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Apresentação
O trabalho em questão é fruto de uma pesquisa sobre as experiências vividas
pelos primeiros moradores do bairro José Walter, inaugurado em 1970 pelo BNH,
órgão criado pela ditadura militar cujo principal objetivo era financiar moradia para a
população de menor renda. Esse estudo foi iniciado durante a graduação em História na
Universidade Federal do Ceará, e se encontra sob a orientação da Dra. Kênia Sousa
Rios, que em muito tem contribuído para tornar a pesquisa mais ousada, especialmente
no que concerne a composição dos objetivos. Durante essa exposição me deterei à parte
da pesquisa que consiste em compreender todo o processo que culminou na criação de
diversos conjuntos habitacionais, dentre eles o Conjunto Habitacional Prefeito José
Walter, sobre o qual se deterá o enfoque.
As Migrações
1
No Estado do Ceará as secas e a rigidez na mobilidade social no trabalho do
campo sempre foram grandes motivadores da migração intermunicipal, sendo o maior
destino destas migrações a capital do Ceará, Fortaleza. Nunca fora possível absorver
toda a mão-de-obra que chegava, provocando mais problemas sociais, como a formação
de favelas e acentuação do desemprego.
O início da modernização e da industrialização na cidade de Fortaleza, já
relevante no início do século XX, fazia com que mais e mais migrantes chegassem em
busca de uma vida melhor. Segundo dados do IBGE1, em 1950, Fortaleza contava com
89.984 habitantes recenseados, dez anos depois estava com 244.649, o que significa um
crescimento de 90,6% da população, número que pode ter sido acentuado devido às
secas de 1951 e 1958. De 1960 a 1970 a população recenseada de Fortaleza cresceu
69,5%, contando então com 357.884 habitantes.
Segundo o documento As migrações para Fortaleza de 1967, citado por
Santiago2, “dentre as 'razões da saída do lugar de nascimento', o desejo de 'empregar-se'
teve os mais elevados percentuais: 24,5%; a posse da casa própria, que vem em segundo
lugar (...), teve o índice de 18,6%; e, em 3º lugar, o desejo de ascensão social, ou de
mudança de 'status', traduzido pela expressão 'melhorar de vida', representou 11,0%”.
Para muitos, Fortaleza seria o lugar para resolução de todos os males, onde parecia ser
possível inserir-se dentro do mercado de trabalho, o que proporcionaria acesso à bens
materiais julgavam inadquiríveis em sua cidade de origem.
Essas famílias ao chegarem a Fortaleza, quando não tinham parentes aos quais
recorrer, encontravam um terreno, que não houvesse quem reivindicasse a propriedade
(espaços destinados geralmente à ruas e praças ou terras pertencentes a União),e lá
montavam suas barracas. Jucá3 aponta os principais bairros, que surgiram desta
maneira, existentes nas décadas de 40 e 50, entre eles estão o Cercado do Zé Padre, o
Lagamar, Morro do Ouro, Floresta, Monte Castelo, o Arraial Moura Brasil, sobre o qual
se encontra registros já em 1888, e o Pirambu.
O Arraial Moura Brasil situava-se entre o centro comercial e a Praia de
Iracema. O Pirambu era considerado uma extensão dele, encontrando-se na zona oeste
de Fortaleza, onde se localizavam as indústrias de Fortaleza, sendo em sua maioria
têxteis. Segundo Jucá4, em 1958, a indústria tinha apenas 11,72% de participação na
renda interna do Ceará, enquanto a área de serviços era responsável por 64,55% da
renda interna do Estado. Sendo perceptível a impossibilidade para esta primeira
absorver toda a mão-de-obra que chegava à capital.
2
Estas pessoas “desocupadas” incomodavam principalmente os moradores do
Benfica e Jacarecanga, bairros mais aristocráticos da época, forçando estes a se
mudarem pouco a pouco para o leste da cidade. Para o Poder Público essa população
também era incômoda, pois causava prejuízo à economia local, ocupando áreas cada vez
mais valorizadas pela especulação imobiliária, próximas à faixa litorânea ao leste da
cidade.5
A valorização destas áreas, como explica Dantas6, deu-se inicialmente pela
construção de casas de veraneio na praia de Iracema pela população mais abastada,
devido ao desenvolvimento de novas práticas culturais, como os banhos de mar e as
caminhadas de praia. Posteriormente, deu-se início à construção de clubes elegantes,
vindo este espaço litorâneo a se tornar um importante ponto de encontro na cidade.
Ainda segundo o autor, “onde estas classes se instalam, ocorrem expulsões.
Inicialmente na Praia de Iracema, com a especulação fundiária, e posteriormente, na
praia do Meireles, evidenciando uma expulsão crescente dos antigos habitantes” 7.
Jucá acrescenta a preocupação das elites com a estética da cidade como
também com a segurança, ressaltando o desinteresse das mesmas em solucionar o
problema da miséria, pois preocupavam-se apenas em afastar essa massa do perímetro
central.
“Na medida em que aumentava o índice de casebres em áreas
consideradas ‘marginais’, mais crescia a preocupação da sociedade
civil no controle da ideologia alimentada, segundo o qual era
imprescindível afastar a pobreza dos espaços estratégicos disputados
na cidade. Não se apontava o que realizar, ou por quais meios o peso
da miséria poderia ser avaliado; o objetivo prioritário prendia-se a
manutenção da estrutura ideológica e de seu material, ou seja, tanto
as organizações que as criavam quanto os recursos básicos de difusão
dessa ideologia tinham o intuito de salvaguardar o ideal de ordem e
estética urbanas” 8.
3
bairros criaram associações, através das quais tentavam resguardar seu direito sobre a
terra, pois acreditavam que ter onde morar era um direito básico de qualquer ser
humano, para eles tratava-se de justiça social10.
4
implantação industrial na área. Surgiam muitas fábricas, muita
riqueza de chaminé, e os anjos disseram amém.”13
5
Financeiro de Habitação – SFH a partir da LEI de Nº 4.380 de 21.08.1964, sendo os
financiadores o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS20 e a Poupança
Voluntária ou a Caderneta de Poupança.
Rodrigues21 aponta três dificuldades que seriam enfrentadas pelo BNH/SFH, o
déficit habitacional brasileiro de grandes proporções; os critérios de escolha da casa que
seria de acordo com a faixa salarial do inquilino; e, as taxas de juros cobradas pelo
órgão financiador. Sendo este último o mais problemático, pois era necessário estar
sempre revendo essas taxas para que houvesse a aquisição das casas. É o que nos revela
a fala dos industriais de construção civil sobre o programa proposto pelo BNH, no
jornal Unitário de 18.10.1970. Essa faz referência a pontos que o programa deveria
observar: “a)baixa de taxas de juros reais, no caso indicados; b)extensão de prazo, com
financiamentos consolidados das dívidas; c) revenda, em condições especialmente
vantajosas, de juros e prazos e execução das hipotecas pelo Decreto – Lei 70 (que criou,
inclusive, a cédula hipotecária)”22.. Esta preocupação explica-se pela inadimplência
existente com relação ao pagamento das prestações, que fazia com que a COHAB
despejasse os moradores23.
Não se pode esquecer que através de propagandas a realização do “sonho da
casa própria”, pelo morador de Fortaleza, parecia cada vez mais possível. Assim, foi
mais fácil convencer este a deixar seu lugar de morada em prol de algo que seria seu,
com o pagamento de pequenas prestações que eram equivalentes ao salário do
proletariado, estas correspondiam a valores destinados a aluguéis24. A esse respeito, no
Jornal “Unitário”25, foi localizada uma propaganda de página inteira apresentando as
plantas dos modelos das casas que iriam ser construídas no Conjunto Habitacional
“Cidade 2000”. Estas propagandas também eram realizadas com o intuito de promover
o Golpe Militar de 1964, como podemos observar em nota de comemoração do sexto
aniversário do BNH, publicada em jornal.
“O BNH nasceu com a revolução de 1964.
Sua preocupação primeira: criar condição de moradia em todo o país.
E em seis anos 600.000 novas residências.
O BNH cresceu com a Revolução de 1964. Meta: O homem. Dar-lhe
condições melhores de vida. Novas oportunidades e esperanças.
O BNH financia obras de saneamento por todo o Brasil. 972 dos
4.000 municípios brasileiros passam a ter água tratada. 36 milhões de
pessoas beneficiadas. E movimentam-se projetos de planejamento
urbano e para a criação ou ampliação de redes de esgotos.
O BNH realiza-se com a Revolução de 1964. O BNH sabe que tudo
isso foi possível pelos recursos obtidos através das contas do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço e da Poupança Voluntária captada
6
das letras imobiliárias e cadernetas de poupança. Dinheiro do povo.
Que reverte ao povo, no seu direto e justo benefício. Por isso nos
sentimos orgulhosos quando nos chamam: Banco Nacional da
Humanização.”26
7
janeiro de 1973 estavam sendo entregues as casas da terceira etapa. O autor
complementa:
“Acolá, antigo estágio de solidão quase silvestre, a COHAB –
Fortaleza, com verbas consignadas ao BNH, em tempo recorde
construiu uma cidade moderna e alegre, farta de água e luz profusa,
higiene e escoamento hidráulico, tudo de forma simples, mas de
feição atraente humanizada. (...)”31
8
“Estas 4.424 casas constituirão uma cidade, e uma cidade exige
serviços de natureza dispendiosa. Assistência médica, hospitalar,
odontológicas, são alguns dos diversos tipos de serviços que terão que
ser postos a disposição do povo, sem contar um pequeno centro
comercial, escolas, igrejas, policiamento, etc. E tudo isto representa
gastos, despesas e muitos votos para eleger políticos no futuro.”35
9
acabamento, era forrada e continha caixa d’água. A escolha se dava através de um
sorteio na própria COHAB. O próprio morador sorteava a casa onde ia morar colocando
a mão dentro do saco onde estavam os endereços das casas correspondentes ao padrão
(A, B, C ou D) que lhe foi destinado.
Considerações finais
A partir do que foi exposto, percebeu-se que planejamento urbano, tinha a
intenção de “esquadrinhar” as camadas mais pobres em zonas da cidade que,
estrategicamente, deveriam se localizar fora dos espaços de sociabilidade das elites da
cidade Fortaleza. Portanto, a tônica dessa política se baseava na divisão espacial da
cidade entre zonas mais valorizadas – habitadas pelas elites – e os locais mais
longínquos destinados as camadas populares que tanto incomodavam os setores mais
abastados da sociedade fortalezense.
As propagandas referentes a esses Conjuntos Habitacionais se utilizavam do
sonho, da maioria dos moradores, de ter sua casa própria que seria construída em um
local distante da cidade, porém com toda a infra-estrutura necessária, como água
encanada, fornecimento de energia, saneamento básico, escolas, igrejas, parques, posto
de saúde, transporte. Propagandas em grande parte enganosas que fizeram com que
muitos saíssem do aluguel e fossem morar num bairro isolado localizado no distrito de
Mondubim. Contudo o que será visto é que o Conjunto foi entregue, como diz o Sr.
Victor, somente com as casas. Este foi se construindo com iniciativas executadas, não
raramente improvisadas, pela própria comunidade que tentava superar as inúmeras
dificuldades que havia no conjunto habitacional, principalmente, relativas ao transporte,
fornecimento de água e luz. Mesmo reivindicando do poder público a solução para os
inúmeros problemas de infra-estrutura, a própria comunidade teve que ir desenvolvendo
meios para tentar superar toda sorte de dificuldades que se apresentavam em seu
cotidiano, tomando para si, responsabilidades que cabiam ao Estado.
1
Ver: SILVA, José Borzacchielo da. Os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos
sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.
2
SANTIAGO, Pádua. A cidade como utopia e a favela como Espaço Estratégico na Inserção na Cultura
Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-graduação em História Social e do
departamento de História da Universidade Federal do Ceará. – v.1, n.2 (jun. 2002) – Fortaleza:
Departamento de História da UFC, 2002. p. 120.
3
JUCA, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil urbano de Fortaleza (1945-1960). 2 ed. São
Paulo: Annablume, 2003.
4
Idem
5
Em Fortaleza, especialmente neste período, elite e Poder Público se confundem, pois dificilmente
alguém que fizesse parte do Poder Público não pertenceria a elite de Fortaleza.
10
6
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza:
Museu do Ceará/ Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002.
7
Idem, p.53.
8
JUCA, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil urbano de Fortaleza (1945-1960). 2 ed. São
Paulo: Annablume, 2003. p.54.
9
Ver: Idem
10
Ver: BARREIRA, Irlys. O reverso das vitrines: conflitos urbanos e cultura política em construção. Rio
de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1992.
11
Ver: SILVA, José Borzacchielo da. Os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos
sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.
12
“O Ceará fabrica carro”. Unitário. Fortaleza, 25.10.1970. p. 16. “Indústrias levantam algodão”.
Unitário. Fortaleza, 30.10.1970. p.02. “Sudene ver projetos agrícolas no Ceará”. Unitário. Fortaleza,
21.10.70. p.02.
13
“SUDENE, a Esperança”. Unitário. Fortaleza, 17/11/1970, p.4
14
Ver: SILVA, José Borzacchielo da. Os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos
sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.
15
Idem.
16
Banco Nacional de Habitação. BNH: Projetos Sociais. Rio de Janeiro, 1979. 240p.
17
Banco Nacional de Habitação. BNH 1974. 62p.
18
Mensagem do Governo à Assembléia Legislativa. Governo de Virgílio Távora, 15 de março de 1966, p.
67. Mensagem do Governo à Assembléia Legislativa. Governo de Plácido Aderaldo Castelo, 01 de março
de 1969, p. 68B.
19
Criada em 1965, a partir de uma reformulação da Companhia de Habitação do Estado do Ceará -
CHEC, esta criada em 11 de setembro de 1963 pela Lei n 6.540, sociedade de economia mista, que tinha
por finalidades a realização de pesquisas e estudos necessários a formulação de uma política habitacional
para o Estado; a elaboração dos planejamentos físicos baseados nas pesquisas e estudos, nos moldes das
diretrizes do planejamento regional estabelecidas pela SUDENE, e ; elaboração e execução, diretamente
ou através de entidades públicas e privadas e pessoas físicas, dos programas de habitação para o Estado.
(Mensagem do Gov. Virgílio Távora à Assembléia Legislativa do Estado, 15 de março de 1964, p.43)
20
Com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS – em 1967, o BNH passou então a
contar com recursos mais significativos e de fluxo mais regular para o atendimento da crescente demanda
habitacional.
21
RODRIGUES, Hélio Alves. As territorialidades no âmbito da vida cotidiana do Bairro Prefeito José
Walter – Fortaleza, Ceará. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em Geografia da UECE, 2000.
22
Unitário. Fortaleza, 18.10.1970. p.02.
23
“COHAB toma casa”. Tribuna do Ceará. Fortaleza, 04.08.1970. p.02. “Mutuários do Pirambu não
podem pagar prestações” Tribuna do Ceará. Fortaleza, 29/10/1970. p.02.
24
OLIVEIRA, Hilton. “Casas deixam de ser caso”. Unitário. Fortaleza, 08/10/1970. p.02.
25
“Viva o futuro da cidade 2000”. Unitário. Fortaleza, 06.12.1970. p. 06.
26
“BNH: Banco Nacional da Humanização”. Unitário, Fortaleza, 25.08.1970. p.02.
27
Porém, este não era seu único objetivo, tinha também como um dos principais objetivos movimentar o
mercado imobiliário, incentivando a criação de empresas de capital misto, as COHAB’s.
28
OLIVEIRA, Hilton. “Casas deixam de ser caso”. Unitário. 08/10/1970. p.02.
29
RODRIGUES, Hélio Alves. As territorialidades no âmbito da vida cotidiana do Bairro Prefeito José
Walter – Fortaleza, Ceará. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em Geografia da UECE, 2000.
30
“Mais de 1810 residências da Sétima Cidade serão entregues em agosto”. Unitário. Fortaleza,
29/07/1970. p.03.
31
Thé, Heráclito Silva. Unitário. Fortaleza, 05/08/1970, p.7
32
Conjunto José Walter: 38 anos. Folha do Ceará. Fortaleza. 24 a 30 de abril de 2008.
33
Entrevista com Victor Ribeiro Neto em 20.06.08, morador do bairro desde 1970.
34
Entrevista com Carlos Iberê Nunes Olímpio, em 02.06.2008, morador do bairro desde 1970.
35
Fontes, Eduardo. “Construções residenciais”. Unitário. Fortaleza, 28/07/1970. p.4.
36
É possível encontrar matérias em jornais e em mensagens da Assembléia (1965 e 1966) com relação à
construção de casas construídas nos mesmos locais onde eram localizados as favelas e mocambos, como a
construção de 1500 casas no Pirambu.
37
“Cohab- Fortaleza entrega mais casas”. Unitário. Fortaleza,30/09/1970. p.1.
11