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A l á
e as crianças
soldados
AHMADOU KOUROUMA
tradução
Flávia Nascimento
Copyright © Éditions du Seuil, Paris, 2000
© Editora Estação Liberdade, 2003, para esta tradução
Título srcinal: Allah n’est pas obligé
russo
fala queou nem
até americano, se a agente
um neguinho, gentefala malneguinho.
é um francês, aEssa
gente
é
a lei do francês de todo santo dia.
... E dois... Não fui muito longe na escola; parei no se-
gundo ano primário. Caí fora da escola porque todo mundo
disse que a escola não vale mais nada, não vale nem um
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AHMADOU KOUROUMA
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AHMADOU KOUROUMA
preto negro africano nativo que tem que ser explicado aos
franceses brancos. Ele significa, segundo o Inventário das
particularidades lexicais do francês da África negra, a sombra
que sobra depois da morte de um indivíduo. A sombra que
se torna uma força imanente má que segue aquele que matou
uma pessoa inocente). E eu, eu matei muitos inocentes na
Libéria e em Serra Leoa onde eu lutei na guerra tribal, e onde
fui criança-soldado, onde eu me droguei muito com drogas
pesadas. Eu sou perseguido pelos gnamas, então para mim e
comigo nada dá certo. Gnamokodê (puta-que-pariu)!
E agora estou apresentado em seis pontos, nem um a mais,
em carne e osso, e com meu jeito malcriado e insolente de
falar na ponta da caneta. (Não é na ponta da caneta que se
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ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS
deve dizer mas sim ainda por cima. É preciso explicar o que
significa ainda por cima aos pretos negros africanos nativos
que não entendem nada de nada. Segundo o Larousse, ainda
por cima significa aquilo que se diz a mais, en rab).
Isso aí é o que eu sou; um quadro nada animador. Agora,
depois de ter me apresentado, eu vou contar, vou contar de
verdade mesmo minha vida de merda de desgraçado.
Sentem e escutem. E podem escrever tudinho. Alá não é
obrigado a ser justo em todas as coisas. Faforo (caralho do
meu pai!).
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Havia entre os soldados-criançasuma menina-soldado,
o nome dela era Sara. Sara era única, ela era única e bela
como quatro mulheres juntas e fumava haxixe e mascava
maconha por dez. Ela namorava às escondidas Cabeça
Queimada, lá em Zorzor, há muito tempo. [...] Ela quis descansar,
encostar num tronco para descansar. Cabeça Queimada gostava
muito de Sara. Ele não podia abandonar ela assim sem
mais nem menos. Mas a gente estava sendo seguido. A gente
não podia esperar. Cabeça Queimada quis levantar Sara e
obrigar ela a seguir a gente. Ela descarregou sua arma em cima
de Cabeça Queimada. Felizmente ela estava maluca e não
enxergava mais nada.