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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem

poder local?

Bruno Castro Pereira


bcastropereira@gmail.com

Resumo
Quantos de nós, arquivistas da administração local, não se questionaram já sobre
a natureza das nossas competências no universo autárquico? Há ideia de que o
confinamento às emanações regulamentares governamentais representam os
únicos produtos juridicamente conformadores para o exercício das nossas
atividades. Este trabalho tem como objetivo debater esse costume, que parece ter-se
fechado numa convicção carregada de obrigatoriedade, só por que fundada em anos
de prática reiterada.
Palavras-chave: Administração autónoma do Estado, autarquias locais, legislação,
regulamentos arquivísticos.

Archival regulations: local government wihtout local power? Abstract


How many of us, archivists of the local administration, have not already questioned
the nature of our competences in the local council universe? There is the idea that the
confinement to governmental regulatory emanations represents the only legally
conforming products for the exercise of our activities. This paper aims to
discuss that custom, which seems to have been closed in a conviction loaded with
obligatoriness, only because founded on years of repeated practice.
Key-words: Autonomous administration of the State, local government, legislation,
archival regulations.

Introdução
O estudo da história institucional, política e económica do nosso país permite ilustrar
com precisão o avanço imparável do centralismo governamental na gestão da res publica.
Em termos muito sintéticos, podemo-lo observar na evolução da organização político-
administrativa estadual, cujo modelo assentou inicialmente no princípio da hereditariedade
corporativa dos cargos, direitos e privilégios, tendo passado pelo modelo monárquico
jurisdicional – do rei juiz –, para culminar no modelo tipicamente iluminista do
intervencionismo legiferante da coroa – do rei legislador. Em Portugal, o ponto alto atingiu-
se com a importação pombalina da chamada Polizeiwissenschaft prussiana – ou ciência de
polícia –, no sentido da organização da cidade, configurando uma política administrativa
central – de um homem só, neste caso do ministro em nome do rei –, modelada pela ordem
racional e por uma disciplina geométrica, em contraste com a forma medieva de organização
política, social e económica, determinada pelas corporações de ofícios. Assim permaneceu e
se desenvolveu com a instauração do regime republicano, acentuando-se durante o Estado
Bruno Castro Pereira

Novo e, só muito lentamente, se começando a democratizar após o 25 de abril, de 1974,


abrindo portas à descentralização…ainda tímida, em pleno século XXI.

Iremos assim tentar demonstrar como um vasto conjunto de vicissitudes históricas e


jurídico-políticas têm comprimido o espaço autonómico da normatividade arquivística
autárquica, demasiado dependente das instruções da administração central do Estado, em
face de legislação desajustada e obsoleta.

O que diz a historiografia


Neste capítulo, queremos demonstrar como a historiografia tem analisado a
dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de edificação de uma estrutura consolidada de
poder local em Portugal. Recorremos, por isso, à obra dirigida por César Oliveira (1996), por
compreender uma amplitude crítica de excelência e abarcar uma extensa balizagem
cronológica, sendo que concentrar-nos-emos no período pós-1834.
Refere César Oliveira (1996, p. 195) que
«o liberalismo português instaurou uma administração local centralista e hierarquizada que visava o
controlo efetivo do território nacional e das comunidades locais pelo Terreiro do Paço (…) por um
sistema burocratizado e centralizado assente num processo sistemático de nomeação de agentes do
Estado, representantes do poder central.»
Continuando (1996, p. 195):
«Em segundo lugar o liberalismo inventou uma nova realidade autárquica, o distrito, sem qualquer
enraizamento e tradição e que serviu apenas para reforçar a hierarquia acima referida, sob controlo
dos ministros do Reino.»

Mais à frente, o mesmo autor, cita (1996, p. 199) Alexandre Herculano para retratar a
supremacia do poder central da seguinte forma:
«Essa imensa tutela de milhões de homens por seis ou sete homens é forçosamente absurda. Deve haver
um dia em que a sociedade, como os indivíduos, chegue à maioridade. Não receeis que a
descentralização seja a desagregação.»
Num sentido mais pedagógico (1996, p. 199), alude o vulto literário que
«O Governo central há-de e deve ter sempre uma ação poderosa na administração pública; há-de e deve
cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esfera dentro de justos limites, e os seus justos limites são aqueles
em que a razão pública e as demonstrações da experiência provarem que a sua ação é inevitável.»

O que dizem os administrativistas?


Não nos iremos desdobrar em demasia nas referências doutrinárias, pelo que
decidimos focar a nossa atenção em alguns autores mais especializados. Este capítulo
servirá para avocarmos o saber de quem tem dedicado parte significativa da sua vida ao
estudo do Direito Administrativo, com especial incidência nas relações de poder entre
administrações no pós-25 de abril que, como veremos, teima em conservar velhos costumes
que aprazam a consolidação de um verdadeiro poder local.
Alegam Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos (2004, p. 140-141) que

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«A existência de uma reserva geral de administração fundamenta-se no entendimento do princípio da


separação de poderes como comando de otimização da distribuição orgânica das funções: efetivamente,
tendo em conta as suas características orgânico-pessoais e orgânico-institucionais, a administração é
mais apta e encontra-se mais legitimada para exercer, de modo auto-responsável, a função administrativa.
No que respeita ao Governo, há ainda que ter em conta o seu papel de órgão de condução da política geral
do país e de órgão superior da administração pública (art.º 182.º CRP), que ficaria em perigo caso se
admitisse a interferência da Assembleia da República em tais matérias.»

Pretendemos, com esta transcrição, estabelecer um paralelismo entre a relação de


poderes entre a Assembleia da República e o Governo e entre este e as autarquias locais. Se
no caso reproduzido se alerta para o perigo de interferência político-legislativa da
Assembleia da República na função administrativa do Governo, temos para nós o facto de
esta última função ter criado fortes raízes históricas de invasão jurídico-administrativa tão
abusiva na gestão autárquica, que gerou a convicção generalizada de que se não existe um
poder de direção há pelo menos um poder de superintendência governamental sobre as
autarquias, quando sobre estas aquilo de que o Governo dispõe é da mera tutela
administrativa (cf. artigo 242.º da Constituição).

António Cândido de Oliveira, por seu turno, adianta que há uma reserva legislativa da
Assembleia da República em matéria de autonomia local. Mesmo quando o Parlamento
autoriza o Governo a legislar, nos termos do artigo 165.º, da Constituição, considera o autor
(2013, p. 96) que
«As autarquias ficariam inteiramente à disposição do Governo enquanto órgão legislativo, sendo grande o
risco de, através do “Governo-legislador”, se manifestar o “Governo-administrador”, este com natural
vocação para submeter a administração local a uma regulamentação limitativa da autonomia. Risco que
aumentaria em momentos de crise ou de conflito entre a administração central e a local autónoma.»

Numa obra coordenada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao artigo
242.º, da Constituição, afirmam Maria da Glória Garcia e André Folque (2007, p. 504 e 506),
a propósito da tutela administrativa, que
«Os poderes de direção, vertidos em ordens e instruções, de simples orientação, vertidos em
diretrizes ou programas, e os poderes de revogação, esses parecem indiscutivelmente arredados do
campo deixado pela Constituição ao controlo tutelar das autarquias locais.»

Nesta medida (2007, p. 506),


«Por exemplo, se, pela via do contrato administrativo ou por regulamento, o Estado assumir
poderes de controlo tutelar que a lei não prevê estar-se-á a infringir diretamente a norma
constitucional em referência.»

Diogo Freitas do Amaral (2008, p. 488) remata desta forma, afirmando que, em
Portugal, o poder local
«não existe com toda a certeza. Porque as competências das autarquias locais são restritas, os meios
humanos e técnicos disponíveis escassos, os recursos financeiros claramente insuficientes, e a tutela do
Estado sobre as autarquias locais – depois de algum tempo de atenuação – recrudesceu fortemente nos
últimos anos, através de vários diplomas governamentais de duvidosa constitucionalidade. Numa palavra:
no nosso modo de ver, em Portugal, o poder local é um objetivo a atingir, não é uma situação adquirida.»

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Como tem julgado a jurisprudência constitucional?


Segundo o acórdão n.º 432/93 (p. 6), embora não tendo declarado a
inconstitucionalidade das normas do Decreto n.º 264/93 – que estabelecia medidas relativas
aos programas de realojamento e de construção de habitações económicas –, aprovado em
Conselho de Ministros, deixamos transcritas algumas considerações tecidas por parte do
Tribunal Constitucional:
«Isso não implica que as autarquias não possam ou não devam ser chamadas a uma atuação
concorrente com a do Estado na realização daquelas tarefas. O ‘paradigma social do Direito’
(Habermas) aponta mesmo para uma política de cooperação e de intervenção de todas as instâncias

com imediata possibilidade de realizarem as imposições constitucionais.»

Transparece aqui a ideia de operacionalização direta da função administrativa com


base na Lei Fundamental, habilitando as autarquias a exercerem competências que lhes são
atribuídas, não diretamente pelo legislador ordinário, mas pela própria Constituição, em
concorrência com o Estado. Ou, mais desejavelmente, o estabelecimento de uma política de
trabalho cooperativo entre administrações públicas, justamente aquilo que preconizamos, na
nossa modesta opinião, para que seja o tipo de trabalho entre as autarquias e o órgão
coordenador do sistema nacional de arquivos.

Em relação à natureza da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais,


transmite o acórdão n.º 379/96 (p. 2), do TC, que
«ao conceder à Junta Autónoma de Estradas uma competência autónoma para fiscalização e
eventual embargo de obras efetuadas ilegalmente em zonas de proteção das estradas nacionais, não
constitui qualquer forma de tutela substitutiva relativamente às autarquias, sendo plenamente

compatível com a autonomia local.»

Deduz-se, portanto, que a forma de tutela administrativa inscrita


constitucionalmente (artigo 242.º, da Constituição), reiterada pelo Tribunal Constitucional
neste acórdão, insiste na forma de tutela inspetiva da legalidade e não no seu carácter
substitutivo, corretivo, homologatório ou orientador.

Mais recentemente, a propósito da inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal


Constitucional, expressa no acórdão n.º 949/2015 (p. 6), referente às normas da Lei n.º
35/2014, que conferiam aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e
da administração pública legitimidade para celebrar e assinar acordos coletivos de
empregador público, no âmbito da administração autárquica, transcrevemos o seguinte:
«A autonomia das autarquias locais, intrinsecamente relacionada com a gestão democrática da
República, tal como constitucionalmente desenhada, pressupõe um conjunto de poderes autárquicos que
asseguram uma sua atuação relativamente livre e incondicionada face à administração central no
desempenho das suas atribuições, visando a prossecução do interesse da população local. Com o objetivo
de assegurar essa liberdade de atuação, a Constituição consagra diversas dimensões ou elementos
constitutivos da autonomia local. Aí se inscreve, nomeadamente, a autonomia de organização (artigo

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237.º, n.º 1), a autonomia orçamental (artigo 237.º, n.º 2), a autonomia patrimonial e financeira (artigo
238.º, n.os 1 a 3), a autonomia fiscal (artigo 238.º, n.º 4, e artigo 254.º), a autonomia referendária (artigo
240.º, n.º 1), a autonomia regulamentar (artigo 241.º) e a autonomia em matéria de pessoal (artigo
243.º).»

Rematando da seguinte forma (p. 11),


«Concedida uma competência ou atribuição à autarquia, no domínio da sua autonomia, esta tem que a
poder exercer em liberdade e sob sua responsabilidade, com os limites da lei. Ou seja, ‘a lei pode
conformar, limitando, o poder de contratação coletiva no âmbito do governo autárquico. O que não é
aceitável é a intervenção administrativa casuística do Estado no exercício da autonomia local’ (A.
Fernanda Neves, ob. cit., p. 143). A autonomia local, nos seus vários elementos descritos, só pode ser
limitada por vinculações legais que o justifiquem, sob pena de não se poder falar em responsabilidade
própria. A modalidade de atuação prevista na norma impugnada (a intervenção administrativa direta do
Governo, face a um caso concreto, efetuando juízos de mérito) traduz uma restrição da autonomia do
poder local, injustificada pelos interesses públicos em presença, violando, de modo frontal, o princípio da
autonomia local previsto no artigo 6.º, n.º 1 da Constituição.»

Os princípios da subsidiariedade e da autonomia das autarquias locais


Curiosamente, o acórdão n.º 949/2015, do Tribunal Constitucional, termina com uma
referência ao artigo 6.º, n.º 1, da Constituição, que consagra na epígrafe a (feliz e
autoexplicativa) conceção do Estado unitário, a qual traduz, para além da unidade da
estrutura estatal, os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da
descentralização democrática da administração pública. Ao princípio da subsidiariedade,
afirma Jorge Miranda (2005, p. 78), em anotação a este preceito, que
«prende-se, habitualmente, a ideia segundo a qual uma matéria ou um problema só deve ser objeto de
decisão em certo escalão quando não possa ser objeto de decisão, em melhores condições, pelo escalão

inferior e mais próximo das pessoas que vai afetar.»

Ora, transpondo esta consideração para o contexto regulador arquivístico, quereria


dizer que só em caso de lacuna normativa é que as autarquias se deveriam socorrer do(s)
diploma(s) que se lhes pudesse aplicar analogicamente para poderem preencherem esse(s)
vazio(s).
Sobre o princípio da autonomia das autarquias locais, refere o mesmo autor (2005, p.
79) que
«A locução “autonomia das autarquias locais” é, literalmente, pleonástica (porque autarquias locais
pressupõem autonomia). O seu alcance útil consiste na atribuição às autarquias locais de um acervo
de poderes próprios (inclusive poderes normativos) a exercer, de harmonia com opões por eles
livremente feitas no respeito do princípio democrático. E daí a tutela administrativa reduzir-se hoje a

tutela de legalidade (artigo 242.º).»

Estamos perante um princípio constitucional que invoca a aptidão primária das


autarquias para o exercício da sua autorregulação, na medida em que estão munidas de
experiência de proximidade, de conhecimento especializado, das técnicas, dos formalismos,

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das praxes administrativas, entre outros fatores, que envolvem a atividade dos serviços que
as integram.

Breves considerações sobre o nível de operatividade da tabela de seleção do regulamento


arquivístico para as autarquias locais (Portaria n.º 412/2001, alterada pela Portaria n.º
1253/2009)
Não é de todo despiciendo referir o fraco nível de operatividade da tabela de seleção
do regulamento arquivístico para as autarquias locais (Portaria n.º 412/2001, adiante
designada apenas de Portaria), excecionando os casos de identificação de séries condizentes
com as chamadas funções-meio dos serviços que, como sabemos, são praticamente todas
transversais às três administrações públicas.
O exemplo que podemos dar, e que nos é mais próximo, insere-se no âmbito do
trabalho de seleção e eliminação de documentação acumulada, levado a cabo na Câmara
Municipal de Lisboa, em cuja equipa desenvolvemos a nossa atividade de 2004 a 2011,
sensivelmente. Estes anos de experiência, permitiram-nos concluir que houve – e continua a
haver – um grande desfasamento entre as séries referenciadas na tabela de seleção da
Portaria e o que tem sido efetivamente produzido pelos serviços da autarquia ao abrigo das
suas funções-fim.
Por outro lado, o nível de operatividade da tabela de seleção teria sido confrontado
com a inutilidade em caso de inexistência do artigo 2.º, n.º 4, da Portaria, ao dispor o
seguinte:
«Sempre que uma série ou subsérie não estiver prevista num determinado enquadramento
orgânico-funcional, aplicam-se, por analogia, as orientações estabelecidas para as séries ou

subséries homólogas constantes da tabela de seleção.»

Sem pôr em causa as vantagens desta aplicação analógica, também se pode


problematizar o facto de se ter aberto o caminho, por força desta norma, ao abuso ou
excesso de analogia, para contornar a obrigatoriedade inscrita no n.º 5, do artigo 6.º,
preceituando que
«A eliminação dos documentos que não constam da tabela de seleção carece de autorização
expressa do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, adiante designado abreviadamente por

IAN/TT.»

Ambas as disposições, se utilizadas de forma séria e rigorosa, reconhecemos que


contêm regras equilibradas, cujo respeito será revelador de um trabalho transparente. Mas,
ironicamente, tal como referimos atrás, não deixam de contemplar um lado perverso, o qual
pode e deve ser combatido, salvo melhor opinião, através de regulamentação interna
autárquica, ou seja, por quem está mais próximo da realidade informacional que vai ser alvo
de seleção e eliminação.

A concepção da tabela de seleção, da Portaria n.º 412/2001, também levanta


algumas questões metodológicas, designadamente pela confusão que sempre nos gerou no

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entendimento do significado conceptual da expressão “orgânico-funcional”, ao observarmos


a repetição das mesmas séries enquadradas em diversas áreas, dando a entender que
prosseguem procedimentos jurídicos e/ou técnicos diferentes, variando consoante a área em
que se incluam dificultando, com isso, a exequibilidade da tarefa de seleção. Atente-se nos
quatro exemplos (printscreens), extraídos da tabela de seleção da referida Portaria:

E que dizer de séries de conteúdo material idêntico, com destinos finais opostos,
enquadradas em áreas orgânico-funcionais diferentes? Vejamos os seguintes três casos
(printscreens), na mesma tabela de seleção:

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Renovação na continuidade?
Após a 1.ª revisão da Lei Fundamental (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de
setembro), significativa para a afirmação do chamado Estado de Direito democrático e do
alargamento do conceito de separação de poderes ao funcionamento das instituições, não
fazia sentido que as autarquias continuassem a depender dos comandos legislativos
governamentais para exercer as funções e atividades que melhor representassem os
interesses das populações respetivas. Contudo, também temos consciência de que estamos
a reportar-nos a uma realidade encimada por uma complexidade histórica tremenda,
influenciada pelas dinâmicas de uma sociedade extremamente dependente de uma liderança
central, a emitir constantemente instruções para o seu funcionamento, impedindo que a
descentralização tivesse dado passos mais largos. O espírito do legislador não encontrou,
pois, respaldo na mentalidade de quem estava nas condições de mudar o estado da arte.
É nesta medida que, à luz do decreto-lei n.º 447/88 observamos, já em democracia,
um sistema ainda muito dependente das praxes legislativas e administrativas do regime
autoritário anterior, nomeadamente com a inclusão da alínea b), no seu artigo 1.º. Se decidiu
revogar, por um lado, o decreto-lei n.º 29/72 manteve, por outro, os mesmos termos de
orientação, prevendo que a futura regulamentação arquivística para as autarquias deve ser
fixada através de portaria ministerial. Outro caso impressivo, é o da revogada Portaria n.º
503/86 – autorizava a microfilmagem de documentação em arquivo existente nas autarquias
locais e serviços municipalizados –, expressando logo no preâmbulo que
«Considerando as dificuldades sentidas pelas autarquias locais na manutenção integral de todos os
documentos em arquivo; Considerando o Decreto-Lei n.º, 29/72, de 24 de Janeiro, determina que serão
fixados por portaria do ministro competente os prazos mínimos de conservação em arquivo dos

documentos.»

Ou seja, com este quadro legislativo continuámos a ter no Governo o centro


absoluto disciplinador jurídico-arquivístico das autarquias locais, deixando para estas um
papel de execução meramente operacional. E assim continuou com a publicação da Portaria
412/2001 e, outra vez, com a Portaria 1253/2009, desperdiçando-se oportunidades
preciosas para se rever um regime jurídico desajustado e obsoleto, face à consciencialização

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descentralizadora, cada vez mais sentida no plano político, com sinais evidentes tanto no
seu discurso como nas suas medidas, como no plano social, visível na mobilização de vários
quadrantes da sociedade civil a reivindicar cada vez mais descentralização de competências
nas autarquias.
Ora, num país cujas instituições ainda não sabem muito bem como delimitar as
fronteiras administrativas, imagine-se a situação tão insólita quanto possível, de assistirmos
um dia à aprovação, numa determinada assembleia municipal, de regulamentação para
disciplinar uma matéria para a qual já existe normatividade em portaria ministerial. É caso
para questionar: qual dos dois regulamentos deve ser aplicado? Ou podem aplicar-se os
dois, complementando-se nas matérias em que sejam omissos?

Ou renovação na mudança?
Até ao presente, os regulamentos arquivísticos para as autarquias locais têm sido
emitidos através de Portaria, que é uma das tipologias de regulamento governamental.
Simplesmente, estas Portarias têm vinculado excessivamente as autarquias locais à
administração central do Estado, como se se tratassem de ministérios territoriais ao abrigo
do poder de direção do Governo. Segundo a interpretação que fazemos da Constituição
(designadamente da conjugação dos seus artigos 6.º, n.º 1, 112.º, 199.º, alínea d), 237.º, n.º
1, 241.º e 242.º), as autarquias pertencem, juntamente com as universidades, à
administração autónoma do Estado, ficando sujeitas ao poder de mera tutela administrativa
por parte do Governo, e não ao seu poder de direção, como sucede com os serviços da
Administração direta do Estado, ou ao poder de superintendência exercido sobre os
institutos públicos.
Estas considerações não pretendem transformar-se num incitamento a qualquer tipo
de rebelião ou demissão autárquica, nomeadamente dos seus deveres de proteção e
valorização do património arquivístico de âmbito territorial local, nem coarctar o salutar
trabalho institucional colaborativo entre administrações públicas. Simplesmente, no nosso
ponto de vista, poder-se-ia aproveitar este momento político para atribuir ao Decreto-lei n.º
447/88 a conformidade constitucional escrupulosa e atual que merece.
A título de exemplo, veja-se a recente Resolução do Conselho de Ministros n.º
51/2017, de 19 de abril, sobre a promoção da redução do consumo de papel e demais
consumíveis na Administração Pública. Atente-se no seu n.º 2:
«Determinar que a presente resolução se aplica de forma imperativa à administração direta do Estado,
recomendando-se também a sua aplicação à administração indireta do Estado.»

Uma Resolução do Conselho de Ministros, que também configura um tipo de


regulamento governamental, não inclui as autarquias locais neste preceito.
Não está em causa o mérito desta Resolução nem tão-pouco as vantagens que
podem advir da aplicação prática dos seus princípios. É nosso entendimento que estamos
perante um objetivo que deve ser prosseguido por todas as administrações. Em todo o caso,

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o carácter transversal que a sua operacionalização deve assumir não se pode transformar
numa condição que justifique a inclusão da administração autónoma do Estado naquele n.º
2. Ainda assim, não nos causaria qualquer temor a inclusão das autarquias na recomendação
feita no respetivo preceito. Afinal de contas, trata-se de uma medida de melhoria da
qualidade da despesa pública, aliada ao intuito de simplificação e modernização
administrativa que os tempos exigem.

Veja-se outro caso, que saudamos: o Regulamento Municipal de Urbanização e


Edificação de Lisboa, aprovado em Assembleia Municipal, através da deliberação n.º
107/AML/2008. Refere o artigo 1.º, com a epígrafe, «Lei habilitante», que
«O presente regulamento é aprovado nos termos e ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo
66.º no n.º 7 do artigo 112.º e no artigo 241.º da Constituição da República Portuguesa, na alínea a) do n.º
6 do artigo 64.º, conjugada com a alínea a) do n.º 2 do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 169/99, de 18 de
setembro, alterada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro, no Regulamento Geral das Edificações
Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de agosto de 1951, com as alterações introduzidas
posteriormente, na alínea o) do n.º do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, no artigo
3.º e nos n.ºs 4 e 5 do artigo 44.º e n.ºs 5 a 7 do artigo 57.º, todos do Regime Jurídico da Urbanização e da
Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de setembro, na redação conferida pelo Decreto-
Lei n.º 26/2010, de 30 de março, e nos artigos 116.º a 118.º do Código do Procedimento Administrativo,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro.»

Trata-se de um tipo de regulamentação que consideramos modelar, pois não se


limita a transpor ipsis litteris os termos da legislação de grau superior, antes adaptando-a e,
para além disso, inovando com as devidas cautelas constitucionais e legais nos aspetos que
melhor se adequam à realidade urbanística lisboeta.

O papel do órgão coordenador do sistema nacional de arquivos

Tendo por base o trabalho colaborativo que tem vindo a ser desenvolvido no âmbito
da extensão às autarquias do projeto da Macroestrutura Funcional, através do Plano de
Classificação de Informação Arquivística para a Administração Local, temos sido levados a
questionar se cada autarquia pode elaborar o seu próprio regulamento arquivístico
determinando, por exemplo, prazos e destinos finais diferentes para os seus processos de
negócio. Quer-nos parecer que constitucional e legalmente, em princípio, se encontram
habilitadas para o efeito, mas consideramos que esta seria uma situação contraproducente e
incoerente do ponto de vista técnico, rompendo-se uma uniformidade que parece fulcral
neste projeto. Uma vez que incumbe à Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das
Bibliotecas a função inspetiva de auditar a conformidade jurídica e técnica da aplicação de
instrumentos arquivísticos, é justamente por isso que resulta como fundamental um tipo de
trabalho colaborativo. Mas sublinhamos, não impositivo.

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Regulamentos arquivísticos: autarquias locais sem poder local?

Considerações finais
Atavismo costumeiro, contemporização, espírito de subserviência perante a administração
central, fraca ou inexistente sponsorização política, falta de recursos humanos e técnicos,
carências formativas, enquadramento orgânico obsoleto dos serviços de arquivo no universo
de algumas entidades, entre outros, são fatores negativos – uns políticos outros técnicos –
que concorrem para a falta de consciência da autonomia regulamentar arquivística das
autarquias. Esta é uma situação que, pelo seu diagnóstico, não é meramente conjuntural, é
estrutural, levando-nos a pensar se não seria vantajosa a criação de uma entidade
intermédia, entre o poder central e o poder local, com poderes próprios, para melhor
veicular a descentralização administrativa. Fica a ideia para reflexão. E, claro, é para nós
evidente que há uma necessidade de revisão da legislação sobre a qual nos debruçámos ao
longo do texto, propondo a criação futura – hipotética – de um código legislativo no domínio
cultural, que pudesse enquadrar uma secção mais desenvolvida sobre a matéria do
património arquivístico. Outra ideia que fica para reflexão.

LISBOA, Julho de 2017

Referências bibliográficas
AMARAL, Diogo Freitas (2008) – Curso de Direito Administrativo, 3.ª ed. Vol. I. Lisboa:
Almedina. 926 p., ISBN 9789724028057.
MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui (2007) – Constituição Portuguesa anotada. Vol. III. Coimbra:
Coimbra Editora, 1006 p., ISBN 978-972-32-1541-0.
OLIVEIRA, António Cândido (2013) – Direito das autarquias locais. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra
Editora. 393 p. ISBN 978-972-32-2210-4.
OLIVEIRA, César (1996) – História dos Municípios e do Poder Local [Dos finais da Idade Média
à União Europeia], Lisboa: Círculo de Leitores. 591 p., ISBN 972-42-1300-5.
SOUSA, Marcelo Rebelo; MATOS, André Salgado (2004) – Direito Administrativo Geral. 3.ª ed.
Lisboa: Dom Quixote. 245 p. ISBN 9789722032421.

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