com o apoio de mediadores

como organizações não governamentais, igrejas e sindicatos forçando o Estado a reconhecer dentro

do seu marco legal a existência de territorialidades específicas”. Como é o caso do reconhecimento

de direitos territoriais coletivos de comunidades negras descendentes de quilombos.(pg.12)

Utilizado amplamente em vários campos do conhecimento o conceito de territorialidade

tem a primeira discussão mais densa no campo da Etologia preocupada em descrever o

comportamento animal e suas formas de acomodação ao ambiente. Ao migrar para ciências

humanas o conceito a princípio carrega vários ecos do debate Etológico, mas logo passa a ser um

conceito polissêmico devido a sua grande importância em diversos campos de estudo.

Segundo Godoi outras características do conceito na antropologia são: a pluralidade pois

remete aos processos de construção de territórios e portanto a “apropriação, controle, usos e

atribuição de significados – não necessariamente nessa ordem - sobre uma parcela do espaço que é

transformada em território”(p.9); Consequentemente territorialidade não diz respeito apenas a

materialidade mas as relações sociais que o conformam; E por último sua forma não é dada apenas

por sua inscrição no espaço físico, mas narrativamente também, pois é organizado discursivamente.

Ao encarar territorialidades como processos de construção de territórios a autora enfatiza o caráter

processual, ou seja, sua permanente conformação. Tal ênfase no processo permite uma distanciação

das noções de “espaço ou espacialidade, ou como simplesmente 'fonte de recursos' disputados ou,

ainda, de elementar 'apropriação da natureza'”(p.10).

Para discutir sobre territorialidades é incontornável o debate sobre território, a noção mais
difundida de território se refere às relações político-jurídicas, nesta concepção muitas vezes a

dimensão política fica restrita ao papel do Estado, ignorando a contribuição das dimensões

econômica e cultural das sociedades resultando em um entendimento que associa diretamente a

noção de território às práticas territoriais dos Estados-nação. De fato o surgimento do Estado-nação

promove uma série de territorializações, a começar pelo controle exercido sobre uma área

geográfica, e a classificação de pessoas segundo seu lugar de nascimento, atrelando a existência

legal dos indivíduos a sua condição territorial nacional. Outras formas de Estado como o colonial

também promovem processos de territorialização, como lembra a autora dos “aldeamentos

indígenas associados a missões religiosas no Brasil, já na segunda metade do século XVII e nas

primeiras décadas do século XVIII”.(p.11) Porém esta noção de território não leva em conta os

efeitos da a organização físico-espacial que passa a ser imposta com o surgimento do Estado-nação,

pois conforme se torna hegemônica esta forma invisibiliza, deslegitima e dificulta uma

multiplicidade de territorialidades que não são baseadas em leis e títulos, territórios não são

orientados segundo a noção de público e privado, mas por práticas costumeiras que incorporam as

dimensões simbólicas e identitárias se valendo da memória coletiva para atribuir profundidade

temporal aos territórios. Ou seja, a imposição da organização físico-espacial do Estado implica no

não reconhecimento “de direitos sobre um espaço de vida e trabalho, produzindo o que muitos

autores qualificam como processos de desterritorialização”. As frentes de expansão do capital,

grandes projetos desenvolvimentistas como a construção de hidrelétricas, a exploração mineral, o

avanço da fronteira agro industrial, são exemplos de desterritorialização, pois na maioria das vezes

promovem deslocamentos compulsórios de uma série de grupos sociais.

Ao pensar territorialidades como plural e como processo, Emília Pietrafesa de Godoi deixa

evidente a necessidade de contextualização etnográfica, investigando a partir de seu contexto

histórico e físico, bem como com os atores sociais envolvidos. Outro aspecto importante frisado

pela autora é o sentido que está sendo atribuído a desterritorialização, diferente do sentido comum

mais utilizado em sociologia no qual desterritorialização remete ao mundo globalizado, a

mobilidade e ao desenraizamento. O sentido dado ao conceito quando está no campo dos processos

de territorialização se refere a “exclusão e expropriação em relação a grupos, populações e povos

impossibilitados de construir e de exercer efetivo controle sobre seus espaços de vida e trabalho,
isto é, seus territórios”. (p11) Sentido que favorece pensar a territorialidade como apropriação de

uma porção de espaço sobre qual é atribuído significação, um espaço ocupado por símbolos.

Perspectiva que contribui para o debate da questão fundiária, porém não se limita a ela, como faz o

Estado ao tentar entender outras territorialidades no seu interior, escapando a dimensão sociológica

e simbólica as reduzindo a questão fundiária impossibilitando a compreensão de outras lógicas de

territorialização que não estão regidas pela lógica da propriedade individual, mas pelo

pertencimento, que aparece em etnografias a partir de um sentimento de indissociabilidade entre

espaço de vida e as pessoas, e parentesco, que é uma das formas mais correntes de estabelecer

direitos de acesso à terra e outros recursos.

Por tanto a partir de teóricos da geografia, como Robert Sack, e da antropologia como P.

Little, a autora pensa o território como produto histórico, por isso para constituir conhecimento

sobre a territorialidade humana deve-se “investigar processos por meio dos quais grupos e pessoas

acessam, apropriam, usam, controlam e atribuem significados a parcelas do espaço”.(p.14)

Contrapondo a perspectiva geográfica que encara territorialidade como estratégia de indivíduos ou

grupos para controlar o acesso à coisas, pessoas e relações em uma determinada área. À perspectiva

antropológica que enfatiza o esforço coletivo de um grupo para constituir territorialidades - e não

esforço individual – a fim de não só ocupar, usar e controlar, mas também de “ 'se identificar com

uma parcela específica de seu ambiente biofísico', que é assim constituído como seu território”.

(p.14)

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