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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA QUESTÃO DO ANALFABETISMO

NO BRASIL: A MICROREALIDADE DE BUÍQUE/PE (1947-1997)

Maisa dos Reis Quaresma


Universidade Castelo Branco – RJ
mquaresma@castelobranco.br
analfabetismo, história l
enta e políticas públicas

Eixo temático: Historiografia e Memória da Educação

I - INTRODUÇÃO

A educação básica de adultos começou a delimitar seu lugar na história da edu-


cação no Brasil a partir da década de 30, quando foi implantado um sistema público de educa-
ção elementar no país. A ampliação das ofertas de ensino, a atribuição de responsabilidade
aos estados e municípios, impulsionadas pelo governo federal, originaram esforços articula-
dos, em âmbito nacional, para inclusão de jovens e adultos no ensino elementar, sem no en-
tanto considerar especificidades das faixas etárias e experiências vivenciadas pelos educan-
dos.
A definição da identidade da educação de jovens e adultos, incluindo a alfabe-
tização e a redução espaço-temporal do período do curso, tomou forma, na década de 40, com
a campanha nacional: “Campanha de Educação de Adultos”, lançada em 1947. Antes do final
da década, esta Campanha foi extinta.
Os motivos de fracasso da ação da Campanha, em zonas rurais, as críticas às i-
déias preconceituosas sobre os analfabetos, suas possibilidades de aprendizagem e seus sa-
beres, foram temas das discussões que ocuparam os educadores durante toda a década de 50.
No início da década de 60, a proposta para a alfabetização de adultos e o
pensamento pedagógico de Paulo Freire inspiraram os principais programas de alfabetização e
de educação popular empreendidos por intelectuais, estudantes e católicos. Os diversos grupos
de educadores foram se articulando e passaram a pressionar o governo federal para que os
apoiasse e estabelecesse uma coordenação nacional das iniciativas. Em janeiro de 1964 foi
aprovado o Plano Nacional de Alfabetização. O mesmo foi interrompido com o golpe militar,
que frustrou, novamente, as expectativas daqueles que atuavam junto a jovens e adultos anal-
fabetos.
A implantação do Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, e sua
expansão por todo o território nacional desencadearam uma política de controle e repres-
são a todos os grupos que trabalhavam com jovens e adultos. O descrédito de suas ações e a
redemocratização do país provocaram a sua extinção, em 1985, e sua substituição pela
Fundação Educar, que abriu mão da execução direta dos programas de alfabetização pas-
sando a apoiar financeira e tecnicamente as iniciativas de governo, entidades civis e empresas
a ela conveniadas. Na década de 90, a extinção da Fundação Educar criou uma enorme lacu-
na em termos de políticas públicas para a educação de jovens e adultos.
A evolução histórica da questão do analfabetismo evidencia a articulação e a
desarticulação dos movimentos de educação de jovens e adultos sob o patrocínio do governo
federal, principal instância de apoio às iniciativas da sociedade brasileira. Os recuos e avanços
das soluções da questão apresentam traços da “história lenta”. Suas características, marcadas
pelo descompromisso da vontade política em valorizar a educação de jovens e adultos, indi-
cam que a modalidade de educação, universal e articulada a outras políticas educacionais,
permaneceu marginalizada.
Nesta trajetória espaço-temporal, chamada “história lenta” da solução da ques-
tão do analfabetismo (1947-1997), uma nova proposta surgiu em 1997 com o nome de Pro-
grama Alfabetização Solidária.
A partir de janeiro de 1997, o movimento nacional de combate ao analfabetis-
mo foi intensificado pela atuação do Programa Alfabetização Solidária (PAS) e da parceria
sociedade civil, de empresas, de prefeituras municipais e universidades junto ao Conselho da
Comunidade Solidária. O movimento tem desencadeado uma expansão quantitativa de aten-
dimento a municípios de todas as regiões brasileiras, principalmente os do Norte e Nordeste.
No momento atual, a educação de jovens e adultos encontra-se em uma situa-
ção precária no contexto das políticas públicas: a carência das ofertas de escolarização básica
e formação para o trabalho, não institucionalizadas nas administrações, evidencia a desconti-
nuidade das ações positivas nas microrrealidades municipais.
Este estudo pretende examinar a problemática do analfabetismo, inserida no
campo da pesquisa regional da História da Educação, no Nordeste brasileiro, Pernambuco;
analisar a evolução histórica do analfabetismo, das políticas públicas para educação de jovens
e adultos; demonstrar que, no período de 1947 a 1997, a descontinuidade de ações das políti-
cas públicas e dos financiamentos para Educação de Jovens e Adultos evidencia a evolução da
“história lenta” dos programas de combate ao analfabetismo no Brasil; demonstrar que a eva-
são e a repetência dos alunos no Ensino Fundamental, no período estudado, têm levado aos

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altos índices de analfabetismo em Buíque, em virtude das heranças históricas do coronelismo
e do poder do atraso.
A metodologia deste estudo seguiu algumas tendências da historiografia em
História da Educação: história oral temática, tradição oral, história oral de vida, narrativas
literárias, memórias iconográficas (de Buíque/PE). Na pesquisa foram considerados documen-
tos produzidos no período de 1997 a 1999, enfocando o município de Buíque, parceiro do
Programa Alfabetização Solidária.
Para atender aos objetivos do estudo, foram organizadas as seguintes etapas:

• Revisão de literatura sobre o tema da pesquisa e sistemático levantamento e cata-


logação de fontes primárias e secundárias;
• Organização de fichas organográficas, relatórios de observação, arquivo de docu-
mentos (inclusive iconográficos) sobre o município de Buíque/PE;
• Aplicação do processo de crítica externa (autenticidade) e de crítica interna (ve-
racidade) às fontes primárias e secundárias com definição de limitações;
• Comparação e análise dos pressupostos teóricos, publicados na bibliografia sobre
o tema estudado, com a realidade acompanhada em Buíque/PE da evolução edu-
cacional do analfabetismo evidenciando o isolamento dessa microrealidade no
mundo rural brasileiro;
• Interpretação dos dados obtidos nas fontes primárias e secundárias, organização
do relatório final sobre o tema da pesquisa.

As fontes primárias pesquisadas foram as seguintes:

a) Documentos oficiais, tais como o Plano Decenal de Educação (1993-2003); pu-


blicações do Mobral (1973-1978) e do PAS (1997-1999); Proposta Curricular
para o primeiro segmento do ensino fundamental para a educação de jovens e
adultos EJA (1997); texto das Leis 5.692/71, 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional) e 9424/96 (Fundef); Constituição da República Federati-
va do Brasil (1988); Lei Orgânica do Município de Buíque/PE; estatísticas publi-
cadas em Sinopses e Anuários do IBGE (até 1997);
b) Documentos elaborados pela autora da pesquisa na implementação do PAS em
Buíque: relatórios de seleção de alfabetizadores; relatórios dos Cursos de Capa-
citação de Alfabetizadores; avaliações diagnósticas das turmas de alfabetização;

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relatórios de avaliação final de cada módulo; relatório de avaliação parcial do
PAS no município de Buíque; entrevistas com professores, alfabetizadores de
jovens e adultos (Mobral e PAS); cartas de alfabetizandos; publicações em revis-
tas e jornais sobre o PAS;
c) Produções iconográficas: fotografias de salas de aulas, paisagens, eventos reali-
zados no município (Feiras de Alfabetização) produzidos pela autora da pesquisa,
fotos doadas por alfabetizadores, reproduções de fotos (1949-1950 e posteriores)
existentes no município, vídeo sobre Buíque/PE, vídeo sobre a I e II Feiras de Al-
fabetização em Buíque com depoimento de participantes, acervo do Museu de
Buíque e da Paróquia de São Félix de Cantalice.

Como fontes secundárias foram utilizadas as publicações da literatura existente


sobre a situação do analfabetismo, no período de 1947 a 1997, com destaques especiais em
importância para a pesquisa do livro Infância, de Graciliano Ramos, e a obra Campos de Buí-
que, suas terras, sua gente, de Cidinaldo Buíque de Araújo Azevedo.
A situação de Buíque, inserida na evolução da formação e atuação em docên-
cia (séculos XIX e XX) no Brasil, configura, no recorte apresentado, as questões atuais das
pesquisas em História da Educação. Na evolução histórica observou-se a ausência sistemáti-
ca de operacionalização das medidas oficiais, o que parece ter contribuído para uma situa-
ção de descontinuidade quanto às suas reais finalidades. Como analisa Sander (1973) “…o
traço mais peculiar da história política e cultural do Brasil é a considerável discrepância
entre modelos institucionais idealizados e a conduta real, isto é, formalismo”.
No Brasil, a memória histórica de educação, na zona rural, está ainda permeada
de lacunas que precisam ser preenchidas. É preciso continuar a descobrir, mesmo nas realida-
des mais singulares da história, algo que é universal para todos os seres humanos: o processo
educativo, assegurando o olhar grávido do cruzamento dos tempos, nos estudos de história da
educação. Buíque é um município que, embora no esquecimento, guarda a memória nacional
e, na singularidade, tem possibilitado a descoberta de fontes para a reconstrução de sua pró-
pria história e a do Brasil.

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II - O CENÁRIO EDUCACIONAL E A QUESTÃO DO ANALFABETISMO NO BRASIL

O período estudado evidenciou a “história lenta” das políticas públicas e do


financiamento da educação de jovens e adultos, particularmente a partir da década de 1940,
retratando indefinições de rumos seqüenciais.
A breve descrição histórica no cenário educacional, da questão do analfabetismo,
parece ressaltar aspectos peculiares da sociedade brasileira, analisados por Martins (1994) .

“...A história contemporânea do Brasil está sendo a história da espera do


progresso. Como o progresso não veio, senão de um modo insuficientemen-
te lento, essa história se transformou na história da espera da revolução,
mas a revolução também não veio (afinal devia ser esperada ou devia ser
feita?). Na verdade, a história da sociedade brasileira está sendo uma histó-
ria inacabada, uma história que não se concluí, uma história que não chega
ao fim de períodos definidos, de transformações concluídas. Não é uma
história que se faz. É uma história sempre por fazer”.

As questões educacionais, especialmente a do analfabetismo, têm refletido a


marcha da “história lenta” da sociedade brasileira. Essa marcha, caracterizada pelo aceno de
mudanças do partido da ruptura e recuo em contramão do partido do sistema político, tem
tornado difícil acreditar que os propósitos de ruptura sejam mantidos quando assumida a posi-
ção de partido de poder.
Um outro aspecto importante a ser considerado é o conjunto de reflexos das
políticas de endividamento interno, pagamento da dívida externa e de combate à inflação e de
remuneração salarial no financiamento da educação, analisados por Melchior (1989)

“O sistema de financiamento da educação é dependente do sistema geral de


financiamento, que está integrado no sistema econômico e que, em grande
parte, depende do sistema de poder. Numa fase de transição, de um governo
para outro, não se pode esperar que o governo atual estruture políticas está-
veis para o universo econômico”.

A legislação de ensino e o financiamento da educação entrelaçados com outros


fatores parecem representar a exemplificação concreta na realidade social da “história lenta”
das ações no combate ao analfabetismo no Brasil.

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No cenário nacional a questão do analfabetismo parece estar ilustrada pelo des-
compromisso com a continuidade das soluções criadas, gerando um descompasso entre as
ofertas e as demandas para educação de jovens e adultos.
Nos movimentos de EJA as demandas têm sido representadas pelos milhões de
brasileiros que foram excluídos de processos mais amplos de participação social, do direito
previsto no artigo 205 da Constituição do Brasil (1988) “... A educação, direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”.
As ofertas têm sido caracterizadas pelos educadores de jovens e adultos (pes-
soas, grupos, órgãos públicos e privados), desde a década de 40. Essas ofertas não constituem
um movimento articulado com vontade política e compromisso de correção da injustiça soci-
al: evidenciam descontinuidade, em sincronia ou diacronia, com influências do poder público
ou de experiências isoladas.
Os movimentos de EJA mais recentes foram incentivados pelas ações da década
de 70, na fonte inspiradora do movimento de educação popular liderado por Paulo Freire. A
tradição freiriana ainda se mantém no reconhecimento do universo cultural e da experiência
do alfabetizando em processo educativo, porque valoriza o sentido social e político da educa-
ção. A evolução histórica, no período republicano, pode demonstrar as diversas etapas da luta
contra o analfabetismo.
A Constituição de 1988 estendeu a garantia de ensino fundamental, obrigatório
e gratuito, aos que não tiveram acesso em idade própria (artigo 208) e instituiu que pelo me-
nos 50% dos recursos, a que se refere o artigo 212, fossem aplicados na eliminação do analfa-
betismo e na universalização do ensino fundamental.
Esse direito compete a que autoridade? Quem seria realmente responsável pe-
las deficiências da oferta do ensino fundamental aos jovens e analfabetos? A União, os esta-
dos ou municípios? Essa anomia do texto constitucional dará origem a inúmeras questões para
desencadear ações de solução quanto aos problemas de analfabetismo e educação de jovens e
adultos no Brasil.
Cabe destacar, ainda, entre os textos legais da década de 90, a Lei 9.424/96 que
regulamentou a Emenda 14/96 referente ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ma-
gistério (Fundef). A interpretação inicial da lei não criou oportunidades de continuidade de
estudos para jovens e adultos egressos de turmas de alfabetização, no ensino fundamental.

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O Plano Decenal de Educação (1993-2003), expressão brasileira de movimento
desencadeador da valorização da educação, foi orientado pela Unesco, Bird/Banco Mundial. Os
compromissos assumidos pelo Brasil geraram as metas das políticas públicas e deram ori-
gem à reforma educacional, realizada em todos os níveis e modalidades, com diretrizes curri-
culares, referenciais curriculares, parâmetros curriculares nacionais, na década de 90.
A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a votação da
Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996 que, entre outras medidas, criou o
Fundef – regulamentado pela Lei 9424, aprovada em 26 de dezembro de 1996 – trouxeram
conseqüências importantes a curto, médio e longo prazos. O fato marcante foi a inovação do
Fundef criado por meio da nova redação dada ao artigo 60: do Ato das Disposições Transitó-
rias da Constituição Federal (CF) de 1988. O artigo 60, como analisa Pinto (2002: 116),
“...estabelecia que nos dez anos seguintes à aprovação da Constituição os poderes públi-
cos deveriam aplicar, pelo menos, a metade dos recursos vinculados pela CF ao ensino, na
universalização do ensino e na erradicação do analfabetismo”.
As mudanças foram significativas no quadro geral do financiamento da educa-
ção: redução da responsabilidade da União retirando do texto constitucional o compromisso
de erradicar o analfabetismo e de assegurar o ensino fundamental para jovens e adultos; au-
mento de escolas da rede municipal, amparadas na política de municipalização, superando a
rede estadual, incentivadas pelo mecanismo de vincular o repasse de uma parte da receita de
impostos ao número de alunos matriculados no ensino fundamental regular; desestímulo de
investimentos dos poderes públicos na educação infantil, na educação de jovens e adultos e
mesmo no ensino médio.
O artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de
1988, originalmente redigido nos seguintes termos, sofreu alteração pela Emenda Constitu-
cional 14, de setembro de 1996, passando a ter a seguinte redação:

“Nos dez primeiros anos da promulgação desta emenda, os Estados, o Distri-


to Federal e os municípios destinarão não menos de sessenta por cento dos
recursos a que se refere o ‘caput’ do Art. 212 da Constituição Federal, à ma-
nutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental com o objetivo de as-
segurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do
magistério”.

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Ao artigo reformulado foram acrescentados sete parágrafos que não especifica-
ram a contabilização, para efeito do recebimento de recursos do Fundef, dos alunos matricu-
lados nas turmas de educação de jovens e adultos. O fato desestimulou o investimento nesta
modalidade de ensino pelas prefeituras municipais e governos estaduais porque estas matrícu-
las não implicariam o recebimento de recursos do Fundef.
A situação descrita propiciou a geração de problemas para a continuidade de
estudos dos alfabetizandos egressos dos Cursos de Alfabetização de Jovens e Adultos. O “jei-
tinho” brasileiro foi a criação das turmas noturnas, pelas prefeituras municipais, contabilizan-
do os alunos matriculados para recebimento dos recursos do ensino fundamental regular pre-
vistos no Fundef, a partir de 1999, inclusive em Buíque/PE.

III – A QUESTÃO DO ANALFABETISMO E O PODER DO ATRASO EM BUÍ-


QUE/PE

A singularidade de Buíque começou a ser evidenciada mediante informações


mais detalhadas sobre o município, obtidas quando do início das ações da parceria proposta
pelo Programa Alfabetização Solidária. Essa parceria, representada pela coordenação geral da
Universidade, pela coordenação municipal, pelo Sesi de Pernambuco, pelo Ministério de E-
ducação, pela Comunidade Solidária, no ano de 1997, relacionou geograficamente Buíque,
Recife, Rio de Janeiro e Brasília na mesma tarefa: promover a luta contra o analfabetismo.
O município é uma microrrealidade historicamente herdeira do coronelismo.
O legado do coronelismo, interpretado sociologicamente por Queiroz (1985), representa:

“... forma específica de poder político brasileiro, que floresceu durante a


primeira República e cujas raízes remontam ao Império; já então os municí-
pios eram feudos políticos que se transmitiam por herança não configurada
legalmente, mas que existia de maneira informal”.

Em Buíque, descreve Ramos (1995), “... os maiorais do município, gover-


no e oposição, vinham de um grupo de famílias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no
Nordeste: Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos. Padre João Inácio era
Albuquerque”

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As cores das bandeiras, no período das eleições, fixadas nas residências bui-
quenses da sede e vilas, ainda expressam as opções políticas do eleitorado em relação aos
representantes das grandes famílias locais.
Em 1997, durante a experiência-piloto do PAS, 55,36% da população apresen-
tavam situação de analfabetismo. As matrículas (do pré-escolar ao ensino médio) totalizavam
10.000 alunos, sendo a maior concentração no ensino fundamental (8.133 alunos). Os estabe-
lecimentos de ensino (155) estavam distribuídos de acordo com a modalidade de administra-
ção: 148 municipais, 1 particular, 1 federal e 5 estaduais. O município possui um curso de
formação de professores funcionando na Escola Estadual Vigário João Inácio (criado em
1967).
A situação do município já se configurava problemática, desde o final do
século XIX, como distrito do município de Garanhuns. A raridade dos documentos primi-
tivos assinados pelos interessados, sem usarem o sinal da cruz, permite observar que a pro-
porção do letramento das pessoas seria de seis para cada mil habitantes.
A obra Infância, de Graciliano Ramos (1995: 111), retrata uma escola existente
na sede (não nos sítios de Buíque) até a década de 50. As unidades escolares existentes nos sí-
tios e vilas não são mencionadas (locais onde havia e há maior concentração de população).
Nos levantamentos sobre o município não foram encontradas informações
sobre funcionamento da Cruzada ABC ou outras ações contra o analfabetismo até a década
de 70. Essas ações parecem ter sido iniciadas quando da implantação do Movimento Brasilei-
ro de Alfabetização criado pela Lei 5379/68.
A instalação do Mobral não parece ter resolvido a questão do analfabetismo A
tradição da questão e a inexistência de política educacional inserindo a educação de jo-
vens e adultos na escolarização regular do sistema de ensino municipal ou estadual provo-
caram o agravamento da situação: no ano de 1997 a taxa de analfabetismo era de 55,36%
quando foi feita a parceria da inclusão no projeto-piloto do Programa Alfabetização Soli-
dária.
O processo de evasão e repetência dos alunos das classes iniciais do ensino
fundamental (também denominado ensino de 1º grau e ensino primário na evolução histórica
das reformas educacionais) demonstra causas remotas da questão do analfabetismo em Buí-
que. A situação encontrada, documentada quando da aplicação dos instrumentos de avaliação
diagnóstica nas turmas de alfabetização dos módulos 1 a 6 – 1.072 alunos com experiência
anterior , evidenciou o abandono dos bancos escolares e a falta de oportunidades para escolari-
dade existente nas faixas de idade da composição etária dos alfabetizandos.

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O quadro educacional existente em Buíque, quando da implantação do PAS,
tem fundamentos históricos, socioeconômicos, políticos e culturais.
O Censo de 1950 documentou que a população com mais de cinco anos que
sabia ler era 11,3%, restando 88,7% de analfabetos entre os 38.238 habitantes do município.
Havia 56 unidades escolares de ensino primário e oito de ensino supletivo onde estavam ma-
triculados 1.906 alunos. Na década de 40 a precariedade da vida dos buiquenses foi descrita
por Ramos (1995), comentada por depoimentos de pessoas das gerações mais velhas (inclu-
sive alfabetizandos ainda moradores do local). Não havia meios de comunicação a não ser o
rádio que era utilizado pelos privilegiados (elite dominante). A luz era só de vagalume ou da
lua nova quando o gerador a óleo diesel fornecia fraca iluminação, até 21 horas, quando não
estava quebrado. Na política, aconteciam conflitos de interesses de coronelismo local “resol-
vidos e enterrados” na lagoa do Sumidouro. A falta de calçamento das ruas, inclusive na
sede, e o clima difícil relatado por Ramos direcionavam as ações dos habitantes para as neces-
sidades de sobrevivência imediata. Os problemas permaneceram na década de 50 e começa-
ram a ser resolvidos na década de 60.
No período descrito não havia menções de esforços articulados para lutas con-
tra o analfabetismo: faltavam professores, escolas no município para formação de docentes e
incentivos para o uso de leitura e escrita, das operações matemáticas e conteúdos escolares
universais no cotidiano de ações dos alunos. Considerando-se a intrínseca união entre educa-
ção, inclusive de jovens e adultos, e desenvolvimento social e econômico, a situação de Buí-
que não favorecia a mobilidade social, a distribuição de renda, as mudanças geradas pelo ato
de estudar.
Na década de 60, na administração do prefeito Blesmann, foram estabelecidas
ligações com a rede elétrica de Paulo Afonso: houve até projeção de filme, na sede, da “Ali-
ança para o Progresso” sobre o “perigo de Cuba” na América Latina, impressionando os habi-
tantes do local. Na esfera educacional, algumas medidas importantes foram tomadas: refor-
mas e expansão da rede escolar, criação do externato Vigário João Inácio, de caráter privado,
que oferecia curso de admissão ao ginásio, ginásio comercial e curso de magistério para for-
mação de professoras primárias. O mandato do prefeito foi interrompido, após 64, por moti-
vos de discordâncias, nos níveis local e nacional, provocando a cassação e a proibição da ele-
gibilidade de 10 anos.
Na década de 70 as medidas administrativas de ampliação da rede escolar e das
matrículas (148 escolas), junto aos recursos humanos formados no curso de magistério, criado
no município pelo governo estadual em 1967, acrescidas das ações do Mobral, que instituiu

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242 postos para funcionamento e atendimento de 4.735 alfabetizandos matriculados, parecem
ter contribuído para a diminuição do percentual de analfabetismo.
O Censo de 80 registrou dados percentuais de 64,2% para a faixa de 11 a 14
anos, 63,4% para 15 anos ou mais com relação ao analfabetismo de Buíque. As matrículas no
ensino de 1º grau passaram a ser de 8.133 alunos (escolas municipais, estaduais e privadas).
Não foram encontrados os dados sobre evasão, exceto no Mobral, que documenta a alfabeti-
zação de 1.289 alunos.
Os dados sobre analfabetismo foram mantidos no ano de 1996 e estimados em
55,36% pelo IBGE, em relação a Buíque, quando da implantação das turmas do PAS.
Os levantamentos de dados sobre os alfabetizandos matriculados no PAS evi-
denciaram que a experiência anterior, no processo de escolaridade individual dos entrevista-
dos na avaliação diagnóstica (em cada módulo), ilustrava quantitativos de desistências de fre-
qüência aos cursos regulares do ensino primário, de 1º grau ou fundamental (década de 50 em
diante). O fato foi comprovado pela distribuição dos alunos na composição etária, de 10 anos
a mais de 50 anos, principalmente na zona rural.
Nos anos de 1996 e 1997 a Secretaria Municipal de Educação informou índices
de evasão no ensino fundamental: 10% e 8% na zona urbana, 24,1% e 22,3% na zona rural,
respectivamente. O processo estava caracterizado na 1ª série e séries iniciais da educação bá-
sica.
A evasão dos alunos com a idade cronológica de ingresso no sistema regular de
ensino vai acarretar, para indivíduos de várias gerações, a situação do analfabetismo e, muitas
vezes, da exclusão social.
Portanto, pelo que foi exposto, pôde ser demonstrado que a evasão e a repetên-
cia dos alunos, no ensino fundamental, no período de 1947 a 1997, têm levado aos altos índi-
ces de analfabetismo, em Buíque, em virtude das heranças históricas do coronelismo e do
poder do atraso.
Os efeitos da “ignorância é poder”, herança histórica de muitas gerações do
município, estavam entrelaçados com outros fatores, a saber: escolaridade incipiente dos pro-
fessores para o exercício do magistério; reduzidas possibilidades para uso de leitura e escrita,
principalmente na zona rural; falta de incentivos do ambiente socio-econômico, cultural e fami-
liar; carência de ações das administrações municipais para a situação educacional; inexistên-
cia de oportunidades, em escolas, para formação profissional. Os fatores citados condiciona-
ram o quadro geral apresentado pelo município.

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A implantação do PAS, em Buíque, foi desvelando, gradativamente, as infor-
mações sobre a evolução histórica das diversas levas de gerações buiquenses desde o período
colonial do Brasil. O contato sistemático com a realidade social exibiu problemas de caráter
geográfico, histórico, socioeconômico, político e educacional do município, herdeiro do terri-
tório de uma das maiores sesmarias doadas no século XVII, em Pernambuco, com mais de
100 léguas de extensão.
Essa sesmaria foi criada após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, na
segunda metade do século XVII, doada a Nicolau Aranha Pacheco (e seus familiares) em
compensação pela lealdade política do sertanista no combate aos invasores flamengos.
O interesse dos Aranha nessas terras parece estar fundamentado na lenda da e-
xistência de minas de prata divulgada por sertanistas, desde 1614, nos sertões de Ararobá ou
Campos de Buíque. A lenda foi transcrita em documento histórico descoberto por Abreu
(1885), carta-relatório do coronel Pedro Barbosa Leal ao conde de Sabugosa, Vice-Rei do
Brasil, datada de São Paulo, aos 22 de novembro de 1725. Como afirma Azevedo (1991), as
supostas minas de prata, situadas no “sertão do Panema” e já conhecidas desde 1614, ou an-
tes, “... estariam localizadas nos Campos de Buíque, em terras da futura Sesmaria do Coro-
nel Nicolau Aranha Pacheco”.
A Sesmaria dos Aranha será a origem de vários municípios atuais do Estado de
Pernambuco, das várias fazendas e sítios de Buíque. No período colonial foi centro de atração
de população em busca das minas de prata, de oportunidade de trabalho na mineração do sali-
tre (séculos XVII e XVIII), originando a ocupação gradativa das terras: grandes fazendas,
trabalho sistemático de uma população destituída de propriedade, pobre e dominada.

IV - CONCLUSÃO

A consulta inicial das fontes para o estudo, principalmente as obras de Ramos


(1995) e Azevedo (1991), permitiu, paulatinamente, a confirmação dos fatos históricos quan-
do da comparação com outras fontes existentes, guardadas por professores, instituições pú-
blicas da prefeitura municipal, na igreja de São Félix de Cantalice. A veracidade e autentici-
dade dos documentos, comprovadas por análises da crítica interna e externa, evidenciaram a
originalidade de Buíque no esquecimento e na singularidade. O processo de pesquisa foi efe-
tivado no período de 1997 a 1999 e demonstrou o poder do atraso como herança da evolução

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histórica do município, principalmente do coronelismo, da estrutura fundiária e da história lenta
da questão do analfabetismo.
As condições encontradas, a ruralidade, foram conservadas na evolução histó-
rica do município, na transmissão dos relatos orais das várias gerações de buiquenses, e servi-
ram de base para aproximar alfabetizandos e alfabetizadores nas trocas de experiências dos
relatos de histórias de vida facilitando o processo de alfabetização de jovens e adultos.
Os alfabetizandos de Buíque remanescentes do processo de evasão escolar e da
repetência nos últimos 50 anos, sofreram os problemas da carência de ofertas para as deman-
das educacionais, foram impedidos de estudar pelas condições socioeconômicas do grupo
familiar, vinculados desde cedo às necessidades de força de trabalho nas propriedades do
mundo rural. O fenômeno provocou a situação dos altos índices de analfabetismo absoluto e
funcional, ilustrado nas avaliações diagnósticas dos alfabetizandos, Módulos 1 a 6, do PAS.
As publicações do governo de Pernambuco sobre a questão comprovam, historicamente, os
efeitos das ações do poder do atraso atuando na realidade social de Buíque. A manutenção da
tradição, representada pelas heranças do coronelismo, das condições da estrutura social e eco-
nômica, do conformismo em relação ao fenômeno da seca, vem impedindo as ações de com-
bate ao analfabetismo por vários períodos das administrações municipais.
A caracterização dos alfabetizandos, exibindo, no período de 1997 a 1999,
mais de 70% dos alunos com experiência anterior entre os que tinham de 10 anos até 50 anos
ou mais comprova o abandono dos bancos escolares na idade cronológica prevista para o iní-
cio dos cursos (primário, de 1º grau ou fundamental) em várias gerações de buiquenses. Os
depoimentos dos entrevistados mencionavam causas relacionadas às dificuldades de acesso às
escolas, à impossibilidade de continuidade de estudos por pressão familiar, principalmente na
zona rural.
O caso de Buíque está inserido no quadro geral da evasão nos sistemas de ensi-
no, municipal e estadual, nas séries iniciais de ensino fundamental, na educação básica, no
passado e no presente.
Na pesquisa realizada ficou documentado, nos níveis local e nacional, a impor-
tância dos professores e dos alfabetizadores no processo de ensino e de orientação da apren-
dizagem dos alunos, da incorporação de grupos e culturas ao núcleo cultural comum de
uma nação. A formação e a atuação dos atores, junto a diversas gerações, têm institucionali-
zado múltiplas formas pelas quais a história e a dinâmica social são construídas pelos diferen-
tes grupos sociais e culturais.

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A heterogeneidade das ações docentes, das instituições educacionais de formação
dos professores, das tendências pedagógicas adotadas, dos currículos planejados em projetos
pedagógicos, dos sistemas de avaliação do rendimento escolar ainda está contribuindo para a
manutenção da tradição ou desencadeando a renovação na questão do analfabetismo absoluto
ou funcional, no Brasil.

V - BIBLIOGRÁFIA

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