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O FILHO ETERNO

O escritor Cristovão Tezza, 55 anos, romancista, ex-relojoeiro (!), catarinense


radicado em Curitiba, professor da Universidade Federal do Paraná, acaba de
cometer uma façanha e criar um problema para a literatura brasileira: lançar o
melhor título do ano de 2007 (vencedor do prêmio Jabuti 2008 na categoria
"Romance", do Prêmio São Paulo de Literatura, do 4o. Prêmio Bravo! Prime de
Cultura, do prêmio da Associação de Críticos de Arte de São Paulo e do Prêmio
Portugal Telecom), o qual não se enquadra na classificação de “romance brasileiro” –
originalmente conferida à obra pela editora Redord. Na verdade trata-se de um texto
escancaradamente autobiográfico.

Tezza construiu discretamente uma das mais consistentes carreiras de escritor do


Brasil atual, com catorze livros de ficção publicados desde 1979. O projeto de
escrever sobre sua experiência como pai de uma criança Down era acalentado desde
o nascimento de Felipe, hoje com 25 anos. Juventude, romance autobiográfico de
J.M. Coetzee, foi uma inspiração importante, quase uma revelação para Tezza: o
Nobel sul-africano adotou uma narrativa fria e seca, em terceira pessoa, para falar
das próprias experiências como escritor iniciante. O Filho Eterno mantém um tom
similar.

Tezza descreve, sem jamais cair no melodrama ou na pieguice, um acontecimento


que o fez se sentir como se fosse um boi cabeceando inutilmente contra as paredes
do corredor de um matadouro: o dia em que recebeu a notícia de que o primeiro
filho, tão esperado, tinha Síndrome de Down. Este o nome do filho eterno: Felipe. As
limitações físicas e intelectuais de uma criança com síndrome de Down são descritas
com objetividade clínica. Com foco obsessivo nas percepções do pai, a narrativa
explora os sentimentos mais mesquinhos desse alter ego de Tezza: a vergonha, o
ressentimento que ele tantas vezes nutre em relação ao filho – e até o consolo vil
que encontra fantasiando a morte da criança. "O personagem é uma versão
exacerbada de mim mesmo. Não sou esse monstro", disse Tezza a VEJA.

O momento em que os médicos revelam a condição do filho aos pais, os torturantes


exercícios de estimulação a que o menino Down é submetido, o conflito do pai com a
diretora de escola que não quer mais acolher a criança "especial" – todas essas cenas
são narradas com um desencanto duro. A brutalidade das palavras, aliás, é um tema
forte: nos anos 80, quando Felipe nasceu, os portadores da síndrome de Down ainda
eram chamados de "mongoloides". Mas o texto também alcança uma delicadeza
ímpar, ao retratar o progressivo envolvimento do pai literato com o filho que nunca
aprendeu a ler. Tezza aproveita as questões que aparecem pelo caminho nestes 25
anos de seu filho Felipe para reordenar a própria existência: a experimentação da
vida em comunidade quando adolescente, a vida como ilegal na Alemanha para
ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros
na gaveta, a pretensa estabilidade com o cargo de professor em universidade
pública.

Referir-se a si próprio na terceira pessoa virou sinônimo de vaidade desde que Pelé -
e outras celebridades menos votadas - caíram nessa tentação. O autor de O Filho
Eterno se enquadra na categoria dos que falam de si próprios na terceira pessoa por
outro motivo: o excesso de pudor na hora de subir à ribalta para se expor aos olhos
do público. É compreensível. O fato de a narração ser feita na terceira pessoa (o
narrador e o pai da criança doente não são a mesma pessoa: o primeiro não participa
da narrativa, apenas mostra o que os personagens pensam e sentem; o segundo é um
dos personagens principais da obra) é, provavelmente, o único detalhe que impede
O Filho Eterno de se enquadrar na categoria de autobiografia.

O Filho Eterno poderia também ser qualificada como uma peça do chamado "novo
jornalismo", uma reportagem irretocável, merecedora de todo aplauso numa época
em que texto jornalístico, golpeado pelos "idiotas da objetividade", cabeceia,
também ele, como se fosse um boi no corredor de um matadouro. O livro não deixa
de ser uma bela reportagem autobiográfica de um pai que toma para si uma tarefa
dificílima: a de narrar uma dor inenarrável ou, para usar uma palavra que é cara ao
autor, "irredimível".

"Os escritores brasileiros somos pequenos ladrões de sardinha, Brás Cubas inúteis",
diz, a certa altura do livro. Imagina-se, lá pelas tantas, autor de livros que ninguém
lerá - e pai de um filho que não poderia amar. Mas persiste, porque, para ele,
escrever é uma escolha radical, uma predestinação que não depende de coisas tão
pequenas quanto os humores das editoras ou as leis de mercado.

Em paralelo à relação com o filho, Tezza reconstitui sua formação literária. O


personagem do escritor fracassado, meio marginal, já tinha suas ilusões desmontadas
em livros anteriores como Trapo e O Fantasma da Infância. Em O Filho Eterno, o
menino que não entende abstrações temporais simples como "semana que vem" dá
uma espécie de choque de realidade no pai meio hippie, que trazia dos anos 70 a
pretensão de ser um artista "contra o sistema".

Com pequenas conquistas, como os primeiros passos e a ida à escola, Filipe vai
conquistando o seu lugar de filho. O pai já não o vê mais como uma espécie de
maldição, mas como alguém que precisa de carinho e cuidado. Ao falar sobre o
crescimento e desenvolvimento do primogênito, o autor apresenta algumas
informações sobre a síndrome de Down e mostra que, apesar de serem lentos e
demorados, os avanços de Filipe são gratificantes. A paixão pelo futebol é um dos
elementos cotidianos que ajuda a unir pai e filho.

As páginas finais flagram pai e filho assistindo a um jogo do Atlético Paranaense na


televisão. Um fugaz momento de felicidade doméstica que nenhuma utopia pode
superar.

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Trechos de O Filho Eterno, em que o pai recebe a notícia de que o filho tinha sido
diagnosticado como portador da Síndrome de Down:

"Em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a


única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa
representação literária, apreendeu a intensidade da expressão "para sempre" - a
idéia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, o sentimento absoluto, mas
óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar.
Tudo pode ser recomeçado, mas agora não: tudo pode ser refeito, mas isso não; tudo
pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica e
intransponível: o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância
teimosamente retardada terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma,
recuando aos empurrões, sem mais ouvir aquela lengalenga imbecil dos médicos".

"Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo


anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do
matadouro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde todos se concentravam
num silêncio bruto, o pasmo de uma maldição inesperada. Isso é pior do que
qualquer coisa, ele concluiu- nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte
são sete dias de luto, e a vida continua. Agora, não. Isso não terá fim. Recuou dois,
três passos, até esbarrar no sofá vermelho e olhar para a janela, para o outro lado,
para cima, negando-se, bovino, a ver e a ouvir".
"Pai e mãe são tomados pelo silêncio. É preciso esperar para que a pedra pouse
vagarosamente no fundo do lago, enterrando-se mais e mais na areia úmida, no limo
e no limbo, é preciso sentir a consistência daquele peso irremovível para todo o
sempre, preso na alma, antes de dizer alguma coisa. Monossílabos cabeceantes,
teimosos - os olhos não se tocam".

"Se eu escrever um livro sobre ele, ou para ele, o pai pensa, ele jamais conseguirá lê-
lo"

"Eu não posso ser destruído pela literatura; eu também não posso ser destruído pelo
meu filho - eu tenho um limite: fazer, bem-feito, o que posso e sei fazer, na minha
medida. Sem pensar, pega a criança no colo, que se larga saborosamente sobre o pai,
abraçando-lhe o pescoço, e assim sobem as escadas até a porta de casa."

Fonte:

http://publifolha.folha.com.br/catalogo/livros/145190/

http://www.geneton.com.br/archives/000256.html

Revista VEJA | Edição 2022 | 22 de agosto de 2007

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