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Fela Kuti e música no século XX: porque o Afrobeat pode ser considerado novidade?

Uma
discussão sobre indústria cultural e música africana.

O caminho para responder acerca da novidade do Afrobeat criado por Fela Kuti por volta
dos anos 70 no século XX, passa primeiro por entender quem é essa figura e quais caminhos o
levaram a desenvolver um estilo novo e singular de produzir música. Em torno de uma breve
biografia de sua trajetória e das características que configuram a novidade de seu estilo e apoiado
em autores como Theodor Adorno e Max Horkheimer, que nos oferecem uma reflexão acerca do
conceito de “indústria cultural”1, vai ser possível estabelecermos um parâmetro dos aspectos que
comportam a novidade dentro da obra de Fela Kuti.
A principio responder questões basilares. Quem é Fela? De onde vem? A base para essas
resposta reside parcialmente na única bibliografia traduzida para o português do músico, chamada
“Fela Esta Vida Puta” escrita por Carlos Moore e publicada em 2011 pela Nandyala. Fela
Anikulapo Kuti a partir desses registro de Moore teve dois “nascimentos”, um em 1935 como
Hildegart, nome dado por um reverendo alemão próximo a seu pai, e outro em 1938:
“Os orixás, eles me ouviram. E eles me pouparam. Duas semanas após meu
primeiro nascimento, minha alma deixou meu corpo para voltar ao mundo dos
Espiritos. O que eu posso fazer? Eu não era Hildegart! Merda, cara! Não era pra um
branco me dar meu nome. Então, foi por causa de um nome que eu já conheci a
morte.” (MOORE, pg. 36)
Essa biografia foi escrita baseada em horas de entrevista com Fela, durante a estadia de
Moore ao lado do músico. Então esse vai ser o teor de seu conteúdo, nesse trecho temos um
primeiro contato com a personalidade de Fela e dentro dele um elemento primordial para
entendermos sua música. A relação do mesmo com uma certa espiritualidade, que remonta uma raiz
iorubá tradicional, que tem relação direta com a ancestralidade dos pais, ambos provenientes de
Ilesha uma região ioruba que compreende a atual Nigéria (MOORE, p. 37). Dito isso, esse é um
ponto chave para entendermos sua música. O próximo diz respeito ao seu contato formal com a
música, em 1958 após concluir o ensino médio, Fela com 18 anos ruma para Londres onde estuda
música até meados de 1962. E nesse interim, apesar de na Trinity College Of Music estudar
estritamente apenas música clássica, foi nesse meio tempo que teve o primeiro contato com o jazz,
ou seja fora do espaço formal, Fela tocava Jazz (MOORE, p. 71). E esse é o segundo ponto
importante para compreendermos sua música, o jazz é fundamental na construção musical do
músico nigeriano.

1HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Pp.
169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.
Após essa estadia em Londres, estudando, em 1963 Fela volta para Nigéria, Lagos. E
continua com sua música, forma uma banda intitulada Koola Lobitos que toca o que ele chama de
Highlife Jazz, o nome que o próprio dava a sua música no inicio (MOORE, p. 82). E nesse caminho,
até a consolidação de sua música enquanto Afrobeat, Fela entra em contato com outro elemento
fundante de sua música, o Soul Music de James Brown:
“Quando comecei a chamar minha música de Afrobeat? Deixa eu te contar, cara. Eu
tocava Highlife Jazz quando Geraldo Pino2 apareceu na área com o Soul, em 1966,
ou um pouco antes. Foi isso que bagunçou tudo cara. Ele chegou na cidade com a
música de James Brown [...] Nunca Vou me esquecer dele. Tô dizendo eu nunca
tinha escutado esse tipo de música antes!” (MOORE, p. 83, grifo meu)
Nesse ponto temos outro elemento fundante de sua música, a composição musical do Soul
de James Brown. Nessa linha de raciocínio é importante recuperar os pontos, a principio sua
espiritualidade ligada numa ancestralidade ioruba, em segundo o seu contato com o jazz, em
terceiro seu contato com a Soul Music. E onde reside o próximo passo? Na sua formação politica, o
próprio Fela ao longo dos trechos transcritos na biografia admite que não era nenhum pouco
politicamente consciente (MOORE, p. 87). O trecho em questão tem uma relação direta com a
Guerra de Biafra, disputa territorial entre Ibós, Iorubás e Huaçás dentro do território nigeriano,
resultado do projeto colonial e da partilha da África (Ibdem. p. 85). E isso muda a partir de sua
viagem para os EUA em meados de 1969 e seu contato com a auto-biografia de Malcom X, através
de Sandra Smith3. A sua trajetória é construída e moldada por pessoas, é na figura de Sandra Smith
que Fela Kuti tem seu primeiro contato com a discussão racial em voga e a luta pelos direitos civis.
“Sandra me ensinou o que eu precisava saber! Foi ela que abriu meus olhos! Juro,
cara! Foi ela que falou pra mim sobre África. Ouvi pela primeira vez coisas que
nunca tinha escutado antes sobre a África! Sandra foi minha conselheira! [...]
Sandra me ensinou muito! Virou minha cabeça, mesmo!” (MOORE, p. 94 grifo
meu)
E nesse contexto que Fela adquiri o que eu julgo, outro ponto importante e determinante
para sua música, o contato com uma literatura que vai proporcionar uma leitura diferente do mundo,
e vai influenciar de forma decisiva sua maneira de conceber e construir sua música. O Afrobeat
então começa a tomar forma no seu retorno a Nigéria após a estadia nos EUA, e uma nova
africanidade começa a se formar a partir disso, baseada nessa também nova experiência que ele teve
ao lado da cultura do seu povo. (MOORE, p. 99)
A partir disso, o sentido dessa contextualização é objetivo. Os pontos levantados são
cruciais para entendermos o Afrobeat de Fela, pois considero que a soma de todos gera a
2
Geraldo Pino, músico serra-leoense influente no circuito de música popular da Nigéria dos anos 60.
3
Sandra era militante, envolvida com a NAACP e a luta pelos diretos civis nos EUA.
complexidade que sua música exprime. Um passado ancestral ioruba, o Jazz, a Soul Music e o
contato com uma literatura negra revolucionária, esses são os pontos de partidas da análise. E
munidos dessa informação, como responder em que medida sua obra representa novidades? Um
primeiro olhar sobre a estrutura de sua música vai nos fornecer pistas, segundo Rosa Aparecido do
Couto Silva em seu trabalho Fela Kuti: Contracultura e (Con)tradição na Música Popular Africana,
a partir de uma reflexão acerca da “indústria cultural” em Adorno e Horkheimer:
“O afrobeat possui uma “utilidade”, no sentido criticado por Adorno, ou seja,
podemos compreendê-lo como uma crítica à perda dos vínculos extramusicais que
davam, no passado, uma função social à música, como uma crítica à presença de
costumes ocidentais em solo africano, assim como uma crítica à pretensa
racionalidade pratica do Ocidente.” (SILVA, p. 34)
Adorno e Horkheimer nesse ensaio acerca da indústria cultural, vão fundamentar a ideia de
que na sociedade capitalista industrial, a cultura faz parte de uma indústria que em detrimento do
mercado e de uma suposta autenticidade, vende a ideologia dominante burguesa, dentro de
parâmetros circunscritos de produção. Ou seja, o produto cultural dessa forma está diretamente
ligado a uma logica de mercado. Silva sugere um lugar para o afrobeat nessa dinâmica, justamente
como uma “utilidade” dentro da critica de Adorno. Isso significa em linhas gerais, que em termos
de estrutura e conteúdo, a música de Kuti não está dentro da logica fonográfica da indústria cultural,
muito pelo contrário, Fela vai até o final de sua vida, independente da formação de sua banda,
Africa 70 ou Egypt 80, não se curvar aos modelos da indústria fonográfica de tempo e tamanho das
faixas. E nem em favor disso negociar o teor políticos de suas letras, a conduta de Fela até sua
morte é de uma dura denuncia contra os padrões estéticos homogêneos da música popular
(MOORE, p. 15). Essa posição vai de encontro a formulação de Adorno, que classifica a indústria
cultural como uma conformidade de regras que ditam o seu produto, pautadas em interesses da
classe dominante. E nesse processo retira todo seu valor, poder simbólico e social, tudo que Fela
Kuti não apoiava e tão pouco praticava em seu Afrobeat. O ponto crucial talvez seja justamente o
oposto, Fela procurava se virar para o passado, nessa ancestralidade ioruba já citada e dentro disso
recuperar a função ritual e social da música, na ânsia de reencontrar no tempo essa maneira de
produzir música pré-capitalista, pré-colonial em detrimento da lógica da indústria cultural (SILVA,
p. 28). Nesse contexto, é importante localizar Fela numa luta incessante contra o neo-colonialismo,
portanto seu discurso é contra uma mentalidade colonial, pois esse é o titulo literal de uma de suas
músicas Colonial Mentality:
Colo' mentality!
He be say you be colonial man
You don be slave man before
Them don release you now
But you never release yourself4
Como fica claro nesse trecho, existia um interesse explicito na música de Fela –
caracterizado aqui como mentalidade colonial – de um certo nível de instrução através da música.
Nesse ponto, adentramos em outro elemento que considero novidade. A performance do espetáculo,
as apresentações de Fela eram, no passo que um dos seus interesse era resgatar algo de ancestral,
munidas de uma teatralidade característica. Cito Silva novamente para elucidar:
“A religiosidade é uma marca presente na produção musical de Fela, tanto no que se
refere às letras de suas canções, quanto a estrutura de suas aparições em público. O
caráter ritualístico de suas apresentações ultrapassa a proposta cênica de vivenciar
uma África imaginada e alcança um aspecto extremamente significativo para Fela e
seus fãs. No Palco rituais são executados com todo o peso das tradições – animais
são executados e oferecidos aos orixás durantes certas madrugadas no The Shrine.
The Shirine que em português significa “O santuário”, é o nome da casa de shows
de Fela Kuti e sua banda.” (SILVA, p. 25)
Silva nesse trecho nos fornece uma reflexão a cerca das apresentações de Fela, julgo essa
reflexão importante pois ela possibilita apoiados na concepção de performance de Richard
Schechner5, traçar parâmetros para entender sua função. Schechner vai dizer a partir de Bhrata, um
sábio indiano, que a função mais contundente de performance é a de ser um repositório
compreensivo de conhecimento e um veiculo poderosíssimo para expressão das emoções
(SCHECHNER, p. 45). E com base nisso, o autor vai propor sete funções para a performance que
são importantes para entendermos a dimensão da mesma na obra de Fela, que são: 1- Entreter. 2 -
Construir algo belo. 3 - Formar ou modificar uma identidade. 4 - Construir ou educar uma
comunidade. 5 – Curar. 6 - Ensinar persuadir e/ou convencer. 7 - Lidar com o sagrado e/ou profano.
Em alguns casos mais e em outros menos, porém todas essas sete funções estão presente no
Afrobeat de Fela Kuti. A dimensão da performance em seu trabalho é de suma importância e
configura dentro da nossa proposta de reflexão um elemento da novidade de sua obra, perante seu
tempo e em relação ao que Adorno configura como indústria cultural.
Dito isso, é possível concluir que na reconstrução da trajetória de Fela Kuti apresentada
como contextualização, o primeiro elemento é o de sua ligação ancestral ioruba, que contribui para
olhar que o músico tinha em relação ao passado tradicional, carregado de espiritualidade e valor que
o colonialismo destruiu. Em segundo a formação musical clássica, e o seu contato com o Jazz, no

4
Mentalidade Colonial/Disseram que você seria um homem colonial/Antes você tinha sido um escravo/Agora você foi
alforriado/Mas você nunca alforriou a si mesmo
5
SCHECHNER, Richard. 2006. “O que é performance?”, em Performance studies: an introduccion, second edition.
New York & London: Routledge, p. 28-51.
Jazz Fela construiu o inicio de sua música, porém sem o elemento crucial que no futuro definiria o
Afrobeat enquanto movimento, um aspecto politico fortemente pautado no pan-africanismo. Esse
aspecto politico só é possível através da leitura de Malcom X e de uma nova postura perante seu
país e o continente que pertencera. Logo, sua música representa uma trajetória que não é
progressiva, mas traduz a atuação do músico perante seu presente, munido de valores em certa
medida do passado, para atuar de forma contundente perante sua realidade. Essa realidade
representa tudo que o século XX e música carregam, principalmente no que diz respeito a África. O
conceito de Adorno sobre “indústria cultural” nos ajuda a entender em face do que Fela Kuti e o
Afrobeat se apresentam como novidade. A estrutura de sua música, suas apresentações ao vivo, as
composições e uma tentativa de resgate da africanidade que o colonialismo destruiu, são uma marca
indelével na história do século XX.
Dessa forma é possível afirmar que o Afrobeat de Fela Kuti se apresenta como uma nova
linguagem musical, pautada no que de tradicional sua ancestralidade proporcionava, no que o
contato com o Jazz e sua dimensão performática oferecia e em face da “indústria cultural”
homogeneizada da musica popular se apresentar como uma completa antítese. Um discurso
poderoso, extremamente politico, que usando da previsão de Adorno, foi realmente relegado a
marginalidade.

Referencias Bibliográficas

HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo como


mistificação de massas. Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.
MOORE, Carlos. Fela , esta vida puta! Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Fela Kuti: contracultura e (con)tradição na música popular
Africana. Franca: [s.n.], 2015.
SCHECHNER, Richard. 2006. “O que é performance?”, em Performance studies: an introduccion,
second edition. New York & London: Routledge, p. 28-51.

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