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Organizagao Social Naturalmente © que antes de mais nada, e acima de tudo, caracteriza. a sociedade brasileira de_principios do. séc. XIX, ¢ a cscravidio. Em todo lugar onde encontramos tal instituicao, aqui como alhures, nenhuma outra levow-lhe a palma na influén- cia que exerce, no papel que representa em todos os setores da vida social. Organizagio econémica, padrées materiais e morais, nada hé que a presenca do trabalho servil, quando alcanca as proporees de que fomos testemunhas, dei de ating, de um modo profundo, seja diretamente, soja por suas repercussdes remotas, Nao insistirei aqui sobre a influéncia material ¢ moral da eseravidio no seu cardter geral, 0 que a Histéria ¢ a Sociologia {é_regisraram tantas vezcs,Sejt ao_ tempo, seja no espago. A literatura sobre o assunto é ampla, e nada The poderiamos acres- centar sem repisar matéria fartamente debatida e conhecida. Ficare aqui apenas no que é mais peculiar ao noso eas. Porque a escravidao brasileira tem caracteristicos prOprios; alis, os mais salientes, tem-nos em comum com todas as coldnias dos trépicos americanos, nossas semelhantes; ¢ sio tais caracteristicos, talvez, ‘mais ainda que outros comuns A escravidio em geral, que mode- laram a sociedade brasileira. A escravidio americana’ nfo se filia, no sentido histérico, a nenhuma das formas de trabalho servil que vém, na civilizagio beidental, do mundo antigo ou dos. séculos que’0- seguem; en deriva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no sée. XV com os grandes descobrimentos ultramarinos, ¢ pertence intei- ramente a cla, J notei acima, incidentemente, que o trabalho servil, tendo atingido no mundo antigo proporgées consideraveis, declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foi ‘9 servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quase toda a civilizacio ocidental Com o descobrimento da América, ele renasce das cinzas com um vigor extraordinirio. Esta circuns- tiincia precisa ser particularmente notada, O fato de se tratar, no caso da escravidio americana, do renascimento de uma insti- tuigio que parecia para sempre abolida do Ocidente, tem uma importincia capital. A ele se filia um conjunto de conseqiiéncias que fario do instituto servil, aqui na América, um processo ori- Formagdo do Brasil Contemporinco 209 ginal e proprio, com repercussbes que somente vistas de tal Angulo sf poderto avaliar 4 Ressalta isto da comparagio que podemos fazer daqueles dois mowenies hier dn escrvidio 0, do mundo amigo © do modem, No primeiro, com o papel imenso que representa, © tseravo nfo é genio a resutante Ge-um processo evolutivo natural cujas raizes se prendem a um pasado remoto; e ele se entrosa por isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moral da sociedade antiga. Figura nela de modo tio espontneo, aparece mesino tao necessirio ¢ justificdvel como qualquer outro elemento constituinte daquela sociedade. E neste sentido que se compreende 4 tio citada e debatida posigao escravista de um fil6sofo como Arist6teles, que, pondo-se embora de parte a apreciacdo que dele se poset fazer como peasador, representa no entanto, nos seus mais elevados padrées, 0 modo de sentir e de pensar de uma época. A escravidao na Grécia ou em Roma seria como o salariado em nossos dias: embora discutida ¢ seriamente contestada na sua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do con- junto como qualquer coisa ‘de fatal, necessério e insubstituivel. Coisa muito diferente se passari com a escravidiio moderna, que é a nossa. Ela nasce de chofre, nfo se liga a passado ou fadigio alguma, Restaura apenas uma instituigao justamente quando ela j& perdera inteiramente sua razo de ser, e fora subs- tituida por outras formas de trabalho mais evoluidas. Surge assim ‘como um corpo estranho que se insinua na estrutura da clvitizagio ocidental, em que jé nfo cabia. E vem contrariar-lhe todos os padres morais © materiais estabelecidos. Traz uma revolucio, mas nada a prepara. Como se explica entio? Nada mais particular, mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidao do mundo antigo, de todo 0 conjunto da vida’ social, material e moral, ela nada mais sera que um recurso de oportunidade de que lan: gato mao os paises da Europa a fim de explorar comercialmente 05 vastos territérios e riquezas do Novo Mundo. & certo que a escravidao americana teve na peninsula seu precursor imediato no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que as primeiras expedigées ultramarinas dos portugueses trouxeram para a metrépole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas no foi isto mais que um primeiro passo, prekiidio e preparagio do grande drama que se passaria na outra margem do Atkintico. E ai que verdadeiramente renascerd, em proporgdes que nem 0 mundo antigo conhecera, o instituto jé condenado e priticamente abolido. Por este recurso de que gananciosamente langou mio, pagaré a Europa um pesado tributo. Podemos repetir 0 conceito que ex- prime a propésito John Kelis Ingram: “Not long after the disap- 270 Caio Prado Kinior pearance of serfdom in the most advanced communities, comes into sight the modern system of colonial slavery, which, instead of being the spontaneous outgrowth of social necessities, and subser- ving temporary needs of human development, was politically as ‘well as morally a monstruous aberration(1). N&o é num terreno de “moral absoluta” que precisamos ou devcmos nos colocar para fazer 0 juizo da escravidao modema. J4 sem falar na devastagao que provocard, tanto das populagses indigenas da América, como das do continente hegro, 0 que de mais grave determinaré, entre os povos colonizadores © sobretudo em suas colénias do’ Novo Mundo, € 0 fato de vir a nova escravidao desacompanhada, 20 contrario do que se passara no mundo antigo, de qualquer ele- mento construtiv, a nio ser num aspecto restrito, puramente material, da realizagio de uma empresa de comércig: um negécio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E por isto, para objetivo tio unilateral, puseram os povos da Europa de lado todos os principios e normas essenciais em que se fundava a sua civilizagio e cultura. O que isto representou para eles, no correr do tempo, de degradagio e dissolucio, com repercussées aque se vio afinal manifesta no proprio tereno do progrsso da prosperidade material, nao foi ainda bem apreciado e avaliado, nem cabe aqui abordar o assunto, Mas tera sido este um dos fatores, e dos de primeiro plano, do naufrigio da civilizagio ibérica, tanto de uma como de outra de suas duas nagées. Foram elas que mais se engajaram naquele caminho; serio elas também suas prineipais vitimas(2). Muito mais grave, contudo, foi a escravidio para as nascentes coldnias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério jue ela determina; o trabalho servil seri mesmo a trave mestra le sua estrutura, © cimento com que se juntario as pecas que as constituem. Oferecerio por isso um triste espetdculo humano; e 0 exemplo do Brasil, que vamos retragar aqui, se sepete mais ou menos idéntico em todas elas. Mas h4 outra circunstancia que vem caracterizar ainda mais desfavoravelmente a escravidio modema: & 0 elemento de que se teve de langar mao para alimenté-la, Foram eles os indigenas da América e 9 nogro africano, povos de nivel cultural fafimo, (1) John Kelis Ingram, Slavery (2) eitgitera tnbtan te ppel prominente no retbelecimento aa, set abs any sey se comets the 8 cquase monopélio do triflco negreito, pelo qual, a nasio. chegou a6. a tomar armas, Mar ndo sfreu fo fundamente os fetes danosos da exeravido, orgie 200 papel fol sobretudo eat de intermedi, O trabalho servi mance Bishtow pé'na Ingateers.proprianent. Formagdo do Brasil Contempordneo 271 comparado ao de seus dominadores(3). Aqui ainda, a comparag’o: ‘com que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste ultimo, a eseravidao se forneceu de povos e ragas que muitas vezes 86 equiparam & seus conquistadores, se ndo os superam. Contribuirart assim para estes com valores culturais de clevado teor. Roma. no teria sido o que foi se no contasse com o que Ihe trouxerait seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e que nela concentram 0 que entéo havia de melhor e cultutal- mente mais elevado. Muito Ihes deveu ¢ muito deles aprendett a civilizago romana, O escravo no foi nela a simples maquina de trabalho bruto ¢ inconsciente que ¢ 0 seu sucessor americang, Na América, pelo contrério, a que assistimos? Ao recrutie mento de_povos bésbaros.e somibarbaros, arrancados do. 36u habitat natural ¢ inclldos, sem transigio, nama clilizagio intel ramente estranha, E ai ee, ‘os esperava? A escravidio no sew ior cardter, 0 homem reduzido & mais simples cxpressio, pouco: Sendo nada iatis que 0 iracional: “Instrumento vivo de tabelboly (© chamaré Perdiggo Malheiro(4). Nada mais se queria dele, € nada mais se pediu ¢ obteve que a sua forca bruta, material. Esforgo muscular primério, sob a diregio © agoite do feitor, Da mulher, mais a passividade da fémea na copula. Num © noutro caso, 0 ato isico apenas, com exclusio de quaiquer outro ele mento ou concurso moral. A “animalidade” do Homem, nfo a sua “humanidade.” ‘A contribuigio do escravo preto ou indio para a formagéo brasileira, é além daquela energia motriz quase nula. Nao que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressio; mas é antes tia contribuigao passiva, resultamte do simples fato da. presenga dele ¢ da considerivel difso do seu sang, que uma interven Gao ativa e construtora, O eabedal de cultura que trazconsigo da selva americana ou africana, € que nfo quero subestimar, & abafado, e se nio aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material ¢ moral a que se_vé reduzido seu. portador. Eaponta for isso apenas, muito tmidamente, aqui e acold. Age mais como Fermento corraptor da outra cultura, a do senhor branco que se Ihe sobrepoe(3). 3) Esta observagio no serin tho esata com relagio a certs indie genas smeticans, como do: Menico'e do alipno ain, sos congue ESdores nao tvessom, de flee com ferocidade. quase sem precedente, asa de todos seus valores cultura, (4) "A eseravidio no. Bras. 32 parte, 138, (5), Tao ene oon paiumeite @ cae do sretino rl oso. que terultou do ammélgama. de citolicimno © paganismo, em doses FeRis, que formar o Lunde. rligiow de boa parte do. Dra, Relgae 272 Caio Prado Jinior E a esta passividade alids das culturas negras e indigenas no Brasil que se" deve 0 vigor com que a do Branco. se impos predominou inconteste, embora fosse muito reduzido, relativa- mente & das outras ragas, a sua contribuicéo demogrifica. O negro © 0 indio teriam tido certamente outro papel na formagio brasi- leira, © papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido 0 rumo ado & colonizagio; se se tivesse procurado neles, ou aceitado ‘uma colaboragio menos unilateral € mais larga que’ a do simples, eslorgo fisico. Mas a colonizagio brasileira se processa nurn plano nhado; outro objetivo nio houve que utilizar os recursos natu- rais do seu territério para a producio extensiva © precipitada de tum pequeno nimero de géneros altamente remunerados no mer- cado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde © primeiro momento da conquista; e parece que no havia tempo 4 perder, nem sobravam atengGes para empresas mais assentes, cstaveis, ponderadas. $6. se enxergava uma perspectiva: a remu: neragio farta do eapital que a Europa aqui cmpatara, A terra era inexplorada, € seus recursos, acumulados durante séculos, jaziam & flor do solo. O trabalho para tiré-los de lé néo pedia grandes planos nem impunka problemas compleos: bastava o mais simples esforco material. & 0 que se exigiu de negro e de Indio que se incumbiriam da tarelas " = Correndo parelhas com esta contribuigio que se impés as ragas dominades, ocorre. outra, este. subproduto. da. escravidio Jargamente aproveitado: as faccis caricias da escrava para a satis- fagio das necessidades sexuais do colono privado de mulheres de’ sua raga ¢ categoria, Ambas as fungdes se valem do ponto de vista moral © huinano; ¢ ambas excluem, pela forma com que se praticaram, tudo que 0 negro ou o indio poderiam ter trazido como valor positive ¢ construtor de cultura. ‘Uma sikima cireunstincin diferencia caracteriza a escr- vidio americana: & a diferenga profunda de ragas que scpara os cseravos de seus scnhores. Em algumas partes da Aménea, tal Uiferenga constituiu, como se sabe, obstaculo intransponivel aprosinagio das classes © dos individuos, e reforgow por isso consideravelmente a rigidez de uma estrutura que o sistema social, cm si, jé tornava tao estanque intemamente. Mas nio me ocuparei estas coldnias, porque entre nés a aproximagio se realizou, ©, como ji notei em outro capitulo, em escala apreciavel. Isto con. tudo dentro de limites que apesar de tudo nio sio amplos, pelo menos até 0 momento histérico que nos interessa aqui. Existiu wcoafticana, mais que qualquer outra coisa, e que se perden @ frandeza ¢ “do rstianisno, também nfo conservou a espdntancidadeeiquess de culorid das crengas negras em seu estado mative.” a Formagao do Bresil Contempordnco 273

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