Você está na página 1de 10

Artigo de Reflexão Disponível em http://dx.doi.org/10.19131/rpesm.

0132

8 MEDICALIZAÇÃO E SAÚDE MENTAL: ESTRATÉGIAS ALTERNATIVAS


| Michele Zanella1; Heloísa Helena Venturi Luz2; Idonézia Collodel Benetti3; João Paulo Roberti Junior4 |

RESUMO
CONTEXTO: A regulação do comportamento, baseada na prescrição farmacológica, tem sido usada de maneira indescrimi-
natória. Uma epidemia de diagnósticos, prioritando e delegando responsibilidade na neurobiologia das crianças e dos adultos
desajustados, tem desprezado os aspectos psicológicos, históricos e sociais.
OBJETIVO: Discutir as alternativas ao modelo biomédico predominante e à medicalização indiscriminada de crianças e adul-
tos, problematizando e sugerindo possíveis estratégias em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, oferecidas na Rede Pública de
Saúde brasileira.
MÉTODOS: É um trabalho discursivo, expositivo-argumentativo, que versa sobre um tema específico, ancorado no Método de
Leitura Científica, que pressupõe as visões sincrética, analítica e sintética.
CONCLUSÕES: Todos os profissionais de saúde devem sentir-se capazes do cuidado em Saúde Mental, além do tratamento
farmacológico, visto que, em grande parte dos casos, o que o paciente deseja é empatia e escuta honesta. E se, de fato, muitos
dos diagnósticos não são clinicamente válidos, porque são uma forma socialmente construída de medicalizar comportamentos
“indesejáveis”, então a sua remoção do DSM não somente é lógica, como também é ética e necessária.
PALAVRAS-CHAVE: Medicalização; Sistemas de apoio psicossocial; Saúde mental; Serviços de saúde mental

RESUMEN ABSTRACT
“La medicalización y la salud mental: Estrategias alternativas” “Medicalization and mental health: Alternative strategies”
INTRODUCCIÓN: La regulación de la conducta basada en la INTRODUCTION: Regulation of behavior, based on drug pre-
prescripción farmacológica, se ha utilizado de manera indiscrim- scriptions, has been an indiscriminately used resource. An epi-
inada. Una epidemia de diagnósticos, priorizan y delegan la re- demic of diagnoses, prioritizing and delegating responsibility to
sponsabilidad en la neurobiología de niños y adultos inadaptados, the neurobiology of child and adult misfits, has despised psycho-
y ha despreciado los aspectos psicológicos, históricos y sociales. logical, historical and social aspects.
OBJETIVO: Analizar las alternativas al modelo biomédico impe- AIM: To discuss alternatives to the prevailing biomedical model
rante y la medicalización indiscriminada de niños y adultos, prob- and indiscriminate medicalization of children and adults, prob-
lematizando y sugiriendo posibles estrategias en el ámbito de la lematizing and suggesting possible strategies to be used in Men-
Salud Mental y la Atención Psicosocial que se ofrece en la Red de tal Health and Psychosocial Care offered in the Brazilian Public
Salud Pública de Brasil. Health Network.
MÉTODOS: Se trata de un trabajo expositivo-argumentativo y METHODS: It is an expository-argumentative and discursive
discursivo, que se ocupa de un tema, anclado en el Método Cientí- work, which explores a specific theme, based on the Scientific
fico de Lectura y asume las visiones sincréticas, analíticas y sinté- Reading Method that relies on the syncretic, analytical and syn-
ticas. thetic visions.
CONCLUSIONES: Todos los profesionales de la salud deben sen- CONCLUSIONS: All health professionals should feel capable of
tirse capaces de cuidar en el área de la salud mental, más allá del providing care in the mental health field, beyond the pharmaco-
tratamiento farmacológico, ya que, en la mayoría de los casos, la logical treatment, since in most cases what the patient expects is
voluntad del paciente se direcciona hacia la empatía y la escucha empathy and honest listening. And if, in fact, many of the diagno-
honesta. Y si de hecho muchos de los diagnósticos no son clínica- ses are not clinically valid because they are a socially constructed
mente válidos, ya que se tratan de una forma socialmente constru- form of medicalizing the “undesirable” behaviors; therefore, their
ida de medicalización de las conductas “indeseables”, entonces su removal from DSM is not only logical, but also ethical and neces-
retirada del DSM no sólo es lógica, sino también ética y necesaria. sary.
KEYWORDS: Medicalization; Social support; Mental health;
DESCRIPTORES: Medicalización; Apoyo Social; Salud Mental;
Mental health services
Servicios de Salud Mental
Submetido em 20-03-2016
Aceite em 13-06-2016

1 Bacharel em Psicologia; Especialista em Avaliação Psicológica; Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial no Centro Universitário para o Desenvolvimento do
Alto Vale do Itajaí, Rua Guilherme Gemballa, 13, 89160-000 Rio do Sul (SC), Brasil, michelemz85@gmail.com
2 Enfermeira Psiquiátrica; Mestre em Gestão de Políticas Públicas; Supervisora Clínico-Institucional, Rio do Sul (SC), Brasil, heloisahvl2008@gmail.com
3 Psicopedagoga; Mestre em Letras e em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina; Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas de Saúde Mental e do Grupo de
Pesquisa em Rede Internacional; Doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC), Brasil, idonezia@hotmail.com
4 Psicólogo; Graduado em Psicologia e em História; Especialista em Metodologia do Ensino de História; Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, 89160-000 Rio do Sul (SC), Brasil, joaoroberti@gmail.com

Citação: Zanella, M., Luz, H. H. V., Benetti, I. C., & Junior, J. P. R. (2016). Medicalização e saúde mental: Estratégias alternativas. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde
Mental (15), 53-62.

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 53


INTRODUÇÃO de tempo, ancorado principalmente na psiquiatria
americana, em especial após o surgimento do DSM IV,
Os escritos acerca do diagnóstico de tratamentos, alia-
que possibilitou tornar esse discurso hegemônico no
dos a desordens psíquicas, são bastante extensos; pa-
mundo todo (Guarido, 2007).
rece claro que ficaram ainda mais marcados após o sur-
A medicação passou, então, a ter seu lugar salvaguar-
gimento, em 1980, do DSM III (Manual Diagnóstico
dado como principal recurso de tratamento para trans-
e Estatístico dos Transtornos Mentais), assim como a
tornos mentais (Guarido, 2007). Hoje, é largamente in-
hegemonia da medicalização como forma prioritária
fluenciada pela mídia e pelas campanhas de marketing,
de tratamento terapêutico utilizado. Além disso, esta
financiadas pela indústria farmacêutica, que socializa e
versão do DSM foi pensada para categorizar em de-
dissemina o paradigma do discurso médico, o qual se
scrição, e abandonar a psicodinâmica em favor de um
mostra como o grande detentor da verdade acerca do
modelo biomédico hegemônico de classificação dos
sofrimento psíquico e de sua natureza. Diante destas
transtornos mentais. Os diagnósticos psiquiátricos apa-
considerações, o presente trabalho se constitui em um
recem quase sempre com base biológica, aproximando o
ensaio teórico com o objetivo de discutir o aumento do
sofrimento psíquico das doenças orgânicas, colocando-
uso indiscriminado de psicofármacos, a fim de pensar
os quase como exclusivos de desordens da bioquímica
outras estratégias em saúde mental e atenção psicosso-
cerebral (Guarido, 2007). A psicopatologia encontra, a
cial nesses contextos.
partir da criação do DSM III, a cientificidade tão pro-
curada, tornando ainda mais incontestável que os fenô-
MÉTODO
menos psíquicos encontrem sua base na biologia.
Em 1952 foi lançada a primeira sintetização de um É necessário ter algo que afeta, que leve a pensar e con-
psicofármaco para tratamento psiquiátrico (Guarido, voque para trilhar um caminho.
2007). A partir de então, a indústria farmacêutica in- Neste trabalho, de caráter teórico, o que afetou e con-
veste de forma maciça em pesquisas, produção e mar- vidou à discussão, alavancou o debate e fomentou a in-
keting de novos remédios. Nenhuma surpresa ao nos quietação dos articulistas foi a patologização e medical-
depararmos com a supremacia da psicofarmacologia ização do cotidiano.
sobre o tratamento de sofrimentos psíquicos severos, Cada vez mais a relação entre a indústria farmacêutica
não se esquecendo dos sofrimentos cotidianos, que e a Associação Psiquiátrica Americana (APA) fica mais
vem ganhando um espaço muito maior, ao que se vê. estreita e tem havido uma tendência crescente nas pro-
Os fundamentos diagnósticos do DSM III traziam in- fissões de saúde mental para interpretar o sofrimento
fluências da psicanálise e da psiquiatria social comu- emocional habitual e o comportamento como uma
nitária (Maturo, 2010). Entretanto, os diagnósticos condição médica que pode ser tratada com um medi-
pareciam, pouco a pouco, ganhar mais objetividade, camento particular.
baseando-se em experimentações científicas e perden- Assim, cada vez mais os sentimentos e comportamen-
do ainda mais a dimensão vivencial, antes predomi- tos comuns estão sendo tratados farmacologicamente; a
nante nos diagnósticos psiquiátricos. Essa falta de ob- timidez comum, a tensão normal, a tristeza corriqueira,
jetividade contida nos diagnósticos psiquiátricos, antes etc. têm sido consideradas transtornos e medicalizadas.
do manual, bem como de dados epidemiológicos, cau- A impressão que existe é de que o sistema de diagnósti-
sou sérios prejuízos financeiros às companhias segura- co expandiu-se ao ponto onde ninguém mais é normal.
doras de saúde e também aos órgãos comportamentais. Para trilhar o caminho da discussão, pavimentado
Portanto, o DSM III teve papel fundamental na refor- pela atração por este assunto, foi necessário: a) esboçar
mulação da psiquiatria, não apenas por apresentar a questões prévias pertinentes ao tema abordado, b) ler
saída para as disputas teóricas internas e o progresso material e proceder a uma investigação, c) fazer anota-
científico, mas, sobretudo, ele é resultado da presença ções e apontamentos relativos às fontes utilizadas, d)
quase que absoluta da indústria farmacêutica e das recolher informações relevantes sobre este tópico, e) se-
grandes seguradoras de saúde (Maturo, 2010). Este lecionar e ordenar as informações recolhidas, de acordo
manual rompeu, de uma vez por todas, com a psiquia- com sua pertinência e importância.
tria clássica, passando a diagnosticar as doenças pre- Submeteu-se o material selecionado ao Método de Lei-
dominantemente com fundo biológico, definindo e en- tura Científica (Cervo e Bervian, 2002), que obedece
quadrando, através de número de sintomas e períodos aos seguintes itens:

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 54


a) visão sincrética: leitura de reconhecimento para lo- A historicidade, a subjetividade e a etiologia passam a
calizar as fontes, com o objetivo de aproximar sobre o ser desconsideradas na psiquiatria contemporânea e a
tema, já incluindo a leitura seletiva para localizar as in- migração dos diagnósticos, em função da variabilidade
formações de acordo com os propósitos do estudo; b) dos sintomas, é o ponto alto desta área de conhecimen-
visão analítica: leitura crítico-reflexiva dos textos sele- to e diagnóstico médico (Tesser, 2006a).
cionados para buscar os significados e escolher as ideias Cedo ou tarde, todos nós o experimentaremos, já que
principais; c) visão sintética: é a leitura interpretativa. É não somos capazes de dominar a natureza e o nosso
um trabalho discursivo, expositivo-argumentativo que corpo. A medicação é a principal promessa de que esse
versa sobre um tema específico, partindo das opiniões/ mal-estar seria codificado em doença e tratado por ela
discussões de especialistas. Fundamenta um ponto de (Kamers, 2013). Seria um dispositivo de nomeação des-
vista sobre um tema de interesse científico, porém sem sas inquietações e, para cada uma delas, um fármaco
esgotá-lo e sem a pretensão de atingir um grau de certe- específico de combate. Não é nenhuma surpresa, então,
za sobre a verdade. que a infelicidade que mascaramos e fingimos não ex-
A escrita está apoiada na sequência previamente apre- istir, apareça tão pungente em nossas relações sociais
sentada e discute a hegemonia da medicalização como e afetivas. O que houve, na verdade, é a transição da
forma prioritária de tratamento terapêutico, a transfor- camisa de força para a escravização medicamentosa.
mação das adversidades humanas em oportunidades Há diferentes conceitos de medicalização, que nem
para intervenções medicamentosas, a banalização do sempre são compatíveis entre si (Camargo Jr., 2013).
uso indiscriminado de psicofármacos, a medicalização Este fenômeno pode ser entendido como uma forma de
da infância e possíveis estratégias para enfrentamento, controle da sociedade; uma consequência inevitável dos
tendo em vista a organização da saúde pública no Bra- processos de transformação social, ou ainda o processo
sil. de transformação e do deslocamento de problemas, que
antes não eram médicos, que passam a ser considera-
Medicalização e Multiplicação de Doenças dos doenças mentais para ganhar a atenção destes es-
A saúde mental é provavelmente o aspecto mais media- pecialistas. O grande desafio, então, está em examinar
tizado da vida humana. Emoções como tristeza e timi- concretamente como se dá o processo de expansão dos
dez frequentemente se enquadram dentro de um olhar diagnósticos, expondo a relação de interesses econômi-
patologizante e podem facilmente ser transformadas cos contrários ao bem-estar social (Camargo Jr., 2013).
em doenças (Maturo, 2010). É difícil acreditar que 6% Ainda, a medicalização é considerada em três catego-
da população na Grã-Bretanha cumpram os critérios rias: medicalização conceitual, institucional e intera-
para transtorno depressivo maior e, ainda mais difícil cional (Conrad, 2007). A primeira refere-se ao léxico
de acreditar, que mais que 5% dos americanos sofrem médico, quando usado para definir entidades não
de transtorno bipolar (Scott; Dikey, 2003). Sem dúvida, médicas, como, por exemplo, “ptose mamária” (inclina-
tem havido uma tendência crescente nas profissões de ção natural dos seios após a gravidez, diagnosticada). A
saúde mental para interpretar o sofrimento emocional segunda trata da dominância profissional, que acontece
cotidiano e determinados comportamentos como uma quando os médicos têm o poder de orientar o pessoal
condição médica que acompanha um tratamento de não médico, como acontece quando gerenciam hospi-
medicalização particular. tais, sem ter qualquer título de formação em gestão ou
A psiquiatria clássica sempre encontrou dificuldades administração de empresas; a terceira está relacionada
para lidar com os fenômenos psíquicos não codificáveis com a interação médico-paciente, quando o primeiro
em termos de funcionamento biológico, reservando es- redefine um problema social tratando-o como um
paço para a subjetividade (Guarido, 2007). Por outro problema – a homossexualidade, a título de ilustração,
lado, a psiquiatria atual coloca o sujeito num patamar foi listada como uma patologia no DSM até 1983.
de submissão ao orgânico e à bioquímica cerebral, A “farmacologização” como conceitua Camargo Jr.
(2013), seria então a transformação das adversidades
creditando ao medicamento como o único elemento
humanas em oportunidades para intervenções medi-
possível de tratamento. Em outras palavras, a nomea-
camentosas. Ela vem para reforçar a ideia de que para
ção do transtorno está intimamente ligada à medicação,
cada mal existe um remédio específico. A sociedade
visto que os efeitos do medicamento é o que dará vali-
tem criado uma saúde restritiva e covarde, visto que
dade a um ou outro diagnóstico. cada vez mais o sujeito se identifica com os padrões
Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 55
ético-estéticos de bem-estar e de qualidade de vida, forçadas a acionar o conselho tutelar, alegando omissão
com o mínimo de doenças possíveis. da família. Outras vezes, a criança é encaminhada ao
A medicalização está tão banalizada que até mesmo so- psicólogo, que não raro também encaminha ao neu-
frimentos passageiros do indivíduo são medicados de ropediatra, que prescreve medicamentos largamente
forma irrestrita e irresponsável (Horwitz & Wakefield, conhecidos. Ressalta-se por exemplo, que atualmente,
2009). Há hoje no mercado mais de 500 tipos descritos o TDAH é o diagnóstico mais comum das crianças
de transtornos mentais, o que sugere que seria muito encaminhadas para tratamento psiquiátrico e medica-
difícil que qualquer pessoa não se enquadrasse, em al- mentoso, por ser considerado um dos principais fatores
gum momento da vida, em algum diagnóstico (Hor- que prejudicam o desempenho escolar de estudantes.
witz & Wakefield, 2009). Esse avanço de categorias di- (Meister et al., 2001)
agnósticas parece interessar muito mais à indústria do O campo da psiquiatria para adultos se estabeleceu a
que propriamente a saúde dos pacientes. Qualquer sin- partir da noção de liberdade individual, quando esta se
toma considerado fora da norma pode ser considerado tornava ameaçadora para a moral vigente, colocando
patológico, e o sofrimento humano vem sendo negado em risco a ordem social. A psiquiatria infantil surge a
e tratado como mera abstração. partir de estudos dos primeiros tratados de psiquiatria,
É importante salientar que não se trata de negar os com foco na busca de explicações na infância para as
avanços da indústria farmacêutica, tampouco rejeitar doenças mentais que emergiam na fase adulta, dando
sua funcionalidade, mas sim de evidenciar a banaliza- estofo para a classificação das doenças mentais heredi-
ção do uso indiscriminado de psicofármacos, tentando tárias e adquiridas (Kamers, 2013).
assim libertar as pessoas de diagnósticos indevidos, e Além do discurso médico, a escola tem papel funda-
de prognósticos bem conhecidos, evitando efeitos ne- mental na construção da “normalidade” exigida pela
fastos na qualidade de vida delas, contribuindo para a sociedade. Ela passa também a regular a inclusão ou
diminuição da segregação, estigma e preconceito que exclusão da criança e, como instituição de assistên-
a sociedade traz junto a esses diagnósticos (Guarido, cia à infância, age junto ao saber médico-psiquiátrico,
2007). medicalizando para tornar a criança “apta” para a so-
A sociedade contemporânea está buscando a substi- ciedade (Kamers, 2013). Não diferente da psiquiatria
tuição da loucura, enquanto representação do encon- dos adultos, essa especialidade médica também insti-
tro do homem com seus fantasmas, pelo significante tucionaliza e segrega a criança e, embora o movimento
chamado doença mental, como forma de neutralizar e antipsiquiátrico já tenha avançado muito, as propostas
esconder a dimensão da loucura, entendendo-a como terapêuticas ainda são disciplinadoras, em especial nes-
melhor lhe convém (Foucault, 2010). A medicina e as ta faixa etária (Guarido, 2007).
suas técnicas farmacológicas serão as grandes domina- Diante de estudos apresentados recentemente nessa
doras da doença mental, deslocando toda a explicação área, fica claro que houve um deslocamento do olhar
para a entidade biológica, no intuito de que a sociedade assistencial, psicológico e educativo da criança. Então,
possa neutralizar esse sujeito (Foucault, 2010). Nada ela passa a ser entendida sob a ótica da psiquiatria, que
disso será capaz de extinguir a doença mental, mas des- hoje se constitui como a principal ferramenta regula-
locará a face da loucura. A medicina até poderá acabar dora do normal e do patológico.
com a doença mental, assim como fez com a lepra, Sempre houve a tentativa de buscar explicações da ori-
porém, nada poderá suprimir a relação do homem com gem da loucura do adulto na criança (Kamers, 2013).
os seus fantasmas. A medicina passou a lidar com os desvios comporta-
mentais apresentados na infância, medicando e, assim,
As Crianças Não São Poupadas normatizando através do fármaco. Na prática, o que
Os tratamentos utilizados com crianças passam por um tem se observado é uma verdadeira epidemia de diag-
ciclo repetitivo: a escola tem problemas em lidar com a nósticos e medicalização na infância e, mais uma vez, o
falta de limites, ou com as dificuldades de aprendizagem psicológico, o histórico e o social são deixados de lado,
apresentadas, e pedem ajuda para as famílias (Kamers, delegando a explicação do desajuste à neurobiologia,
2013). Estas, por sua vez, se sentem incapazes de lidar tornando a medicina a grande protagonista da história.
com os problemas emergentes, o que obriga as escolas a Historicamente, a criança foi entendida como um adul-
procurar um médico especialista; muitas vezes se veem to em potencial (Aries, 1981).

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 56


Portanto, a medicina toma como principal meta tratar Para tanto, há que se pensar em estratégias para que a
a criança e seu desajuste para que, quando ela se tor- sociedade não mais se sinta refém da medicação e en-
nar um adulto, tenha plenas condições de exercer suas contre, na mesma, a única possibilidade possível de
habilidades intelectuais e morais sem dificuldades. O tratamento. O ato de cuidar abrange vários âmbitos na
fato é que a prática médica contemporânea enquadra vida de um sujeito, em especial sua vida em sociedade,
a criança em um diagnóstico, onde o pano de fundo é na comunidade onde está inserido, e o sujeito em sofri-
o olhar dos pais sobre a “anormalidade” dos comporta- mento exige novas formas de acolhimento (Dimenstein,
mentos dos filhos, atribuindo falha do funcionamento Severo, Brito, Pimenta, Medeiros, e Bezerra, 2009). Essa
cerebral e seus mecanismos e justificando a prescrição integração entre sujeito e comunidade parece uma real-
do psicofármaco (Kamers, 2013). idade mais palpável quando a Unidade Básica de Saúde
Posto isso, o que se vê é um avanço descompensado (UBS) entra em cena, uma vez que ela consegue articu-
de novos diagnósticos, diretamente proporcionais lar esse encontro, por estar em contato direto com to-
ao número de novos fármacos lançados no mercado, dos os atores envolvidos nesse contexto.
levando ao aumento desenfreado de doentes mentais Portanto, os problemas de saúde mental devem ser
(Barker, 2009). A medicalização da infância tem to- encarados como emergentes pela Estratégia de Saúde
mado proporções assustadoras e produzido falsas epi- da Família (ESF), pois ela consegue atuar em diversos
demias: Transtorno Bipolar; Transtorno de Déficit de lugares onde esses usuários estão inseridos, articulando
Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o Autismo. Trata- possibilidades de saúde norteados pelo contexto famil-
se de uma clínica reducionista e pragmática, que não iar e cultural do lugar, estabelecendo vínculos e cor-
se preocupa em buscar alternativas além da criação de responsabilidade com a população, entre outros (Di-
novos fármacos capazes de trazer o bem-estar e a nor- menstein et al., 2009). A ESF atua visitando os lares,
malidade tão desejada (Barker, 2009). Tudo parece ter identificando os laços significativos entre os envolvidos.
explicação biológica, genética e neuroquímica, e a med- Essa equipe tem acesso direto às famílias, o que deixa
icação por sua vez é a grande reguladora, que detém claro que ela tem papel fundamental na construção de
o controle social antes atribuído a instâncias tutelares uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), já que a
sobre a família e a criança. Estas instâncias, agora, au- ideia primeira da desinstitucionalização é também in-
torizam e asseguram a intervenção médico-psiquiátrica serir a família no processo de reestabelecimento desse
sobre as crianças. usuário em sofrimento psíquico (Arce, Souza, e Lima,
O médico assume desde então o papel de agente tutelar 2011).
das famílias (Kamers, 2013) e a psiquiatria torna-se re- As redes substitutivas de cuidado em Saúde Mental de-
sponsável por reconduzir a criança a sua “normalidade”, vem passar pela atenção básica, com o Apoio Matricial,
aliviando o mal-estar que a loucura causa na sociedade. de forma a corresponsabilizar toda a equipe e todos os
Já que os pequenos são portadores dos ideais sociais do níveis de Assistência, pensando estratégias de interven-
adulto, eles simbolizam a transição entre o real e o ideal: ção com todos os envolvidos nessa dinâmica e, desta
o ideal de existência adulta, ainda que isso negue o real forma, aumentar sua capacidade de resolução de prob-
da infância. Com o advento da psiquiatria voltada para lemas (Dimenstein et al., 2009). A ideia principal do
o biológico, as diferenças entre adultos e crianças quase Apoio Matricial é o trabalho em equipe, a escuta quali-
que inexistem, visto que a dimensão histórica não é ficada e a corresponsabilização, já que ele dá retaguarda
tida como legítima (Guarido, 2007). A educação tem assistencial e suporte técnico-pedagógico às equipes de
papel primordial para frear a medicalização infantil, e referência, permitindo conhecer melhor a realidade da
reconhece que o Ocidente ao invés de refletir e refor- demanda, para pensar intervenções mais eficazes (Arce
mular o ensino e a sua estrutura, já que este se constitui et al., 2011).
como retrógrado atualmente. Medicar, então, significa De maneira geral, a grande demanda em saúde men-
responsabilizar outro ator, já que o ensino fracassou tal baseia-se em produção e renovações de receitas, que
(Mannoni, 1988) dão continuidade ao tratamento medicamentoso, sen-
do o uso de medicamentos, ainda, a principal referên-
Possíveis Estratégias cia no tratamento na rede pública de saúde (Carvalho e
Os desafios são muitos para a superação do paradigma Dimenstein, 2004), revelando que o modelo biomédico
biomédico. ainda é entendido como poder supremo.

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 57


O próprio usuário, muitas vezes, entende que o medica- O Apoio Matricial e o NASF possibilitam o fortaleci-
mento é a ferramenta principal na sua busca de cura, e mento das equipes de ESF e devem ser pensados como
nenhuma outra ação terapêutica parece ser qualificada estratégias de Educação Permanente em saúde, a par-
na busca pela saúde. Isto leva-nos a crer que ainda se tir de reflexões críticas e atuação comprometida, de
está deveras longe de superar o fenômeno da medical- modo a efetivar politicamente uma rede de cuidados,
ização. considerando as várias facetas do sofrimento e adoeci-
Muitas são as possibilidades de serviços substitutivos mento psíquico, superando, assim, a hegemonia médica
com o foco de desmedicalizar, propondo novas possi- no encaminhamento, concretizando vínculo do usuário
bilidades terapêuticas aos usuários do Sistema Único com os outros atores da rede, formando vínculos maio-
de Saúde (SUS). Uma delas seria desenvolver ações jun- res com os familiares são características essenciais para
tamente com os CAPS: consulta-atendimento; visitas o estabelecimento da Atenção Psicossocial (Arce et al.,
domiciliares; grupos terapêuticos e oficinas. Arce et al. 2011). Portanto, se as equipes estiverem completas e os
(2011) também levantam a importância de grupos ter- NASFs participarem do Apoio Matricial, pensando em
apêuticos e operativos, bem como ações para o desen- conjunto com o CAPS, poderiam trazer mudanças reais
volvimento do exercício da cidadania e em ponderando sem a tão conhecida sobrecarga das equipes.
dos usuários para lidar com o sofrimento psíquico. As Ao contrário do que se pensa essa nova maneira de
oficinas podem ter caráter expressivo, geradoras de ren- programar o fluxo da Saúde Mental não estaria desre-
da ou de alfabetização, onde a arte é vista como uma sponsabilizando o CAPS, e sim o deixando mais próx-
terapêutica produtiva e onde se tem espaço para operar imo do usuário, uma vez que estaria descentralizando
transformações de si e do mundo (Cedraz e Dimen- o cuidado. Haveria então uma divisão de responsabi-
stein, 2005). lidades com os profissionais da atenção básica, onde
Os grupos terapêuticos também devem se basear em o maior beneficiado seria o doente (Dimenstein et al.,
um espaço de passagem, um lugar onde as coisas pos- 2009). O que se está lançando aqui é um projeto ter-
sam ser reparadas, ressignificadas, e onde a dificuldade apêutico envolvendo as várias equipes adequadas para
de viver possa ser acompanhada e acolhida. Para tanto, atender a demanda de cada caso. É nesse sentido que
deve-se ter clareza sobre esse dispositivo de tratamento. o Apoio Matricial trabalha, na perspectiva do cuidado
Estes jamais podem se basear na lógica da produtivi- compartilhado, em rede, onde o CAPS seria o principal
dade, degradando a singularidade de cada caso, ofer- articulador. Esta é uma maneira de explorar os diversos
ecendo segundo Campos (2001) os conhecidos “cardá- saberes, e permitir a construção de práticas coletivas
pios fechados”. acerca da saúde mental, privilegiando a corresponsabi-
Além disso, as atividades educativas em saúde, de pro- lização, pois somente com a integralidade do atendi-
moção e prevenção, desenvolvendo estratégias jun- mento é que se pode alcançar a promoção de saúde,
tamente com os NASFs, carecem de ações voltadas à mudando a perspectiva inicial de doença (Dimenstein
Saúde Mental, ficando apenas para a UBS a respon- et al., 2009).
sabilidade de orientar os pacientes e familiares (Arce et Souza (2006) propõe a ideia de clínica ampliada, pen-
al., 2011). O CAPS precisa parar de reproduzir formas sando a mudança de paradigmas que norteiam o mod-
de existência idealizada, definindo o modo de ser do elo assistencial convencional. Para tanto, deve-se tra-
usuário, para que no acontecer das oficinas não haja balhar na perspectiva de desconstrução do modelo,
a imposição da disciplina e o estabelecimento de uma trazendo à luz da realidade novas formas de trabalhar a
moralidade, realizados por práticas de vigilância (Ce- saúde, pensar a doença, o contexto e o próprio sujeito.
draz e Dimenstein, 2005). As experiências em Apoio Desta forma, trabalhar em equipe interdisciplinar, am-
Matricial já existem e podem se consolidar ainda mais pliando os espaços para além do consultório e sala de
se houver uma equipe de referência em Saúde Men- procedimentos, atender os usuários em casa, junto da
tal, trabalhando em parceria com a ESF, diminuindo família, na rua, na escola, ou seja, no território. Para a
a medicalização e promovendo a equidade e o acesso. autora, faz-se mister trabalhar na construção de sujei-
O Apoio Matricial seria uma maneira de descentrali- tos com consciência cidadã, já que a luta pela saúde é
zar o atendimento em saúde mental e uma nova pos- de todos nós. Para que possibilidades mais humanas e
sibilidade à medicalização, já que orientaria os usuários acolhedoras do cuidado aconteçam efetivamente, é ne-
(Dimenstein et al., 2009). cessário trabalhar na perspectiva de clínica ampliada.

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 58


Entende-se por clínica as práticas de profissionais que A ESF tem o poder de levar para a comunidade, para o
trabalham com diagnóstico, tratamento, reabilitação e território, novas formas de acolhimento, possibilitando
prevenção, o que coloca em primeiro plano o planeja- o trânsito para espaços até então desconhecidos e pou-
mento em saúde. Para que este planejamento se torne co seguros para a loucura. Desta forma, a ESF amplia
eficaz no dia a dia, e para que promova as mudanças ne- as possibilidades do CAPS, responsabilizando outros
cessárias, ele deve, de forma imprescindível, fazer uma atores pelo cuidado, pois ela ainda continua sendo a
interlocução com a clínica. Entretanto, a clínica deve principal referência para a população em geral (Souza,
sair desse status reducionista, e de caráter sanitarista, 2006). Promover a saúde exige a intervenção nesses
e passar a praticar a prevenção e promoção de saúde, contextos onde o sujeito em sofrimento está inserido e,
tirando esse saber da hegemonia médica (Campos, para tal, a ESF tem possibilidades imensuráveis, por seu
2001). caráter democrático.
Apesar dos avanços, em diversos lugares, ainda não se Sem articulação nos serviços de rede, é quase impos-
oferecem alternativas terapêuticas ao tratamento, além sível reunir a totalidade de recursos disponíveis para o
dos conhecidos medicamentos e da tradicional interna- cuidado em saúde da população. Portanto, parece que
ção vez por outra. O asilamento vem sendo substituído, o principal desafio do SUS, no território, seja a con-
ainda que muito lentamente, por serviços substitutivos strução dessa rede, com vistas a melhoria da qualidade
como: CAPS, NAPS, Hospitais Dia, equipes de saúde de vida dos que estão em sofrimento psíquico, pen-
mental em ESFs, etc. (Campos. 2001). Infelizmente, é sando o cuidado sem estigmas. A ideia de clínica am-
muito comum ver esses novos serviços sendo dissocia- pliada precisa ser disseminada, pensando novos modos
dos da sua real intenção: o da integralidade. de cuidado e inovando a prática médica, para então
A política nacional de saúde mental vem reforçando a desconstruir essa clínica hegemônica e retrógrada exis-
ideia de território para substituir os serviços tradicio- tente (Tesser, 2006b). A ESF tinha como principal fun-
nais, promovendo a diminuição dos leitos psiquiátri- ção romper essa tradição medicalizante, apoiando-se
cos e a ampliação de propostas de atenção psicossocial. na ideia de promoção de saúde. Porém, não houve uma
Desta maneira a psiquiatria se vê obrigada a mudar o reorganização na formação dos profissionais, em espe-
paradigma de tratamento da doença mental, para pen- cial da classe médica para sustentar tal modelo. Não foi
sar efetivamente na promoção da saúde mental (Sou- pensado também, estratégias para lidar com a deman-
za, 2006). A atenção psicossocial desta forma adota o da espontânea existente nesses espaços. Para tanto, a
princípio de saúde como direito, visando à garantia de Política Nacional de Humanização pensou maneiras de
serviços mais acolhedores e dignos, mais singulares e solucionar essas lacunas e, então, apresentou a proposta
responsáveis para o portador da doença. de Acolhimento (Tesser, Neto, e Campos, 2010).
Os CAPS surgiram no Brasil na década de 80, baseado Dessa forma, haveria a descentralização da organização
no modelo italiano de Centros de Saúde Mental, com a tradicional do Sistema, apenas em agendas e procedi-
proposta de pensar o cuidado no território, os víncu- mentos, passando a viabilizar o cuidado, a escuta atenta
los e um acolhimento digno, com olhar voltado para e ética, uma postura empática e respeitosa ao usuário,
o sujeito e sua subjetividade, bem como para espaços através do Acolhimento (Tesser et al., 2010). Essa pro-
de inclusão e solidariedade, em detrimento das práti- posta não deixa de lado os atendimentos prioritários e
cas médicas tradicionais. Hoje o CAPS representa a avaliação de riscos e vulnerabilidades. O Acolhimento
articulação de saúde entre o sujeito e o território, um propõe um vínculo maior entre usuário e serviço, onde
serviço substitutivo ao modelo assistencial largamente a pessoa procura espontaneamente pelo Sistema, é ou-
conhecido. Ele veio também para desmistificar a ideia vida, sua demanda é processada e, então, é pensada de
de loucura presente no imaginário social. Ele centra-se forma conjunta a resolução do problema, quando há.
na atenção integral ao portador de sofrimento, produz- A ideia principal do Acolhimento seria tirar do médico
indo maneiras diferentes de entendimento da loucura, a prioridade do atendimento, passar a responsabilidade
que não apenas a segregação (Souza, 2006). para outros profissionais, colocar o usuário em contato
A ESF e o CAPS representam uma possibilidade real de com as diversas possibilidades de cuidado, que não ape-
inserir a loucura e o portador de sofrimento psíquico nas o medicamentoso, desta forma ampliando a clínica,
na sociedade e nós vamos, enquanto cidadãos, ressig- apresentando outras respostas para o sofrimento (Tes-
nificando as relações do cotidiano. ser et al., 2010).

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 59


Em geral, a demanda espontânea acaba sendo orientada É importante esclarecer que não se pretende afirmar
para o atendimento médico, que ainda tem a prioridade que os argumentos sobre a capacidade de diagnósticos
na diagnose. Entretanto, avaliar os riscos e vulnerabi- que formam a base para a medicalização do compor-
lidades, a escuta, orientação, cuidado e resolução de tamento “normal” são redundantes; nem se pretende
problemas podem ser feitos por toda a equipe de saúde. sugerir que trabalhos extremamente relevantes sobre o
Se a grande maioria da demanda espontânea acaba uso dos diagnósticos ainda não foram realizados. En-
medicalizada, o Acolhimento se mostra então uma es- tretanto, um trabalho crítico, que cuidadosa e criterio-
tratégia possível para o contrário (Tesser et al., 2010). samente interrogue a realização e o significado das cat-
Ela empodera outros profissionais, que têm mais con- egorias de diagnóstico, continua a ser vital e certamente
tato e conhecimento do contexto do paciente. Isso, con- contribuirá para debates sociais e clínicos mais amplos,
sequentemente, faz com que a abordagem do problema que podem refazer as realidades que emergem. Vale sa-
seja ainda maior, ofertando outras possibilidades ter- lientar que as entidades responsáveis pelos diagnósti-
apêuticas, que favorecem a desmedicalização. A lógica cos clínicos são poderosas: elas moldam a sociedade e
do encaminhamento para outros profissionais, que pre- a subjetividade dos indivíduos e é por esta razão que
cisam reiniciar o atendimento, facilita a fragmentação deve haver preocupação com o que tais entidades são
do cuidado e por isso deve ser evitado. e fazem.
Ao nos depararmos com a quantidade de diagnósticos
CONCLUSÕES e sintomas que o DSM traz a cada nova revisão, parece
muito difícil qualquer pessoa ao longo de sua vida não
O desenvolvimento do DSM-5 resultou em amplos co-
se enquadrar em algum tipo de transtorno. Ainda pa-
mentários críticos, ressaltando a importância dos diag-
rece muito distante o momento em que estaremos livres
nósticos na governança da vida social. Uma análise cui-
para sofrer, de forma autêntica e legítima, sem com isso
dadosa pode ajudar a mapear suas múltiplas dimensões,
sermos enquadrados em um número descritivo. Am-
permitindo que se compreenda e se questione sobre os
parar e autenticar a hegemonia da biomedicina é o que
pressupostos em torno dos quais os diagnósticos são
a sociedade de forma geral faz. E para romper esse pro-
construídos, bem como sua colocação e utilização. Tais
cesso é preciso informação e conscientização, a fim de
análises e questionamentos podem direcionar a atenção
quebramos essa lógica, e para tanto, cada um de nós
para preocupações e questões que são pouco “audíveis”
tem responsabilidade frente a isso. Não mais se pode
e para vozes que não têm sido ouvidas.
permitir o controle da sociedade através do fármaco, e
Então, um foco renovado sobre a utilização das catego-
menos ainda o oportunismo frente ao sofrimento hu-
rias diagnósticas, e sobre uma expansão na esfera do
mano da indústria farmacêutica e médica para estabel-
discurso público, que inclua vozes que raramente são
ecer-se no mercado.
ouvidas, pode fornecer uma base mais potencialmente
É preciso, também, tirar das mãos exclusivas do médico
centrada no paciente e orientada para a prática de afir-
a responsabilidade de dimensionar e validar o tamanho
mações normativas sobre concepção e execução de
do sofrimento psíquico vivenciado pelo sujeito, nos
sistemas de saúde mental. Afinal, em uma perspectiva
mais diversos momentos de sua vida. Cada um de nós
foucauldiana, a psique é importante demais para ser
tem o direito e o dever de escolher o tratamento mais
deixada somente na responsabilidade da psiquiatria, já
adequado em cada caso, seja ele medicamentoso ou
que esta área o conhecimento é atualmente incapaz de
não. Mascarar a dor é opcional, e esconder-se atrás de
fornecer um serviço eficaz para muitos que são medi-
um diagnóstico tampouco a diminuirá. Portanto, faz-se
calizados por sofrimento. É preciso que se investiguem
urgente dissolver os manicômios velados disfarçados de
as causas que desencadearam os diversos tipos de sofri-
“tratamentos”, para não mais sermos reféns da primazia
mento. Muitos deles necessitam de novas abordagens.
medicalizante. Romper com essa lógica é, antes de tudo,
A psiquiatria não conseguiu melhorar os níveis médios
encarar os nossos monstros há muito escondidos, ter a
de felicidade e bem-estar na população em geral, apesar
coragem de admitir o “fracasso” frente a algumas adver-
de enormes gastos em drogas e manuais de psicoterapia
sidades da vida, para então ressignificar essas passagens
psicotrópica. Entretanto isto não traz nenhuma surpre-
de um modo mais saudável e autônomo. A normatiza-
sa, já que psiquiatria, com certeza, tem se empenhado
ção da vida acontece quando essa liberdade de escolha é
em ajudar as pessoas com transtornos mentais, e não
assegurada e permitida às pessoas e não transformando
tem sido sua meta salvar a humanidade.
a dor em epidemia de diagnósticos.
Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 60
O mal-estar é necessário na sociedade, porque é através REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
dele que nos tornamos conscientes e temos a possibili-
dade de cobrar as mudanças desse modelo tão nefasto Aries, P. (1981). História social da criança e da família.
que tanto persiste. Rio de Janeiro: Zahar.
O presente trabalho, essencialmente, questiona a le-
gitimidade de muitos diagnósticos que definem o sta- Arce, V. A. R., Sousa, M. F., e Lima, M. G. (2011). A
tus atual de transtorno mental para vários fenômenos práxis da saúde mental no âmbito da estratégia saúde
ora medicalizados. Está claro que os parâmetros destes da família: Contribuições para a construção de um
transtornos e seus sintomas requerem mais escrutínio cuidado integrado. Physis: Revista de Saúde Coletiva,
por parte de profissionais de diferentes áreas e se, de 21(2), 541-560.
fato, muitos destes diagnósticos não são clinicamente
válidos, porque são uma forma socialmente construída Barker, K. (2009). Medicalization, multiplication of dis-
de medicalizar comportamentos “indesejáveis”, então a eases, and human enhancement. Salute e Società (8).
sua remoção do DSM não somente é lógica, como tam-
bém é ética e necessária. Camargo Jr., K. R. (2013). Medicalização, farmacolo-
Cuidar é, antes de tudo, olhar com carinho. Acolher, gização e imperialismo sanitário. Cadernos de Saúde
compreender e ajudar. Cada pessoa, enquanto cidadão, Pública, 29(5), 844-846.
comunidade e especialmente enquanto profissionais da
saúde, tem o dever de olhar com carinho para o paci- Campos, R. O. (2001). Clínica: A palavra negada – so-
ente em sofrimento psíquico. Corresponsabilizar-se bre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de
mostrar-se urgente e, mais ainda, empoderar o sujeito saúde mental. Saúde em Debate, 25(58), 98-111.
em sofrimento; para isso é preciso informar e consci-
entizar e politizar os cidadãos para que estes também Carvalho, L. F., e Dimenstein, M. (2004). O modelo de
busquem e lutem por seus direitos, pela escolha consci- atenção à saúde e o uso de ansiolíticos entre mulheres.
ente, por maneiras mais saudáveis e eficazes de cuidar Estudos de Psicologia, 9(1), 121-129.
da sua saúde mental. Cuidar é oferecer e exigir digni-
dade e humanização do atendimento, honrando a sin- Cedraz, A., e Dimenstein, M. (2005). Oficinas terapêu-
gularidade de cada um. ticas no cenário da reforma psiquiátrica: Modalidades
Isso significa não mais colocar como principal objetivo desinstitucionalizantes ou não?. Revista Mal Estar e
a produtividade, porque o cuidado exige a sutileza da Subjetividade, 5(2), 300-327.
escuta qualificada, do toque, do olhar. Praticar, de for-
ma legítima os princípios do Sistema Único de Saúde, Cervo, A. I., e Bervian, P. A. (2002). Metodologia cientí-
priorizando a equidade e a integralidade, tão falhos na fica (5ª ed.). São Paulo: Prentice Hall.
prática do dia a dia, em função da rotina desgastante
dos trabalhadores da saúde. Conrad, P. (2007). The Medicalization of society: On
Uma ação comprometida exige uma rede de cuidados the transformation of human conditions into treatable
bem estabelecida, responsabilizando todos os atores en- disorders. Baltimore: Johns Hopkins U. P.
volvidos nela e, dessa forma, descentralizando o poder
do cuidado que hoje é quase que exclusivo do médico Dimenstein, M., Severo, A. K., Brito, M., Pimenta, A. L.,
e do fármaco. Pensar a promoção de saúde mental per- Medeiros, V., e Bezerra, E. (2009). O apoio matricial em
passa a ideia de territorialidade. Empoderar cada per- unidades de saúde da família: Experimentando inova-
tencente ao território para ser capaze e responsável pelo ções em saúde mental. Saúde e Sociedade, 18(1), 63-74.
cuidado daquele que sofre. Cada profissional de saúde
pode e deve sentir-se apto e capaz desse cuidado, visto Foucault, M. (2010). Problematização do sujeito: Psico-
que, em grande parte dos casos, o que o paciente deseja logia, psiquiatria, psicanálise. Rio de Janeiro: Forense
é empatia e escuta honesta. Universitária.

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 61


Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento Meister, E. K., Bruck, I., Antoniuk, S. A., Crippa, A.
psíquico: Considerações sobre o discurso psiquiátrico C. S., Muzzolon, S. R. B., Spessatto, A., e Gregolin, R.
e seus efeitos na educação. Educação e Pesquisa, 33(1), (2001). Learning disabilities: Analysis of 69 children.
151-161. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 59(2B), 338-341.

Horwitz, A., & Wakefield, J. (2009). The medicalization Souza, A. C. (2006). Ampliando o campo da atenção
of sadness. Salute e Società (8), 49-66. psicossocial: A articulação dos centros de atenção psi-
cossocial com a saúde da família. Escola Anna Nery Re-
Kamers, M. (2013). A fabricação da loucura na infân- vista de Enfermagem, 10, 703-710.
cia: Psiquiatrização do discurso e medicalização da cri-
ança. Estilos da Clinica, 18(1), 153-165. Tesser, C. D. (2006a). Medicalização social (I): O exces-
sivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde. In-
Mannoni, M. (1988). Educação impossível. Rio de Ja- terface - Comunicação, Saúde, Educação, 10(19), 61-76.
neiro: Francisco Alves.
Tesser, C. D. (2006b). Medicalização social (II): Limites
Maturo, A. (2010). Bipolar disorder and the medi- biomédicos e propostas para a clínica na atenção bási-
calization of mood: An epidemics of diagnosis? In A. ca. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 10(20),
Mukherjea (Ed.), Understanding emerging epidemics: 347-362.
Social and political approaches (pp. 225-242). Emerald
Books. Tesser, C. D., Neto, P. P., e Campos, G. W. S. (2010).
Acolhimento e (des)medicalização social: Um desafio
para as equipes de saúde da família. Ciência & Saúde
Coletiva, 15(Supl. 3), 3615-3624.

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Nº 15 (JUN.,2016) | 62

Você também pode gostar