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A Miséria Da Ontologia Ou Ontologia Da Miséria PDF
A Miséria Da Ontologia Ou Ontologia Da Miséria PDF
Lukács
A Ontologia da miséria / A miséria da Ontologia
LUKÁCS, György, Para uma ontologia do ser social, vol. 1. São Paulo: Boitempo,
2012. (Apresentação de José Paulo Netto, tradução do alemão por Mario Duayer e Nélio
Schneider, acrescida da tradução de Carlos Nelson Coutinho, baseada na edição
italiana).
Cláudio R. Duarte
Eis um lançamento há muito aguardado e que vai fazer Escola. A maior proeza de
Lukács foi fundar “filosoficamente” o marxismo duas vezes: com História e Consciência
de Classe (HCC), no início dos anos 1920, e com a Ontologia do Ser Social (OSS), escrita
ao longo dos anos 1960, em que busca renovar e salvar todos os esforços empreendidos
ao longo da vida. Hoje ele tem a felicidade de ser reconhecido como o filósofo marxista
mais importante. Tratando-se de princípios e fundamentos, ainda mais em terras “sem
fundo” e “sem caráter” como esta, eis um livro fervorosamente aguardado por boa parte
da esquerda marxista brasileira, principalmente universitária, completamente
desorientada na neblina das desestruturações do assim chamado “mundo do trabalho”.
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“Essa centralidade da categoria do valor é um fato ontológico (...) o ponto focal das mais
importantes tendências de toda realidade social (...) o caráter médio do trabalho surge de
modo espontâneo, objetivo, desde os graus mais primitivos de sua socialidade. (...) Antes
de mais nada, aparece no valor, enquanto categoria social, a base elementar do ser social:
o trabalho” (Lukács, OSS, Cap. IV, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”).
Eis a espantosa pedra angular da OSS e da prometida Ética. Pode-se concluir assim que
para o velho Lukács, o mundo burguês, regido pela lei do valor-trabalho, existe desde
sempre.
O equívoco sobre a profundidade e a extensão histórica da lei do valor não é
banal. O próprio Marx teve de tatear a questão durante anos, mas nos Grundrisse
conclui que “a determinação do valor pelo puro tempo de trabalho só se dá sobre a base
da produção de capital, ou seja, da separação das duas classes” e que o capital é o
“último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor”.
Portanto, pode-se seguramente dizer que há mercadorias e dinheiro (portanto preços e
valor de troca) no pré-capitalismo, mas isso não pode significar que o valor, ou melhor,
a forma-valor e sua substância criada pelo trabalho abstrato estão postas como
fundamento em sociedades que bloqueavam a mercantilização integral da vida
(trabalho assalariado, acumulação de capital, concorrência, em suma, a economia como
um domínio alienado). Nada disso, para nosso ontólogo: “implicitamente, [a lei do
valor] já está presente quando o homem realiza ainda apenas trabalho útil, quando seus
produtos não se tornam ainda mercadorias; e resta em vigor — de novo implicitamente
– após ter cessado a compra-venda de mercadorias” (OSS). Este “implicitamente”
gostaria de dizer: a lei do valor não está posta, não tem papel fundante, está apenas
pressuposta ou é só uma determinação teórica (pois a produção sempre pode ser
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medida pelo tempo), não efetivada na produção social. O que teria de valer também
para o próprio conceito de trabalho: ele se põe como mediação social central apenas
como trabalho abstrato produtor de valor, ou seja, apenas no capitalismo, quando as
relações sociais diretas e mais ou menos abertas são substituídas pela relação coisificada
dos agentes, através da troca de mercadorias, dentre elas a força de trabalho (Cf. Moishe
Postone, Time, Labor and Social Domination). A “economia” e o “trabalho” (a
conversão dos homens particulares em “trabalho”), assim, são abstrações reais
históricas e não trans-históricas. Mas o velho Lukács não pode tirar tal conclusão, pois
isso impediria a construção de todo o seu sistema erigido a partir de noções primeiras e
gerais. Ora, se tal pedra angular desmorona na teoria e na práxis histórica, então, é toda
a obra lukácsiana da maturidade que também desmorona.
Reconciliação forçada
Em todo caso, a boa fé nessa base econômica é completamente forçada – o cerne
da “reconciliação forçada” já apontada por Adorno –, pois fica coagida a aceitar a
violência cega da lei do valor, como um eterno “ser” em “automovimento”, como
reconhece Lukács, e que só pode implicar na violência do Estado, ambos como garantias
ideológicas da justiça, da liberdade e da identidade ao final do processo. A operação
ideológica, aqui, lança mão do recurso marxiano de olhar o presente histórico do ponto
de vista das forças produtivas humanas e sociais isoladamente – claramente abstrato,
especulativo e... teleológico, pois que se erige a totalidade do desenvolvimento humano
como padrão de medida (aqui, a origem da ideologia fáustica e prometéica de Marx, que
vem de Hegel e do idealismo alemão) – quer dizer, um ponto de vista que se abstrai das
relações de produção fetichistas, ou seja, do ponto de vista propriamente imanente à
economia política, com sua fundação histórica particular, e não antropológica geral. Em
Marx, no entanto, esse ponto de vista especulativo não é fundante, não cria uma
essência humana como sujeito em movimento – ao contrário, é uma perspectiva crítica,
como que feita de fora, que estabelece os universais humanos como pressuposições;
enfim, uma visão das possibilidades objetivas que surgem no reino do capital. Ora, o
último Lukács transforma tais possibilidades em essência objetiva do processo (em-si),
apenas necessitando da práxis consciente para efetivá-las (para-si) – a armadilha
prática que consiste em não ver nenhuma necessidade de ruptura no fundamento posto
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ciência marxista universal pode dar à minha vida um conteúdo indestrutível”. Aliás, a
busca sistemática de uma lógica, uma ética, uma estética, uma psicologia marxistas
poderá “preencher fecundamente a vida de gerações inteiras[!]”. Com a OSS, essa mania
de grandezas é coroada como doutrina ontológica da espécie humana, talvez de todas as
espécies, do mundo natural e social, quiçá, até do Outro. O filósofo não rejeita a dialética
na natureza, mas a continua e a desdobra socialmente, na interação supostamente
“contraditória” entre forças naturais e sociais – e por que não também “religiosas”?
Marx certamente não delirava quando falava dos “caprichos teológicos” ou da
“objetividade fantasmática” da forma-valor. Eis pelo menos uma “metafísica” ontológica
do real, não constituída por seres imaginários, e que supera a autoestilização do sujeito
moderno como o senhor absoluto de seu destino. E como Lukács consegue converter
milagrosamente o valor na matriz prática dos valores éticos que humanizam o homem,
ele o transforma positivamente em homo economicus! O universal humano não se
estilhaça mais pela economia e a divisão do trabalho, ele tem de “se realizar”
imaginariamente nessa forma cindida. Claro também que não sem antes denunciar as
“contradições”, puramente “fenomênicas”, em relação à “essência” constituída pelo
progresso objetivo do trabalho e das faculdades humanas. Assim, como vimos, a
contradição cegamente constituída e constitutiva da relação social fetichista se torna
positivamente, como em Hegel, a mera manifestação exterior de um progresso da
identidade humana. Lukács troca, no final, o Weltgeist anteriormente formado pelo
proletariado e o Partido pela metafísica das forças produtivas do gênero humano. Não
há dialética do capital, mas conflito entre essa ética e as estruturas reificadas. Mais ou
menos como em Proudhon, “ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito, a fábrica,
todas as relações econômicas foram inventadas em benefício da igualdade, e todavia
acabaram sempre por se voltar contra ela. (...) Se há contradição, ela existe apenas entre
sua ideia fixa e o movimento real” (Marx, A miséria da filosofia).
explicativo, válido apenas como “modo de evitar repetições”, pois bem: é aí que o nosso
filósofo deposita todas as suas fichas, propondo o que ele chama de “generalizações
filosóficas”. Segundo Marx, porém, não a unidade, mas a separação histórica entre
homens e meios de produção é que precisava ser explicada; não a produção ou as forças
produtivas isoladamente, mas as relações de produção e distribuição específicas em
relação dialética com tais forças, no mundo burguês – em suma, o modo de produção e
reprodução, ou ainda, a dialética entre determinações formais e relações materiais de
produção – é isso que constituía o discurso substantivo de Marx – que por isso mesmo
ultrapassa a ontologia filosófica em direção a uma crítica imanente do que é e parece
ontológico, crítica do que se cristaliza nas chamadas “leis histórico-naturais”. Lukács
prefere no entanto concentrar-se nas raciocinações infinitas sobre a práxis em geral, o
processo material de produção, as forças produtivas como “base” prioritária da
economia e do ser social genéricos. A famosa questão marxista da produção de mais-
trabalho e de mais-valia – reveladores da verdade negativa da sociedade do trabalho e
do valor – tende assim a quase sumir do mapa. De Hegel, interessam-lhe, sobretudo, os
esquemas do ardil do trabalho e da astúcia da Razão. Pode-se duvidar se a OSS não é
uma imensa glosa desses dois modelos filosóficos, que terminam por suprimir as
estruturas históricas e dialéticas da exposição de Marx. De fato, o livro desliza pelo ser
social de todas as épocas, da Idade da pedra lascada à União Soviética, numa
terminologia genérica e imprecisa, sem explicitar e detalhadamente nenhum modo de
produção. Basta perceber como estão muito pouco presentes em seus esquemas o “ser-
precisamente-assim” dos conceitos históricos do trabalho, tais como trabalho abstrato e
assalariado ou trabalho escravo e servil.
Aqui, então, o segundo plano de gênese dos valores: o trabalho útil, como ideação e
posição de fins na matéria, que seria a protoforma de toda atividade. De fato, os
indivíduos são historicamente “o que” e “o modo como produzem” (Marx/Engels). É
claro que “o trabalho forma” (Hegel) capacidades técnicas, sociais e intelectuais no
sujeito que produz. Porém, em qual contexto isso se torna um fim em si, um valor, uma
moral exclusiva centrada na autoconservação – uma “moral de escravos” (Nietzsche)?
Em qual sentido os indivíduos não são ou não se reduziriam à produção e à divisão do
trabalho? Questionar a objetividade desse progresso e a racionalidades desses valores
não tem nada de “irracionalismo” – o que “destrói a razão” é a própria razão
instrumental, que Lukács põe no Altar e irracionalmente cultua.
N’A Ideologia Alemã, Marx lembra que o trabalho “concreto” sempre foi uma
“existência unilateral”, “subordinada/inferior” e que só tem a “aparência de uma
autoatividade”; nesse contexto preciso, “a vida material aparece como a finalidade” da
existência. E por isso, “a revolução comunista volta-se contra o modo da atividade
existente até aqui, elimina o trabalho”. Como o trabalho historicamente é, ainda
segundo Marx, uma atividade subordinada ao reino da necessidade (às causalidades
exteriores, naturais e sociais), idêntico ao reino da instrumentalização de coisas,
animais e homens (o domínio da razão instrumental sobre a natureza, da cisão entre
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trabalho intelectual e manual etc.), não resta como valor moral senão a valorização
forçada, tipicamente burguesa ocidental, dos meios técnicos, instrumentais e utilitários
da dominação, que absorvem e suprimem os fins humanos exteriores a esse reino.
Assim, os traços da autoatividade, na esfera do trabalho histórico, são claramente
residuais. Eles devem ser procurados lá onde o trabalho cessa ou se transfigura em
outra coisa, não mais estritamente subordinada à consciência objetificadora e às
necessidades materiais, mas antes ao corpo, à sensibilidade, ao desejo e à lógica da
própria atividade: ócio, jogo, festa, sociabilidade, sexualidade, vida doméstica, ciência,
educação, artes – precisamente o que foi separado, no mundo moderno, em esferas mais
ou menos exteriores à economia empresarial. Hoje, é claro que até mesmo tais esferas
foram racionalizadas economicamente, por assim dizer “trabalhizadas”. Quando Lukács
fala do trabalho como forma originária dos valores morais, no fundo deve ter em mente
o modelo da criação estética e artesanal, ou a produção comunitária (típica do pré-
capitalismo). Sem dúvida, porém, se tais atividades são muito parcialmente fins em si
(ou finalidades sem fim) – como sinais históricos do possível reino da liberdade –, isso
apenas desvela o que o trabalho historicamente nunca foi e nunca poderá ser. Por isso,
como diz Marx, citado muitas vezes por Lukács: o reino da liberdade está para além do
reino da necessidade. Sua condição é, por isso mesmo, não a extensão do trabalho, mas
a redução do tempo do trabalho (aqui, no sentido de produção material) ao mínimo,
superando a sujeição dos homens à causalidade econômico-social alienada.
utilidade etc.), ou antes da antropologia filosófica, seria possível fundar uma práxis ética
marxista de corte humanista, claramente antimetafísica, contrária a todo imperativo
categórico moral puramente racional e às várias formas de decisionismo, voluntarismo e
politicismo, bem como ao determinismo economicista. O alvo parece justo, no entanto
os meios e os fundamentos histórico-materiais pressupostos são uma areia movediça –
complicadíssimos, para dizer o mínimo.
Como vimos, Lukács pensa tais categorias, mais ou menos como o jovem Marx,
como referentes, em última instância, ao homem e às suas bases naturais (o homem
posto como sujeito fundante, mesmo que negado): certamente como bases categoriais
sociais e históricas (divisão do trabalho, trabalho socialmente necessário, valor, troca
etc.), mas válidas para todas as épocas, em medidas variáveis – nesse sentido elas
seriam quase todas essências contínuas e trans-históricas, como não poderia deixar de
ser em uma ontologia que busca fundamentos positivos. Assim, contudo, as “leis
histórico-naturais do desenvolvimento” da sociedade burguesa, tal como nomeadas por
Marx, são em grande parte esvaziadas de sua especificidade e negatividade históricas
imanentes e projetadas em geral para várias formações sociais – como a categoria
fundamental do valor e, portanto, do trabalho abstrato –, inclusive para a sociedade
emancipada (comunista). “A anatomia do homem é uma chave para a anatomia do
macaco”, diz Marx, mas não sem advertir que as determinações da época burguesa –
como “última etapa” da “pré-história” do homem, vale lembrar –, não deveriam
eliminar as diferenças específicas, nem poderiam ser projetadas como um esquema
evolutivo ou desenvolvimentista quase-linear e causal de essências postas, sob o risco de
eternizar as categorias burguesas e o seu modo de funcionamento; pior, talvez,
tornando-as categorias “humanas”, lá onde o Homem ainda não é sujeito pleno e
portanto não é fundamento posto, mas antes a criatura de relações sociais “pré-
históricas” complexas. Uma antropologia crítica só teria sentido como antropologia
negativa, como análise de negações e de resíduos possíveis do homem em sua pré-
história. O que só se faz “escovando a história a contrapelo” (W. Benjamin).
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apenas no mundo moderno, pois, nas formações pré-capitalistas ela se fundia, como a
parte material da reprodução social, aos outros momentos da vida (religião, guerra, vida
doméstica, “política”, tempo livre etc.). A produção não era uma esfera legal regida pelo
tempo abstrato do valor ou por critérios puramente econômicos, tal como no
capitalismo, e, por isso mesmo, muitas vezes não visava somente aos puros fins
racionais, úteis ou econômicos. Tomar o valor (de troca e de uso) como base e critério
dos valores morais é tornar o princípio de autoconservação uma religião secular da
razão instrumental, tal como o fizeram Hobbes, Sade, o positivismo e o darwinismo
social: o Eu como um eterno ser para o Outro. Precisamente aqui a liberdade aparece
como o progresso da razão dominadora.
Nesse sentido, não se trata de eliminar o uso e a utilidade das considerações
éticas – mas de determiná-los e relativizá-los como critérios históricos. Além da
consciência, do imaginário e das necessidades no ato produtivo, poderíamos divisar
como mediações significativas de qualquer práxis o inconsciente e a pulsão, a ordem
sociossimbólica e o real (no sentido lacaniano), que parecem impelir muitas vezes a
reprodução social para além do princípio do prazer e da autoconservação. Sem isso,
talvez, não se entende o papel histórico fundamental da violência, do sagrado e de todas
as mediações extra-econômicas nas formações não-capitalistas (Cf. Perry Anderson,
Pierre Clastres, Marshall Sahlins, entre outros) – ou mesmo na capitalista. Em HCC,
reconhecia-se isso mais e melhor. Assim, nunca ou muito dificilmente a produção por si
própria se torna diretamente a mediação social central ou exerce o papel de “momento
predominante” nas formações não-capitalistas, já que os homens, suas “necessidades” e
“desejos”, mediados pelas relações sociais diretas efetivas, eram o fundamento e a
finalidade social da vida. Não há produção, nem ato teleológico separado da
comunicação e da linguagem, dos ritos, da política etc. O ser primeiro é um mito da
razão analítica. O processo produtivo, aqui e talvez ainda mais no capitalismo, é uma
simples base ou condição material entrelaçada ao social e às ideologias, sem dinamismo
próprio. A não ser na metafísica das forças produtivas. Não menos que isto: uma
determinação entre outras, nunca a determinação de primeira ou última instância. Aqui,
inclusive, a argumentação tem de ocorrer contra a letra de vários textos de Marx, para
conservar o seu espírito de crítica do valor, do trabalho e do capital. A OSS enterra,
então, o caminho para um materialismo crítico em que as relações sociais e simbólicas
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Trabalho inflacionado
A OSS inflaciona inteiramente o termo trabalho, abstraindo-o das relações
históricas efetivas, já que tudo se torna, no fundo, em qualquer tempo, trabalho ou
momento subsumido do processo-com-sujeito predominante do trabalho (a oscilação
dualista é algo necessário): conversar, discursar, plantar, cozinhar, pescar, amar,
dormir, criar os filhos, desenhar, pensar, orar, escrever etc., como atividades
conscientes e evidentemente com consequências práticas, poderiam ser reduzidas
também, em última instância, a trabalho – o que faz sentido (parcial talvez) no mundo
capitalista ou real-socialista, que tende a “trabalhizar” tudo, pois rege efetivamente o
todo pelo metro abstrato da equivalência geral e da compulsão do crescimento das
forças produtivas como fins para o Outro (e não para a “generidade humana em si” ou
“para-si”, é sempre bom salientar). No capítulo da “Reprodução”, no vol. 2, é a vida
inteira que tem de girar em função do ato produtivo: são as mulheres e homens que se
tornam uma espécie de fundamento anexado pelo trabalho abstrato proletário (o
reprodutor por definição). A base subsumida pelo Capital, que o filósofo transfigura
antropologicamente como algo comandado pelos “carecimentos materiais”: “Tão-
somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual
ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as
mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação” (Lukács, “As
bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”).
Se o trabalho, no capitalismo, não é uma simples coisa nem um processo somente
material (parte de uma força produtiva social junto às máquinas etc.), mas uma relação
social fundante, é porque ele foi tornado um processo de valorização de capital –
mediado por uma relação de produção (forma-valor) que o converte no que ele nunca
havia sido: numa mediação histórico-social fundamental (Cf. Moishe Postone). Pois nas
sociedades pré-modernas ele nunca ganhou esse estatuto central de mediador objetivo:
se a relação social de produção não era o valor e muito menos o capital, a produção era
diretamente comunal ou social, por isso ele não tinha a supremacia sobre a sociedade e
os vários momentos da vida. Tais sociedades obviamente produziam (digamos:
“trabalhavam”), mas não podiam ser definidas como sociedades do trabalho ou de
trabalhadores em abstrato – ao contrário, eram amiúde sociedades de recusa do
trabalho, sociedades de relativa abundância do tempo e do espaço qualitativos,
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do socialismo,
“desaparece a estrutura da troca de mercadorias, deixa de operar a lei do valor
para os indivíduos enquanto consumidores. Todavia, é evidente que resta em
vigor na própria produção, inclusive no crescimento das forças produtivas, o
tempo de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, segue operando
a lei do valor enquanto reguladora da produção” (OSS).
que um processo de trabalho material. Assim, quando diz sobre a tendência cega do
capital: “o desenvolvimento da força produtiva só lhe é importante à medida que
aumenta o tempo de mais-trabalho da classe trabalhadora e não à medida que diminui
o tempo de trabalho para a produção material de modo geral; assim move-se pelo
antagonismo” (O capital, Livro 3). Por isso, a revolução da base produtora do capital é o
pressuposto para explodir a lei do valor e fazê-lo “voar pelos ares”. Sendo assim,
poderíamos voltar ao capítulo VI e redefinir os seus termos como historicamente
determinados, já que o trabalho superou o próprio trabalho:
“O desenvolvimento das forças do trabalho, que o capital incita continuamente
em sua ilimitada mania de enriquecimento (...) avançou a tal ponto que a posse e
a conservação da riqueza universal, por um lado, e, por outro lado, a sociedade
que trabalha se comporta cientificamente com o processo de sua reprodução
progressiva, com sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que
deixou de existir, por conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o que
pode deixar as coisas fazerem por ele (...) o trabalho não aparece mais como
trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade” (Marx,
Grundrisse).
Aqui sim, no fim da “pré-história humana”, entram os termos que Lukács inverte
e põe no começo de sua ontologia: homem e indivíduos, atividade própria, força
produtiva e riqueza social universal, necessidades humanas etc., logicamente
pressupondo o fim da mania infinita de trabalho e enriquecimento do Capital. Esta
esfera da produção não apareceria mais também, como insiste o húngaro, como um
reino da necessidade fechado em suas leis autônomas. Os campeões da objetividade
esquecem o que pode haver de subjetivo e imaginário na organização da produção
social.
tal desvio lógico-gnoseológico criticado nos outros). De fato, Lukács não quer discutir
efetividades, mas “princípios” e “modelos originários” para construir um sistema de
verdades dogmáticas. Isso desde a sua Estética. A clareza cartesiana do ideal científico
clássico obscurece necessariamente os fundamentos históricos, pois pretende sempre
pensar o particular sob a anterioridade de leis gerais fundantes e apreender o
movimento como predicado de um sujeito posto (Cf. R. Fausto, Marx, lógica e política,
t. 1).
Trabalho decrépito
O que há de decrépito e de intempestivo no último Lukács é justamente isto:
quando o mundo burguês como um todo já dava sinais claros do colapso de seus
fundamentos – a lista é grande: automatização e esgotamento previsível da da lógica da
acumulação, crise fiscal do Estado, crise da ideologia do trabalho e do movimento
operário tradicional, crítica do iluminismo e do antropocentrismo, criação de novos
valores éticos e estéticos para além do trabalho (das mulheres, dos estudantes à
libertação sexual, do tempo livre à ecologia), crise do sistema soviético (Tchecoslováquia
e Hungria, p. ex.), limites ecológicos de todo desvario produtivista do Ocidente e do
Oriente, surgimento de uma arte radicalmente crítica e negativa, ligação entre
psicanálise, crítica radical e novos movimentos sociais etc. – pois bem, na contramão
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disso tudo, Lukács regride àqueles “fundamentos” burgueses tradicionais para re-
consolidá-los, a começar pela lógica obsoleta da socialização pelo valor-trabalho, dando-
lhe a aura de essência humana trans-histórica. Feitas as contas, porém, tudo isso vem
num trajeto coerente com seu percurso histórico, de tolerância e de crítica meramente
ética ao stalinismo, que operava como uma defesa humanista da modernização
socialista retardatária.
Em vez de encaminhar uma crítica das estruturas econômico-sociais, políticas e
ideológico-culturais efetivas do Estado e do Capital avançados em crise (como fizeram,
entre outros, Adorno, Benjamin, Marcuse, Lefebvre, Debord, Braverman, Mandel, Gorz,
Altvater, Kurz, Harvey, Schwarz, Arantes, Žižek, Mészáros), ou de reconstituir sua
história (Dobb, Arrighi, Sohn-Rethel, Kurz, entre outros) ou ainda, de retomar
rigorosamente a lógica da apresentação dialética de O capital (Rosdolsky, Backhaus,
Reichelt, Ruy Fausto, Giannotti, Postone, Grespan, entre outros), o velho Lukács
retorna aos fundamentos reconhecidamente abstratos e artificiosos de uma suposta
lógica ontológica da práxis humana – sempre, sempre em geral. Nesse sentido, sua obra
é um complemento de Habermas, com a sua lógica da interação e da ação comunicativa
em geral, rodando em falso também no plano puramente ético, sem a crítica radical do
valor e da cisão de gêneros (como proposta por Adorno e Kurz).
cachorro morto que fala muito e nos diz respeito no nível político e ideológico, onde se
travam alguns confrontos decisivos. Esta enorme gramática dos equívocos pode ter
efeitos curativos ou deletérios para o presente – dependendo do processo de recepção,
que não está concluso e pode embasar amplos setores da esquerda brasileira e europeia
atual. Elevado a momento prevalecente, prioritário, central, essencial, fundante,
determinante, em primeira ou última instância – os termos variam e se confirmam
circularmente – o trabalho passa a reivindicar o papel ontológico que só o Capital de
fato tem na modernidade como um fetiche que nos coage ao trabalho – “produtivo” e
“necessário” somente do ponto de vista dele – mas que, autodestruindo esta sua própria
base “ontológica” negativa, tem de deixar de ser e de valer, fazendo desmoronar todas as
categorias do pensamento e da prática modernas que pareciam “objetivas”,
“ontológicas” ou “eternas”.
Na crise do trabalho abstrato, quando o marxismo tradicional o admite, o
trabalho “concreto” passa a ser cultuado como centro da vida e da sociabilidade e não é
mais criticado, nem mesmo quando se revela que ele nada mais é que a face visível,
material, qualitativa e destrutiva do trabalho abstrato e alienado, e que vai sendo
excluído pelo mecanismo estrutural inconsciente, que tende inevitavelmente a
desvalorizá-lo. O trabalho vivo (diferente do conceito negativo de proletariado, como
sujeito sem objeto – por isso mesmo, absurdo) é então contraposto abstratamente ao
mercado, à circulação, às classes “parasitas”, ao capital financeiro e especulativo
“judaico”, a tudo o que não gera valor e riqueza material, inclusive às mulheres, aos
negros, aos imigrantes, aos ciganos, aos pobres, vagabundos e criminosos em geral, tal
como se evidencia cada vez mais nas tendências fascistas no capitalismo mundial em
crise. Com isso, é o humanismo do trabalho que revela a sua verdadeira face
particularista e corporativista, reformista e anti-humana, e que um dia pôde se conciliar
com o totalitarismo stalinista.
As mediações de uma possível contraposição do proletariado ao capital são ainda
exíguas ou inexistentes. A tendência a vê-lo nos moldes da velha classe operária
produtiva tem seus efeitos na ideologia da ontologia e da honra do trabalho, no pós-
operaísmo italiano, na valorização repentina do trabalhador técnico-científico de classe
média ou do trabalhador de massa da semi-periferia capitalista. A OSS não desconhece
o recuo das barreiras naturais por meio da automação e da diminuição do trabalho
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