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Oficina de Criação Musical Infantil: uma viagem musical1

Flávia Motoyama Narita2


Universidade de Brasília

Resumo:
A proposta da Oficina de Criação Musical Infantil é oferecer vivências musicais
significativas por meio de atividades integradas de composição, execução e apreciação.
Fundamentada no modelo (T)EC(L)A de Swanwick (1979), a Oficina pretende que o
envolvimento direto com o fazer musical instrumentalize as crianças na construção de
seu conhecimento musical a partir de tomadas de decisões durante a prática musical.
Desse modo, as escolhas musicais não se restringem a atividades de composição, mas
abrangem também as modalidades de execução e apreciação. Considerando os três
princípios de educação musical propostos por Swanwick (2003), as aulas da Oficina
procuraram (1) tratar a música como discurso, considerando as diferentes dimensões
que a constituem; (2) considerar o discurso musical dos alunos, integrando suas
vivências prévias às práticas das aulas; e (3) estimular a fluência em toda prática
musical. Com repertório variado, a Oficina também teve como objetivo ampliar o
repertório das crianças e, com isso, auxiliá-las “no processo de apropriação, transmissão
e criação de práticas músico-culturais como parte da construção de sua cidadania”
(Hentschke e Del Ben, 2003, p.181).
Palavras-chave: modelo (T)EC(L)A de Swanwick; curso de extensão; escolhas
musicais.

A música na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental,


apesar de freqüentemente presente nas atividades escolares, assume muitas vezes um
papel secundário dentro de uma proposta multidisciplinar. Apesar de a música
apresentar um corpo de conhecimento que pode ser experienciado e desenvolvido por
meio de atividades musicais práticas de execução, apreciação e composição, por vezes
ainda é utilizada apenas como recreação, relaxamento ou estímulo a outras atividades.
Fundamentada no modelo (T)EC(L)A de Swanwick (1979), a proposta da
Oficina de Criação Musical Infantil é oferecer atividades práticas em que as crianças
tenham envolvimento direto com o fazer musical, desenvolvendo habilidades e
autonomia musical por meio de modalidades integradas de composição, apreciação e
execução, apoiadas pela técnica e literatura (informações sobre música). Assim,

1
Trabalho apresentado no XVI Encontro Anual da ABEM e Congresso Regional da ISME na América
Latina – 2007.
2
Professora Assistente do Departamento de Música da Universidade de Brasília, mestre em Educação
Musical pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres e licenciada em Música pela
Universidade de São Paulo. E-mail: flavnarita@yahoo.com.br
pretende-se desenvolver nas crianças uma “fluência musical” (Swanwick, 2003),
proporcionando atividades significativas em que tenham possibilidades de tomada de
decisões musicais, manipulando sons, desenvolvendo sua expressividade e estruturando
seu pensamento musical.
Oferecida como um curso de extensão do Departamento de Música da
Universidade de Brasília (UnB), esta primeira edição da Oficina foi realizada em 16
aulas com duração de uma hora e meia, totalizando 24 horas/aula. Contamos com a
participação de 6 crianças que, com idades entre 7 e 10 anos, (re)visitaram um
repertório variado que abarcou músicas orquestrais, populares, étnicas e jogos infantis.
Além do fazer musical utilizando percussão corporal, voz, instrumentos de percussão e
piano, como toda prática de conjunto, a Oficina de Criação Musical Infantil também
teve como um dos objetivos a socialização dos participantes, trabalhando aspectos de
integração e respeito às idéias, cultura e individualidade de cada um.
Além de divulgar práticas musicais entre as crianças da comunidade, a Oficina
pretende ser um espaço onde alunos do curso de licenciatura em Música, sob a
supervisão direta do professor, possam observar e testar metodologias discutidas
durante o curso, instigando a pesquisa-ação entre os licenciandos. Com isso, pretende-se
fomentar nos licenciandos um pensamento crítico-reflexivo acerca dos saberes docentes,
investigando e refletindo sobre os conteúdos e abordagens propostos no curso de
Licenciatura.

Criação Musical
Compreendendo a criação musical como “uma atitude que deve permear toda a
prática educativo-musical”, sendo parte de um “processo ativo de construção de
conhecimento” não apenas restrita às atividades de composição (Beineke, 2003, p.95-
96), as aulas da Oficina têm procurado oferecer às crianças situações de escolhas
musicais durante a execução, apreciação e composição. As tomadas de decisões são
incentivadas quando, por exemplo, escolhe-se: (1) variar o andamento e intensidade
(dinâmica) de uma canção para expressar determinado caráter; (2) identificar timbres,
padrões rítmicos e melódicos e suas relações na música escutada; (3) selecionar
instrumentos para acompanhar uma melodia, improvisar, criar uma introdução para uma
música etc.
França e Swanwick (2002, p.8-16) apresentam as modalidades de composição,
apreciação e execução como fundamentos de uma educação musical abrangente.
Discorrendo sobre cada uma dessas modalidades e trazendo idéias compartilhadas por
outros autores, França e Swanwick (ibid.) apontam a relevância de cada modalidade e,
principalmente, de sua integração na prática musical. Além das idéias discutidas pelos
referidos autores, relaciono brevemente outras que nortearam o fazer musical nas aulas
da Oficina.

Composição
Considerando a composição como uma atividade abrangente onde há “certa
liberdade para escolher a organização de uma música” (Swanwick, 1988, p.60),
denominamos composição as atividades de improvisações, arranjos e criações mais
elaboradas. Dentre estas atividades, a improvisação e o arranjo foram mais abordados
nesta primeira edição da Oficina, procurando validar o conhecimento prévio dos alunos,
sem impor apenas concepções da professora, mas direcionando aqueles a descobrirem
suas potencialidades, instigando-lhes a curiosidade a fim de construir um pensamento
musical criativo, crítico e autônomo. Swanwick (2003, p.66) aponta isto como um dos
princípios em educação musical: “considerar o discurso musical dos alunos”.

... a composição (invenção) oferece uma grande oportunidade para


escolher não somente como mas o que tocar ou cantar, e em que
ordem temporal. Uma vez que a composição permite mais tomadas de
decisão ao participante, proporciona mais abertura para a escolha
cultural. A composição é, portanto, uma necessidade educacional, não
uma atividade opcional para ser desenvolvida quando o tempo
permite. Ela dá ao aluno uma oportunidade para trazer suas próprias
idéias à microcultura da sala de aula, fundindo a educação formal com
a “música de fora”. (SWANWICK, 2003, p.68)

Paynter (2000) é outro autor que sempre advogou uma vivência musical ativa
por meio da composição. Segundo este autor, compor

Pode não ser mais que um padrão melódico curto ou uma progressão
de acordes descobertos, relembrados e ensaiados até sua fluência. Não
precisa fazer uso da notação musical, e mesmo que haja apenas duas
notas, o professor pode perguntar: ‘Por que colocou aquela nota ali e a
outra lá?’... Tendo de tomar decisões e incentivados a descobrir o
máximo possível a respeito da música que fizeram... [os alunos] são
iniciados no caminho de formular as questões que todo compositor
deve fazer sobre cada obra: ‘Para onde essas idéias musicais estão me
levando? Quais as possibilidades? Por que deveria escolher este
caminho e não um outro? Como saber quando esta peça está
completa?’ (PAYNTER, 2000, p.8)3

Desde a primeira aula, as crianças são incentivadas a improvisar, explorando e


manipulando instrumentos de percussão e sons corporais (voz, palmas, pés, batida no
peito etc.) para acompanhar canções, criar uma introdução ou uma ponte entre duas
músicas e compor conversas musicais, por meio de imitação e de pergunta e resposta.
Além da escolha dos timbres e, muitas vezes, de um padrão rítmico, as crianças também
são encorajadas a pensarem no caráter expressivo de suas composições. Segundo
Swanwick (1988, p.67), inicialmente, os gestos expressivos apresentam-se como
padrões rítmicos e melódicos comuns e, “freqüentemente, melodias conhecidas são
reproduzidas, às vezes alteradas e utilizadas, talvez, como modelos subconscientes.”
Um exemplo deste “empréstimo musical” foi a improvisação melódica baseada na
canção Sansa Kroma4, em que utilizamos as cinco primeiras notas de uma escala maior.
Em um dos improvisos, um aluno percebeu que poderia cantar o início do tema de
Guerra nas Estrelas!

Apreciação
Apesar de reconhecer a importância educacional de tratar a apreciação tanto
como meio para desenvolver outras atividades musicais como fim em si mesma, neste
relato, focalizo a utilização da apreciação como meio para aumentar o repertório de
escolhas dos alunos quanto aos materiais sonoros (instrumentos, ritmo, melodia,
andamento etc.) e sua apropriação para decisões relativas ao caráter expressivo e
estrutura musical em atividades de composição e execução. Com o intuito de oferecer
exemplos variados para as escolhas musicais, o repertório baseou-se no tema Viagem
Musical, que abarcou música orquestral, canções infantis brasileiras e de outros países e
jogos musicais.

Execução
Presente em todas as aulas da Oficina, a execução ocorreu utilizando canto,
percussão corporal, voz (para outros efeitos além do canto), instrumentos de percussão e

3
Tradução minha.
4
Canção africana extraída do livro de ALMEIDA e PUCCI, Outras Terras, Outros Sons.
piano. As atividades propostas incluíram acompanhar canções com padrões rítmicos,
melódicos e bordões (pedal), cantar canções imitando sotaques de outros povos,
variando andamento, dinâmica etc.
Sempre como uma prática de conjunto, as atividades de execução visavam
também incentivar a negociação de escolhas musicais dentro do grupo. Todos os
integrantes cantavam e tocavam os padrões estipulados pela professora ou compostos
por eles, de modo que todos, assim, poderiam escolher qual e como seria sua
participação e contribuição musical no conjunto.

Viagem Musical
Após breve panorama das atividades centrais realizadas na Oficina, ilustro a
integração das mesmas sob o tema Viagem Musical.
A partir da canção italiana Terra5, de A. Lovatto, iniciamos nossa viagem
musical cantando a mesma variando andamento e dinâmica. Voltando a atenção à letra,
as crianças foram estimuladas a contar a história da canção: “Todos em um barco
iniciam uma viagem. Remam até chegar em outras terras.” Uma vez compreendido o
significado da canção, as crianças foram questionadas a respeito de quais instrumentos
que tinham à disposição seriam mais adequados para esta música. Elas escolheram
alguns instrumentos de percussão para acompanhar o canto e criaram uma introdução
com voz e pau-de-chuva, imitando o som de ondas do mar.
Logo depois, escutaram a gravação de Pindorama, de Sandra Peres e Paulo
Tatit, seguindo as ilustrações e letra do livro de mesmo nome. As ilustrações da viagem
de Cabral até atracar em Pindorama (como os índios chamavam o Brasil) facilitaram a
conexão entre a canção italiana e esta. Em uma nova atividade de apreciação, as
crianças foram solicitadas a prestarem atenção no início de Pindorama: se a música já
iniciava com o canto ou se havia uma introdução, semelhante ao que haviam feito para a
canção Terra.
Todos reconheceram o início como uma introdução e analisamos os
instrumentos presentes na gravação, assim como os sotaques português e brasileiro,
representando os portugueses e os índios. Com os instrumentos que tínhamos,
elencamos aqueles que poderiam ser utilizados para acompanhar o canto dos

5
Qui s’inizia un gran viaggio. Tutti in barca a remare. Rema forte si va veloce. Terra, terra, terra, terra.
portugueses e dos índios. Junto com a gravação, as crianças tocaram pandeiro e agogô
representando os índios e triângulo e black-black representando os portugueses. Na
introdução, escolheram tocar tambores e fazer sons de pássaros.
Posteriormente, a introdução de Pindorama foi re-elaborada e transformada em
uma ponte entre as duas canções, apresentadas como o início de nossa viagem:
estávamos no mar e chegamos no Brasil. Para ilustrar nossa passagem pelo Brasil,
vivenciamos jogos musicais como Lenga la lenga e Abre a Roda6. Nesses jogos, as
crianças eram estimuladas a cantar, tocar e improvisar. Fizemos algumas gravações da
produção das crianças e comparamos a versão delas com outras gravações.
Além dos jogos, criamos conversas musicais (pergunta e resposta com frases
melódicas e rítmicas) a partir das canções Da Bahia me mandaram e Xique-xique. O
jogo de pergunta e resposta foi a conexão para trabalharmos a Dança Russa7, de
Tchaikovsky, e Sansa Kroma, canção africana, dando continuidade à nossa viagem
musical.
À medida que o repertório era construído, podíamos fazer mais comparações
entre as obras e retomávamos algumas canções anteriores para, por exemplo,
acrescentar uma linha de acompanhamento melódico ou um pedal. Assim, incentivada a
criar um acompanhamento melódico para Sansa Kroma, uma criança percebeu que
havia cantado o início do tema de Guerra nas Estrelas. Terminamos nossa viagem,
então, com a canção africana seguida pelo tema do filme.
A estrutura final da composição Sansa Kroma/Guerra nas Estrelas foi:
Introdução: (1) Improvisos ao piano utilizando as cinco primeiras notas da
escala de dó maior acompanhados pelo pedal – dó e sol tocados simultaneamente; (2)
trechos de Sansa Kroma acompanhados pelo mesmo pedal; (3) seqüência I-IV-I-V-I
tocada no xilofone.
Sansa Kroma: melodia cantada e tocada ao piano, com acompanhamento do
xilofone, tambor e outros instrumentos de percussão.
Ponte: intervalo melódico de 5ª justa com as notas dó e sol, tocadas ao piano, e
uma variação do tema, utilizando apenas as cinco primeiras notas de dó maior.
Guerra nas Estrelas: tema tocado com sua variação. Utilizamos piano, teclado
e xilofone.

6
Jogos baseados no livro de BEINEKE e FREITAS: Lenga la lenga – jogos de mãos e copos.
7
Atividade baseada na proposta de WUYTACK e PALHEIROS em Audição Musical Activa.
Considerações finais
Este relato procurou ilustrar práticas musicais fundamentadas no modelo
(T)EC(L)A, de Swanwick (1979) como possibilidades de promover o desenvolvimento
de uma autonomia musical por meio de tomadas de decisões em atividades de
composição, apreciação e execução. Conforme pesquisa de Swanwick e França (1999,
p.17), essas três modalidades se retroalimentam, nutrindo as vivências musicais dos
alunos, como pudemos perceber em vários momentos de nossa Viagem Musical.
A mesma pesquisa aponta também a importância de selecionarmos tarefas
apropriadas e acessíveis para que os alunos possam demonstrar seu desenvolvimento
musical nas atividades propostas. Nesta primeira edição da Oficina, algumas atividades
foram adaptadas para melhor se adequarem ao nível técnico das crianças: padrões
rítmicos de jogos com copos e dedilhados para piano muitas vezes foram modificados
em prol da fluência musical.
Um outro aspecto que vale ser ressaltado na prática pedagógico-musical,
apontado por Hentschke e Del Ben (2003, p.181), é o propósito de “expandir o universo
musical do aluno, isto é, proporcionar-lhe a vivência de manifestações musicais de
diversos grupos sociais e culturais e de diferentes gêneros musicais dentro da nossa
própria cultura.” Esperamos ter exemplificado algumas possibilidades de utilização de
repertório variado neste curso de extensão, tratando o ensino musical como “um
caminho vivo e criativo, em uma rede de conversações que possui muitos sotaques
diferentes” (Swanwick, 2003, p.46).

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, M. Berenice; PUCCI, Magda. Outras Terras, Outros Sons. São Paulo:
Callis, 2003.

BEINEKE, Viviane. A composição em sala de aula: como ouvir as músicas que as


crianças fazem? In: HENTSCHKE, Liane; SOUZA, Jusamara (Org.). Avaliação em
música: reflexões e práticas. São Paulo: Moderna, 2003. p. 91-105.

BEINEKE, Viviane; FREITAS, Sérgio. Lenga la lenga – jogos de mãos e copos. São
Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda., 2006.
HENTSCHKE, Liane; DEL BEN, Luciana. Aula de música: do planejamento e
avaliação à prática educativa. In: HENTSCHKE, Liane; DEL BEN, Luciana (Org.).
Ensino de Música: propostas para pensar e agir em sala de aula. São Paulo: Moderna,
2003. p.176-189.

PAYNTER, John. Making progress with composing. British Journal of Music


Education, Cambridge, vol.17, n.1, p.5-31, 2000.

PERES, Sandra; TATIT, Luiz. Pindorama. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SWANWICK, Keith. A Basis for Music Education. London: Routledge, 1979.

_________________. Music, Mind, and Education. London: Routledge, 1988.

_________________. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e


Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.

SWANWICK, Keith; FRANÇA, Cecília Cavalieri. Composing, performing and


audience-listening as indicators of musical understanding. British Journal of Music
Education, Cambridge, vol.16, n.1, p.5-19, 1999.

_________________________. Composição, apreciação e performance na educação


musical: teoria, pesquisa e prática. Revista Em Pauta. Porto Alegre, vol.13, n.21, p.5-41,
2002.

WUYTACK, Jos; PALHEIROS, Graça. Audição Musical Activa. Livro do professor.


Porto (Portugal): Associação Wuytack de Pedagogia Musical, 1995.

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