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Ahmadou Kourouma

A l á
e as crianças

soldados
AHMADOU KOUROUMA

tradução
Flávia Nascimento
Copyright © Éditions du Seuil, Paris, 2000
© Editora Estação Liberdade, 2003, para esta tradução
Título srcinal: Allah n’est pas obligé

Preparação Alexandre Barbosa de Souza


Composição Pedro Barros / Estação Liberdade
Assistência editorial Flávia Moino e Maísa Kawata
Capa Nuno Bittencourt / Letra & Imagem
Produção Edilberto Fernando Verza
Editor Angel Bojadsen

A coleção Latitude é dirigida por Angel Bojadsen e Ronan Prigent

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
K88a
Kourouma, Ahmadou, 1927-
Alá e as crianças-soldados / Ahmadou Kourouma ;
tradução de Flávia Nascimento. – São Paulo : Estação
Liberdade, 2003. – (Latitude)

Tradução de: Allah n’est pas obligé


ISBN 85-7448-082-7

1. Romance africano. I. Nascimento, Flávia. II. Título.


III. Série.

03-2069. CDD 848.99666803


CDU 821.133.1(666.8)-3

ESTE LIVRO, PUBLICADO NO ÂMBITO DO PROGRAMA DE PARTICIPAÇÃO À PUBLICAÇÃO,


CONTOU COM O APOIO DO MINISTÉRIO FRANCÊS DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Todos os direitos reservados


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Às crianças de Djibuti: foi a pedido de vocês
que este livro foi escrito

E à minha esposa, por sua paciência


ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS

Eu decidi o título definitivo e completo do meu blablablá:


é Alá e as crianças-soldados ou Alá não é obrigado a ser justo
em todas as coisas aqui embaixo. Pronto. Começo a contar
minhas bobagens.

E primeiro... e um... Meu nome é Birahima. Sou um ne-


guinho. Não porque sou black e moleque. Não! Mas sou
neguinho porque falo mal francês. Isso aí. Mesmo quando a
gente é grande, velho, mesmo quando é árabe, chinês, branco,

russo
fala queou nem
até americano, se a agente
um neguinho, gentefala malneguinho.
é um francês, aEssa
gente
é
a lei do francês de todo santo dia.
... E dois... Não fui muito longe na escola; parei no se-
gundo ano primário. Caí fora da escola porque todo mundo
disse que a escola não vale mais nada, não vale nem um

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AHMADOU KOUROUMA

peido de velha. (É assim que a gente diz em negro preto


africano nativo quando uma coisa não vale nada. A gente
diz que não vale nem um peido de velha porque um peido
de velha estropiada e fracota não faz barulho nem fede. A
escola não vale nem um peido de vó porque nem com um
diploma de universidade a gente é capaz de ser enfermeiro
ou professor primário numa dessas republiquetas de banana
corrompidas da África francófona. (Republiqueta de banana
significa aparentemente democrática, mas na verdade regida
por interesses privados, pela corrupção). Mas ir até o segundo
ano primário não é exatamente grande coisa. A gente sabe
um pouco, mas não o bastante; a gente parece aquilo que os
negros africanos nativos chamam de broa queimada dos dois
lados. A gente não é mais um bicho do mato, selvagem como
os outros pretos negros africanos nativos: a gente escuta e
entende os pretos civilizados e os tubabs exceto os ingleses
como os americanos pretos da Libéria. Mas a gente não sabe
nada de geografia, gramática, conjugação de verbos, divisão

e redação; a gente não é capaz de ganhar dinheiro fácil como


funcionário do Estado numa república miserável e corrompida
como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.
... E três... sou insolente, errado que nem barba de bode
e falo como um filho-da-mãe. Eu não falo que nem os outros
pretos negros africanos nativos engravatados: merda! Puta-
que-pariu! Filho-da-puta! Eu uso as palavras da língua malin-
quê que nem faforo! (Fafor o! significa caralho do meu pai
ou do pai do teu pai). Que nem gnamokodê! (Gnamokodê!
significa filho-da-puta ou puta-que-pariu). Que nem Walahê!
(Walahê! significa Em nome de Alá). Os malinquês, essa é
minha raça. É o tipo de pretos negros africanos nativos que
são numerosos ao norte da Costa do Marfim, na Guiné e

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ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS

em outras repúblicas de bananas estropiadas como aGâmbia,


a Serra Leoa e o Senegal, lá praqueles lados, etc.
... E quatro... Eu quero me desculpar por falar com vocês
assim na cara. Porque eu não passo de uma criança. De dez
ou doze anos (há dois anos minha avó dizia que eu tinha
oito e minha mãe dizia dez) e eu falo demais. Uma criança
educada escuta, ao invés de ficar nesse falatório1 que nem um
passarinho pendurado na figueira. Isso é para os velhos de
barba comprida e branca, pelo menos é o que diz o provér-
bio: o joelho nunca usa chapéu quando a cabeça está no lugar.
Esses são os costumes na aldeia. Mas eu faz muito tempo que
estou me lixando para os costumes da aldeia, já que fui para
Libéria, que matei muita gente com a kalachnikov (ou kala-
ch) e cheirei até muita coca da boa e outras drogas pesadas.
... E cinco... Para contar minha vida de merda, minha vida
de puteiro, numa fala aproximada, num francês que dê para
o gasto, para não meter os pés pelas mãos com um monte
de palavrões, eu possuo quatro dicionários. Primeiro o di-

cionário Larousse e o Petit Robert, segundo o Inventário das


particularidades lexicais do francês da África negra e terceiro o
dicionário Harrap’s. Esses dicionários me servem para procurar
os palavrões, para verificar os palavrões e principalmente para
explicá-los. É preciso explicar porque meu blablablá épara ser
lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa branco)
colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de
tudo que é gabarito (gabarito significa tipo). O Larousse e o

1. No srcinal, “palabre”; um dos sentidos deste vocábulo é “lengalenga”. Designa também,


na África, a assembléia tradicional em que os mais velhos discutem os assuntos da co-
munidade. No passado, referia-se ainda aos presentes feitos pelos brancos aos chefes
africanos a fim de ganhar seus favores (ocasião em que ocorriam longas discussões).
(N.T.)

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AHMADOU KOUROUMA

Petit Robert me servem para procurar, verificar e explicar os


palavrões do francês da França aos pretos nativos da África.
O Inventário das particularidades lexicais do francês da África
explica os palavrões africanos aos tubabs franceses da Fran-
ça. O dicionário Harrap’s explica os palavrões pidgin a todo
francófono que não entende nada de pidgin.
Como é que eu pude arranjar esses dicionários? Ah, isso,
isso é uma longa história que não tenho vontade de contar
agora. Agora não tenho tempo, não tenho vontade de me
perder no lero-lero. Faforo (caralho do meu pai!).
... E seis... É verdade, eu não sou arrumadinho e boniti-
nho, sou um maldito porque fiz mal para minha mãe. Para
os pretos negros africanos nativos, quando você aborrece
a tua mãe e se ela morre com essa raiva no coração, ela te
amaldiçoa, e você pega a maldição. E nada mais dá certo
para você e com você.
Eu não sou arrumadinho e bonitinho porque sou perse-
guido pelos gnamas de várias pessoas (Gnama é um palavrão

preto negro africano nativo que tem que ser explicado aos
franceses brancos. Ele significa, segundo o Inventário das
particularidades lexicais do francês da África negra, a sombra
que sobra depois da morte de um indivíduo. A sombra que
se torna uma força imanente má que segue aquele que matou
uma pessoa inocente). E eu, eu matei muitos inocentes na
Libéria e em Serra Leoa onde eu lutei na guerra tribal, e onde
fui criança-soldado, onde eu me droguei muito com drogas
pesadas. Eu sou perseguido pelos gnamas, então para mim e
comigo nada dá certo. Gnamokodê (puta-que-pariu)!
E agora estou apresentado em seis pontos, nem um a mais,
em carne e osso, e com meu jeito malcriado e insolente de
falar na ponta da caneta. (Não é na ponta da caneta que se

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ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS

deve dizer mas sim ainda por cima. É preciso explicar o que
significa ainda por cima aos pretos negros africanos nativos
que não entendem nada de nada. Segundo o Larousse, ainda
por cima significa aquilo que se diz a mais, en rab).
Isso aí é o que eu sou; um quadro nada animador. Agora,
depois de ter me apresentado, eu vou contar, vou contar de
verdade mesmo minha vida de merda de desgraçado.
Sentem e escutem. E podem escrever tudinho. Alá não é
obrigado a ser justo em todas as coisas. Faforo (caralho do
meu pai!).

Antes de desembarcar na Libéria, eu era um menino


sem eira nem beira. Eu dormia em qualquer lugar, roubava
qualquer coisa em qualquer lugar para comer. Minha avó me
procurava dias e dias: isso é o que a gente chama de menino
de rua. Antes de ser um menino de rua, eu ia na escola. Antes
disso, eu era um bilakoro da aldeia de Togobala. (Bilakoro

significa, segundo o Inventário das particularidades lexicais,


menino não circuncidado.) Eu corria pelos riachos, pelos
campos, caçava camundongos e passarinhos no mato. Uma
verdadeira criança negra preta africana do meio do mato.
Antes de tudo isso, eu era um garoto na cabana com a mamãe.
O garoto, ele corria da cabana da mamãe para a cabana da
avó. Antes de tudo isso, eu andei de quatro na cabana da
mamãe. Antes de andar de quatro, eu estava na barriga da
minha mãe. Antes disso, acho que eu estava no vento, ou era
uma serpente, ou estava na água. A gente sempre é alguma
coisa, como serpente, árvore, gado ou homem ou mulher
antes de entrar na barriga da mãe. A gente chama isso de
vida antes da vida. Eu vivi a vida antes da vida. Gnamokodê

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Havia entre os soldados-criançasuma menina-soldado,
o nome dela era Sara. Sara era única, ela era única e bela
como quatro mulheres juntas e fumava haxixe e mascava
maconha por dez. Ela namorava às escondidas Cabeça
Queimada, lá em Zorzor, há muito tempo. [...] Ela quis descansar,
encostar num tronco para descansar. Cabeça Queimada gostava
muito de Sara. Ele não podia abandonar ela assim sem
mais nem menos. Mas a gente estava sendo seguido. A gente
não podia esperar. Cabeça Queimada quis levantar Sara e
obrigar ela a seguir a gente. Ela descarregou sua arma em cima
de Cabeça Queimada. Felizmente ela estava maluca e não
enxergava mais nada.

Tradução de Flávia Nascimento

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