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poder local?
Resumo
Quantos de nós, arquivistas da administração local, não se questionaram já sobre
a natureza das nossas competências no universo autárquico? Há ideia de que o
confinamento às emanações regulamentares governamentais representam os
únicos produtos juridicamente conformadores para o exercício das nossas
atividades. Este trabalho tem como objetivo debater esse costume, que parece ter-se
fechado numa convicção carregada de obrigatoriedade, só por que fundada em anos
de prática reiterada.
Palavras-chave: Administração autónoma do Estado, autarquias locais, legislação,
regulamentos arquivísticos.
Introdução
O estudo da história institucional, política e económica do nosso país permite ilustrar
com precisão o avanço imparável do centralismo governamental na gestão da res publica.
Em termos muito sintéticos, podemo-lo observar na evolução da organização político-
administrativa estadual, cujo modelo assentou inicialmente no princípio da hereditariedade
corporativa dos cargos, direitos e privilégios, tendo passado pelo modelo monárquico
jurisdicional – do rei juiz –, para culminar no modelo tipicamente iluminista do
intervencionismo legiferante da coroa – do rei legislador. Em Portugal, o ponto alto atingiu-
se com a importação pombalina da chamada Polizeiwissenschaft prussiana – ou ciência de
polícia –, no sentido da organização da cidade, configurando uma política administrativa
central – de um homem só, neste caso do ministro em nome do rei –, modelada pela ordem
racional e por uma disciplina geométrica, em contraste com a forma medieva de organização
política, social e económica, determinada pelas corporações de ofícios. Assim permaneceu e
se desenvolveu com a instauração do regime republicano, acentuando-se durante o Estado
Bruno Castro Pereira
Mais à frente, o mesmo autor, cita (1996, p. 199) Alexandre Herculano para retratar a
supremacia do poder central da seguinte forma:
«Essa imensa tutela de milhões de homens por seis ou sete homens é forçosamente absurda. Deve haver
um dia em que a sociedade, como os indivíduos, chegue à maioridade. Não receeis que a
descentralização seja a desagregação.»
Num sentido mais pedagógico (1996, p. 199), alude o vulto literário que
«O Governo central há-de e deve ter sempre uma ação poderosa na administração pública; há-de e deve
cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esfera dentro de justos limites, e os seus justos limites são aqueles
em que a razão pública e as demonstrações da experiência provarem que a sua ação é inevitável.»
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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?
António Cândido de Oliveira, por seu turno, adianta que há uma reserva legislativa da
Assembleia da República em matéria de autonomia local. Mesmo quando o Parlamento
autoriza o Governo a legislar, nos termos do artigo 165.º, da Constituição, considera o autor
(2013, p. 96) que
«As autarquias ficariam inteiramente à disposição do Governo enquanto órgão legislativo, sendo grande o
risco de, através do “Governo-legislador”, se manifestar o “Governo-administrador”, este com natural
vocação para submeter a administração local a uma regulamentação limitativa da autonomia. Risco que
aumentaria em momentos de crise ou de conflito entre a administração central e a local autónoma.»
Numa obra coordenada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao artigo
242.º, da Constituição, afirmam Maria da Glória Garcia e André Folque (2007, p. 504 e 506),
a propósito da tutela administrativa, que
«Os poderes de direção, vertidos em ordens e instruções, de simples orientação, vertidos em
diretrizes ou programas, e os poderes de revogação, esses parecem indiscutivelmente arredados do
campo deixado pela Constituição ao controlo tutelar das autarquias locais.»
Diogo Freitas do Amaral (2008, p. 488) remata desta forma, afirmando que, em
Portugal, o poder local
«não existe com toda a certeza. Porque as competências das autarquias locais são restritas, os meios
humanos e técnicos disponíveis escassos, os recursos financeiros claramente insuficientes, e a tutela do
Estado sobre as autarquias locais – depois de algum tempo de atenuação – recrudesceu fortemente nos
últimos anos, através de vários diplomas governamentais de duvidosa constitucionalidade. Numa palavra:
no nosso modo de ver, em Portugal, o poder local é um objetivo a atingir, não é uma situação adquirida.»
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Bruno Castro Pereira
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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?
237.º, n.º 1), a autonomia orçamental (artigo 237.º, n.º 2), a autonomia patrimonial e financeira (artigo
238.º, n.os 1 a 3), a autonomia fiscal (artigo 238.º, n.º 4, e artigo 254.º), a autonomia referendária (artigo
240.º, n.º 1), a autonomia regulamentar (artigo 241.º) e a autonomia em matéria de pessoal (artigo
243.º).»
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das praxes administrativas, entre outros fatores, que envolvem a atividade dos serviços que
as integram.
IAN/TT.»
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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?
E que dizer de séries de conteúdo material idêntico, com destinos finais opostos,
enquadradas em áreas orgânico-funcionais diferentes? Vejamos os seguintes três casos
(printscreens), na mesma tabela de seleção:
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Renovação na continuidade?
Após a 1.ª revisão da Lei Fundamental (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de
setembro), significativa para a afirmação do chamado Estado de Direito democrático e do
alargamento do conceito de separação de poderes ao funcionamento das instituições, não
fazia sentido que as autarquias continuassem a depender dos comandos legislativos
governamentais para exercer as funções e atividades que melhor representassem os
interesses das populações respetivas. Contudo, também temos consciência de que estamos
a reportar-nos a uma realidade encimada por uma complexidade histórica tremenda,
influenciada pelas dinâmicas de uma sociedade extremamente dependente de uma liderança
central, a emitir constantemente instruções para o seu funcionamento, impedindo que a
descentralização tivesse dado passos mais largos. O espírito do legislador não encontrou,
pois, respaldo na mentalidade de quem estava nas condições de mudar o estado da arte.
É nesta medida que, à luz do decreto-lei n.º 447/88 observamos, já em democracia,
um sistema ainda muito dependente das praxes legislativas e administrativas do regime
autoritário anterior, nomeadamente com a inclusão da alínea b), no seu artigo 1.º. Se decidiu
revogar, por um lado, o decreto-lei n.º 29/72 manteve, por outro, os mesmos termos de
orientação, prevendo que a futura regulamentação arquivística para as autarquias deve ser
fixada através de portaria ministerial. Outro caso impressivo, é o da revogada Portaria n.º
503/86 – autorizava a microfilmagem de documentação em arquivo existente nas autarquias
locais e serviços municipalizados –, expressando logo no preâmbulo que
«Considerando as dificuldades sentidas pelas autarquias locais na manutenção integral de todos os
documentos em arquivo; Considerando o Decreto-Lei n.º, 29/72, de 24 de Janeiro, determina que serão
fixados por portaria do ministro competente os prazos mínimos de conservação em arquivo dos
documentos.»
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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?
descentralizadora, cada vez mais sentida no plano político, com sinais evidentes tanto no
seu discurso como nas suas medidas, como no plano social, visível na mobilização de vários
quadrantes da sociedade civil a reivindicar cada vez mais descentralização de competências
nas autarquias.
Ora, num país cujas instituições ainda não sabem muito bem como delimitar as
fronteiras administrativas, imagine-se a situação tão insólita quanto possível, de assistirmos
um dia à aprovação, numa determinada assembleia municipal, de regulamentação para
disciplinar uma matéria para a qual já existe normatividade em portaria ministerial. É caso
para questionar: qual dos dois regulamentos deve ser aplicado? Ou podem aplicar-se os
dois, complementando-se nas matérias em que sejam omissos?
Ou renovação na mudança?
Até ao presente, os regulamentos arquivísticos para as autarquias locais têm sido
emitidos através de Portaria, que é uma das tipologias de regulamento governamental.
Simplesmente, estas Portarias têm vinculado excessivamente as autarquias locais à
administração central do Estado, como se se tratassem de ministérios territoriais ao abrigo
do poder de direção do Governo. Segundo a interpretação que fazemos da Constituição
(designadamente da conjugação dos seus artigos 6.º, n.º 1, 112.º, 199.º, alínea d), 237.º, n.º
1, 241.º e 242.º), as autarquias pertencem, juntamente com as universidades, à
administração autónoma do Estado, ficando sujeitas ao poder de mera tutela administrativa
por parte do Governo, e não ao seu poder de direção, como sucede com os serviços da
Administração direta do Estado, ou ao poder de superintendência exercido sobre os
institutos públicos.
Estas considerações não pretendem transformar-se num incitamento a qualquer tipo
de rebelião ou demissão autárquica, nomeadamente dos seus deveres de proteção e
valorização do património arquivístico de âmbito territorial local, nem coarctar o salutar
trabalho institucional colaborativo entre administrações públicas. Simplesmente, no nosso
ponto de vista, poder-se-ia aproveitar este momento político para atribuir ao Decreto-lei n.º
447/88 a conformidade constitucional escrupulosa e atual que merece.
A título de exemplo, veja-se a recente Resolução do Conselho de Ministros n.º
51/2017, de 19 de abril, sobre a promoção da redução do consumo de papel e demais
consumíveis na Administração Pública. Atente-se no seu n.º 2:
«Determinar que a presente resolução se aplica de forma imperativa à administração direta do Estado,
recomendando-se também a sua aplicação à administração indireta do Estado.»
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Bruno Castro Pereira
o carácter transversal que a sua operacionalização deve assumir não se pode transformar
numa condição que justifique a inclusão da administração autónoma do Estado naquele n.º
2. Ainda assim, não nos causaria qualquer temor a inclusão das autarquias na recomendação
feita no respetivo preceito. Afinal de contas, trata-se de uma medida de melhoria da
qualidade da despesa pública, aliada ao intuito de simplificação e modernização
administrativa que os tempos exigem.
Tendo por base o trabalho colaborativo que tem vindo a ser desenvolvido no âmbito
da extensão às autarquias do projeto da Macroestrutura Funcional, através do Plano de
Classificação de Informação Arquivística para a Administração Local, temos sido levados a
questionar se cada autarquia pode elaborar o seu próprio regulamento arquivístico
determinando, por exemplo, prazos e destinos finais diferentes para os seus processos de
negócio. Quer-nos parecer que constitucional e legalmente, em princípio, se encontram
habilitadas para o efeito, mas consideramos que esta seria uma situação contraproducente e
incoerente do ponto de vista técnico, rompendo-se uma uniformidade que parece fulcral
neste projeto. Uma vez que incumbe à Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das
Bibliotecas a função inspetiva de auditar a conformidade jurídica e técnica da aplicação de
instrumentos arquivísticos, é justamente por isso que resulta como fundamental um tipo de
trabalho colaborativo. Mas sublinhamos, não impositivo.
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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?
Considerações finais
Atavismo costumeiro, contemporização, espírito de subserviência perante a administração
central, fraca ou inexistente sponsorização política, falta de recursos humanos e técnicos,
carências formativas, enquadramento orgânico obsoleto dos serviços de arquivo no universo
de algumas entidades, entre outros, são fatores negativos – uns políticos outros técnicos –
que concorrem para a falta de consciência da autonomia regulamentar arquivística das
autarquias. Esta é uma situação que, pelo seu diagnóstico, não é meramente conjuntural, é
estrutural, levando-nos a pensar se não seria vantajosa a criação de uma entidade
intermédia, entre o poder central e o poder local, com poderes próprios, para melhor
veicular a descentralização administrativa. Fica a ideia para reflexão. E, claro, é para nós
evidente que há uma necessidade de revisão da legislação sobre a qual nos debruçámos ao
longo do texto, propondo a criação futura – hipotética – de um código legislativo no domínio
cultural, que pudesse enquadrar uma secção mais desenvolvida sobre a matéria do
património arquivístico. Outra ideia que fica para reflexão.
Referências bibliográficas
AMARAL, Diogo Freitas (2008) – Curso de Direito Administrativo, 3.ª ed. Vol. I. Lisboa:
Almedina. 926 p., ISBN 9789724028057.
MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui (2007) – Constituição Portuguesa anotada. Vol. III. Coimbra:
Coimbra Editora, 1006 p., ISBN 978-972-32-1541-0.
OLIVEIRA, António Cândido (2013) – Direito das autarquias locais. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra
Editora. 393 p. ISBN 978-972-32-2210-4.
OLIVEIRA, César (1996) – História dos Municípios e do Poder Local [Dos finais da Idade Média
à União Europeia], Lisboa: Círculo de Leitores. 591 p., ISBN 972-42-1300-5.
SOUSA, Marcelo Rebelo; MATOS, André Salgado (2004) – Direito Administrativo Geral. 3.ª ed.
Lisboa: Dom Quixote. 245 p. ISBN 9789722032421.
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