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org Ano 5, n°9, 2013

Lukács
A Ontologia da miséria / A miséria da Ontologia
LUKÁCS, György, Para uma ontologia do ser social, vol. 1. São Paulo: Boitempo,
2012. (Apresentação de José Paulo Netto, tradução do alemão por Mario Duayer e Nélio
Schneider, acrescida da tradução de Carlos Nelson Coutinho, baseada na edição
italiana).

Cláudio R. Duarte

“O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no


sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o
governa. (...) O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a
riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em
comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por
meio da própria grande indústria. (...)
O tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria
riqueza como sendo fundada sobre a pobreza e o tempo
disponível como tempo existente apenas na e por meio da
oposição ao tempo de trabalho excedente, ou significa pôr todo o
tempo do indivíduo como tempo de trabalho, e daí a degradação
do indivíduo a mero trabalhador, subsunção ao trabalho.”
(Karl Marx, Grundrisse 1857-1858).

A proeza das duas fundações do marxismo

Eis um lançamento há muito aguardado e que vai fazer Escola. A maior proeza de
Lukács foi fundar “filosoficamente” o marxismo duas vezes: com História e Consciência
de Classe (HCC), no início dos anos 1920, e com a Ontologia do Ser Social (OSS), escrita
ao longo dos anos 1960, em que busca renovar e salvar todos os esforços empreendidos
ao longo da vida. Hoje ele tem a felicidade de ser reconhecido como o filósofo marxista
mais importante. Tratando-se de princípios e fundamentos, ainda mais em terras “sem
fundo” e “sem caráter” como esta, eis um livro fervorosamente aguardado por boa parte
da esquerda marxista brasileira, principalmente universitária, completamente
desorientada na neblina das desestruturações do assim chamado “mundo do trabalho”.

Primeira fundação: os dublês do Weltgeist do Capital


Na primeira fundação, como se sabe, Lukács deslizava pela via de um super-
hegelianismo que transformava o proletariado, ou melhor, o Partido leninista, em um

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dublê do Espírito do Mundo. O motor da substância mundial capitalista era o


trabalhador abstrato, de onde emergiria a “consciência de classe” do proletariado
enquanto sujeito – a ser representada pela vanguarda partidária, que deveria introduzi-
la de fora na consciência operária coisificada. Luxemburguistas, conselhistas e demais
“esquerdistas infantis” postos de escanteio, restava dar a cobertura ideológica a toda
centralização bolchevista, embora, na base, na melhor parte do livro, era dito que a
crítica do proletariado só se constituiria em confronto com a negatividade do trabalho e
do cotidiano burguês. O salto dialético pressupunha a irredutibilidade desse sujeito à
coisificação mercantil, vale dizer, uma experiência crítica da alienação – para além de
suas personificações de classe –, um potencial pouco ou nada idealizado (segundo Marx,
Hegel só reconheceu o “lado positivo do trabalho”).
A forma-mercadoria era então o “protótipo de todas as formas de objetividade e
de todas suas formas correspondentes de subjetividade” (HCC) – a estrutura coisificada
que punha o todo em movimento, e por isso a estrutura a ser superada, embora mais
como um ato teórico da consciência, que a dissolveria em “processo”, do que como uma
dissolução do próprio processo capitalista negativo e autonomizado em si. Processo, no
entanto, que se reproduzia em germe na divisão entre Partido e Massas. Como se o
processo-sujeito não fosse a relação de produção fetichista, o Capital e as formas
concretas da divisão do trabalho alienado etc., mas idêntica à práxis do Proletariado
como tal (empírico/representado como “sujeito-objeto idêntico” da história), que
deveria realizar-se conscientemente como Totalidade. Assim, no decorrer do livro, o
proletariado deve um tanto paradoxalmente se afirmar e desaparecer como totalidade.

O ponto de vista crítico do proletariado como mercadoria


Lukács era desse modo parcialmente fiel a Marx (e não ao modelo positivo e
antropológico de trabalho de Hegel, como retornará com força mais tarde na OSS): as
“necessidades radicais” para além do capital só poderiam surgir da experiência da
miséria do trabalho burguês, que deveria então suprimir esta “ontologia” da economia
política na prática. Daí por que não se tratava de fazer do “materialismo histórico” e do
“primado da economia” uma filosofia perene ou universal, mas uma teoria crítica,
historicamente específica e determinada, voltada à superação de seu objeto e de si
mesma. Daí também o questionamento crítico de praticamente todos os termos:
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“Nas sociedades pré-capitalistas (...) a vida econômica não se apresentava como o


seu próprio fim, não estava ainda fechada sobre si própria, não era senhora de si
própria, não tinha ainda essa imanência que atingiu na sociedade capitalista. (...)
Segue-se que o materialismo histórico não pode ser aplicado de modo idêntico às
formações pré-capitalistas e às da evolução capitalista. (...) Suas categorias são
verdades no interior de uma determinada ordem de produção. Nessa qualidade, e
somente nessa qualidade, assumem um valor absoluto [ontológico], o que não
exclui, no entanto, o aparecimento de sociedades em que, dada a essência da
estrutura social, serão válidas outras categorias, outros conjuntos de verdades”
(Lukács, HCC).

Assim, a economia poderia ser superada pelo controle direto do metabolismo


social-natural pelos indivíduos livremente associados (é claro: como não-proletários e
não-trabalhadores). A “realização” do proletariado coincidiria menos com sua afirmação
do que com a sua própria supressão (enquanto objeto/sujeito da época burguesa). Nesse
sentido, o sujeito-objeto idêntico é uma construção mística, mas esconde um processo
concreto de formação crítica: assim, “o conselho operário é a superação econômica e
política da reificação capitalista. (...) O proletariado se realiza somente ao negar a si
mesmo” (HCC). O proletariado é a única classe em-si cujo para-si é ser contra-si.
Subentendia-se que os conselhos eram potencialmente a esfera de um processo de
formação dessa consciência negativa, para além da “dura escola do trabalho”
(Marx/Engels), que poderia romper (através da prática dialógica, como fica
pressuposto) o isolamento, a hierarquia e a educação reificadora do trabalho moderno.
Todavia, esse raciocínio é suplantado e substituído pela urgência imediata da
organização do Partido de massas e pelo postulado dogmático da unidade entre teoria e
práxis, com o que ambas se rebaixam ao ativismo e à ideologia do Partido leninista. Daí
então que a reificação e a cisão interna das camadas do proletariado já “não pode ser
eliminada por meio de discussões” e das organizações e ações “espontâneas das massas”
(HCC), mas somente pela disciplina férrea do Partido.
A questão crucial é que, no nível abstrato e ativista em que corre o argumento, e
com os fortes indícios históricos de que o Proletariado e os Partidos Comunistas (na
Europa, no Leste e no resto do mundo) não podiam ser idealizados e espiritualizados à
maneira hegeliana, em suma, na falta de mediações materiais concretas dessa
autossupressão, o proletariado-objeto “suprimia-se” somente na teoria e como intenção
ética-política, o que parecia já valer pela realidade. Portanto, ele se perdia nos livros,
enquanto tendia a se afirmar na práxis alienada das relações de produção capitalistas
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ou “socialistas” e na moral orgulhosa do trabalho industrial.

HCC como prolegômeno resistente à OSS


Sem dúvida não estamos muito distantes da base histórica da teorização da OSS.
Mas, no fim das contas, HCC reduzia criticamente a capacidade formativa do trabalho
(o concreto, o realmente existente como abstração real, moldado pela forma-valor),
depositando a sua fé nas cabeças iluminadas dos “revolucionários profissionais”. Ele
ainda não podia conceber como o Estado bolchevista (e mais tarde stalinista) se
realizaria como uma nova máscara da dominação do Capital, embora já pudesse a intuir
na divisão burocrática do trabalho partidário, que mumificaria “ontologicamente” o
valor como valor e o proletariado como proletariado, em vez de suprimi-los, num
sistema de “acumulação de valor” e de “modernização retardatária” (cf. Kurz).
A OSS limpa esse meio de campo histórico, negativo e totalmente contraditório,
injetando o vocabulário das certezas ontológicas e antropológicas como princípios
primeiros do processo, em que o proletariado trabalhador, confirmado na práxis, torna-
se o suporte ativo (não mais contemplativo) e o representante do “gênero humano” (e
não mais do Capital). HCC era mais crítico na medida em que resistia a ideologizar a
reificação. Nesse sentido, à vista do último Lukács, HCC errava quase tudo,
principalmente quando subestimava o processo teleológico do trabalho e
superdimensionava o movimento da classe e a consciência negativa formada pelos
conselhos operários, lá onde haveria processos e categorias mais que objetivos,
ontológicos. Por isso, se apagarmos a história e a consciência (negativa) de classe do
título, daremos lugar à ontologia do trabalho – e do trabalho que põe valor como
veremos –, antes só latente, a elevando à consciência do gênero humano. Em HCC,
muito mais claramente, os conceitos históricos de personificação do valor e do capital,
bem como o de pré-história do homem, tinham uma função crítica que tendia a superar
o subjetivismo e o humanismo (“o homem é e não é”, dizia o autor em HCC, numa frase
que o suprime como sujeito efetivo, tornando-o só um pressuposto: o “proletariado é
um mero objeto do processo econômico e apenas potencialmente e de modo latente
constitui um sujeito co-determinante”). Já na OSS, o humanismo e o subjetivismo do
jovem Marx são assumidos de forma ingênua e cabal, transformando milagrosamente o
suporte da valorização em seu sujeito, como parecia corresponder ao nível “profundo”
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do sistema soviético. De fato, o sublime objeto da ideologia lukácsiana resistia na práxis


do Leste, supostamente pós-capital: aqui o processo de trabalho proletário, com o
aguilhão dos métodos tayloristas e stakhanovistas da “emulação socialista”, foi
realizado ao extremo e dirigido por uma espécie de sujeito-objeto idêntico ou
substancial – em parte falso, mas em parte realíssimo, representado pela sanguinária
“ditadura do proletariado” do Estado stalinista.

No Grande Hotel Grund Occidental


No “Grande Hotel Grund Occidental”, vizinho ao “Grande Hotel Abgrund”
adorniano (cf. Lukács no posfácio à Teoria do Romance), tudo é bem mais belo e
confortável. Nada do “abismo, do nada, da absurdidade” de seu vizinho. O conforto e as
atividades de trabalho e diversão têm muito mais “fundamentos” para existir.
Sem ironia, note-se que, até a Ontologia, Lukács continua acreditando que o
socialismo real criou, “em substância”, “novos tipos humanos” e uma “nova sociedade
progressiva” (como dirá no capítulo da “Alienação” da OSS, a sair em 2013), baseada
nos princípios do marxismo-leninismo (crescimento das forças produtivas, divisão do
trabalho, acumulação socialista etc.). De fato, um sistema planejado de acumulação de
trabalho, paralelo ao capitalismo monopolista. Como se a finalidade do trabalho no
Leste fosse realmente a do seu modelo originário de práxis, a “humanização do homem”.
O problema, para Lukács, torna-se a “manipulação brutal” do stalinismo sobre essa base
ontológica em grande parte positiva: um problema de falta de imperativo ético
humanista, por um lado, de política econômica racional e de certo tino dialético, por
outro.

A boa fé no valor eterno


Na OSS, a boa fé – ou antes, a sublimação ideológica – vai ser então depositada
tanto no céu da ética e da política como em baixo, na “base”: na racionalidade formativa
do “trabalho humano”, ou seja, do “modelo originário” do trabalho em geral construído
pela filosofia, como se ele fosse em si e para si uma espécie de transição “objetiva” para
o reino da liberdade, enquanto a economia é assumida como uma objetividade exterior
que impõe as suas “rígidas leis imanentes” – uma esfera ontológica que só pode ser bem
ou mal governada ético-politicamente, mas não exatamente superada (no sentido de
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uma Aufhebung do reino da necessidade), pois esta será sempre o “momento


predominante” em “última instância”. Na verdade, como veremos, esse momento
material predominante oscila bastante, de trecho para trecho, sem rigor conceitual: o
valor, o trabalho, a economia, a produção, a práxis, as relações sociais, o ser social em
geral, o objeto etc. Mas por leis imanentes da economia é claro que a OSS entende tudo
o que devém a partir da lei do valor-trabalho. Passa-se a afirmar, assim, a “centralidade
ontológica” do valor como um produto histórico “eterno” do trabalho em geral:

“Essa centralidade da categoria do valor é um fato ontológico (...) o ponto focal das mais
importantes tendências de toda realidade social (...) o caráter médio do trabalho surge de
modo espontâneo, objetivo, desde os graus mais primitivos de sua socialidade. (...) Antes
de mais nada, aparece no valor, enquanto categoria social, a base elementar do ser social:
o trabalho” (Lukács, OSS, Cap. IV, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”).

Eis a espantosa pedra angular da OSS e da prometida Ética. Pode-se concluir assim que
para o velho Lukács, o mundo burguês, regido pela lei do valor-trabalho, existe desde
sempre.
O equívoco sobre a profundidade e a extensão histórica da lei do valor não é
banal. O próprio Marx teve de tatear a questão durante anos, mas nos Grundrisse
conclui que “a determinação do valor pelo puro tempo de trabalho só se dá sobre a base
da produção de capital, ou seja, da separação das duas classes” e que o capital é o
“último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor”.
Portanto, pode-se seguramente dizer que há mercadorias e dinheiro (portanto preços e
valor de troca) no pré-capitalismo, mas isso não pode significar que o valor, ou melhor,
a forma-valor e sua substância criada pelo trabalho abstrato estão postas como
fundamento em sociedades que bloqueavam a mercantilização integral da vida
(trabalho assalariado, acumulação de capital, concorrência, em suma, a economia como
um domínio alienado). Nada disso, para nosso ontólogo: “implicitamente, [a lei do
valor] já está presente quando o homem realiza ainda apenas trabalho útil, quando seus
produtos não se tornam ainda mercadorias; e resta em vigor — de novo implicitamente
– após ter cessado a compra-venda de mercadorias” (OSS). Este “implicitamente”
gostaria de dizer: a lei do valor não está posta, não tem papel fundante, está apenas
pressuposta ou é só uma determinação teórica (pois a produção sempre pode ser

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medida pelo tempo), não efetivada na produção social. O que teria de valer também
para o próprio conceito de trabalho: ele se põe como mediação social central apenas
como trabalho abstrato produtor de valor, ou seja, apenas no capitalismo, quando as
relações sociais diretas e mais ou menos abertas são substituídas pela relação coisificada
dos agentes, através da troca de mercadorias, dentre elas a força de trabalho (Cf. Moishe
Postone, Time, Labor and Social Domination). A “economia” e o “trabalho” (a
conversão dos homens particulares em “trabalho”), assim, são abstrações reais
históricas e não trans-históricas. Mas o velho Lukács não pode tirar tal conclusão, pois
isso impediria a construção de todo o seu sistema erigido a partir de noções primeiras e
gerais. Ora, se tal pedra angular desmorona na teoria e na práxis histórica, então, é toda
a obra lukácsiana da maturidade que também desmorona.

Reconciliação forçada
Em todo caso, a boa fé nessa base econômica é completamente forçada – o cerne
da “reconciliação forçada” já apontada por Adorno –, pois fica coagida a aceitar a
violência cega da lei do valor, como um eterno “ser” em “automovimento”, como
reconhece Lukács, e que só pode implicar na violência do Estado, ambos como garantias
ideológicas da justiça, da liberdade e da identidade ao final do processo. A operação
ideológica, aqui, lança mão do recurso marxiano de olhar o presente histórico do ponto
de vista das forças produtivas humanas e sociais isoladamente – claramente abstrato,
especulativo e... teleológico, pois que se erige a totalidade do desenvolvimento humano
como padrão de medida (aqui, a origem da ideologia fáustica e prometéica de Marx, que
vem de Hegel e do idealismo alemão) – quer dizer, um ponto de vista que se abstrai das
relações de produção fetichistas, ou seja, do ponto de vista propriamente imanente à
economia política, com sua fundação histórica particular, e não antropológica geral. Em
Marx, no entanto, esse ponto de vista especulativo não é fundante, não cria uma
essência humana como sujeito em movimento – ao contrário, é uma perspectiva crítica,
como que feita de fora, que estabelece os universais humanos como pressuposições;
enfim, uma visão das possibilidades objetivas que surgem no reino do capital. Ora, o
último Lukács transforma tais possibilidades em essência objetiva do processo (em-si),
apenas necessitando da práxis consciente para efetivá-las (para-si) – a armadilha
prática que consiste em não ver nenhuma necessidade de ruptura no fundamento posto
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pela centralidade do trabalho, do valor, da economia como esfera separada etc.


Assim, na verdade, o que Lukács deve considerar como essência histórica é
menos a lei do valor (e jamais o capital) do que o processo de crescimento das forças
produtivas humanas. E como isso aparece como um progresso objetivo e mais ou menos
contínuo na história moderna, ele lhe dá o nome de essência ou substância do ser social
em geral. As contradições em relação a essa essência rebaixam-se então ao nível
fenomênico: o que significa relativizar à vontade a alienação como histórica e
espacialmente desigual, descontínua, contingente, neutra, socialmente necessária ou
então só aparente. Certamente, Lukács pensa em frases de Marx que dizem que as forças
produtivas sociais do trabalho (ou humanas) aparecem como forças produtivas do
capital. Esta aparência, no entanto, é objetiva – não é uma ilusão da consciência, pois é
a forma de manifestação da essência mística do capital. O que está posto são as forças
produtivas do capital (ele é a essência que aparece), o que fica pressuposto são a forças
produtivas sociais e humanas. Trata-se então da forma de aparição da essência do modo
de produção capitalista, e não de um suposto modo de produção “humanista” genérico.
A aparência que Marx se refere em tais juízos de essência (“ontológicos”) diz respeito à
inversão real de sujeito e objeto. As forças produtivas serem humanas – eis a aparência
ideológica, na verdade; pois elas são o Capital em processo, uma objetivação da relação-
capital (o verdadeiro fundamento/sujeito), em que o capital aparece como um simples
processo de trabalho humano produtor de bens úteis, como em qualquer outra formação
social, e assim como uma simples coisa sem determinação histórico-formal precisa. Eis
o naturalismo fetichista da economia política em ato. Mas como coisa social alienada o
Capital aparece como a maquinaria que movimenta e suga o trabalho vivo. Ao contrário,
Lukács humaniza a essência do capital, vendo nesse processo a apoteose do humano –
afirmando claramente uma teleologia na história, embora formalmente o negue. Mas
quando cita as Teorias da mais-valia de Marx, a especulação teleológica torna-se
evidente:
"A produção pela produção nada mais quer dizer que desenvolvimento das forças
produtivas humanas, isto é, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como
finalidade em si (...). Não se compreende que esse desenvolvimento da espécie homem,
embora se processe inicialmente em detrimento das capacidades da maioria dos
indivíduos humanos e de todas as classes humanas, termina por destruir esse
antagonismo e coincidir com o desenvolvimento do indivíduo singular; não se
compreende, portanto, que o mais alto desenvolvimento da individualidade só é obtido
através de um processo histórico no qual os indivíduos são sacrificados." (Marx).

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O que Lukács comenta ingenuamente deste modo: “Por isso, a referência


remissiva do desenvolvimento das forças produtivas ao desenvolvimento do gênero
humano jamais abandona o critério da objetividade ontológica” – como se Marx não
estivesse especulando ou criando uma teleologia metafísica do processo histórico (só
assim pode-se garantir que o capital “termina por destruir esse antagonismo”), ou como
se a “essência ontológica” aqui não se tratasse de simples possibilidade mas de um reino
da liberdade já instaurado e que justificasse todos os sacrifícios humanos, enfim, como
se a monstruosidade da produção de capital como fim em si mesmo coincidisse
essencial e necessariamente com a produção para os homens.
Na Estética de Lukács essa lógica da identidade fica mais evidente: o mundo
violento e anti-humano do capital deve ser “refletido” e “antropomorfizado” pelas obras
afirmativas (daí a defesa do realismo burguês), criando um “mundo adequado” ao
“gênero humano”; no limite, torna-se a norma estética que cria a “identidade absoluta
entre interioridade e exterioridade”, em que a arte não só deve refletir “um concreto
espaço animado, mas tem também a função de animar um espaço concreto e real, fazê-
la ainda mais pátria do homem, mundo próprio [!]” (Estética, vol. II, g. n.). Eis aqui,
nesta estética idealista, o destino do sujeito-objeto idêntico, que anteriormente pelo
menos era a consciência da negatividade histórica do proletariado.
De fundamento da alienação e do terror histórico que é, a lei do valor se converte
em origem da humanização do homem. Na verdade, na OSS, essa boa fé na base e nas
estruturas depende bem mais do que ocorre na esfera dita “extra-econômica” e
“superestrutural” da política (luta de classes) e da ética, enfim, da luta de consciências e
interesses. A identidade sujeito-objeto então quase desaparece: o “objeto” substancial, a
economia, é o produto do “sujeito” do processo (o trabalho ou o proletariado), mas já
não é idêntica ou unida a ele, ela mesma é um tipo de objeto vivo estranho e
incontrolável – embora o Estado socialista possa planejar e coordenar a economia,
obviamente que por sobre a cabeça do proletariado produtor do valor eterno.

A ideia fixa dos princípios e a dialética imaginária


Desde “Meu caminho para Marx” (1933), o materialismo histórico e dialético se
torna, nas intenções de Lukács, uma “doutrina” aplicável à realidade em geral, tanto que
em seu Postscriptum (1957) ele confirmava que “o esforço sério na direção de uma
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ciência marxista universal pode dar à minha vida um conteúdo indestrutível”. Aliás, a
busca sistemática de uma lógica, uma ética, uma estética, uma psicologia marxistas
poderá “preencher fecundamente a vida de gerações inteiras[!]”. Com a OSS, essa mania
de grandezas é coroada como doutrina ontológica da espécie humana, talvez de todas as
espécies, do mundo natural e social, quiçá, até do Outro. O filósofo não rejeita a dialética
na natureza, mas a continua e a desdobra socialmente, na interação supostamente
“contraditória” entre forças naturais e sociais – e por que não também “religiosas”?
Marx certamente não delirava quando falava dos “caprichos teológicos” ou da
“objetividade fantasmática” da forma-valor. Eis pelo menos uma “metafísica” ontológica
do real, não constituída por seres imaginários, e que supera a autoestilização do sujeito
moderno como o senhor absoluto de seu destino. E como Lukács consegue converter
milagrosamente o valor na matriz prática dos valores éticos que humanizam o homem,
ele o transforma positivamente em homo economicus! O universal humano não se
estilhaça mais pela economia e a divisão do trabalho, ele tem de “se realizar”
imaginariamente nessa forma cindida. Claro também que não sem antes denunciar as
“contradições”, puramente “fenomênicas”, em relação à “essência” constituída pelo
progresso objetivo do trabalho e das faculdades humanas. Assim, como vimos, a
contradição cegamente constituída e constitutiva da relação social fetichista se torna
positivamente, como em Hegel, a mera manifestação exterior de um progresso da
identidade humana. Lukács troca, no final, o Weltgeist anteriormente formado pelo
proletariado e o Partido pela metafísica das forças produtivas do gênero humano. Não
há dialética do capital, mas conflito entre essa ética e as estruturas reificadas. Mais ou
menos como em Proudhon, “ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito, a fábrica,
todas as relações econômicas foram inventadas em benefício da igualdade, e todavia
acabaram sempre por se voltar contra ela. (...) Se há contradição, ela existe apenas entre
sua ideia fixa e o movimento real” (Marx, A miséria da filosofia).

O verdadeiro pai do Marxismo Ocidental Oriental


Note-se que nesta sua segunda fundação ontológica do marxismo, o filósofo
húngaro deixa o cargo indesejado de pai do marxismo ocidental para assumir o de pai
do marxismo oriental ortodoxo. O ontológico é uma volta às raízes originárias do ser e
de suas leis primordiais. Se o capital, para Marx, é o fundamento real da produção
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burguesa, então Lukács busca o fundamento imaginário desse fundamento real,


tornando-o um mero resultado do trabalho humano: “o capital no processo é só
existência passiva, objetiva, na qual a determinação formal pela qual é capital –
portanto uma relação social existente para si – está totalmente cancelada”, como diria
Marx (Grundrisse). Para isso, tem de retornar à categoria do trabalho em termos
totalmente abstratos, antropológicos e positivos, o que supostamente daria uma
sustentação “materialista” à consciência de classe, ou antes, à consciência e à prática da
espécie – lembrando que Lukács visava a uma Ética marxista. Simbolicamente, tudo se
passa como se faltasse alguém para ocupar o lugar do grande Pai morto (Marx-Lênin); a
OSS faz o papel do suplente do Pai simbólico do marxismo do Leste (o “marxismo
soviético”, na expressão de Marcuse). De fato, a busca de leis ontológicas deseja suprir a
falta (ou a recusa) da Lei no real estado de exceção stalinista.

Um passo para frente, dois para trás


O filósofo avança neste primeiro volume, então, uma discussão da necessidade de
uma ontologia marxista – ou marxista-leninista, poderíamos dizer também, pois Lênin é
um apoio imprescindível de seu projeto (além de Aristóteles, Goethe, Hegel, Hartmann
e Engels). O volume se contrapõe, histórica e criticamente, e aqui temos a parte mais
sólida do livro, às visões ontológicas religiosas e metafísicas, à ontologia heideggeriana,
fenomenológica e existencialista, bem como às filosofias da lógica e da epistemologia
neokantiana, positivista e neopositivista (Mach, Carnap, o primeiro Wittgenstein, o
pragmatismo).
O materialismo marxista, que Lukács busca elevar à dignidade ontológica, afirma
não só a verdade objetiva das categorias históricas da crítica da economia política,
embora com o mau acento na sua identidade e continuidade “substancial” e positividade
ou neutralidade valorativa (o prometeísmo de Marx sai incólume), mas também a
verdade ontológica de princípios racionais universais do ser social – sempre em geral.
Para isso, ele tem de voltar sistematicamente às relações mais imediatas entre homem e
natureza, isto é, às bases antropológicas e naturais abstratas de toda e qualquer
formação, mormente no trabalho material. Sem dúvida, são bases gerais, mas não
fundamentos. Justamente aquilo que Marx considerava sem necessidade de grandes
explicações, pois constituiria um discurso geral abstrato, sem poder fundante e
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explicativo, válido apenas como “modo de evitar repetições”, pois bem: é aí que o nosso
filósofo deposita todas as suas fichas, propondo o que ele chama de “generalizações
filosóficas”. Segundo Marx, porém, não a unidade, mas a separação histórica entre
homens e meios de produção é que precisava ser explicada; não a produção ou as forças
produtivas isoladamente, mas as relações de produção e distribuição específicas em
relação dialética com tais forças, no mundo burguês – em suma, o modo de produção e
reprodução, ou ainda, a dialética entre determinações formais e relações materiais de
produção – é isso que constituía o discurso substantivo de Marx – que por isso mesmo
ultrapassa a ontologia filosófica em direção a uma crítica imanente do que é e parece
ontológico, crítica do que se cristaliza nas chamadas “leis histórico-naturais”. Lukács
prefere no entanto concentrar-se nas raciocinações infinitas sobre a práxis em geral, o
processo material de produção, as forças produtivas como “base” prioritária da
economia e do ser social genéricos. A famosa questão marxista da produção de mais-
trabalho e de mais-valia – reveladores da verdade negativa da sociedade do trabalho e
do valor – tende assim a quase sumir do mapa. De Hegel, interessam-lhe, sobretudo, os
esquemas do ardil do trabalho e da astúcia da Razão. Pode-se duvidar se a OSS não é
uma imensa glosa desses dois modelos filosóficos, que terminam por suprimir as
estruturas históricas e dialéticas da exposição de Marx. De fato, o livro desliza pelo ser
social de todas as épocas, da Idade da pedra lascada à União Soviética, numa
terminologia genérica e imprecisa, sem explicitar e detalhadamente nenhum modo de
produção. Basta perceber como estão muito pouco presentes em seus esquemas o “ser-
precisamente-assim” dos conceitos históricos do trabalho, tais como trabalho abstrato e
assalariado ou trabalho escravo e servil.

Quem não trabalha não come: a “ética” da lei do valor


Da mesma forma, nenhuma diferenciação entre o valor e a forma-valor nas várias
sociedades; uma forma, aliás, ontologizada e completamente confundida como base
prototípica de “valores ético-morais” a partir de raciocínios abstratos sobre a produção
de valores de uso. Entenda quem puder! Assim, lemos na OSS os dois planos
contraditórios de constituição dos valores morais – o primeiro plano, constituído pelo
fetiche do valor:
“A relação real, objetiva, independente da consciência, que designamos aqui com o termo
‘valor’, é efetivamente, sem prejuízo dessa sua objetividade, em última análise, mas
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apenas em última análise, também o fundamento ontológico de todas as relações sociais


que chamamos de valores; e, por isso, também o veículo de todos os tipos de
comportamento socialmente relevantes que são chamados de avaliações (ou juízos de
valor)” (OSS).

Como derivar a justiça e a liberdade do terror econômico, ou seja, do dinheiro que se


autovaloriza? Sem dúvida, muitos dos valores ocidentais, em especial a moral do
trabalho e o patriarcado do valor (a cisão: homem = valor/mulher = não-valor) só
podem brotar nesse contexto. Mas então como pressupor aí valores positivos e
humanizadores, como propõe Lukács? Ora, basta lembrar que o trabalho que põe valor
também deve produzir “bens úteis” (hipoteticamente não para o Outro) e que são
subjetivados e consumidos, gerando capacidades humanas e a possibilidade do tempo
livre:
“Interessa-nos exclusivamente afirmar que tudo aquilo que no trabalho e através do
trabalho surge de expressamente humano constitui, precisamente, aquela esfera do
humano sobre a qual — direta ou indiretamente — baseiam-se todos os valores” (OSS).

Aqui, então, o segundo plano de gênese dos valores: o trabalho útil, como ideação e
posição de fins na matéria, que seria a protoforma de toda atividade. De fato, os
indivíduos são historicamente “o que” e “o modo como produzem” (Marx/Engels). É
claro que “o trabalho forma” (Hegel) capacidades técnicas, sociais e intelectuais no
sujeito que produz. Porém, em qual contexto isso se torna um fim em si, um valor, uma
moral exclusiva centrada na autoconservação – uma “moral de escravos” (Nietzsche)?
Em qual sentido os indivíduos não são ou não se reduziriam à produção e à divisão do
trabalho? Questionar a objetividade desse progresso e a racionalidades desses valores
não tem nada de “irracionalismo” – o que “destrói a razão” é a própria razão
instrumental, que Lukács põe no Altar e irracionalmente cultua.
N’A Ideologia Alemã, Marx lembra que o trabalho “concreto” sempre foi uma
“existência unilateral”, “subordinada/inferior” e que só tem a “aparência de uma
autoatividade”; nesse contexto preciso, “a vida material aparece como a finalidade” da
existência. E por isso, “a revolução comunista volta-se contra o modo da atividade
existente até aqui, elimina o trabalho”. Como o trabalho historicamente é, ainda
segundo Marx, uma atividade subordinada ao reino da necessidade (às causalidades
exteriores, naturais e sociais), idêntico ao reino da instrumentalização de coisas,
animais e homens (o domínio da razão instrumental sobre a natureza, da cisão entre

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

trabalho intelectual e manual etc.), não resta como valor moral senão a valorização
forçada, tipicamente burguesa ocidental, dos meios técnicos, instrumentais e utilitários
da dominação, que absorvem e suprimem os fins humanos exteriores a esse reino.
Assim, os traços da autoatividade, na esfera do trabalho histórico, são claramente
residuais. Eles devem ser procurados lá onde o trabalho cessa ou se transfigura em
outra coisa, não mais estritamente subordinada à consciência objetificadora e às
necessidades materiais, mas antes ao corpo, à sensibilidade, ao desejo e à lógica da
própria atividade: ócio, jogo, festa, sociabilidade, sexualidade, vida doméstica, ciência,
educação, artes – precisamente o que foi separado, no mundo moderno, em esferas mais
ou menos exteriores à economia empresarial. Hoje, é claro que até mesmo tais esferas
foram racionalizadas economicamente, por assim dizer “trabalhizadas”. Quando Lukács
fala do trabalho como forma originária dos valores morais, no fundo deve ter em mente
o modelo da criação estética e artesanal, ou a produção comunitária (típica do pré-
capitalismo). Sem dúvida, porém, se tais atividades são muito parcialmente fins em si
(ou finalidades sem fim) – como sinais históricos do possível reino da liberdade –, isso
apenas desvela o que o trabalho historicamente nunca foi e nunca poderá ser. Por isso,
como diz Marx, citado muitas vezes por Lukács: o reino da liberdade está para além do
reino da necessidade. Sua condição é, por isso mesmo, não a extensão do trabalho, mas
a redução do tempo do trabalho (aqui, no sentido de produção material) ao mínimo,
superando a sujeição dos homens à causalidade econômico-social alienada.

Os marxistas e sua antropologia disfarçada de ontologia


Mas então, em vez da crítica do valor, do trabalho e da economia política, Lukács
prefere realizar a bizarra apologia direta dos benefícios ditos “objetivos” do valor-
trabalho, a começar talvez, é bom lembrar, pela escravidão colonial, o imperialismo, o
stalinismo e seus valores da “produção”. Tudo é possível. São as vantagens de se forjar
um Diamat versão flex. Os princípios são então “refletidos” a partir da realidade natural
e social depurada das contradições, especialmente a partir da “essência” formada por
essa realidade econômica “objetiva” – neutra e sublimada como no positivismo – uma
espécie de economia em geral (em vez da economia antiga, asiática, feudal ou
capitalista), vale sempre ressaltar, uma certa lógica socioantropológica do trabalho. A
partir de tais categorias gerais da economia (trabalho, divisão do trabalho, cooperação,
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

utilidade etc.), ou antes da antropologia filosófica, seria possível fundar uma práxis ética
marxista de corte humanista, claramente antimetafísica, contrária a todo imperativo
categórico moral puramente racional e às várias formas de decisionismo, voluntarismo e
politicismo, bem como ao determinismo economicista. O alvo parece justo, no entanto
os meios e os fundamentos histórico-materiais pressupostos são uma areia movediça –
complicadíssimos, para dizer o mínimo.
Como vimos, Lukács pensa tais categorias, mais ou menos como o jovem Marx,
como referentes, em última instância, ao homem e às suas bases naturais (o homem
posto como sujeito fundante, mesmo que negado): certamente como bases categoriais
sociais e históricas (divisão do trabalho, trabalho socialmente necessário, valor, troca
etc.), mas válidas para todas as épocas, em medidas variáveis – nesse sentido elas
seriam quase todas essências contínuas e trans-históricas, como não poderia deixar de
ser em uma ontologia que busca fundamentos positivos. Assim, contudo, as “leis
histórico-naturais do desenvolvimento” da sociedade burguesa, tal como nomeadas por
Marx, são em grande parte esvaziadas de sua especificidade e negatividade históricas
imanentes e projetadas em geral para várias formações sociais – como a categoria
fundamental do valor e, portanto, do trabalho abstrato –, inclusive para a sociedade
emancipada (comunista). “A anatomia do homem é uma chave para a anatomia do
macaco”, diz Marx, mas não sem advertir que as determinações da época burguesa –
como “última etapa” da “pré-história” do homem, vale lembrar –, não deveriam
eliminar as diferenças específicas, nem poderiam ser projetadas como um esquema
evolutivo ou desenvolvimentista quase-linear e causal de essências postas, sob o risco de
eternizar as categorias burguesas e o seu modo de funcionamento; pior, talvez,
tornando-as categorias “humanas”, lá onde o Homem ainda não é sujeito pleno e
portanto não é fundamento posto, mas antes a criatura de relações sociais “pré-
históricas” complexas. Uma antropologia crítica só teria sentido como antropologia
negativa, como análise de negações e de resíduos possíveis do homem em sua pré-
história. O que só se faz “escovando a história a contrapelo” (W. Benjamin).

A racionalização estoica da miséria


Daí a falha da leitura e da crítica lukácsiana de Hegel, no capítulo deste vol. 1 da
OSS. De um lado, a incompreensão da teoria da negação dialética de Hegel, que não
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parte de princípios e fundamentos positivos: a substância que é sujeito, na


Fenomenologia, é um processo negativo que suprime os fundamentos em favor do
devir, o qual passa a expressar negações do Espírito-Sujeito, constituindo-o só ao final
(Cf. Ruy Fausto, Marx: lógica e política, vol. 1). Lukács pode até visar isso, mas não o
faz quando supõe um fundamento humano “fixo” que vai, sem descontinuidade objetiva
radical, se preenchendo de determinações afirmativas, como se estas não fossem
negações determinadas do homem. Lukács nega o negativo: por isso, sua dialética é
síntese e afirmação do existente, não podendo levar para além dele. Para Marx, a
novidade radical instaurada pelo Capital é formada, ao contrário, por negações: a
expropriação originária, a mercantilização da força de trabalho e a posição da finalidade
cega e autonomizada da valorização do valor. Lukács nega-se a pensar esse processo
teleológico cego ao nível da totalidade do modo de produção capitalista, que justamente
caracteriza o resultado objetivo de sua essência, pois só enxerga a teleologia ao nível do
trabalho imediato dos homens. Não percebe que a “falsa ontologia” de Hegel (a astúcia
da Razão) é a narrativa idealista da realidade realmente invertida e alienada. Assim,
Lukács falha na leitura do aspecto crítico da função do especulativo e da totalidade em
Marx. Esta só se concretiza na conceituação rigorosa da relação-capital, que se dá entre
o trabalho abstrato assalariado, como “substância” do valor, e o Capital, como “sujeito
automático”. O materialismo de Lukács simplesmente desconhece ou se recusa a pensar
essa “metafísica real” (Marx), que inverte sujeito e objeto. Tudo parte do trabalho do
sujeito social em-si e como que destinado para-si enquanto gênero, como se uma
alienação radical, seu ser-para-Outro, não o constituísse desde a base, fosse só um
aspecto fenomênico. O real é racional, o racional é real. O homem lukácsiano é no fundo
um estoico, vivendo no reino de essências puras e inabaláveis do pensamento: “Como
forma universal do espírito do mundo, o estoicismo só podia surgir no tempo do medo e
escravidão universais, mas também de cultura (Bildung) que havia elevado o formar até
o nível do pensar (...) é apenas o conceito da liberdade e não a própria liberdade viva”
(Hegel, Fenomenologia do Espírito). Mas por outras vias, assim, o postulado hegeliano
da totalidade especulativa do Espírito (“a identidade de identidade e não-identidade”) é
confirmada por Lukács como totalidade da liberdade humana –, cujos acidentes e
contradições de percurso repousam seguramente sob o eterno fundamento categorial do
Grande Hotel Occidental. Kafka sabia que esse Grande Hotel na verdade era a América,
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a pátria transcendental do trabalho abstrato. O Outro, o não-idêntico, não existe.

A verdadeira e a falsa ontologia do capital – a “ontologia” da miséria e a


miséria da ontologia
Será que se cumpre a promessa de uma crítica realmente materialista? Serão tais
princípios mais “sólidos” e “objetivos”, como o termo ontológico dá a entender? Note-se
como o termo ontologia tem dois sentidos no livro que muitas vezes são indiferenciados
e antagônicos: por um lado, o grande mérito do livro, ela refere-se à realidade histórica
efetiva das categorias do capital como “determinações da existência” e “formas de
pensamento” (Marx), impondo o primado da economia e das leis “histórico-naturais” do
Capital, em suma, uma “ontologia” (entre aspas, histórico-negativa) da miséria
instaurada pela dominação do capital através do trabalho (donde valerá ler, sem culto,
os capítulos sobre a “Alienação” e a “Reprodução”, no vol. 2); por outro lado, como
apontamos, a ontologia remete às origens e princípios do ser social em geral, à uma
suposta essência trans-histórica consubstanciada pelas “leis objetivas” do trabalho
determinado pelas necessidades humanas, como se ele fosse a “essência” e o “momento
predominante” em geral, inclusive sob (ou antes sobre) o mundo capitalista – com o
que, é claro, o primeiro sentido da ontologia, crítico-negativo, é praticamente esvaziado
e destruído, pois a objetividade fetichista do Capital e de suas categorias alienadas se
transforma e se desfigura, em três níveis articulados:
a) numa manifestação fenomênica ou mero resultado alienado (quase como um rebote
inesperado) do processo de metabolismo de sociedade-natureza mediante a posição de
fins teleológicos individuais na matéria natural – como se esta determinação
antropológica geral tivesse papel fundante real e preponderante sobre as mediações do
capital, da lei do valor, da divisão do trabalho etc. Lukács sabe que se trata de uma
abstração teórica, uma “abstração razoável” (como Marx diz nos Grundrisse) – lógica e
não-efetiva – de um momento material genérico de complexos histórico-sociais. Mas
ilegitimamente ele a extrapola como uma essência determinante, que expulsa a
expressão das verdadeiras contradições imanentes do capital. Assim, a relação-capital
não é concebida dialeticamente como o abismo desse suposto fundamento do trabalho
em geral – que subsume formal e realmente o trabalho e o converte em mera base
material da valorização e, assim, numa manifestação concreta do processo abstrato do
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capital-sujeito. Na OSS, o capital é uma continuidade desdobrada dos atos teleológicos


humanos, seu resultado imprevisível. Sem dúvida, os atos teleológicos dos agentes são
um elemento do capital, mas não o princípio metafísico que o põe em movimento. Marx
abandonou o capítulo sobre a “produção em geral” justamente por isso. De fato, para
Lukács, o ponto de partida, como vimos, a verdadeira “célula germinal” da economia
marxiana, não é a célula da forma-mercadoria ou forma-valor, mas os atos de posição
teleológica do trabalho (de onde a possibilidade, se quisermos, de deduzir a forma-valor
da produção intencional de valores de uso, da divisão do trabalho, da troca e, enfim, sem
descontinuidade, da própria relação homem-natureza). Assim, portanto, ocorra o que
ocorrer, a “intenção” humana do trabalho dito concreto – mas no fundo apenas um
modelo filosófico-ideológico do “trabalho em geral” –, é somente “abstraída” pela
circulação mercantil como uma suposta instância externa, sem perverter sua essência
humana, que teria imaginariamente o papel determinante de última instância;
b) num resultado do conflito de classes, mas no fim de contas redutível a “relações
humanas”, que seriam a essência oculta “por trás” do fetiche reificado e que
movimentariam o capital; aqui, Lukács faz sociologia econômico-política, logicamente
necessária, mas dando-lhe um papel fundante que reduz o estatuto absolutamente
predominante e central do fetichismo e da alienação (Entfremdung) do capital. Já em
HCC, o fetichismo era concebido mais como uma reificação subjetiva que “escondia”
processos, do que como ser objetivo, o cerne constitutivo das relações de produção
realmente autonomizadas como relações entre coisas e, nesse sentido, relações a-sociais.
Certamente são os homens que agem e reproduzem as suas relações – mas num nível
fundamental anterior à própria luta de classes, eles são agidos e coagidos à luta, através
da relação-Capital. Essa distinção de níveis é sutil, mas importantíssima. Assim, é como
se o processo da produção de valores – o “mundo do trabalho”, como os epígonos
costumam dizer – não fosse mediatizado e comandado pelo capital como o “sujeito
predominante” do processo, como diz Marx (O Capital), desde a base, o que inverte e
subverte toda teleologia dos agentes (capitalista ou trabalhador). Vale frisar esse ponto
crucial: a alienação se dá desde o ponto de partida – os atos teleológicos racionais no
âmbito empresarial invertem-se em “racionais” e “produtivos” em relação aos meios
somente se abstrairmos toda a degradação humana e socioambiental do processo de
trabalho concreto; e com respeito aos fins e à totalidade, eles se tornam totalmente
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contraditórios e irracionais. A OSS reconhece isso pelas bordas, negando o caráter


teleológico do social como um todo – o estranhamento surge deste nível –, mas abstrai a
negatividade já operante, desde o fundamento, nos meios, inclusive na redução real-
capitalista do metabolismo homem-natureza à ação racional instrumental. De resto, a
OSS afirma positivamente essa redução do processo vital à consciência humana,
positivando a la Hegel o seu caráter civilizatório e repressor das emoções e impulsos,
como forjador da personalidade e do Eu idêntico e coisificado, plenamente constituído
no mundo burguês. O recalcado é o mal-estar dessa civilização – em Lukács, porém, o
inconsciente freudiano – como o caráter “demoníaco” de seus escritos de juventude – é
eliminado à força, com supostos ganhos “materialistas”, pela psicologia dos reflexos de
Pavlov e pela pedagogia humana do “trabalho” (de Hegel, Marx e Engels). Em HCC, o
modelo histórico-crítico do trabalho industrial taylorista pelo menos não passava batido
pela crítica: o cálculo abstrato, a eficácia puramente técnica e instrumental do trabalho
orientado pelos fins utilitários – este trabalho historicamente concreto – era parte do
reino da abstração real das qualidades, não podia ter parte com o reino da liberdade
humana, a não ser como um certo potencial – para muito além do taylorismo. De modo
que a produção (como condição material inextinguível) e o consumo (como seu
momento interno/base ideal) tornam-se meros meios ou suportes da relação de
produção Capital, que, esta sim constitui os seus pressupostos materiais e a falsa
Totalidade. Nesse sentido, o hoje tão desprezado HCC, acertava metodologicamente
quando afirmava, de maneira crítica, o primado da totalidade e não o da economia ou a
do trabalho em geral.
c) o fetichismo se transforma numa questão, enfim, de “ideologia”, de “falsa
consciência” e, nova categoria no front, de “manipulação” (política, retórico-comercial,
lógico-epistemológica neopositivista etc.). Uma redução sociologista do fetiche à
aparência e à subjetividade (de classe), que já aparecia em HCC, e agora tende a se
ampliar, à medida que as categorias reais da socialidade a-social do fetichismo são como
que “humanizadas” e “suavizadas” de negatividade. Por isso, quando o estranhamento
fetichista perde o seu papel central, como essência objetiva do ser social moderno, pode-
se de fato imaginar transcendê-lo por postulados éticos “ontopráticos”.

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Ontologia do ser social e do ser a-social


De um lado, então, temos na OSS o caráter “ontológico” histórico-negativo das
categorias do capital (mercadoria, valor, trabalho abstrato/concreto, capital etc.) com a
sua real força mística fundante da socialidade a-social atual, e que Lukács pouco trata
neste vol. 1, a não ser no capítulo sobre Marx, se bem que como uma lógica inerente à
economia em geral; de outro, temos a Ontologia como uma filosofia perene ou universal
sobre os princípios da práxis humana, do processo trans-histórico (mais engelsiano que
marxiano) de socialização e suposta civilização e humanização da espécie pelo trabalho,
que tem logicamente de abstrair, recalcar e sublimar todas as formações históricas em
que o trabalho apareceu como um dos momentos subordinados do mundo social ou
como sinônimo objetivo de dominação, alienação e sofrimento (tripalium), como uma
condição “ontológica” divinizada apenas pela força do mito, da religião e dos costumes,
justificada pela filosofia e imposta pela classe dominante, que precisamente assim se
livrava do trabalho para si.

Cacoete ou palavra da salvação?


O termo “ontológico” na OSS, assim, é um termo ambíguo. Ontológico como
referente aos fundamentos naturais e socioantropológicos, sem peso fundante, ou como
o domínio fantasmagórico das “abstrações reais”, estas sim com peso fundante no
mundo moderno? Onde é que Marx transforma o processo metabólico em geral em uma
“abstração real” ontológica? Eis a ilusão da falsa imediatidade da práxis, que degrada o
marxismo à ontologia ingênua. Um termo que vai virando quase um cacoete entre os
epígonos, como se fosse a “palavra da salvação”: ora significando a “objetividade
fantasmagórica” do valor, que tolhe os homens da posição de sujeitos (embora não o
antagonismo de classes, vale sublinhar), ora o nível puramente técnico-material e
antropológico da produção ou da relação metabólica homem-natureza.

Em primeira ou em última instância, sempre o “trabalho”


Na raiz, portanto, o caminho inverso ao de Marx: uma hipóstase ontológica de
princípios em vez da relativização e redefinição histórica do conceito de trabalho ou de
produção, mostrando que esta só se tornou “trabalho” de fato, só se pôs efetivamente e
veio a conceito como “trabalho sans phrase”, como diz expressamente os Grundrisse,
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

apenas no mundo moderno, pois, nas formações pré-capitalistas ela se fundia, como a
parte material da reprodução social, aos outros momentos da vida (religião, guerra, vida
doméstica, “política”, tempo livre etc.). A produção não era uma esfera legal regida pelo
tempo abstrato do valor ou por critérios puramente econômicos, tal como no
capitalismo, e, por isso mesmo, muitas vezes não visava somente aos puros fins
racionais, úteis ou econômicos. Tomar o valor (de troca e de uso) como base e critério
dos valores morais é tornar o princípio de autoconservação uma religião secular da
razão instrumental, tal como o fizeram Hobbes, Sade, o positivismo e o darwinismo
social: o Eu como um eterno ser para o Outro. Precisamente aqui a liberdade aparece
como o progresso da razão dominadora.
Nesse sentido, não se trata de eliminar o uso e a utilidade das considerações
éticas – mas de determiná-los e relativizá-los como critérios históricos. Além da
consciência, do imaginário e das necessidades no ato produtivo, poderíamos divisar
como mediações significativas de qualquer práxis o inconsciente e a pulsão, a ordem
sociossimbólica e o real (no sentido lacaniano), que parecem impelir muitas vezes a
reprodução social para além do princípio do prazer e da autoconservação. Sem isso,
talvez, não se entende o papel histórico fundamental da violência, do sagrado e de todas
as mediações extra-econômicas nas formações não-capitalistas (Cf. Perry Anderson,
Pierre Clastres, Marshall Sahlins, entre outros) – ou mesmo na capitalista. Em HCC,
reconhecia-se isso mais e melhor. Assim, nunca ou muito dificilmente a produção por si
própria se torna diretamente a mediação social central ou exerce o papel de “momento
predominante” nas formações não-capitalistas, já que os homens, suas “necessidades” e
“desejos”, mediados pelas relações sociais diretas efetivas, eram o fundamento e a
finalidade social da vida. Não há produção, nem ato teleológico separado da
comunicação e da linguagem, dos ritos, da política etc. O ser primeiro é um mito da
razão analítica. O processo produtivo, aqui e talvez ainda mais no capitalismo, é uma
simples base ou condição material entrelaçada ao social e às ideologias, sem dinamismo
próprio. A não ser na metafísica das forças produtivas. Não menos que isto: uma
determinação entre outras, nunca a determinação de primeira ou última instância. Aqui,
inclusive, a argumentação tem de ocorrer contra a letra de vários textos de Marx, para
conservar o seu espírito de crítica do valor, do trabalho e do capital. A OSS enterra,
então, o caminho para um materialismo crítico em que as relações sociais e simbólicas
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

comporiam o “primado do objeto” (Adorno), para além da unilateralidade das supostas


leis gerais da economia.

Prioridade da base sobre a superestrutura ou a dos prefácios sobre o


movimento histórico efetivo?
É claro que Lukács tenta nos dizer que a base econômica é “prioritária” apenas no
sentido de ser um “ponto de partida” (usando palavras de Marx), “sem hierarquia de
valor” entre os momentos, ou pelo menos sem determinismo. Base que atuaria no jogo
de “ação recíproca” entre a base e da superestrutura. Esse motivo é afirmado muitas
vezes na OSS contra o marxismo vulgar. Mas, no fundo, essa divisão – tipicamente
moderna – entre base e superestrutura já é todo o problema. Aqui, o problema de
tomar os prefácios e introduções de Marx como fundamentos de uma teoria geral da
práxis, desprezando a forma de apresentação dialética das categorias sociais efetivas de
cada formação, o que só pode gerar falácias argumentativas escolásticas: sempre a
economia – e pior, a lei do valor, como vimos – se torna, nessa sistematização, o
processo-sem-sujeito predominante em “última instância” (como na “teoria geral das
práticas” de Althusser, aliás), ganhando o papel fundador essencial, como força
produtiva e relação de produção, quando não a centralidade ontológica de definição do
que é a “generidade humana”, como a “protoforma” ou o “modelo originário” da
liberdade e de todas as atividades humanas com algum fim racional etc. Primazia ou
sobredeterminação, eis sempre o trabalho, que é também o trabalho de segunda mão de
uma antropologia datada, rematada pelo velho economicismo marxista – apenas sem
determinismo, e com muita ação recíproca, que na verdade neutraliza a base fundante
de última instância. Sem dúvida, o trabalho deve fundar uma antropologia negativa: na
Dialética do Esclarecimento, a relação de dominação capitalista pode estar pressuposta
na lógica da autoconservação, no pensamento mitológico e na lógica da identidade do
Esclarecimento – inseparáveis da lógica histórica da troca, do trabalho alienado e da
dominação social. Mas, valendo como pressupostos elementares ou meras tendências
limitadas, eles são postos e atualizados como fundamentos só no mundo do Capital, que
redefine os termos e até os inverte. Não se parte de abstrações da antropologia filosófica,
e por isso há gêneses e rupturas categoriais à vista, sem possibilidade de ontologização
a-histórica ou trans-histórica de formas de pensamento e existência social.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Trabalho inflacionado
A OSS inflaciona inteiramente o termo trabalho, abstraindo-o das relações
históricas efetivas, já que tudo se torna, no fundo, em qualquer tempo, trabalho ou
momento subsumido do processo-com-sujeito predominante do trabalho (a oscilação
dualista é algo necessário): conversar, discursar, plantar, cozinhar, pescar, amar,
dormir, criar os filhos, desenhar, pensar, orar, escrever etc., como atividades
conscientes e evidentemente com consequências práticas, poderiam ser reduzidas
também, em última instância, a trabalho – o que faz sentido (parcial talvez) no mundo
capitalista ou real-socialista, que tende a “trabalhizar” tudo, pois rege efetivamente o
todo pelo metro abstrato da equivalência geral e da compulsão do crescimento das
forças produtivas como fins para o Outro (e não para a “generidade humana em si” ou
“para-si”, é sempre bom salientar). No capítulo da “Reprodução”, no vol. 2, é a vida
inteira que tem de girar em função do ato produtivo: são as mulheres e homens que se
tornam uma espécie de fundamento anexado pelo trabalho abstrato proletário (o
reprodutor por definição). A base subsumida pelo Capital, que o filósofo transfigura
antropologicamente como algo comandado pelos “carecimentos materiais”: “Tão-
somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual
ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as
mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação” (Lukács, “As
bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”).
Se o trabalho, no capitalismo, não é uma simples coisa nem um processo somente
material (parte de uma força produtiva social junto às máquinas etc.), mas uma relação
social fundante, é porque ele foi tornado um processo de valorização de capital –
mediado por uma relação de produção (forma-valor) que o converte no que ele nunca
havia sido: numa mediação histórico-social fundamental (Cf. Moishe Postone). Pois nas
sociedades pré-modernas ele nunca ganhou esse estatuto central de mediador objetivo:
se a relação social de produção não era o valor e muito menos o capital, a produção era
diretamente comunal ou social, por isso ele não tinha a supremacia sobre a sociedade e
os vários momentos da vida. Tais sociedades obviamente produziam (digamos:
“trabalhavam”), mas não podiam ser definidas como sociedades do trabalho ou de
trabalhadores em abstrato – ao contrário, eram amiúde sociedades de recusa do
trabalho, sociedades de relativa abundância do tempo e do espaço qualitativos,
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

sociedades do ócio, da festa, da pólis, da guerra, do mito e da religião etc., que os


punham relativamente para além de necessidades puramente materiais, o que lhes dava
uma particularidade histórico-geográfica impensável no capitalismo. A OSS realmente
tende a tornar a história impensável. Aqui poderíamos dizer que a produção era só uma
pressuposição do todo, um substrato ou uma condição material – e não uma força
determinante ou predominante em “primeira” ou em “última instância”.

Dos Flintstones aos Jetsons: a criptomodernidade do trabalho


O que Lukács faz, portanto, é projetar (quase de forma imperceptível) a lógica
moderna do trabalho abstrato como um atributo do trabalho ou da produção social em
geral. E por isso Marx se limita às determinações mínimas do metabolismo homem-
natureza, nos capítulos I e V de O capital, sem elevá-lo a fundamento real – só por isso
também nunca precisou escrever um livro geral de ontologia ou um capítulo genérico
sobre o Trabalho, mas antes um livro histórico-crítico sobre o Capital. O modelo de
trabalho criptomoderno da OSS, porque já abstraído das relações sociais efetivas
(separado das relações “extra-econômicas” que o impediriam de ser momento
prevalecente em geral), se torna, violentamente, o pressuposto de toda e qualquer
produção. Um passo adiante na exposição e o trabalho abstrato é projetado na práxis
social de toda formação histórica e assim eternizado. Assim, não há práxis histórico-
social efetiva que não seja (dá-lhe Engels de novo) desde sempre e para sempre
regulada pela lei do valor. Dos Flintstones aos Jetsons, mutatis mutandis, os homens
são trabalhadores: têm sempre de bater o cartão (“sob pena de ruína”) pois são sempre
regulados pelo tempo abstrato da produção universalíssima do valor (“não sabem, mas o
fazem”, daí que tais frases marxianas se tornam lemas ontológicos para a OSS e a sua
Estética). Mesmo na sociedade emancipada haverá um reino da necessidade regulado
pela eterna lei do valor.
Para nossa sorte, este ponto já foi criticado pelo seleto discípulo István Mészáros
(em Para além do capital), ainda que sem tirar todas as consequências que permitiriam
refutar a OSS desde a base e questionar alguns dos pressupostos centrais de sua própria
lógica de “emancipação do trabalho”, que continua a pôr o trabalho como centralidade
trans-histórica do social (apesar de Mészáros conhecer muito melhor Marx do que
Lukács e boa parte do marxismo tradicional). Segundo Lukács, assim, na etapa superior
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

do socialismo,
“desaparece a estrutura da troca de mercadorias, deixa de operar a lei do valor
para os indivíduos enquanto consumidores. Todavia, é evidente que resta em
vigor na própria produção, inclusive no crescimento das forças produtivas, o
tempo de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, segue operando
a lei do valor enquanto reguladora da produção” (OSS).

Eis o fim de linha dessa Ontologia. Ou seja, os supostos comunistas, os


“indivíduos livremente associados”, têm agora acesso ao consumo necessário, mas
continuam a se relacionar através das coisas, por meio da divisão do trabalho e da
comparação objetiva de seus produtos privados, pois só estes exprimem sua vontade e a
sua socialização, como eternos trabalhadores que são. Em suma, se a lei do valor é
simplesmente “imanente ao trabalho” em geral (como diz ainda Lukács), ela deve
continuar “ontologicamente” a impor-se “por trás de suas costas” (Marx). O comunismo
não suprime o fetiche das leis econômicas, apenas distribui melhor os seus bens e
formas de atividade, por meio do Planejamento central, embora tenda a reduzir o tempo
de trabalho socialmente necessário e pôr o tempo livre. Nesse sentido bastante preciso,
o humanismo de Lukács faz uma crítica tênue e muito velada à religião soviética do
trabalho e do produtivismo. E é claro, ainda, que nossa crítica só pode ser histórica e
imanente, pois Lukács viveu numa época em que os avanços técnico-científicos da 3ª
Revolução Industrial apenas germinavam.
Contudo, o modo de produção existente (principalmente no socialismo) tende a
aparecer já como uma forma ontológica aperfeiçoada do ser social. Lukács cria assim
uma miséria filosófica que legitima e ontologiza – eterniza – a miséria social e seu
fundamento antagônico. Que, é claro, reproduz-se na miséria da atualidade: a miséria
que se tornou o trabalho como fonte da riqueza social quando comparado às
possibilidades do trabalho morto objetivado –, concretizado pela ciência e a técnica
atuais – estas sim, a base fundamental da riqueza material, potencialmente convertível
em tempo livre disponível para todos. Com o que o conhecimento e o tempo livre (e não
o trabalho) é que se tornam realmente (ou melhor, potencialmente) a verdadeira
riqueza e o seu verdadeiro fundamento. Ou seja, a base da nova forma de mediação do
metabolismo da sociedade emancipada do fundamento supostamente ontológico do
trabalho, do valor e do capital. Interessante notar como Marx sempre separou
conceitualmente o processo de produção material como algo mais geral e mais amplo do
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que um processo de trabalho material. Assim, quando diz sobre a tendência cega do
capital: “o desenvolvimento da força produtiva só lhe é importante à medida que
aumenta o tempo de mais-trabalho da classe trabalhadora e não à medida que diminui
o tempo de trabalho para a produção material de modo geral; assim move-se pelo
antagonismo” (O capital, Livro 3). Por isso, a revolução da base produtora do capital é o
pressuposto para explodir a lei do valor e fazê-lo “voar pelos ares”. Sendo assim,
poderíamos voltar ao capítulo VI e redefinir os seus termos como historicamente
determinados, já que o trabalho superou o próprio trabalho:
“O desenvolvimento das forças do trabalho, que o capital incita continuamente
em sua ilimitada mania de enriquecimento (...) avançou a tal ponto que a posse e
a conservação da riqueza universal, por um lado, e, por outro lado, a sociedade
que trabalha se comporta cientificamente com o processo de sua reprodução
progressiva, com sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que
deixou de existir, por conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o que
pode deixar as coisas fazerem por ele (...) o trabalho não aparece mais como
trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade” (Marx,
Grundrisse).

Aqui sim, no fim da “pré-história humana”, entram os termos que Lukács inverte
e põe no começo de sua ontologia: homem e indivíduos, atividade própria, força
produtiva e riqueza social universal, necessidades humanas etc., logicamente
pressupondo o fim da mania infinita de trabalho e enriquecimento do Capital. Esta
esfera da produção não apareceria mais também, como insiste o húngaro, como um
reino da necessidade fechado em suas leis autônomas. Os campeões da objetividade
esquecem o que pode haver de subjetivo e imaginário na organização da produção
social.

Penso, logo trabalho: a certeza hiperbólica e o megadiscurso do método


Ao contrário do que pregam os marxistas universitários hegemônicos, é no
mínimo de se desconfiar se a OSS não se torna mais um “discurso do método”
hiperbólico para uso do mestre e dos discípulos que, em vez de desdobrar e atualizar a
crítica da economia política de Marx, pensando as contradições imanentes atuais da
valorização, a historicidade e a negatividade de todas as categorias modernas do
sistema, termina por naturalizar e fetichizar tais categorias como princípios ontológicos
positivos e eternos. Curiosamente, quando se deveria voltar a pensar a história efetiva,
retorna-se à eterna discussão do método e das formas de conhecimento em abstrato (o
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tal desvio lógico-gnoseológico criticado nos outros). De fato, Lukács não quer discutir
efetividades, mas “princípios” e “modelos originários” para construir um sistema de
verdades dogmáticas. Isso desde a sua Estética. A clareza cartesiana do ideal científico
clássico obscurece necessariamente os fundamentos históricos, pois pretende sempre
pensar o particular sob a anterioridade de leis gerais fundantes e apreender o
movimento como predicado de um sujeito posto (Cf. R. Fausto, Marx, lógica e política,
t. 1).

O terror mítico da história e a mania da fundação positiva


Porém, uma questão radical anterior a tudo isso é: por que o marxismo tem essa
mania de erigir uma filosofia e uma fundação positiva? Depois dos esboços não-
publicados e abandonados dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, d’A
Ideologia Alemã e da “Introdução” aos Grundrisse (1857), Marx não percebe
criticamente que o campo da “fundamentação positiva” é o campo da ideologia (não na
versão desarmada desse conceito, que lhe dá Lukács), tendo-se antes de passar à crítica
imanente direta das formações econômico-sociais? Dessa maneira não se torna o
marxismo uma “visão de mundo” e uma doutrina invariante, enfim, mais uma “teoria
tradicional” – pomposamente chamada “materialista histórica e dialética” –, porém
semelhante às ideologias burguesas, para as quais “houve história até aqui, mas agora
não há mais”?

Trabalho decrépito
O que há de decrépito e de intempestivo no último Lukács é justamente isto:
quando o mundo burguês como um todo já dava sinais claros do colapso de seus
fundamentos – a lista é grande: automatização e esgotamento previsível da da lógica da
acumulação, crise fiscal do Estado, crise da ideologia do trabalho e do movimento
operário tradicional, crítica do iluminismo e do antropocentrismo, criação de novos
valores éticos e estéticos para além do trabalho (das mulheres, dos estudantes à
libertação sexual, do tempo livre à ecologia), crise do sistema soviético (Tchecoslováquia
e Hungria, p. ex.), limites ecológicos de todo desvario produtivista do Ocidente e do
Oriente, surgimento de uma arte radicalmente crítica e negativa, ligação entre
psicanálise, crítica radical e novos movimentos sociais etc. – pois bem, na contramão
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disso tudo, Lukács regride àqueles “fundamentos” burgueses tradicionais para re-
consolidá-los, a começar pela lógica obsoleta da socialização pelo valor-trabalho, dando-
lhe a aura de essência humana trans-histórica. Feitas as contas, porém, tudo isso vem
num trajeto coerente com seu percurso histórico, de tolerância e de crítica meramente
ética ao stalinismo, que operava como uma defesa humanista da modernização
socialista retardatária.
Em vez de encaminhar uma crítica das estruturas econômico-sociais, políticas e
ideológico-culturais efetivas do Estado e do Capital avançados em crise (como fizeram,
entre outros, Adorno, Benjamin, Marcuse, Lefebvre, Debord, Braverman, Mandel, Gorz,
Altvater, Kurz, Harvey, Schwarz, Arantes, Žižek, Mészáros), ou de reconstituir sua
história (Dobb, Arrighi, Sohn-Rethel, Kurz, entre outros) ou ainda, de retomar
rigorosamente a lógica da apresentação dialética de O capital (Rosdolsky, Backhaus,
Reichelt, Ruy Fausto, Giannotti, Postone, Grespan, entre outros), o velho Lukács
retorna aos fundamentos reconhecidamente abstratos e artificiosos de uma suposta
lógica ontológica da práxis humana – sempre, sempre em geral. Nesse sentido, sua obra
é um complemento de Habermas, com a sua lógica da interação e da ação comunicativa
em geral, rodando em falso também no plano puramente ético, sem a crítica radical do
valor e da cisão de gêneros (como proposta por Adorno e Kurz).

O novo programa de Gotha, a confusão entre pressuposição e fundamento


Para precisar um pouco mais, ainda, o equívoco fatal é então este: a operação
maior dessa ontologização forçada é (como Marx já advertia na Introdução aos
Grundrisse) o contrabando de determinações históricas da essência social capitalista
para a essência humana em geral – e vice-versa. O erro que consiste em abstrair
categorias “simples” e “razoáveis” para delas derivar fundamentações “históricas” a
priori. Em linguagem técnica, Lukács confunde pressuposto e fundamento, ou seja: o
que é pressuposto material geral e abstrato das formações sociais torna-se ser-posto
desde o início e fundamento histórico essencial do capitalismo, que na verdade só pode
ser o próprio Capital como sujeito automático e predominante (“automatisches -
übergreifendes Subjekt”, diz n’O capital). Além disso, tomando o trecho do Cap. VI de O
Capital como fundamento ontológico (e não como um pressuposto abstrato e
historicamente variável e redefinível com a entrada maciça da ciência e da técnica na
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produção da riqueza material) transforma a produção em geral, fundada numa relação


técnica racional com a natureza, num processo do trabalho vivo em massa, incluindo
este tempo social como o principal fator da riqueza social. A metafísica do trabalho,
como o “único produtor de riqueza”, antevista por Marx na Crítica ao Programa de
Gotha, dá o seu último suspiro.

A miséria da ontologia: a metafísica terrorista do trabalho e da consciência


reificada
Desse ponto de vista, esta Ontologia é uma anti-“ontologia”, já que não tem
poder explicativo do funcionamento das categorias reais, tornando-se uma metafísica
antropológica do trabalho e da consciência. Os termos são eloquentes: o trabalho como
“protoforma” e “modelo originário” da práxis e da liberdade. Que o diga o proletariado
soviético como “representante” da generidade humana. Daí o mais bizarro percurso da
OSS: deduzir e extrair os valores ético-morais marxistas da forma do valor econômico.
Como ontologia negativa, é certo, o empreendimento teria futuro (mais ou menos, o que
fez a Minima Moralia adorniana), se o valor de troca é a protoforma da regressão e do
terror, que ameaça sempre novamente transformar o potencial homem em macaco. A
liberdade que se confunde com a dominação da natureza é um fenômeno contraditório,
também uma falsidade ideológica, pois na “natureza dominada”, como meros objetos
proletarizados, os homens estão incluídos e são silenciados. Há e não há liberdade, tal
como há e não há homens – estes são potencialidades em devir. Nesse sentido, o gênero
humano continua em grande parte mudo ou pelo menos silencioso, só audível em
negativo, como tensão e resíduo do sistema: na dissonância de Schoenberg, nos rumores
e na corporalidade de Beckett, nos gestos tensos e enigmáticos das personagens de
Kafka, nos gestos abstratos e sofridos da pintura de Pollock – mimetizando e se
contrapondo criticamente à linguagem burocrática, universal e impessoal da consciência
coisificada. Racionalidade instrumental elevada à última potência, que pretende reduzir
todo o social a si, como se o ato de projetar fins racionais na natureza explicasse toda a
subjetividade e toda espécie de relação social. O não-idêntico resiste.

Consequências da miséria ontológica para o presente


Pode-se dizer que a OSS é um velho cachorro morto? Mas como Hegel, é um
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cachorro morto que fala muito e nos diz respeito no nível político e ideológico, onde se
travam alguns confrontos decisivos. Esta enorme gramática dos equívocos pode ter
efeitos curativos ou deletérios para o presente – dependendo do processo de recepção,
que não está concluso e pode embasar amplos setores da esquerda brasileira e europeia
atual. Elevado a momento prevalecente, prioritário, central, essencial, fundante,
determinante, em primeira ou última instância – os termos variam e se confirmam
circularmente – o trabalho passa a reivindicar o papel ontológico que só o Capital de
fato tem na modernidade como um fetiche que nos coage ao trabalho – “produtivo” e
“necessário” somente do ponto de vista dele – mas que, autodestruindo esta sua própria
base “ontológica” negativa, tem de deixar de ser e de valer, fazendo desmoronar todas as
categorias do pensamento e da prática modernas que pareciam “objetivas”,
“ontológicas” ou “eternas”.
Na crise do trabalho abstrato, quando o marxismo tradicional o admite, o
trabalho “concreto” passa a ser cultuado como centro da vida e da sociabilidade e não é
mais criticado, nem mesmo quando se revela que ele nada mais é que a face visível,
material, qualitativa e destrutiva do trabalho abstrato e alienado, e que vai sendo
excluído pelo mecanismo estrutural inconsciente, que tende inevitavelmente a
desvalorizá-lo. O trabalho vivo (diferente do conceito negativo de proletariado, como
sujeito sem objeto – por isso mesmo, absurdo) é então contraposto abstratamente ao
mercado, à circulação, às classes “parasitas”, ao capital financeiro e especulativo
“judaico”, a tudo o que não gera valor e riqueza material, inclusive às mulheres, aos
negros, aos imigrantes, aos ciganos, aos pobres, vagabundos e criminosos em geral, tal
como se evidencia cada vez mais nas tendências fascistas no capitalismo mundial em
crise. Com isso, é o humanismo do trabalho que revela a sua verdadeira face
particularista e corporativista, reformista e anti-humana, e que um dia pôde se conciliar
com o totalitarismo stalinista.
As mediações de uma possível contraposição do proletariado ao capital são ainda
exíguas ou inexistentes. A tendência a vê-lo nos moldes da velha classe operária
produtiva tem seus efeitos na ideologia da ontologia e da honra do trabalho, no pós-
operaísmo italiano, na valorização repentina do trabalhador técnico-científico de classe
média ou do trabalhador de massa da semi-periferia capitalista. A OSS não desconhece
o recuo das barreiras naturais por meio da automação e da diminuição do trabalho
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socialmente necessário. Mas, na base, perpetua o erro comum do marxismo tradicional


de confundir o trabalho imediato qualquer, assalariado ou não, sempre capaz de ser
flexibilizado e estendido em massa, como o principal fator determinante do valor e,
ainda pior, da riqueza material, sem ver a contradição posta pelas atuais forças
produtivas para a lei do valor, mesmo com os sinais maciços da automação, do
desemprego estrutural, da desvalorização, informalização e precarização do trabalho,
em grande parte já totalmente improdutivo (ou só produtivo num nível selvagem),
enfim, do descolamento radical do dinheiro especulativo da produção e do
endividamento sistêmico – isso sem falar da crise ambiental global, que parece impedir
por si só todo desvario produtivista que tente recolocar o trabalho como centro da
socialização, critério universal de participação social e principal uso do tempo social. O
erro oposto, no entanto, é a metafísica das forças produtivas técnico-científicas, que
pode produzir o grosso da riqueza material e a maior parte do valor excedente (como
mais-valia relativa), sem explodir de imediato as bases do capital, pois que esta é ainda a
sua propriedade, gerando mercadorias que simulam preços, cobrando renda de acesso e
a canibalização do tecido social, pelo menos enquanto as bolsas e os circuitos de
endividamento não quebram.
Assim, ainda, ambos os lados identificam as forças produtivas como o sujeito
pleno da história – o que faz o capitalismo de repente ganhar uma “face humana” um
tanto inusitada, cheia de valores de uso e potencialidades na vida cotidiana, ou
possibilidades de “decisão” e “alternativas” dentro das coordenadas da sociedade do
trabalho e do valor, contrapostas como que de fora ao Capital e ao Estado. Segundo os
equívocos derivados da filosofia humanista, fundacionista e instrumental-funcionalista
(pois tudo é função de uma base econômica fixa, mesmo em Negri), portanto, o
capitalismo surge como um imenso conjunto de alternativas de “posição teleológica”
(quer dizer, de produção de mercadorias), conforme a arqui-ideologia da livre iniciativa
do sujeito burguês. No contexto da concorrência monopolista e da crise estrutural
apontada, nem isso mais é verdade. Certamente, Lukács pensava numa política de
alternativas socialistas no âmbito da Cultura e do Estado – mas congelando seus
pressupostos materiais, sendo o socialismo real o seu referente. A lógica do trabalho
moderno, que ele supõe miraculosamente como um processo mediador concreto da
formação, restringe a priori alternativas radicais a ela, e no final só reproduz a
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reificação da classe-que-sobrevive-do-trabalho (e do não-trabalho). O interesse do


trabalho tornou-se um interesse particular, uma ideologia que eterniza a produção
capitalista para salvaguardar os direitos “justos” da venda e da reprodução da sua força
de trabalho. Que alternativas “produtivas” serão estas face à crise geral do Estado e do
capital monopolista, no momento do colapso da valorização do valor-trabalho? Para o
proletariado em devir, como (anti-)classe da (anti-)miséria, a única alternativa
verdadeira e universal seria a de abolir esse jogo de alternativas miseráveis.
(2000-2012)

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