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I

JAMES D. WATSON com Andrew Berry

DNAA
O segredo da vida

Tradução

Carlos Afonso Malferrari


Copyright © 2003 by DNA Show LLC Publicado originalmente nos Estados Unidos e no Canadá. Tradução publicada mediante acordo com Alfred A.
Knopf, uma divisão da Random Housç, Inc.

Título original

dna: the secret of life

Capa

Baseada no projeto original de Gabriele Wilson

Foto de capa

Will & Deni Mclntyre / Photoresearcher (dna)

e John R. Bracegirdle / Getty Images (abelha)

Preparação Leny Cordeiro

Revisão

Felice Morabito

Agnaldo Alves

índice remissivo

Maria Cláudia Carvalho Mattos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Watson, James D., 1928-

dna : o segredo da vida / James D. Watson com Andrew Berry ; tradução Carlos Afonso Malferrari. — São Paulo : Companhia das Letras, 2005.

Título original: dna : the secret of life

Bibliografia.

ISBN 85-359-0716-5

1. Biologia molecular - História 2. dna - Obras de divulgação 3. Engenharia genética - História 4. Genérica - Obras de divulgação I. Berry, Andrew. n.Tírulo.

índice para catálogo sistemático:


1. dna : Ciências da vida 572.86

[2005]

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32


04532-002 — São Paulo — sp

Telefone (11) 3707 3500 Fax (11) 3707 3501 www.companhiadasletras.com.br

Para Francis Crick


Sumário

Nota dos autores 9

Introdução: O segredo da vida 11

1. Os primórdios da genética: De Mendel a Hitler 15

2. A dupla-hélice: A vida é isto 47

3. A leitura do código: Como o dna se torna vida 75

4. Bancando Deus: Moléculas de dna personalizadas 100

5. dna, dólares e drogas: Biotecnologia 127

6. Tempestade numa caixa de cereais: A agricultura transgênica 151

7. O genoma humano: O roteiro da vida 182

8. Leitura de genomas: A evolução em marcha 214

9. A descendência da África: O dna e o passado do homem 249

10. Identificação genômica: O dna forense 283

11. Caçadores de genes: A genética das doenças humanas 316

12. A nova luta da medicina: Tratamento e prevenção de doenças

genéticas 347

13. Quem somos? Herança vs. ambiente 386

Coda: Nossos genes e nosso futuro 423

Notas 435

Leitura adicional 443

Agradecimentos 449

Créditos das ilustrações 451

índice remissivo 453


1953: Francis Crick (à direita) e eu junto ao nosso modelo da dupla élice.

Nota dos autores

dna: o segredo da vida foi concebido durante um jantar em 1999. Estávamos discutindo como
melhor marcar o qüinquagésimo aniversário da descoberta da dupla-hélice. O editor Neil Patterson
juntou-se a um de nós, James D. Watson, para idealizar um projeto multifacetado que incluiria este
livro, uma série para televisão e outros projetos de cunho mais ostensivamente didático. A presença
de Neil não foi acidental: em 1965, ele publicara o primeiro livro de Watson, The molecular biology
of the gene, e desde então tem pairado como um anjo tutelar por sobre os projetos literários de
Watson. Doron Weber, da Fundação Alfred P. Sloan, garantiu a verba inicial para transformar a idéia
em algo mais concreto. Andrew Berry foi convocado em 2000 para produzir um esboço detalhado
para uma série de tv e, desde então, não parou mais de viajar entre seu QG em Cambridge,
Massachusetts, e o laboratório Cold Spring Harbor, de James Watson, no litoral norte de Long
Island, perto de Nova York.

Desde o início, nosso objetivo era ir além de uma mera narrativa dos eventos dos últimos cinqüenta
anos. O dna deixou de ser uma molécula esotérica, interessante apenas para um punhado de
cientistas, e tornou-se o cerne de uma tecnologia que está transformando muitos aspectos do modo
como vivemos. Com essa transformação surgiu uma série de perguntas difíceis acerca do seu
impacto — prático, social e ético. Tomando o qüinquagésimo aniversário como uma oportunidade
de parar e efetuar um balanço da situação em que nos encontramos, não temos vergonha em
apresentar aqui uma visão estritamente pessoal da história e seus desdobramentos. Além disso,
sendo esta a visão pessoal de James Watson, foi escrita na primeira pessoa do singular. A dupla-
hélice já tinha dez anos de idade quando o dna começou a realizar sua magia in utero num Andrew
Berry ainda em estado fetal.
Procuramos escrever para um público amplo; nossa intenção é que alguém com conhecimento zero
de biologia seja capaz de compreender cada palavra. Todo termo técnico é explicado ao ser
introduzido pela primeira vez. Caso o leitor precise refrescar a memória acerca de algum termo ao
deparar-se com ele mais adiante, basta procurar no índice, onde essas expressões aparecem em
negrito para facilitar sua localização (um número de página em negrito indica o local em que a
palavra é definida). Evidentemente, tivemos de restringir diversos detalhes técnicos; por isso,
recomendamos ao leitor interessado em se aprofundar no assunto que acesse www.dnai.org, dna
Interactive, o site do projeto multimídia que acompanha este livro, destinado a estudantes do
segundo grau e jovens universitários. O site oferece várias animações que explicam os processos
básicos, e um longo arquivo de entrevistas com os cientistas envolvidos. Além disso, a seção
Leitura Adicional indica livros relevantes a cada capítulo. Sempre que possível, evitamos citar
literatura técnica, mas os títulos listados permitem uma exploração mais aprofundada de tópicos
específicos do que a deste volume. Nos Agradecimentos, no final do livro, expressamos nosso
reconhecimento às inúmeras pessoas que de algum modo contribuíram generosamente para este
projeto. Mas quatro indivíduos merecem uma menção especial. George Andreou, nosso editor na
Knopf, dotado de uma paciência sobrenatural e que redigiu mais trechos deste livro — os melhores
— do que gostaríamos de admitir. Kiryn Haslinger, nossa assistente excepcionalmente eficiente no
laboratório Cold Spring Harbor, que adulou, provocou, editou, pesquisou, espicaçou, pormenorizou,
interveio e escreveu — tudo praticamente na mesma proporção. O livro simplesmente não teria
acontecido sem ela. Jan Witkowski, também do laboratório Cold Spring l harbor, realizou um
trabalho extraordinário ao montar os capítulos 10, 11 e 12 em tempo recorde, e ofereceu
indispensáveis conselhos durante todo o projeto. E Maureen Berejka, assistente de Watson, que
prestou um serviço inestimável, como sempre, sendo a única habitante do planeta Terra capaz de
decifrar a letra de Watson.

James D. Watson Cold Spring Harbor, Nova York

Andrew Berry Cambridge, Massachusetts

10

Introdução

O segredo da vida
Como geralmente acontecia aos sábados de manhã, comecei a trabalhar no laboratório Cavendish,
da Universidade de Cambridge, antes de Francis Crickno dia 28 de fevereiro de 1953. Eu tinha bons
motivos para levantar cedo. Sabia que estávamos perto — embora não imaginasse o quanto — de
decifrar a estrutura de uma molécula quase desconhecida na época chamada ácido
desoxirribonucléico (dna). Mas essa não era uma molécula qualquer: o dna, como Crick e eu
estávamos cientes, contém a chave da natureza das coisas vivas, armazenando as informações
hereditárias que são passadas de uma geração a outra e orquestrando o mundo inacreditavelmente
complexo da célula. Se decifrássemos sua estrutura tridimensional, a arquitetura da molécula,
teríamos um vislumbre do que Crick — entre sério e brincalhão — chamava de ”o segredo da vida”.

Já sabíamos que as moléculas de dna consistem em múltiplas cópias de uma única unidade básica, o
nudeotídeo, que ocorre em quatro formas: adenina (a), timina (t), guanina (g) e citosina (c). Eu
passara a tarde anterior preparando recortes de papelão desses diversos componentes e agora, na
calma daquela tranqüila manhã de sábado, podia ficar embaralhando à vontade as peças do quebra-
cabeça tridimensional. Como elas se encaixavam? Logo percebi que um padrão simples de
emparelhamento funcionava excepcionalmente bem: a encaixava-se perfeitamente com t, e g com c.
Seria isso? Será que a molécula consistia em duas cadeias unidas pelos pares a-t e g-c? Era algo tão
simples, tão sucinto, que tinha de estar certo — ou quase. Eu já me equivocara no passado e, antes
de me empolgar demais, essa estrutura de pares teria de passar pelo crivo do olho crítico de Crick.
Foi uma espera ansiosa, mas eu não precisava ter me preocupado. Crick logo percebeu que a minha
idéia de pares implicava uma estrutura de dupla-hélice, com duas cadeias moleculares avançando
em direções opostas. Tudo o que se sabia sobre o dna e suas propriedades — os fatos com os quais
vínhamos nos debatendo ao tentar elucidar o problema — fazia sentido à luz dessas delicadas
guinadas complementares. Mais importante, porém, é que o modo como a molécula se organizava
sugeria de imediato solução para dois dos mistérios mais antigos da biologia: como as informações
hereditárias são armazenadas e como ocorre sua replicação. Apesar disso, a fanfarrice de Crick no
Eagle, o pub onde costumávamos almoçar, declarando que havíamos descoberto ”o segredo da
vida”, pareceu-me um tanto imodesta, ainda mais na Inglaterra, onde a discrição é um estilo de vida.

Crick, no entanto, estava certo. Nossa descoberta pôs fim a uma discussão tão antiga quanto a
espécie humana: será que a vida possui alguma essência mágica ou mística? Ou será que, como
qualquer outra reação química realizada em laboratório, é produto de processos físicos e químicos
normais? Existe algo divino no âmago da célula, que lhe dá vida? A dupla-hélice respondia a essa
última pergunta com um ”não” definitivo.

A teoria da evolução de Charles Darwin, mostrando que todas as formas de vida são inter-
relacionadas, foi um enorme avanço no nosso entendimento do mundo em termos materialistas, isto
é, físico-químicos. As descobertas dos biólogos Theodor Schwann e Louis Pasteur na segunda
metade do século xix também representaram um importante passo adiante. A carne putrefata não
gera vermes espontaneamente; pelo contrário, agentes e processos biológicos conhecidos são
responsáveis — neste caso, moscas que põem ovos. A idéia de geração espontânea foi
desacreditada.

A despeito desse progresso, diversas formas de vitalismo — a crença de que mecanismos físico-
químicos não podem explicar a vida e seus processos — subsistiram. Muitos biólogos, relutando em
aceitar a seleção natural como o único fator determinante do destino das linhagens evolutivas,
invocaram uma indefinida e imprecisa força espiritual para justificar a adaptação. Os físicos, mais
acostumados a lidar com um mundo simples e parcimonioso — algumas poucas partículas, algumas
poucas forças — julgavam desnorteante essa desalinhada complexidade da biologia e sugeriram que
os processos no interior das células, aqueles que regem os fundamentos da vida, talvez fossem além
das leis conhecidas da física e da química.

Por isso a dupla-hélice foi tão importante: trouxe a revolução do pensamento materialista do
Iluminismo para o âmbito da célula. A jornada intelec-
12

tual, que começara com Copérnico retirando os seres humanos do centro do universo e prosseguiu
com Darwin insistindo que os seres humanos são meros macacos modificados, finalmente chegara à
própria essência da vida. Não havia nada de especial nela. A dupla-hélice é uma estrutura sucinta,
mas sua mensagem não poderia ser mais prosaica: a vida é uma simples questão de química.

Crick e eu logo compreendemos o significado intelectual de nossa descoberta, mas não havia
como prever o impacto explosivo da dupla-hélice na ciência e na sociedade. Contida nas curvas
graciosas da molécula estava a chave da biologia molecular, uma nova ciência cujos avanços nos
cinqüenta anos subseqüentes foram espantosos. Ela não só gerou uma gama impressionante de
novas concepções dos processos biológicos fundamentais como vem tendo um impacto cada vez
mais profundo na medicina, na agricultura e no direito. O dna não é mais algo de interesse apenas
para cientistas de avental branco em obscuros laboratórios das universidades; ele afeta todos nós.

Em meados dos anos 1960, já havíamos decifrado a mecânica básica da célula e sabíamos, graças
ao ”código genético”, de que maneira o alfabeto de quatro letras da seqüência de dna se traduzia no
alfabeto de vinte letras das proteínas. O lance seguinte ocorreu na década de 1970, com a introdução
de técnicas para manipular o dna e ler sua seqüência de pares de bases. Não estávamos mais fadados
a observar dos bastidores a natureza; podíamos agora efetivamente intervir no dna dos organismos
vivos e ler a história básica da vida. Novas e extraordinárias perspectivas científicas se abriram:
enfrentar doenças genéticas, da fibrose cística ao câncer; revolucionar a justiça criminal com novos
métodos de identificação genética, determinando a ”impressão digital” mais íntima de cada ser;
revisar a fundo nossas idéias sobre as origens humanas — quem somos e de onde viemos —,
estudando a pré-história sob a nova ótica do dna; e aperfeiçoar espécies agrícolas importantes com
uma eficácia nunca antes sonhada.

Mas o clímax dos primeiros cinqüenta anos da revolução do dna ocorreu em 26 de junho de 2000,
com o anúncio pelo presidente Bill Clinton da conclusão da primeira minuta da seqüência completa
do genoma humano: ”Estamos hoje conhecendo a linguagem com a qual Deus criou vida. De posse
desse profundo conhecimento, a humanidade está no limiar de adquirir um novo e imenso poder de
cura”. O Projeto Genoma Humano foi um rito de passagem da biologia molecular para a
maioridade; ela se tornou uma ”ciência adulta”, com orçamentos e resultados de gente grande. O
projeto foi não só uma extraordi-
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nária façanha tecnológica — a quantidade de informações extraídas do complemento humano de 23
pares de cromossomos é assombrosa — como também um marco notável em nossa noção do que
significa ser homem. É o nosso dna que nos distingue das demais espécies e nos torna as criaturas
criativas, conscientes, dominantes e destrutivas que somos. E lá estava, em toda sua plenitude, tudo
o que o dna é — o manual de instruções da espécie humana.

O dna percorreu uma longa trajetória desde aquela manhã de sábado em Cambridge. Mas é
igualmente claro que a ciência da biologia molecular — o que o dna pode fazer por nós — ainda
tem um longo caminho a percorrer. Resta descobrir a cura do câncer; terapias gênicas eficazes para
doenças genéticas ainda estão por ser desenvolvidas; à engenharia genética ainda cabe compreender
suas extraordinárias possibilidades de melhorar nossos alimentos. Mas tudo isso acontecerá no
devido tempo. Os primeiros cinqüenta anos da revolução do dna testemunharam um enorme
progresso científico e também as primeiras aplicações desse progresso a problemas humanos. O
futuro verá muitos outros avanços científicos, mas, cada vez mais, o foco será o impacto crescente
do dna em nossa maneira de viver.

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1. Os primórdios da genética: De Mendel a Hitler


Minha mãe, Bonnie Jean, acreditava em genes. Ela se orgulhava das origens escocesas de seu pai e
via nele as tradicionais virtudes escocesas de honestidade, trabalho e frugalidade. Também ela
possuía essas qualidades e sentia que haviam sido transmitidas por ele. A morte trágica e prematura
de meu avô significou que o único legado não-genético que deixou a minha mãe foi um conjunto de
pequenos kilts femininos que ele encomendara em Glasgow. Não chega a surpreender, pois, que ela
valorizasse a herança biológica de seu pai mais que seu espólio material.

Desde que me lembro, eu tinha discussões infindáveis com minha mãe sobre os papéis relativos da
herança [nature] e do ambiente [nurture] em nossa formação. Ao defender a preponderância dos
aspectos adquiridos sobre os

Acima: A chave do triunfo de Mendel: variações genéticas em ervilhas.

15
5i Eu, aos onze anos de idade, com minha | irmã Elizabeth e meu pai, James.

inatos, eu na realidade assumia a convicção de que podemos nos tornar aquilo que queremos ser. Eu
não queria aceitar que meus genes tivessem muita importância, preferindo atribuir a obesidade da
vovó Watson ao fato de ela haver comido demais. Se a constituição dela fosse um produto de seus
genes, então eu também poderia vir a ser um futuro rechonchudo. Por outro lado, mesmo na
adolescência, eu não contestava os fundamentos básicos evidentes da hereditariedade, a saber, que
semelhantes geram semelhantes. As discussões com minha mãe eram sobre questões mais
complexas, como os vários aspectos da personalidade, e não sobre atributos simples que mesmo um
jovem obstinado como eu podia ver que eram transmitidos de geração a geração, resultando na
”semelhança entre parentes”. Meu nariz é o de minha mãe e agora pertence também a meu filho
Duncan.

Às vezes, as características surgem e desaparecem em poucas gerações; outras vezes, porém,


persistem por muito tempo. Um dos exemplos mais famosos de traços duradouros é o chamado
”lábio dos Habsburgo”. O prognatismo mandibular e a languidez do lábio inferior dessa família
foram transmitidos intactos ao longo de no mínimo 23 gerações, e tornaram os monarcas da Casa de
Habsburgo um verdadeiro pesadelo para gerações e gerações de retratistas cortesãos.

Os Habsburgo contribuíram para o seu próprio infortúnio genético casando-se entre si. Os
casamentos arranjados entre os diferentes ramos do clã dos Habsburgo — e, muitas vezes, entre
parentes próximos — podiam fazer sentido político, pois estabeleciam alianças e asseguravam a
sucessão dinástica, mas eram uma insensatez em termos genéticos. Esse tipo de endogamia pode
resultar em doenças genéticas, como os Habsburgo viriam a descobrir a duras penas.
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Carlos ii o último monarca Habsburgo na Espanha, não só ostentava um exemplo triunfal do lábio
familiar (ele não era sequer capaz de mastigar sua própria comida) como era também totalmente
inválido — e, apesar de casar-se duas vezes, foi incapaz de gerar filhos.

As doenças genéticas assolam a humanidade desde longa data. Em alguns casos, como o de Carlos
II, tiveram um impacto direto na história. Diagnósticos retrospectivos sugerem que Jorge III, o rei
inglês cuja principal façanha é o fato de haver perdido as colônias americanas na revolução de
1776, sofria de um mal hereditário — porfiria — que provoca acessos periódicos de loucura. Certos
historiadores, em particular os britânicos, argumentam que foi a obsessão provocada pela doença de
Jorge III que permitiu aos futuros americanos um sucesso militar contra todas as expectativas.
Embora a maioria das doenças hereditárias não tenha esse tipo de impacto geopolítico, as
conseqüências são brutais e freqüentemente trágicas para as famílias afetadas, prolongando-se
muitas vezes por várias gerações. Entender a genética significa não apenas entender por que somos
parecidos
com nossos pais, mas também diz respeito a enfrentar alguns dos mais antigos inimigos da
humanidade: as falhas em nossos genes que causam doenças genéticas.

Nossos antepassados devem ter começado a se indagar sobre os mecanismos da hereditariedade tão
logo a evolução os dotou com cérebros capazes de formular o tipo certo de pergunta. Um princípio
que salta aos olhos — parentes próximos tendem a ser parecidos entre si — pode ser extremamente
instrutivo se, como nossos ancestrais, nosso interesse por genética aplicada limitar-se a questões
práticas, tais como melhorar animais domesticados (para, digamos, aumentar a produção de leite
das vacas) ou plantas (para obter frutos maiores, por exemplo). Gerações de meticulosa seleção —
de reprodução controlada para, inicialmente, domesticar as espécies apropriadas e, em seguida, para
criar apenas as vacas mais produtivas ou as árvores com os maiores frutos — resultaram em animais
e plantas feitos sob medida para propósitos humanos. Subjacente a esse enorme esforço, do qual
não temos registro algum, está uma regra empírica elementar: as vacas mais produtivas irão gerar a
prole mais produtiva e das sementes de árvores com os maiores frutos irão germinar árvores de
frutos grandes. Portanto, a despeito dos avanços extraordinários dos últimos cento e poucos anos, os
séculos xx e xxi não detêm, de modo algum, o monopólio do
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entendimento genético. Embora somente em 1909 o biólogo britânico WiUiam Bateson tenha dado um nome
— genética — à ciência da hereditariedade e embora a revolução do Dna tenha descortinado um novo e
surpreendente panorama do progresso possível, na realidade a maior aplicação da genética ao bem estar
humano ocorreu milênios atrás e foi obra de agricultores anônimos desse passado longínquo. Quase tudo o
que comemos — cereais, frutas, carne, laticínios — é um legado dessa primeira e mais radical aplicação de
manipulações genéticas a problemas humanos.

Mas entender o mecanismo efetivo da genética revelou-se uma tarefa bem mais árdua. Gregor Mendel (1822-
1884) publicou seu famoso estudo em 1866, que permaneceu ignorado pela comunidade científica por mais
34 anos. Por que tanto tempo? Afinal, a hereditariedade é um dos aspectos mais relevantes do mundo natural
e, talvez mais importante, é algo fácil e universalmente observável: o dono de um cão logo vê o que acontece
com o cruzamento de um cachorro marrom e um preto, e todo pai e toda mãe, consciente ou
inconscientemente, percebem o aparecimento de suas próprias características nos filhos. Um motivo básico é
que, na verdade, os mecanismos genéticos acabam se revelando complexos. A solução de Mendel para o
problema não é intuitiva nem óbvia: afinal, as crianças não são uma simples mistura das características de
seus genitores. Mais importante, no entanto, é que os primeiros biólogos talvez não tenham conseguido
distinguir dois processos fundamentalmente diferentes: hereditariedade e desenvolvimento. Hoje sabemos que
um ovo fertilizado contém informações genéticas e que essas informações, provenientes de ambos os
genitores, determinarão se alguém sofrerá ou não de porfiria, por exemplo. Isso é hereditariedade. O processo
subseqüente, o desenvolvimento de um novo indivíduo a partir desse ponto de partida singelo — uma única
célula, o ovo fertilizado -, diz respeito à implementação dessas informações. Como disciplinas acadêmicas,
dizemos que a genética está voltada para as informações e a biologia do desenvolvimento se atem ao uso
dessas informações. Os antigos cientistas, que viam a hereditariedade e o desenvolvimento como um único
fenômeno, não tinham como fazer as perguntas que talvez os tivessem direcionado ao segredo da
hereditariedade. Seja como for, essa manipulação genética é algo que se tem empreendido de alguma forma
desde a aurora da história ocidental.

Os gregos, Hipócrates entre eles, refletiram sobre a hereditariedade e conceberam uma teoria de ”pangênese”,
segundo a qual a atividade sexual implica-

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va a transferência de miniaturas dos órgãos do corpo: ”Pêlos, unhas, veias, artérias tendões e ossos, ainda que
invisíveis, pois suas partículas são diminutas, vão crescendo e pouco a pouco se separando umas das outras”.
Essa idéia gozou de um breve renascimento quando Charles Darwin, ansioso para dar respaldo à sua teoria da
evolução por seleção natural com alguma
hipótese viável de hereditariedade, lançou uma versão modificada de pangênese na segunda metade do século
xix. Na concepção de Darwin, cada órgão — olhos, rins, ossos — produziria ”gêmulas” que se acumulariam
nos órgãos sexuais e seriam transmitidas no curso da reprodução sexuada. Como, em tese, essas gêmulas eram
produzidas ao longo de toda a vida de um organismo, Darwin argumentou que qualquer mudança ocorrida no
indivíduo após o nascimento — como o longo pescoço da girafa, que decorreria do fato de se esticar para
alcançar as folhas mais altas — poderia ser transmitida para a geração seguinte. É irônico que, a fim de
escorar sua teoria de seleção natural, Darwin tenha

defendido aspectos da teoria da hereditariedade de caracteres adquiridos de Jean-Baptiste Lamarck—a


mesma teoria que as idéias evolucionistas tanto fizeram para desacreditar. Darwin, contudo, recorreu
unicamente à teoria da hereditariedade de ”Ihry Lamarck; ele continuou acreditando que a seleção natural
era a força motriz da evolução, mas supôs que a seleção natural agisse sobre variações produzidas
por pangênese. Se Darwin tivesse conhecido o trabalho de Mendel (embora Mendel tenha publicado seus
resultados pouco depois do lançamento de A origem das espécies, Darwin não chegou a tomar ciência deles),
poderia ter se poupado o embaraço de, no final de sua carreira, haver endossado algumas das idéias de
Lamarck. Enquanto a pangênese supõe que os embriões são formados a partir de um conjunto de
componentes microscópicos, uma outra abordagem, o ”pré-formismo”, evita por completo essa etapa de
montagem do indivíduo e postula que o óvulo ou o espermatozóide (não se sabe exatamente qual; a questão
permaneceu sempre polêmica) contém um indivíduo completo pré-formado chamado homúnculo. O
desenvolvimento seria então apenas o crescimento do homúnculo até se tornar

A genética antes de Mendel: um homúnculo, um ser pré-formado em miniatura que se acreditava existir na cabeça do espermatozóde.

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oença genética era

um ser totalmente formado. O que hoje conhecemos como doença genética era interpretado de
diversas maneiras na época do pré-formismo: ora como manifestação da ira de Deus ou de
artimanhas de demônios e diabos, ora como resultado de algum excesso ou escassez na ”semente”
paterna, ora como resultado dos ”maus pensamentos” da mãe durante a gravidez. Com base na
premissa de que frustrar os desejos de uma grávida, deixando-a estressada e frustrada, pode levar à
malformação do feto, Napoleão promulgou um decreto inocentando gestantes que efetuassem
pequenos furtos em
lojas. Nenhuma dessas noções, desnecessário dizer, contribuiu para promover nosso entendimento
das doenças genéticas.

No início do século xix, o surgimento de microscópios mais aperfeiçoados desbancou o pré-


formismo. Por mais que olhemos, jamais veremos um minúsculo homúnculo retorcido dentro do
espermatozóide ou do óvulo. A pangênese, embora mais antiga, foi um equívoco que perdurou, pois
persistiu a argumentação de que as gêmulas eram simplesmente pequenas demais para ser
visualizadas. Mas, é claro, foi enfim descartada por August Weismann, que afirmou que a
hereditariedade dependia da continuidade do germoplasma de geração a geração e, portanto, que as
mudanças em um corpo ao longo da vida de um indivíduo não poderiam ser transmitidas a gerações
subseqüentes. Seu experimento, bastante simples, consistiu em cortar o rabo de algumas gerações
de ratos. De acordo com a pangênese darwiniana, os ratos sem cauda deveriam produzir gêmulas
que sinalizassem ”ausência de rabo”, de tal modo que sua prole desenvolveria um coto bastante
atrofiado ou mesmo nenhum apêndice. Quandd Weismann demonstrou que o rabo continuava
reaparecendo após várias gerações de ratos mutilados, a pangênese ruiu por terra.

O mecanismo só seria compreendido por Gregor Mendel — que, sob qualquer critério, era um
candidato improvável ao estrelato científico. Mendel nasceu numa família de fazendeiros, na atual
República Tcheca, e sobressaiu-se nos estudos na escola do seu vilarejo. Aos 21 anos, entrou para o
mosteiro agostiniano de Brünn. Depois de revelar-se um desastre como pároco — sua reação ao
sacerdócio foi um colapso nervoso —, tentou lecionar. Segundo todos os relatos, foi um bom
professor, mas, a fim de qualificar-se para ensinar um currículo completo, precisava prestar um
exame, no qual não foi aprovado. Seu
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superior, o abade Napp, despachou-o então para a Universidade de Viena, onde deveria se preparar
em tempo integral para prestar novamente o exame. Apesar de aparentemente ter se saído bem em
física, Mendel foi mais uma vez reprovado e desse modo, nunca ascendeu acima do posto de
professor substituto.

Por volta de 1856, seguindo uma sugestão do abade Napp, realizou alguns experimentos científicos
sobre hereditariedade. Ele decidira estudar certas características das ervilhas que cultivava em seu
próprio
canteiro no jardim do mosteiro. Em 1865, proferiu duas palestras na sociedade de história natural
local, quando apresentou seus resultados, e, um ano depois, publicou suas conclusões no periódico
da sociedade. Seu trabalho foi um verdadeiro tour de force, com experimentos concebidos de
maneira brilhante e executados com esmero, e uma análise sagaz e profunda dos resultados. Talvez
seu conhecimento de física tenha contribuído para suas descobertas, pois, ao contrário de outros
biólogos de seu tempo, Mendel abordou o problema sob uma ótica quantitativa. Em vez de
simplesmente constatar que o cruzamento de flores vermelhas e brancas resulta em alguns
descendentes brancos e outros vermelhos, Mendel efetuou uma contagem rigorosa, intuindo que a
proporção entre flores vermelhas e brancas talvez fosse importante — como de fato é. Apesar de ter
enviado cópias de seu trabalho para diversos cientistas eminentes, permaneceu totalmente ignorado
pela comunidade científica. Uma das tentativas de atrair atenção para seus resultados saiu pela
culatra. Escreveu para o único contato que tinha entre os principais cientistas da época, o botânico
Karl Nágeli, de Munique, pedindolhe que reproduzisse os experimentos. Para tanto, enviou 140
envelopes cuidadosamente etiquetados de sementes. Mas não precisaria ter se dado ao trabalho.
Nageli acreditava que esse monge obscuro deveria estar a seu serviço, não o contrário, e enviou a
Mendel sementes de sua planta favorita, Hiemcium, uma variedade de chicória, desafiando o monge
a reproduzir seus resultados com uma espécie diferente. Lamentavelmente, por uma série de
motivos, essa não é uma planta apropriada para o tipo de cruzamento que Mendel realizara com
ervilhas. A tentativa foi um total desperdício de tempo.

A discreta existência de Mendel como monge-professor-pesquisador chegou subitamente ao fim em


1868, com a morte de Napp e sua eleição para abade do mosteiro. Embora continuasse suas
pesquisas — com abelhas e meteorologia, em especial —, as responsabilidades administrativas
eram um fardo pesado, ainda mais que o mosteiro se envolveu num imbróglio acerca de impôs-
tos em aberto. Mas outros fatores também o prejudicaram como cientista. Sua corpulência acabou
por impedi-lo de realizar trabalhos de campo: como escreveu, subir e descer morros tornara-se
”dificílimo para mim num mundo regido pela gravitação universal”. Seus médicos receitaram
tabaco para controlar o peso e ele os atendeu fumando vinte charutos por dia, tantos quanto Wínston
Churchill. Mas não foram os pulmões que falharam: em 1884, aos 61 anos, Mendel sucumbiu a uma
combinação de doença renal e cardíaca.

Não só os resultados de suas pesquisas permaneceram enterrados num periódico obscuro como
teriam sido ininteligíveis para a maioria dos cientistas da época. Mendel estava muito à frente do
seu tempo com sua combinação de experimentação meticulosa e análise quantitativa sofisticada.
Não é de admirar, portanto, que somente em 1900 a comunidade científica o tenha alcançado. A
redescoberta do trabalho de Mendel por três geneticistas botânicos interessados em problemas
similares provocou uma revolução na biologia. O mundo científico estava enfim pronto para as
ervilhas do monge.

Mendel percebeu que existem fatores específicos — mais tarde denominados ”genes” — que são
transmitidos pelos pais à prole. Constatou que esses fatores ocorrem em pares e que os descendentes
recebem um de cada genitor. Como existem ervilhas de duas cores distintas — verdes e amarelas
—, ele deduziu que também existem dois fatores, ou duas versões, do gene responsável pela cor da
vagem. Uma ervilha precisa ter duas cópias da versão ”v” para tornar-se verde; nesse caso, dizemos
que o gene que condiciona sua cor é ”w” e, portanto, deve ter recebido um gene ”v” de cada um
dos genitores. As ervilhas amarelas, por sua vez, resultam tanto de combinações ”aa” como de
”av”. Basta apenas uma cópia da versão ”a” para produzir ervilhas amarelas, ”a” prevalece sobre
”v”. Como na situação ”av” o sinal ”a” predomina sobre o sinal ”v”, dizemos que ”a” é
dominante. A versão subordinada do gene de cor ”v” é dita recessiva.

Cada planta genitora possui duas cópias do gene que condiciona a cor da ervilha, mas só
contribuirá com uma cópia para cada descendente — a outra será fornecida pela outra planta
genitora. Nas plantas, os grânulos de pólen contêm células espermáticas — a contribuição
masculina à geração seguinte — e cada célula espermática contém apenas uma cópia do gene
condicionante da

O cromossomo X humano,

visto por um microscópio eletrônico.

22

cor. Uma planta-mãe de ervilha com uma combinação ”av” produzirá sementes que contêm uma
versão ”a” ou uma versão ”v”. Mendel descobriu que esse processo é aleatório: 50% das sementes
produzidas por essa planta terão o fator ”a” e 50% terão o fator ”v”.

Da noite para o dia, muitos mistérios da hereditariedade passaram a fazer sentido. Características
transmitidas de geração a geração com um alto grau de probabilidade (50%, para ser mais exato)
são dominantes, como acontecia
com o ”lábio dos Habsburgo”. Outras características que surgem mais esporadicamente numa
árvore genealógica, muitas vezes pulando uma ou mais gerações, podem ser recessivas. Se um gene
é recessivo, o indivíduo precisa ter duas cópias para que o traço correspondente seja manifesto.
Aqueles que tiverem apenas uma cópia do gene serão portadores, isto é, eles próprios não
apresentarão a característica mas serão capaz de transmitir o gene adiante. O albinismo (a condição
em que o corpo não consegue produzir pigmento, de tal modo que a pele e o cabelo são
drasticamente brancos) é um exemplo de característica recessiva transmitida dessa maneira. Ou
seja, para alguém ser albino, precisa portar duas cópias do gene, uma de cada genitor. (Foi o caso do
reverendo Wüliam Archibald Spooner — o qual, talvez por mera coincidência, também era
propenso a uma forma peculiar de confusão lingüística, batizada de spoonerismo em sua
homenagem, e que consiste em trocar as sílabas de duas ou mais palavras, como ”bola de gude” por
”gula de bode”.) Mas nossos pais não precisam ter manifestado nenhum sinal desse gene. Se cada
um possui apenas uma cópia, como costuma acontecer, então, embora ambos sejam portadores, o
traço pulou no mínimo essa geração.

Os resultados de Mendel indicavam que coisas — objetos materiais — eram transmitidas de


geração a geração. Qual seria a natureza dessas coisas?

Por volta da época da morte de Mendel, em 1884, os cientistas, usando recursos ópticos cada vez
melhores para estudar a arquitetura diminuta das célu-
23
Ias, cunharam o termo ”cromossomo” para descrever os corpos finos e compridos existentes no
núcleo celular. Mas somente em 1902 alguém associaria Mendel aos cromossomos.

Um estudante de medicina da Universidade Columbia, Walter Sutton, percebeu que os


cromossomos tinham muito em comum com os misteriosos ”fatores” de Mendel. Ao estudar os
cromossomos de gafanhotos, percebeu que quase todos eram duplos — como os fatores
emparelhados de Mendel. Mas Sutton também identificou um tipo de célula em que os
cromossomos não apareciam aos pares: as células sexuais. O espermatozóide do gafanhoto possui
apenas um conjunto de cromossomos, não dois. Isso era idêntico ao que Mendel observara nas
células espermáticas das ervilhas, que também só portavam uma cópia de cada um dos fatores.
Estava claro que os fatores de Mendel, agora denominados genes, tinham de estar nos
cromossomos.

Na Alemanha, por vias independentes, Theodor Boveri chegou às mesmas conclusões que Sutton, e
a revolução biológica que o trabalho de ambos precipitou veio a ser conhecida como teoria
cromossômica da hereditariedade de Sutton-Boveri. De repente, os genes se tornaram algo muito
real: estavam nos cromossomos, que podiam ser vistos ao microscópio.

Nem todos aceitaram a teoria de Sutton-Boveri. Um dos que manifestaram ceticismo foi Thomas
Hunt Morgan, também da Columbia. Ao examinar no microscópio os delgados cromossomos, não
viu como poderiam explicar todas as mudanças que ocorrem de uma geração para outra. Se todos os
genes se organizam em torno dos cromossomos e se todos os cromossomos são transmitidos
intactos de uma geração à seguinte, então certamente muitas características seriam herdadas juntas.
Todavia, os dados empíricos mostravam que isso não ocorria, de modo que a teoria cromossômica
parecia insuficiente para explicar a variação observada na natureza. Sendo um experimentalista
sagaz, Morgan teve uma idéia de como resolver tais discrepâncias. Ele se voltou para a mosca-das-
frutas, Drosophila melanogaster, um insetozinho prosaico que, desde Morgan, tem sido a menina-
dos-olhos dos geneticistas.

Na realidade, Morgan não foi o primeiro a usar a mosca-das-frutas para estudar cruzamentos; essa
distinção pertence ao laboratório da Harvard, que pôs a mosquinha para trabalhar em 1901, embora
tenha sido Morgan que a
24

Célebre por evitar câmeras, T. H. Morgan foi

secretamente fotografado enquanto

trabalhava na ”sala das moscas”.

trouxe para o tablado da ciência. As drosófilas são uma boa escolha para experimentos genéticos.
São fáceis de achar (é só olhar para um cacho de bananas maduras durante o verão), fáceis de criar
(elas se alimentam de banana) e centenas delas podem ser acomodadas numa garrafa de vidro. (Os
alunos de Morgan não tinham dificuldade para achar garrafas, pois saíam de madrugada para
surrupiar garrafas de leite deixadas na soleira das portas da sua vizinhança
em Manhattan.) Além disso, elas se reproduzem e se reproduzem e se reproduzem (uma geração
completa leva cerca de dez dias, sendo que cada fêmea põe várias centenas de ovos). Em 1907, num
laboratório sórdido, infestado de baratas e fedendo a banana que viria a ser conhecido como ”sala
das moscas”, Morgan e seus alunos (os ”garotos de Morgan”, como eram chamados) puseram-se a
trabalhar com as moscas-das-frutas.

Ao contrário de Mendel, que pôde contar com linhagens variantes isoladas ao longo dos anos por
agricultores e jardineiros — ervilhas amarelas em oposição a verdes, cascas enrugadas em oposição
a cascas lisas —, Morgan não dispunha de um menu das diferenças genéticas estabelecidas nas
moscas-das-frutas. E não é possível trabalhar em genética enquanto não se isolarem algumas
características distintas que possam ser acompanhadas de geração a geração. Portanto, a primeira
meta de Morgan foi encontrar ”mutantes”, o equivalente entre as moscas-das-frutas às ervilhas
amarelas ou rugosas. Ou seja, ele buscou alguma novidade genética, alguma variação aleatória que,
de algum modo, houvesse simplesmente surgido numa população.

25
Um dos primeiros mutantes observados por Morgan revelou-se um dos mais instrutivos. Conquanto
as moscas-das-frutas normais tenham olhos vermelhos, esses mutantes tinham olhos brancos. Além
disso, essas moscas de olhos brancos eram, via de regra, machos. Já se sabia que os cromossomos
determinam o sexo das moscas-das-frutas (e, é claro, também dos seres humanos): as fêmeas têm
duas cópias do cro X HjHI» mossomo x, ao passo que os machos têm uma cópia do x e

/ B”*”” uma cópia do cromossomo y, cujo comprimento é bem s*f V Bt menor. Â luz de tais
informações, os olhos brancos subita-
mente fizeram sentido: o gene da cor do olho está localiza-

do no cromossomo x e a mutação do olho branco, B, é recessiva. Como os machos só têm um


cromossomo x, até mesmo os genes recessivos manifestam-se automaticamente na ausência de um
gene equivalente dominante que os suprima. Fêmeas de olho branco eram relativamente raras
porque, normalmente, tendo apenas uma cópia de b [branco], elas manifestam a cor de olho
dominante: vermelho. Assim, a despeito de suas reservas iniciais, ao correlacionar um gene
(o responsável pela cor dos olhos) a um cromossomo N./8HH» (o x), Morgan comprovou para
todos os efeitos a teoria de Sutton-Boveri. E também encontrou um exemplo de vinculação ao sexo
[sex-linkage, ou herança ligada ao sexo], pela qual uma determinada característica está
desproporcionalmente * representada num dos sexos.

Assim como as moscas-das-frutas de Morgan, a rainha Vitória é outro exemplo famoso de


vinculação ao sexo. Em um de seus cromossomos x, ela possuía um gene mutante de hemofilia, que
provoca problemas na coagulação do sangue e, portanto, o grave risco de sangramento. Como o
gene da hemofilia é recessivo e a sua outra cópia era normal, ela mesma não padecia do mal. Mas
era portadora. Suas filhas também não contraíram a doença; evidentemente, cada uma também
possuía pelo menos uma cópia da versão normal do gene. Mas seus filhos não tiveram a mesma
sorte. Como todos os machos (incluindo os das moscas-das-frutas), eles tinham apenas um
cromossomo x, necessariamente proveniente da mãe (o cromossomo y só poderia provir do príncipe
Albert, marido de Vitória). Como a rainha Vitória tinha uma cópia mutante e uma cópia normal,
cada filho tinha 50% de chance de ter a doença. O príncipe
26

noldo foi o premiado; ele sofria de hemofilia e faleceu aos 31 anos de idade,

ando ate a morte após uma pequena queda. Duas filhas de Vitória, as prin-

Alice e Beatriz, também foram portadoras, tendo herdado o gene mutan-

da mãe, e ambas geraram filhas portadoras e filhos hemofílicos. Alexis, neto

d Alice herdeiro do trono russo, era hemofílico e certamente teria morrido

iovem se os bolcheviques não houvessem feito o serviço primeiro.


As moscas de Morgan tinham outros segredos a revelar. Ao estudarem os genes localizados num
mesmo cromossomo, ele e seus alunos verificaram que, na verdade, os cromossomos se rompem e
voltam a se juntar durante a produção do espermatozóide e do óvulo. Isso significava que as
objeções originais de Morgan à teoria de Sutton-Boveri eram injustificadas: o rompimento e o
reajuntamento — ”recombinação”, no jargão genético moderno — embaralham cópias do gene
entre os dois cromossomos de um par. Isso significa que, por exemplo, a cópia do cromossomo 12
que recebi de minha mãe (a outra, é claro, veio de meu pai) é, na realidade, uma mistura das duas
cópias de seu cromossomo 12, uma das quais ela recebeu de minha avó materna e a outra de meu
avô materno. Seus dois cromossomos 12 recombinaram-se — isto é, intercambiaram material entre
si — durante a produção do óvulo que se transformaria em mim. Assim, o cromossomo 12 que
recebi de minha mãe pode ser visto como um mosaico dos cromossomos 12 de meus avós maternos.
E, é claro, o cromossomo 12 que minha mãe recebeu de minha avó era também um mosaico dos
cromossomos 12 de meus bisavós, e assim por diante.

A recombinação permitiu que Morgan e seus alunos mapeassem as posições de genes específicos
em um dado cromossomo. Recombinação implica o rompimento (e o reajuntamento) de
cromossomos; como os genes estão dispostos como contas ao longo de um colar cromossômico, é
estatisticamente muito mais provável que o rompimento ocorra entre dois genes distantes um do
outro (ou seja, com mais pontos possíveis de ruptura entre si) do que entre dois genes próximos.
Portanto, se constatarmos um alto grau de reordenação ou ”reembaralhamento” [reshuffling] de dois
genes quaisquer num cromossomo, podemos concluir que estão longe um do outro: quanto mais
rara for essa reordenação, maior a probabilidade de os genes estarem próximos. Esse princípio
básico, mas extremamente poderoso, subjaz a todo mapeamento genético, e, portanto, um dos
instrumentos primordiais dos cientistas envolvidos no Projeto Genoma Humano e dos
pesquisadores na vanguarda da batalha contra as doenças gené-

27
ticas foi desenvolvido muitos e muitos anos atrás na imunda e atulhada ”sala das moscas” da
Universidade Columbia. Cada nova manchete na seção de ciências dos jornais anunciando que
”Gene de Algo Foi Localizado” é um tributo ao trabalho pioneiro de Morgan e seus garotos.

A redescoberta do trabalho de Mendel e os avanços científicos decorrentes provocaram um surto de


interesse nas implicações sociais da genética. Enquanto os cientistas se engalfinhavam com os
mecanismos precisos da hereditariedade durante os séculos xvm e xix, aumentava a preocupação
pública com o fardo sobre a sociedade representado pelas ”classes degeneradas”, como viriam a ser
chamadas: os moradores de abrigos, asílos e hospícios. O que fazer com essa gente? Esta
permaneceu uma questão controvertida. Será que deveriam ser tratados de maneira caridosa? (Não,
respondiam aqueles de índole menos caridosa, pois isso só serviria para assegurar que tal gente
nunca iria agir por conta própria e, por conseguinte, permaneceria para sempre dependente das
benesses do Estado ou de instituições privadas.) Ou será que deveriam simplesmente ser ignorados?
(Não, respondiam aqueles de índole caridosa, pois isso apenas perpetuaria a incapacidade desses
infelizes de se libertar das circunstâncias desventuradas em que se encontravam.)

A publicação, em 1859, de A origem das espécies, de Darwin, tornou essas questões mais
prementes. Embora Darwin houvesse cuidadosamente omitido qualquer menção à evolução
humana, temendo que isso só inflamaria uma controvérsia já acalorada, não era preciso nenhum
grande salto da imaginação para aplicar sua idéia de seleção natural aos seres humanos. A seleção
natural é a força que determina o destino de todas as variações genéticas na natureza: mutações
como a que Morgan constatou no gene da cor dos olhos da moscadas-frutas, mas também — talvez
— diferenças na capacidade dos indivíduos de prover sua própria subsistência.

As populações naturais têm um enorme potencial reprodutivo. É o caso, por exemplo, das moscas-
das-frutas, cujo ciclo de geração é de apenas dez dias e cujas fêmeas produzem cerca de trezentos
óvulos (metade dos quais será de fêmeas): se começarmos com um único casal de mosca-das-frutas,
após um mês (i.e., três gerações depois) teremos 150 x 150 x 150 moscas-das-frutas em nossas
mãos — ou seja, mais de 3 milhões de moscas, todas elas provenientes de ape-
28

par e em apenas um mês. Darwin esclareceu a questão referindo-se a a espécie que está no extremo
oposto do espectro reprodutivo:

De todos os animais conhecidos, o elefante, assim se julga, é o que se reproduz mais lentamente.
Fiz alguns cálculos para avaliar qual seria provavelmente o valor mínimo do seu aumento em
número. Pode-se, sem temor de errar, admitir que começa a reproduzir-se na idade de trinta anos, e
que continua até os noventa; nesse intervalo, produz seis filhos, e vive por si
mesmo até a idade de cem anos. Ora, admitindo esses números, em 740 ou 750 anos haveria 19
milhões de elefantes vivos, todos descendentes do primeiro casal*

Esses cálculos pressupõem que todas as mosquinhas-das-frutas e todos os elefantinhos chegarão à


idade adulta. Em teoria, portanto, precisaria haver um suprimento infinitamente grande de água e
comida para sustentar esse gênero de furor reprodutivo. Na realidade, é claro, tais recursos são
limitados e nem todas as mosquinhas e elefantinhos chegam lá. Existe competição entre os
indivíduos de uma mesma espécie por tais recursos. Quem vencerá a luta para obter acesso a água e
alimentos? Darwin insiste que a variação genética implica que alguns indivíduos gozam de
vantagens no que chamou de ”luta pela existência”. Tomando o seu famoso exemplo dos tentilhões
das ilhas Galápagos, indivíduos com vantagens genéticas — tais como o tamanho certo de bico para
comer as sementes mais abundantes — terão mais chances de sobreviver e se reproduzir. Assim,
essa variante genética vantajosa — bico do tamanho certo — tenderá a ser transmitida para a
geração seguinte. Como resultado, a seleção natural enriquece a geração seguinte com a mutação
benéfica, até que, por fim, ao longo de um número suficiente de gerações, todos os membros da
espécie acabam

possuindo essa característica.

Os homens da era vitoriana aplicaram a mesma lógica aos seres humanos. Olharam ao seu redor e
ficaram alarmados com o que viram. A taxa de reprodução da classe média — decente, moral,
trabalhadora — estava muito aquém da reprodução desmedida da classe baixa — suja, imoral,
indolente. Os vitoria-

* Tradução de Joaquim da Mesquita Paul para Lello & Irmão Editores. No original, a citação de Watson alude a cinco
séculos e 15 milhões de elefantes, mas os números mencionados por Darwin são os reproduzidos acima. (N. T.)

29
nos supuseram que as virtudes da decência, moralidade e labor eram transmitidas em família tanto
quanto os vícios da imundície, licenciosidade e preguiça. Logo, tais características deviam ser
hereditárias. Portanto, para os vitorianos, moralidade e imoralidade eram apenas duas dentre as
variantes gênicas de Darwin. E, se a ralé se reproduzia mais do que as classes respeitáveis, então a
proporção de genes ”ruins” estaria aumentando na população humana. A espécie estava condenada!
Pouco a pouco, à medida que o gene da ”imoralidade” se disseminasse, os seres humanos iriam se
tornando mais depravados.

Francis Galton tinha bons motivos para prestar uma atenção especial ao livro de Darwin, pois o
autor era seu primo e amigo. Darwin, cerca de treze anos mais velho, fora seu conselheiro durante a
temporada um tanto tortuosa que passou na faculdade. Mas foi A origem das espécies que inspirou
Galton a iniciar a cruzada social e genética cujas conseqüências acabariam sendo desastrosas. Em
1883, um ano após a morte do primo, Galton daria ao movimento um nome: eugenia.

A eugenia era apenas um dos muitos interesses de Galton. Seus partidários referem-se a ele como
um polímata; seus detratores, como um diletante. Na verdade, ele deixou importantes contribuições
em geografia, antropologia, psicologia, genética, meteorologia, estatística e, por fundamentar a
análise datiloscópica em sólidas bases científicas, em criminologia. Galton nasceu em 1822, filho de
uma próspera família. Sua educação — parte em medicina, parte em matemática — foi, no geral,
uma crônica de expectativas frustradas. A morte do pai, quando ele tinha 21 anos, simultaneamente
libertou-o dos grilhões paternos e rendeu-lhe uma bela herança: o jovem Galton tirou bom proveito
de ambos os fatos. Mas, depois de seis anos inteiros como um bon vivant fiduciário, Galton
resolveu se assentar e tornar-se um membro produtivo da sociedade vitoriana. Ficou conhecido ao
chefiar em 1850-52 uma expedição até uma região pouco conhecida no sudoeste da África. É no
relato de suas explorações que encontramos a primeira manifestação do fio que une todos os seus
múltiplos interesses: sua paixão por contar e medir tudo. Galton só se sentia feliz quando podia
reduzir um fenômeno a uma série de números.

Num posto de missionários, ele se deparou com um espécime notável de esteatopigia — nádegas
extremamente protuberantes, uma condição comum

No século XIX, uma visão exagerada de uma mulher nama.

30

entre as mulheres namas, nativas da região — e percebeu que aquela mulher era naturalmente dotada da
silhueta que estava na moda na Europa. A única diferença era que o visual cobiçado pelas européias custava
caro e exigia grande talento e engenho da parte dos costureiros.

Considero-me um homem de ciência, de modo que estava bastante ansioso para obter medidas precisas
do seu contorno. Mas havia uma dificuldade. Eu não sabia uma só palavra de hotentote [o nome holandês para
o nama] e, portanto, não tinha como explicar àquela senhora o objetivo da minha fita de medir. E não ousaria
pedir a meu ilustre anfitrião missionário que servisse de intérprete. Vi-me, pois, diante de um dilema, ao
observar sua figura, o dom de uma natureza pródiga para uma raça favorecida, que nenhum fabricante de
manteau, por mais crinolina e enchimento que usasse, poderia pretender mais do que arremedar. O objeto de
minha admiração estava em pé sob uma árvore e se voltava para todos os pontos cardeais, como damas que
querem ser admiradas costumam fazer. De repente, meu olhar pousou num sextante e veio-me uma idéia
brilhante. Pus-me a realizar uma série de observações de sua figura, em cada direção, para cima e para baixo,
na transversal, diagonalmente, e fui registrando tudo com cuidado num esboço a fim de não cometer nenhum
erro. Em seguida, atrevi-me a pegar uma trena e medir a distância que nos

31
separava. Assim, de posse tanto do vértice como dos ângulos, calculei os resultados por trigonometria e
logaritmos.

A paixão de Galton pela quantificação levou-o a desenvolver muitos dos princípios fundamentais da
estatística moderna. Foi também autor de algumas observações sagazes. Ele testou, por exemplo, a
eficácia da oração. Sua hipótese de trabalho era que, caso a oração produzisse resultados, aqueles
por quem mais se rezava estariam em posição de vantagem. Para testá-la, estudou a longevidade dos
monarcas britânicos. Todos os domingos, as congregações da Igreja Anglicana que adotam o Livro
de orações habituais [peça-chave da liturgia anglicana, de 1549] suplicavam a Deus: ”Dotai com
abundância o rei/rainha de dons celestiais; concedei-lhe saúde e riqueza e longo viver”. Por certo,
raciocinou Galton, o efeito cumulativo de todas essas orações deveria ser benéfico. Mas logo
constatou que as rezas pareciam ser ineficazes e que, em média, os monarcas morriam até um pouco
mais jovens do que outros membros da aristocracia britânica.

Por causa da sua ligação com Darwin — o avô de ambos, Erasmus Darwin, foi também um dos
gigantes intelectuais de seu tempo —, Galton era particularmente sensível ao modo como certas
linhagens pareciam gerar um número desproporcionalmente grande de pessoas proeminentes e bem-
sucedidas. Em
1869, publicou o que se tornaria o esteio de todas as suas idéias sobre eugenia, um tratado intitulado
Hereditary genius: an inquiry into üs laws and consequences, no qual pretendeu mostrar que o talento, à
maneira de qualquer outro traço genético simples como o lábio dos Habsburgo, também se
transmite em família, mencionando algumas famílias que haviam produzido geração após geração
de juizes. No geral, suas análises não chegam a considerar o efeito do meio ambiente: afinal, o filho
de um juiz proeminente tem uma maior tendência de tornar-se juiz (se não for por nenhum outro
motivo, ao menos em virtude das ligações profissionais de seu pai) do que o filho de um fazendeiro
sem terra. Mas ele não relegou por completo o efeito do meio ambiente e foi o primeiro a referir-se
à dícotomia herança/ambiente, possivelmente numa referência ao irredimível vilão de Shakespeare,
Calibã, ”um demônio, um demônio de nascença em cuja natureza, herdada jamais pôde atuar o
ambiente” [a devil, a bom devil, on whose nature, Nurture can never stick],

Mas, para Galton, os resultados de sua análise não deixaram dúvida:


32

“Não tenho paciência com a hipótese ocasionalmente aventada, e muitas vezes insi-
nuada particularmente em narrativas escritas para ensinar as crianças a se comportarem bem, que os bebês, ao
nascer, são basicamente iguais e que os únicos
agentes que produzem diferenças entre um menino e outro e entre um homem e
outro são a dedicação constante e o esforço moral. É de modo cabal que recuso
qualquer pretensão de igualdade natural.

Como corolário da sua


certeza de que tais traços são determinados geneticamente, Galton argumentava que seria possível
”aprimorar” a estirpe humana mediante a procriação preferencial dos indivíduos dotados e
impedindo os menos dotados de se reproduzir.

É fácil [...] obter por cuidadosa seleção uma raça permanente de cães ou cavalos dotados de
capacidade especial para a corrida, ou para qualquer outra coisa. Seria, pois, bastante exeqüível
produzir, por meio de casamentos judiciosos ao longo de várias gerações consecutivas, uma raça de
homens extremamente dotados.

Galton introduziu o termo eugenia (literalmente, ”de boa origem”) para descrever a aplicação a
seres humanos do princípio básico da propagação agrícola. Com o tempo, eugenia passou a denotar
”evolução humana autocontrolada”: os eugenistas acreditavam que, tomando decisões conscientes
sobre quem deve ou não ter filhos, eles seriam capazes de impedir a erupção da ”crise eugênica”,
precipitada na imaginação vitoriana pela alta taxa de reprodução da ralé inferior associada às
famílias caracteristicamente menores das classes médias superiores.

Hoje em dia, eugenia é uma palavra malvista, associada a racistas e nazistas, e traz à mente uma
fase da história da genética que talvez fosse melhor esquecer. Contudo, é importante reconhecer
que, nos últimos anos do século xix e no início do século xx, ela não era tida como infame; pelo
contrário, muitos viam a eugenia como uma possibilidade genuína para melhorar não apenas a
sociedade como um todo mas também a sorte dos indivíduos dentro da sociedade. A eugenia foi
aclamada com entusiasmo especial por aqueles que hoje designaríamos como ”esquerda liberal”. Os
socialistas fabianistas, que incluíam alguns dos pensadores mais progressistas da época, acorreram a
defender a causa — entre eles,

33
A eugenia, tal como concebida na primeira metade do século XX: uma oportunidade para os seres humanos controlarem seu próprio
destino evolutivo.

George Bernard Shaw, que escreveu: ”Não há mais nenhuma desculpa razoável para nos
recusarmos a enfrentar o fato de que nada, senão uma religião eugênica, pode salvar nossa
civilização”. A eugenia parecia oferecer uma solução para um dos males mais persistentes da
sociedade: aquele segmento da população que é incapaz de subsistir fora, ou sem auxílio, de alguma
instituição.

Se Galton pregava o que veio a ser conhecido como ”eugenia positiva”, incentivando pessoas com
genes superiores a ter filhos, o movimento eugênico americano preferiu voltar-se para a ”eugenia
negativa”, ou seja, impedir as pessoas geneticamente inferiores de procriar. O objetivo de ambos os
programas era basicamente o mesmo — melhorar a linhagem genética humana —, mas as duas
abordagens não poderiam ser mais diferentes.

O enfoque americano de eliminar os genes ruins, em oposição a aumentar a freqüência dos genes
bons, decorreu de alguns estudos influentes de ”degeneração” [degeneration] e ”mente fraca”
feeUemindedness) — dois termos característicos da obsessão do país com a deterioração genética.
Em 1875, Richard Dugdale publicou um relato sobre o clã dos Juke, do norte do estado de Nova
York, que, segundo ele, incluía várias gerações de legítimos canalhas — assassinos, alcoólatras,
estupradores. Ao que parece, o próprio nome ”Juke” significava ”vergonha” na região.

Outro estudo bastante influente foi publicado em 1912 por Henry Goddard, o psicólogo que nos
legou a palavra moron [idiota], sobre o que chamou de ”A Família Kallikak”, a história de duas
linhagens familiares originárias de um único ancestral que, além de gerar uma família legítima,
tivera um filho fora do

34

casamento
enquanto servia no exército durante a revolução americana). O lado ilegítimo
,da linhagem Kallikak, segundo Goddard, era de arrepiar os cabelos, ”uma
estropiada de degenerados”, ao passo que o lado legítimo era composto de
membros respeitáveis e íntegros da comunidade. Para Goddard, esse ”experi-
mento natural em hereditariedade” era um caso exemplar de genes bons versus
genes ruins um ponto de vista refletido até no nome fictício que escolheu
a a família: ”Kallikak” é um híbrido de duas palavras gregas, kalos (belo, de
boa reputação) e kakos (ruim).
Novos e ”rigorosos” métodos para testar o desempenho mental — os primeiros testes de qi, levados
da Europa para os Estados Unidos pelo mesmo Henry Goddard — pareciam confirmar a impressão
geral de que a espécie humana estava deslizando rapidamente ladeira genética abaixo. Naqueles
primeiros momentos dos testes de
inteligência, acreditava-se que inteligência aguçada e mente alerta inevitavelmente implicavam uma
capacidade de absorver grandes quantidades de informações. Desse modo, o tanto de informação
acumulada por uma pessoa se tornava uma espécie de índice do seu qi. Seguindo essa linha de
raciocínio, os primeiros testes de Qi incluíam muitas perguntas de conhecimentos gerais. Eis
algumas de um teste-padrão aplicado a recrutas do exército americano durante a Primeira Guerra:

Escolha uma das quatro:

Wyandotte é um tipo de:

1) cavalo 2) ave 3) gado 4) granito

O ampere é usado para medir:

1) força do vento 2) eletricidade 3) força da água 4) chuva

O número de pernas de um zulu é:


1) duas 2) quatro 3) seis 4) oito

[Respostas: 2, 2, 1]

Cerca de metade dos recrutas do exército americano era reprovada no teste e, portanto, considerada
”de mente fraca”. Esses resultados inflamaram o movi-

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mento eugênico nos Estados Unidos: para americanos preocupados, parecia realmente que o pool
gênico [conjunto de genes] estava cada vez mais transbordante de genes de baixa inteligência.

Os cientistas perceberam que uma política eugênica exigia certo entendimento da ciência genética
subjacente a características como ”mente fraca”. Com a redescoberta do trabalho de Mendel, tudo
indicava que isso seria possível, e esse empreendimento começou em Long Island, por iniciativa de
meus predecessores na direção do laboratório Cold Spring Harbor. Seu nome era Charles
Davenport.

Em 1910, financiado por uma herdeira dos magnatas das ferrovias, Davenport fundou o Eugenics
Record Office [Agência de Registros Eugênicos] em Cold Spring Harbor, cuja missão era coletar
informações genéticas básicas — genealogias — sobre diversos traços, desde epilepsia até
criminalidade. Tornouse o centro nervoso do movimento eugênico dos Estados Unidos. A missão do
laboratório Cold Spring Harbor continua basicamente a mesma: hoje nos esforçamos para estar na
vanguarda da pesquisa genética e Davenport não tinha aspirações menos altivas — só que no seu
tempo a vanguarda era a eugenia. Por outro lado, não resta dúvida de que o programa de pesquisa
lançado por ele tinha falhas graves desde o início e as suas conseqüências, embora não pretendidas,
acabaram sendo horrendas.

Idéias eugênícas permeavam tudo o que Davenport fazia. Por exemplo, ele

A equipe do Eugenics Record Office, fotografada ao lado de membros do laboratório Cold Spring Harbor. Davenport, sentado bem ao
centro, contratava funcionários com base na sua crença de que as mulheres eram geneticamente adequadas à tarefa de coletar
informações genealógicas.

Genética fundamentada: árvore genealógica desenhada por Davenport mostrando como o albinismo é herdado.

não poupou esforços em contratar mulheres como pesquisadoras de campo, pois acreditava que elas
tinham melhor capacidade de observação, além de serem mais jeitosas no
trato social do que os homens. Mas, em conformidade com a meta central da eugenia, a saber,
reduzir o número de genes ruins e aumentar o de genes bons, essas mulheres eram contratadas por
no máximo três anos. Sendo inteligentes e instruídas e, portanto, por definição, possuidoras de
genes bons, não seria apropriado que o Eugenics Record Office as retivesse por muito tempo,
impedindo-as assim de cumprir o seu destino legítimo de formar uma família e transmitir o seu
tesouro gênico.

Davenport aplicou a análise mendeliana às suas genealogias de características humanas. De início,


restringiu a atenção a alguns traços simples — como o albinismo (recessivo) e a doença de
Huntington (dominante) —, cujos modos de transmissão ele identificou corretamente. Após esses
sucessos iniciais, mergulhou no estudo da genética do comportamento humano. Aí foi um vale-
tudo: bastava obter uma genealogia e algumas informações sobre o histórico familiar

36

37
£T~5=5
Genética sem fundamento: árvore genealógica desenhada por Davenport mostrando como a habilidade de construir barcos é herdada.
Ele relegou os efeitos socioambientais: o filho de um construtor de barcos tende a seguir o oficio do pai porque foi criado nesse
ambiente.

(ou seja, qual pessoa na linhagem manifestara a característica em questão) para tirar conclusões
sobre a genética subjacente. Quem folhear seu livro de 1911, Hereâity in relation to eugenics, verá
como era amplo e abrangente seu projeto. Ele apresenta as genealogias de famílias com dons
musicais e literários, e também o de uma ”família com habilidades mecânicas e para a invenção,
particularmente no que se refere à construção de barcos”. (Davenport talvez estivesse rastreando a
transmissão do gene da construção naval.) Ele chega a afirmar a possibilidade de associar tipos
familiares distintos a diferentes sobrenomes. Por exemplo, pessoas com o sobrenome Twinings
teriam as seguintes características: ”ombros largos, cabelos castanhos, nariz proeminente,
temperamento nervoso, írritadiças, não-vingativas, sobrancelhas grossas, veia humorística, senso do
ridículo, amantes da música e de cavalos”.

Esse exercício todo não tem o menor valor. Hoje sabemos que todas as características em questão
são profundamente afetadas por fatores ambientais. Davenport, como Galton, pressupôs, sem
nenhum fundamento razoável, que a herança invariavelmente triunfa sobre o ambiente, que os
traços inatos invariavelmente superam os adquiridos. Além disso, enquanto os traços que Davenport
estudara antes, albinismo e doença de Huntington, tinham uma base genética simples — eram
causados por uma mutação específica
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numérica > nas características comportamentais as bases genéticas
são muito complexas. Tais características podem ser determinadas ao acaso existem
um grande número de genes diferentes, cada um contribuindo com
uma pequenina parcela para o resultado final. Uma situação dessas torna
impossível interpretar dados genealógicos como os compilados por
Daven nport. E não é só isso: as causas genéticas de características mal definidas
” podem variar muito de indivíduo para indivíduo, de
modo que qualquer tentativa de achar um princípio genético geral subjacente
será inócuo.
A despeito do sucesso ou fracasso do programa científico de Davenport, o movimento eugênico já
adquirira ímpeto próprio. Sedes locais da Eugenics Society organizavam competições públicas e
ofereciam prêmios a famílias aparentemente livres da mácula dos genes ruins. Exposições que antes
só exibiam vacas, touros e ovelhas premiadas incluíam agora concursos de ”Os Bebês Mais
Primorosos” e ’As Famílias Mais Aptas” em seus programas. Para todos os efeitos, eram tentativas
de promover a eugenia positiva, incentivando as pessoas certas a ter filhos. A eugenia também era
presença obrigatória no incipiente movimento feminista. As paladinas do controle da natalidade —
Marie Stopes na Grã-Bretanha e, nos Estados Unidos, Margaret
Sanger, fundadora da Planned Parenthood — concebiam o controle da natalidade como
”Grande família” vencedora
do concurso ”As Famílias Mais
Aptas” na Exposição Estadual
do Texas {1925).

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uma forma de eugenia. Sanger resumiu sucintamente sua posição em 1919: ”Mais filhos dos aptos, menos dos
inaptos — esse é o cerne do controle da natalidade”.

Muito mais sinistro foi o desenvolvimento da eugenia negativa, que pretendia impedir que as pessoas
”erradas” tivessem filhos. Em relação a isso, ocorreu um fato divisor de águas em 1889. Um jovem chamado
Clawson procurou um médico penitenciário de Indiana chamado Harry Sharp (um nome mais do que
apropriado [sharp = afiado] em vista da sua predileção pelo bisturi). O problema de Clawson, tal como foi
diagnosticado pelos médicos da época, era a masturbação compulsiva. Ele explicou que se dedicava a isso
com empenho desde os doze anos. A masturbação era vista como parte de uma síndrome geral de degeneração
e Sharp partilhava a opinião convencional do seu tempo (por mais bizarra que possa nos parecer hoje) de que
as deficiências mentais de Clawson — ele não conseguia progredir na escola — eram causadas por sua
compulsão. A solução? Sharp realizou uma vasectomia, um procedimento inventado pouco antes, e sub- ;
seqüentemente afirmaria ter ”curado” Clawson. A conseqüência disso foi que Sharp adquiriu a sua própria
compulsão: realizar vasectomias.
Sharp divulgou o seu sucesso nesse tratamento (do qual, por sinal, só temos ] o relato do próprio Sharp para
confirmar) como prova da eficácia desse tipo de intervenção no tratamento de todos aqueles identificados
como pertencentes ao tipo de Clawson, ou seja, todos os ”degenerados”. A esterilização tinha duas coisas a
seu favor. Primeiro, era capaz de prevenir comportamentos degenerados — como acontecera com
Clawson, de acordo com Sharp. Só isso já faria com que a 1 sociedade poupasse muitos recursos, pois
todos os indivíduos que precisariam 1 ser encarcerados, em prisões ou em hospícios, podiam agora ser
considerados 1 ”seguros” e soltos. Segundo, impediria que tipos como Clawson transmitissem 1 seus
genes inferiores, ou degenerados, às gerações subseqüentes. Sharp acreditava que a esterilização oferecia uma
solução perfeita para a crise eugênica. 1

Sharp era um lobista eficaz e, em 1907, o estado de Indiana promulgou a primeira lei de esterilização
compulsória, autorizando o procedimento em ”cri- minosos, idiotas, estupradores e imbecis” comprovados.
Foi a primeira de muitas: com o tempo, trinta estados americanos chegaram a aprovar legislação similar. Em
1941, cerca de 60 mil pessoas haviam sido esterilizadas nos Estados Unidos, metade delas na Califórnia.
Essas leis, que, em termos práticos, permi- I tiram que o governo estadual decidisse quem podia e quem não
podia ter filhos, i
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testadas nos tribunais. Mas, em 1927, a Suprema Corte ratificou a lei ri da Virgínia, no caso clássico de
Carrie Buck. Oliver Wendell Holmes foi o redator da decisão:

Será melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole d generada pelos crimes
que cometeu ou deixá-la morrer à míngua por sua imbeilidade a sociedade possa impedir os manifestamente
inaptos de perpetuarem a própria espécie [...] Três gerações de imbecis é o suficiente.
A esterilização também foi adotada com convicção fora dos Estados Unidos e não apenas na Alemanha
nazista: a Suíça e os países escandinavos promulgaram leis semelhantes.

Racismo não é algo implícito em eugenia — genes bons, aqueles que os eugenistas buscam promover, podem,
em princípio, pertencer a pessoas de qualquer raça. Porém, a começar por Galton, cujo relato de sua
expedição africana confirmara preconceitos sobre as ”raças inferiores”, os praticantes mais proeminentes da
eugenia tendiam a ser racistas que usavam a teoria eugênica para justificar ”cientificamente” seus pontos de
vista racistas. Henry Goddard, que se tornara célebre com sua família Kallikak, aplicou testes de qi aos
imigrantes que desembarcavam na ilha Ellis, na baía de Nova York, em 1913, e constatou que cerca de 80%
dos futuros americanos poderiam ser registrados como tendo ’ mente fraca”. Nos testes de qi que realizou para
o exército dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra, chegou à mesma conclusão: 45% dos recrutas de
origem estrangeira tinham uma idade mental de menos de oito anos (apenas
21% dos nascidos nos Estados Unidos se enquadravam nessa categoria). O fato de os testes serem distorcidos
— eram, afinal, aplicados em inglês — não parecia ser relevante: os racistas tinham a munição de que
precisavam e a eugenia seria arrolada a serviço de sua causa.

Embora o termo ”supremacista branco” ainda estivesse para ser cunhado, os Estados Unidos já tinham um
bom número deles no início do século xx. Os wasps [White Anglo-Saxon Protestants], tendo Theodore
Roosevelt à frente, temiam que a imigração estivesse corrompendo o paraíso branco, protestante e anglo-
saxão ao qual, no seu modo de ver, os Estados Unidos estavam predesti-

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nados. Em 1916, Madison Grant, um nova-iorquino abastado, amigo tanto de Davenport como de Roosevelt,
publicou The passing of the great race, em que afirmava que os povos nórdicos eram superiores a todos os
outros, incluindo os europeus. A fim de preservar a bela herança genética nórdica dos Estados Unidos, Grant
lançou uma campanha defendendo restrições a todos os imigrantes nãonórdicos e exaltando políticas
eugênicas racistas:

Sob as condições existentes, o método mais prático e auspicioso de aprimorar a raça é através da eliminação
dos elementos menos desejáveis da nação, privandoos do poder de contribuir para gerações futuras. Como os
criadores de animais bem sabem, a cor de um rebanho pode ser modificada pela destruição contínua das
tonalidades inúteis. Isso, é claro, também é verdade em relação a outros caracteres. As ovelhas negras, por
exemplo, foram praticamente obliteradas eliminando-se, geração após geração, todos os animais que
apresentam essa cor.

Apesar das aparências, o livro de Grant não foi uma obra menor de um maluco marginalizado; pelo contrário,
foi um influente best-seller. Traduzido mais tarde para o alemão, agradou bastante aos nazistas — o que não
chega a surpreender. Era um Grant jubiloso que afirmava ter recebido uma carta pessoal de Adolf Hitler
dizendo-lhe que o livro era a sua Bíblia.

Embora menos proeminente que Grant, o mais influente defensor do racismo científico na época foi o braço
direito de Davenport, Harry Laughlin. Filho de um pregador de Iowa, suas especialidades eram pedigrees de
cavalos de corrida e criação de galinhas. Ele supervisionava o trabalho do Eugenics Record Office, mas
mostrou-se mais eficaz como lobista. Em nome da eugenia, promoveu com empenho fanático medidas de
esterilização forçada e restrições à entrada de estrangeiros geneticamente ambíguos (ou seja, de europeus não-
nórdicos). Particularmente importante em termos históricos foi o seu papel como testemunha perita em
audiências do Congresso sobre imigração. Laughlin deu rédeas largas aos seus preconceitos, disfarçou-os
como ”ciência” e, se os dados se mostravam problemáticos, ele os adulterava. Por exemplo, quando descobriu
a contragosto que as crianças judias imigrantes se saíam melhor nas escolas públicas do que as crianças
nativas, Laughlin alterou as categorias com que vinha trabalhando e passou a incluir indiscriminadamente os
judeus nas nações de onde provinham, diluindo assim o seu desempenho superior. Em 1924, a

42.

Racismo científico: inadequação social nos Estados Unidos desmembrada por grupos nacionais (19 . Para Harry LaughUn, a expressão
”inadequação social” é um conceito-ônibus que abrange uma ampa gama de defeitos, desde mente fraca até tuberculose. Com base
naproporção de cada grupo na popu çao os eua, Laughlin calculou uma ”cota” de pessoas internadas para cada um. O diagrama
indica, em termos percentuais, o número de indivíduos internados de cada grupo dividido pela cota desse grupo. Valores
superiores a 100% indicam que o grupo tem mais indivíduos internados do que a média.

aprovação da lei de imigração Johnson-Reed, que restringiu severamente a imigração do sul da Europa e de
outras regiões do mundo, foi saudada como um triunfo por pessoas como Madison Grant. Foi o momento
mais glorioso Harry Laughlin. Alguns anos antes, como vice-presidente, Calvin Coolidge

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gara os americanos indígenas e desprezara a história de imigração dos Estados Unidos declarando
que ”a América tem de permanecer americana”. Agora, como presidente, ele validou seu desejo na
forma de lei.

Assim como Grant, Laughlin tinha seus fãs entre os nazistas, que moldaram algumas de suas leis na
legislação por ele elaborada. Em 1936, aceitou com grande entusiasmo um diploma honorário da
Universidade de Heidelberg, que decidira homenageá-lo como ”o representante visionário da
política racial nos Estados Unidos”. Com o passar do tempo, porém, uma forma de epilepsia tardia
acabou transformando seus últimos anos em algo particularmente irônico e patético: durante toda a
sua vida, ele defendera a esterilização de epilépticos, afirmando que eram geneticamente
degenerados.

Mein kampf, o livro de Hitler, é saturado de cantilenas racistas pseudocientíficas derivadas de


antigas pretensões alemãs de superioridade racial e de alguns dos piores aspectos do movimento
eugênico americano. Hitler escreveu que o Estado ”deve declarar impróprios para reprodução todos
aqueles que, de alguma forma, estejam visivelmente doentes ou que tenham herdado uma doença e,
portanto, possam transmiti-la e manifestá-la”. E também: ”Os que forem física e mentalmente
doentes e indignos não devem perpetuar seu sofrimento no corpo dos filhos”. Pouco depois de
assumirem o poder em 1933, os nazistas aprovaram uma abrangente lei de esterilização — a ”lei
para a prevenção de progênie com defeitos hereditários”, explicitamente baseada no modelo
americano. (Laughlin, cheio de orgulho, publicou uma tradução da lei.) Em três anos, 225 mil
pessoas foram esterilizadas.

A eugenia positiva, o incentivo para que as pessoas ”certas” tenham filhos, também prosperou na
Alemanha nazista, onde ”certo” significava ariano. Heinrich Himmler, chefe da ss (o corpo de elite
nazista), concebia sua missão em termos eugênícos: os oficiais da ss deveriam assegurar o futuro
genético da Alemanha tendo o maior número possível de filhos. Em 1936, ele instituiu lares
maternais especiais para as esposas dos ss a fim de assegurar que recebessem os melhores cuidados
durante a gravidez. Os anúncios feitos no comício de Nuremberg em 1935 incluíam uma ”lei para
proteger o sangue alemão e a honra alemã”, que proibia o casamento entre alemães e judeus, e até
mesmo ”relações sexuais extraconjugais entre judeus e cidadãos de sangue alemão ou

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rentado”. Os nazistas eram infalivelmente meticulosos em seu esforço para evitar qualquer
estratagema reprodutivo.

Tragicamente, também não havia brecha alguma na lei de imigração Johnon-Reed dos Estados
Unidos, à qual Harry Laughlin tanto se dedicara. Para muitos judeus que fugiam da perseguição
nazista, os Estados Unidos eram a primeira opção lógica de destino, mas, devido à política
imigratória restritiva — e

racista do país, muitos deles foram mandados embora. A lei de esterilização


de Laughlin não só proporcionara a Hitler um modelo para seu programa hediondo como também
sua influência sobre a legislação imigratória significou que, para todos os efeitos, os Estados Unidos
abandonariam os judeus alemães à sua própria sorte nas mãos dos nazistas.

Em 1939, já em plena guerra, os nazistas introduziram a eutanásia. Esterilizar mostrou-se


complicado demais. E por que desperdiçar alimentos? Os internos dos hospícios foram declarados
”comensais inúteis”. Os manicômios receberam questionários com instruções para que comissões
de especialistas indicassem com um ”x” os pacientes cujas vidas, no seu parecer, ”não valiam a
pena ser vividas”. Esses questionários foram devolvidos com 75 mil ”xx” e a tecnologia do
extermínio em massa — a câmara de gás — foi então desenvolvida. Subseqüentemente, os nazistas
expandiram a definição de ”vida que não vale a pena ser vivida” para incluir grupos étnicos inteiros
— entre eles os ciganos e, em particular, os judeus. O que viria a ser conhecido como Holocausto
foi o ápice da eugenia nazista.

A eugenia acabou se revelando uma tragédia para a humanidade. Também mostrou ser um desastre
para a incipiente ciência da genética, que nao conseguiu escapar da contaminação. Na realidade,
porém, a despeito da proeminência de eugenistas como Davenport, muitos cientistas tinham
criticado o movimento e se dissociado dele. Alfred Russel Wallace, co-descobridor com Darwin da
seleção natural, condenou a eugenia em 1912 como ”uma interferência intrometida de um
sacerdócio científico arrogante”. Thomas Hunt Morgan, famoso por suas pesquisas com moscas-
das-frutas, demitiu-se por ”motivos científicos da diretoria científica do Eugenics Record Office.
Raymond Pearl, da Universidade Johns Hopkins, escreveu em 1928 que ”eugenistas ortodoxos
estão indo contra os fatos mais bem-estabelecidos da ciência genética”.

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A eugenia perdera a credibilidade na comunidade científica muito antes de os nazistas se
apropriarem dela para seus fins repulsivos. A ciência que a escorava era fictícia e os programas
sociais desenvolvidos a partir dela foram absolutamente repreensíveis. Não obstante, em meados do
século xx, a genética (a genética humana, em particular), uma ciência perfeitamente legítima,
deparavase com um grave problema de relações públicas. Em 1948, quando cheguei a Cold Spring
Harbor, antiga sede do já defunto Eugenics Record Office, ninguém ousava sequer mencionar a
”famigerada palavra que começava com ’E’” e ninguém se dispunha a falar sobre o passado da
nossa ciência, embora exemplares antigos da Revista de Higiene Racial da Alemanha ainda
pudessem ser encontrados nas estantes da biblioteca.

Percebendo que as metas da eugenia não eram cientificamente exeqüíveis, os geneticistas tinham
abandonado havia muito tempo a grandiosa busca dos padrões hereditários das características
comportamentais humanas — fosse a ”mente fraca” de Davenport ou o gênio de Galton — e agora
se concentravam no gene e na sua atuação nas células. Nas décadas de 1930 e 40, com o surgimento
de tecnologias novas e mais eficazes para estudar moléculas biológicas em maior detalhe, chegara
enfim a hora de investir contra o maior mistério biológico de todos: qual é a natureza química do
gene?

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2. A dupla-hélice: A vida é isto


Fui cativado pelos genes no meu terceiro ano na Universidade de Chicago. Até então, eu pretendera
ser um naturalista e ansiava por uma carreira bem distante da agitação urbana do South Side de
Chicago, onde crescera. A mudança em minhas intenções não foi inspirada por nenhum professor
inesquecível, mas por um pequeno livro publicado em 1944, O que é a vida?, escrito pelo pai da
mecânica ondulatória, o austríaco Erwin Schrõdinger, resultado de diversas palestras que ele
proferira no ano anterior no Instituto de Estudos Avançados de Dublin. O fato de esse grande físico
ter se disposto a escrever sobre biologia caiu nas minhas graças. Naquela época, como a maioria das
pessoas, eu achava que química e física eram as ciências ”reais” e que os físicos teóricos eram os
maiorais da ciência.

Schrõdinger argumentava que a vida poderia ser concebida em termos da armazenagem e


transmissão de informações biológicas. Os cromossomos seriam apenas portadores de informações.
Como cada célula teria de conter uma
Ofisico Erwin Schrõdinger, cujo livro O que é a vida? me despertou para os genes.

quantidade enorme de informações, estas deveriam estar comprimidas em algo que Schrõdinger
chamou de ”código de instruções hereditárias” incorporado ao tecido molecular dos cromossomos.
Portanto, se quiséssemos entender a vida, teríamos de identificar essas moléculas e decifrar o seu
código. Ele chegou até a especular que compreender o que é a vida — e para isso seria preciso
descobrir o gene — poderia nos levar para além das leis da física tal como a compreendíamos. O
livro de Schrõdinger foi extraordinariamente influente. Muitos daqueles que se tornariam
protagonistas importantes do Primeiro Ato da grande peça dramática da biologia molecular
(inclusive Francis Crick — ele próprio um exfísico) tinham, como eu, lido O que é a vida? e ficado
impressionados.

Schrõdinger me entusiasmou porque eu também estava seduzido pela essência da vida. Uma
pequena minoria de cientistas ainda acreditava que a vida depende de alguma força vital que emana
de um deus todo-poderoso. Porém, como a maioria de meus professores, eu denegava em princípio
a idéia de vitalismo. Se essa tal força ”vital” estivesse ditando as regras no jogo da natureza, havia
pouca esperança de que a vida chegasse a ser um dia compreendida pelos métodos da ciência. Por
outro lado, a noção de que a vida se perpetuava graças a um livro de instruções escrito em código
secreto me agradava. Que tipo de código molecular poderia ser tão elaborado a ponto de transmitir a
exuberante maravilha do mundo vivo? E que tipo de mecanismo molecular seria capaz de assegurar
que o código fosse copiado com absoluta exatidão cada vez que um cromossomo se duplicava?

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Na época em que Schrõdinger proferiu as palestras em Dublin, a maioria biólogos acreditava que
acabaríamos identificando as proteínas como as ’ principais portadoras de instruções genéticas.
Proteínas são cadeias moleculares formadas de vinte componentes básicos diferentes, os
aminoácidos. Como as mutações na ordem dos aminoácidos ao longo da cadeia são quase infinitas,
as proteínas poderiam, em princípio, facilmente codificar as informações que sustentam a
extraordinária diversidade da vida. O dna não era considerado um candidato sério a portador das
instruções em código, embora estivesse localizado exclusivamente nos cromossomos e já fosse
conhecido há cerca de 75 anos. Em 1869, Friedrich Miescher, um bioquímico suíço que trabalhava
na Alemanha, isolara, a partir de bandagens impregnadas de pus fornecidas por um hospital local,
uma substância que chamara de ”nucleína”. Como o pus é primordialmente formado por glóbulos
brancos — que, ao contrário dos glóbulos vermelhos, possuem um núcleo e, portanto, cromossomos
contendo dna —, Miescher se deparara com uma boa fonte de dna. Mais tarde, quando descobriu
que a ”nucleína” só era encontrada nos cromossomos, compreendeu que sua descoberta não fora
pouca coisa. Em 1893, escreveu: ’A
hereditariedade garante, de geração a geração, uma continuidade de forma num nível ainda mais
profundo que o da molécula química. Faz parte dos grupos atômicos estruturais. Nesse sentido, sou
partidário da teoria da hereditariedade química”.

Não obstante, por várias décadas subseqüentes, a química continuaria sem estar à altura da tarefa de
analisar a enormidade e a complexidade da molécula de dna. Somente na década de 1930 foi
possível mostrar que o dna era uma molécula comprida contendo quatro bases químicas distintas:
adenina (a), guanina (g), timina (t) e citosina (c). Na época das palestras de Schrõdinger, contudo,
ainda não estava claro exatamente como as subunidades da molécula (chamadas
desoxinucleotídeos) se ligavam quimicamente nem se sabia se as seqüências das quatro bases
diferentes das moléculas de dna poderiam variar. Se o dna era de fato o código de instruções
mencionado por Schrõdinger, então a molécula teria de ser capaz de existir numa variedade infinita
de formas diferentes. Mas na época ainda se acreditava que uma só seqüência simples — como agtc
— poderia se repetir um sem-número de vezes ao longo de toda a extensão das cadeias de dna.

O dna só ganhou notoriedade genética em 1944, quando o laboratório de Oswald Avery, no Instituto
Rockefeller de Nova York, anunciou ser possível

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Vistos ao microscópio, glóbulos vermelhos tratados com um produto químico que tinge o DNA. Para maximizar o transporte de oxigênio,
os glóbulos vermelhos carecem de núcleo e, portanto, de DNA. Os glóbulos brancos, por outro lado, que patrulham a corrente sangüínea
à cata de intrusos, possuem um núcleo que contém cromossomos.

modificar o envoltório superficial das bactérias de pneumonia. Esse não era o resultado que ele e
seus colegas mais jovens, Colin MacLeod e Maclyn McCarty, esperavam.

Havia mais de uma década seu grupo vinha estudando uma outra observação bastante inesperada
feita em 1928 por Fred Griffith, um cientista do Ministério da Saúde britânico. Griffith se
interessava por pneumonia e estudara a fundo o agente bacteriano da doença, o Pneumococcus.
Sabia-se que havia duas cepas, designadas ”s” [smooth = lisa] e ”r” [rough = rugosa], de acordo
com a aparência que tinham sob o microscópio. Essas cepas diferiam não só visualmente, mas
também quanto à virulência. Se injetarmos a bactéria ”s” num rato, este morre ao cabo de poucos
dias; se injetarmos a bactéria ”r”, o animal permanece saudável. Isso porque as células da bactéria
”s” possuem um envoltório que impede o sistema imunológico do rato de reconhecer o invasor. As
células ”r” não possuem esse revestimento e, portanto, são imediatamente atacadas pelas defesas
imunológicas do roedor.

Graças à sua atuação em saúde pública, Griffith estava ciente de que mais de uma cepa já havia sido
isolada em um mesmo paciente e ficou curioso para saber como as diferentes cepas interagiriam em
seus desafortunados ratos. Ao testar uma certa combinação, fez uma descoberta surpreendente:
quando injetou bactérias ”s” mortas por calor (inofensivas) junto com bactérias ”r” normais
(também inofensivas), o rato morreu. Como duas formas inofensivas da bactéria podiam conspirar
para se tornar letais? A pista surgiu quando ele isolou a bactéria Pneumococcus retirada dos ratos
mortos e encontrou bactérias ”s” vivas. Aparentemente, a bactéria ”r” — viva mas inócua —
adquirira algo da variante ”s” morta; o que quer que fosse, permitiu que, na presença de bactérias
”s” mortas por calor, a bactéria ”r” se transformasse numa cepa viva e mortal de bactéria ”s”.
Griffith confirmou que essa mudança era real retirando do rato morto
50

’ as ”s” e cultivando-as ao longo de várias gerações: as bactérias reproduziram apenas fenótipos do


tipo ”s”, como qualquer cepa ”s” normal faria. Ou uma mudança gênica havia efetivamente
ocorrido nas bactérias ”r” injetadas no rato.
Embora esse fenômeno transformacional parecesse contrariar a razão e o
entendimento, no início as observações de Griffith causaram pouca comoção no mundo científico.
Isso se deveu, em parte, ao fato de Griffith ser uma pessoa ntensamente reservada e tão avesso a
multidões que raras vezes comparecia a encontros de cientistas. Em certa ocasião, praticamente
arrastado à força para proferir uma palestra, foi enfiado num táxi e escoltado ao salão por
colegas, onde fez seu discurso numa voz monocórdia, enfatizando um aspecto obscuro de seu
trabalho em microbiologia sem menção alguma à transformação das bactérias. Felizmente, porém,
nem todos deixaram passar despercebida sua fantástica descoberta.

Oswald Avery também se interessara pelo envoltório sacaróide do pneumococo e resolveu


reproduzir o experimento de Griffith a fim de isolar e caracterizar o que quer que tivesse
transformado as células ”r” em células ”s”. Em
1944, Avery, MacLeod e McCarty publicaram seus resultados: essa sofisticada série de
experimentos provava, sem sombra de dúvida, que o dna era o princípio transformador. Cultivar
bactérias num tubo de ensaio em vez de em ratos facilitou, e muito, a identificação química do fator
transformador presente nas células ”s” mortas por exposição ao calor. Um a um, Avery e seu grupo
foram destruindo metodicamente os componentes bioquímicos de células ”s” tratadas com calor,
tentando verificar se seria possível impedir a transformação. Primeiro, degradaram o envoltório
sacaróide das bactérias ”s”; a transformação continuou ocorrendo — logo, esse revestimento não
era o princípio transformador. Em seguida, usaram uma mistura de duas enzimas destruidoras de
proteínas — tripsina e quimiotripsina — para degradar quase todas as proteínas nas células s”. Para
sua surpresa, a transformação continuou inalterada. Depois tentaram uma enzima (RNase) que
decompõe o rna (ácido ribonucléico, uma segunda classe de ácidos nucléicos semelhantes ao dna,
possivelmente envolvidos na síntese de proteínas). Mais uma vez, a transformação continuou
ocorrendo. Por fim, chegaram ao dna: expuseram extratos da bactéria ”s” à enzima destruidora de
dna, DNase. Enfim, acertaram em cheio: a atividade indutora de ”s” cessou por completo. O fator
da transformação era o dna.

51
Em parte por causa das suas implicações explosivas, a monografia apresentada em 1944 por Avery,
MacLeod e McCarty foi recebida com sentimentos ambíguos. Muitos geneticistas aceitaram as
conclusões. Afinal, se o dna é encontrado em todo cromossomo, por que não haveria de ser o
material genético por excelência? Por sua vez, contudo, a maioria dos bioquímicos expressou
dúvida quanto ao dna ser uma molécula suficientemente complexa para agir como repositório de
uma quantidade tão vasta de informações biológicas. Continuaram acreditando que as proteínas, o
outro componente dos cromossomos, acabariam por se revelar a substância da hereditariedade. Em
princípio, como os bioquímicos acertadamente apontaram, seria muito mais fácil codificar um vasto
corpo de informações complexas usando o alfabeto de vinte letras dos aminoácidos das proteínas do
que o alfabeto de quatro letras de nucleotídeos do dna. Alfred Mirsky, um químico especialista em
proteínas e colega de Avery no Instituto Rockefeller, talvez tenha sido quem rejeitou com mais
acrimônia a possibilidade de o dna ser a substância genética. A essa altura, porém, Avery já não
trabalhava mais como cientista: o Instituto Rockefeller o forçara à aposentadoria compulsória aos
65 anos.

Avery perdeu mais do que a oportunidade de defender seu trabalho do ataque de seus colegas.
Nunca chegou a receber o prêmio Nobel, o qual certamente merecia, por identificar o dna como o
princípio transformador. A comissão selecíonadora do prêmio Nobel torna públicos seus anais
cinqüenta anos depois de cada premiação, de modo que hoje sabemos que a candidatura de Avery
foi barrada pelo fisico-químico sueco Einar Hammarsten. Embora a reputação de Hammarsten
repousasse no fato de haver produzido amostras de dna de excepcional qualidade, ele acreditava que
os genes eram uma classe ainda por descobrir de proteínas. Mesmo com a descoberta da dupla-
hélice, ele continuou insistindo que Avery só mereceria receber o prêmio depois que o mecanismo
da transformação do dna houvesse sido decifrado por inteiro. Avery faleceu em
1955; se tivesse vivido alguns anos a mais, é quase certo que receberia o prêmio.

Quando ingressei na Universidade de Indiana, no outono de 1947, com planos de estudar o gene na
tese de doutorado, a monografia de Avery era repetidamente mencionada em conversas. Na época,
ninguém mais duvidava da reprodutibilidade de seus resultados, e trabalhos mais recentes vindos do
Instituto

52

Rockefeller indicavam ser cada vez menos provável que as proteínas se revelassem os protagonistas
genéticos da transformação bacteriana. O dna tornara-se enfim um objetivo importante para todo
químico que quisesse dar o próximo grande salto. Em Cambridge, Inglaterra, o cauteloso químico
escocês Alexander Todd decidiu enfrentar o desafio de identificar as ligações químicas que unem os
nucleotídeos no dna. No início de 1951, seu laboratório provou que essas ligações são sempre as
mesmas,
de tal forma
que o esqueleto da molécula de dna deveria ser bastante regular. Nesse mesmo período, o refugiado
austríaco Erwin Chargaff, do College of Physicians and Surgeons da Universidade Columbia,
empregou uma nova técnica — cromatografia em papel — para medir as quantidades relativas das
quatro bases em amostras de dna extraídas de uma variedade de vertebrados e bactérias. Embora
algumas espécies tivessem um dna em que predominavam a adenina e a timina, outras tinham dna
com mais guanina e citosina. Despontou assim a possibilidade de não haver duas moléculas de dna
com a mesma composição.

Na Universidade de Indiana, juntei-me a um pequeno grupo de cientistas idealistas, físicos e


químicos em sua maioria, que estudavam o processo reprodutivo dos vírus que atacam bactérias
(bacteriófagos, ou ”fagos”, como são conhecidos). O Grupo dos Fagos foi criado quando meu
orientador de doutorado, o médico Salvador Luria, que se formara na Itália, e seu amigo, o físico
teórico alemão Max Delbrück, juntaram-se ao fisico-químico americano Alfred Hershey. Durante a
Segunda Guerra, Luria e Delbrück foram considerados estrangeiros inimigos e impedidos de atuar
no esforço de guerra da ciência americana — mesmo que Luria, um judeu, tivesse sido forçado a
trocar a França por Nova York e Delbrück fosse obrigado a fugir da Alemanha por se opor ao
nazismo. Excluídos, eles continuaram em seus respectivos laboratórios universitários — Luria em
Indiana, Delbrück em Vanderbilt — e trabalharam em conjunto nos experimentos com fagos
durante diversos verões sucessivos em Cold Spring Harbor. Em 1943, uniram forças com o
brilhante mas taciturno Hershey, que vinha realizando pesquisas com bacteriófagos por conta
própria na Universidade Washington, em St. Louis, Missouri.

O programa do Grupo dos Fagos baseava-se na convicção de que os bacteriófagos, como todo vírus,
eram na realidade genes ”nus”. Esse conceito fora proposto pela primeira vez em 1922 pelo
imaginativo geneticista americano Herman J. Muller, que três anos depois demonstraria que os raios
x causam

53
mutações. Seu tardio prêmio Nobel só foi concedido em 1946, logo após ele se tornar professor na
Universidade de Indiana. Foi a sua presença, na verdade, que me levou para lá. Ele começara sua
carreira trabalhando para T. H. Morgan e sabia melhor do que ninguém quanto a genética evoluíra
na primeira metade do século xx. Fiquei fascinado com suas aulas no meu primeiro semestre na
universidade. A meu ver, porém, seu trabalho com moscas-das-frutas (Drosophila) parecia pertencer
mais ao passado do que ao futuro e só por um breve instante cheguei a pensar em realizar minha
tese sob sua orientação. Optei, em vez disso, pelos fagos de Luria, um objeto experimental ainda
mais ágil do que as drosófilas: os cruzamentos genéticos de fagos realizados num dia podiam ser
analisados no dia seguinte.

Para minha dissertação de doutorado, Luria fez-me seguir seus passos e procurar descobrir como os
raios x matam partículas de fagos. A princípio, eu pretendera mostrar que a morte viral era causada
por danos ao dna bacteriofágico. Contudo, relutantemente, acabei admitindo que minha abordagem
experimental jamais produziria respostas indubitáveis no nível químico. Eu só poderia tirar
conclusões biológicas. Embora os fagos fossem, de fato, genes nus, percebi que as respostas mais
profundas que o Grupo dos Fagos buscava só poderiam ser obtidas no âmbito da química avançada.
De algum modo, o dna tinha de transcender seu estatuto de sigla e ser compreendido como uma
estrutura molecular em toda a sua complexidade química.

Ao concluir a tese, não vi outra saída senão ir para um laboratório onde pudesse estudar a química
do dna. Infelizmente, por não saber quase nada de química pura, percebi que me tornaria um peixe
fora d’água em qualquer laboratório onde se realizassem experimentos complexos de química
orgânica ou físico-química. Portanto, no outono de 1950, aceitei uma bolsa de pós-doutorado no
laboratório do bioquímico Herman Kalckar em Copenhague. Ele estava estu- , dando a síntese das
pequenas moléculas que constituem o dna, mas logo verifi- ’; quei que sua abordagem bioquímica
jamais levaria a um entendimento da essência do gene. Cada dia despendido em seu laboratório
seria um dia a mais de atraso para aprender como o dna transmite informações genéticas.

Mas o ano que passei em Copenhague terminou de maneira produtiva. Para fugir da fria primavera
dinamarquesa, fui à Estação Zoológica de Nápoles em abril e maio. Durante minha última semana
lá, participei de uma pequena conferência sobre métodos de difração de raios x na determinação da

54

rrutura tridimensional das moléculas. A difração de raios x é uma maneira A estudar a estrutura
atômica de qualquer molécula que possa ser cristaliza, q cristal é bombardeado com raios x, que
expelem seus átomos e os disersam- O padrão de dispersão nos fornece informações sobre a
estrutura da molécula, embora, por si só, não baste para elucidá-la. A informação adicional
necessária é a ”designação de fases”,
que diz respeito às propriedades ondulatórias da molécula. Solucionar o problema das fases não é
fácil e, na época, somente os cientistas mais audaciosos se dispunham a tentar. A maioria dos bons
resultados com o método da difração tinha sido obtida com moléculas relativamente simples.

Eu não nutria grandes expectativas em relação a essa conferência, pois acreditava que um
entendimento tridimensional da estrutura das proteínas — ou mesmo do dna — ainda demoraria
mais de uma década. Fotografias decepcionantes feitas com raios x sugeriam que dificilmente o dna
revelaria seus segredos mediante essa abordagem. Isso não chegava a surpreender, já que se
esperava que as seqüências precisas de dna diferissem de molécula para molécula. É fácil entender
que a resultante irregularidade das configurações superficiais impediria que as cadeias longas e
finas de dna se ordenassem metodicamente lado a lado em padrões regulares — um pré-requisito
para que a análise por raios x tenha êxito.

Portanto, foi uma grata surpresa ouvir uma palestra de última hora sobre dna de um inglês de 34
anos chamado Maurice Wilkins, do laboratório de biofísica do King’s College, em Londres. Wilkins
era físico e, durante a guerra, trabalhara no Projeto Manhattan. Para ele, como para muitos outros
cientistas envolvidos, a explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, supostamente o
ápice de todos os seus esforços, foi uma profunda desilusão. Chegou a pensar em abandonar a
ciência e tornar-se pintor em Paris, mas a biologia interveio. Ele também lera o livro de Schrõdinger
e agora estava se debatendo com os segredos do dna usando a difração de raios x.

Wilkins mostrou uma fotografia de um padrão de difração de raios x que obtivera recentemente,
cujas inúmeras reflexões precisas indicavam um configuração cristalina extremamente regular. A
única conclusão possível era que o dna possuía uma estrutura regular, cuja elucidação poderia muito
bem revelar a natureza do gene. Imediatamente, imaginei-me indo para Londres e ajudando Wilkins
a descobrir essa estrutura. Contudo, minhas tentativas de conversar com ele

55
após a palestra deram em nada. Tudo o que consegui foi ouvi-lo declarar que ainda havia muito
trabalho duro pela frente.

Enquanto eu parecia entrar em sucessivos becos sem saída, nos Estados Unidos o preeminente
químico Linus Pauling, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), anunciava uma grande
vitória: ele descobrira o arranjo preciso em que cadeias de aminoácidos (chamadas polipeptídeos) se
organizam em proteínas. Chamou essa estrutura de a-hélice (alfa-hélíce). Não foi surpresa alguma
que Pauling tenha sido o autor dessa descoberta; afinal, ele era uma superestrela da ciência. Para
todos os efeitos, seu livro The nature of the chemical bond and the structure of molecules lançou os
fundamentos da química moderna — que, para os químicos do seu tempo, se tornara uma
verdadeira Bíblia. Pauling fora um menino precoce. Quando tinha nove anos, seu pai, um
farmacêutico do estado de Oregon, escreveu ao jornal Oregonian pedindo sugestões de leitura para
o filho hiperletrado, acrescentando que ele já lera a Bíblia e A origem das espécies, de Darwin. A
morte prematura de seu pai, que levou a família à ruína financeira, torna ainda mais notável que
esse jovem promissor tenha de algum modo conseguido estudar.

Li sobre a a-hélice de Pauling assim que voltei a Copenhague. Para minha surpresa, seu modelo não
era baseado num salto dedutivo a partir de dados obtidos com difração de raios x; fora sua longa
experiência como químico estrutural que lhe permitira inferir qual tipo de configuração helicóide
seria mais com- |

Maurice Wükins em seu laboratório no King’s College, em Londres.

56

Lawrence Bragg (à esquerda) e

Linus Pauling, que carrega

um modelo da a-hélice.

patível com as características químicas subjacentes da cadeia polipeptídica. Pauling construiu


modelos em escala das diferentes parte da molécula de proteína, criando conformações plausíveis
em três dimensões. De uma maneira ao mesmo tempo simples e brilhante, ele reduzira o problema a
um tipo de quebra-cabeça tridimensional.

A questão agora era saber se a a-hélice, além de bela, estava correta. Apenas uma semana depois eu
iria obter a resposta. Sir Lawrence Bragg, o inventor inglês da cristalografia com raios x, laureado
com o prêmio Nobel de física em
1915, viajou para Copenhague e, cheio de entusiasmo, relatou que seu jovem colega, o químico
austríaco Max Perutz, utilizara polipeptídeos sintéticos com grande engenhosidade para confirmar a
precisão da a-hélice de Pauling. Foi um triunfo com sabor amargo para o laboratório Cavendish, de
Bragg: no ano anterior, eles haviam metido os pés pelas mãos num artigo em que esboçavam as
possíveis configurações helicóides das cadeias polipeptídicas.

A essa altura, Salvador Luria já sondara a possibilidade de eu assumir um cargo de pesquisador no


laboratório Cavendish, na Universidade de Cambridge, o mais famoso laboratório do mundo
científico. Foi lá que Ernest Rutherford descreveu
pela primeira vez a estrutura do átomo. Agora era domínio de Bragg e eu iria trabalhar como
aprendiz junto com o químico inglês John Kendrew,

57
que estava interessado em determinar a estrutura tridimensional da proteína mioglobina. Luria
aconselhou-me a visitar o laboratório o quanto antes. Kendrew estava nos Estados Unidos e seria
Max Perutz quem iria me examinar. (Juntos, ele e Kendrew já haviam montado o mrc: Medicai
Research Council Unit for the Study of the Structure of Biological Systems [Unidade do Conselho
de Pesquisas Médicas para Estudo da Estrutura de Sistemas Biológicos].)

Um mês depois, em Cambridge, Perutz assegurou-me que eu tinha condições de dominar


rapidamente a teoria da difração de raios x necessária e que não teria dificuldade em me adaptar
àquela minúscula unidade do mrc. Para meu alívio, não ficou desapontado com a minha formação
em biologia. E Lawrence Bragg, que descera rapidamente do seu escritório para me conhecer,
também não se acabrunhou com isso.

Eu tinha 23 anos quando retornei ao mrc em Cambridge no início de outubro. Descobri que iria
dividir a sala de bioquímica com um ex-físico de 35 anos chamado Francis Crick, que durante a
guerra trabalhara com minas magnéticas para a marinha britânica. Quando a guerra acabou, Crick
pretendera continuar fazendo pesquisas militares, mas, ao ler O que é a vida?, de Schrõdinger,
decidiu dedicar-se à biologia. E lá estava agora em Cavendish, buscando a estrutura tridimensional
das proteínas para seu doutorado.

Crick sempre fora fascinado pela complexidade das grandes questões. Na infância, suas perguntas
incessantes fizeram com que os pais, exauridos, lhe comprassem uma enciclopédia infantil na
esperança de saciar sua curiosidade. Mas isso só serviu para deixá-lo inseguro: ele confidenciou à
mãe que temia que tudo já teria sido descoberto antes de chegar à idade adulta e não lhe restaria
nada para fazer. Sua mãe o tranqüilizou, dizendo que certamente ainda haveria uma ou duas coisas
para ele decifrar. Ela estava certa.

Sendo um tagarela nato, Crick era invariavelmente o centro das atenções em qualquer reunião. Suas
gargalhadas retumbantes ecoavam pelos corredores do laboratório Cavendish. Como teórico
residente do mrc, costumava aparecer com pelo menos um novo insight por mês, explicando em
detalhes suas mais recentes idéias a quem se dispusesse a ouvir. Na manhã em que nos
encontramos, ele exultou quando soube que meu objetivo lá era aprender o suficiente sobre
cristalografia para tentar estudar a estrutura do dna. Não demorou até que eu estivesse pedindo sua
opinião sobre o método de Pauling para construir modelos e sondar a estrutura diretamente. Será
que ainda precisaríamos de

58

quantos anos de experimentos com difração até que a confecção de modelos se


tornasse exeqüível? A fim de nos manter atualizados acerca dos estudos estru-
turais do DNA, Crick convidou Maurice Wilkins, seu amigo desde o fim da guerra
para almoçar em Londres certo domingo. Assim ficaríamos a par dos seus
avanços desde
a palestra
que proferira em Nápoles.

Wilkins disse acreditar que a estrutura do dna era uma hélice, formada por várias cadeias de
nucleotídeos ligados e enrascados entre si. Restava apenas estabelecer o número dessas cadeias. Na
época, Wilkins pendia para três, com base nas medições que realizara da densidade das fibras de
dna. Ele estava ansioso para começar a construir modelos, mas se deparara com um obstáculo
intransponível: a nova contratada da unidade de biofísica do King’s College: Rosalind Franklin.

Franklin era uma físico-química de 31 anos formada em Cambridge. Era uma cientista profissional
quase obsessiva: em seu vigésimo nono aniversário, tudo o que quis foi uma assinatura pessoal do
periódico técnico da sua área, Acta Crystallographica. Dotada de uma índole lógica e precisa, ela se
impacientava com aqueles que agiam de outra maneira. E era dada a opiniões fortes: certa vez,
descreveu seu orientador de doutorado, Ronald Norrish, um futuro prêmio Nobel, como ”estúpido,
preconceituoso, trapaceiro, mal-educado e tirânico”. Fora do laboratório, era uma alpinista
determinada e audaz. Nascida na alta sociedade londrina, pertencia a um mundo social mais seleto
do que a maioria dos cientistas. Ao final de um longo dia de trabalho na bancada do laboratório, às
vezes trocava seu avental branco por um elegante vestido de gala e desapare-

cia noite adentro.

Franklin acabara de retornar de Paris, onde se dedicara por quatro anos a investigar o grafite por
meio da cristalografia com raios x. Ela fora designada para o projeto de dna enquanto Wilkins
estava fora do King’s College e, infelizmente, os dois logo se mostraram incompatíveis. Franklin,
direta e interessada apenas no que os dados tinham a dizer, e Wilkins, reservado e especulativo,
estavam destinados a jamais trabalharem juntos. Pouco antes de Wilkins aceitar nosso convite para
o almoço, os dois haviam tido uma grande desavença, com Franklin insistindo que era impossível
começar a construção de mode los antes de ela haver coletado muito mais dados pelo método da
difração. Para todos os efeitos, os dois tinham deixado de se falar e, caso Wilkins tivesse algum
interesse em conhecer o que ela vinha fazendo, teria de esperar até ela apresentar seus resultados
num seminário marcado para o início de novembro.

59
Francis Crick e o canhão de raios X do laboratório Cavendish.

Se também quiséssemos participar, Crick e eu seríamos bem-vindos como convidados de Wilkins.

Crick não pôde ir ao seminário. Compareci sozinho e, mais tarde, coloquei-o a par do que, a meu
ver, eram as principais novidades sobre dna cristalino. Em particular, descrevi-lhe de memória as
medidas que Franklin fizera das repetições cristalográficas e do conteúdo aquoso. Isso o inspirou a
desenhar grades helicoidais numa folha de papel, explicando que a nova teoria helicoidal da
difração de raios x que ele desenvolvera com Bill Cochran e Vladimir Vand permitiria que até
mesmo eu, um ex-observador de pássaros, fosse capaz de prever corretamente os padrões de
difração esperados a partir dos modelos moleculares que logo estaríamos construindo em
Cavendish.

Assim que retornamos a Cambridge, pedi que a oficina do laboratório construísse os modelos
atômicos fosfóreos necessários para as seções curtas do esqueleto açúcar-fosfato encontradas no
dna. Quando ficaram prontos, testamos diferentes maneiras pelas quais os esqueletos poderiam se
entrelaçar no centro da molécula de dna. Sua estrutura atômica regular e repetitiva deveria permitir
que os átomos se juntassem numa configuração constante e reiterada. Depois da intuição de
Wilkins, voltamos nossa atenção para os modelos com três cadeias. Quando um deles se mostrou
quase plausível, Crick telefonou a Wilkins para anunciar que tínhamos construído um modelo do
que talvez fosse o dna.

No dia seguinte, Wilkins e Franklin vieram ver o que havíamos feito. A ameaça de uma competição
imprevista uniu-os brevemente num propósito comum. Franklin não perdeu tempo em encontrar
falhas em nosso conceito básico. Pelo que eu me lembrava, ela relatara que praticamente não havia
água presente no dna cristalino; na verdade, o oposto era verdade. Sendo um nova-

6o

to em cristalografia, eu confundira os termos ”célula unitária” e ”unidade assimétrica”. Na


realidade, o dna cristalino é muito rico em água. Por conseguinte ressaltou, o esqueleto tinha de
estar do lado de fora e não, como julgáramos, no centro, para poder acomodar todas as moléculas de
água que ela observara nos cristais.

Aquele desastroso dia de novembro teve repercussões profundas. A oposição de Franklin à


construção de modelos foi revigorada: era realizando experimentos, e não montando representações
de átomos com pauzinhos e bolinhas, que ela pretendia avançar. Pior: sir Lawrence Bragg deixara
instruções para que Crick e eu desistíssemos de qualquer tentativa de construir um modelo do dna.
Foi também decretado que a pesquisa sobre dna ficaria a cargo do laboratório do King’s College e
que Cambridge se concentraria exclusivamente nas proteínas. Não fazia sentido ter dois laboratórios
financiados pelo mrc competindo entre si. Sem nenhuma outra idéia brilhante a apresentar, Crick e
eu, a despeito de nossa relutância, fomos forçados a parar, ao
menos por um tempo.

Não era um bom momento para ser chutado para escanteio nas pesquisas com dna. Linus Pauling
escrevera a Wilkins solicitando uma cópia do modelo de difração do dna cristalino. Embora Wilkins
não o atendesse, afirmando precisar de mais tempo para interpretar os dados, Pauling certamente
não dependia dos dados do King’s College. Se quisesse, poderia facilmente iniciar estudos sérios da
difração de raios x no Caltech.

Rosalind Franklin, em férias,

praticando o montanhismo

que tanto amava.

61

L.
Na primavera seguinte, afastei-me resignadamente do dna e me dediquei a ampliar estudos iniciados
antes da guerra sobre o vírus em forma de lápis do mosaico-do-tabaco, usando o novo e poderoso
aparelho de raios x do laboratório Cavendish. Essa carga leve de experimentos deixou-nos com
bastante tempo livre para percorrer as várias bibliotecas de Cambridge. Na de zoologia, li uma
monografia de Erwin Chargaff em que ele descrevia sua descoberta de que as bases adenina e
timina do dna ocorrem em quantidades basicamente iguais, o mesmo acontecendo com as bases
guanina e citosina. Comentei essa proporcionalidade um-para-um com Crick e ele logo perguntou a
si mesmo se, durante a duplicação do dna, resíduos de adenina seriam atraídos para a timina e
viceversa, e se haveria uma atração correspondente entre guanina e citosina. Se assim fosse,
seqüências de bases nas cadeias ”parentais” (como atgc) teriam de ser complementares às das fitas
”filhas” (produzindo nesse caso tacg).

Mas essas idéias permaneceram ociosas até Erwin Chargaff visitar Cambridge no verão de 1952, a
caminho do Congresso Internacional de Bioquímica em Paris. Ele mostrou irritação ao constatar
que nem Crick nem eu víamos a necessidade de conhecer as estruturas químicas das quatro bases.
Irritou-se ainda mais quando lhe dissemos que bastaria procurar essas estruturas nos livros, caso
fosse necessário. Fiquei torcendo para que seus dados se provassem irrelevantes. Crick, no entanto,
sentiu-se estimulado a realizar diversos experimentos para encontrar os ”sanduíches” moleculares
que talvez se formassem quando adenina e timina (ou, alternativamente, guanina e citosina) eram
misturadas numa solução. Mas seus experimentos deram em nada.

Como Chargaff, Linus Pauling também participou do Congresso Internacional de Bioquímica, em


que a grande novidade foram os últimos resultados do Grupo dos Pagos. Alfred Hershey e Martha
Chase, em Cold Spring Harbor, haviam acabado de confirmar o princípio transformador de Avery: o
dna era, de fato, o material da hereditariedade! Hershey e Chase provaram que somente o dna dos
vírus fagos penetram as células bacterianas; seu revestimento protéico permanece fora. Tornou-se
mais óbvio do que nunca que o dna tinha de ser entendido no nível molecular se quiséssemos
descobrir a essência do gene. Com os resultados de Hershey e Chase na boca de todos, eu estava
certo de que Pauling iria agora dedicar seu formidável intelecto e profundos conhecimentos de
química ao problema do dna.

No início de 1953, Pauling chegou a publicar um artigo no qual esboçava a


62
estrutura do dna. Depois de lê-lo avidamente, vi que ele propunha um modelo A três hélices, com
um esqueleto de açúcar-fosfato formando um denso núcleo central. Na superfície, era semelhante ao
nosso modelo atabalhoado de quinze meses antes, mas, em vez de usar átomos
com carga positiva (como Mg2*) para estabilizar o esqueleto com carga negativa, Pauling sugeriu
algo pouco ortodoxo’ os fosfatos seriam mantidos unidos por ligações de hidrogênio. Para mim, um
biólogo, parecia que tais ligações de hidrogênio precisariam de condições tão ácidas que nunca
foram encontradas numa célula. Uma rápida incursão ao laboratório de química orgânica de
Alexander Todd, que ficava nas proximidades, confirmou minha convicção. O impossível
acontecera: o mais renomado e, possivelmente, o melhor químico do mundo se atrapalhara. Para
todos os efeitos, Pauling extirpara o a do dna. O alvo da nossa busca era o ácido
desoxirribonucléico, mas a estrutura que ele propunha não era sequer acidífera.

Levei às pressas o manuscrito para Londres a fim de informar Wilkins e Franklin que ainda
continuávamos no páreo. Convencida de que o dna não era uma hélice, Franklin nem sequer
demonstrou desejo de ler o artigo; as idéias helicoidais de Pauling pareciam-lhe uma distração,
mesmo depois que apresentei os argumentos de Crick em prol das hélices. Wilkins, por outro lado,
revelouse interessadíssimo nas notícias que eu trazia: ele agora estava mais convicto do que nunca
de que o dna era helicoidal. Para enfatizar o que dizia, mostrou-me uma imagem obtida mais de seis
meses antes por Raymond Gosling, um pós-graduando de Franklin, que fotografara com raios x a
chamada forma b do dna. Até aquele momento, eu nem sabia que existia uma forma b! Franklin
deixara de lado essa fotografia, preferindo concentrar-se na forma A, que, a seu ver, tinha mais
chances de fornecer dados úteis. O padrão dos raios X da forma B era nitidamente uma cruz. Crick
e outros já haviam deduzido que tal padrão de reflexos corresponde ao produzido por uma hélice, de
modo que essa comprovação parecia deixar claro que o dna era uma hélice! Na realidade, a despeito
das reservas de Franklin, isso não foi surpresa. A própria geometria sugeria que a hélice seria o
arranjo mais lógico para um longo encadeamento de unidades reincidentes, como os nudeotídeos do
dna. Mas ainda não sabíamos qual era a aparência dessa hélice nem quantas cadeias poderia conter.

Chegara a hora de retomar a construção dos modelos helicoidais de dna. Com certeza, Pauling logo
perceberia o equívoco de sua idéia original. Insisti com Wilkins que não podíamos perder tempo.
Ele, porém, queria esperar até

63
Fotografias por raios X das formas A e B do DNA, obtidas, respectivamente, por Maurice Wilkins e Rosalinâ Franklin. As diferenças na
estrutura molecular são causadas por diferenças na quantidade de água associada a cada molécula de DNA.

que Franklin fosse transferida para outro laboratório, o que estava marcado para aquela primavera.
Franklin decidira mudar para escapar do ambiente desagradável no King’s College. Pediram-lhe que
parasse de trabalhar com dna antes de partir e ela já repassara muitas das suas imagens obtidas por
difração para Wilkins.

Quando voltei a Cambridge e dei a notícia sobre a forma B do dna, Bragg não viu mais motivos
para que Crick e eu continuássemos afastados do dna. Ele queria muito que a estrutura do dna fosse
descoberta do seu lado do Atlântico. Assim, retomamos a construção de modelos, tentando
encontrar alguma maneira pela qual os componentes básicos conhecidos do dna — o esqueleto da
molécula e as quatro bases: adenina, timina, guanina e citosina — se encaixassem na forma de uma
hélice. Instruí a oficina do Cavendish a fabricar uma série de bases de estanho, mas não eles
conseguiam produzi-las rápido o bastante e acabei recortando aproximações grosseiras de papelão
rijo.

A essa altura, eu já percebera que as medidas da densidade do dna favoreciam ligeiramente um


modelo com duas cadeias, não três, de modo que decidi buscar duplas hélices plausíveis. Como
biólogo, eu preferia a idéia de uma molécula genética constituída de dois, não três, componentes.
Afinal, os cromossomos, como as células, multiplicam-se por duplicação, não triplicação.

Eu sabia que nosso modelo anterior, com o esqueleto na parte interna e as bases dependuradas por
fora, estava errado. Estudos químicos realizados na

64

Universidade de Nottingham, dos quais permaneci ignorante por muito tempo indicavam que as
bases precisam estar ligadas entre si por hidrogênio. E só poderiam formar ligações desse gênero,
com a regularidade implicada pela difração dos raios x, se estivessem no centro da molécula. Mas
como poderiam se juntar em pares? Por duas semanas, não saí do lugar, desorientado por causa de
um erro no meu livro-texto sobre ácidos nucléicos. Felizmente, no dia 27 de fevereiro, Jerry
Donahue, um químico teórico do Caltech que viera visitar o laboratório Cavendish, apontou-me que
o livro estava errado. Com isso, modifiquei a posição dos átomos de hidrogênio nos meus modelos
em papelão das moléculas.

Na manhã seguinte, 28 de fevereiro de 1953, todas as principais características do modelo do dna se


encaixaram. As duas cadeias eram mantidas coesas por fortes ligações de hidrogênio entre os pares
de base adenina-timina e guanina-citosina. As inferências de Crick no ano anterior, baseadas nas
pesquisas de Chargaff mostraram-se corretas. De fato, a adenina se liga à timina e a guanina se liga
à citosina, mas não em superfícies planas, para formar ”sanduíches”
moleculares. Quando Crick chegou, assimilou tudo rapidamente e deu sua anuência ao modelo de
bases emparelhadas. Ele compreendeu de imediato que isso faria com que as duas fitas da dupla-
hélice avançassem em direções opostas. Foi um momento e tanto. Estávamos certos de que
estávamos certos. Algo assim tão simples, tão sucinto, não podia estar errado. O que mais nos
entusiasmou foi a complementaridade das seqüências de bases ao longo das duas cadeias. Se
conhecêssemos a seqüência — a ordem das bases — de uma cadeia, automaticamente
conheceríamos a seqüência da outra. Logo percebi que é assim que as mensagens genéticas dos
genes são copiadas com tanta exatidão quando os cromossomos se duplicam antes da divisão
celular. A molécula se ”desdobra” para formar duas fitas separadas. Cada fita serve então de modelo
para a síntese de uma nova fita — e uma dupla-hélice se torna duas.

Em O que é a vida?, Schrõdinger sugerira que a linguagem da vida talvez fosse semelhante ao
código Morse, uma série de pontos e traços. Não estava longe da verdade. A linguagem do dna é
uma série linear de as, ts, gs e cs. Portanto, assim como quando transcrevemos a página de um livro
podemos cometer erros tipográficos, equívocos também acontecem (embora raramente) quando
todos esses as, ts, gs e cs são copiados num cromossomo: são as mutações, sobre as quais os
geneticistas vinham falando havia quase cinqüenta anos.

65
BASE

BASE

BASE

O esqueleto químico do DNA.

FOSFATO

esqueleto 1

esqueleto 2

N —C

N-C

C —C

adenina

timina

n — m»o

N - C N —H «IN

C C

C —H

”OMH—N

guanina H citosina

ligação de hidrogênio

O insight que juntou todas as peças: o emparelhamento complementar das bases.

66

3,4 nm

pares de bases empilhados

esqueletos ) açúcar-fosfato

(B)

Bases e esqueleto em seus respectivos lugares: a dupla-hélice. (A) é uma descrição esquemática do sistema de emparelhamento de bases
que une as duas fitas. (B) é um modelo de ”preenchimento espacial” que mostra, em escala, os detalhes atômicos da molécula.

Se trocarmos ”m” por ”z”, ”amar” torna-se ”azar” numa página impressa; se trocarmos um T por
um c, ”atg” torna-se ”acg” no dna.

A dupla-hélice fazia sentido em termos químicos e também em termos biológicos. Não


precisávamos mais nos preocupar com a sugestão de Schrõdinger, de que talvez novas leis da física
se fizessem necessárias para se compreender como os elementos do código da hereditariedade se
duplicam, pois os genes em nada diferiam do restante da química. Mais tarde naquele dia, quando
almoçávamos no Eagle, o pub que ficava quase na esquina do laboratório Cavendish, Crick, sempre
loquaz, anunciava a Deus e o mundo que havíamos acabado de descobrir o ”segredo da vida”.
Embora eu me sentisse igualmente eletrizado, achava que deveríamos esperar até termos construído
um belo modelo tridimensional para mostrar às pessoas.

Um dos primeiros a ver nosso modelo de demonstração foi o químico Alexander Todd, que ficou
surpreso e satisfeito que a natureza do gene fosse tão

67
Desvendando a dupla-hélice: minha palestra no laboratório Cold Spring Harbor em junho de 1953.

simples. Mais tarde, porém, ele deve ter se perguntado por que o seu laboratório, que estabelecera a
estrutura química geral das cadeias de dna, não ousara dar o passo seguinte e indagar como essas
cadeias se afiguram em três dimensões. Seja como for, a essência da molécula acabou sendo
descoberta por uma equipe de dois cientistas, um biólogo e um físico, que nem sequer dominavam a
química ensinada nos cursos de graduação universitária. Paradoxalmente, porém, esta foi, ao menos
em parte, a chave do nosso sucesso: Crick e eu chegamos primeiro à dupla-hélice precisamente
porque a maioria dos químicos da época julgava o dna uma molécula grande demais para ser
compreendida por análise química. Ademais, os dois únicos químicos visionários o suficiente para
buscar a estrutura tridimensional do dna cometeram erros táticos graves: o de Rosalind Franklin foi
a sua resistência e oposição à construção de modelos; o de Linus Pauling, o simples fato de não ter
lido a literatura já existente sobre o dna, em particular as informações sobre a composição das
bases, publicadas por Chargaff. Ironicamente, depois do Congresso Internacional de Bioquímica em
Paris, em 1952, Pauling e Chargaff atravessaram o Atlântico no mesmo navio, mas não chegaram a
conversar. Pauling acostumara-se a estar sempre certo e acreditava não haver nenhum problema
químico que não pudesse resolver por conta própria a partir de princípios básicos. De um modo
geral, sua autoconfiança era justificada. Durante a Guerra Fria, sendo um crítico proeminente do
programa

68

no «56 April 25, 1953 NATURE

737

MOLECULAR STRUCTURE OF NUCLEÍC ACIDS

A Structure for Deoxyríbose Nucleic Acid

WE wish to eugges! a structure for the salt of deoxyriboae nucleic acid (D,N.A.)- This structure has novel featuree whioh aro of considerable biologioal interest.

A etruoture for nueJeic acid has already beeu proposed by Pauling and Corey1. They kindly niade their manuscript avail&bie to us in advance of publíeation. Their modeí consista of three intertwíned chains, witli the
phosphates near the fíbre flxis, and tho bases 011 the outside. In our opinion, this structure is unsatisfaetory for two reasons : (!) We believe that the material which gives the X-ray diagrama is the sait, not the free aeid.
Wifchout the acidic hydrogen atoms it is not clear what forces would hold the strueture togother, espeeially as the negatively charged phosphates near the axis will repel eacli other. (2) Some of the van der Waals diatances
appear to bo too small.

Another threo-chain atruoturo hag alao been suggesfced by Fraser (in, tlie prosa). In his model the phosphatos are on the outside and the bases ou the inside, imked together by hydrogen bonda. This gtructure as described
ia rather ill-defined, and for this reason
we shall not eornment

><X We wish to put forward a

S sS** ” radiealiy different gtrueture for

/y/ X* =ad the salt of deoxyribose nucleie

fj~——L__yXy acid. This strueture has two

íf J / helicaJ ehains each coiled round

” tho sarae axis (see diagram). We

A/X have roade tho usual chemical

f/ K ””v assumptions, namely, that ©aeh

K, n chain consiste of phosphate di-

iVi estor groups joiníng (3-p-deoxy-

* ”°°°jj ríbofuranosH resíduos wíth 3’,5’

* w== w linkages. The two chaíns (but

Sj ”ot tlieir bases) are reiated by a

A S S dyad perpendicular to the fibre

/ sf fl axis. Both ehains folíow ríght-

// | jf) handed helices, but owing to

y the dyad the sequenees of the

jy.. ’jytZssS atome in the two ehains run

V O j in opposite díreotions. Each

/V xj chain loosely resembloa Fur-

]/ XI”X V berg’a! modeí No. 1 ; that is,

|J ~ 1ji-J/ ( e baaes are on the inaide of

the heJix and tlio phosphates on

dSranfmati Th íwo tIie « taide. The con%uration

rfbbona aymboifze tho of the augar and the atoms

SüJfSS-SriSSS! n«ar * » Gl03« t0 Furberg’8

jont*irod» the paire of ’standard conflgurfttion’, the

ifne marlu the flbre mia cular to the attached base. Tnere

ia a resídue on each chain every 3 -4 A. in the 2-direction. We have assumcd an ”angle of 36° between adjacent reaiduea in fche same ohain, so that tho strucfcure repeata aífcer 10 regidues on each chain, that ia, after 34
A. The diatance of a phosphorus atom from the flbre axia ís J0 A. As the phosphates are on the outaide, cations have eagy acceas to them.

The atructure is an open one, and its water contont ia rather high. At lower water contents we would expect the bases to tilt so that tho structure could become more corapact.

_ The novel foaturo of the structure is the manner m which the two chaíns are held together by the purine and pyrimidine bases. The planea of the bases

are perpendicular to the fibre axis. They are joined together in pairs, a síngle base from one chain being hydrogen-bonded to a síngle base from the other chain, so that the two Jie side by side with identical z-co-ordinafes.
One of thfí pair rmiafc be a purine and the other a pyrimidine for bonding to occur. The Jiydrogon bonda are made as followa : purine position I to pyrimidine position 1 ; purine position 6 to pyrimidine position 6.

If it is assumed that the bases only ocour in the structure in the most piausible tautomeric fornu? {fchat is, with the keto rather than the enol confígurationy) it is found that only specific paira of bases can bond together.
These pairs are .- adenine (purine) with thymine (pyrimidine), and guanine (purine) with cytosine (pyrimidine).

In
other words, if an adenine fornos one member of a pair, on either- chain, then on these assumptions tho other member miiãt bo thymine; similarly for guanine and cytosine. The sequence of bases on a eingle chatn does
not appear to be restricted in any wfty. However, if oniy specific paira of bases can be formed, it foJIows that if tho sequence of bases on one ehain is given, then the sequenco on tjio othor chain is automatically
determined.

It haa been found experímentally3-1 that the ratio of the amounts of adenine to thymine, and the ratío of guanine to cytosine, are always very dose to unity for deoxyribose nucleic acid.

It is probably irapossible to build this structure with a ribose sugar in placo of the deoxyribose, as the extra oxygon atorn would make too elose ft van der Waals contact.

The previousiy published X-ray datas>* on deoxyriboae nucleie acid aro ínsufBcient for a rigorous test of our structure. So far as we can toíl, it is roughJy compatible Tritíi the experiroerital data, but it must be regardod
as unproved until it has boen checked againat more exact results. Some of these are given in the following commiuiicationH. We were not aware of the details of the results presented thero when we devised our struoture,
whieh reats mainly though not entirely on published experimental data and storeochemical argumenta.

It has nofc escaped our notice that the speeific paíríng we have postulated ímmediately suggests » possible eopying mechanism for the genetic material.

Pull details of the strueture, ineludíng the conditions assumed iu building it, together with a set of oo-ordinafces for the atoms, will be pubHahed elsewhere.

We are much índebted to Dr. Jerry Donohue for conetant advioe and criticísm, especially on interafcomio distonces. We have also been stimulafced by a knowledge of the general nature of the unpublished experimental
results and ideas of Dr. M. H. F. Wilkine, Dr, R. E. Franklin and their co-workera at Kirtg’8 College, London. One of us (J, D. W.) has boen aided by a fellowship from the National Foundation for Infantile Paralysis.

J. D. Watsok F. H. C. Cbick Medicai Research Coiincií Unit for tne

Study of the Molecular Strueture of Biological iSystems,

Cavendiah Laboratory, Cambridge. April 2.

’Pauling, 1,., and Corey, H. B., yature, 17J, 348 (J963); Proe. U.S.

N<tí. Aead. Sei,, 39, 81 0953). ’ Furberg, S., Afá Chem. Seand., 6, 634 (1B6E).
* Chargaff, E-, for referentes eee Zamenhof, S., Bravennan, 0., aud

Ctiargaff, B,. Rioehím. et Biophv*. Aeta, 9. 402 (1052). ’ Wyatt. g. »,. J. Oen. fhvtial., Sfl, 201 (105H). •Astbüry, W. T- Symp. 3oc. Exp. Blol. 1, Tfucleío Acid, 6$ (CamD.

Univ. PTOM, 19*7). •Wtlklna, M. H. F., and Randalt,


3. T., Bioehim. et Biophtrt. Acta,

10, 192 0053).

yeve e doce; nosso artigo na Nature anunciando a descoberta. O mesmo exemplar trazia artigos mais longos de Rosalind Franklin e
Maurice Wilkins.

69
2 fitas parentais

/ fita fita nova parental

Replicação do DNA: a dupla-hélice é aberta como se fosse um ziper e cada fita é copiada

de desenvolvimento de armas nucleares dos Estados Unidos, ele foi interrogado pelo fbi depois de
uma palestra. Como ele sabia quanto plutônio havia numa bomba atômica? Sua resposta: ”Ninguém
me disse; eu mesmo calculei”.

Nos meses subseqüentes, Crick e, em menor grau, eu nos deleitamos mostrando nosso modelo
molecular para um fluxo contínuo de cientistas curiosos. No entanto, os bioquímicos de Cambridge
não nos convidaram para proferir uma palestra formal na Faculdade de Bioquímica. Começaram a
se referir a nós como ”wc”, num trocadilho de gosto duvidoso com as nossas iniciais. O fato de
termos descoberto a dupla-hélice sem realizar experimentos os incomodou.

O manuscrito que enviamos à revista Nãture no início de abril foi publicado três semanas depois,
em
25 de abril de 1953. Foi acompanhado de dois outros artigos mais extensos de Franklin e Wilkins,
ambos confirmando a precisão geral de nosso modelo. Em junho, fiz a primeira apresentação de
nosso modelo num simpósio sobre vírus em Cold Spring Harbor. Max Delbrück batalhou para que,
no último minuto, eu fosse convidado a discursar. Levei para esse encontro intelectualmente
turbinado o modelo tridimensional que havíamos construído em Cavendish, com os pares de base
adenina-timina em vermelho e de guanina-citosina em verde.

Na platéia estava Seymour Benzer, outro ex-físico que ouvira o toque de clarim do livro de
Schrõdinger. Ele logo compreendeu o significado da nossa descoberta para seus estudos sobre
mutações em vírus. E percebeu que agora tinha condições de fazer num pequeno trecho de dna
bacteriófago o que os garotos de Morgan tinham feito quarenta anos antes nos cro-

mossomos da mosca-das-frutas: mapear mutações, isto é, determinar a ordem destas ao longo do


gene, do mesmo modo que os pioneiros da Drosophüa haviam mapeado os genes de um
cromossomo. Como Morgan, Benzer iria depender da recombinação para gerar novas combinações
gênicas; porém, ao contrário de Morgan, que teve a vantagem de dispor de um mecanismo já pronto
de recombinação (a produção de células sexuais numa mosca-das-frutas), Benzer teria de induzi-la
infectando uma única célula bacteriana hospedeira com duas cepas do bacteriófa-
20 que diferissem, na região visada, em uma ou mais mutações. No interior de uma célula
bacteriana, a recombinação (ou seja, a troca de segmentos de moléculas) ocasionalmente ocorre
entre moléculas diferentes de dna viral, produzindo novas permutações de mutações — os
chamados ”recombinantes”. No decorrer de um ano espetacularmente produtivo em seu laboratório
na Universidade Purdue, Benzer produziu o mapa de um único gene bacteriófago, rll, mostrando
como uma série de mutações — todas elas erros no script gênico — era disposta linearmente ao
longo do dna do vírus. A linguagem usada era simples e linear, como uma linha de texto numa
página escrita.

A reação do físico húngaro Leo Szilard à minha palestra sobre a dupla-hélice em Cold Spring
Harbor foi menos acadêmica. Ele quis saber: ”É possível patentear
CENTRIFUGAÇÀO DE PRODUTOS DO DNA

o DNA inicial

contém hidrogênio

pesado

molécula híbrida de DNA

molécula leve de DNA

DNA ”pesado” inicial

IP ciclo de replicação

2? ciclo de replicação

REPLICAÇÃO DE DNA COM NITROGÊNIO LEVE

leve pesado

híbrido

bandas de DNA

O experimento de Mesehon-Stahl.

70
Matt Meselson ao lado de uma supercentrifuga,

o aparelho no cerne do ”mais belo experimento da biologia”

isso?”. Durante um tempo, a sua principal fonte de renda fora uma patente que ele registrara junto
com Einstein; mais tarde, ele tentara, sem sucesso, patentear com Enrico Fermi o reator nuclear que
haviam construído na Universidade de Chicago em 1942. Entretanto, na época como ainda hoje,
patentes só eram concedidas para invenções úteis, e ninguém podia conceber algum uso prático para
o dna. Szilard então sugeriu que talvez devêssemos obter o copyright da molécula.

Todavia, ainda faltava uma peça no quebra-cabeça da dupla-hélice, pois não havíamos verificado
experimentalmente a nossa idéia de que, na replicação do dna, as duas fitas se abrem mais ou menos
como um zíper. Max Delbrück, por exemplo, não se convencera. Embora apreciasse a dupla-hélice
como modelo, temia que abri-la como um zíper pudesse gerar alguns emaranhados terríveis. Cinco
anos depois, um ex-aluno de Pauling, Matt Meselson, e um jovem estudioso de fagos igualmente
brilhante, Frank Stahl, puseram fim a esses temores publicando os resultados de um experimento
simples e sucinto.

Os dois haviam se conhecido no verão de 1954, no Laboratório de Biologia Marinha de Woods


Hole, Massachusetts, onde eu estava dando algumas aulas. Depois de um bom número de martínis,
concordaram em juntar esforços e fazer um pouco de trabalho científico. O resultado de sua parceria
já foi descrito como ”o mais belo experimento da biologia”.

Eles empregaram uma técnica de centrifugação que permitia separar moléculas de acordo com
pequenas diferenças de peso. Numa centrífuga, as
72

moléculas pesadas ficam mais no fundo do tubo de ensaio que as leves. Os átomos de nitrogênio (n)
são um componente do dna e, como existem duas formas distintas de nitrogênio, uma leve e uma
pesada, Meselson e Stahl puderam rotular diferentes segmentos de dna com base nisso e
acompanhar o seu processo de replicação em bactérias. Inicialmente, todas as bactérias foram
cultivadas num meio contendo n pesado, que foi assim incorporado às duas fitas do dna. Dessa
cultura, eles retiraram uma amostra e a transferiram para um meio contendo apenas n leve,
assegurando assim que, na rodada seguinte, a replicação do dna utilizaria o N leve. Se, como Crick
e eu havíamos previsto, a dupla-hélice se abre como um zíper na replicação do dna para que as duas
fitas sejam copiadas, então as duas ”moléculas-filhas” de dna resultantes seriam híbridas, cada uma
contendo uma fita com n pesado (a fita-molde derivada da ”molécula-mãe”) e uma fita com n leve
(a recém-engendrada no novo meio). O método de centrifugação de Meselson e Stahl confirmou
essas expectativas à risca. Eles constataram três faixas bem delineadas nos tubos de centrifugação,
indicando as três amostras distintas de dna, com a amostra pesada/leve situada bem no meio entre as
amostras pesada/pesada
e leve/leve. A replicação do dna funcionava exatamente como o nosso modelo previra.

Mais ou menos nessa mesma época, os componentes bioquímicos básicos da replicação do dna
estavam sendo analisados no laboratório de Arthur Kornberg na Universidade Washington em St.
Louis. Ao desenvolver um novo sistema ”sem células” para sintetizar dna, Kornberg descobriu uma
enzima — dna polimerase — que une os componentes do dna e estabelece as ligações químicas do
esqueleto do dna. A sua síntese enzimática do dna foi algo tão importan-

Arthur Kornberg na época em que ganhou o prêmio Nobel

73
te e tão inesperado que em 1959 ele recebeu o prêmio Nobel de fisiologia/medicina, menos de dois
anos depois de realizar os experimentos. Quando sua premiação foi anunciada, ele se deixou
fotografar segurando uma cópia do modelo da dupla-hélice que eu levara para Cold Spring Harbor
em 1953.

Somente em 1962 Francis Crick, Maurice Wilkins e eu receberíamos o nosso prêmio Nobel em
fisiologia/medicina. Tragicamente, Rosalind Franklin falecera quatro anos antes, de câncer de
ovário, aos 37 anos de idade. Crick e ela haviam se tornado colegas bastante próximos e
verdadeiramente amigos. Depois das duas operações malsucedidas a que foi submetida para conter
o avanço do câncer, Franklin convalesceu junto de Crick e sua esposa, Odile, em Cambridge.
Sempre foi, e ainda é, uma norma da comissão do prêmio Nobel jamais dividir a premiação por
mais de três pessoas. Se Franklin estivesse viva, teria surgido o problema de conceder o prêmio a
ela ou a Maurice Wilkins. Talvez os suecos resolvessem o dilema concedendo a ambos o prêmio de
química daquele ano (que foi para Max Perutz e John Kendrew, que haviam elucidado as estruturas
tridimensionais da hemoglobina e da mioglobina, respectivamente).

A descoberta da dupla-hélice foi um golpe de morte no vitalismo. Todo cientista sério, mesmo
aqueles de índole religiosa, percebeu que um entendimento pleno da vida já não exigia a revelação
de novas leis da natureza. A vida era uma simples questão de física e de química — embora uma
física e química de organização sofisticadíssima. A tarefa imediata que tínhamos pela frente era
decifrar como atuava o roteiro da vida codificado pelo dna. Como o mecanismo molecular das
células interpreta as mensagens das moléculas de dna? No capítulo seguinte veremos que a
inesperada complexidade do processo de leitura nos levou a um entendimento muito mais
aprofundado de como a vida surgiu.

74

3. A leitura do código: Como o dna se torna vida


Muito antes que os experimentos de Oswald Avery colocassem o dna na ribalta como o ”princípio
transformador”, os geneticistas já vinham tentando compreender exatamente como o material da
hereditariedade — qualquer que fosse — era capaz de influenciar as características de um
organismo. Como os ”fatores de Mendel afetavam o formato das ervilhas, tornando-as rugosas ou
lisas?

Acima: o ribossomo, a fábrica de proteínas da célula, com toda a sua gloriosa tridimensionalidade conforme revelada em uma análise
por raios X. (Para simplificar, essa imagem gerada por computador nao mostra os átomos individuais.) Existem milhões de ribossomos
em cada célula. É aqui que as informações codi ficadas no DNA são usadas para produzir proteínas, as protagonistas do grande drama
molecular da vida
O ribossomo consiste em duas subunidades (em laranja e amarelo), ambas compostas de RNA, e de cerca de sessenta proteínas (em azul
e verde) revestindo o exterior. Esta figura
capta o ribossomo no ato de produzir uma proteína. Pequenas moléculas especializadas de RNA (em roxo, branco t vermelho)
transportam attanoácidos ao ribossomo, que serão incorporados às cadeias protéicas em crescimento.

75
A primeira pista surgiu no início do século xx, logo após a redescoberta do trabalho de Mendel.
Archibald Garrod, um médico inglês cuja lentidão em se formar e singular falta de jeito no trato
com pacientes haviam lhe garantido uma carreira em pesquisa, e não em atendimento, no Hospital
St. Bartholomew de Londres, interessava-se por um grupo de doenças raras com um sintoma
marcante em comum, a saber, urina de cor estranha. Uma dessas doenças, a alcaptonúria, era
conhecida como ”síndrome da fralda preta” porque a urina dos que padecem do mal adquire uma
tonalidade escura em contato com o ar. A despeito desse sintoma alarmante, porém, a doença não
costuma ser letal, embora possa provocar mais tarde uma condição semelhante à artrite, à medida
que os pigmentos da urina escura vão se acumulando nas juntas e na espinha. A ciência da época
atribuía tal escurecimento a uma substância produzida pelas bactérias que vivem no intestino, mas
Garrod argumentava que o aparecimento da urina preta em recém-nascidos, cujo intestino não
possui colônias bacterianas, significava que a substância era produzida pelo próprio corpo. E inferiu
que deveria ser produto de alguma imperfeição no mecanismo químico do corpo, um ”erro no
metabolismo” segundo suas palavras, sugerindo talvez uma deficiência crítica em alguma via
bioquímica.

Garrod também observou que, embora raríssima na população em geral, a alcaptonúria ocorre com
mais freqüência nos filhos de casamentos entre parentes consangüíneos. Em 1902, conseguiu
explicar o fenômeno nos termos das leis recém-descobertas de Mendel. Ali estava o padrão de
hereditariedade que se poderia esperar de um gene recessivo raro: um casal de primos em primeiro
grau, digamos, recebe cópias do gene da ”alcaptonúria” do mesmo avô ou avó; com isso, haverá
uma chance em quatro de que a união produza uma criança homozigótica para esse gene (isto é,
uma criança com duas cópias do gene recessivo), a qual, portanto, desenvolverá a doença.
Combinando suas análises bioquímicas e genéticas, Garrod concluiu que a alcaptonúria é um ”erro
inato no metabolismo”. Embora ninguém tenha realmente avaliado o fato na época, ele foi o
primeiro a estabelecer a relação causal entre genes e efeito fisiológico. De algum modo, os genes
regiam os processos metabólicos e um erro em um gene — uma mutação — podia resultar numa via
metabólica defeituosa.

O próximo grande passo só seria dado em 1941, quando George Beadle e Ed Tatum publicaram um
estudo de mutações induzidas num mofo tropical do pão. Beadle crescera nos arredores de Wahoo,
Nebraska, e teria assumido a

76

fazenda da família se um professor do colegial não o tivesse incentivado a considerar uma carreira
alternativa. Na década de 1930, primeiro no Caltech ao lado de T. H. Morgan, famoso por suas
moscas-das-frutas, e depois no Instituto de Biologia Físico-Química de Paris, Beadle dedicou-se a
descobrir como os genes realizam seus feitos mágicos — como afetam, por exemplo,
a cor dos olhos da mosca-das-frutas. Ao chegar à Universidade de Stanford em 1937, convidou
Tatum, que se juntou a ele a despeito das recomendações em contrário de seus conselheiros
acadêmicos. Ed Tatum formara-se e obtivera o mestrado na Universidade de Wisconsin, onde
estudou as bactérias que vivem no leite (das quais não havia escassez em Wisconsin, conhecido
como o Estado do Queijo). Embora trabalhar com Beadle constituísse um grande desafio
intelectual, seus professores em Wisconsin julgaram que seria mais prudente uma carreira
financeiramente segura na indústria de laticínios. Tatum, porém, preferiu Beadle à manteiga — e a
ciência agradece.

Beadle e Tatum logo perceberam que as moscas-das-frutas eram complexas demais para o tipo de
pesquisa que queriam realizar, pois descobrir o efeito de uma única mutação num animal tão
complexo quanto a Drosophila era como tentar encontrar uma agulha num palheiro. Portanto,
decidiram trabalhar com uma espécie bem mais simples, Neurospora crassa, o mofo laranja-
avermelhado que se desenvolve no pão em países tropicais. O plano era simples: submeter o mofo a
raios x para provocar mutações — como Muller fizera com as moscasdas-frutas — e, em seguida,
tentar determinar o impacto das mutações resultantes sobre os fungos. Eles acompanhariam os
efeitos das mutações tomando como ponto de partida o fato de o Neurospora normal (isto é, sem
mutações) ser capaz de sobreviver num meio de cultura mínimo, como se diz. A partir dessa ”dieta”
básica, o Neurospora pode, evidentemente, sintetizar bioquimicamente todas as moléculas maiores
de que necessita para viver, produzindo-as a partir das moléculas mais simples no meio nutriente. A
hipótese de Beadle e Tatum era que uma mutação que tornasse inoperante qualquer uma dessas vias
sintetizadoras incapacitaria a linhagem de mofo irradiado de se desenvolver no meio mínimo —
embora essa mesma linhagem fosse capaz de prosperar num meio completo”, contendo todas as
moléculas necessárias à vida, como aminoácidos e vitaminas. Em outras palavras, uma mutação que
impedisse a síntese de um nutriente fundamental se tornaria inócua caso esse nutriente pudesse ser
obtido diretamente do meio de cultura.

77
Beadle e Tatum irradiaram cerca de 5 mil espécimes e começaram a testar a capacidade de cada um
de sobreviver no meio mínimo. O primeiro sobreviveu muito bem; o segundo idem; o terceiro...
Somente ao testarem a linhagem 299 é que encontraram uma que se tornara incapaz de viver no
meio mínimo — embora conseguisse sobreviver na versão completa, conforme previsto. A
linhagem 299 seria apenas a primeira de muitas linhagens mutantes que os dois analisariam. A etapa
seguinte era verificar exatamente qual capacidade essas linhagens mutantes haviam perdido. Talvez
a 299 não conseguisse sintetizar aminoácidos essenciais. Beadle e Tatum acrescentaram
aminoácidos ao meio mínimo, mas mesmo assim a 299 não se desenvolveu. Que tal então
vitaminas? Acrescentaram uma profusão delas ao meio mínimo e, dessa vez, a 299 floresceu.
Chegara então o momento de estreitar o âmbito da pesquisa e começaram a adicionar as vitaminas
uma a uma para avaliar a reação da 299. A niacina não teve efeito algum e o mesmo aconteceu com
a riboflavina. Mas, quando acrescentaram a vitamina B6, a linhagem 299 conseguiu sobreviver no
meio mínimo. De algum modo, a mutação da linhagem 299, induzida por raios X, havia
interrompido a via sintetizadora envolvida na produção de vitamina B . Como isso acontecera?
Sabendo que sínteses bioquímicas desse tipo são regidas por enzimas protéicas, que promovem cada
reação química incremental ao longo da via sintetizadora, Beadle e Tatum sugeriram que cada
mutação que descobriram tinha tornado inoperante uma enzima específica. E, como as mutações
ocorrem nos genes, estes devem produzir enzimas. Ao ser publicado em 1941, o estudo de ambos
inspirou um bordão que resumia nossa compreensão do funcionamento dos genes: ”um gene, uma
enzima”.

Na época, porém, acreditava-se que todas as enzimas são proteínas. E isso logo levantou uma
dúvida: será que os genes também codificavam as diversas proteínas celulares que não são
enzimas? A primeira sugestão de que os genes talvez pudessem fornecer informações sobre todas as
proteínas partiu do laboratório de Linus Pauling no Caltech. Ele e seu aluno Harvey Itano estudaram
a hemoglobina, a proteína dos glóbulos vermelhos, que transportam oxigênio dos pulmões para
tecidos metabolicamente ativos que dele necessitam, como os músculos. Em particular, os dois se
concentraram na hemoglobina de pessoas com anemia falciforme, uma doença hereditária comum
entre os africanos e, portanto, também entre os afro-americanos. As hemácias (glóbulos vermelhos)
das vítimas da anemia falciforme tendem a se deformar, assumindo o formato

78

característico de uma ”foice” sob o microscópio, e a obstrução dos capilares resultante pode ser
terrivelmente dolorosa, ou mesmo fatal. Pesquisas posteriores revelariam uma explicação evolutiva
para a prevalência desse mal entre os africanos: uma parte do ciclo de vida do parasita da malária
transcorre nos glóbulos vermelhos, de modo
que pessoas com hemoglobina falciforme sofrem menos severamente com aquele mal. A evolução
humana parece ter firmado um pacto faustiano em nome de alguns habitantes das regiões tropicais,
pois a anemia falciforme confere uma certa proteção contra a devastação da malária. Itano e Pauling
compararam a proteína hemoglobina de pacientes com anemia falciforme com a de indivíduos
normais e constataram que as duas moléculas diferiam quanto à carga elétrica. Mais ou menos nessa
época, final da década de 1940, os geneticistas verificaram que a transmissão da anemia falsi forme
é um caso clássico de traço recessivo mendeliano. A partir disso, inferi ram que a doença deveria ser
causada por uma mutação no gene da hemoglobina.

O impacto da mutação: uma única alteração de base na seqüência de DNA no gene da hemoglobina bt humana resulta na incorporação
do aminoácido valina (em vez do glutâmico) à proteína. Essa simples diferença provoca a anemia falciforme, uma doença que distorce os
glóbulos vermelhos, dando-lhes um formato característico de foice.
bina, uma mutação que afetaria a composição química da proteína hemoglobina resultante. Foi
assim que Pauling pôde refinar a noção de ”erro inato no metabolismo” de Garrod, identificando
alguns desses erros como ”doenças moleculares”. A anemia falciforme era exatamente isso, uma
doença molecular. Em 1956, no mesmo laboratório Cavendish onde Francis Crick e eu havíamos
descoberto a dupla-hélice, Vernon Ingram avançou mais um passo no caso da hemoglobina
falciforme. Usando métodos desenvolvidos recentemente para identificar aminoácidos específicos
na cadeia protéica, Ingram conseguiu especificar com precisão a diferença molecular que afetava a
carga elétrica total da molécula, constatada por Itano e Pauling. Trata-se de um único aminoácido:
Ingram apurou que o ácido glutâmico, encontrado na posição 6 da cadeia protéica normal, é
substituído pela valina na hemoglobina falciforme. Ali estava uma prova conclusiva de que
mutações gênicas — diferenças na seqüência de as, Ts, gs e cs no dna de um gene — podem ser
”mapeadas” e associadas diretamente a diferenças nas seqüências de aminoácidos das proteínas. As
proteínas são as moléculas ativas da vida: elas formam as enzimas, que catalisam reações
bioquímicas, e também fornecem os principais componentes estruturais do corpo — como a
queratina, constituinte da pele, cabelo e unhas. Portanto, é através das proteínas que o dna exerce a
sua magia controladora sobre as células, sobre o crescimento e sobre a vida como um todo.

Mas como as informações codificadas no dna (um encadeamento molecular de nucleotídeos — os


as, ts, gs e cs) se convertem numa proteína (um encadeamento de aminoácidos)?

Pouco depois de publicarmos nosso relato sobre a dupla-hélice, Francis Crick e eu começamos a
receber notícias do conhecido físico teórico russo George Gamow. Suas cartas — invariavelmente
escritas à mão e enfeitadas com cartuns e outros rabiscos, alguns bem pertinentes, outros nem tanto
— vinham sempre assinadas apenas ”Geo” (pronunciado ”Jô”, como descobriríamos mais tarde).
Ele se interessara pelo dna e pela conexão entre dna e proteína — antes mesmo de Ingram haver
demonstrado conclusivamente a relação entre a seqüência de bases do dna e a seqüência de
aminoácidos das proteínas. Pressentindo que a biologia estava enfim se tornando uma ciência exata,
ele anteviu o dia em que todo organismo seria descrito geneticamente por um extensíssimo

8o

I
’mero composto apenas dos algarismos 1, 2, 3 e 4, representando cada uma a bases a, t, g e c. No
início, nós o consideramos um bobo. Alguns meses j ois contudo, quando Crick se encontrou com
ele em Nova York, a grandede seu talento ficou clara e ele acabou se tornando um dos primeiros
recrutas a aderir à causa do dna.
Gamow viera para os Estados Unidos em 1934 para fugir da crescente tirania da União Soviética
stalinista. Numa monografia de 1948, explicara a abundância de elementos químicos diferentes
presentes por todo o universo como uma
decorrência dos processos termonucleares ocorridos nas primeiras fases do Big Bang. A pesquisa,
realizada por Gamow e seu pós-graduando Ralph Alpher, teria sido publicada sob a autoria de
”Alpher e Gamow” se Gamow não houvesse decidido incluir também o nome do amigo Hans
Bethe, um físico de enorme talento, sem dúvida, mas que nada contribuíra para o estudo. É que
Gamow, um inveterado gozador, se encantara tanto com a possibilidade de o artigo ser atribuído a
”Alpher, Bethe e Gamow” quanto com o fato de a data de publicação ter caído fortuitamente no dia
10 de abril. Até hoje, os cosmólogos se referem à monografia como ”abg” (alfa-beta-gama).

Quando conheci Gamow em 1954, eleja idealizara um modelo formal pelo qual propunha que
tripletos sobrepostos de bases de dna serviriam para especificar certos aminoácidos. Subjacente à
sua teoria estava a convicção de que existe na superfície de cada par de bases uma cavidade cujo
formato seria complementar à parte da superfície de um dos aminoácidos. Mostrei-me cético a
Gamow: o dna não poderia ser o molde direto ao longo do qual os aminoácidos se organizam antes
de se unir em cadeias polipeptídicas (como as fileiras de aminoácidos unidos são chamadas). Supus
que, por ser físico, Gamow não houvesse lido os trabalhos científicos que refutavam a noção de que
a síntese da proteína ocorre onde o dna está localizado — no núcleo. Na realidade, fora observado
que a remoção do núcleo de uma célula não tem nenhum efeito imediato sobre a taxa de produção
de proteínas. Hoje sabemos que, na verdade, os aminoácidos se juntam para formar proteínas nos
ribossomos, pequenas partículas celulares que contêm uma segunda forma de ácido nucléico
chamada rna. Na época, não estava claro qual era o papel exato do rna no quebra-cabeça bioquímico
da vida. Em alguns vírus, como o do mosaico-do-tabaco, parecia desempenhar um papel semelhante
ao do dna em outras espécies, codificando as proteínas específicas desse organismo. Nas células, o
rna tinha de estar de
81
O RNA Tie Club: as

garatujas características de Geo Gamow numa


carta; Geo Gamow em
pessoa; uma reunião do clube em 1955, com as
gravatas em primeiro plano (Francis Crick, Alex Rich, Leslie Orgele e eu).
do envolvido na síntese de proteínas, pois células que produzem proa abundância sempre são ricas
em rna. Mesmo antes de descobrirmos
a hélice, eu julgava provável que as informações genéticas contidas no mossômico fossem usadas
para criar cadeias de rna de seqüências comtares. Essas cadeias de rna, por sua vez, poderiam servir
como os mole especificam a ordem dos aminoácidos em suas respectivas proteínas. Se fosse o rna
seria um intermediário entre o dna e a proteína. Tempos depois Francis Crick diria que esse fluxo
de informações (dna—rna—proteína) constitui o ”dogma central” da genética. Sua opinião foi
corroborada em 1959 com a descoberta da enzima rna polimerase, que, em praticamente todas as
células, catalisa a produção de cadeias com uma fita de rna a partir de moldes
com duas fitas de dna.

Ao nosso ver, os indícios essenciais do processo de produção de proteínas viriam de estudos


adicionais do rna, não do dna. Com o intuito de ”decifrar o código”, ou seja, de deslindar a relação
esquiva entre a seqüência de dna e a seqüência de aminoácidos das proteínas, Gamow e eu
formamos o rna Tie Club, limitado a vinte membros — um para cada aminoácido. Gamow
desenhou a gravata que
os membros usariam e encomendou vinte alfinetes de gravata com a abreviatura-padrão de três
letras de cada aminoácido — emblemas do objeto de estudo de cada um. Meu alfinete era pro, de
prolina; o de Gamow, ala, de alanina. Numa época em que esse tipo de alfinete geralmente
ostentava as iniciais de quem o vestia, Gamow divertia-se confundindo as pessoas com seu alfinete
ala. Mas seu gracejo saiu pela culatra um dia, quando um recepcionista de hotel de olho afiado se
recusou a aceitar seu cheque, afirmando que o nome impresso no cheque não correspondia às
iniciais do ornamento usado pelo cavalheiro.

O fato de a maioria dos cientistas envolvidos na temática da codificação ter conseguido incluir-se
num clube limitado a vinte membros mostra como era pequeno o mundo do dna-rna na época.
Gamow facilmente abriu espaço para um amigo que não era biólogo, o físico Edward Teller (leu —
leucina), e eu empossei Richard Feynman (gly — glicina), o físico extraordinariamente imaginativo
do Caltech que, quando se frustrava em suas pesquisas sobre as forças internas do átomo, sempre
vinha me visitar no prédio da biologia onde

eu trabalhava.

Um dos elementos do modelo proposto por Gamow em 1954 tinha a virtude de ser testável: por
envolver tripletos sobrepostos de nucleotídeos, previa
82

83
que muitos pares de aminoácidos jamais seriam encontrados em posições adjacentes numa proteína.
Com isso em mente, Gamow aguardava com ansiedade o seqüenciamento de novas proteínas. Para
sua decepção, mais e mais aminoácidos foram sendo encontrados lado a lado, e o seu modelo foi se
tornando mais e mais insustentável. O golpe de misericórdia em todo tipo de codificação à La
Gamow foi dado em 1956, quando Sydney Brenner (val — valina) analisou todas as seqüências de
aminoácidos então disponíveis.

Brenner crescera numa pequena cidade perto dejohannesburgo, África do Sul, em dois cômodos nos
fundos da sapataria do seu pai. Embora Brenner pai, um imigrante lituano, fosse analfabeto, o filho
precoce descobriu o amor pela leitura aos quatro anos e, guiado por essa paixão, descobriu a
biologia graças a um livro didático chamado A ciência da vida. Embora um dia viesse a admitir que
roubou o livro da biblioteca pública, nem furtos nem pobreza impediriam seu avanço: ingressou na
Faculdade de Medicina da Universidade de Witwatersrand com catorze anos e estava tirando seu
doutorado em Oxford quando chegou a Cambridge um mês após nossa descoberta da dupla-hélice.
Ele se lembra da sua reação ao nosso modelo: ”Quando o vi, percebi que era isso mesmo. E, num
repente, simplesmente soube que aquilo era muito fundamental”.

Gamow não foi o único cujas teorias estavam caindo por terra; eu também tive a minha cota de
decepções. Depois da descoberta da dupla-hélice, fui para o Caltech e queria desvendar a estrutura
do rna. Para meu desespero, Alexander Rich (arg — arginina) e eu logo verificamos que, no RNA, a
difração por raios X resultava em padrões impossíveis de interpretar: claramente, a estrutura da
molécula não era tão bela e regular quanto a do dna. Para me deprimir ainda mais, numa nota
enviada no início de 1955 a todos os membros do Tie Club, Francis Crick (tyr — tirosina) previu
que a estrutura do rna, ao contrário do que eu supunha, não conteria o segredo da transformação dna
—proteína. Ele sugeria que, em vez disso, os aminoácidos eram provavelmente transportados ao
sítio da síntese protéica por meio do que chamou de ”moléculas adaptadoras”, das quais existiria
uma para cada aminoácido. Especulou ainda que esses adaptadores talvez fossem, eles próprios,
pequeníssimas moléculas de rna. Por dois anos, eu resisti à sua linha de raciocínio. Mas então uma
inesperada descoberta bioquímica provou que a sua idéia inédita acertara na mosca.

A descoberta ocorreu no Massachusetts General Hospital de Boston, onde havia vários anos Paul
Zamecnik vinha desenvolvendo sistemas acelulares para
estudar a síntese de proteínas. Células são corpos bastante compartimentalizados e Zamecnik, com
razão, julgou necessário estudar o que ocorria no interior , mas sem as complicações impostas pelas
várias membranas celulares. Utilizando materiais derivados de fígados de ratos, ele e seus
colaboradores conseguiam recriar em tubo de ensaio uma
versão simplificada do interior da célula, na qual poderiam rastrear aminoácidos marcados com
radioatividade no momento em que se uniam para formar proteínas. Foi assim que Zamecnik
identificou o ribossomo como o local onde ocorre a síntese protéica — algo que, de início, George
Gamow não aceitou.

Pouco depois, Zamecnik e seu colega Mahlon Hoagland fizeram uma descoberta ainda mais
surpreendente: os aminoácidos, antes de se incorporarem a cadeias polipeptídicas, estão ligados a
pequenas moléculas de pna. Esse fato os deixara muito intrigados, até que eu os informei da teoria
dos adaptadores de Crick. Eles então logo confirmaram a hipótese de haver um adaptador específico
(chamado rna transportador) para cada aminoácido. Além disso, cada uma dessas moléculas de rna
transportador também possui na superfície uma seqüência específica de bases que permite que se
ligue a um segmento correspondente do molde de rna, alinhando assim os aminoácidos para a
síntese protéica.

Até a descoberta do rna transportador, acreditava-se que todo rna celular atuasse como molde.
Agora percebíamos que o rna pode existir em várias formas diferentes, embora as duas principais
cadeias de rna que constituem o ribossomo sejam predominantes. Enigmática na época foi a
observação de que o tamanho dessas duas cadeias de rna é constante. Se fossem efetivamente os
moldes da síntese protéica, seria de esperar que seu comprimento variasse de acordo com os
diferentes tamanhos de seus produtos protéicos. Perturbador também era o fato de essas cadeias se
mostrarem bastante estáveis em termos metabólicos: uma vez sintetizadas, não se decompunham.
Mas experimentos no Instituto Pasteur haviam sugerido que vários moldes da síntese protéica
bacteriana eram efêmeros. E, o que era ainda mais estranho, as seqüências das bases nas duas
cadeias de rna ribossômico não apresentavam correlação alguma com as seqüências de bases ao
longo das respectivas moléculas do dna cromossômico.

A solução desses paradoxos surgiu em 1960, com a descoberta de uma terceira forma de rna, o rna
mensageiro, que se revelaria o verdadeiro molde da síntese protéica. Experimentos realizados em
meu laboratório em Harvard e Por Matt Meselson, François Jacob e Sydney Brenner no Caltech e
em Cambrid

84

85
ge mostraram que os ribossomos eram verdadeiras fábricas moleculares. O rna mensageiro passa
por entre as duas subunidades ribossômicas como aquelas antigas fitas de teletipo que alimentavam
os computadores de outrora. Os rnas transportadores, cada um com seu aminoácido, se fixam ao rna
mensageiro no ribossomo de tal modo que os aminoácidos são corretamente ordenados antes de se
ligarem quimicamente para formar as cadeias polipeptídicas.

Mas o código genético — as regras para transformar uma seqüência de ácido nucléico numa
seqüência ordenada de polipeptídeos — continuava obscuro. Em 1956, num manuscrito do rna Tie
Club, Sydney Brenner expôs as questões teóricas envolvidas, as quais, em essência, podiam ser
assim resumidas: como o código consegue especificar qual dos vinte aminoácidos será incorporado
a um determinado ponto de uma cadeia protéica se o dna só possuí quatro letras — a, t, g e c?
Obviamente, um único nucleotídeo, com apenas quatro identidades possíveis, seria insuficiente;
mesmo dois nucleotídeos, permitindo 16 permutações possíveis (4 x 4), não bastariam. Seriam
necessários no mínimo três deles, um tripleto, para codificar um só aminoácido. Contudo, isso
também pressupunha uma redundância inexplicável, pois um tripleto permitiria 64 permutações (4 x
4 x 4). Como o código só precisa de vinte, será que muitos aminoácidos eram codificados por mais
de um tripleto? Se assim fosse, uma codificação por ”quadrupleto” (4x4x4x4), produzindo 256
permutações, também seria perfeitamente exeqüível, mesmo que implicasse uma redundância ainda
maior.

Em 1961, na Universidade de Cambridge, Brenner e Crick realizaram o experimento definitivo que


demonstrou que o código é baseado em tripletos. Usando mutágenos químicos com extrema perícia,
eles conseguiram suprimir ou inserir pares de bases de dna e constataram que a inserção ou
supressão de um único par de bases resulta numa deletéria mutação frameshift [ou seja, com
deslocamento estrutural], pois todo o código situado além do ponto de mutação fica embaralhado.
Imagine um código com palavras de três letras, como o seguinte: bia não ama seu lar. Imagine agora
que ”A” seja suprimido. Se quisermos preservar a estrutura de três letras, a frase se tornará bia noa
mas bul ar — uma frase sem sentido do ponto de supressão em diante. O mesmo acontece quando
dois pares de bases são removidos ou inseridos. Se retirarmos o ”A” e o ”o”, obteremos bia nam ase
ula r — outro despautério. Mas o que acontece se suprimirmos (ou inserirmos) três letras? Ao
retirarmos as letras ”n”, ”A” e ”o”, ficamos com bia ama seu lar. Embora tenhamos perdido uma
”palavra” — não —, o

86

restante
da frase continua a fazer sentido, ainda que não seja o mesmo da frase
final. caso a supressão abranja mais de uma ”palavra” — ou seja, se retiraros as letras ”A”, ”o” e o
segundo ”a”, por exemplo —, perderemos apenas as palavras em questão, pois também aqui
conseguimos recuperar uma frase
significativa: bia nma seu lar. O mesmo se dá com a seqüência do dna: uma única inserção
/supressão transtorna radicalmente a proteína por causa do efeito frameshift, que altera todos os
aminoácidos além do ponto de inserção /supressão e o mesmo vale para uma dupla inserção /
supressão. Mas uma tripla inserção/supressão na molécula de dna não produz necessariamente um
efeito catastrófico; um aminoácido será acrescentado/eliminado, mas isso não prejudicará
obrigatoriamente toda a atividade biológica.

Certa vez, Crick veio ao laboratório tarde da noite com Leslie Barnett para conferir o experimento
da tripla supressão e logo percebeu a importância do resultado final, comentando com o colega:
”Nós dois somos os únicos a saber que o código é baseado em tripletos!”. Ao meu lado, Crick fora o
primeiro a vislumbrar o segredo da dupla-hélice da vida; agora ele era o primeiro a saber com
certeza que esse segredo está escrito em palavras de três letras.

Já sabíamos que o código era baseado em tripletos e que as ligações entre dna e proteína eram
mediadas pelo rna. Mas ainda não havíamos decifrado o código. Qual par de aminoácidos é
especificado por um trecho de dna cuja seqüência seja, digamos, ata tat ou ggt cat? O primeiro
vislumbre da solução surgiu numa palestra dada por Marshall Nirenberg no Congresso Internacional
de Bioquímica em Moscou, em 1961.

Ao saber da descoberta do rna mensageiro, Nirenberg, que trabalhava no National Institutes of


Health [nih] dos Estados Unidos, ficou curioso em saber se rna sintetizado in vitro funcionaria tão
bem na síntese protéica de sistemas acelulares quanto a forma mensageira natural do ácido
ribonucléico. Para descobrir, usou rna preparado de acordo com os procedimentos criados seis anos
antes na New York University pela bioquímica francesa Marianne GrunbergManago. Ela descobrira
uma enzima específica do rna capaz de produzir fieiras como aaaaaa ou gggggg. E, como uma das
diferenças fundamentais entre o RNA e o dna é o fato de o primeiro possuir uracila (”u”) em vez de
timina (”t”), a mesma enzima também podia produzir fieiras de us — uuuuu..., ou poli-u no

L
87
jargão bioquímico. Foi um poli-u que Nirenberg e seu colaborador alemão, Heinrich Matthaei,
adicionaram a um sistema acelular em 22 de maio de 1961. O resultado foi espantoso: os
ribossomos começaram a produzir uma proteína simples formada por uma fieira de um único
aminoácido, fenilalanina. Ou seja, eles haviam descoberto que o poliu codifica a polifenilalanina.
Conseqüentemente, uma das palavras de três letras pelas quais o código genético especifica a
fenilalanina tinha de ser uuu.

O Congresso Internacional de Bioquímica de 1961 reuniu todos os principais protagonistas da


biologia molecular. Nirenberg, que na época era um jovem cientista totalmente desconhecido,
estava programado para falar por apenas dez minutos. Quase ninguém assistiu à sua palestra. Eu
mesmo não estava presente. Mas, quando a notícia da sua bomba começou a circular, Crick
rapidamente o incluiu numa sessão posterior para que ele pudesse fazer seu anúncio a uma platéia
lotada e, agora, cheia de expectativa. Foi um momento extraordinário. Um jovem humilde e
discreto, quase anônimo, discursando perante todo o quem-é-quem da biologia molecular e
mostrando o caminho para decifrarmos o código genético completo.

Em termos práticos, Nirenberg e Matthaei haviam resolvido apenas ’ Ua do problema — tudo o que
agora sabíamos é que o uuu codifica a fenilalanina. Restavam ainda 63 outros tripletos de três letras
(códons) a descobrir. Nos anos seguintes, houve um frenesi de pesquisas tentando descobrir quais
aminoácidos os outros códons representavam. O mais difícil era sintetizar as diversas permuta-

Francis Crick (centro) com Gobinã Khorana e Marianne Grunberg-Manago. Khorana âeslindou grande parte do código genético após a
descoberta inicial de Nirenberg, que por sua vez se baseou nas pesquisas pioneiras de Grunberg-Manago.
ões de rna; a produção do poli-U era relativamente simples, mas o que dizer do cq7 Muita massa
cinzenta química foi dedicada a resolver esses problemas, e ninguem se esforçou mais do que
Gobind Khorana, da Universidade de Wisconsin, até que, em 1966, já se havia estabelecido o que
cada um dos 64 códons especifica — ou seja, o código genético propriamente dito. Khorana e
Nirenberg receberam o prêmio Nobel de fisiologia/ medicina em 1968.

o prêmio Nobel de fisiologia/medicina em 1968.

88

Juntemos agora todas as partes dessa história para ver como uma proteína específica, a
hemoglobina, é produzida.

Os glóbulos vermelhos do sangue [hemácias] são especializados no transporte de oxigênio. Para


tanto, usam hemoglobina para levar oxigênio dos pulmões aos órgãos e tecidos. As hemácias são
produzidas na medula óssea por células-tronco: cerca de 2,5 milhões são criadas por segundo.

Quando surge a necessidade de produzir hemoglobina, o segmento pertinente do dna da medula


óssea — o gene da hemoglobina — abre-se como um zíper, da mesma maneira que o dna se abre ao
replicar. Mas, dessa vez, em vez de ambas as
fitas serem copiadas, somente uma é transcrita — para usar o termo técnico. E, em vez de uma
nova fita de dna, o produto criado com a ajuda da enzima rna polimerase é uma nova fita única de
rna mensageiro, que corresponde ao gene da hemoglobina. E o dna do qual o rna proveio se fecha
como um zíper novamente.

O rna mensageiro é transportado para fora do núcleo, até um ribossomo, composto também de rna e
de proteínas, onde as informações contidas na seqüência do rna mensageiro serão usadas para gerar
uma nova molécula de proteína. Esse processo é conhecido como tradução. Os aminoácidos
chegam ao sítio anexados ao rna transportador. Numa extremidade do rna transportador está um
tripleto específico (no caso do diagrama, caa), que reconhece o tripleto oposto correspondente no
rna mensageiro, guu. Na outra extremidade, o Rna transportador arrasta consigo o seu aminoácido
equivalente — no caso, valina. No tripleto seguinte do rna mensageiro, temos um rna transportador
de Usina (pois a seqüência do dna é ttc, que especifica a Usina). Resta agora apenas efetuar uma
colagem bioquímica dos dois aminoácidos. Fazendo isso cem vezes, teremos uma cadeia de
proteínas com cem aminoácidos de comprimento, cuja ordem terá sido especificada pela ordem dos
as, ts, g, e cs no dna a par-

89
tir dos quais o rna mensageiro foi criado. Os dois tipos de cadeias de hemoglobina têm 141 e 146
aminoácidos de comprimento.

Mas as proteínas são mais do que meras cadeias lineares de aminoácidos. Uma vez formada a
cadeia, as proteínas se desdobram em configurações complexas, às vezes por si próprias, às vezes
ajudadas por moléculas ”auxiliadoras”. Somente quando assumem essa configuração é que elas se
tornam biologicamente ativas. No caso da hemoglobina, são necessárias quatro cadeias (duas de um
tipo e duas de um tipo ligeiramente diferente) antes que a molécula esteja pronta para o trabalho. E
inserida no centro de cada cadeia retorcida está a chave do transporte de oxigênio: um átomo de
ferro.

AMINOÁCIDO

alanina

arginina

asparagina

ácido aspártico

cisteína

ácido glutâmico

glutamina

glicina

histidina

isoleucina

leucina

lisina

metionina

fenilalanina

prol i na

serina

treonina

triptofano

tirosina

valina

3NSDE INAÇÃO

O CÓDIGO GENÉTICO

CÓDON DO RNA
GCA GCC GCG GCU

AGA AGG CGA CGC CGG CGU

AAC AAU

GAC GAU

UGC UGU

GAA GAG

CAA CAG

GGA GGC GGG GGU

CAC CAU

AUA AUC AUU

UUA UUG CUA CUC CUG CUU

AAA AAG

AUG

UUC UUU

CCA CCC CCG CCU

AGC AGU UCA UCC UCG UCU

ACA ACC ACG ACU

UGG

UAC UAU

GUA GUC GUG GUU

ÚÂiflJÃG UGÂ : *

timina O

H3C

§J5ADA NO DNA

USADA NO RNA

O código genético, mostrando as seqüências de tripletos do RNA mensageiro. Uma diferença importante entre o DNA e o RNA é que o
primeiro usa timina e este último, uracila. Ambas as bases são complementares da adenina. Os códons de terminação [stop codons]
fazem o que seu nome sugere: marcam o fim da parte codificante de um gene.

gene da hemoglobina

rrt
,o

j. i n i»v

RNA mensageiro da hemoglobina

NÚCLEO

cadeia de

hemoglobina em

crescimento

RNA transportador leva consigo o aminoácido lisina

’ ” M,’,’,-»

k
C A A U U C

G u y A A G G

tripleto de tripleto de

RNA que codifica RNA que codifica

a valina

a lisina

cadeia de proteína hemoglobina completa

De DNA a proteína. O DNA é transcrito no núcleo do rna mensageiro, que é então exportado para o ctíoplasma, onde será traduzido em
proteína. A tradução ocorre nos ríbossomos: RNA s transportadores, complementares de cada códon com três pares de bases no rna
mensageiro, carregam os aminoácidos, que se ligam para formar uma cadeia de proteínas.

90

91
É possível usar os recursos atuais da biologia molecular para voltar no tempo e reconsiderar alguns
exemplos clássicos dos primórdios da genética. Para Mendel, era um mecanismo misterioso que
fazia com que algumas ervilhas fossem enrugadas e outras, lisas. Essas características apenas
obedeciam às leis da hereditariedade que ele elaborara. Hoje, porém, compreendemos a diferença
com um detalhamento molecular.

Em 1990, cientistas na Inglaterra descobriram que as ervilhas enrugadas carecem de uma enzima
que atua no processamento do amido (o carboidrato armazenado em sementes). O que acontece é
que, nas plantas rugosas, o gene dessa enzima não é atuante, devido a uma mutação (nesse caso, a
intrusão de dna irrelevante no meio do gene). Como conseqüência da mutação, as ervilhas rugosas
contêm menos amido e mais açúcar e, portanto, tendem a perder mais água durante o
amadurecimento. Mas o envoltório externo da semente da ervilha não encolhe, mesmo com a água
escapando (e o volume da ervilha diminuindo); isso resulta na sua rugosidade característica — o
conteúdo interno é insuficiente para preencher todo o envoltório.

A alcaptonúria, estudada por Archibald Garrod, também ingressou na era molecular. Em 1995,
cientistas espanhóis que estudavam fungos descobriram um gene mutante que provocava a
acumulação da mesma substância observada por Garrod na urina dos alcaptonúricos. Normalmente,
esse gene produz ; uma enzima que é um componente básico de muitos sistemas vivos e que está
presente nos seres humanos. Comparando-se a seqüência do gene fúngico com seqüências humanas,
foi possível encontrar o gene humano que codifica uma enzima chamada homogentisate
dioxigenase. O passo seguinte foi comparar esse gene em indivíduos normais e em pacientes
alcaptonúricos. E eis que, nos alcaptonúricos, o gene é não-atuante, devido a uma mutação num
único par de bases. O ”erro inato no metabolismo” mencionado por Garrod é causado por uma
diferença mais do que singela na seqüência do dna.

Em 1966, o simpósio sobre o código genético em Cold Spring Harbor era permeado pela sensação
de que já tínhamos realizado tudo. O código fora decifrado e sabíamos, ao menos por alto, como o
dna controlava os processos vitais por meio das proteínas que especifica. Alguns dos veteranos
decidiram que chegara a hora de ir além do estudo do gene. Francis Crick voltou-se para a neuro-

biologia e, não sendo da sua índole esquivar-se das grandes questões, decidiu

rentar descortinar como o cérebro humano funciona. Sydney Brenner interes-

ou-se pela biologia do desenvolvimento e concentrou-se num verme nematói-

de, simples- A seu ver, precisamente por ser tão simples, essa criatura permitiria que os cientistas
desvendassem as relações entre genes e desenvolvimento. Hoje o verme, como é conhecido no
ramo, é responsável por grande parte do que sabemos sobre o modo como os organismos
são construídos. Sua contribuição foi reconhecida pela comissão do prêmio Nobel em 2002, quando
Brenner e dois outros intrépidos estudiosos do verme, John Sulston em Cambridge e Bob Horvitz
no Massachusetts Institute of Technology (mit), foram agraciados com o prêmio de
fisiologia/medicina.

Mas a maioria dos pioneiros da epopéia do dna optou por continuar estudando os mecanismos
básicos do funcionamento do gene. Por que certas proteínas são muito mais abundantes que outras?
Diversos genes são ”ligados” apenas em células específicas ou momentos específicos da vida de
uma célula; como isso acontece? A célula de um músculo é muito diferente da célula do fígado,
tanto em função como na aparência sob o microscópio. Mudanças na expressão do gene são
responsáveis por essa diversidade e diferenciação celulares. Em outras palavras, as células
musculares e as células hepáticas produzem grupos diferentes de proteínas. O modo mais fácil de
produzir proteínas diferentes é controlar quais genes são transcritos em cada célula. Assim, algumas
das chamadas proteínas de manutenção [housekeeping proteins] — isto é, essenciais para o
funcionamento da célula, como as envolvidas na replicação do dna — são produzidas por todas as
células. Afora elas, genes específicos são ligados em determinados momentos em determinadas
células para produzir determinadas proteínas. Também é possível pensar o desenvolvimento — ou
seja, o crescimento e transformação de um simples óvulo fertilizado em um ser humano adulto de
estarrecedora complexidade — como um enorme exercício de ligar e desligar genes: à medida que
novos tecidos vão surgindo, conjuntos inteiros de genes precisam ser ligados e desligados.

Os primeiros avanços de peso em nosso entendimento do ligar e desligar

os genes decorreram de experimentos realizados na década de 1960 por FranÇQis Jacob e Jacques
Monod no Instituto Pasteur, de Paris. Monod começara claudicantemente sua carreira científica; o
pobre rapaz era talentoso em tantas áreas que teve dificuldade em se concentrar numa só. Na década
de 1930, pas-
92

93
FrançoisJacob,Jacques Monod e André Lwoff.

sou uma temporada no departamento de biologia do Caltech sob T. H. Morgan, o pai da genética da
mosca-das-frutas, mas nem mesmo o contato diário com os ”garotos de Morgan” (que já não eram
tão imberbes assim) foi capaz de convertê-lo ao drosofilismo. Ele preferia reger concertos de Bach
na universidade (que chegou a lhe oferecer um emprego para lecionar crítica musical aos
estudantes) e nas mansões dos milionários locais. Só concluiu seu doutorado em 1940, na Sorbonne,
em Paris, quando já estava profundamente envolvido na Resistência francesa. Num dos poucos
casos de cumplicidade entre biologia e espionagem, Monod escondeu documentos secretos vitais no
vão oco do osso da perna de um esqueleto de girafa em exposição diante de seu laboratório. Com o
recrudescimento da guerra, aumentava a sua importância na Resistência (e, com ela, sua
vulnerabilidade aos nazistas). No Dia D, desempenhou um papel importante, facilitando o avanço
dos Aliados e estorvando a retirada dos alemães.

Jacob também participou do esforço de guerra. Fugiu para a Grã-Bretanha, juntou-se ao Exército
Livre francês, serviu no norte da África e participou da invasão do Dia D. Pouco depois, quase foi
morto por uma bomba; vinte estilhaços foram retirados de seu corpo, mas até hoje ele ainda guarda
outros oitenta. Seu braço ficou lesado e os ferimentos puseram fim à sua ambição de tornar-se
cirurgião. Inspirado, como tantos outros da nossa geração, pelo livro O que é a vida?, de
Schrõdinger, ele foi se direcionando para a biologia. Seus esforços para juntar-se ao grupo de
pesquisadores de Monod, porém, foram repetidamente rechaçados. Até que, após sete ou oito
tentativas, segundo relato do próprio Jacob, o chefe de Monod, o mícrobiologista André Lwoff,
aceitou-o em junho de 1950:

Sem que eu tivesse uma chance de lhe expor novamente quais eram meus desejos minha ignorância, minha
ansiedade, [Lwoff] declarou: ”Como você deve ber nós descobrimos a indução dos prófagos!” [isto é, como
ativar o dna bacteriófago incorporado ao DNA da bactéria hospedeira]. ”Ah!”, retruquei, tentando dar um tom
de extrema admiração, mas pensando comigo mesmo: ”Que diabos é um prófago?”.

Ele então perguntou: ”Você estaria interessado em trabalhar com fagos?”. Gaguejando, respondi que
era exatamente o que eu pretendia. ”Ótimo; apareça por aqui no dia 10 de setembro.”

Jacob diz que saiu da entrevista e entrou direto numa livraria, à procura de um dicionário que o
ajudasse a decifrar aquilo de que acabara de se incumbir.

A despeito desse começo pouco auspicioso, a colaboração Jacob-Monod resultou em ciência do


mais alto calibre. Eles estudaram o ligar e desligar dos genes na E. coli, nossa já conhecida bactéria
intestinal, concentrando-se na capacidade desta de fazer uso da lactose, um tipo de açúcar. Para
digerir a lactose, a E. coli produz uma enzima chamada beta-galactosidase,
que decompõe esse nutriente em dois açúcares mais simples: galactose e glicose. Quando não há
lactose no meio bacteriano, a célula não produz beta-galactosidase; mas, se lactose for introduzida,
ela começa a produzir a enzima. Concluindo que é a presença da lactose que induz a produção de
beta-galactosidase, Jacob e Monod resolveram estudar como essa indução ocorre.

Em uma série de experimentos sucintos, eles encontraram sinais de uma molécula ”repressora” que,
na ausência de lactose, impede a transcrição do gene da beta-galactosidase. Todavia, se houver
lactose presente, ela se liga ao repressor, impedindo-o assim de bloquear a transcrição. Ou seja, é a
presença de lactose que permite a transcrição do gene. Na realidade, Jacob e Monod descobriram
que o metabolismo da lactose é um processo coordenado, não uma mera questão de ligar ou desligar
um gene num dado momento. Outros genes atuam na digestão da lactose e o mesmo sistema
repressor serve para regular todos eles. A £• coli é um sistema relativamente simples para investigar
o ligar e desligar dos genes, mas pesquisas subseqüentes com organismos mais complicados,
inclusive seres humanos, revelaram que os mesmos princípios básicos se aplicam a todos. Jacob e
Monod obtiveram seus resultados estudando linhagens mutantes a E. coli. Não tinham nenhuma
comprovação direta de uma molécula repres-

94

95
sora, cuja existência foi apenas uma inferência lógica da solução que deram ao
enigma genético. Suas idéias só foram validadas no âmbito molecular no fim da
década de 1960, quando Walter (Wally) Gílbert e Benno Müller-Hill, na Har-1
vard, conseguiram isolar e analisar a própria molécula repressora. Jacob e
Monod haviam apenas previsto a existência dela; Gilbert e Müller-Hill a encon-
traram. Como, via de regra, o repressor só está presente em quantidades minús-
culas (somente algumas moléculas por célula), a obtenção de uma amostra
grande o suficiente para análise foi um tremendo desafio técnico — superado
no final, é claro. Ao mesmo tempo, Mark Ptashne, que trabalhava num outro
laboratório no mesmo prédio, conseguiu isolar e caracterizar outra molécula
repressora, a do sistema de ligar e desligar genes de um bacteriófago. E desço-
briu que as moléculas repressoras são proteínas capazes de se ligar ao dna. Na
ausência de lactose, é exatamente isso que o repressor da beta-galactosidase faz:
quando se liga a um sítio do dna da E. coli próximo do ponto em que tem início
a transcrição do gene da beta-galactosidase, o repressor impede a enzima que
produz rna mensageiro a partir do gene de fazer seu trabalho. Porém, quando
a lactose é introduzida, esse açúcar se liga ao repressor, impedindo-o de ocupar o
sítio na molécula de dna perto do gene da beta-galactosidase, e a transcrição
pode seguir adiante.
A caracterização da molécula repressora completou um ciclo em nosso
entendimento dos processos moleculares subjacentes à vida. Já sabíamos que o
dna produz proteína por meio do rna; agora sabíamos também que certas pro-
teínas se ligam ao dna e interagem diretamente com ele para regular as ativida-
des dos genes.

A descoberta do papel central do rna na célula levantou uma questão interessante (que, por muito
tempo, ficou sem resposta): por que as informações contidas no dna precisam passar por um estágio
intermediário no rna antes de ser traduzidas numa seqüência polipeptídica? Pouco depois que o
código genético foi decifrado, Francis Crick propôs uma solução para esse paradoxo, sugerindo que
o rna é anterior ao dna. Para ele, o rna foi a primeira molécula genética, numa época em que a vida
era baseada no rna — ou seja, teria havido um ”mundo feito de rna” anterior ao mais familiar
”mundo feito de dna” de hoje (e dos últimos bilhões de anos). Crick imaginou que a estrutura
química dife-

96

nte do rna (o fato de haver o açúcar ribose em seu esqueleto, não desoxirribose como no dna)
poderia dotá-lo de propriedades enzimáticas que o façam catalisar a própria auto-replicação.

Crick argumentava que o dna tinha de ser um evento posterior, talvez uma resposta à relativa
instabilidade das moléculas do rna, que se degradam e sofrem mutações muito mais facilmente que
as do dna. Se quisermos uma molécula bem estável, capaz de armazenar informações por um longo
prazo, então o dna é uma opção muito melhor do que o rna.

As idéias de Crick sobre um mundo feito de rna anterior ao aparecimento do dna passaram
praticamente despercebidas até 1983, quando Tom Cech, na Universidade do Colorado, e Sydney
Altman, em Yale, mostraram independentemente que as moléculas de rna possuem, de fato,
propriedades catalíticas — uma descoberta que lhes conferiu o prêmio Nobel de química em 1989.
Comprovações ainda mais evidentes desse mundo prévio feito de rna surgiram uma década depois,
quando Harry Noller, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, mostrou que a formação de
ligações peptídicas (que mantêm aminoácidos unidos em proteínas) não é catalisada por nenhuma
das sessenta proteínas diferentes associadas ao ribossomo, o sítio da síntese protéica, e sim pelo rna.
Ele chegou a essa conclusão eliminando todas as proteínas do ribossomo e constatando que, mesmo
assim, este ainda conseguia formar ligações peptídicas. Uma análise requintada e detalhista da
estrutura tridimensional do ribossomo, levada a cabo por Noller e outros, mostra o porquê: as
proteínas estão

Harry Noller debatendo-se

com o ribossomo.

97
espalhadas por toda a superfície, longe do cerne do ribossomo, onde tudo acontece.

Inadvertidamente, essas descobertas resolveram o problema ovo-ou-galinha da origem da vida. A


suposição prevalecente, segundo a qual a forma original de vida teria sido uma molécula de dna,
implicava uma contradição inescapável. O dna não é capaz de formar a si próprio; proteínas são
necessárias para i tal. Mas então o que veio antes? As proteínas, que não possuem nenhum meio
conhecido de duplicar informações, ou o dna, que pode duplicar informações, ] mas apenas na
presença de proteínas? O problema era insolúvel: não pode haver 3 dna sem proteínas nem
proteínas sem dna. 1

O rna, porém, sendo um equivalente do dna (pode armazenar e replicar m informações genéticas) e
também um equivalente das proteínas (pode catalisar I reações químicas cruciais), fornecia uma
resposta. Na realidade, num ”mundo feito de rna”, o problema do ovo e da galinha simplesmente
desaparece. O rna I é ao mesmo tempo o ovo e a galinha.
O rna é uma relíquia do processo evolutivo. Quando a seleção natural resolve um problema, ela
tende a se ater a essa solução — como se adotasse a máxima ”não se mexe em time que está
vencendo”. Em outras palavras, na ausência de pressões seletivas para mudar, os sistemas celulares
não inovam e, portanto, guardam muitas marcas do passado evolutivo. É possível que um pro-
cesso transcorra de determinada maneira simplesmente porque foi assim que ele evoluiu, não por
ser a melhor e mais eficiente maneira de realizar algo.
15 bilhões de anos atrás

tempo

primeiros mamíferos

mundo feito

de DNA + RNA

+ proteínas

mundo feito de RNA + proteínas

A evolução da vida após o Big Bang: talvez nunca saibamos ao certo exatamente quando a vida se originou, mas é provável que as
primeiras formas vitais fossem baseadas no rna.

A biologia molecular percorreu um longo caminho nos vinte primeiros anos após a descoberta da
dupla-hélice. Conseguimos compreender o mecanismo básico da vida e adquirimos até uma vaga
noção de como os genes são regulados. Mas, nesse período, tudo o que fizemos foi observar:
éramos naturalistas moleculares para quem a floresta tropical era a célula — tudo o que podíamos
fazer era descrever o que víamos. Chegara, porém, a hora de começarmos a agir. Menos observação
e mais ação: a perspectiva de intervir, de manipular coisas vivas, nos atraía. O advento das
tecnologias de dna recombinante — e, com elas, a capacidade de criar moléculas de dna sob medida
— tornaria tudo isso possível.

98

99
4. Bancando Deus: Moléculas de dna personalizadas

,&»-
As moléculas de dna são infinitamente longas. Em qualquer cromossomo, existe uma única dupla-
hélice contínua de dna. Comentaristas comuns gostam de chamar atenção para a enormidade dessas
moléculas usando comparações — o número de assinantes na lista telefônica de Nova York, por
exemplo, ou a extensão do rio Danúbio. Mas esse tipo de comparação não me diz nada: não faço
idéia de quantos telefones existem em Nova York e menções ao rio Danúbio só me trazem à mente a
valsa de Strauss, não um parâmetro de distância linear.

Acima: Um laboratório P4, com as instalações de máxima segurança exigidas para pesquisas biomédicas com organismos letais, como
o vírus Ebola, ou para desenvolver armas biológicas. No final da década de
1970, cientistas que usassem métodos de engenharia genética para pesquisar o DNA humano também eram obrigados a utilizar um
laboratório P4.

Com exceção dos cromossomos sexuais, x e y, os cromossomos humanos

”o numerados conforme o tamanho. O cromossomo 1 é o maior de todos; os

romossomos 21 e 22 são os menores. No cromossomo 1 estão 8% do dna total

At cada célula, cerca de 250 milhões de pares de bases. Os cromossomos 21 e 22

ontem cerca de 40 e 45 milhões de pares de bases, respectivamente. E mesmo

as menores moléculas de dna — as de alguns vírus — possuem no mínimo

alguns milhares de pares de bases.

O tamanho das moléculas de dna foi um grande problema nos primórdios da biologia molecular.
Para estudar a fundo um gene — isto é, um determinado trecho de dna — teríamos de conceber
alguma maneira de isolá-lo do restante do dna, que espraia em ambas as direções. E não era apenas
uma questão de isolar o gene: também precisávamos ”amplificá-lo” de algum modo se quiséssemos
obter uma amostra grande o bastante para se trabalhar. Em essência, precisávamos de um sistema de
edição-e-montagem molecular: uma tesoura molecular que cortasse o texto do dna em seções de
tamanho aceitável, algum tipo de cola molecular que nos permitisse manusear essas seções e, por
fim, alguma máquina molecular de duplicação para amplificar as seções que havíamos cortado e
isolado. Precisávamos fazer com o dna o que hoje qualquer processador de textos faz com palavras:
cortar, copiar e colar.

Desenvolver as ferramentas básicas para tais procedimentos ameaçava ser uma tarefa e tanto,
mesmo depois de termos decifrado o código genético. Em
1973, porém, constatou-se que algumas descobertas feitas por volta de 1970, quando tomadas em
conjunto, nos davam a capacidade de ”editar” o dna. Essas ”tecnologias de dna recombinante”
representaram muito mais que um mero avanço em técnicas laboratoriais. De repente, os cientistas
tinham condições de criar moléculas de dna personalizadas, moléculas que nunca haviam existido
na natureza. Pudemos ”bancar Deus” com a estrutura molecular subjacente à própria vida. Esta era
e ainda é uma idéia perturbadora para muitas pessoas. Jeremy Rifkin, um alarmista para quem toda
nova tecnologia genética traz
consigo um quê do monstro do dr. Frankenstein, acertou quando disse que o dna recombinante foi
”tão importante quanto a descoberta do fogo”.

Arthur Kornberg foi o primeiro a ”criar vida” em um tubo de ensaio. Como vimos, na década de
1950 ele descobriu a dna polimerase, a enzima que
100

101
replica o dna, formando uma cópia complementar a partir de uma única fita ”genitora”. Mais tarde,
ele trabalharia com um tipo de dna viral e conseguiu induzir a replicação de todos os 5.300 pares de
bases de dna do vírus. Mas o produto final não era ”vivo”; apesar de a seqüência de dna ser idêntica
à original, era biologicamente inerte. Algo estava faltando. O ingrediente ausente permaneceria um
mistério até 1967, quando Martin Gellert, no National Instítutes of I Health, e Bob Lehman, em
Stanford, identificaram-no ao mesmo tempo. Essa 1 enzima foi chamada ”ligase”. A ligase tornou
possível ”ligar” ou ”colar” as extremidades de moléculas de dna.
Kornberg pôde replicar o dna viral usando a dna polimerase e, ao acrescentar a ligase, conseguiu
unir as duas extremidades, de tal modo que a molécula formou um loop contínuo, como no vírus
original. Com isso, o dna viral ”artificial” passou a se comportar exatamente como o natural: vírus
normal se multiplica na E. coli e agora o mesmo acontecia com a molécula de dna criada por
Kornberg em tubo de ensaio. Usando apenas duas enzimas, alguns ingredientes químicos básicos e
o dna viral a ser copiado, Kornberg criara uma molécula biologicamente ativa. A mídia noticiou que
ele havia criado vida num tubo de ensaio, inspirando o presidente Lyndon Johnson a referir-se ao
seu feito como uma ”realização assombrosa”.

Na década de 1960, as contribuições do bioquímico suíço Werner Arber ao H desenvolvimento da


tecnologia do dna recombinante foram mais inesperadas. H Arber não estava interessado nas
grandes questões referentes à base molecular da vida, e sim num aspecto enigmático da história
natural dos vírus. Ele estudara o processo pelo qual alguns dnas virais são destruídos depois de
inseridos em células bacterianas hospedeiras. Algumas células hospedeiras (embora não todas,
de outra forma nenhum vírus poderia se reproduzir) identificavam certos dnas virais como estranhos
e seletivamente os atacavam. Como? Por quê? 9 Em todo o mundo natural, o dna é a mesma
molécula básica, não importa se está numa bactéria, vírus, planta ou animal. O que impedia uma
bactéria de atacar o seu próprio dna ao mesmo tempo que investia contra o dna do vírus? A
primeira resposta veio com a descoberta por Arber de um novo grupo de enzimas que degradam o
dna: as enzimas de restrição. Sua presença nas células bacterianas restringe o crescimento viral
ao ”clivar” — cortar — o dna estranho. A clivagem do dna é uma reação da enzima a seqüências
específicas: ela só irá clivar o dna se reconhecer uma determinada seqüência. A EcoRl, por
exemplo, £

uma das primeiras enzimas de restrição descobertas, reconhece e cliva a seqüência específica de
bases gaattc.

Mas por que a bactéria não acaba clivando o seu próprio dna em todos os sítios em que a seqüência
gaattc aparece? Essa foi
a segunda grande descoberta de Arber. Ao produzir uma enzima de restrição que visa a uma
seqüência específica, a bactéria também produz uma segunda enzima que modifica quimicamente a
mesma seqüência em seu próprio dna toda vez que esta ocorrer. (A enzima realiza essa proeza
química acrescentando— metil — às bases.) As seqüências gaattc modificadas do dna bacteriano
passam despercebidas pela EcoRl, mesmo que a enzima continue decepando a seqüência sempre
que ela ocorre no dna viral.

O ingrediente seguinte da revolução do dna recombinante surgiu a partir de estudos sobre a


resistência antibiótica das bactérias. Na década de 1960, descobriu-se que muitas bactérias,
diferentemente da forma usual (isto é, pela mutação do genoma bacteriano), desenvolviam
resistência a antibióticos pela importação de um pedaço extracromossômico de dna chamado
”plasmídeo”. Plasmídeos são pequenos circuitos circulares de dna que vivem dentro de bactérias,
sendo replicados e transmitidos (juntamente com o resto do genoma bacteriano) durante a divisão
celular. Sob certas circunstâncias, os plasmídeos também podem passar de uma bactéria para outra,
permitindo que a bactéria recipiente adquira instantaneamente toda uma gama de informações
genéticas que não recebera ”ao nascer”. Em geral, essas informações incluem os genes que
conferem resistência a antibióticos. A seleção natural imposta pelos antibióticos favorece as células
bacterianas que incorporam o fator de resistência (o plasmídeo).

Stanley Cohen, da Universidade Stanford, foi um dos pioneiros no estudo dos plasmídeos. Graças
ao incentivo de seu professor de biologia no colegial, ele decidiu seguir carreira em medicina. Ao se
formar na faculdade, seu plano de
102

Um plasmídeo visto num microscópio eletrônico.

103
tornar-se clínico-geral foi arquivado, pois a possibilidade de ser convocado pelo exército para
trabalhar como médico inspirou-o a aceitar um cargo de pesquisador no National Institutes of
Health (nih). Não demorou a verificar que preferia a pesquisa à prática médica. Sua grande
descoberta ocorreu em 1971, quando idealizou um método para induzir células bacterianas da E.
coli a importarem plasmideos de fora da célula. Para todos os efeitos, Cohen estava
”transformando” a E. coli — do mesmo modo como Fred GrifEth, quarenta anos antes, con vertera
cepas de bactérias não-letais de pneumonia em bactérias letais mediante absorção de dna. No caso
de Cohen, porém, foi o plasmídeo, possuidor de genes de resistência antibiótica, que foi absorvido
por uma cepa outrora suscetível ao antibiótico. Essa cepa permaneceu resistente ao antibiótico ao
longo das gerações subseqüentes, pois cópias do dna plasmídeo foram transmitidas intactas em cada
divisão celular.

No início da década de 1970, todos os ingredientes para produzir dna recombinante já existiam.
Primeiro, podíamos clivar moléculas de dna usando enzimas de restrição e isolar as seqüências
(genes) que nos interessassem. Segundo, usando a ligase, podíamos ”colar” essa seqüência num
plasmídeo (que, por sua vez, podia servir como uma espécie de disquete contendo a seqüência
desejada). Por fim, podíamos copiar um pedaço de dna inserindo esse mesmo plasmídeo numa
célula bacteriana — a divisão celular bacteriana normal cuidaria de replicar o plasmídeo com nosso
pedaço de dna, da mesma maneira como faria com materiais genéticos herdados da própria célula.
Assim, partindo de um único plasmídeo transplantado para uma única célula bacteriana, a
reprodução bacteriana podia produzir quantidades enormes da seqüência desejada de dna. Se
deixássemos essa célula se reproduzir continuamente, acabaríamos com uma gigantesca colônia
bacteriana de bilhões de bactérias, ao mesmo tempo que criaríamos bilhões de cópias de nosso
pedaço de dna. A colonia era, portanto, uma verdadeira fábrica de dna. 1

Os três componentes — cortar, colar e copiar — juntaram-se em novembro de 1972, em Honolulu,


numa conferência sobre plasmideos. Herb Boyer, , um jovem professor titular da Universidade da
Califórnia em San Francisco, estava presente e, é claro, também Stanley Cohen, o grande pioneiro
dos plasmideos. Boyer, como Cohen, nascera na Costa Leste dos Estados Unidos. Joga- ;

como atacante no time de futebol americano do seu colégio no oeste da Pensilvânia e teve a sorte de
o treinador ser também seu professor de ciências. Como Cohen, ele se tornaria parte de uma nova
geração de cientistas formados após a descoberta da dupla-hélice. Um grande entusiasta do dna,
chegou a batizar seus gatos siameses de Watson e Crick. Ninguém se surpreendeu — certamente
não o seu treinador de futebol — quando decidiu especializar-se em genética bacteriana depois de
se formar.

Embora tanto Boyer como Cohen trabalhassem nas proximidades de San Francisco, só
foram se encontrar no congresso de Honolulu. Boyer já era um especialista em enzimas de restrição
numa época em que quase ninguém ouvira falar delas; ele e seus colegas haviam acabado de
decifrar a seqüência do ponto de clivagem da enzima EcoRl. Os dois logo perceberam que, se
juntassem suas habilidades, teriam condições de fazer com que a biologia molecular avançasse para
um novo patamar — a possibilidade de cortar, colar e copiar moléculas. Certo dia, altas horas da
noite, numa delicatéssen perto de Waikiki, começaram a idealizar o nascimento da tecnologia do
dna recombinante, anotando suas idéias em guardanapos. Cohen descreveu esse mapeamento
visionário do futuro num ensaio intitulado ”From corned beef to cloning” [”Da carne em conserva
à clonagem”], numa referência ao sanduíche que estavam comendo na ocasião.

Em poucos meses, o laboratório de Boyer em San Francisco e o de Cohen,


65 quilômetros ao sul, em Paio Alto, já estavam trabalhando juntos. Como seria de esperar, Boyer
trabalhou com enzimas de restrição e Cohen ocupou-se dos plasmideos. Por sorte, uma técnica do
laboratório de Cohen, Annie Chang morava em San Francisco e, sempre que possível, transportava
a preciosa cargí dos experimentos em andamento nos dois laboratórios. O primeiro experimen

Herb Boyer e Stanley Cohen, os primeiros engenheiros genéticos do mundo.

104
to tinha por objetivo criar um híbrido, um ”recombinante” de dois plasmídeos diferentes, cada um
dos quais conferia resistência a um determinado antibiótico Um dos plasmídeos possuía um gene,
um trecho de dna, de resistência à tetraciclina; o outro, um gene de resistência à canamicina.
Inicialmente, é claro, as bactérias com o primeiro tipo de plasmídeo eram mortas pela canamicina,
ao passo que as que continham o segundo eram mortas pela tetraciclina. A meta era criar um único
”superplasmídeo” que conferisse resistência a ambos os antibióticos.

Primeiro, os dois tipos originais de plasmídeos foram clivados com enzimas de restrição. Em
seguida, foram misturados no mesmo tubo de ensaio, adicionando-se ligase para fazer com que as
extremidades divadas se juntassem por conta própria. Em algumas moléculas dessa mistura, a ligase
apenas faria com que um plasmídeo clivado se tornasse íntegro novamente — ou seja, as duas
extremidades do mesmo plasmídeo se juntariam. Às vezes, porém, a ligase faria com que o
plasmídeo clivado incorporasse pedaços do dna do outro tipo de plasmídeo, produzindo assim o
híbrido almejado. Uma vez obtidos esses híbridos, o passo seguinte era transplantar todos os
plasmídeos para bactérias usando as técnicas de importação de plasmídeos desenvolvidas por
Cohen. As colônias assim geradas eram então cultivadas em pratos revestidos com tetraciclina e
canamicina. Os plasmídeos meramente reconstituídos continuariam conferindo resistência a apenas
um dos antibióticos e, portanto, as bactérias que contivessem esses plasmídeos não sobreviveriam
em um meio com ambos os antibióticos. As únicas bac-
térias capazes de sobreviver seriam aquelas com plasmídeos recombinantes — isto é, os plasmídeos
formados com os dois tipos de dna presentes: o que codificava a resistência à tetraciclina e o que
codificava a resistência à canamicina.

O desafio seguinte foi criar um plasmídeo híbrido usando o dna de um tipo totalmente diferente de
organismo — de um ser humano, por exemplo. Um dos primeiros experimentos bem-sucedidos
envolveu a inserção de um gene da rã com garras africana [Xenopus laevis] em um plasmídeo da E.
coli e o transplante deste para bactérias. Cada vez que as células da colônia bacteriana se dividiam,
duplicavam o segmento inserido do dna do anfíbio. Na terminologia bastante confusa da biologia
molecular, nós havíamos ”clonado” o dna do sapo.* O dna

* ”Clonagem” designa a produção de vários pedaços idênticos de um trecho de dna inserido numa célula bacteriana. O termo também é
aplicado, de modo confuso, à clonagem de animais inteiros, notadamente a ovelha Dolly. No primeiro tipo, copiamos apenas um pedaço
de dna; no outro, copiamos o genoma inteiro.

106

DNA de plasmídeo bacteriano

seqüência de DNA a ser clonada

+
Iados” com dna ligase

I
molécula de DNA recombinante

célula bacteriana

DNA de plasmídeo recombinante é inserido na célula bacteriana


DNA recombinante é ”COPIADO” à medida que
a bactéria se divide
inúmeras vezes na cultura

muitas cópias do plasmídeo


com DNA recombinante sao
isoladas das bactérias
DNA recominado a clonagem de um gene.
107
O micróbio intestinal E. coli: para quem se dispuser a olhar, cerca de 10 milhões dessas criaturas podem ser encontradas em cada
grama de fezes humanas.

de mamíferos também se mostrou eminentemente clonável. Em retrospecto, isso não chega a ser
muito surpreendente: afinal, um pedaço de dna não deixa de ser um pedaço de dna, com as mesmas
propriedades químicas, a despeito de sua origem. Logo se tornou claro que os protocolos de Cohen
e Boyer para clonar fragmentos de dna plasmídico funcionariam igualmente bem com dna de toda e
qualquer criatura.

Iniciava-se assim a segunda fase da revolução em biologia molecular. Na primeira fase, buscamos
descrever como o dna atua na célula; agora, com o dna recombinante,* dispúnhamos de ferramentas
para intervir, para manipular o dna. O cenário estava pronto para avanços rápidos e
descortinávamos a oportunidade de ”bancar Deus”. Era inebriante — a possibilidade extraordinária
de mergulhar nos mistérios da vida e realizar avanços inauditos na luta contra doenças como o
câncer. Entretanto, embora Cohen e Boyer tenham, de fato, aberto nossos olhos para paisagens
científicas excepcionais, não teriam aberto também uma caixa de Pandora? Haveria perigos
insuspeitados na clonagem molecular? Será que deveríamos continuar jovialmente enxertando
pedaços de dna humano nas moléculas da E, coli, a espécie que predomina na flora microbiana de
nossos intestinos? E se essas formas alteradas acabassem entrando em nosso corpo? Em suma, será
que podíamos, em sã consciência, simplesmente tapar nossos ouvidos ao clamor dos alarmistas, que
nos acusavam de estarmos criando Frankensteins bacterianos?

O termo ”dna recombinante” pode mostrar-se um pouco confuso quando deparamos com a ”recombinação” da genética clássica. Na
genética mendeliana, recombinação diz respeito à ruptura e reformação dos cromossomos, ou seja, envolve ”misturar e emparelhar”
segmentos cromossômicos. Na versão molecular, o ”misturar e emparelhar” ocorre numa escala muito menor, pois o que se recombina
são dois trechos de DNA numa única molécula composta.

108

Em 1961, um vírus de macaco chamado sv40 (em que ”sv” significa simian virus, ou vírus símio)
foi isolado nos rins de macacos rhesus, usados na preparação da vacina contra poliomielite. Embora
se acreditasse que o vírus não tinha efeito algum sobre os macacos nos quais ocorria naturalmente,
experimentos logo mostraram que poderia provocar câncer em roedores e, sob certas condições
laboratoriais, também em células humanas. Desde o lançamento em 1955, o programa de vacinação
contra a pólio já infectara milhões de crianças americanas com esse vírus, de modo que a descoberta
era alarmante. Teria o programa de prevenção da pólio inadvertidamente condenado uma geração
inteira ao câncer? A resposta, felizmente, parece ser ”não”; nenhuma epidemia de câncer resultou e
o sv40 não parece ser mais pernicioso nos seres humanos do que é em macacos. Seja como for,
porém, o fato é que, enquanto
o sv40 ia se tornando uma presença constante nos laboratórios de biologia molecular, permaneciam
dúvidas quanto à sua segurança. Fiquei particularmente preocupado, pois na época eu dirigia o
laboratório Cold Spring Harbor, onde um número cada vez maior de jovens cientistas trabalhava
com o SV40 para investigar a base genética do câncer.

Nessa mesma época, na Faculdade de Medicina da Universidade Stanford, Paul Berg estava mais
entusiasmado com as promessas do que preocupado com os perigos do sv40. Ele antevia a
possibilidade de usarmos esse vírus para introduzir pedaços de dna — genes estranhos — em
células de mamíferos. O vírus atuaria como um sistema de distribuição molecular em mamíferos, do
mesmo modo como Stanley Cohen fizera os plasmídeos atuarem em bactérias. Mas, se Cohen usou
as bactérias basicamente como máquinas de copiar (ou seja, para

Paul Berg e seu Honda viral.

109
ampliar um determinado pedaço de dna), Berg vislumbrou no sv40 um meio de introduzir genes
corretivos em vítimas de doenças genéticas. Ele estava à frente do seu tempo e aspirava a realizar o
que hoje conhecemos como terapia genética: a introdução de material genético novo num ser vivo
para compensar defeitos genéticos herdados.

Berg ingressara em Stanford como professor assistente em 1959, num pacote que também levara
para lá o mais afamado Arthur Kornberg, da Universidade Washington em St. Louis. Na realidade,
as ligações entre Berg e Kornberg vão ainda mais longe: ambos nasceram no bairro de Brooklyn,
em Nova York, onde, cada um em seu tempo, participariam do mesmo Clube de Ciências colegial
dirigido pela srta. Sophie Wolfe. Berg relembra: ”Ela fazia da ciência algo divertido e ensinava-nos
a trocar idéias”. Mas isso não chega a fazer justiça à srta. Wolfe: afinal, o seu clube de ciências no
colégio Abraham Lincoln produziu três prêmios Nobel: Kornberg (1959), Berg (1980) e o
cristalógrafo Jerome Karle (1985) — e todos prestaram tributo à influência da antiga professora.

Enquanto Cohen e Boyer (e, a essa altura, outros) acertavam os detalhes de como cortar e colar
moléculas de dna, Berg planejava um experimento realmente ousado: ele queria verificar se o sv40,
implantado com um pedaço de dna que não o seu próprio, seria capaz de transportar esse gene
estranho para uma célula animal. Por conveniência, a fonte do dna estranho seria um vírus
bacteriano facilmente disponível, um bacteriófago. Seu objetivo era descobrir se a molécula
composta, constituída pelo dna do sv40 e pelo dna do bacteriófago, conseguiria invadir uma célula
animal. Caso conseguisse, como Berg esperava que acontecesse, havia a possibilidade de um dia
esse sistema ser usado para inserir genes úteis em células humanas.

No verão de 1971, no laboratório Cold Spring Harbor, um pós-graduando de Berg fez uma
apresentação explicando o experimento pretendido. Um cientista na platéia ficou tão alarmado que
telefonou para Berg logo em seguida. ”E se”, perguntou, ”as coisas saírem às avessas?” Em outras
palavras, o que aconteceria se o vírus SV40, em vez de tomar o dna viral e inseri-lo na célula
animal, fosse ele próprio manipulado pelo dna do bacteriófago? Ou seja, o que aconteceria se o dna
do sv40 fosse inserido, digamos, numa célula bacteriana da E. colil Não é uma possibilidade
irrealista: afinal, é exatamente isso que muitos bacteriófagos são programados para fazer — inserir
seu dna em células bacterianas.

Torno a E. coli é ao mesmo tempo ubíqua e intimamente associada aos seres humanos (é um dos
principais componentes da nossa flora intestinal), o experimento bem-intencionado de Berg poderia
resultar em colônias perigosas de E. oli portando o vírus de macaco sv40 — um possível agente
cancerígeno. Berg considerou a apreensão de seu colega, embora não a compartilhasse, e decidiu
adiar o experimento até que se soubesse mais sobre o potencial do SV40 de causar câncer em seres
humanos.

A notícia do sucesso dos procedimentos de dna recombinante desenvolvidos por Boyer e Cohen
provocou uma gigantesca onda de preocupação com agentes biológicos. No verão de 1973, um
congresso científico sobre ácidos nucléicos em New Hampshire aprovou por maioria uma petição à
National Academy of Sciences solicitando que investigasse sem demora os perigos da nova
tecnologia. Um ano depois, uma comissão indicada pela Academia e presidida por Paul Berg
publicou suas conclusões numa carta ao periódico Science. Eu mesmo assinei a carta, como fizeram
muitos outros — incluindo Cohen e Boyer, talvez os mais ativos nesse tipo de pesquisa. A ”Carta da
Moratória”, como ficou conhecida, pedia aos ”cientistas de todo o mundo” que suspendessem
voluntariamente todos os estudos de recombinação ”até que os possíveis perigos das moléculas de
dna recombinante tenham sido mais bem avaliados ou até que métodos adequados sejam
desenvolvidos para impedir sua disseminação”. Um elemento importante dessa declaração foi o
reconhecimento de que ”nossa preocupação se baseia em critérios de risco potencial, não
demonstrado, pois existem poucos dados experimentais sobre a ameaça representada por essas
moléculas de dna”.
Contudo, logo me senti profundamente frustrado e arrependi-me de ter assinado a Carta da
Moratória, pois era evidente que a clonagem molecular tinha o potencial de fazer um bem fantástico
ao mundo. Agora, porém, depois de termos trabalhado tanto e chegado ao limiar de uma revolução
biológica, estávamos conspirando para recuar. Foram momentos confusos e desconexos. Como
escreveu Michael Rogers numa matéria para a Rolling Stone em 1975, ”era evidente que os
biólogos moleculares haviam chegado ao limiar do precipício experimental, o qual talvez se revele
muito semelhante ao enfrentado pelos físicos nucleares nos anos anteriores à bomba atômica”.
Estávamos sendo prudentes ou pusilânimes? Eu não sabia dizer ao certo, mas começava a pender
pela segunda opção.

no

iii
O ”Congresso da Caixa de Pandora”: foi assim que Rogers descreveu o encontro de 140 cientistas
de todo o mundo em fevereiro de 1975 no centro de conferências Asilomar, em Pacific Grove,
Califórnia. A agenda era determinar de uma vez por todas se o dna recombinante realmente traz no
bojo mais perigos do que promessas. Será que a moratória deveria ser permanente? Deveríamos
seguir adiante, quaisquer que fossem os riscos potenciais, ou deveríamos aguardar a elaboração de
salvaguardas? Como coordenador da comissão organizadora, Paul Berg era também o presidente
nominal do evento e, como tal, tinha a tarefa quase impossível de redigir uma declaração
consensual no final do encontro. A imprensa estava lá, cocando a sua cabeça coletiva, enquanto
cientistas debatiam entre si usando o mais recente jargão. Advogados também estava lá, só para nos
lembrar que havia questões legais a serem consideradas. Por exemplo, será que eu, como diretor de
um laboratório envolvido em pesquisas com dna recombinante, sou responsável caso um técnico
meu contraia câncer? Os cientistas, que por natureza e treinamento são avessos a augúrios
arriscados, à falta de conhecimento científico, acertadamente suspeitavam que seria impossível
chegar a uma decisão unânime. Talvez Berg tivesse as mesmas dúvidas; seja como for, ele optou
pela liberdade de expressão em vez de impor uma liderança firme. O debate resultante foi, portanto,
uma espécie de vale-tudo, e não poucas sessões foram interrompidas por algum orador irrelevante
sequioso apenas por divagar sobre a importância do trabalho realizado em seu laboratório. As
opiniões eram as mais diversas possíveis — das mais tímidas (”prolongar a moratória”) às mais
temerárias (”dane-se a moratória e viva a ciência”). Eu estava claramente neste último extremo do
espectro. Sentia que, agora, a atitude mais irresponsável seria adiar as pesquisas com base em
perigos desconhecidos e não-quantificados. Havia pessoas muito doentes em todo o mundo, pessoas
sofrendo de câncer e fibrose cística: o que nos dava o direito de negar-lhes o que talvez fosse sua
única esperança?

Sydney Brenner, que na época trabalhava em Cambridge, no Reino Unido, apresentou alguns dos
poucos dados relevantes do encontro. Ele coletara colônias de uma linhagem da E. coli conhecida
como K-12 — o burro de carga bacteriano favorito dos laboratórios para esse tipo de pesquisa de
clonagem molecular. Algumas cepas particularmente raras da E. coli às vezes provocam surtos de
intoxicação alimentar, mas a imensa maioria de linhagens da E. coli é inofensiva, e Brenner supôs
que a k-12 não fosse exceção. O que lhe interessava não
112

Singer, Norton Zinder, Sydney Brenner e Paul Berg se engalfinham com diversas questões durante o congresso em Asilomar.

era sua própria saúde, mas a da k-12: será que ela conseguiria sobreviver fora do laboratório? Para
descobrir, misturou os micróbios num
copo de leite (já que eram um tanto intragáveis em estado puro), bebeu a vil mistura em grandes
goles e pôs-se a monitorar o que saía na outra extremidade, a fim de verificar se alguma célula de k-
12 conseguira colonizar seu intestino. Os resultados foram negativos, sugerindo que a k-12, embora
florescesse num prato de laboratório, não era viável no mundo ”natural”. Outros, porém,
questionaram tal inferência: mesmo que as bactérias K-12 fossem incapazes de sobreviver, isso não
era prova de que não poderiam trocar plasmídeos — ou outras informações genéticas — com
linhagens perfeitamente aptas a viver em nossos intestinos e, desse modo, genes alterados por
”engenharia genética” poderiam adentrar a população das bactérias que habitam o intestino.
Brenner então defendeu a idéia de desenvolver uma linhagem de k-12 que não tivesse a menor
chance de viver fora do laboratório, o que seria possível mediante uma alteração genética que
assegurasse que a linhagem só se desenvolveria se alimentada com nutrientes especiais. Nós, é
claro, especificaríamos um conjunto de nutrientes que jamais seriam encontrados no mundo natural,
mas apenas em laboratório. Uma K-12 assim modificada seria uma bactéria ”segura”, viável em
nosso contexto controlado de pesquisa mas fadada à destruição no mundo real.
Exortada por Brenner, essa proposta intermediária saiu vitoriosa. Houve muita reclamação de
ambos os extremos, é claro, mas a conferência terminou com recomendações coerentes que
permitiram a continuação das pesquisas — desde que realizadas com bactérias incapacitadas, não
causadoras de doenças, e obrigatoriamente em dispendiosas instalações de contenção se as
investigações
H3
envolvessem o dna de mamíferos. Essas recomendações se tornariam a base de um conjunto de diretrizes
promulgadas no ano seguinte pelo National Institutes of Health.

Saí desanimado, isolado da maioria de meus colegas. Stanley Cohen e Herb Boyer também acharam o
congresso desalentador; como eu, eles acreditavam que muitos de nossos colegas haviam transigido e
renunciado ao que, como cientistas, julgavam ser o melhor caminho, só para serem vistos pelos jornalistas
presentes como ”caras legais” (e não como possíveis drs. Frankensteins). Na realidade, a imensa maioria
nunca trabalhara com organismos patogênicos e não compreendia as implicações das restrições à pesquisa que
queriam impor a quem já trabalhara com tais organismos. Fiquei aborrecido com a arbitrariedade de grande
parte do que fora combinado: trabalhar com o dna de vertebrados de sangue frio, por exemplo, era aceitável,
ao passo que o dna de mamíferos foi declarado zona proibida para a maioria dos cientistas. Ou seja, era
seguro trabalhar com o dna de sapos mas não com o dna de camundongos. Pasmo com tamanha tolice,
retruquei com outro disparate: será que eles não sabiam que os sapos causam verrugas? Mas minha objeção
foi em vão.

Essas diretrizes levaram muitos participantes do congresso de Asilomar a acreditar que pesquisas baseadas na
clonagem de ”bactérias seguras” teriam passe livre. Mas todos que saíram com essa impressão logo tiveram as
asas aparadas. De acordo com a lógica da imprensa popular, se os próprios cientistas viam motivo para
preocupação, então o público leigo deveria ficar realmente alarmado. Afinal, embora já em declínio, essa
ainda era a época da contracultura. A Guerra do Vietnã e a carreira política de Richard Nixon permaneciam
como lembranças recentes — e um público desconfiado, despreparado para compreender as complexidades
que a própria ciência só começava a penetrar, parecia mais do que disposto a engolir teorias de conspirações
diabólicas perpetradas pelo sistema. Da nossa parte, nós, cientistas, ficamos bastante surpresos quando nos
vimos incluídos na elite do establishment, à qual nunca imagináramos pertencer. A edição especial do Dia das
Bruxas do jornal underground Berkeley Barb chegou a eleger Herb Boyer, a própria encarnação do cientista
hippie, ”uma das dez maiores aberrações” da região de San Francisco — distinção normalmente reservada a
políticos corruptos e capitalistas anti-sindicais.

”4

Meu maior temor era que essa crescente paranóia popular em torno da biologia molecular acabasse resultando
em leis draconianas. Uma lista de expeirnentos autorizados e não-autorizados escrita num canhestro jargão
jurídico só poderia ser ruim para a ciência. Planos de experimentos teriam de ser submetidos a bancas
examinadoras sujeitas a injunções políticas e a exasperante burocracia que costuma acompanhar esse tipo de
interferência germinaria como traças no guarda-roupa
da vovó. Enquanto isso, nosso esforço para avaliar os verdadeiros riscos do nosso trabalho continuaria a
padecer de uma completa ausência de dados e da dificuldade lógica de provar uma negação. Nenhuma
catástrofe com dna recombinante havia ocorrido, mas a mídia parecia querer se superar imaginando os
famigerados worst case scenarios, as piores situações possíveis. No relato que fez de uma reunião em
Washington em 1977, o bioquímico Leon Heppel resumiu com vivacidade quanto os cientistas consideravam
absurda a controvérsia:

Senti como teria me sentido se houvessem me escolhido para uma comissão convocada pelo governo
espanhol para avaliar os riscos assumidos por Cristóvão Colombo e seus marinheiros, uma comissão
encarregada de estabelecer diretrizes acerca do que fazer no caso de a Terra ser plana, de determinar até que
distância da borda do planeta a tripulação poderia chegar etc.

Todavia, mesmo a ironia desconcertante pouco podia fazer para sustar aqueles decididos a agir contra o que
viam como insolência prometéica da ciência. Um desses retrógrados era Alfred Vellucci, prefeito de
Cambridge, Massachusetts. Vellucci fizera sua carreira política defendendo o homem comum à custa das
instituições de ensino de elite da cidade, a saber, o mit e a Harvard. A polvorosa do dna recombinante foi
como um presente político dos céus. Um relato da época captou bem o espírito da polêmica:

Vestindo um paletó carmim de costura dupla e calça preta, e uma camisa azul de listras amarelas que a duras
penas conseguia conter uma barriga inflada de cerveja, Al Vellucci, com seus dentes tortos e bolsos cheios de
quinquilharias, é a encarnação da frustração do americano médio com esses cientistas, esses tecnocratas, esses
intelectuais de Harvard metidos a besta que acham que são os donos do mundo mas acabam deixando-o cair
numa poça de lama. E quem acaba se sujando? Não os

115
Audiências em Cambridge, Massãchusetts, que acabaram proibindo pesquisas com DNA recombinante dentro dos limites da cidade.

sabichões. Não, são sempre Al Vellucci e os trabalhadores comuns que acabam tendo de se limpar sozinhos.

Por que tanta veemência? Os cientistas da Harvard tinham manifestado o desejo de construir instalações de
contenção no campns da universidade a fim de realizarem pesquisas de recombinação em estrita
conformidade com as novas diretrizes do nih. Mas, vendo nisso uma oportunidade para si, e com o apoio de
um conciliábulo esquerdista da Harvard e do mit com um programa anti-DNA próprio, Vellucci conseguiu por
vários meses impor uma interdição formal a toda e qualquer pesquisa com dna recombinante em Cambridge.
O resultado foi uma breve mas intensa fuga de cérebros, pois vários biólogos da Harvard e do mit decidiram
buscar paragens menos politicamente carregadas. Vellucci, por sua vez, começou a desfrutar uma recém-
conquistada proeminência como zelador científico da sociedade. Em 1977, ele escreveria ao presidente da
National Academy of Sciences:

Na edição de hoje do Boston Herald American, uma publicação do grupo Hearst, há duas reportagens que
muito me preocuparam. Em Dover, Massãchusetts, uma ”estranha criatura de olhos alaranjados” foi avistada,
e em Hollis, New Hampshire, um homem e seus dois filhos se depararam com ”uma criatura peluda de 2,75 m
de altura”.

Peço respeitosamente que sua prestigiosa instituição investigue esses relatos. Espero ainda que possam
averiguar se essas ”criaturas estranhas” (caso realmente existam) estão de algum modo ligadas aos
experimentos com dna recombinante em andamento na região da Nova Inglaterra.

Felizmente, apesar das muitas discussões, as tentativas de aprovar uma legislação nacional regulamentando os
experimentos de dna recombinante não chegaram a ver a luz do dia. O senador Ted Kennedy, de
Massãchusetts, entrou na querela logo no começo, convocando uma audiência no Senado um mes depois de
Asilomar. Em 1976, ele escreveu ao presidente Ford sugerindo que o governo federal deveria controlar não só
as pesquisas acadêmicas com dna, mas também as industriais. Em março de 1977, depus numa audiência da
Assembléia Legislativa da Califórnia. O governador Jerry Brown estava presente, de modo

117
que tive a oportunidade de sugerir pessoalmente que seria um erro considerar qualquer tipo de ação
legislativa, exceto no caso de surgirem doenças inexplicáveis entre os cientistas de Stanford. Se
aqueles que manipulam diretamente o dna recombinante permanecerem saudáveis, o povo seria
mais bem atendido se os legisladores se concentrassem mais em riscos evidentes à saúde pública,
como o ciclismo.

A medida que mais e mais experimentos eram realizados, tanto sob as diretrizes do nih como sob
normas impostas por legisladores em outros países, foi se tornando irrefutável que os procedimentos
com dna recombinante não estavam criando micróbios frankensteinianos (e muito menos — com
escusas ao sr. Vellucci — ”estranhas criaturas de olhos alaranjados”). Em 1978, eu escreveria:
”Comparado com praticamente qualquer outro objeto que comece com a letra ’d’, o dna é realmente
bastante seguro. Muito mais útil seria nos preocuparmos com dardos, dinamite, defraudação,
dieldrina, dioxina ou degenerados do que ficar conjecturando à Ia Rube Goldberg* como o nosso
dna laboratorial extinguira a raça humana”.

Ainda naquele ano, em Washington, d.c, a comissão rac [Recombinant dna Advisory Committee =
Comitê Consultivo sobre dna Recombinante] do National Institutes of Health propôs diretrizes bem
menos coercivas, que permitiriam realizar quase todo tipo de pesquisa recombinante — até mesmo
pesquisas com dna de vírus tumorais. Em 1979, Joseph Califano, ministro da Saúde, Educação e
Bem-Estar, aprovou as mudanças, encerrando um período de estagnação insensata nas pesquisas
sobre câncer em mamíferos.

Em termos práticos, o único resultado do consenso de Asilomar foram cinco lamentáveis anos de
atraso em pesquisas importantes e cinco frustrantes anos de interrupção na carreira de muitos jovens
cientistas.

No final da década de 1970, as questões levantadas pelos experimentos originais de Cohen e Boyer
foram pouco a pouco se tornando irrelevantes. Havíamos sido forçados a um desvio inútil, mas pelo
menos isso provou que nós, cientistas moleculares, queríamos ser socialmente responsáveis.
* Cartunista do início do século xx cujos desenhos costumavam retratar invenções amalucadas ou máquinas complexas criadas para realizar tarefas
elementares. (N. T.)

118

Entretanto, o progresso da biologia molecular na segunda metade dos anos


1970 não foi totalmente interrompido por questões políticas. Na realidade, fomos testemunhas
nesses anos de vários avanços importantes, a maioria deles relacionados com a ainda controvertida
tecnologia de clonagem molecular de Boyer-Cohen. A descoberta mais significativa foi a invenção
dos métodos para ler seqüências de dna. O seqüenciamento do dna depende de haver uma grande
quantidade disponível do trecho da molécula em que se está interessado; logo, não era algo
exeqüível — exceto no caso dos pequenos dnas dos vírus — antes que tecnologias de clonagem
fossem desenvolvidas. Como vimos, clonar, em essência, significa inserir o pedaço desejado de dna
num plasmideo, que por sua vez é inserido numa bactéria. As bactérias então se dividem e crescem,
produzindo um enorme número de cópias do fragmento de dna — que, ao serem extraídas das
bactérias, fornecem uma grande quantidade do fragmento de dna desejado, que pode então ser
seqüenciado.

Duas técnicas de seqüenciamento foram desenvolvidas concomitantetnente, uma por Wally Gilbert
em Cambridge, Massachusetts (Harvard), e a outra por Fred Sanger em Cambridge, Inglaterra. O
interesse de Gilbert pelo seqüenciamento de dna surgiu quando ele isolou a proteína repressora no
sis-
H9
tema regulador do gene da beta-galactosidase na E. coli. Como vimos, ele mostrara que a proteína
repressora se liga ao dna próximo do gene, impedindo-o de ser transcrito em cadeias de RNA.
Agora Gilbert queria conhecer a seqüência dessa região do dna. Um encontro fortuito com o
brilhante químico soviético Andrei Mirzabekov sugeriu-lhe uma maneira de usar certas
combinações potentes de produtos químicos para romper as cadeias de dna exatamente no sítio das
bases em questão.

No último ano do colegial em Washington, D. C, Gilbert costumava cabular aula para ler livros de
física na Biblioteca do Congresso. Na época, ele estava buscando o santo Graal de todos os
prodígios da escola secundária: vencer o concurso Westinghouse Talent Search (que, em 1998,
quando a Velha Economia cedeu lugar à Nova, foi rebatizado de Intel Prize). Como não poderia
deixar de ser, ele conquistou o prêmio em 1949. (Anos depois, em 1980, ao receber um telefonema
da Academia Sueca em Estocolmo, confirmou o dado estatístico de que o prêmio Westinghouse é
uma das melhores garantias para alguém ser laureado com um prêmio Nobel no futuro.) Gilbert
continuou dedicado à física na faculdade e na pós-graduação. Em 1956, um ano depois da minha
chegada a Harvard, ele tornou-se docente de física. Mas acabou se interessando pelo trabalho que
meu laboratório vinha realizando com rna e abandonou seu campo em favor do meu. Sério e
implacável, esteve desde então sempre na vanguarda da biologia molecular.

Contudo, dos dois métodos de seqüenciamento, foi o de Sanger que melhor suportou o teste do
tempo. Alguns dos produtos químicos necessários para quebrar o dna no método de Gilbert são
difíceis de usar; um mero descuido e podem começar a quebrar o dna do próprio pesquisador. O
método de Sanger,

Wally Gilbert (esquerda) e Fred Sanger, reis âo seqüenciamento.

ox outro lado, utiliza a mesma enzima que copia dna naturalmente nas células a dna polimerase. O
truque era fazer a cópia a partir de pares de bases ligeiarnente alterados. Em vez de usar apenas as
bases ”desoxi” (as, ts, gs e cs) ncontradas naturalmente no dna (ácido desoxirribonucléico), Sanger
acrescentou algumas bases ditas ”didesoxi”, que possuem uma propriedade curiosa: a dna
polimerase não tem nenhuma dificuldade em incorporá-las na cadeia de dna em crescimento (isto é,
na cópia que está sendo produzida como complemento da fita-molde), mas em seguida não
consegue acrescentar nenhuma outra base à cadeia. Em outras palavras, não há como uma cadeia
duplicada por esse método estender-se para além de uma base didesoxi.

Imagine uma fita-molde cuja seqüência seja ggcctagta. Existem muitas, muitas cópias dessa fita no
experimento. Imagine agora que essa fita esteja sendo copiada por meio da dna polimerase na
presença de uma mistura de a, t, g e c normais e também um pouco de A didesoxi. A enzima
começará a copiar o dna, acrescentando primeiro um c (correspondente
ao G inicial), depois outro c, em seguida um G e então outro G. Mas, quando a enzima chega ao
primeiro T, surgem duas possibilidades: acrescentar um A normal ou um A didesoxi à cadeia. Se
incluir um A didesoxi, a fita não poderá continuar crescendo e o resultado será uma cadeia curta que
termina em um A didesoxi (ddA): ccGGddA. No entanto, se incluir um A normal, então a dna
polimerase pode continuar acrescentando bases: T, c etc. A próxima chance de o A didesoxi
provocar uma ”parada” desse tipo só virá quando a enzima chegar ao T seguinte. Novamente aqui,
ela poderá acrescentar um A normal ou um ddA. Se acrescentar um ddA, o resultado será outra
cadeia truncada, embora um pouco mais comprida que a anterior, cuja seqüência será
CCGGATcddA. E assim acontecerá cada vez que a enzima encontrar um T, ou seja, cada vez que
tiver a ocasião de acrescentar um A à cadeia. Se, por acaso, um a normal for selecionado, a cadeia
continuará; mas, sempre que um ddA for escolhido, a cadeia chega ao fim.

O que isso nos diz? No final desse experimento, temos uma grande quantidade de cadeias de
comprimentos variáveis, todas copiadas do molde de dna. O que elas têm em comum? O fato de
terminarem com um ddA.

Agora imagine o mesmo processo usando as três outras bases: no caso da T, por exemplo, podemos
utilizar uma mistura de a, t, g e c normais mais ddT. As moléculas resultantes serão ccGGAddT ou
ccGGATCAddT.

Depois de promover a reação das quatro maneiras possíveis — com ddA,


120
molécula de DNA com uma única fita

SMSH3Í1H

1
REPLICAÇÃO DO DNA USANDO DNA POLIMERASE

V
bases normais

s mcracatua
Bo nu [çki ©o
+ pequenas quantidades de bases didesoxi marcadas

-SçHMATfTcTÃki

© *

fckn
L

mistura de novas fitas de DNA, cada uma terminada num comprimento diferente por uma base didesoxi marcada.

O método de Sangerpam seqüenciar DNA.

V
©
TAC T

GCC
produtos de DNA separados num gel por um campo elétrico. A seqüência da nova fita de DNA pode ser lida na parte de baixo do gel.

122

ddT, ddG e ddc —, teremos quatro grupos de cadeias de dna: uma composta de cadeias terminando
em ddA, uma de cadeias terminando em ddT e assim por diante. Se agora conseguirmos classificar
essas minicadeias de acordo com o cornprimento de cada uma (que varia ligeiramente), poderemos
inferir a seqüência. Como? Um momento, por favor. Primeiro, vejamos como seria possível efetuar
essa triagem. Podemos colocar todos os fragmentos de dna num prato contendo um gel especial e
colocar o prato sob um campo elétrico. Devido à atração desse campo elétrico, as moléculas de dna
serão forçadas a migrar pelo gel e à velocidade com que determinada minicadeia avança de acordo
com seu tamanho: cadeias curtas avançam mais depressa que cadeias longas. Após certo intervalo
de tempo, a menor minicadeia — no nosso caso, um simples ddC — terá avançado a maior
distância; a minicadeia seguinte em tamanho — CddC — terá percorrido uma distância
ligeiramente menor; e o percurso da minicadeia subseqüente — CCddG — terá sido um pouco
menor ainda. O truque de Sanger já deve ter ficado claro: ao ler as posições relativas de todas essas
minicadeias após uma corrida cronometrada pelo gel, podemos inferir as seqüências de nosso
pedaço de dna: primeiro temos um C, depois outro C, um G em seguida, e assim por diante.

Em 1980, Sanger dividiu o prêmio Nobel de química com Gilbert e Paul Berg, que foi reconhecido
por sua contribuição ao desenvolvimento das tecnologias de dna recombinante. (Inexplicavelmente,
nem Stanley Cohen nem Herb Boyer mereceram a mesma honra.)

Esse foi o segundo Nobel de Sanger.* Ele recebera o prêmio de química em


1958 por ter inventado o método de seqüenciar proteínas — isto é, de determinar a seqüência dos
aminoácidos que as constituem — e aplicá-lo à insulina humana. Mas não existe relação alguma
entre o seu método de seqüenciar proteínas e o que ele idealizou para seqüenciar dna: nem técnica
nem teoricamente um deu origem ao outro. Sanger inventou ambos a partir do zero e talvez deva ser
considerado o grande gênio técnico da história inicial da biologia molecular.

Sanger não é o que se poderia esperar de um duplo vencedor do prêmio

Duas vezes vencedor do prêmio Nobel, Sanger está em companhia ilustre. Marie Curie recebeu o prêmio de física (1903) e, mais tarde
(1911), o de química; John Bardeen recebeu duas vezes o prêmio de física, uma pela descoberta do transistor
(1956) e outra pela supercondutividade (1972); e Linus Pauling recebeu o prêmio de química (1954) e o da paz (1962).

L
123
Nobel. Nasceu numa família de religiosos quacres, tornou-se socialista e, por questões éticas e
morais, recusou-se a portar armas durante a Segunda Guerra. E, numa atitude ainda mais singular,
não faz a menor divulgação das suas conquistas, preferindo manter guardadas as provas físicas dos
seus prêmios Nobel: ’A gente ganha uma bela medalha de ouro, que está no banco. E também um
certificado, que está arquivado”. Chegou até a recusar o título de sir: ”Um ’cavaleiro do reino’ nos
faz diferente, não? Eu não quero ser diferente”. Já aposentado, Sanger hoje se apraz em cuidar do
jardim de sua casa perto de Cambridge — embora, com as mesmas humildade e jovialidade de
sempre, ainda visite ocasionalmente o Centro Sanger de seqüenciamento do genoma, inaugurado
perto de Cambridge em 1993.

O seqüenciamento confirmaria uma das descobertas mais extraordinárias da década de 1970. Já


sabíamos que os genes são cadeias lineares de as, ts, gs e Cs, e que essas bases são traduzidas de
três em três, em conformidade com o código genético, para criar as cadeias lineares de aminoácidos
que designamos proteínas. Mas as pesquisas notáveis de Richard Roberts, Phil Sharp e outros
revelaram que, em muitos organismos, os genes ocorrem ”aos pedaços”, ou seja, a codificação vital
do dna é interrompida por trechos de dna irrelevante. Somente depois da transcrição do rna
mensageiro é que essa bagunça se ordena mediante um processo de ”edição” que elimina as partes
irrelevantes. É como se este livro contivesse alguns parágrafos esdrúxulos, aparentemente inseridos
ao acaso, sobre beisebol ou a história do Império Romano. Wally Gilbert designou essas seqüências
intrusas de ”íntrons” e aquelas efetivamente responsáveis pela codificação de proteínas
(funcionalmente partes do gene, portanto) de ”éxons”. Constatou-se que os íntrons são uma
característica de organismos sofisticados: não existem em bactérias.

Alguns genes são extraordinariamente ricos em íntrons. Por exemplo, nos seres humanos, o gene do
Fator vm de coagulação sangüínea (que pode sofrer mutação em pessoas com hemofilia) possui 25
íntrons. O Fator vm é uma grande proteína, com cerca de 2 mil aminoácidos, mas os éxons que a
codificam constituem apenas 4% do comprimento total do gene. Os 96% restantes do gene são
formados por íntrons.

Por que, então, existem os íntrons? É óbvio que sua presença complica
124

normemente os processos celulares, pois sempre precisam ser suprimidos na cgj-niação do RNA
mensageiro. E essa supressão é algo complexo, especialmente considerarmos que um único erro na
excisão de um íntron do rna mensageio (do Fator vm, responsável pela coagulação do sangue, por
exemplo) pode resultar numa mutação frameshift que torna inútil a proteína resultante. Há uma
teoria que sustenta que esses intrusos moleculares são meros vestígios de um cassado evolutivo, um
resquício dos primeiros dias da vida na Terra. Mas a discussão continua acirrada em torno
de como os íntrons surgiram e qual é sua função — se é que têm alguma — no grande código da
vida.

Uma vez entendida a natureza geral dos genes nos eucariotos (organismos cujas células contêm um
compartimento especial, o núcleo, no qual é armazenado o material genético; os procariotos —
como as bactérias — não possuem núcleo), houve uma verdadeira ”corrida do ouro” entre os
cientistas. Equipe após equipe de cientistas ávidos, armados com a mais recente tecnologia, saíram
em disparada para tentar ser os primeiros a isolar (clonar) e caracterizar os principais genes. Entre
os primeiros tesouros encontrados estavam os genes nos quais mutações dão origem a câncer em
mamíferos. Uma vez completado o seqüenciamento do dna de diversos vírus tumorais bem
estudados — o sv 40, por exemplo —, os cientistas puderam determinar com precisão quais são os
genes causadores do câncer. Esses genes eram capazes de transformar células normais em células
com propriedades semelhantes às do câncer, com uma propensão para um tipo de crescimento
descontrolado e de divisão celular que resulta em tumores. Não demorou até que os biólogos
moleculares começassem a isolar genes de células cancerosas humanas, confirmando enfim que o
câncer humano decorre de alterações no âmbito do dna e não de simples acidentes não-genéticos do
crescimento, como se supunha. Encontramos genes que aceleram ou promovem o crescimento do
câncer e também encontramos genes que o retardam ou inibem. Ao que parece, como um
automóvel, a célula também precisa de um acelerador e um freio para funcionar corretamente.

A caça ao tesouro genético tomou conta da biologia molecular. Em 1981, o laboratório Cold Spring
Harbor ofereceu um curso avançado de verão que ensinava técnicas para clonar genes. Molecular
cloning, o manual de laboratório elaborado para o curso, vendeu mais de 80 mil exemplares nos três
anos seguin-
125
tes. A primeira fase da revolução do dna (1953-72) — a empolgação inicial que proveio da
descoberta da dupla-hélice e levou ao código genético — acabou por envolver cerca de 3 mil
cientistas. Mas na segunda fase, inaugurada pelas tecnologias de dna recombinante e
seqüenciamento de dna, esse número seria multiplicado por cem em pouco mais de uma década.

Parte dessa expansão refletiu o nascimento de um setor inteiramente novo da economia: a


biotecnologia. Depois de 1975, o dna deixou de ser interesse exclusivo de biólogos que tentavam
compreender a estrutura molecular da vida. A molécula deixou as clausuras acadêmicas habitadas
por cientistas de avental branco e passou a habitar um mundo muito diferente, povoado por gente de
gravata de seda e ternos de grife. O nome com que Francis Crick batizara sua casa em Cambridge
— Golden Helix, ”Hélice Dourada” — adquiria agora um sentido totalmente novo.
gene

DNA

seqüência que codifica uma proteína (éxon)

seqüência que nada codifica (íntron)

TRANSCRIÇÃO

ÍNTRONS REMOVIDOS POR SPLICING

RNA mensageiro editado I I V

TRADUÇÃO

PROTEÍNA

íntrons and éxons. As seqüências íntrons são editadas do RNA mensageiro antes da produção da proteína.

12,6

5. dna, dólares e drogas: Biotecnologia


Os encontros de Herb Boyer têm uma aura especial. Vimos como sua conversa com Stanley Cohen,
numa delicatéssen de Waikiki em 1972, levou aos experimentos que tornariam o dna recombinante
uma realidade. Em 1976, o raio caiu pela segunda vez, dessa vez em San Francisco, e o encontro foi
com um capitalista ousado chamado Bob Swanson. O resultado foi o nascimento de um novo setor
na economia que viria a ser chamado de biotecnologia.

Swanson tinha apenas 27 anos quando tomou a iniciativa de procurar Boyer, mas já vinha firmando
seu nome no campo das finanças de alto risco. Ele buscava uma nova oportunidade de negócios e,
com sua formação científica, pressentiu que talvez houvesse algo na recém-descoberta tecnologia
do dna

Acima: Capa da revista Time anuncia o nascimento das empresas de biotecnologia (e torce por um casawiento na família real).

127
recombinante. O problema era que todos com quem conversava lhe diziam que ele estava pondo a
carroça adiante dos bois. Até Stanley Cohen insinuou que as aplicações comerciais ainda
demorariam vários anos para se tornar viáveis. Quanto a Boyer, ele detestava distrações,
especialmente quando vinham sob a ; forma de homens de terno, que sempre parecem deslocados
do mundo da aca- • demia científica, onde o traje normal é jeans e camiseta. Swanson, no entanto, :
engambelou-o de algum modo e Boyer aceitou dedicar-lhe dez minutos do seu ! tempo numa tarde
de sexta-feira.

Os dez minutos se transformaram em várias horas e, em seguida, em várias cervejas, quando a


reunião foi transferida para o ChurchiU’s Bar, onde ; Swanson logrou despertar um empreendedor
latente — um feito talvez menos j inusitado do que parece, pois, no livro do ano de 1954 do Colégio
Derry Borough, Boyer, o representante da turma, já declarara sua ambição de ”tornar- se um
empresário bem-sucedido”. :

A proposta básica era extraordinariamente simples: descobrir uma maneira de usar a tecnologia de
Cohen-Boyer para produzir proteínas comercializáveis. O gene de uma proteína ”útil” — uma
proteína com valor terapêutico como, digamos, a insulina humana — seria inserido numa bactéria,
que então começaria a fabricar a proteína. A questão era apenas ampliar a escala de produção, de
pequenos pratos de laboratório para enormes toneis industriais — e recolher a proteína assim
produzida. Simples em princípio, mas não tão simples na prática. Seja como for, Boyer e Swanson
estavam otimistas: cada um entrou com US$ 500 e formaram uma parceria dedicada a explorar a
nova tecnologia. Em abril de 1976, fundaram a primeira empresa de biotecnologia do mundo. A
sugestão de Swanson para que dessem à firma o nome de ”Her-Bob”, uma combinação de seus
nomes de batismo, foi, para alívio geral, rejeitada por Boyer, que propôs então ”Genentech”,
abreviação de genetic engineering technology.

A insulina foi, evidentemente, a primeira meta comercial da Genentech. O controle do diabetes


requer injeções regulares dessa proteína, que o corpo do paciente não produz (diabetes Tipo I) ou
produz em quantidade insuficiente (Tipo II). O diabetes Tipo I era letal até 1921, quando se
descobriu o papel da insulina na regulagem do nível de açúcar no sangue e, desde então, a produção
de insulina para uso de diabéticos tornou-se um negócio industrial. Como os níveis de açúcar no
sangue são regulados mais ou menos da mesma maneira em todos os mamíferos, os seres humanos
podem usar a insulina de animais domesticados, de porcos

vacas em especial, que difere apenas ligeiramente da versão humana: a dos pordifere um
aminoácido numa cadeia protéica com 51 aminoácidos; a das vacas difere três. Embora pequenas,
essas diferenças às vezes provocam efeitos adversos oS pacientes e os diabéticos correm o risco de
ter alergias a essas proteínas
”estradas” O modo de a biotecnologia resolver esses problemas de alergia foi fornecer aos
diabéticos o produto autêntico, a própria insulina humana.

Com estimados 8 milhões de diabéticos somente nos Estados Unidos, a insulina prometia ser uma
mina de ouro biotecnológica. Boyer e Swanson, porém, não foram os únicos a identificar esse
potencial. Alguns colegas de Boyer, na Universidade da Califórnia em San Francisco (ucsf), para
não falar em Wally Gilbert, na Harvard, também perceberam que a clonagem de insulina humana
teria um grande valor científico e comercial. Em maio de 1978, as coisas começaram a esquentar
quando Gilbert e algumas pessoas dos Estados Unidos e da Europa formaram uma outra empresa, a
Biogen. As origens contrastantes da Biogen e da Genentech mostram como tudo caminhava
depressa nessa área: a Genentech brotara da intuição visionária de um jovem de 27 anos disposto a
dar alguns telefonemas; a Biogen foi fundada por um consórcio de calejados capitalistas de risco
especializados em sair à cata de cientistas capacitados. A Genentech nasceu num bar de São
Francisco; a Biogen, num elegante hotel europeu. Ambas as empresas, porém, compartilhavam a
mesma visão, da qual a insulina era parte. A largada fora dada.

Induzir uma bactéria a produzir proteínas humanas é um processo difícil e cheio de meandros.
Particularmente melindrosa é a presença dos íntrons, segmentos de dna que nada codificam,
encontrados nos genes humanos. Como as bactérias não possuem íntrons, não têm recursos para
lidar com eles. As células humanas ”editam” o rna mensageiro para remover esses segmentos não-
codificantes, mas as bactérias, carecendo dessa capacidade, não conseguem produzir proteínas a
partir de genes humanos. Portanto, para usar a E. coli na produção de proteínas humanas a partir de
genes humanos, o obstáculo dos íntrons tinha de ser superado primeiro.

As duas empresas rivais abordaram o problema de maneira diferente. A estratégia da Genentech foi
sintetizar quimicamente as partes sem íntrons do gene, que poderiam então ser inseridas num
plasmídeo. Na realidade, isso impli-
128

129
cava clonar uma cópia artificial do gene original. Hoje esse método árduo e oneroso raramente é
usado, mas na época foi uma estratégia sagaz. O encontro de Asilomar sobre os riscos da
manipulação genética ainda era memória recente, e a clonagem, particularmente se envolvesse
genes humanos, ainda era vista com grande desconfiança e continuava sujeita a uma legislação
rigorosa. Porém, como esse método usava uma cópia artificial do gene, não um gene efetivamente
extraído de um ser humano, a Genentech encontrou uma escapatória e a caça à insulina pôde
avançar sem o estorvo das novas regras.

Os concorrentes da Genentech adotaram uma abordagem alternativa — a que normalmente


utilizamos hoje. Todavia, por trabalhar com dna extraído de células humanas, logo se viram
mergulhados num pesadelo jurídico. Seu método empregava uma das descobertas mais
surpreendentes da biologia molecular de todos os tempos, a saber, que o dogma central que rege o
fluxo de informações genéticas (a regra segundo a qual dna gera rna, que por sua vez gera
proteínas) pode, às vezes, ser violado. Na década de 1950, os cientistas descobriram um grupo de
vírus que contêm rna mas não possuem dna. O hiv, o vírus causador da aids, faz parte desse grupo.
Pesquisas subseqüentes mostraram que, a despeito disso, tais vírus podem converter seu rna em dna
depois de inseri-lo numa célula hospedeira. Com esse percurso para trás (rna—dna), tais vírus
contrariam o dogma central da biologia molecular. O truque é realizado por uma enzima, a
transcriptase reversa, que converte rna em dna, cuja descoberta em 1970 levou Howard Temin e
David Baltimore a ganharem o prêmio Nobel de fisiologia/ medicina em 1975.

A transcriptase reversa acenava para a Biogen e outras empresas com uma maneira sucinta de criar
um gene próprio de insulina humana, isento de íntrons, para inserção em bactérias. O primeiro
passo consistia em isolar o rna mensageiro produzido pelo gene da insulina. Graças ao processo de
edição, o rna mensageiro não possui os íntrons do dna do qual foi copiado. Em si, o rna não é
particularmente útil, pois, ao contrário do dna, é uma molécula delicada, sujeita a rápida
degradação. Além disso, o sistema de Cohen-Boyle exige que dna — não rna — seja inserido nas
células bacterianas. A meta, pois, era fabricar dna por meio de transcriptase reversa a partir da
molécula editada de rna mensageiro. O resultado seria um pedaço de dna sem íntrons, mas com
todas as informações de que uma bactéria poderia precisar para fabricar a proteína da insulina
humana — um gene de insulina higienizado, por assim dizer.
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RNA mensageiro da insulina humana

nMA complementar (cDNA)

TRANSCRIPTASE REVERSA

cDNA INSERIDO EM PLASMÍDEO

plasmídeo

PLASMÍDEO INSERIDO NA BACTÉRIA

insulina humana pura

Clonagem de um gene sem os seus íntrons por meio da transcriptase reversa.

No final,
a Genentech venceria a corrida, mas por pouco. Usando o método da transcriptase reversa, a equipe
de Gilbert conseguiu clonar o gene para a insulina do rato; conseguiu também induzir uma bactéria
a produzir a proteína do rato. Faltava apenas repetir o processo com o gene humano. Mas foi aqui
que a Biogen enfrentou seu Waterloo regulamentar. Se quisesse clonar o dna humano, a equipe de
Gilbert só poderia fazê-lo num edifício de contenção de nível P4 — o nível mais elevado de
contenção, o mesmo exigido para trabalhar com mostrengos desagradáveis como o vírus Ebola.
Eles conseguiram que o exército britânico lhes cedesse acesso a Porton Down, um laboratório de
guerra biológica no sul da Inglaterra.

131
Em seu livro sobre a corrida para clonar insulina, Stephen Hall descreve as 1 indignidades quase surreais
sofridas por Gilbert e seus colegas:

O simples fato de entrar num laboratório P4 era uma provação. Depois de despir toda a roupa, cada
pesquisador tinha de vestir as cuecas brancas de fechar fornecidas pelo governo, botas pretas de borracha,
uma vestimenta azul semelhante a um pijama, uma camisola marrom do tipo usada por pacientes hospitalares,
com abertura atrás, dois pares de luvas e um chapéu plástico que lembrava uma touca de banho. Tudo era
então submetido a uma rápida aspersão de formol. Tudo. Todos os aparelhos, todas as vasos, todos os
utensílios de vidro, todo o equipamento. Todas as fórmulas científicas escritas em papel tinham de passar por
esse banho, de modo que os pesquisadores eram obrigados a introduzir essas instruções, uma folha por vez,
dentro de sacos plásticos lacrados, esperando que não vazassem e o formol não transformasse as preciosas
fórmulas numa informe pasta pergaminácea amarronzada. Todo documento exposto ao ar do laboratório tinha
de ser destruído, de modo que o grupo de Harvard não podia sequer trazer seus cadernos de anotações
laboratoriais. Depois de atravessarem uma pequena piscina de formol, os trabalhadores desciam um pequeno
lance de escada até o laboratório P4 propriamente dito. A mesma liturgia higiênica, incluindo uma chuveirada
final, tinha de ser repetida sempre que alguém saía do laboratório.

Tudo isso pelo privilégio elementar de clonar um pedaço de dna humano. Nos dias menos paranóicos e mais
bem informados de hoje, o mesmo procedimento costuma ser realizado em laboratórios rudimentares por
universitários de cursos introdutórios de biologia molecular. O episódio foi um fiasco para Gilbert e sua
equipe, pois não conseguiram clonar o gene da insulina. Não chega a surpreender que tenham posto a culpa
no pesadelo chamado p4.

A equipe da Genentech não enfrentou tais obstáculos legislatórios, mas os desafios técnicos para induzir a E.
coli a produzir insulina a partir de um gene sintetizado quimicamente não foram menos consideráveis. Para
Swanson, o homem de negócios, os problemas não foram apenas científicos. Desde 1923, o mercado 1 de
insulina dos Estados Unidos era dominado por um único fabricante, o laboratório Eli Lilly — que no final dos
anos 1970 era uma empresa de US$ 3 bilhões | com 85% do mercado de insulina. Swanson sabia que a
Genentech não estava em posição de competir com esse gorila de 400 quilos, mesmo com uma insulina

«ttfttd produzida por engenharia genética, um produto claramente superior à são animal da Lilly. Ele decidiu
propor um acordo e procurou a Lilly para oferecer-lhe uma licença exclusiva da insulina da Genentech.
Enquanto seus parceiros cientistas labutavam no laboratório, Swanson enveredava pelos corredores da
diretoria.Elei
estava certo de que a Lilly aceitaria o acordo; nem mesmo uma mpresa gigantesca poderia se dar ao luxo de
não fazer uso do que a tecnologia do dna recombinante representava, a saber, o futuro da produção
farmacêutica. Mas Swanson não era o único com uma proposta a apresentar e, na realidade, a Lilly já estava
financiando os esforços de um de seus concorrentes. Um diretor da empresa fora enviado às pressas a
Estrasburgo, França, para supervisionar uma tentativa promissora de clonar o gene da insulina por métodos
semelhantes aos de Gilbert. Mas, quando veio a notícia de que a Genentech chegara lá antes, a atenção da
Lilly voltou-se instantaneamente para a Califórnia. As duas empresas assinaram um acordo em 25 de agosto
de 1978, um dia após a confirmação experimental definitiva. O ramo da biotecnologia deixara de ser apenas
um sonho. A Genentech abriu o capital em setembro de 1980; em poucos minutos, o preço inicial das ações,
US$ 35, subiu para US$ 89. Na época, foi a escalada mais rápida da história de Wall Street. Boyer e Swanson
viram-se de repente com um patrimônio de US$ 66 milhões cada um.

Tradicionalmente, em biologia acadêmica, tudo o que importava era precedência, ou seja, quem foi o primeiro
a fazer a descoberta. Éramos recompensados com renome e respeito, não dinheiro. Havia exceções, é claro; o
prêmio Nobel, por exemplo, vem acompanhado de uma polpuda gratificação, mas, em geral, fazíamos
biologia porque amávamos biologia. Nossos parcos salários universitários certamente não ofereciam grande
incentivo.

Com o advento da biotecnologia, tudo mudou. Na década de 1980 ocorreriam mudanças na relação entre
ciência e negócios inimagináveis uma década antes. A biologia tornou-se um campo em que o dinheiro corre
solto. Com isso, surgiu uma nova mentalidade e complicações inesperadas.

Para começar, os fundadores das empresas de biotecnologia eram, via de regra, professores universitários. É
lógico, pois, que a maioria das pesquisas subjacentes ao futuro comercial de suas empresas houvesse sido
conduzida nos laboratórios de suas respectivas universidades. Foi no laboratório da Universidade de Zurique,
por exemplo, que Charles Weissmann, um dos fundadores da Biogen, clonou interferon humano — que, como
tratamento para esclerose

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múltipla, se tornou o produto mais lucrativo da empresa. E foi a Universidade fl Harvard que
bancou o esforço (malsucedido no final) de Wally Gilbert para W incluir a insulina recombinante à
linha de produtos da Biogen. Era inevitável H que certas perguntas começassem a ser feitas. Seria
lícito que professores enriquecessem à custa de trabalho realizado em instalações da universidade?
A. comercialização da ciência acadêmica criaria conflitos irreconciliáveis de interesse? Além disso,
a perspectiva de uma nova era de biologia molecular em escala industrial atiçou as brasas que ainda
ardiam na discussão sobre segurança: com tanto dinheiro em jogo, até que ponto os manda-chuvas
da nova indústria estariam dispostos a investir em segurança?

A reação inicial da Harvard foi fundar sua própria empresa de biotecnologia. Com abundante capital
de risco disponível e duas estrelas da biologia molecular, Mark Ptashne e Tom Maniatis, como
capital intelectual, o plano de negócios parecia infalível: um peso-pesado estava prestes a entrar na
cena da biotecnologia. No entanto, no outono de 1980, o plano veio abaixo. Quando o projeto foi à
votação, o corpo docente recusou-se a permitir que a bela Harvard mergulhasse seus alvos pés
acadêmicos nas águas turvas do comércio. Temia-se que o empreendimento criasse conflitos de
interesse dentro do departamento de biologia: com a criação de um ”centro de lucros”, como se diz,
os professores continuariam a ser contratados estritamente com base no mérito acadêmico ou seu
potencial para contribuir para a nova empresa também começaria a ser levado em consideração? Por
fim, a Harvard foi forçada a recuar e abriu mão da sua participação de 20% na empresa. Dezesseis
anos depois, o custo dessa decisão ficou aparente, quando a empresa foi vendida para o gigantesco
laboratório Wyeth por us$ 1,25 bilhão. Enquanto isso, exceto pela folha de pagamento, até hoje o
departamento de biologia molecular e celular da Harvard carece de uma verba específica para
financiar pesquisas.

A decisão tomada por Ptashne e Maniatis — de seguir adiante a despeito de tudo — precipitou uma
nova onda de obstáculos. A moratória do prefeito Vellucci às pesquisas com dna recombinante em
Cambridge já era coisa do passado, mas o sentimento anti-DNA persistia. Evitando
intencionalmente nomes vistosos de alta tecnologia, como Genentech ou Biogen, Ptashne e
Maniatis batizaram sua empresa de Genetics Institute, esperando assim evocar a época menos
ameaçadora das moscas-das-frutas, não o admirável mundo novo do dna. No mesmo espírito, a
empresa incipiente decidiu estabelecer-se não em
Cambridge, mas na vizinha Somerville. Todavia, uma
reunião tempestuosa na prefeitura da cidade provou efeito Vellucci ia além do perímetro urbano de
fefe. *1

Cambridge, e o Genetics Institute


não obteve permissão de estabelecer-se lá. Felizmente, a cidade de Boston, defronte a Cambridge,
na outra margem do rioCharles, mostrou-se mais receptiva e a nova empresapôde instalar-se num prédio de
hospital desocupado no bairro Mission Hill. À medida que ia se tornandomais claro que os métodos de
recombinação não
representavam riscos à saúde das pessoas ou ao meio ambiente, o estilo Vellucci de fanatismo
antibiotecnológico foi minguando. Poucos anos depois, o Genetics Institute mudou-se para North Cambridge,
perto da mesma universidade que o negligenciara no berço.

Ao longo dos últimos vinte anos, a relação fingida e desconfiada entre a biologia molecular acadêmica e a
comercial foi cedendo lugar a algo mais próximo de uma simbiose produtiva. Da sua parte, hoje as
universidades incentivam ativamente seus professores a cultivar interesses comerciais. Tendo aprendido com
o erro da Harvard em relação ao Genetics Institute, desenvolveram maneiras de faturar com as aplicações
lucrativas de tecnologias inventadas em seus camçi. Novos códigos de procedimento visam a evitar conflitos
de interesse para professores que têm um pé em cada mundo. Nos primórdios da biotecnologia, os cientistas
acadêmicos eram freqüentemente acusados de se ”venderem” quando participavam de alguma empresa. Hoje,
o envolvimento em biotecnologia comercial é parte integrante de uma carreira bem-sucedida de um estudioso
do dna. Dinheiro é sempre útil, mas há também recompensas intelectuais, pois, por sólidos motivos
comerciais, a biotecnologia está invariavelmente na vanguarda da pesquisa científica.

Stanley Cohen revelou-se um pioneiro não só em tecnologia, mas também na passagem de uma mentalidade
puramente acadêmica para uma adaptada à era dos megadólares em biologia. Sabíamos desde o início que o
dna recombinante tinha um grande potencial comercial, mas nunca lhe ocorrera que o método Cohen-Boyer
de clonagem deveria ser patenteado. Foi Niels Reimers, do setor de licenciamento de tecnologia da
Universidade Stanford, quem sugeriu que uma patente poderia ser útil ao ler na primeira página do New York
Times

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135
a notícia da grande vitória do time da casa. No início, Cohen ficou em dúvidao avanço em questão,
afirmou, decorrera de várias gerações de pesquisas anteriores, todas elas compartilhadas livremente;
parecia-lhe, pois, impróprio patentear aquilo que, afinal, era apenas o último capítulo de uma longa
saga. Por outro lado, toda invenção procede de outras que vieram antes (a locomotiva a vapor só
pôde vir depois do motor a vapor) e a patente pertence acertadamente aos inovadores que
ampliaram os feitos do passado de maneira decisiva e influente. Em 1980, seis anos depois que a
Stanford entrou com o pedido, foi concedida a patente do processo Cohen-Boyer.

Em princípio, o patenteamento de métodos poderia tolher a inovação ao restringir a aplicação de


tecnologias importantes, mas a Stanford tratou a questão com sabedoria e não houve tais
conseqüências negativas. Cohen e Boyer (e suas instituições) foram recompensados pela
importância comercial da sua contribuição, sem prejuízo ao progresso acadêmico. Primeiro, a
patente assegurava que somente entidades corporativas teriam de pagar pelo uso da tecnologia;
pesquisadores universitários poderiam usá-la sem custo. Segundo, a Stanford resistiu à tentação de
impor uma taxa muito elevada de licenciamento, o que faria com que somente as empresas e
instituições mais ricas pudessem usar o dna recombinante. Pela quantia relativamente modesta de
us$ 10 mil por ano e um máximo de 3% de royalties sobre a venda de produtos baseados na
tecnologia, o método Cohen-Boyer estava disponível para todos os que quisessem usálo. Essa
estratégia, boa para a ciência, também se revelou boa para os negócios: a patente contribuiu com
cerca de us$ 250 milhões para os cofres da ucsf e da Stanford. E tanto Boyer como Cohen
generosamente doaram uma parte de sua cota dessa renda às respectivas universidades.

Era só uma questão de tempo até que os próprios organismos alterados geneticamente pela
tecnologia fossem patenteados. A prova de fogo jurídica ocorreu em 1972, envolvendo uma bactéria
que fora modificada por métodos genéticos tradicionais, não pela tecnologia do dna recombinante.
Não obstante, as implicações para as empresas de biotecnologia eram claras: se bactérias
modificadas por técnicas convencionais eram patenteáveis, então aquelas modificadas pelos novos
métodos de recombinação também o eram.

Em 1972, Ananda Chakrabarty cientista pesquisador da General Electric, solicitou uma patente para
uma cepa da bactéria Pseudomonas, que ele desenvolvera como parte de um pacote completo para
degradar manchas de petróleo.

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Então, a maneira mais eficiente de decompor petróleo derramado era usar bactérias diferentes,
cada uma das quais degradava um componente do material. Ao combinar diversos plasmídeos, cada
um codificando caminho distinto de degradação, ele conseguiu produzir uma cepa super de adante
de Pseudomonas. O pedido original de patente
feito por Chakrabarty foi deferido, mas, depois de percorrer as sinuosas vias legais durante oito
anos, foi finalmente aprovado em 1980, quando a Suprema Corte se pronunciou por cinco a quatro
em seu favor e concluiu que ”um microorganismo vivo produzido pelo ser humano é passível de ser
patenteado” se, como nesse caso, ”resultar do engenho e pesquisa humanos”.

A despeito da jurisprudência estabelecida pelo caso Chakrabarty, os primeiros encontros entre a


biotecnologia e a lei foram atabalhoados. Havia muito em jogo e __ como veremos no caso da
identificação genômica [dna fingerprinting] no capítulo 10 — advogados, júris e cientistas tendem a
falar línguas diferentes. Em 1983, a Genentech e o Genetics Institute haviam conseguido clonar o
gene do ativador plasminogênico tissular (t-PA), uma arma importante contra os coágulos
sangüíneos que causam derrames e ataques do coração. O Genetics Institute, porém, não solicitou
uma patente, acreditando que a ciência subjacente à clonagem do t-PA era ”óbvia”, ou seja, não-
patenteável. A Genentech, por outro lado, solicitou e obteve uma patente — a qual, por definição, o
Genetics Institute tinha infringido.

O caso foi a julgamento inicialmente na Inglaterra. O juiz responsável, John Whitford, manteve
diante de si uma enorme pilha de livros durante grande parte do processo, atrás da qual parecia
cochilar. A questão fundamental era decidir se à parte que primeiro clonou um gene deveriam ser
concedidos todos os direitos subseqüentes sobre a produção e uso da proteína. Ao arbitrar em favor
do Genetics Institute e seu financista, o laboratório Wellcome, o juiz Whitford concluiu que a
Genentech tinha direito de reivindicar para si o processo limitado que usara para clonar o t-PA, mas
não lhe cabia direito sobre a proteína resultante do processo. A Genentech recorreu. Na Inglaterra,
quando alguém interpõe um recurso nesse tipo incomum de caso técnico, três juizes especializados
são ouvidos, orientados por um perito independente — aqui, Sydney Brenner. Os juizes indeferiram
o recurso da Genentech, concordando com o Genetics Institute que a ”descoberta” era de fato óbvia
e que, portanto, a patente da Genentech não era válida.

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Nos Estados Unidos, tais casos são debatidos na presença de um júri. Os advogados da Genentech
conseguiram fazer com que nenhum membro do júri tivesse diploma superior. Desse modo, o que
poderia parecer óbvio a um cientista ou a um perito jurídico com especialização científica não seria
óbvio aos membros desse júri. O júri posicionou-se contra o Genetics Institute, julgando que a
patente ampla da Genentech era válida. Não foi, talvez, um momento áureo da justiça americana,
mas mesmo assim estabeleceu um precedente: daquele instante em diante, pessoas começaram a
solicitar patentes para os mais variados produtos, a despeito de a ciência subjacente ser ”óbvia” ou
não. Em disputas futuras, o que importaria era ser o primeiro a clonar um gene.

Uma patente justa, a meu ver, consegue estabelecer um equilíbrio: reconhece e recompensa o
trabalho inovador, protegendo-o de ser usurpado, mas também torna a nova tecnologia disponível
para gerar o máximo de benefícios. Infelizmente, o sábio exemplo da Stanford não foi seguido no
caso de outros novos e importantes métodos de dna. A reação em cadeia da polimerase [pcr =
polymerase chain reaction], por exemplo, é uma técnica inestimável para aumentar pequenas
quantidades de dna. Inventada em 1983 na Cetus Corporation, a pcr — sobre a qual falaremos mais
no capítulo 7 quando tratarmos do Projeto Genoma Humano — logo se tornou um pau para toda
obra da biologia molecular acadêmica. Suas aplicações comerciais, contudo, foram bem mais
limitadas. Após conceder uma licença comercial para a Kodak, a Cetus vendeu a pcr por us$ 300
milhões para o gigantesco laboratório suíço Hoffmann-LaRoche, fabricante de produtos químicos,
farmacêuticos e de diagnóstico médico. Este, por sua vez, decidiu que, em vez de conceder outras
licenças, a melhor maneira de maximizar o retorno do seu investimento seria estabelecer um
monopólio dos testes laboratoriais baseados na reação em cadeia da polimerase. Como parte dessa
estratégia, açambarcou o negócio dos testes para aids. Só quando a data de expiração da patente se
aproximava é que a empresa concedeu outras licenças para uso da tecnologia (em geral, para outras
grandes empresas de diagnóstico médico, capazes de pagar as taxas proporcionalmente altas). E,
visando a criar um fluxo de renda subsidiário da mesma patente, a Hoffmann-LaRoche também
cobrava taxas onerosas dos fabricantes de máquinas que realizam a reação em cadeia da polimerase.
Desse modo, para poder vender um dispositivo simples para crianças usarem na escola, o Dolan dna
Learning Center, em Cold Spring Harbor, tem de pagar royalties de 15% à empresa.

Um efeito ainda mais pernicioso sobre a capacidade produtiva de novas tecnologias resultou da
atuação de advogados que lutaram agressivamente para patentear não apenas as próprias invenções,
mas também as idéias gerais subjacentes a elas. A patente de um camundongo alterado
geneticamente, criado por phil Leder, é
um caso típico. No curso de suas pesquisas sobre câncer, o grupo de Leder na Harvard produziu
uma linhagem de camundongos particularmente propensos a contrair câncer de mama. Conseguiram
isso usando técnicas já consagradas para inserir um gene de câncer (criado por engenharia genética)
na célula-ovo fertilizada de um camundongo. Como os fatores que induzem o câncer em
camundongos podem ser similares aos que atuam em seres humanos, esperava-se que esse
”oncorrato” contribuísse para nosso entendimento do câncer humano. Porém, em vez de solicitar
uma patente limitada ao roedor específico produzido pela equipe de Leder, os advogados da
Harvard buscaram obter uma que abrangesse todos os animais transgênicos propensos ao câncer —
eles não se contentaram em ater-se aos camundongos. A patente abrangente foi concedida em 1988.
Com isso nascia o pequeno camundongo canceroso apelidado de ”rato da Harvard”. No entanto,
como o trabalho do laboratório de Leder fora custeado pela DuPont, os direitos comerciais
pertenciam não à universidade, mas à multinacional. Seria mais correto chamar o ”rato da Harvard”
de ”rato da DuPont”. Mas, qualquer que fosse o nome, o impacto da patente nas pesquisas sobre o
câncer foi profundo e contraproducente.

Empresas interessadas em desenvolver novas formas de roedores propensos ao câncer ficaram


prostradas diante das taxas exigidas pela DuPont. E aquelas que desejavam usar as linhagens
existentes de oncorratos para testar drogas experimentais também tiveram de restringir seus
programas. A DuPont come-

Phú Leder com seu

”oncorrato” da Harvará

138

139
çou a exigir que as instituições acadêmicas revelem quais de seUs experimentos usam o oncorrato
patenteado da empresa. Isso constitui uma intrusão inaceitável e sem precedentes do poder
econômico das grandes empresas em laboratórios universitários. A ucsf, o Instituto Whitehead do
mit e o laboratório Cold Spring Harbor, entre outras instituições de pesquisa, recusaram-se a
cooperar. Quando uma patente envolve ”tecnologias habilitadoras”, ou seja, tecnologias
fundamentais para realizar manipulações moleculares imprescindíveis, os detentores da patente
podem praticamente deixar refém toda uma área de pesquisa. Ainda que cada pedido de patente
deva ser estudado com base em seus méritos particulares, há algumas regras gerais que precisariam
ser observadas. Patentes de métodos claramente vitais para o progresso científico devem seguir o
precedente estabelecido pelo caso Cohen-Boyer, ou seja, a tecnologia deve ser amplamente
disponibilizada (e não controlada por um único licenciado) e ter um preço razoável. Tais limitações
de modo algum contrariam a ética da livre iniciativa. Se um novo método for genuinamente um
paSso à frente, ele será utilizado em larga escala, de modo que até mesmo royalties modestos
resultarão em grandes receitas para o detentor da patente. Por o>utro lado, patentes de produtos —
drogas, organismos transgênicos — deveriam ser limitadas ao produto específico criado, não a toda
uma gama de produtos adicionais porventura sugeridos pelo original.
O triunfo da insulina da Genentech colocou a biotecnologia na boca de todos. Passado um quarto de
século, a engenharia genética e a tecnologia do dna recombinante tornaram-se um aspecto rotineiro
da indústria de novas drogas. Esses procedimentos permitem a produção de grandes quantidades de
proteínas humanas, que de outra forma seriam difíceis de obter. Em muitos casos, as proteínas
modificadas por engenharia genética são mais seguras para uso terapêutico ou diagnóstico que suas
predecessoras. O nanismo, a condição de indivíduos de estatura extremamente baixa, é muitas
>vezes decorrência de uma escassez de hormônio de crescimento humano [hgh := human growth
hormone]. Em 1959, os médicos começaram a tratar casos de n:anismo com hgh, que na época só
podia ser obtido do cérebro de cadáveres, «o tratamento funcionava muito bem, embora mais tarde
se verificasse que trazia o risco de uma infecção terrível: alguns pacientes contraíam a doença de
Creuitzfeldt-Jakob, uma assus-
140

tadora moléstia degenerativa do cérebro, semelhante ao chamado ”mal da vaca louca”. Em 1985, a
Food and Drug Administration (fda) dos Estados Unidos proibiu o uso de hgh proveniente de
cadáveres. Numa bem-vinda coincidência, o hgh recombinante da Genentech, que não apresentava
risco de infecção, foi aprovado para uso no mesmo ano.

Durante a primeira fase da indústria biotecnológica, a maioria das empresas se concentrou em


proteínas com funções já conhecidas. A clonagem
de insulina humana estava fadada ao sucesso; afinal, as pessoas já vinham injetando em si alguma
forma de insulina havia mais de cinqüenta anos quando a Genentech introduziu o produto. Outro
exemplo foi a epoetina alfa (epo), uma proteína que estimula o corpo a produzir glóbulos
vermelhos. O público-alvo da epo são os pacientes submetidos à diálise renal, que sofrem de
anemia provocada pela perda de hemácias. Visando atender a demanda desse produto, a Amgen,
sediada no sul da Califórnia, e o Genetics Institute desenvolveram uma forma recombinante da epo.
Ninguém questionava que a epo era um produto útil e comercialmente viável; a incógnita era qual
empresa dominaria o mercado. Apesar da sua especialização nas sutilezas enigmáticas da físico-
química, o presidente executivo da Amgen, George Rathmann, adaptou-se bem ao pega-pra-capar
do mundo dos negócios. A competição trouxe à tona um lado claramente pouco sutil da sua
personalidade: negociar com George é como lutar com um gigantesco urso, cujo olhar cintilante
parece dizer, porém, que ele só está nos trucidando por ser obrigado a tal. A Amgen e sua
financiadora, a Johnson & Johnson, acabaram vencendo a batalha jurídica com o Genetics Institute,
e a epo hoje rende us$ 2 bilhões por ano somente para a empresa. Conseqüentemente, a Amgen é
hoje a protagonista na disputa pelo mercado da biotecnologia, avaliado em cerca de us$ 64 bilhões.

Depois que os pioneiros da biotecnologia haviam angariado para si os produtos mais ”óbvios” —
proteínas com funções fisiológicas conhecidas como insulina, t-PA, hgh e epo —, teve início a
segunda fase, mais especulativa, do setor. Uma vez esgotado o estoque de produtos infalíveis,
empresas sequiosas de outras fontes de prosperidade começaram a se voltar para outros candidatos,
mesmo aqueles com poucas chances aparentes de sucesso. Se na primeira fase elas sabiam de
antemão que algo funcionava, agora apenas esperavam que um produto potencial desse certo.
Infelizmente, a combinação de possibilidades mais remotas de êxito, desafios técnicos e obstáculos
legislatórios para superar
141
até que um medicamento fosse aprovado pela fda fez muitas vítimas entre as novas empresas de
biotecnologia.

A descoberta de fatores de crescimento — proteínas que favorecem a proliferação e sobrevivência


de células — provocou a multiplicação de novas empresas de biotecnologia. Duas delas, a nova-
iorquina Regeneron e a Synergen, sediada no Colorado, esperavam encontrar um tratamento para o
mal de Lou Gehrig: a esclerose lateral amiotrófica (ela), mais conhecida pela sigla em inglês als
(amyotrophic lateral sclerosis), uma terrível doença degenerativa das células nervosas. A idéia era
impecável em princípio, mas na prática simplesmente não se conhecia ainda o suficiente sobre a
atuação dos fatores de crescimento nos nervos para que seus esforços fossem mais do que lances no
escuro. Experiências em dois grupos de pacientes com als fracassaram e a doença continua sem
tratamento até hoje. Todavia, os experimentos revelaram um efeito colateral interessante: as pessoas
que tomaram o medicamento experimental acabaram perdendo peso. Numa reviravolta que mostra
como acasos felizes são importantes no ramo da biotecnologia, a Regeneron está hoje
desenvolvendo uma versão modificada da sua droga como terapia de emagrecimento.

Outra linha de empreendimento originalmente especulativa que já teve mais do que sua cota de
frustrações comerciais é a tecnologia dos anticorpos monoclonais (acm). Ao serem inventados por
César Milstein e Georges Kõhler em meados da década de 1970 no Laboratório de Biologia
Molecular do Medical Research Council da Universidade de Cambridge, os anticorpos monoclonais
foram saudados como uma panacéia capaz de transformar a medicina. Todavia, por um
esquecimento que hoje seria impensável, o Medical Research Council deixou de patenteá-los.
Panacéia eles acabaram não sendo, mas, após décadas de decepções, o valor dos anticorpos
monoclonais começa hoje a ser reconhecido.

Anticorpos são moléculas produzidas pelo sistema imunológico que se ligam a organismos
invasores e os identificam. Provenientes de uma única linhagem de células produtoras de
anticorpos, os acms são anticorpos programados para se ligar a um único alvo. São produzidos
facilmente quando se injeta o material-alvo em camundongos, induzindo uma reação imunológica e
cultivando as hemácias do animal. Como os acms conseguem reconhecer e se ligar a moléculas
específicas, esperava-se que pudessem ser usados com extrema precisão contra uma variedade de
intrusos perniciosos — células tumorais, por
142

exemplo- Esse otimismo levou à criação de um sem-número de empresas especializadas em


anticorpos monoclonais, mas elas logo se depararam com vários obstáculos. Ironicamente, o mais
grave deles é o sistema imunológico do próprio corpo humano, que identifica os acms dos
camundongos como corpos estranhos e os destrói antes que possam agir contra os alvos designados.
Diversos métodos foram tentados desde então para
”humanizar” os acms, isto é, para substituir ao máximo os anticorpos dos camundongos por
componentes humanos. Hoje, a última geração de anticorpos monoclonais é um dos ramos de maior
crescimento da biotecnologia.

A Centocor, com sede perto de Filadélfia e hoje pertencente à Johnson & Johnson, desenvolveu o
ReoPro, um anticorpo monoclonal específico para uma proteína existente na superfície das
plaquetas (corpúsculos que promovem a coagulação do sangue). Ao impedir que as plaquetas se
unam umas às outras, o ReoPro reduz a probabilidade de formação de coágulos letais em pacientes
submetidos à angioplastia, por exemplo. A Genentech, que nunca foi de ficar para trás na área de
biotecnologia, hoje comercializa o Herceptin, um anticorpo monoclonal que visa a certas formas de
câncer de mama. A Immunex, de Seattle, produz uma droga baseada em AcMs chamada Enbrel, que
combate a artrite reumatóide, uma enfermidade causada pela presença de quantidades excessivas de
uma determinada proteína (fator de necrose tumoral), que ajuda a regular o sistema imunológico. O
Enbrel atua capturando as moléculas em excesso dessa proteína, impedindo-as de provocar uma
reação imunológica contra o tecido das juntas.

Existem outras empresas de biotecnologia interessadas em clonar genes de certas proteínas que
constituem possíveis alvos de novos produtos farmacêuticos. Entre os mais procurados estão os
genes das proteínas geralmente encontradas na superfície das células e que atuam como receptores
para neurotransmissores, hormônios e fatores de crescimento. E por meio desses mensageiros
químicos que o corpo humano coordena as ações de cada célula com as ações de outros trilhões de
células. Descobriu-se recentemente que algumas drogas desenvolvidas às cegas no passado, por
meio de tentativa e erro, atuam sobre esses receptores. O mesmo conhecimento molecular recém-
adquirido também explica por que tantas dessas drogas têm efeitos colaterais. Os receptores
geralmente pertencem a grandes famílias de proteínas similares. Uma droga pode visar a um
receptor referente à doença em questão e inadvertidamente também visar a receptores semelhantes,
gerando assim os efeitos colaterais. Drogas
143
desenvolvidas de maneira mais inteligente deveriam permitir visar a receptores mais específicos, de
tal modo que apenas os referentes sejam bloqueados. Entretanto, como aconteceu com os
anticorpos monoclonais, muitas vezes aquilo que parece ser uma grande idéia no papel acaba sendo
difícil de pôr em prática — e ainda mais difícil de dar um bom lucro.

Essa deprimente lição foi aprendida pela sibia, uma empresa de San Diego associada ao Instituto
Salk. A descoberta de receptores de membrana para o neurotransmissor ácido nicotínico parecia
prometer um tratamento revolucionário para o mal de Parkinson, mas, como vive acontecendo em
biotecnologia, a boa idéia foi apenas o começo de um longo processo científico. No final, depois de
resultados promissores em macacos, a droga da sibia fracassou em seres humanos.

Como a inesperada perda de peso provocada pelo fator de crescimento da Regeneron, os avanços
nessa área muitas vezes dependem apenas de sorte, não do cômputo científico de um projeto
racional de desenvolvimento de drogas. Em 1991, por exemplo, a icos, uma empresa sediada em
Seattle dirigida pelo mesmo George Rathmann da Amgen, começou a trabalhar com uma classe de
enzimas chamadas ”fosfodíesterases”, que destroem moléculas sinalizadoras de células. Eles
buscavam um novo medicamento que reduzisse a pressão sangüínea mas, durante os testes, uma das
drogas apresentou um surpreendente efeito colateral. Sem querer, eles haviam tropeçado numa
terapia semelhante ao Viagra para disfunção erétil, que poderá se revelar uma mina de ouro muito
maior que a de seus mais grandiosos sonhos.*

Como não poderia deixar de ser, e a despeito do grande mercado para auxiliadores eréteis, foi a
busca de terapias contra o câncer que se tornou a grande força propulsora da indústria
biotecnológica. A abordagem clássica contra o câncer — ”matar células” com radiação ou
quimioterapia — acaba invariavelmente matando também células normais saudáveis, em geral com
terríveis efeitos colaterais. Com as novas metodologias que utilizam o dna, os pesquisado-

A história do próprio Viagra é parecida. Originalmente desenvolvido para combater a pressão alta, experimentos com alunos de
medicina convenceram os pesquisadores de que o medicamento tinha outras propriedades.

144

res estão enfim começando a encontrar drogas capazes de visar apenas às proteínas que promovem
a divisão e proliferação de células cancerosas (que muitas vezes são fatores de crescimento e seus
receptores na superfície das células). Desenvolver uma droga que inibe uma determinada proteína-
alvo sem incapacitar outras proteínas vitais é um desafio formidável, mesmo para os melhores
químicos. E esse percurso incerto — da clonagem bem-sucedida do gene para uma droga com alvo
específico até a ampla disponibilidade de um produto farmacêutico aprovado pela fda — constitui
uma verdadeira odisséia que dificilmente leva menos de dez anos.

As histórias de sucesso são raras, mas, tenho certeza,


irão se tornar mais comuns. O Gleevec, descoberto por um químico da empresa suíça Novartis, atua
contra um tipo de câncer do sangue — leucemia mielóide crônica — bloqueando especificamente a
atividade estimuladora de crescimento das proteínas receptoras de membrana produzidas em
excesso por células cancerosas desse tipo. Se ministrado no início da doença, o Gleevec leva a
prolongadas remissões da doença e, espera-se, a verdadeiras curas em muitos casos. Todavia, para
alguns indivíduos sem sorte, a doença reaparece quando novas mutações do gene que codifica as
proteínas receptoras de membrana anulam o efeito do Gleevec.

Uma das proteínas-alvo mais importantes das drogas anticancerígenas talvez seja o receptor para o
fator de crescimento epidermal. Esse receptor costuma estar presente em quantidades muito mais
elevadas em células cancerosas (sobretudo da mama e do pulmão) do que em células normais, o que
sugere que possa ser um bom alvo. Diversas drogas potentes que bloqueiam especificamente a ação
desse fator de crescimento encontram-se hoje em estado avançado de testes clínicos. Porém, embora
a chegada de drogas com alvos específicos possa permitir a criação de novas e poderosas armas na
guerra contra o câncer, é provável que, após uma remissão inicial, muitos pacientes venham a sofrer
uma recaida, à medida que as células cancerosas que colonizam o corpo vão adquirindo resistência
às novas drogas.

Por esse motivo, muitos acreditam que, a longo prazo, a melhor maneira combater as células
cancerosas seja atacar suas fontes de nutrição. As células cerosas, como qualquer outra célula,
precisam de nutrientes para crescer e

°btêm

k
esses nutrientes dos vasos sangüíneos existentes nas proximidades. Se

Pedirmos que vasos sangüíneos cresçam nos tumores, poderemos ”matar de


145
fome” as células cancerosas. A idéia de que pequenos tumores só se tornam perigosos quando
infiltrados por vasos sangüíneos recém-formados (um processo chamado ”angiogênese”) ocorreu
pela primeira vez a Judah Folkman no início da década de 1960, quando prestava serviço militar no
Instituto Naval de Pesquisas Médicas perto de Washington, d.c. Filho precoce de um rabino de
Ohio, Folkman foi o primeiro formando da Universidade Estadual de Ohio a ingressar na Faculdade
de Medicina de Harvard. Ainda no colegial, ele ajudara a operar um cachorro e, na faculdade,
inventou um dispositivo cirúrgico para resfriar o fígado enquanto o fornecimento de sangue era
temporariamente interrompido. Aos 34 anos de idade, tornou-se o mais jovem professor de cirurgia
na história da Harvard. Suas idéias antiangiogenéticas infelizmente só puderam ser aproveitadas em
terapêutica com a recente descoberta de três fatores de crescimento específicos que desempenham
papéis vitais no crescimento de células ”endoteliais” (que revestem os vasos sangüíneos). Os
inibidores desenvolvidos contra esses fatores de crescimento — as chamadas drogas
antiangiogênese — podem muito bem se revelar eficazes contra diversas formas de câncer.
Passados quarenta anos do seu insight, talvez sejamos enfim capazes de, num futuro previsível,
curar a maioria dos cânceres, inclusive aqueles que se tornaram resistentes às melhores drogas
anticancerígenas convencionais.

A Sugen, uma empresa da região de San Francisco, chegou a desenvolver duas drogas, ou melhor,
pequenas moléculas bastante específicas que atuam contra fatores de crescimento angiogenéticos e
inibem tumores em modelos de sistemas animais. Separadamente, nenhuma das duas drogas se
mostrou eficaz contra câncer humano em estado avançado. Entretanto, dados preliminares de
experimentos com camundongos propensos ao câncer realizados por Doug Hanahan na ucsf
sugerem que as drogas da Sugen poderiam ter funcionado se ministradas em conjunto. Infelizmente,
o futuro dos experimentos com oncorratos na ucsf e em outras instituições é incerto devido às atuais
disputas provocadas pela política agressiva de licenciamento desses animais adotada pela DuPont.

Um grupo recém-descoberto de proteínas (que, ao que parece, são inibidores naturais da formação
de vasos) mostrou-se capaz de impedir a infiltração de vasos sangüíneos em tumores em ratos. Duas
dessas proteínas, angiostatina e endostatina, isoladas por Michael O’Reilly no laboratório de Judah
Folkman, estão hoje em fase de testes clínicos. Embora nenhuma delas esteja presente no
146

em volume suficiente para ser extraída e usada em testes com seres humanos, é possível usar
técnicas de dna recombinante em células de levedura

ara obter uma quantidade tal que permita sua aplicação clínica. E, embora nem a angiostatina nem a
endostatina, por si sós, tenham demonstrado miraculosos efeitos anticancerígenos em seres
humanos, experimentos em ratos sugerem
que, como aconteceu com as drogas da Sugen, uma combinação eficaz de ambas talvez possa ser
encontrada em breve. Ao longo da próxima década, uma verdadeira flotilha de inibidores de
pequenas moléculas e proteínas provavelmente estará pronta para navegar pelos sistemas de
pacientes de câncer, impedindo a formação de vasos sangüíneos antes que os tumores se tornem
letais. Se, de fato, o crescimento dos tumores vier a ser restrito dessa maneira, poderemos encarar o
câncer como hoje encaramos o diabetes, ou seja, como uma doença controlável, ainda que não
completamente curada.

As tecnologias recombinantes nos permitem fazer com que células produzam praticamente qualquer
proteína. Com isso, surge inevitavelmente uma pergunta: por que nos limitarmos a produtos
farmacêuticos? Consideremos o exemplo dos fios de uma teia de aranha. Esses fios de seda, que
formam os raios e circunferências da teia, são uma fibra extraordinariamente resistente. Em relação
ao seu peso, são cinco vezes mais resistentes que o aço. Embora haja maneiras de induzir aranhas a
tecer mais fios do que precisam, as tentativas de criar fazendas de aranhas fracassaram porque essas
criaturas são territoriais demais para ser cultivadas em massa. Hoje, porém, os genes produtores da
proteína da seda já foram isolados e podem ser inseridos em outros organismos, os quais então
servem como fábricas de teias de aranha. Essa linha de pesquisa está sendo financiada pelo
Pentágono, que acredita haver um lugar para homensaranha no futuro do exército americano: um
dia, os soldados vestirão roupas blindadas feitas de fios de seda de aranha.

Outra fronteira empolgante da biotecnologia envolve o aperfeiçoamento de proteínas naturais. Por


que nos contentarmos com o plano original da natureza, resultado de pressões evolutivas por vezes
arbitrárias e hoje irrelevantes, se um pouco de manipulação pode nos proporcionar algo mais útil?
Partindo de proteínas existentes, temos hoje a capacidade de efetuar pequenas alterações na
seqüência dos seus aminoácidos. Infelizmente, porém, há uma limitação, pois

147
desconhecemos quais serão os efeitos sobre as propriedades da proteína da alteração de um único
aminoácido que seja. ;

Mas podemos voltar ao exemplo da natureza para encontrar uma solução: um procedimento
conhecido como ”evolução molecular dirigida” imita, para todos os efeitos, a seleção natural. Na
seleção natural, novas variantes são geradas aleatoriamente por mutação e, em seguida, peneiradas
pela competição entre indivíduos — as variantes mais bem-sucedidas (mais bem adaptadas) têm
mais chances de viver e contribuir para a geração seguinte. A evolução molecular dirigida busca
encenar o mesmo processo num tubo de ensaio. Depois de usar alguns truques bioquímicos para
introduzir mutações aleatórias no gene de uma proteína, podemos imitar a recombinação gênica
para embaralhar as mutações a fim de criar novas seqüências. Dentre as novas proteínas resultantes,
nosso sistema seleciona aquelas que se saem melhor sob as condições especificadas. O ciclo inteiro
é repetido várias vezes e, a cada vez, as moléculas ”bem-sucedidas” do ciclo anterior entram na
competição do ciclo seguinte.

Se quisermos um bom exemplo de como a evolução molecular dirigida pode funcionar, não
precisamos ir além da nossa lavanderia. Para ocorrer um pequeno desastre na máquina de lavar,
basta que uma única peça de roupa de cor seja acidentalmente colocada numa pilha de roupas
brancas: um pouco da tintura inevitavelmente sairá daquela camiseta vermelha e, num piscar de
olhos, todos os lençóis da casa adquirem um pálido tom rosado. Por coincidência, uma enzima
peroxidase produzida naturalmente por um tipo de cogumelo chapéude-sapo — o Coprinus
cinereus, para ser mais específico — tem a propriedade de descolorir os pigmentos que se soltaram
das roupas. O problema é que essa enzima não consegue atuar no ambiente quente e ensaboado de
uma máquina de lavar; por isso, utilizou-se a evolução molecular dirigida e foi possível aumentar a
capacidade da enzima de suportar essas condições: existe uma enzima específica que consegue
suportar temperaturas 174 vezes mais elevadas do que a enzima natural do chapéu-de-sapo. Para
melhorar ainda mais as coisas, esse tipo de ”evolução” não demora muito: se a seleção natural leva
milênios, a evolução molecular dirigida em tubos de ensaio é uma questão de algumas horas ou
dias.

Os engenheiros genéticos logo perceberam que suas tecnologias também poderiam ter um impacto
positivo na agricultura. Como ninguém no mundo da biotecnologia consegue ignorar, os resultados
de suas pesquisas — as plantas geneticamente modificadas, ou transgênicas — estão hoje no centro
de uma
dantesca controvérsia. Por isso, é interessante observar que uma contribuição rerior à agricultura —
que serviu para aumentar a produção de leite — também provocou um grande clamor.
O hormônio de crescimento bovino (bGH) é similar em muitos aspectos ao hormônio de
crescimento humano, mas possui um efeito colateral de
grande

valor na pecuária: aumenta a produção de leite das vacas. A Monsanto, a empre<je produtos
químicos para agricultura sediada em St. Louis, clonou o gene bGH e produziu um bGH
recombinante. As vacas produzem esse hormônio naturalmente, mas, se receberem injeções com o
bGH da Monsanto, sua produção de leite aumenta cerca de 10%. No final de 1993, a fda aprovou o
uso do bGH e, em 1997, cerca de 20% dos 10 milhões de vacas dos Estados Unidos estavam
recebendo suplementos de bGH. O leite que produzem é indistinguível do leite produzido por vacas
que não receberam o suplemento: os dois contêm a mesma pequena quantidade de bGH. Na
realidade, um dos principais argumentos contra a obrigatoriedade de indicar na embalagem se o
leite foi ”suplementado com bGH” ou ”não-suplementado com bGH” é o fato de ser impossível
distinguir o leite produzido por vacas que receberam o suplemento daquele produzido por vacas que
não receberam — e, portanto, não haver como determinar se esse tipo de publicidade seria enganosa
ou não. Como o bGH permite aos fazendeiros atingir suas cotas de produção de leite com menos
cabeças de gado, o hormônio é, em princípio, benéfico ao meio ambiente, pois poderia resultar em
rebanhos menores e, uma vez que o gás metano produzido pelo gado contribui significativamente
para o efeito estufa, reduzir o rebanho pode vir a ter um efeito de longo prazo no aquecimento
global. O metano é 25 vezes mais eficaz para reter calor do que o dióxido de carbono e, num dia
qualquer, uma vaca no pasto produz 600 litros flatulentos do gás — o suficiente para encher
quarenta bolas de festa.

Na época, fiquei surpreso que o bGH tivesse provocado reação tão veemente de grupos anti-DNA.
Hoje, enquanto a controvérsia em torno de alimentos geneticamente modificados se arrasta, aprendi
que polemistas profissionais são capazes de transformar qualquer coisa em tema de contestação.
Jeremy Rifkin, o mais obstinado inimigo da biotecnologia, começou sua carreira de opositor
profissional nas comemorações do bicentenário dos Estados Unidos em 1976: ele foi contra. Desde
então, vem se opondo ao dna. Em meados da década de
1980, sua reação à sugestão de que o bGH não conseguiria inflamar o público foi:
148

149
Jeremy Rifkin, opositor profissional: não há nada que ele não tenha tentado impedir.

”Pois eu o transformarei numa questão polêmica. Encontrarei algo. É o primeiro produto de


biotecnologia a chegar ao mercado e eu vou combatê-lo”. Como, de fato, o fez. ”Não é natural”
(embora seja indistinguível do leite ”natural”). ”Contém proteínas que causam câncer” (não é
verdade e, seja como for, as proteínas são decompostas durante a digestão. ”Levará os pequenos
fazendeiros à falência” (só que, ao contrário de muitas outras tecnologias novas, não exige um
grande investimento inicial, de modo que o pequeno fazendeiro não é discriminado). ”Prejudicará
as vacas” (quase nove anos de experiência comercial em milhões de vacas provou que isso não é
verdade). No final, como acontecera com as objeções às técnicas de recombinação levantadas na
época da conferência de Asilomar, a questão foi se esvaziando à medida que se tornava claro que
nenhuma das previsões fatídicas de Rifkin era realista.

A rusga em torno do bGH foi um indício do que estava por vir. Para Rifkin e outros com DNAfobia,
o bGH foi apenas o aperitivo: em breve, os alimentos transgênicos seriam o prato principal dos
protestos.
150

6. Tempestade numa caixa de cereais: A agricultura


transgênica
Wheatfields turn into war zon*

zones

Giant killers
How Europe’s eco-warriors humbled the mighty Monsanto. ByJulianBorger

We modify their genes at our perd

FRMMsTÊÍN FOOD
FIASCO
Bbb urer itntiE I

Em junho de 1962, o livro Silent spring, de Rachel Carson, causou sensação ao ser publicado em
capítulos na revista The New Yorker. O livro trazia a advertência aterrorizadora de que os pesticidas
estavam envenenando o meio ambiente e contaminando até mesmo os nossos alimentos. Na época,
eu era um dos assessores do Comitê de Aconselhamento Científico do Presidente [psca =
President’s Scientific Advisory Committee], de John F. Kennedy, no qual minha principal função
era estudar o programa de guerra biológica dos militares. Portanto, foi um alivio ser convidado para
atuar numa subcomissão que formularia a resposta do governo às questões levantadas por Carson. A
própria autora testemunhou e lembro-me de ter ficado impressionado com sua apresentação
minuciosa e o modo circunspecto como abordou os tópicos. Pessoalmente, ela estava longe de ser a

Aci:

’ma: A imprensa britânica fez um carnaval na questão dos alimentos transgênicos.

151
D D T
(Dichlora) (DlphenuD (Trichlototthant)

The Farnous Wartime Insecttcide Discovery

Now üvailable Io Civilians


, There

ar diffet

• Compounded with oth.r pondera, fordusting purposet

• Soiirtion*, contaíning DOT mixerf with wat«r

• DDT mtxed with othor ingrediente and volo-

ril» tolv*nts, for tproying or brmhing f PrUm túlli varg açeording to type and qualUg of tht producU

ITktrt Witt Be Varywg Typts and QualitUt of D D T Sprau* Ww Your Protection, Gtt FacU Aboul Sach Btfort You Bugl

H W»A< O »1»T Base Insecticide


litjuid compound of O C

Rachel Carson depondo em 1962 perante uma subcomissão do Congresso dos EUA formada para investigar suas advertências sobre os
perigos dos pesticidas. Antes de ela soar o alarme, o DDT (à direita) era visto como o melhor amigo do ser humano.
repef (ham tot a petiui &

repsf tham for a period of from úxty to ninety doys. ’ oci **

2”°~ «3.10 Si.-”: «3.25

-•S.1 3-50 -f--~ §3.75

L”S-.C-”--. *3.85
Out-of-fowrt shipmnnls p*ft+ money order must oceompor mode promplly. AjJd 25c p dws out of JocksonvíO«

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ecomaluca histérica retratada pela indústria de pesticidas e seus asseclas. Um executivo da


American Cyanamid Company, por exemplo, insistiu que, ”se fôssemos seguir à risca os
ensinamentos da srta. Carson, voltaríamos à Idade das Trevas, e os insetos, doenças e vermes
herdariam novamente a Terra”. A Monsanto, outra grande fabricante de pesticidas, publicou uma
refutação a Silent spring chamada The desolateyear e distribuiu gratuitamente 5 mil exemplares do
livro para a mídia. Minha experiência mais direta com o mundo descrito por Carson ocorreu um ano
depois. Eu coordenava na época uma equipe encarregada de averiguar quanto a safra nacional de
algodão estaria ameaçada por insetos herbívoros, em especial o bicudo-do-algodoeiro [Anthonomus
grandis]. Quem visitasse os algodoais do delta do Mississippi, do oeste do Texas e do vale central
da Califórnia não poderia deixar de perceber que os agricultores eram totalmente dependentes de
pesticidas químicos. Em certa ocasião, a caminho de um laboratório de pesquisas entomológicas
perto de Brownsville, Texas, nosso carro chegou a ser inadvertidamente borrifado por um avião
pulverizador. Nessa região, os outdoors não alardeavam produtos conhecidos de nós, urbanos, como
o lendário creme de barbear Burma-Shave, e sim os mais recentes e mais potentes compostos
inseticidas. Produtos químicos venenosos pareciam ser uma importante parte da vida dessa região
algodoeira.
152

Tenha Carson avaliado corretamente ou não a ameaça, o certo era que presava haver uma maneira
melhor de combater os inimigos
hexápodes dos algodoais do que encharcar áreas imensas do país com produtos químicos. Uma
posibilidade promovida por cientistas do Departamento de Agricultura em Brownsville consistia em
mobilizar os próprios inimigos dos insetos — por exemplo, o vírus poliédrico, que ataca a lagarta-
rosada (que logo se tornaria uma ameaça ainda maior ao algodão do que o bicudo) —, mas essa
estratégia mostrou-se impraticável. Na época, eu jamais teria concebido uma solução que
envolvesse a criação de plantas com resistência a pragas incorporada; tal idéia simplesmente
pareceria boa demais para ser verdade. Hoje, porém, é exatamente assim que os fazendeiros estão
vencendo as pragas, ao mesmo tempo que reduzem sua dependência de produtos químicos nocivos.

A engenharia genética produziu plantas com resistência intrínseca a pragas e, com a decorrente
diminuição do uso de pesticidas, quem sai ganhando é o meio ambiente. Paradoxalmente, porém, as
organizações dedicadas à proteção do meio ambiente têm se mostrado as mais vociferantes na
oposição à introdução das chamadas plantas geneticamente modificadas, ou transgênicas.

Como acontece na engenharia genética de animais, o difícil primeiro passo na biotecnologia das
plantas é inserir o pedaço desejado de dna (o gene útil) na célula vegetal e, em seguida, no genoma
da planta. Como os biólogos moleculares estão sempre descobrindo, a natureza desenvolveu um
mecanismo para fazer isso milhões de anos antes de algum biólogo ter sequer pensado a respeito.

A doença denominada galha-de-coroa leva à formação de um caroço disforme, um ”tumor”,


conhecido como galha, no caule das plantas. É causado por uma bactéria de solo bastante comum
chamada Agrobacterium tumefaríens, um agente oportunista que infecta as plantas no local em que
foram mordiscadas por um inseto herbívoro, por exemplo. O modo como o parasita bacteriano
perpetra o ataque é notável. Ele constrói um túnel através do qual consegue enviar para a célula
vegetal um ”pacote” do seu material genético, que consiste em um trecho de dna cuidadosamente
excisado de um plasmídeo especial e, em seguida, envolto numa camada protetora antes de ser
remetido pelo túnel. Quando esse pacote de dna chega ao seu destino, é integrado ao dna da célula
hospedeira (como aconteceria com o dna de um vírus). Ao contrário do que ocorre com

153
Uma planta com uma doença chamada galha-de-coroa, causada pela Agrobacterium tumefaciens. O tumor protuberante é a maneira
engenhosa de a bactéria assegurar que a planta produza, em quantidade suficiente, o nutriente de que ela, bactéria, precisa.

vírus, porém, esse trecho de dna, uma vez instalado, não produz outras

Pias de si mesmo; em vez disso, produz hormônios de crescimento vegetal e


proteínas especializadas, que servem como nutrientes para a bactéria — que,
por sua vez, promovem simultaneamente a divisão celular da planta e a prolife-
Ção de bactérias ao criarem um circuito positivo de retroalimentação: os hor-
mônios de crescimento fazem com que as células da planta se multipliquem
mais depressa e, como o dna bacteriano invasor é copiado junto com as células
hospedeiras em cada divisão celular, cada vez mais nutrientes bacterianos e cada
vez mais hormônios de crescimento vegetal são produzidos.

Para a planta, o resultado desse frenesi de crescimento descontrolado é a massa celular


protuberante — a galha —, que, para a bactéria, funciona como uma espécie de fábrica na qual a
planta é coagida a produzir precisamente àquilo de que a bactéria precisa, e em quantidades sempre
crescentes. Em termos de estratégias parasíticas, a da Agrobacterium é brilhante: ela transformou a
Coração das plantas numa forma de arte.

Os detalhes do parasitismo da Agrobacterium foram sendo descobertos aos Poucos na década de


1970 por Mary-Dell Chüton, na Universidade de Washing-
1:4 em Seattle, e por Marc van Montagu e Jeff Schell, na Universidade Livre de
ent, na Bélgica. Na época, o debate sobre dna recombinante estava grassan-

ent, na Bélgica. Na época, o debate sobre dna recombinante estava grassanem Asilomar e em toda
parte. Mais tarde, Chilton e seus colegas de Seattle dentaram ironicamente que, por transferir dna de
uma espécie para outra no resguardo das instalações de contenção P4, a Agrobacterium estava
”operando à margem das diretrizes do National Institutes of Health”.
Em breve, Chilton, Van Montagu e Schell deixariam de ser os únicos fasci-
nados pela Agrobacterium. No início da década de 1980, a Monsanto, a mesma
empresa que recriminara o ataque de Rachel Carson aos pesticidas, percebeu
154

que essa bactéria era mais do que uma excentricidade biológica. Seu bizarro estilo de vida parasítico
talvez contivesse a chave do processo de inserir genes em plantas. Quando Chilton se mudou de
Seattle e foi para a Universidade Washington em St. Louis, a cidade natal da empresa, constatou que
seus novos vizinhos tinham mais do que um interesse efêmero por seu trabalho. A Monsanto pode
ter chegado tarde ao estudo e aproveitamento da Agrobacterium, mas tinha dinheiro de sobra e
outros recursos para logo recuperar o atraso. Não demorou muito até que, em troca da promessa de
compartilharem suas descobertas com a nova benfeitora,
os laboratórios de Chilton e de Van Mongatu/Schell começassem a ser financiados pela gigantesca
empresa química.

O sucesso da Monsanto se deve à sagacidade científica de três homens, Rob Horsch, Steve Rogers e
Robb Fraley, que ingressaram na empresa no início dos anos 1980. Nas duas décadas seguintes, eles
arquitetariam uma revolução na agricultura. Horsch sempre amou ”o cheiro e o calor [da terra]” e
desde garoto quis ”cultivar coisas melhores do que as disponíveis na mercearia”. Não demorou a
ver seu trabalho na Monsanto como uma oportunidade para realizar esse sonho em escala
gigantesca. Em contraste, Roger, um biólogo molecular da Universidade de Indiana, descartou a
princípio o convite da empresa por achar que, se realizasse esse tipo de trabalho, estaria se
”vendendo” para a indústria. Todavia, ao visitar a empresa, encontrou não apenas um dinâmico
ambiente de pesquisa, mas também a abundância de um elemento-chave quase sempre escasso em
pesquisas acadêmicas: dinheiro. E deixou-se converter. Por sua vez, Fraley sempre tivera em mente
o futuro da biotecnologia agrícola. Ele ingressou na empresa depois de procurar Ernie Jaworski, o
executivo cuja intuição fora a mola propulsora do programa de biotecnologia da Monsanto.
Jaworski revelou-se não apenas um visionário, mas também um empregador mais do que afável —
não perdeu a pose no seu primeiro encontro com Fraley, quando ambos estavam de passagem pelo
aeroporto Logan, de Boston, e o futuro colega anunciou que um de seus objetivos era tomar-lhe o
cargo.

Os três grupos envolvidos com a Agrobacterium — o de Chilton, o de Van Montagu e Schell, e a


Monsanto — viam a estratégia da bactéria como um convite à manipulação genética das plantas. Já
não era inconcebível imaginar o uso das ferramentas de cortar-e-colar da biologia molecular para
realizar a tarefa relativamente simples de inserir no plasmídeo da Agrobacterium um gene que se
desejasse transferir para a célula da planta. Com isso, quando a bactéria geneti-
i55
camente modificada infectasse um hospedeiro, inseriria o gene selecionado no cromossomo da célula vegetal.
A Agrobacterium é um sistema cabal para transferir dna estranho às plantas; é uma verdadeira engenheira
genética natural. Em janeiro de 1983, num congresso decisivo realizado em Miami, Chilton, Horsch
(representando a Monsanto) e Schell apresentaram resultados independentes confirmando que a
Agrobacterium se mostrara à altura da sua nova função. A essa altura, os três grupos já tinham requerido
patentes para métodos de alteração gênica baseados na Agrobacterium. A patente de Schell foi reconhecida na
Europa, mas, nos Estados Unidos, uma querela entre Chilton e a Monsanto se arrastaria pelos tribunais até
2000, quando a patente foi finalmente concedida a Chilton e seu novo empregador, a Syngenta. (Porém,
diante da discreta selvageria que impera no mundo das patentes de propriedade intelectual, ninguém deve se
surpreender que a história não termine de maneira tão simples: no momento em que escrevo, a Syngenta está
na justiça processando a Monsanto por violação de patente.)

A princípio, acreditava-se que a Agrobacterium realizasse sua mágica tortuosa somente em certas plantas.
Entre elas, infelizmente, não estava o grupo mais importante da agricultura, que inclui cereais como milho,
trigo e arroz. Entretanto, nos anos desde que engendrou a engenharia genética das plantas, a própria
Agrobacterium tornou-se foco das atenções dos engenheiros genéticos, e avanços técnicos estenderam seu
império até as mais recaldtrantes espécies. Antes dessas inovações, dependíamos de uma maneira
maisfortuita, mas não menos eficaz, de inserir uma seleção de dna nas células de milho, trigo ou arroz. O gene
desejado é afixado em minúsculos grânulos de ouro ou tungstênio, que são literalmente disparados contra a
célula como balas de revólver. O truque é disparar os grânulos com força suficiente para que entrem na célula,
mas não com tanta força que saiam pelo outro lado! O método carece da sutileza da
LT/ Agrobacterium, mas nempor isso deixa de realizar o serviço.
Essa ”pistola gênica” foi desenvolvida no início da
década de 1980 por John Sanford no Centro de Pesquisas
Agrícolas de Cornell. Sanford optou por realizar os experimen-

A ”-pistola gênica” usada para disparar DNA no interior das células de plantas.

156

tos com cebolas, cujas células grandes são convenientes para trabalhar. Ele se lembra de que a combinação de
cebolas estouradas e pólvora fazia com que o heiro do seu laboratório parecesse uma lanchonete McDonald’s
num campo je tiro. As reações iniciais à sua concepção foram permeadas de incredulidade, mas em 1987 ele
descreveu sua arma de fogo botânica nas páginas da revista Nature. Em 1990, usando essa arma, os cientistas
já haviam conseguido inserir novos genes no milho, o produto agrícola mais importante dos Estados Unidos,
avaliado em US$
19 bilhões em 2001.

O milho não é apenas um alimento valioso. Diferentemente dos demais produtos agrícolas americanos, seu
valor como semente também vem de longa data. O negócio de sementes sempre foi uma espécie de beco sem
saída financeiro: um agricultor precisa comprar sementes, mas, nos plantios subseqüentes, pode usar os grãos
da safra que acabou de colher, de modo que nunca mais precisará adquirir sementes de uma empresa. As
empresas de sementes de milho dos Estados Unidos resolveram esse problema na década de 1920
comercializando o milho híbrido, isto é, produto do cruzamento de duas linhas genéticas específicas de milho.
O elevado rendimento do milho híbrido torna-o atraente aos fazendeiros. E, devido aos mecanismos
mendelianos de reprodução, está fadada ao fracasso a estratégia de usar como semente os grãos da própria
colheita (ou seja, o produto de um cruzamento híbrido x híbrido), pois a maioria das sementes não possuirá as
características de alto rendimento do híbrido original. Desse modo, os fazendeiros são obrigados a retornar
todos os anos à

Há muitos anos as empresas de milho Wbrido contratam um exército âe ”despendoaâores” para retirar as flores masculinas (pendões)
dos pés de milho. Isso impede a autopolinização e garante que as sementes produzidas sejam, de fato, híbridas — isto é, produto do
cruzamento de duas linhagens distintas.

157
A Cúpula do Milho durante a Guerra Fria: o líder soviético Nikita Khruschov em Iowa, com o fazendeiro Roswell Garst (à direita) em
19;g

empresa de sementes para obter um novo lote de sementes híbridas de alto rendimento.

A maior empresa de sementes de milho híbrido dos Estados Unidos, a Pioneer Hi-Bred International
(hoje pertencente à DuPont), tornou-se uma verdadeira instituição do Meio-Oeste daquele país. Ela
hoje controla cerca de 40% do mercado de sementes de milho dos Estados Unidos, com vendas
anuais em torno de US$ 1 bilhão. Fundada em 1926 por Henry Wallace, que se tornaria o vice-
presidente de Franklin D. Roosevelt, a empresa chegava a contratar até 40 mil alunos colegiais
todos os verões para assegurar a hibridez do seu milho híbrido. As duas linhagens parentais eram
cultivadas em lotes vizinhos; a função dos 40 mil estudantes era retirar à mão, de uma das
linhagens, os pendões produtores de pólen (as inflorescências macho) antes que se tornassem
maduros. Dessa forma, somente a outra linhagem podia servir como fonte de pólen, assegurando
que todas as sementes produzidas pela linhagem ”despendoada” seriam com certeza híbridas.
Mesmo hoje, o ”despendoamento” cria milhares de empregos durante o verão: em julho de 2002, a
Pioneer contratou 35 mil trabalhadores temporários para fazer esse serviço.

Um dos primeiros clientes da Pioneer foi Roswell Garst, um agricultor de Iowa que, impressionado
com os híbridos de Wallace, comprou uma licença para vender as sementes de milho da Pioneer.
Em 23 de setembro de 1959, num dos momentos menos gélidos da Guerra Fria, o líder soviético
Nikita Khrus-

158

uov visitou a fazenda de Garst para conhecer melhor o milagre agrícola americano e o milho híbrido
responsável por ele. A nação que Khruschov herdara de Stálin negligenciara a agricultura em seu
esforço de industrialização, e o novo premiê estava ansioso para corrigir essa falha. Em 1961, o
recém-emposado governo Kennedy aprovou a venda de sementes de milho, implementos agrícolas
e fertilizantes para os soviéticos, o que contribuiu para dobrar a produção de milho daquele país em
apenas dois anos.

Agora que o debate sobre alimentos transgênicos vai gerando um verdadeiro turbilhão à nossa volta,
é preciso levar em conta que nosso hábito de ingerir alimentos geneticamente modificados data de
milhares de anos atrás. Na realidade, tanto os animais que domesticamos (nossa fonte de carne)
como as plantas que fornecem nossos grãos, frutas, legumes e verduras estão geneticamente muito
distantes de seus antepassados silvestres.

A agricultura não surgiu subitamente, já formada, há 10 mil anos. Muitos ancestrais silvestres de
nossas plantas, por exemplo, tinham relativamente pouco a oferecer aos primeiros agricultores: seu
rendimento era baixo e o cultivo, difícil. Foi necessário modificá-los para que a agricultura tivesse
êxito. Os antigos fazendeiros
compreenderam que tais modificações (”genéticas”, diríamos) tinham de ser cultivadas nas plantas
para que as características desejáveis fossem mantidas de geração a geração. Assim teve início o
grandioso programa de modificação genética de nossos antepassados agrários. E, na falta de pistolas
gênicas e instrumentos similares, essa atividade dependia de alguma forma de

Os efeitos de milênios de seleção artificial: espiga de milho e seu ancestral silvestre, o teosinto (à esquerda).

159
r
seleção artificial, pela qual os fazendeiros procriariam somente os indivíduos que apresentassem as
características desejadas — as vacas mais leiteiras, por exemplo. Para todos os efeitos, esses
fazendeiros estavam fazendo o que a natureza realiza no curso da seleção natural: selecionar e
escolher dentre uma gama de variantes genéticas disponíveis aquelas capazes de assegurar que a
geração seguinte será aperfeiçoada com as variantes mais bem adaptadas — mais bem adaptadas ao
consumo, no caso dos fazendeiros; à sobrevivência, no caso da natureza. A biotecnologia nos
fornece uma maneira de gerar as variantes desejadas para que não tenhamos de esperar até que elas
surjam naturalmente.! Como tal, é apenas o mais recente de uma longa lista de métodos que sempre
f foram usados para modificar geneticamente nossos alimentos. 1

É difícil eliminar ervas daninhas. Como as plantações cujo crescimento inibem, elas também são
plantas. Existiria algum modo de matar as ervas daninhas sem matar os frutos da terra? O ideal seria
algum tipo de sistema de eliminação controlada pelo qual toda planta que não tivesse uma ”marca
protetora” — as ervas daninhas, no caso — seriam mortas, enquanto as que possuíssem tal marca —
os produtos agrícolas — seriam poupadas. Graças à engenharia genética, os agricultores e
jardineiros já dispõem desse sistema, conhecido como tecnologia Roundup Ready [”pronto para
receber o Roundup”], da Monsanto. O Roundup é um herbicida de amplo espectro capaz de matar
praticamente qualquer planta. Mas, mediante alterações genéticas, os cientistas da empresa tam-j
bém produziram plantas Roundup Ready, que incorporam resistência ao herbi-l cida e nada sofrem
mesmo quando todas as ervas ao seu redor caem por terra.1 Evidentemente, é do interesse
comercial da empresa que os fazendeiros que adquirem a semente adaptada da Monsanto também
comprem o seu herbicida. Por outro lado, esse processo é, na realidade, benéfico ao meio ambiente.
Em geral, os fazendeiros têm de usar diversos herbicidas, cada um tóxico para determinado grupo
de ervas daninhas e seguro para a plantação. Como existem muitos tipos de ervas daninhas contra as
quais se proteger, o uso de um único herbicida para todas elas reduz o nível desses produtos
químicos no meio ambiente (além disso, o próprio Roundup rapidamente se degrada no solo).

Infelizmente, o desenvolvimento da agricultura foi uma dádiva não apenas

para nossos antepassados, mas também para os insetos herbívoros. Imagine que você seja urn inseto
que gosta de comer trigo e outras gramíneas silvestres aparentadas. Milhares de anos atrás, você
tinha de sair em busca de suas refeições aqui e ali, e às vezes era obrigado a percorrer grandes
distâncias. Um belo dia chega a agricultura e, para sua conveniência, os seres humanos começam a
lhe oferecer refeições em gigantescos lotes. É perfeitamente compreensível
que as plantações tenham de ser defendidas contra ataques de insetos. Do ponto de vista da
eliminação, pelo menos, os insetos representam um problema menor do que as ervas daninhas, pois
é possível criar venenos que atacam animais e não as plantas — o problema é que os seres humanos
e outras criaturas que apreciamos também são animais.

A gravidade dos riscos envolvidos no uso de pesticidas só se tornou evidente depois que Rachel
Carson os documentou pela primeira vez. O impacto sobre o meio ambiente de pesticidas
persistentes à base de cloro, como o ddt (banido na Europa e na América do Norte desde 1972), foi
devastador — para não falar no perigo de que resíduos desses pesticidas estejam presentes em
nossos alimentos. Embora possam não ser letais em doses pequenas — afinal, foram desenvolvidos
para matar animais a uma considerável distância evolutiva de nós —, esses produtos químicos são
preocupantes por causa de seus possíveis efeitos mutagênicos, que podem resultar em câncer
humano e defeitos congênitos. Uma alternativa ao ddt surgiu sob a forma de pesticidas
organofosforados, como o parathion. Em seu favor, eles se decompõem rapidamente depois de
aplicados e não permanecem no meio ambiente. Por outro lado, são ainda mais tóxicos do que o
ddt: o gás sarin, usado no ataque terrorista ao metrô de Tóquio em 1995, por exemplo, faz parte do
grupo dos organofosfatos.

Mesmo soluções que usam substâncias da própria natureza apresentam reações adversas.
Em meados da década de 1960, as empresas químicas começaram a desenvolver versões
sintéticas de um inseticida natural, a piretrina, extraída de uma flor de crisântemo
semelhante à margarida. Estas ajudaram a controlar pragas agrícolas durante mais de uma
década, até que, inevitavelmente, seu uso indiscriminado levou ao surgimento de
populações de insetos resistentes. Ainda mais preocupante é o fato de a piretrina, embora
natural, não ser necessariamente inócua para seres humanos; pelo contrário, como muitas
outras substâncias derivadas de plantas, pode ser bastante tóxica. Experimentos com
piretrina em ratos produziram sintomas semelhantes aos do mal de Parkinson,
160

161
w
e epidemiologistas constataram que, de fato, a incidência da doença é maior em regiões rurais do
que em áreas urbanas. Embora haja uma escassez de dados confiáveis, a Agência de Proteção
Ambiental [epa = Environmental Protection Agency] estima que, no total, talvez ocorram 300 mil
casos por ano de doenças causadas por pesticidas entre agricultores americanos.

Os agricultores orgânicos têm seus truques para evitar pesticidas. Um engenhoso método orgânico
utiliza uma toxina derivada de uma bactéria — ou, muitas vezes, a própria bactéria — para proteger
as plantas dos ataques de insetos. O Bacillus thuringiensis (Bt) invade naturalmente as células do
intestino dos insetos, refestelando-se com os nutrientes liberados pelas células danificadas. O
intestino dos insetos expostos a esse bacilo ficam paralisados, fazendo com que as criaturas morram
ao mesmo tempo de inanição e por lesões teciduais. Identificado pela primeira vez em 1901, quando
dizimou a população de bichos-daseda no Japão, o Bacillus thuringiensis só recebeu esse nome em
1911, depois de um surto que vitimou as traças da farinha na Turíngia, uma província da Alemanha.
Foi usado pela primeira vez como pesticida na França em 1938, quando ainda se acreditava que o
bacilo só atuasse contra lagartas lepidópteras — mariposas/borboletas (subseqüentemente, outras
linhagens se mostraram eficazes contra as larvas de besouros e moscas). O melhor de tudo, porém, é
que esse bacilo tem como alvo apenas insetos: os intestinos da maioria dos animais são ácidos (ou
seja, têm pH baixo), mas o das larvas de insetos é bastante alcalino (pH elevado) —justamente o
ambiente em que a perniciosa toxina Bt é ativada.

Com o advento da tecnologia do dna recombinante, o sucesso do Bacillus thuringiensis como


pesticida serviu de inspiração para os engenheiros genéticos. E se, em vez de aplicar o bacilo
indiscriminadamente às plantações, o gene da toxina Bt fosse incorporado ao genoma das plantas?
Nunca mais um fazendeiro precisaria pulverizar suas plantações, pois cada pedacinho de planta
seria letal ao inseto que o ingerisse (e inofensivo para nós). O método possui no mínimo duas claras
vantagens sobre o tradicional borrifamento destrambelhado de pesticidas em plantações. Primeiro,
só os insetos que efetivamente ingerem a planta são expostos ao pesticida; insetos que não forem
pragas não são prejudicados, como aconteceria com aplicações externas. Segundo, a implantação do
gene Bt no genoma da planta faz com que a toxina seja produzida em todas as células, ao passo que
os pesticidas tradicionais geralmente só são aplicados a folhas e caule. Desse modo, insetos que se
alimentam de raízes ou que perfuram o interior do
162

Algodão Bt:

algodão geneticamente

modificado para

produzir a toxina

inseticida Bt (à direita)
viceja, enquanto as

plantas sem a toxina

são devastadas por


insetos.

tecido vegetal, antes imunes aos pesticidas de aplicação externa, agora também estão condenados a
uma ”morte Bt”.

Hoje dispomos de uma ampla gama de plantas com a ”grife Bt”, entre elas ”milho Bt”, ”batata Bt” e
”soja Bt”, resultando em uma redução maciça do uso de pesticidas. Em 1995, plantadores de
algodão do delta do Mississippi pulverizavam seus campos em média 4,5 vezes por safra. No ano
seguinte, com a introdução do algodão Bt, essa média (de todas as fazendas, incluindo aquelas que
não plantaram o algodão Bt) caiu para 2,5 vezes. Estima-se que, desde 1996, as plantas Bt
provocaram uma redução anual de 7,5 milhões de litros de pesticidas nos Estados Unidos. Já faz
tempo que não visito a região algodoeira, mas posso apostar que os outdoors não estão mais
apregoando inseticidas químicos e desconfio que seja mais provável um retorno dos anúncios de
Burma-Shave que os de pesticidas. Além disso, outros países também começam a se beneficiar:
estima-se que em 1999 o plantio de algodão Bt na China reduziu o uso de pesticidas em 1.300
toneladas.

A biotecnologia também fortaleceu plantas contra outros inimigos tradicionais com um método
surpreendente de prevenção de doenças, vagamente similar à vacinação. Na vacinação, injetamos
em nossas crianças formas atenuadas de diversos patógenos para induzir uma reação imunológica
que as protegera contra a infecção se forem subseqüentemente expostas à doença. O espantoso e
que uma planta, que não possui um sistema imunológico propriamente dito, quando exposta a um
determinado vírus, muitas vezes também se torna resistente a outras cepas do mesmo vírus. Roger
Beachy, da Universidade Wash-
163
ington em St. Louis, percebeu que esse fenômeno de ”proteção cruzada” poderia permitir que
engenheiros genéticos ”imunizassem” plantas contra doenças nocivas. Ele tentou inserir em plantas
o gene da capa protéica de um vírus a fim de verificar se isso induziria a proteção cruzada sem
expor a planta ao vírus em si. Foi exatamente o que aconteceu. De algum modo, a presença na
célula da proteína que reveste o vírus impede a célula de ser assolada por vírus invasores

O método de Beachy salvou as plantações de mamão do Havaí. Entre 1993 e 1996, a produção
despencara 40% devido a uma irrupção do vírus da mancha anelar do mamoeiro. Com isso, um dos
principais produtos da ilha estava ameaçado de extinção. Inserindo no genoma do mamão o gene de
apenas parte da proteína que reveste o vírus, os cientistas conseguiram criar plantas resistentes aos
ataques desse vírus. E os mamões do Havaí foram resgatados para uma longa sobrevida.

Mais tarde, os cientistas da Monsanto aplicaram o mesmo método inofensivo para combater uma
doença comum causada pelo vírus X da batata. (Os nomes dos vírus da batata não primam pela
originalidade; também existe um vírus Y.) Infelizmente, a rede McDonakTs e outras grandes
empresas de fast food temeram que o uso de batatas modificadas levasse os antagonistas de
alimentos transgênicos a organizar boicotes. Com isso, as batatas fritas servidas hoje custam mais
do que poderiam custar.

A natureza concebeu sistemas engastados de defesa centenas de milhões de anos antes de os


engenheiros genéticos começarem a inserir genes Bt em plantas. Os bioquímicos conhecem toda
uma classe de substâncias vegetais, chamadas de produtos secundários, que não estão envolvidas no
metabolismo geral das plantas e são produzidas apenas para protegê-las contra herbívoros e outros
possíveis agressores. Na realidade, muitas plantas são repletas de toxinas químicas desenvolvidas
pela evolução. Ao longo do tempo, como seria de esperar, a seleção natural favoreceu as plantas que
continham a gama mais terrível de produtos secundários, pois eram as menos vulneráveis ao ataque
dos herbívoros. Muitas substâncias que os seres humanos aprenderam a extrair das plantas — como
medicamentos (a digitalina, retirada da digitális, pode, em doses precisas, ser usada no tratamento
de pacientes cardíacos), estimulantes (cocaína, da planta da coca) ou pesticidas (piretrina, de
crisântemos) — pertencem à classe dos

164

dutos secundários. Venenosas para os inimigos naturais, essas substâncias ”o urna reação defensiva
laboriosamente desenvolvida ao longo da evolução

das plantas.
Bruce Ames, criador do teste Ames, um procedimento muito usado para determinar se uma
determinada substância é ou não carcinogênica, observou que as substâncias naturais de nossos
alimentos são tão letais quanto os produtos químicos nocivos que tanto nos preocupam. Referindo-
se a testes feitos com ratos, ele usa o café como exemplo:

Há mais carcinógenos [para ratos] numa xícara de café do que os resíduos


de pesticidas ingeridos num ano. E em cada xícara de café existem mil outras substâncias que ainda
não foram testadas. Isso mostra bem como nossos padrões variam. Se algo é sintético, ficamos
espavoridos; se é natural, esquecemos o assunto.

Algumas plantas possuem um conjunto curioso de defesas químicas que envolve as


furanocumarinas, substâncias que só se tornam tóxicas quando expostas diretamente à luz
ultravioleta. Graças a essa adaptação natural, as toxinas só são ativadas quando um herbívoro
começa a comer a planta, rompe-lhe as células e expõe o seu conteúdo à luz solar. As
furanocumarinas existentes na casca do limão siciliano foram responsáveis pela estranha praga que
acometeu os hóspedes de um hotel Club Med no Caribe, provocando desagradáveis erupções
cutâneas nas coxas dos participantes de uma brincadeira. Esse jogo consistia em passar um limão de
uma pessoa para outra sem usar as mãos, pés, braços ou cabeça; ativadas pelo fustigante sol
caribenho, as furanocumarinas do pobre limão atacaram sem dó um sem-número de coxas.

Plantas e herbívoros participam de uma corrida armamentista evolutiva: a natureza seleciona plantas
de tal modo que elas se tornam cada vez mais tóxicas, enquanto os herbívoros vão ficando cada vez
mais eficientes em desintoxicar as substâncias defensivas das plantas ao mesmo tempo em
metabolizam as nutritivas. Em relação às furanocumarinas, alguns herbívoros desenvolveram
contramedidas bastante espertas. Algumas lagartas, por exemplo, enrolam a folha antes de
começarem a mastigar. Com isso, a luz solar não penetra nos recôncavos desse enroladinho de
folhas e as furanocumarinas não são ativadas.

Acrescentar um determinado gene Bt a plantas alimentícias é apenas um modo de a espécie


humana, como parte interessada, dar um empurrãozinho nas

165
plantas nessa corrida armamentista evolutiva. Portanto, não devemos nos surpreender se os insetos
acabarem desenvolvendo resistência a essa toxina em particular. Afinal, essa é a reação típica do
estágio seguinte do antigo conflito Quando isso ocorrer, os agricultores provavelmente descobrirão
que a multiplicidade de cepas de toxinas Bt disponíveis pode representar uma saída para esse
círculo vicioso evolucionista: quando a resistência a um tipo se disseminar, eles podem
simplesmente começar a cultivar plantas com uma cepa alternativa de toxina Bt incorporada.

Além de defender plantas de seus inimigos, a biotecnologia também pode contribuir para a
comercialização de produtos mais desejáveis. Às vezes, porém, até o mais sagaz biotecnólogo é
incapaz de discernir o óbvio — ou de enxergar a floresta no meio de tantas árvores (ou, no nosso
caso, de enxergar a plantação no meio de tantos frutos). Foi o que aconteceu com a Calgene, uma
empresa inovadora da Califórnia à qual, em 1994, coube a distinção de produzir o primeiro produto
transgênico a chegar às prateleiras dos supermercados. A empresa resolvera um dos grandes
problemas do cultivo de tomates: como levar frutos já maduros até o mercado, em vez de colhê-los
ainda verdes, como é o costume. Todavia, a despeito de seu triunfo técnico, esqueceu-se de algumas
coisas básicas: o seu tomate Flavr-Savr, além do nome pouco feliz [algo como ”PrservaSabr”], não
era nem saboroso nem barato o suficiente para ter sucesso. Com isso, ao tomate Flavr-Savr coube
mais uma distinção: a de ter sido um dos primeiros produtos transgênicos a desaparecer das
prateleiras dos supermercados.

Não obstante, a tecnologia era engenhosa. O tomate, ao amadurecer, torna-se naturalmente mais
macio, graças ao gene que codifica uma enzima chamada poligalacturonase (pg), que amolece o
fruto ao romper as paredes das células. Como não se podem transportar tomates moles, os frutos são
geralmente colhidos ainda verdes (e rijos) e avermelhados com gás etileno, um agente maturador.
Pesquisadores da Calgene verificaram que, se o gene da pg fosse retirado, o fruto permaneceria rijo
por mais tempo, mesmo depois de amadurecer no galho. Assim, inseriram uma cópia invertida do
gene, que, devido às afinidades entre pares de bases complementares, tinha o efeito de fazer com
que o rna produzido pelo gene pg normal ficasse ”preso” ao rna produzido pelo gene invertido,
neutralizando a capacidade do primeiro de criar a enzima amolecedo-

166

_a A ausência da função pg fez com que o tomate permanecesse rijo, tornando nossível enviar frutos
ao mesmo tempo mais frescos e mais maduros para as prateleiras dos supermercados. Só que a
Calgene, triunfante em sua magia molecular, subestimou as complexidades do cultivo do tomate.
(Como observou um agricultor contratado pela empresa, ”um biólogo molecular solto
na fazenda morreria de fome”.) A linhagem de tomate que a Calgene escolhera para modificar era
particularmente insossa e insípida: simplesmente não havia muito ”sabr” a preservar, muito menos
para saborear. O tomate foi um triunfo tecnológico mas um fracasso comercial.

No geral, talvez a contribuição mais importante da tecnologia vegetal para o bem-estar humano
esteja na sua capacidade de melhorar o perfil nutricional das plantas alimentícias, compensando
suas deficiências naturais como fonte de nutrientes. A maioria das plantas tem um baixo teor dos
aminoácidos essenciais para a vida humana; por isso, aqueles que adotam uma dieta puramente
vegetariana — entre os quais podemos incluir grande parcela da população do mundo em
desenvolvimento — podem padecer de uma deficiência desses aminoácidos. A engenharia genética
é capaz de fazer com que as plantas alimentícias contenham uma gama maior de nutrientes,
incluindo aminoácidos, que as versões não-modificadas ainda cultivadas e ingeridas nessas partes
do mundo.

Vejamos um exemplo. Em 1992, o unicef estimou que cerca de 124 milhões de crianças em todo o
mundo sofriam de uma grave deficiência de vitamina A. O resultado? Cerca de 500 mil casos de
cegueira infantil e inúmeros óbitos por falta dessa vitamina. Como o arroz não contém nem a
vitamina A nem os seus predecessores bioquímicos, esse tipo de deficiência está mais concentrada
nas regiões do mundo onde o arroz é o prato principal.

Uma iniciativa internacional, financiada em grande parte pela Fundação Rockefeller (uma
organização não-lucrativa e, portanto, imune às acusações de comercialismo ou exploração tantas
vezes feitas contra os produtores de alimentos transgênicos), desenvolveu o que veio a ser chamado
de golden rice [arroz dourado]. Embora esse arroz não contenha vitamina A em si, ele produz um
precursor crucial, betacaroteno (o elemento que confere à cenoura a sua cor forte e ao golden rice o
tom levemente alaranjado que inspirou o nome ”dourado ’). Entretanto, como as pessoas engajadas
em ajuda humanitária descobriram, a desnutrição pode ser mais complexa do que a mera deficiência
de um elemento: a absorção dos precursores da vitamina A no intestino funciona melhor

167
na presença de gordura, mas as populações desnutridas que o arroz dourado pretendia ajudar têm
pouca ou nenhuma gordura em sua dieta. Mesmo assim, | o arroz dourado talvez represente um
passo na direção certa e podemos ver aqui o grande potencial da agricultura transgênica de diminuir
o sofrimento humano.

Estamos apenas no início de uma grande revolução transgênica, começando a ver a estonteante
gama de possíveis aplicações de organismos geneticamente modificados. Além de proporcionar
nutrientes que as plantas originais não possuem, talvez um dia estas possam se tornar o canal para
distribuir proteínas vacínicas administradas oralmente. Se for possível modificar geneticamente a
banana, por exemplo, para que ela produza a proteína da vacina contra pólio — que permaneceria
intacta nessa fruta fácil de transportar e geralmente ingerida crua —, poderemos um dia distribuir a
vacina para partes do mundo que carecem de infra-estrutura pública de saúde. As plantas também
podem servir a propósitos menos vitais, mas mesmo assim extremamente úteis. Certa empresa, por
exemplo, conseguiu induzir o algodoeiro a produzir uma forma de poliéster, criando assim um
amálgama natural dessa fibra e de algodão. Diante do potencial para reduzir nossa dependência de
processos químicos de produção (do qual a fabricação de poliéster é apenas um) e seus produtos
colaterais poluentes, a engenharia genética das plantas certamente nos oferecerá maneiras ainda
inimagináveis de preservar o meio ambiente.

A Monsanto era, sem sombra de dúvida, a líder da alcatéia transgênica, mas seu primado foi
naturalmente desafiado. O laboratório farmacêutico alemão Hoechst desenvolveu um equivalente
do Roundup, um herbicida chamado Basta (Liberty nos Estados Unidos), junto com o qual começou
a vender sementes ”Liberty Link”, geneticamente alteradas para se tornarem resistentes. Outra
gigantesca empresa farmacêutica, a Aventis, produziu uma versão do milho Bt chamada ”Starlink”.

Mas a Monsanto, visando tirar proveito do fato de ser a primeira e a maior, empreendeu um
agressivo esforço de lobby junto às grandes empresas de sementes, em particular a Pioneer, para que
licenciassem os seus produtos. A Pioneer, no entanto, continuou fiel aos seus métodos já
consagrados de milho híbrido, de modo que reagiu aos veementes apelos da Monsanto com
frustran-

168

te indiferença. Além disso, nas negociações realizadas em 1992 e 1993 a Monsanto deixou uma
impressão de grande inépcia ao conseguir obter da megacorporação míseros us$ 500 mil pelos
direitos da soja Roundup Ready e us$ 38 milhões pelo milho Bt. Quando se tornou presidente
executivo da empresa em
1995, Robert Shapiro quis reverter essa derrota posicionando a Monsanto para obter o domínio total
do mercado de sementes. Sua primeira medida foi recrudescer o ataque ao velho problema do
comércio de sementes (a saber, os agricultores que
plantam a safra seguinte usando sementes da colheita anterior em vez de voltarem a comprar da
empresa de sementes. A solução híbrida, que funcionara tão bem para o milho, não é exeqüível para
outras plantas. Shapiro então propôs aos agricultores usuários das sementes Bt que assinassem um
”acordo de tecnologia” com a Monsanto, comprometendo-se não só a pagar pelo uso do gene mas
também a não usarem as sementes geradas por suas próprias plantações no replantio. Tudo o que
essa proposta conseguiu foi tornar a Monsanto um anátema para toda a comunidade agrícola com
extraordinária rapidez.

Na verdade, Shapiro era um presidente executivo esdrúxulo para uma empresa agroquímica do
Meio-Oeste americano. Como advogado do laboratório farmacêutico Searle, ele vivenciara em
marketing algo equivalente ao ”eureca” arquimediano em ciência. Quando convenceu a Pepsi e a
Coca-Cola a colocarem o nome do adoçante da Searle em suas embalagens de refrigerantes diet,
tornou o nome NutraSweet sinônimo de um estilo de vida esguio e pouco calórico. Em 1985, a
Monsanto comprou a Searle e Shapiro começou a subir na hierarquia da empresa adquirente.
Naturalmente, quando se tornou presidente executivo da empresa, o ”dr. NutraSweet” teve de
provar que não era um mágico de um truque só.

Em 1997-98, num rompante eufórico de aquisições avaliado em US$ 8 bilhões, a Monsanto passou
a controlar diversas grandes empresas de sementes, incluindo a maior rival da Pioneer, a Dekalb, de
acordo com o plano elaborado por Shapiro para tornar a sua empresa a Microsoft das sementes. Um
de seus alvos, a Delta and Pine Land Company, controlava 70% do mercado americano de sementes
de algodão. A Delta and Pine também detinha os direitos de uma interessante inovação biotécnica
inventada num laboratório de pesquisa do Departamento de Agricultura em Lubbock, Texas: uma
técnica para impedir que as plantas produzissem sementes férteis. Esse engenhoso truque molecular

169
envolve a desativação de algumas ”chaves gênicas” na semente antes de sua venda ao agricultor. A
planta desenvolve-se normalmente, mas produz sementes estéreis, incapazes de germinar. Eia! Ali
estava a chave para ganhar dinheiro de verdade no ramo das sementes! Os agricultores teriam de
voltar todos os anos à empresa para comprar sementes.

Embora possam à primeira vista parecer contraproducentes ou mesmo constituir um oximoro, as


”sementes estéreis” talvez até se tornem um beneficio para a agricultura a longo prazo. Se os
agricultores comprarem sementes todos os anos (como já fazem no caso do milho híbrido), gera-se
um contexto econômico mais favorável à produção de sementes e, por conseguinte, ao
desenvolvimento de variedades novas e melhores. As formas normais (germinantes) da semente
continuariam disponíveis àqueles que desejassem; os agricultores só comprariam as sementes
estéreis se estas tivessem maior rendimento ou alguma outra característica valiosa. Em suma, a
tecnologia das sementes estéreis, embora elimine uma opção, oferece aos agricultores outras opções
melhores e cada vez mais aperfeiçoadas.

Para a Monsanto, contudo, a tecnologia precipitou um desastre de relações públicas. Ativistas


apelidaram o gene dessas sementes de terminator, apontando que os agricultores pobres do Terceiro
Mundo tradicionalmente usam a última colheita como fonte de sementes para a safra seguinte. Se,
subitamente, essas sementes se tornam inúteis para o plantio, não teriam outra opção senão procurar
novamente a gananciosa multinacional e, como o dickensiano Oliver Twist, pateticamente implorar
por um pouco mais. A Monsanto recuou; Shapiro, humilhado, denegou a tecnologia; e o gene
terminator permanece ocioso até hoje. Graças ao fiasco de relações públicas, o único verdadeiro
impacto do gene foi o término das grandiosas ambições da Monsanto no final dos anos 1990.

Como vimos no último capítulo em relação ao hormônio de crescimento bovino, grande parte da
hostilidade aos alimentos transgênicos tem sido arquitetada por alarmistas profissionais como
Jeremy Rifkin. Seu equivalente no Reino Unido, lorde Peter Melchett, mostrou-se igualmente
influente, até perder a credibilidade no movimento ambiental quando deixou o Greenpeace para
trabalhar numa firma de relações públicas que já prestara serviços à Monsanto. Rifkin, filho de um
fabricante de sacos plásticos de Chicago que montara seu negócio praticamente sozinho, talvez
diferisse quanto ao estilo de Melchett, uni ex-aluno de Eton de uma família tradicional, mas ambos
tinham em comum o
170

fato de verem as grandes empresas americanas como monstros conspiratórios

m conluio contra o indefeso homem comum.

Mas a receptividade dos alimentos transgênicos também não foi ajudada

elas atitudes previsivelmente frouxas ou mesmo pela incompetência científica Aos órgãos
governamentais responsáveis — nos Estados Unidos, a
fda e a epa — diante das novas tecnologias. Roger Beachy, o primeiro a identificar o fenômeno da
”proteção cruzada”, que salvou da ruína os plantadores de mamão do Havaí, lembra-se de como a
epa reagiu à sua descoberta:

Eu ingenuamente supus que desenvolver plantas resistentes a vírus para reduzir o uso de pesticidas
fosse visto como um avanço positivo. No entanto, em essência, o que a EPA disse foi: ”Se você está
empregando um gene que protege a planta de vírus, que são pragas, esse gene tem de ser
considerado um pesticida”. Ou seja, a EPA considerou que as plantas transgênicas seriam pesticidas.
A moral da história é que os órgãos federais foram pegos meio de surpresa pelo desenvolvimento
das ciências genéticas e da biotecnologia. Não tinham cabedal ou experiência para legislar sobre as
novas variedades de plantas alimentícias que surgiam nem tinham conhecimento para legislar sobre
os impactos ambientais das plantas transgênicas na agricultura.

Um exemplo ainda mais flagrante da inépcia dos funcionários do governo é o chamado ”caso
Starlink”. Starlink, uma variedade de milho Bt produzida pela multinacional européia Aventis,
meteu-se em apuros na epa quando se constatou que essa proteína Bt não se degradava tão
rapidamente quanto outras proteínas Bt em ambientes ácidos — como, por exemplo, o estômago
humano. Portanto, em princípio, a ingestão de milho Starlink poderia provocar uma reação alérgica,
embora nunca houvesse surgido um indício de que isso realmente aconteceria. A epa titubeou e,
mais tarde, acabou aprovando o uso do Starlink como ração animal, mas não para consumo
humano. Com isso, de acordo com as normas de ”tolerância zero” da epa, a presença de uma única
molécula de Starlink num produto alimentar para seres humanos significaria uma contaminação
ilegal. Alguns agricultores cultivavam milho Starlink lado a lado com milho comum e,
inevitavelmente, este último era contaminado, pois bastava uma única espiga de milho Starlink se
misturar à colheita de milho comum. Era previsível, pois, que o Starlink começasse a aparecer em
produtos alimentares. Em termos absolutos, as quantidades eram mínimas, mas os testes genéticos
171
usados para detectar a presença do milho Starlink são supersensíveis. No final de setembro de
2000, a Kraft Foods determinou o recolhimento de vários lotes de cascas de tortilha suspeitos de
estarem contaminados com Starlink. Uma semana depois, a Aventis lançou um programa de
recompra a fim de retomar as sementes de Starlink dos fazendeiros que haviam comprado o
produto. O custo estimado desse programa de ”limpeza”: usS 100 milhões.

A culpa dessa derrocada só pode ser atribuída ao excesso de zelo e à irracionalidade da epa. Ficou
demonstrado que permitir o uso do milho para uma finalidade (ração animal) e não outra (consumo
humano) e, ao mesmo tempo, exigir absoluta pureza dos alimentos é absurdo. É bom que se saiba
que, se ”contaminação” for definida como a presença de uma única molécula de alguma substância
estranha, então cada bocado de nossa comida está contaminado! Com chumbo, com ddt, com
toxinas bacterianas e uma profusão de outras coisas assustadoras. Do ponto de vista da saúde
pública, o que importa é o nível de concentração dessas substâncias, que pode variar do desprezível
ao letal. Para rotular algo como contaminado, deveria haver pelo menos alguns sinais de efeito
danoso à saúde. Nunca se mostrou que o Starlink prejudicasse algo ou alguém, nem mesmo um rato
de laboratório. O único resultado positivo desse lamentável episódio foi uma mudança nas diretrizes
da epa, abolindo as licenças ”mistas”: dali para a frente, um produto agrícola seria aprovado ou não
para todos os fins alimentares.

Não se trata de mero acaso o fato de o lobby contrário aos alimentos transgênicos ser mais influente
na Europa. Os europeus, os britânicos em especial, têm bons motivos para recear elementos
estranhos em seus alimentos e desconfiar daquilo que é divulgado a respeito. Em 1984, um
fazendeiro no sul da Inglaterra notou que uma de suas vacas estava se comportando de maneira
estranha; em 1993, 100 mil cabeças de gado britânico haviam sucumbido a uma nova doença
cerebral, a encefalopatia espongiforme bovina, mais conhecida como mal da vaca louca. Ministros
do governo apressaram-se a assegurar à população que o mal, provavelmente transmitido em ração
bovina preparada com restos de animais abatidos, não era transmissível a seres humanos. Em
fevereiro de
2002, porém, 106 britânicos já haviam morrido, infectados com a forma humana da doença depois
de consumir carne contaminada.

O clima de insegurança e desconfiança gerado pela doença propagou-se nara a discussão sobre
alimentos transgênicos em geral, apelidados pela imprena britânica de frankenfoods [alimentos
frankensteinianos]. Como anunciou a ONG Friends of the Earth em nota à imprensa em abril de
1997: ”Diante do mal da vaca louca, seria de esperar que a indústria de alimentos pensasse duas
vezes antes de despejar ingredientes ’ocultos’ goela abaixo da população”. Apesar
disso, de certa maneira, era exatamente isso que a Monsanto estava planejando fazer na Europa.
Convicta de que a campanha antitransgênicos era uma distração passageira, a diretoria da empresa
decidiu dar seguimento aos planos de colocar produtos transgênicos nas prateleiras dos
supermercados europeus. Foi um grave erro de cálculo: durante todo o ano de 1998, a reação
contrária dos consumidores foi adquirindo proporções sempre crescentes. Os redatores de
manchetes dos tablóides britânicos tiveram seu dia de glória: ’Alimentos transgênicos brincam com
a natureza: teremos sorte se o câncer for o único efeito colateral”; ”Espantoso engodo de
multinacional alimentar”; ”A hora e a vez das plantas mutantes”. A defesa capenga dos transgênicos
feita pelo primeiro-ministro Tony Blair só atiçou o desprezo dos tablóides: ”O primeiro-mostrengo:
fúria diante da declaração de Blair: ’Eu como frankenfoods e sei que são seguros’”. Em março de
1999, a rede de supermercados britânica Marks and Spencer anunciou que não venderia produtos
alimentícios transgênicos e logo os sonhos biotecnológicos da Monsanto para a Europa vieram
abaixo. Como seria de esperar, outras redes de produtos alimentícios logo tomaram medidas
semelhantes: era boa política demonstrar hipersensibilidade às preocupações dos consumidores e
não fazia o menor sentido arriscar o pescoço para defender uma execrada multinacional americana.

Foi na época desse turbilhão contra os alimentos transgênicos na Europa que notícias do gene
terminator e dos planos da Monsanto para dominar o mercado global de sementes começaram a
circular nos Estados Unidos. Visto que grande parte da oposição era organizada por grupos
ambientalistas, as tentativas da empresa de se defender foram prejudicadas pelo seu próprio
passado. Fundada como uma fabricante de pesticidas, a Monsanto relutou em denunciar
explicitamente que esses produtos químicos eram perigosos para o meio ambiente e não quis correr
o risco de deixar de produzi-los. Todavia, uma das grandes vantagens das tecnologias Roundup
Ready e Bt era justamente o fato de reduzirem a necessidade de herbicidas e inseticidas. Mas, desde
a década de
172

173
1950, o discurso oficial da empresa era que o uso apropriado dos pesticidas certos não prejudicava
nem o meio ambiente nem o fazendeiro que os aplicava. Logo, a Monsanto não podia admitir agora
que Rachel Carson sempre estivera com a razão. Incapaz de condenar e ao mesmo tempo
comercializar os pesticidas, a empresa não pôde recorrer a um dos argumentos mais convincentes
em favor da biotecnologia agropecuária.

Nunca mais a Monsanto conseguiu reverter esse quadro desfavorável. Em abril de 2000, a empresa
realizou uma fusão, mas o seu parceiro, o gigantesco laboratório Pharmacia & Upjohn, estava
basicamente interessado em adquirir a divisão de medicamentos da empresa, a Searle. O negócio
agrícola, mais tarde desmembrado e transformado numa entidade independente, ainda existe com o
nome Monsanto. Mas desapareceram a bravata de pioneirismo e a aura de invencibilidade.

A discussão sobre alimentos transgênicos fundiu dois grupos distintos de questões. Primeiro,
existem as dúvidas estritamente científicas: será que esses alimentos de fato constituem uma
ameaça à nossa saúde ou ao meio ambiente? Segundo, os temas econômicos e políticos relativos às
práticas agressivas de empresas multinacionais e aos efeitos da globalização. Grande parte da
retórica está voltada contra as agroempresas, a Monsanto em particular. E, de fato, ao longo da
década de 1990 a empresa parecia ver a tecnologia apenas como um expediente para dominar o
suprimento mundial de alimentos, e é possível que tenha nutrido sonhos malsãos de tornar-se a
Microsoft do setor alimentício. No

entanto, desde a espetacular inversão de sua sorte, esse aspecto da controvérsia deixou de ter
fundamento na realidade. Nem é provável que outra empresa de cacife similar vá cair na mesma
armadilha. Seja como for, um exame escrupuloso dos alimentos transgênicos deve ser baseado em
considerações científicas, não políticas e econômicas. Examinemos, pois, algumas das afirmações
mais comuns.

05 transgênicos não são naturais. Praticamente nenhum ser humano, com a possível exceção de
alguns poucos verdadeiros povos caçadores/coletores remanescentes, adota uma dieta estritamente
”natural”. Sem querer desmerecer o príncipe Charles, que declarou memoravelmente em 1998 que
”esse tipo
174

de modificação genética conduz a humanidade a domínios que pertencem a Deus”, a verdade é que
nossos ancestrais vêm escarafunchando esses domínios há milênios.

Os primeiros cultivadores de plantas cruzavam espécies diferentes, criando assim espécies


inteiramente novas, sem equivalentes diretas na natureza. O trigo, por exemplo, é produto de uma
imensa série de cruzamentos. O trigo ”einkorn” [Triticum monococcuni], um ancestral do trigo que
ocorria naturalmente, foi cruzado com uma espécie de capim europeu [Aegilops triuncalis] e
produziu o trigo ”emmer” [Triticum dicoccum]. E o trigo que hoje usamos para fazer pão surgiu de
cruzamentos subseqüentes do trigo
emmer com outras variedades de capim europeu. Portanto, nosso trigo moderno é uma combinação
— que talvez jamais surgisse na natureza — das características de todos esses ancestrais.

Além disso, esse tipo de cruzamento produz novidades genéticas inauditas, pois todos os genes são
afetados, muitas vezes com efeitos imprevisíveis. A biotecnologia, por outro lado, permite muito
maior precisão na introdução de

Detalhe da pintura de Brueghel A colheita mostra o trigo tal como era no século XVI — com 1,5 metro de altura. Desde então, a seleção
artificial diminuiu a altura da planta pela metade, facilitando a colheita. Como menos energia é dedicada ao crescimento da haste, a
inflorescência fica maior e mais nutritiva.

175
material genético novo numa espécie vegetal — um gene por vez. É a diferença entre a marreta da
agricultura tradicional e a pinça genética da biotecnologia.

Os transgênicos introduzirão alérgenos e toxinas em nossa contida. Também aqui, a grande


vantagem das tecnologias transgênicas atuais é o grau de precisão que nos propiciam para
determinar como desejamos modificar uma planta. Se sabemos que certas substâncias provocam
reações alérgicas, nós as evitamos. Mas esse temor persiste, talvez em parte por causa de uma
história muito divulgada sobre a adição de uma proteína da castanha-do-pará à soja. A intenção era
a melhor possível: a dieta da África Ocidental costuma ser deficiente em metionina, um aminoácido
abundante na proteína produzida pela castanha-do-pará, de modo que parecia perfeitamente
razoável inserir o gene dessa proteína na soja oeste-africana. Mas então alguém se lembrou de que
as proteínas dessa castanha costumam provocar uma reação alérgica de graves conseqüências, e o
projeto foi arquivado. Evidentemente, os cientistas não tinham a menor intenção de lançar um novo
alimento passível de provocar choque anafilático em milhares de pessoas e decidiram cancelar tudo
quando os riscos foram ponderados. Para a maioria dos comentadores, contudo, este foi um
momento em que os engenheiros moleculares brincaram com fogo sem atentar para as
conseqüências. Em princípio, a engenharia genética pode até reduzir a presença de alérgenos nos
alimentos e um dia talvez tenhamos uma castanha-do-pará isenta da proteína cuja inserção na soja
foi considerada insegura ou perigosa.

Os transgênicos são indistinguiveis e podem prejudicar outras espécies de plantas. Em 1999, um


estudo que se tornaria famoso mostrou que as lagartas da borboleta-monarca [Danaus plexippus]
que se alimentavam de folhas fortemente salpicadas com pólen do milho Bt tendiam a perecer. Não
foi uma constatação inesperada: o pólen Bt contém o gene Bt e, portanto, a toxina Bt — que é
intencionalmente letal para os insetos. Mas nós todos amamos as borboletas, e os ambientalistas
contrários aos alimentos transgênicos encontraram aí um ícone. A monarca seria apenas a primeira
de muitas vítimas involuntárias da tecnologia transgênica? Após um exame mais minucioso,
verificou-se que as condições experimentais sob as quais as lagartas foram testadas eram tão
extremas — os níveis de pólen Bt tão elevados — que não nos diziam praticamente nada de valor
prático sobre a provável mortalidade das populações de lagartas na nature-
176

Relatos do impacto do pólen do milho Bt sobre as lagartas da borboleta-monarca mobilizaram os opositores da biotecnologia agrícola.
Em 2000, essa manifestante, vestida como uma borboleta-monarca, chamou a atenção dos policiais de Boston.

za. Na realidade, um estudo subseqüente sugeriu que os efeitos das plantas Bt nas borboletas-
monarcas (e em outros insetos circunstantes) são mínimos. Porém, mesmo que não fossem,
deveríamos compará-los com o impacto da
alternativa não-transgênica tradicional, os pesticidas. Como vimos, na ausência de métodos
transgênicos, essas substâncias precisam ser aplicadas em doses pródigas para que a agricultura
tenha a produtividade que a sociedade moderna exige. A toxina incorporada nas plantas Bt afeta
apenas os insetos que de fato ingerem tecido vegetal (e, em menor grau, insetos expostos ao pólen
Bt), ao passo que os pesticidas afetam todos os insetos — pragas ou não. A borboleta-monarca, se
pudesse opinar sobre a questão, certamente votaria em favor do milho Bt.

Os transgênicos provocarão um desastre ambiental com o surgimento de

’superervas daninhas”. Nesse caso, a preocupação é que os genes que conferem resistência a
herbicidas (como os das plantas Roundup Ready) possam emigrar do genoma da planta e se
incorporar ao genoma de ervas daninhas mediante hibridação entre espécies. Não é algo
inconcebível, mas é improvável que ocorra em grande escala pelo seguinte motivo: os híbridos
interespécies tendem a ser criaturas frágeis, mal equipadas para sobreviver. Isso é particularmente
ver-

ade quando uma das espécies é uma variedade domesticada que só germina guando paparicada pelo
agricultor. Mas, para fins argumentativos, suponhamos que o gene da resistência seja incorporado à
população de ervas daninhas e conS1ga se manter. Não seria o fim do mundo, nem mesmo o fim da
agricultura, e

111 apenas uma outra ocorrência de algo que já aconteceu inúmeras vezes na
177
história da lavoura: o surgimento de resistência em espécies de praga como reação a tentativas de
erradicá-las. O exemplo mais famoso é a evolução da resistência dos insetos ao ddt. Ao aplicar um
pesticida, o agricultor está executando uma vigorosa seleção natural em prol da resistência — e a
evolução, como sabemos, é um adversário hábil e sutil: a resistência se configura num piscar de
olhos. Como resultado, os cientistas têm de voltar à prancheta e idealizar uni novo pesticida ou
herbicida ao qual a espécie-alvo não seja resistente. O mesmo ciclo evolutivo será percorrido de
novo, culminando outra vez na evolução da resistência das espécies-alvo. Desse modo, a resistência
adquirida tenderá sempre a anular os esforços para controlar pragas; não é prerrogativa das
estratégias transgênicas, e sim o gongo que anuncia o próximo round, convocando o engenho
humano a inventar algo novo.

Embora se preocupe com o impacto das corporações multinacionais sobre fazendeiros de países
como a índia, Suman Sahai, da organização Gene Campaign, com sede em Nova Délhi, afirmou que
a controvérsia em torno dos alimentos transgênicos é uma característica de sociedades em que
comida não é uma questão de vida e morte. Na índia, onde literalmente se morre de fome, como
Sahai ressalta, cerca de 60% das frutas cultivadas em regiões montanhesas apodrecem antes de
chegar ao mercado. Imagine-se, pois, o bem potencial de uma tecnologia que atrase o
amadurecimento, como a usada para criar o tomate Flavr-Savr. Talvez o papel mais importante dos
alimentos transgênicos seja a salvação que prometem às regiões em desenvolvimento — onde as
altas taxas de natalidade e a premência de produzir mais alimentos em terras férteis limitadas levam
a um abuso de pesticidas e herbicidas, com efeitos devastadores sobre o meio ambiente e sobre os
fazendeiros que os aplicam; onde a subnutrição é um modo de viver e, muitas vezes, de morrer; e
onde a destruição de uma safra pelas pragas pode ser uma sentença de morte para os agricultores e
suas famílias.

Como vimos, a invenção de métodos que usam dna recombinante no início da década de 1970
resultou numa longa rodada de controvérsia e reflexão polarizada na conferência de Asilomar. O
mesmo está ocorrendo outra vez. E preciso que se diga que, na época de Asilomar, nós pelo menos
estávamos diante de diversas grandes incógnitas; não podíamos afirmar ao certo se manipular a
constituição genética da bactéria intestinal E. coli não resultaria em novas cepas
178

Plantações experimentais são

vandalizaãas no laboratório

Cola Spring Harbor em 2000.

de bactérias mórbidas. Embora hesitássemos, continuamos sempre buscando ampliar nosso


conhecimento e realizar coisas potencialmente boas. No caso da controvérsia atual, a mesma
ansiedade persiste, a despeito de sabermos muito melhor o que estamos realmente fazendo. Se, na
época de Asilomar, uma parcela considerável dos participantes da conferência recomendou cautela,
hoje será difícil encontrar um único cientista que se oponha em princípio aos alimentos
transgênicos. Reconhecendo a capacidade de as tecnologias transgênicas beneficiarem não só a
nossa espécie mas o mundo natural como um todo, até o renomado ambientalista E. O. Wilson
endossou-as: ”Se uma linhagem de planta geneticamente modificada mostrar-se segura em termos
nutricionais e ambientais após cuidadosa pesquisa e regulamentação [...] ela deve ser utilizada”.
A oposição aos alimentos transgênicos é, em essência, um movimento sociopolítico cujos
argumentos, embora expressos na linguagem da ciência, tendem a ser não-científicos. Na realidade,
certos aspectos da pseudociência antitransgêni-
179
ca divulgados pela mídia — seja com intuito sensacionalista, seja por uma preocupação bem-
intencionada mas equivocada — seriam cômicos se não ficasse evidente que esses disparates
constituem uma arma eficaz na guerra de propaganda. 1

Rob Horsch, da Monsanto, já teve sua dose de confronto com militantes: I

Em certa ocasião, numa entrevista coletiva à imprensa em Washington D.C., fui acusado por um
ativista de subornar fazendeiros. Perguntei o que ele queria dizer. O ativista respondeu que,
oferecendo aos fazendeiros um produto melhor por um preço menor, eles se beneficiariam usando
nossos produtos. Eu fiquei só olhando para eles, boquiaberto.

Quero deixar absolutamente clara a minha convicção de que é um total absurdo demonizar os
alimentos transgênicos, privando-nos assim de seus benefícios. Além disso, necessários como são
no mundo em desenvolvimento, é criminoso que nos deixemos guiar pelas suposições irracionais do
príncipe Charles e outros.

Na verdade, daqui a alguns anos, quando o Ocidente inevitavelmente recuperar o bom senso e
livrar-se dos grilhões da paranóia luddista, talvez nos vejamos seriamente atrasados em tecnologia
agrícola. A produção de alimentos na Europa e nos Estados Unidos se tornará mais cara e menos
eficiente que em outras regiões do mundo. Enquanto isso, países como a China, que não podem se
dar ao luxo de se entreter com receios ilógicos, seguirão em frente. A atitude chinesa é puramente
pragmática: com 23% da população do mundo mas apenas 7% da terra cultivável, a China precisa
do rendimento agrícola superior e do maior valor nutricional da lavoura transgênica se quiser
alimentar sua população.

Em retrospecto, nós erramos ao pender demais para o lado da cautela errM Asilomar, fraquejando
diante de preocupações não-quantificadas (não-quantificáveis, na verdade) sobre perigos
desconhecidos e imprevisíveis. Mas, após um atraso custoso e desnecessário, prosseguimos no
caminho da mais nobre obrigação moral da ciência: aplicar o que se conhece para o maior proveito
possível da humanidade. Na controvérsia atual, enquanto nossa sociedade vai ficando para trás em
farisaica ignorância, faríamos bem em lembrar o que está em jogo: nada menos que a saúde dos
famintos e a preservação de nosso mais precioso legado: o meio ambiente.

I
Em julho de 2000, militantes contrários aos alimentos transgênicos vandalizaram uma plantação de
milho experimental no laboratório Cold Spring Harbor. Não havia nenhuma planta geneticamente
modificada na plantação; os vândalos apenas destruíram dois anos de trabalho árduo de dois jovens
cientistas. Mesmo assim, o caso é instrutivo. Numa época em que destruir plantas transgênicas
tornou-se moda em partes da Europa, em que até mesmo a busca do conhecimento no Velho e no
Novo continentes pode vir a ser atacada, aqueles que estão na vanguarda da causa fariam bem em se
perguntar: a favor de que estamos lutando?
180

181
7. O genoma humano: O roteiro da vida
O corpo humano é de uma complexidade alucinante. Tradicionalmente, os biólogos sempre se
concentraram numa pequena parte do corpo e tentaram compreendê-la em detalhes. Essa
abordagem básica não mudou com o advento da biologia molecular. A maioria dos cientistas ainda
se especializa em um só gene ou nos genes envolvidos em uma via bioquímica [biochemical
pathway]. Todavia, em nenhuma máquina as partes operam independentemente umas das outras.
Mesmo que eu estude a fundo o carburador do meu carro, continuarei sem entender o
funcionamento geral do motor, muito menos do automóvel como um todo. A fim de compreender
para que serve um motor e como ele
Acima: Todos os cromossomos humanos, cada um destacado por um corante específico. Há 46 cromossomos no núcleo de cada célula —
dois conjuntos completos, um proveniente de cada genitor. O genoma é um desses conjuntos: 23 cromossomos, isto é, 23 moléculas
extremamente longas de DNA.

182,

funciona, preciso estudar o veículo inteiro — ou seja, contextualizar o carburador como uma parte
operante dentre muitas outras. O mesmo vale para os genes. Para compreender os processos
genéticos subjacentes à vida, precisamos de mais do que um conhecimento detalhado de certos
genes ou vias; precisamos enquadrar esse conhecimento num contexto maior, o sistema como um
todo — o genoma.

O genoma é a totalidade das instruções gênicas existentes no núcleo de cada célula. (Na realidade,
cada célula contém dois genomas, um de cada genitor: as duas cópias de cada cromossomo que
herdamos nos fornecem duas cópias de cada gene e, portanto, duas cópias do genoma.) O tamanho
do genoma varia de espécie para espécie. A partir de medidas da quantidade de dna numa única
célula, podemos estimar que o genoma humano — metade do dna do núcleo de uma célula —
contém cerca de 3,1 bilhões de pares de base:
3.100.000.000 de As, Ts, Gs e cs.

Os genes estão presentes em cada um de nossos sucessos e em cada história de fracasso, inclusive a
derradeira: em maior ou menor grau, estão envolvidos em todas as causas de mortalidade, exceto os
acidentes. No extremo mais óbvio, moléstias como a fibrose cística e a doença de Tay-Sachs são
causadas diretamente por mutações. Existem, porém, muitos outros genes cuja atuação é igualmente
mortífera, ainda que de modo oblíquo, pois afetam nossa suscetibilidade a causas comuns de morte,
como o câncer e as doenças cardíacas, que podem ser transmitidas em família. Até mesmo nossa
reação a doenças infecciosas, como o sarampo e o resinado comum, possui um componente
genético, pois o sistema imunológico é regido pelo nosso dna. E, em grande parte, o
envelhecimento é também um fenômeno genético: os efeitos que associamos ao avanço da idade
são, em certa medida, reflexo do acúmulo de mutações gênicas ao longo da vida. Portanto, se
quisermos compreender por inteiro esses fatores genéticos determinantes da vida e da morte, e se
pretendermos um dia fazer algo a respeito, precisamos efetuar um inventário completo de todos os
protagonistas genéticos do corpo humano.

Acima de tudo, o genoma humano contém a chave da nossa humanidade. Os óvulos recém-
fertilizados de um ser humano e de um chimpanzé são indistinguíveis, ao menos na superfície; mas
um contém o genoma humano e o outro o genoma antropóide. Em cada um, é o dna que
supervisiona a extraordinária transformação de uma célula relativamente simples na complexidade
espantosa
183
do adulto da espécie — que, no caso do ser humano, possui cerca de 100 trilhões

de células. No entanto, somente o genoma do chimpanzé pode gerar um chinpanzé e somente o


genoma humano pode gerar um ser humano. O genoma
humano é o grande manual de instruções de montagem que rege o desenvolvi-
mento de cada um de nós. A própria natureza humana está inscrita nesse livro.
Diante do que está em jogo, eu imaginaria que propor um projeto para |
seqüenciar o dna do genoma humano não fosse mais controvertido do que
defender a maternidade e a torta de maçã. Quem em sã consciência objetaria? [
No entanto, em meados da década de 1980, quando a possibilidade de seqüen- I
ciar o genoma foi aventada pela primeira vez, alguns julgaram a idéia no minimo dúbia. Para
outros, parecia ridícula e demasiado ambiciosa, algo como sugereir a um balonista da era vitoriana
que tentasse colocar um homem na Lua.
Foi um telescópio, por incrível que pareça, que inadvertidamente ajudou a inaugurar o Projeto
Genoma Humano (pgh). No início dos anos 1980, astrônomos da Universidade da Califórnia
propuseram a construção do maior e mais poderoso telescópio do mundo, a um custo de cerca de
us$ 75 milhões. Quando a Fundação Max Hoffman prometeu contribuir com us$ 36 milhões, a
universidade, agradecida, concordou em dar o nome do generoso benfeitor ao projeto. Infelizmente,
essa maneira de dizer obrigado dificultou o levantamento do resto do capital. Outros possíveis
doadores relutavam em investir num telescópio com nome de outrem, e o projeto empacou. Com o
tempo, uma outra organização filantrópica, muito mais rica, a Fundação W. M. Keck, propôs
financiar o projeto inteiro. A Universidade da Califórnia aceitou a oferta de bom grado — com
Hoffman ou sem Hoffman. (O novo telescópio Keck, no topo do vulcão Mauna Kea, no Havaí,
entraria em plena operação em maio de 1993.) Não querendo ser subalterna à Keck, a Fundação
Hoffman retirou-se do projeto. Mas os dirigentes da universidade pressentiram ali uma
oportunidade de us$ 36 milhões. Em particular, Robert Sinsheimer, reitor do campus de Santa Cruz,
percebeu que o dinheiro da Hofíman poderia subvencionar um grande projeto que
”colocasse Santa Cruz no mapa”.
Sinsheimer, biólogo por formação, estava ansioso para ver a sua área de especialização fazer parte
da primeira divisão das ciências bem remuneradas. Os físicos tinham seus dispendiosos
aceleradores de partículas, os astrônomos, seu
satélites e telescópios de us$ 75 milhões; por que os biólogos não poderiam ter seu próprio projeto
de alto custo? Resolveu sugerir que Santa Cruz criasse um instituto dedicado ao seqüenciamento do
genoma humano e, em maio de 1985, foi convocada uma conferência para discutir a idéia. Esta
pareceu ambiciosa demais e os participantes concordaram que a ênfase inicial deveria ser a
exploração de regiões específicas do genoma que tivessem importância médica. No final, toda a
discussão mostrou-se irrelevante, pois o dinheiro da Hoffman não se materializou nos cofres da
Universidade da Califórnia. Contudo, o encontro em Santa Cruz lançara a semente.
O passo seguinte do Projeto Genoma Humano também foi dado à margem da biologia, pelo
Departamento de Energia dos Estados Unidos. Embora naturalmente se concentrasse nos requisitos
energéticos da nação, esse departamento tinha no mínimo uma incumbência biológica: averiguar os
riscos à saúde da energia nuclear. Para tanto, mantinha um programa de longo prazo para monitorar
os danos genéticos sofridos pelos sobreviventes das explosões de Nagasaki e Hiroshima e seus
descendentes. O que poderia ser mais útil para identificar mutações causadas por radiação do que a
seqüência completa de referência do genoma humano? No outono de 1985, Charles DeLisi, diretor
adjunto da Agência de Pesquisas de Saúde e Ambientais do departamento, convocou uma reunião
para discutir a proposta genômica do seu órgão. O establishment biológico não escondeu seu
ceticismo: David Botstein, um geneticista de Stanford, condenou o projeto como um ”programa do
Departamento de Energia para criadores de bombas desempregados” e James Wyngaarden, na
época chefe do National Institutes of Health (nih), disse que a idéia era como se ”o Instituto
Nacional de Pesos e Medidas propusesse a construção do bombardeiro B-
• No entanto, ninguém se surpreendeu quando o nih acabou se tornando o membro mais
proeminente da coalizão do Projeto Genoma Humano — embora o Departamento de Energia tenha
desempenhado um importante papel durante todo o projeto e, no final, tenha sido responsável por
cerca de 11% do seqüenciamento.

Em 1986, a agitação em torno do genoma começava a adquirir ímpeto. Em ° dacluele ano, organizei
uma sessão especial para discutir o projeto durante importante encontro sobre genética humana no
laboratório Cold Spring or. Wally Gilbert, que participara da reunião com Sinsheimer no ano
anterior na Califórnia, tomou a iniciativa de fazer uma desalentadora estimativa de
185

184
custos: 3 bilhões de pares de bases, 3 bilhões de dólares. Ciência para ricos, não havia dúvida, uma
quantia inconcebível sem financiamento público. Alguns dos presentes mostraram uma preocupação
natural de que esse megaprojeto, cujo sucesso não estava nem um pouco assegurado, acabasse
inevitavelmente sugando verbas de outras pesquisas cruciais. Temia-se que o Projeto Genoma
Humano se tornasse o derradeiro sorvedouro de dinheiro da pesquisa científica. E, em relação ao
ego pessoal dos cientistas, mesmo na melhor das hipóteses, a contribuição do projeto para a carreira
de cada participante seria quase ínfima. Embora o pgh prometesse inúmeros desafios técnicos, não
chegou a oferecer muito em termos de emoção intelectual ou fama para aqueles que os enfrentaram.
Qualquer avanço importante seria eclipsado pelas dimensões do empreendimento total; quem se
disporia a dedicar a vida ao infindável tédio de seqüenciar, seqüenciar, seqüenciar? David Botstein,
de Stanford, em particular, exigiu extrema cautela: ”O projeto implica modificar a estrutura da
ciência de tal maneira que vinculará todos nós, especialmente os jovens, a algo tão gigantesco como
o ônibus espacial”.

A despeito do endosso mais do que modesto, aquele encontro no laboratório Cold Spring Harbor
convenceu-me de que o seqüenciamento do genoma humano estava destinado a tornar-se em breve
uma prioridade científica internacional e que, quando isso acontecesse, o nih teria um papel
importante a desempenhar. Convenci a Fundação James S. McDonnell, sob a égide da Academia
Nacional de Ciências, a financiar um estudo aprofundado dos vários aspectos referentes ao assunto.
Com Bruce Alberts, da Universidade da Califórnia em San Francisco, na direção do comitê, eu
sabia que todas as idéias seriam postas à prova mais severa possível. Pouco antes, ele publicara um
artigo advertindo que a ascensão desse tipo de big science ameaçava submergir o vasto arquipélago
de contribuições inovadoras provenientes de laboratórios individuais do mundo inteiro que
realizavam pesquisas tradicionais. Sem saber ao certo com o que o nosso grupo se depararia, assumi
meu lugar, junto com Wally Gilbert, Sydney Brenner e David Botstein, na comissão de quinze
membros formada em
1987 para detalhar o ainda latente projeto do genoma.

Naqueles dias, Gilbert foi o mais ardoroso defensor do Projeto Genoma Humano e, por bons
motivos, considerava-o ”uma ferramenta incomparável para investigar todos os aspectos da função
humana”. Porém, fascinado com a estonteante combinação biotecnológica de ciência e comércio na
Biogen, a
186

A gênese do Projeto Genoma: Wãlly Gilbert e David Botstein discutindo em encontro no laboratório Cola Spring Harbor, 1986

empresa que ajudou a fundar, ele via no genoma uma extraordinária oportunidade de negócios.
Assim, pouco depois, Gilbert cedeu seu posto na comissão para Maynard Olson, da Universidade
Washington, a fim de evitar eventuais conflitos de interesse. A biologia molecular já provara seu
potencial comercial e Gilbert não via necessidade de sair por aí implorando financiamento do
governo. Ele raciocinou que uma empresa privada dotada de um grande laboratório de
seqüenciamento poderia realizar o trabalho e vender as informações genômicas para laboratórios
farmacêuticos e outras partes interessadas. Assim, na primavera de 1987, anunciou seu plano de
formar a Genome Corporation. Sem dar ouvidos aos gritos de protesto contra a perspectiva de as
informações do genoma humano se tornarem propriedade privada (limitando possivelmente sua
aplicação para o bem comum), começou a levantar financiamento com capitalistas de risco.
Infelizmente, desde o início, foi prejudicado por sua quase desastrosa carreira como presidente
executivo. Ele se demitira do corpo docente da Harvard em 1982 para assumir as rédeas da Biogen,
que nos dois anos seguintes sofreu prejuízos de us$ 11,6 milhões e us$ 13 milhões.
Compreensivelmente, voltou para buscar refúgio nas quatro paredes da academia e reingressou na
Harvard em dezembro de 1984. A Biogen, enquanto isso, continuou perdendo dinheiro, mesmo após
sua saída. Não era exatamente uma história de dar água na boca de possíveis investidores. No fim,
seu plano grandioso malogrou, mais por força de circunstâncias além do seu controle do que por
qualquer tipo de inépcia gerencial: o colapso da bolsa em outubro de 1987 pôs um fim abrupto à
gestação da Genome Corporation.

Na realidade, a única culpa de Gilbert foi estar à frente do seu tempo. Seu
187
plano não era tão diferente do que a Celera Genomics implementaria com sucesso dez anos depois
que a Genome Corporation sucumbiu sem sequer ter nascido. E os temores provocados por seu
empreendimento, ou seja, o receio de que as informações sobre a seqüência de dna acabariam se
tornando propriedade particular, foram ficando ainda mais agudos à medida que o Projeto Genoma
Humano avançava. 1

O plano que a comissão da Academia Nacional de Ciências, agora sem Gill bert, concebeu sob a
coordenação de Alberts era razoável na época — e, de fato o Projeto Genoma Humano foi realizado
mais ou menos de acordo com suas prescrições. Nossas estimativas de custo e prazo também se
mostraram notavelmente precisas. Cientes, como qualquer usuário de computador pessoal, de que a
tecnologia vai se tornando melhor e mais barata com o passar do tempo, recomendamos que o
grosso do trabalho efetivo de seqüenciamento fosse protelado até que o custo das técnicas
disponíveis atingisse um nível razoável. Enquanto isso, o aperfeiçoamento das tecnologias de
seqüenciamento deveria ter máxima prioridade. Em parte visando a esse objetivo, recomendamos
que os genomas (menores) de organismos mais simples também fossem seqüenciados O
conhecimento assim adquirido seria valioso não só intrinsecamente (pois serviria de base para
elucidar comparações com a seqüência humana) mas também como meio de aprimorar nossos
métodos antes de enfrentar o desafio maior. Os candidatos não-humanos mais prováveis eram,
evidentemente, nossos velhos conhecidos: E. coli, levedo [o fermento biológico Saccharomyces
cerevisiae], C. eZel gans (o verme nematóide cujo uso em pesquisas foi popularizado por SydneJ
Brenner) e a mosca-das-frutas.

Nesse ínterim, iríamos nos concentrar em mapear o genoma com a maior precisão possível, um
processo ao mesmo tempo genético e físico. O mapeamento genético implica determinar as
posições relativas, ou seja, a ordem dos marcos gênicos nos cromossomos, como os ”garotos de
Morgan” fizeram com os cromossomos das moscas-das-frutas. O mapeamento físico envolve
identificar as posições absolutas desses marcos gênicos nos cromossomos. (O mapeamento genético
nos diz que o gene 2 está, digamos, entre os genes 1 e 3; O mapeamento físico, por sua vez, nos diz
que o gene 2 se encontra a 1 milhão de pares de bases do gene 1 e que o gene 3 está localizado
outros 2 milhões de pares de bases mais adiante no cromossomo.) O mapeamento genético
esclareceria a estrutura básica do genoma; o mapeamento físico propiciaria aos seqüenciadores,
quando estes pudessem enfim se atracar com o genoma, âncoras fixas de posicionamento ao longo
dos cromossomos. A posição de cada trecho distinto da seqüência num cromossomo poderia então
ser determinada mediante referência a essas âncoras.

Estimamos que o projeto inteiro levaria cerca de quinze anos e custaria em torno de us$ 200
milhões por ano. Realizamos vários cálculos matemáticos sofisticados, mas não conseguimos nos
afastar da estimativa feita por Gilbert: us$ 1 por par de bases. Cada missão do ônibus espacial da
nasa custa por volta de us$ 470 milhões; o Projeto Genoma Humano custaria o equivalente a seis
lançamentos do ônibus espacial.

Nosso relatório foi publicado em fevereiro de 1988. A primeira versão do genoma foi publicada em
2001. As lacunas continuaram a ser preenchidas por laboratórios de seqüenciamento do mundo
inteiro e em 2003 — o qüinquagésimo aniversário da descoberta da dupla-hélice e o décimo quinto
do relatório da comissão — o seqüenciamento foi completado.

Enquanto a comissão da Academia Nacional de Ciências continuava deliberando, procurei os


membros mais influentes dos subcomitês de saúde da Câmara e do Senado que supervisionam o
orçamento do nih. James Wyngaarden, diretor do nih, foi favorável ao projeto ”desde o início”,
como enfatizou, mas indivíduos bem menos perspicazes do nih foram contra. Em meu esforço para
obter us$ 30 milhões e colocar o nih na corrida do genoma, enfatizei o corolário, para a medicina,
do conhecimento do genoma. Os legisladores, como todos nós, já perderam amigos e familiares
vitimados por doenças como o câncer, que têm raízes genéticas, e certamente saberiam apreciar
como o conhecimento da seqüência do genoma humano poderia contribuir para combater essas
enfermidades. No final, conseguimos us$ 18 milhões.

Enquanto isso, o Departamento de Energia disponibilizou uma verba de us$ 12 milhões para o seu
programa próprio, enaltecendo o projeto como um grandioso feito tecnológico. É preciso lembrar
que estávamos na época do predomínio japonês na tecnologia de produção. As montadoras de
Detroit corriam
o risco de ser suplantadas pela indústria automobilística japonesa e muitos temiam que a vantagem
dos Estados Unidos em alta tecnologia seria a próxima peça de dominó a cair. Corriam boatos de
que três grandes conglomerados Japoneses (Matsui, Fuji e Seiko) estavam unindo forças para
produzir uma Maquina capaz de seqüenciar 1 milhão de pares de bases por dia. O alarme era
188

189
falso, mas tais temores serviram para assegurar que a primazia genômica dos Estados Unidos seria
defendida com o mesmo fervor que colocou astronautas americanos na Lua antes dos soviéticos.

Em maio de 1988, Wyngaarden pediu-me que coordenasse a parte do projeto relativa ao nih.
Quando expressei minha relutância em abandonar a direção do laboratório Cold Spring Harbor, ele
conseguiu que eu trabalhasse para o nih apenas em regime de tempo parcial. Não pude dizer não.
Dezoito meses depois, com o Projeto Genoma Humano rapidamente se tornando uma força
irresistível, o setor de genoma do nih foi promovido a Centro Nacional de Pesquisa do Genoma
Humano e eu fui nomeado seu primeiro diretor.

Minha função era obter dinheiro do Congresso e assegurar que fosse gasto com sensatez. Uma de
minhas maiores preocupações era que a verba do Projeto Genoma Humano fosse separada do
restante do orçamento do nih. Para mim, era extremamente importante que o projeto não
prejudicasse a sobrevivência de outros projetos científicos desvinculados do genoma humano; não
teria cabimento se, diante do nosso êxito, outros cientistas pudessem afirmar, com razão, que suas
pesquisas haviam sido sacrificadas no altar do nosso megaprojeto. Ao mesmo tempo, sentia que,
diante de um empreendimento sem precedentes, nós, cientistas, deveríamos de algum modo indicar
a importância do projeto. O Projeto Genoma Humano é muito mais do que uma lista gigantesca de
as, ts, gs e cs; é um dos mais preciosos conjuntos de conhecimento que a humanidade já teve e
possivelmente terá, com o potencial de ajudar a responder às questões filosóficas mais fundamentais
acerca da natureza humana, seja para nossa ventura ou desventura. Decidi que 3% do nosso
orçamento total (uma proporção pequena, mas uma soma vultosa) deveria ser dedicado a investigar
as implicações éticas, legais e sociais do projeto. Mais tarde, por insistência do senador Al Gore,
essa fração foi aumentada para 5%.

Logo nos primórdios do projeto instituiu-se um modelo de colaboração internacional. Os Estados


Unidos coordenavam o empreendimento e realizavam mais de metade do trabalho; o restante seria
levado a cabo principalmente no Reino Unido, França, Alemanha e Japão. A despeito de uma longa
tradição em genética e biologia molecular, o Medicai Research Council, do Reino Unido, foi apenas
um colaborador menor. Como o restante da ciência britânica, o Medicai Research Council também
sofria com as diretrizes míopes de financiamento científico do governo Margaret Thatcher.
Felizmente, o Wellcome Trust,
190

uma organização biomédica filantrópica privada, veio em socorro e, em 1992, construiu perto de
Cambridge um centro de seqüenciamento especializado — o Centro Sanger, em homenagem, como
vimos, a Fred Sanger. A fim de melhor coordenar esse esforço internacional, decidi atribuir partes
específicas do genoma a diferentes nações. Imaginei que, dessa maneira, cada país sentiria ter
contribuído com algo concreto — digamos, o braço de um determinado cromossomo em vez de
labutar numa coletânea obscura de clones anônimos. A
iniciativa japonesa, por exemplo, foi basicamente concentrada no cromossomo
21 Mas é triste dizer que, na arrancada final, essa bela ordem ruiu por terra e acabou não sendo nada
fácil sobrepor o mapa do genoma ao mapa do mundo. Sempre achei que não seria possível levar a
cabo o Projeto Genoma Humano como um grande número de pequenas iniciativas, ou seja, por
meio da associação de um sem-número de laboratórios participantes. A logística de tal esquema
seria insuportavelmente caótica e perderíamos as vantagens de escala e automação. Portanto, desde
o início foram criados centros de mapeamento do genoma na Universidade Washington em St.
Louis, em Stanford e na ucsf na Califórnia, na Universidade de Michigan em Ann Arbor, no mit em
Cambridge, e na Faculdade de Medicina Baylor em Houston. As operações do Departamento de
Energia, inicialmente concentradas nos laboratórios Los Alamos e Livermore National, foram mais
tarde centralizadas em Walnut Creek, Califórnia.
O passo seguinte consistiu em explorar e desenvolver tecnologias alternativas de seqüenciamento a
fim de reduzir o custo geral para algo em torno de US$
0,50 por par de bases. Diversos projetos-piloto foram lançados. Ironicamente, o método que acabou
dando certo, seqüenciamento automatizado com corante fluorescente, não se saiu muito bem nessa
fase. Em retrospecto, o desenvolvimento da máquina-piloto automatizada deveria ter ficado a cargo
de Craig Venter, um pesquisador do nih que já se provara capaz de tirar o máximo proveito desse
procedimento. Ele chegou a se candidatar ao cargo, mas Lee Hood, que fora o primeiro a
desenvolver a tecnologia, foi escolhido em seu lugar. A rejeição de Venter logo no início do projeto
teria repercussões mais tarde. —

No final, o Projeto Genoma Humano não promoveu a invenção em grande escala de novos métodos
para analisar dna; pelo contrário, foram o aperfei-
191
çoamento e a automatização de métodos já conhecidos que, em última análise, permitiram uma
aceleração progressiva do seqüenciamento — de centenas, para milhares, para milhões de pares de
bases. Mas surgiu uma técnica revolucionária para gerar grandes quantidades de determinados
segmentos de dna e esta foi crucial para o projeto (pois é preciso haver uma grande quantidade do
segmento, ou gene, desejado para seqüenciá-lo). Até meados da década de 1980, a amplificação de
uma determinada região do dna dependia do método CohenBoyer de clonagem molecular: recortar
o pedaço desejado de dna, inseri-lo num plasmídeo e inserir o plasmídeo modificado numa célula
bacteriana. Essa célula então se replica, duplicando em cada replicação o segmento inserido de dna.
Quando as bactérias se multiplicaram o suficiente, purifica-se o segmento de dna desejado
separando-o da massa total de dna da população bacteriana. Embora houvesse sido aprimorado
desde os experimentos originais de Boyer e Cohen, esse procedimento continuava sendo trabalhoso
e demorado. A descoberta da reação em cadeia da polimerase foi, portanto, um grande avanço:
alcança-se o mesmo fim — a amplificação seletiva de um segmento de dna — em poucas horas,
sem a necessidade de ficar lidando com bactérias. 1

Kary Mullis, que na época trabalhava para a Cetus Corporation, descreveu assim a sua descoberta
da reação em cadeia da polimerase: ’A revelação me ocorreu numa noite enluarada de sexta-feira de
abril de 1983, enquanto dirigia por uma estradinha tortuosa nas montanhas do norte da Califórnia
que atravessa uma floresta de sequóias”. É extraordinário que ele tenha se inspirado diante de tal
perigo — não que as estradas do norte da Califórnia sejam particularmente traiçoeiras, mas, como
explicou um amigo (que vira certa vez o estouvado Mullis em Aspen esquiando no meio do trânsito
de uma estrada congelada de mão dupla) ao New York Times: ”Mullis teve uma visão de que
morreria batendo a cabeça contra uma sequóia. Daí o seu destemor quando não há sequóias por
perto”. Por sua invenção, Mullis recebeu o prêmio Nobel de química em 1993 e, desde então, tem
se tornado cada vez mais excêntrico. Passou a defender, por exemplo, a teoria revisionista de que a
aids não é causada pelo hiv, prejudicando não só sua credibilidade mas também as iniciativas de
saúde pública.

A reação em cadeia da polimerase é um processo ao mesmo tempo requintado e simples. Por meio
de métodos químicos, sintetizamos dois primers — pequenos trechos de uma única fita de dna,
normalmente com vinte pares
Kary Mullis, inventor da reação em cadeia da polimerase

192

de bases de comprimento — cuja seqüência corresponde às regiões que margeiam o segmento de


dna em que estamos interessados. Os primers, que delimitam o gene desejado, são adicionados ao
molde de dna, que foi extraído de uma amostra de tecido e que essencialmente contém o genoma
inteiro. Nossa meta é amplificar maciçamente a região-alvo nessa amostra. Quando o dna é
aquecido a 95 °C, as duas fitas se separam. Isso permite que cada primer se ligue aos fragmentos de
vinte pares de bases do molde cujas seqüências sejam complementares às suas. Desse modo,
formamos duas pequenas ilhas, com vinte pares de bases de dna de dupla fita, ao longo das fitas
simples do molde de dna. A dna polimerase — a enzima que copia dna incorporando novos pares de
bases em posições complementares ao longo de uma fita de dna — só funcionará a partir do ponto
em que o dna já for de fita dupla. Portanto, a dna polimerase passa a atuar na ilha de fita dupla
criada pela união do primer com a região complementar do molde. A polimerase faz uma cópia
complementar do molde de dna a partir de cada primer, copiando assim a região-alvo. No final do
processo, a quantidade total do DNA-alvo terá dobrado. Em seguida, repetimos a etapa de
aquecimento e o processo todo ocorre novamente. E, mais uma vez, dobra-se o número de cópias do
dna delimitado pelos dois primers. Cada ciclo do processo resulta na duplicação da região visada.
Após 25 ciclos da reação em cadeia da Polimerase — ou seja, em menos de duas horas —, nosso
DNA-alvo terá sido amplificado 225 vezes (cerca de 34 milhões de vezes). Com isso, a solução
resultante, que começou como uma mistura de molde de dna, primers, enzimas dna
193
PRIMEIRO CICLO

SEGUNDO CICLO

molécula deDNA

separe as duas fitas adicione DNA separe as duas fitas adicione DNA separe as duas

do DNA e polimerase do DNA e acrescente polinnerase fitas do DNA e

acrescente os primers. os primers acrescente os primers

A reação em cadeia da polimerase é usada para amplificar uma região do DNA.

polimerase e As, Ts, Gs e Cs livres, terá se tornado uma solução concentrada da região-alvo do dna.

Um grave problema inicial da reação em cadeia da polimerase é que a dna polimerase, a enzima
responsável pela multiplicação, é destruída a 95°C. Portanto, torna-se necessário obter enzimas
novas em cada um dos 25 ciclos do processo. A polimerase é cara, de modo que logo ficou evidente
que a sua reação em cadeia, por maior que fosse o potencial, não seria uma ferramenta
economicamente viável se significasse ”transformar em fumaça” enormes quantidades do material.
Mas a natureza acabou dando uma mãozinha. Muitos organismos vivem em temperaturas muito
superiores aos 37°C ideais para a E. coli, a fonte original da enzima; as proteínas dessas criaturas,
incluindo enzimas como a dna polimerase, foram se adaptando ao longo de milênios de seleção
natural para suportar o calor. Hoje, a reação em cadeia da polimerase costuma ser realizada usando
uma forma de dna polimerase derivada da Thermus aquaticus, uma bactéria que vive nas termas
quentes do parque nacional Yellowstone.

A reação em cadeia da polimerase logo se tornou um dos principais burros


194

Um Hvro em miniatura:

seqüência de DNA lida

por uma máquina

automatizada de

seqüenciamento.

Cada cor representa

uma das quatro bases.

de carga do Projeto Genoma Humano. O processo é basicamente idêntico ao desenvolvido por


Mullis, mas foi automatizado. Já não dependemos de legiões de universitários tresnoitados para
realizar a exaustiva transferência de minúsculas quantidades de fluido para tubos de plástico, pois
um moderno laboratório genômico possui linhas de produção controladas por robôs. Num projeto
do porte do seqüenciamento do genoma humano, é inevitável que as máquinas que produzem a
reação em cadeia da polimerase preparem enormes quantidades de enzima polimerase resistente ao
calor. Por isso, os cientistas do Projeto Genoma Humano ficaram indignados com os polpudos
royalties acrescentados ao custo da enzima pelo detentor da patente do processo, o gigantesco
complexo industrial-farmacêutico europeu Hoffmanh-LaRoche.

O outro burro de carga foi o próprio método de seqüenciar dna. Também aqui, a teoria química
subjacente não era nova; o Projeto Genoma Humano usou o mesmo método desenvolvido por Fred
Sanger em meados dos anos 1970. A inovação estava na escala, na mecanização do processo de
seqüenciamento.
A automação do seqüenciamento começou a ser desenvolvida no laboratório de Lee Hood, no
Caltech. Em seus dias de jogador de futebol americano num colégio em Montana, Hood fez com
que seu time ganhasse sucessivos campeonatos estaduais e levaria consigo para a academia tudo o
que aprendera
195
sobre trabalhar em equipe. Seu laboratório congregava uma mistura eclética de I

químicos, biólogos e engenheiros, e logo se tornou um dos líderes em inovação I

tecnológica. I

Na verdade, o seqüenciamento automatizado nasceu das idéias de Lloyd I

Smith e Mike Hunkapiller. Quando trabalhava no laboratório de Hood, Hunka- I


piller procurou Smith para falar sobre um método de seqüenciamento que usava
um corante diferente para cada tipo de base. Em princípio, a idéia prometia tornar o processo de
Sanger quatro vezes mais eficiente: em vez de quatro reações
de seqüenciamento separadas, cada uma numa banda de gel distinta, o código de
cores permitiria realizar tudo num único conjunto de reações e obter o resultado numa única banda
de gel. Smith mostrou-se inicialmente pessimista, temen- do que as quantidades de corante exigidas
pelo método seriam pequenas demais I
para detectar. Mas, sendo um especialista em aplicações de laser, logo concebeu
uma solução usando corantes especiais que ficam fluorescentes sob raios laser.
Segundo o método-padrão de Sanger, cria-se uma série de fragmentos de
dna, que são selecionados pelo gel de acordo com o tamanho de cada um. Cada
fragmento é ”etiquetado” com o corante fluorescente que corresponde ao seu
nucleotídeo didesoxi demarcador de cadeia (vejap. 122); desse modo, a cor
obtida pelo fragmento identifica qual é a base. Em seguida, um laser rastreia
o fundo do gel, ativando a fluorescência, e uma célula fotoelétrica ali colocada
detecta a cor emitida por cada pedaço de dna. Essas informações são alimentadas diretamente num
computador, evitando-se assim o martirizante processo de
digitar dados que transtornava o seqüenciamento manual.
Hunkapiller deixou o laboratório de Hood em 1983 e foi trabalhar para a
Applied Biosystems, Inc. (abi), uma fabricante de instrumentos que acabara de
ser fundada e que produziria a primeira máquina de seqüenciamento Smithl

Hunkapiller. Desde então, a eficiência do processo aumentou imensamente: com


géis (lentos e difíceis de manusear) foram descartados e substituídos por sistemas capilares de
grande vazão — finíssimos tubos nos quais os fragmentos dé
dna são separados em alta velocidade de acordo com o tamanho. Hoje, a última geração de
seqüenciadores da abi é de uma rapidez descomunal, sendo|
alguns milhares de vezes mais ágeis do que o protótipo. Com um mínimo de’
intervenção humana (cerca de quinze minutos a cada 24 horas), essas máquinas
conseguem seqüenciar até meio milhão de pares de bases por dia. Em última
análise, foi essa tecnologia que viabilizou o Projeto Genoma Humano.

Enquanto as estratégias de seqüenciamento do dna iam sendo otimizadas ao longo da primeira parte
do projeto, a fase de mapeamento também avançava. O objetivo imediato era obter um esboço
rudimentar do genoma inteiro que servisse de orientação para determinar a localização de cada
bloco de seqüências. Para isso, o genoma tinha de ser subdividido em blocos manuseáveis, os quais
seriam então mapeados. No início, tentamos usar cromossomos artificiais de levedura [conhecidos
como yacs, do inglês yeast artificial chromosomes], um método idealizado por Maynard Olson para
importar grandes trechos de dna humano para células de levedura. Uma vez implantados, os yacs
replicam-se junto com os cromossomos normais da levedura. Contudo, tentativas de incluir até 1
milhão de pares de bases de dna humano em um único yac trouxeram à tona problemas
metodológicos: constatou-se que os segmentos estavam sendo deslocados. Como mapear significa
estabelecer a ordem dos genes ao longo dos cromossomos, esse deslocamento de seqüências talvez
fosse a pior coisa que poderia acontecer. Mas os cromossomos bacterianos artificiais [bacs,
bacterial artificial chromosomes], desenvolvidos por Pie ter de Jong em Buffalo, chegaram na hora
H. Eles são bem menores — com um comprimento de apenas 100 mil a 200 mil pares de bases — e
muito menos propensos a deslocamentos.

Para os grupos em Boston, Iowa, Utah e França que começavam a mapear o genoma humano, o
primeiro passo crucial foi encontrar os marcadores genéticos, isto é, locais onde o mesmo trecho de
dna extraído de dois indivíduos distintos difere em um ou mais pares de bases. Esses sítios de
variação serviriam como os marcos que orientariam nossa investigação do genoma. Com
A equipe responsável pela

contribuição francesa ao

Projeto Genoma Humano.

Jean Weissenbach é o terceiro

i partir da esquerda e Daniel

Cohen está à direita. Ao lado

de Cohen está Jean Dausset,

o imunologista visionário

que deu início à façanha.

196

1L
197
excepcionalrapidez, a equipe francesa, coordenada por Daniel Cohen e Jean Weissenbach, produziu
mapas excelentes no Généthon, um instituto de pesquisa genômica que lembra uma fábrica,
financiado pela Associação Francesa de Distrofia Muscular. Como o Wellcome Trust do outro lado
do canal da Mancha, aquela organização filantrópica francesa ajudou a cobrir as deficiências criadas
pela falta de apoio governamental. Na arrancada final do projeto, quando se tornou necessário um
mapeamento geral detalhado dos cromossomos bacterianos artificiais, o programa dejohn
McPherson no centro de genômica da Universidade Washington teve um papel decisivo.

O Projeto Genoma Humano já estava em pleno andamento; não obstante, ainda se discutia sobre a
melhor maneira de proceder. Alguns apontavam para a grande parcela do genoma humano composta
pelo que chamamos de junk dna [dna-Lixo], isto é, trechos de dna que aparentemente não codificam
coisa alguma. Na realidade, os trechos que codificam proteínas — os genes — constituem apenas
uma pequena fração do total. ”Por que seqüenciar o genoma inteiro?”, perguntavam esses críticos;
”por que se dar ao trabalho de seqüenciar todo esse lixo?” Para falar a verdade, existe uma maneira
rápida e rasteira de obter uma fotografia geral de todOs os genes codificadores do genoma: a
tecnologia da transcriptase reversa descrita no capítulo 5. Basta purificar uma amostra de rna
mensageiro de qual(quer tjpO de tecido; se a origem do rna for o cérebro, teremos uma amostra de
rna para todos os genes expressos no cérebro. Usando a transcriptase reversa,, podemos criar cópias
do dna (conhecidas como dna complementar, ou cdna) desses genes e esse cdna pode ser então
seqüenciado.

Todavia, esse rtiétodo rápido e rasteiro não é um substituto para a coisa em si. Como hoje sabeinos)
muitas das partes mais interessantes do genoma nao estão nos genes: são os mecanismos de controle
que ativam e desativam os genes. Assim, uma análise do cdna do tecido cerebral nos proporcionaria
um panorama dos genes ativados no cérebro, mas não teríamos idéia alguma de como eles são
ativados: as importantíssimas regiões controladoras do dna não são transcritas em enzima rna
polimerase, que copia a fita de dna para o rna mensageiro.

Sydney Brennç do Medicai Research CouncÜ, da Grã-Bretanha, cujas verbas eram relativamente
limitadas, foi o pioneiro na utilização do cdna para 198

descobrir genes em grande escala. Com um orçamento restrito de pesquisa, ele descobriu que o
seqüenciamento do cdna era a maneira mais eficaz de tirar proveito da sua minguada verba.
Sequioso para colher as vantagens comerciais das seqüências, o Medicai Research Council impediu
Brenner de publicá-las antes que os laboratórios farmacêuticos britânicos já estivessem em condição
de obter lucros com elas.

Em visita ao laboratório de Brenner, Craig Venter ficou impressionado com essa estratégia de usar o
cdna e mal pôde esperar para voltar ao laboratório do nih perto de Washington a fim de aplicar a
mesma técnica e produzir uma profusão de novos genes. Embora seqüenciasse apenas uma pequena
parte de cada um, Venter podia determinar se era ou não algo novo para a ciência. Em junho de
1991, um funcionário do nih insistiu que ele requeresse a patente de
337 desses novos genes — ainda que, em muitos casos, ele não tivesse a mínima idéia da sua
função. Um ano depois, tendo aplicado a técnica de maneira mais ampla, Venter acrescentou 2.421
seqüências à lista que apresentara ao departamento de patentes. A meu ver, a idéia de patentear
seqüências às cegas, sem saber o que fazem, é um desatino: o que se está protegendo, afinal? Tal
conduta só pode ser vista como uma reivindicação financeira antecipada de alguma descoberta
verdadeiramente significativa feita por outrem. Expus minhas objeções aos altos escalões do nih,
mas em vão. O fato de o nih continuar endossando essa prática — uma política que, aliás, mais
tarde foi abandonada — significou o começo do fim da minha carreira como burocrata
governamental. Meus sentimentos estavam confusos quando Bernardine Healy, diretora do nih,
forçou-me a pedir demissão em 1992, pois quatro anos dentro da panela de pressão que é
Washington haviam sido suficientes para mim. O que realmente me importava, porém, era que a
essa altura o Projeto Genoma Humano já estava inexoravelmente encaminhado.

O gosto de Venter pelas possibilidades comerciais de patentes de nacos do genoma aguçaram seu
apetite por outros petiscos. Só que ele queria o melhor dos dois mundos: continuar a integrar a
comunidade acadêmica, onde as informações são compartilhadas livremente e os salários são
baixos, e também ingressar na arena empresarial, onde suas descobertas deveriam permanecer
secretas até que se obtivessem as patentes necessárias e se pudesse começar a
199
DEFLATION IN JAPAN STRATEGIES: BELLSOUTH. COMPAQ

[BusinessWeek
O lado comercial do projeto para ler o genoma: William Haseltine e Craig Venter.

faturar. Com a ajuda de um mecenas, o capitalista de risco Wallace Steinberg (inventor da escova de
dente Reach), Venter viu suas preces serem atendidas em
1992. Steinberg entrou com us$ 70 milhões para criar não apenas uma, mas duas organizações: uma
não-lucrativa, The Institute for Genomic Research [O Instituto de Pesquisas Genômicas], conhecido
como tigr (pronuncia-se como tiger [táiguer]), a ser dirigido por Venter, e uma empresa-irmã,
Human Genome Sciences (hgs), a ser dirigida por William Haseltine, um biólogo molecular com
tino comercial. O esquema funcionaria da seguinte maneira: o tigr, impulsor das pesquisas,
produziria as seqüências de cdna, enquanto a hgs, o braço empresarial, comercializaria as
descobertas. A hgs sempre teria seis meses para examinar os dados do tigr antes de estes serem
publicados, exceto se as descobertas indicassem um potencial para um novo medicamento, quando
então o prazo da hgs seria de um ano.

Tendo crescido na Califórnia, a primeira opção de Venter fora o surfe, não a educação superior. Mas
o ano traumático que passou como auxiliar médico no Vietnã durante a guerra parece ter modificado
suas idéias e, ao retornar aos Estados Unidos, obteve em rápida seqüência um bacharelado e um
doutorado
200

em fisiologia e farmacologia na Universidade da Califórnia em San Diego. Sua enigração da


academia para o mundo dos negócios foi compreensível diante do estado de suas finanças pessoais:
ele tinha us$ 2 mil dólares no banco quando fundou o TIGR. Mas não demorou até que a sorte
batesse à sua porta: no início de 1993, o laboratório farmacêutico britânico SmithKline Beecham,
ansioso para participar da corrida ao ouro genômico, desembolsou us$ 125 milhões para comprar os
direitos comerciais exclusivos da lista cada vez maior de novos genes encontrados por Venter. Um
ano depois, o New York Times revelou que a participação de 10% de Venter na hgs valia us$ 13,4
milhões. Sem inibições para torrar o dinheiro, ele gastou us$ 4 milhões num iate de corrida de 25
metros, cuja vela-balão estampava uma fotografia de 6 metros de altura de si mesmo.

Na década de 1970, William Haseltine era um pós-graduando da Harvard, sendo orientado


conjuntamente por mim e por Wally Gilbert. Mais tarde, coordenaria um inovador centro de
pesquisas sobre o hiv no Dana Farber Câncer Center da faculdade de medicina da universidade.
Mas foi seu casamento com a multimilionária socialite Galé Hayman (criadora do perfume que
todos queriam na década de 1980, o Giorgio Beverly Hills) que lhe conferiu visibilidade e permitiu
ter mais de us$ 2 mil no banco ao fundar a hgs. Mesmo antes de tornar-

se diretor corporativo, suas proezas colunáveis já eram motivo de comentários no laboratório da


Faculdade de Medicina de Harvard. Uma piada típica: ”Qual a diferença entre Bill Haseltine e
Deus?”. Resposta: ”Deus está em toda parte; Haseltine está em toda parte menos em Boston, onde
deveria estar”.

Imperícia e pouca engenhosidade caracterizaram o afã de Venter e Haseltine em patentear todos os


genes humanos que puderam encontrar a partir do seqüenciamento do cdna. O tigr ei a hgs não eram
mais do que o equivalente biotecnológico de crianças que pegam todos os brinquedos no parque
para que ninguém mais possa brincar.

Em 1995, a hgs solicitou a patente de um gene chamado ccr5. A análise preliminar dessa seqüência
sugerira que o gene codificava uma proteína da superfície celular presente no sistema imunológico e
que, portanto, valia a pena ”possuí-lo”, pois, em tese, tais proteínas podem servir de alvo para
drogas que afetam o sistema imunológico. O ccr5 foi um dentre um lote de 140 outros genes cuja
patente a hgs requereu. Mas, em 1996, os pesquisadores descobriram a função do CCR5 na via pela
qual o hiv (o vírus que causa a aids) invade as
células T do sistema imunológico. Também descobriram que mutações do CCR5 eram responsáveis
pela resistência à aids: verificou-se que alguns homossexuais masculinos (que, constatou-se, tinham
genes CCR5 mutantes) não contraíam a doença, embora fossem repetidamente expostos ao hiv.
Diante disso, o CCR5 parecia e ainda parece destinado a desempenhar um importante papel na luta
contra o hiv. Embora não tenha contribuído em nada para o trabalho árduo e a ciência rigorosa que
determinaram o papel fundamental do CCR5 na aids, a hgs poderá vir a obter lucros fabulosos
simplesmente por ter sido a primeira a pôr as mãos no gene; além disso, ao cobrar uma taxa cada
vez que esse conhecimento for aplicado, sua patente do CCR5 imporá um grave ônus a uma área da
pesquisa médica que precisa desesperadamente de cada centavo que consegue obter. A reação de
Haseltine oscila entre a desfaçatez — ”Se alguém utilizar esse gene num programa de descoberta de
medicamento depois que a patente for concedida [...] e o fizer com fins comerciais, terá infringido a
patente” — e a indignação: ”Temos direito não só a indenização por danos, mas a indenização dupla
e tripla”.

Esse tipo de patente especulativa de genes cria um terrível empecilho às pesquisas e ao


desenvolvimento da medicina; a longo prazo, levará a uma diminuição da qualidade e quantidade
das opções de tratamento disponíveis. O problema é que, na realidade, os especuladores estão
patenteando alvos potenciais de novos medicamentos, a saber, as proteínas sobre as quais qualquer
droga ou tratamento ainda por ser inventado poderia agir. Para a maioria dos grandes laboratórios
farmacêuticos, as patentes de genes em alvos de drogas, solicitadas por empresas de biotecnologia
com pouca ou nenhuma informação biológica sobre suas funções, tornaram-se uma poison pül, isto
é, uma tática para tornar proibitiva qualquer tentativa de aquisição hostil. Os enormes royalties
exigidos por esses monopólios, empenhados apenas em encontrar genes, geram um desequilíbrio
econômico que prejudica o desenvolvimento de novas drogas: a clonagem do alvo de uma droga
representa, no máximo, 1% do percurso até o lançamento de um medicamento aprovado. Além
disso, se uma empresa produz uma droga com um alvo específico, de cujo gene subjacente ela
também detém a patente, essa empresa não tem nenhum incentivo imediato para desenvolver drogas
melhores para o mesmo alvo. Por que investir em pesquisa e desenvolvimento se a patente torna
excessivamente caro — ou mesmo ilegal —para outras empresas entrar na jogada?

1
A perspectiva de o triunvirato tigr / hgs / SmithKline colocar um torniquete comercial no
seqüenciamento dos genes humanos alarmou igualmente as universidades e as empresas envolvidas
com biologia molecular. Em 1994, a Merck, uma das rivais tradicionais da SmithKline Beecham no
setor farmacêutico, ofereceu usS 10 milhões ao centro genômico da Universidade Washington para
seqüenciar cdna humano e publicar os resultados abertamente, retaliando com acesso universal o
conluio da hgs.
Mais ou menos na mesma época em que o tigr e a hgs estavam dando os primeiros passos para
comercializar o genoma, Francis Collins foi nomeado para me substituir na direção da área
genômica do nih. Collins foi uma escolha excelente. Ele já mostrara ser um mapeador de genes
excepcional, tendo mapeado vários genes responsáveis por doenças importantes — incluindo os da
fibrose cística, da neurofibromatose (também conhecida como síndrome de Von Recklinghausen ou
mal do homem-elefante) e, como parte de uma esforço conjunto, do mal de Huntington. Se
houvessem distribuído prêmios nas primeiras partidas do campeonato do Projeto Genoma Humano
— as disputas pelo mapeamento e caracterização de genes importantes —, a palma de ouro
certamente caberia a Collins. À sua maneira, ele até marcava o placar: como seu meio de transporte
preferido era uma motocicleta Honda Nighthawk, os colegas grudavam um adesivo no seu capacete
cada vez que um novo gene era mapeado em seu laboratório.

Collins foi criado no vale Shenandoah, na Virgínia, numa fazenda de 40 hectares sem água
encanada. Inicialmente educado em casa pelos pais, um professor de teatro e uma dramaturga,
escreveu e dirigiu sua própria produção teatral de O mágico de Oz aos sete anos de idade. Mas a
bruxa má da ciência arrastou-o para longe da carreira teatral; depois de obter um doutorado em
físico-química na Universidade de Yale, ingressou na faculdade de medicina e, em seguida, lançou-
se na carreira de pesquisador em genética médica. Collins pertence a uma espécie rara, a do
cientista profundamente religioso. Na faculdade, ele recorda, ”eu era um ateu bastante veemente”.
Mas isso mudou na faculdade de medicina, ao ”observar pessoas em terríveis circunstâncias
médicas lutando para sobreviver, em batalhas muitas vezes já perdidas. Vi muitas delas recorrerem à
fé e percebi como isso lhes dava força”. Ao Projeto Genoma Humano Collins trouxe não só
excelência científica, mas também uma dimensão espiritual totalmente ausente em seu antecessor.
203
Em meados da década de 1990, com o mapeamento inicial do genoma humano completado e as
tecnologias de seqüenciamento em acelerada evolução, chegara a hora de começar o detalhamento
dos as, ts, gs e cs — ou seja, chegara a hora de seqüenciar. Em conformidade com o plano delineado
desde o início por nossa comissão na Academia Nacional de Ciências, iríamos primeiro nos atracar
com diversos organismos-modelo: bactérias para começar e, em seguida, criaturas complexas (com
genomas mais complexos). O humilde verme nematóide c. elegans foi o primeiro grande desafio
não-bacteriano e o empreendimento, levado a cabo em conjunto por John Sulston, no Centro Sanger
(na Grã-Bretanha), e Bob Waterston, na Universidade Washington, revelouse um excelente modelo
de colaboração internacional. A seqüência do verme —
97 milhões de pares de bases — foi publicada em dezembro de 1998. Embora não seja maior do que
uma vírgula nesta página e apresente um número fixo de células — apenas 959 —, o verme possui,
não obstante, cerca de 20 mil genes.

À primeira vista, Sulston não parecia apto a exercer uma função de liderança no mundo científico.
Ele passara a maior parte da sua vida profissional ao microscópio, produzindo uma descrição
extraordinariamente completa e detalhada, célula por célula, do desenvolvimento desse verme.
Filho de um vigário da Igreja Anglicana, tem uma barba que lhe dá o ar de um tio simpático, mas é
e sempre foi um socialista que acredita convictamente que comércio e genoma humano nada devem
ter em comum. Como Francis CoUins, é um fanático por motocicletas e costumava ir da sua casa,
perto de Cambridge, ao Centro Sanger numa moto de 550 cilindradas, até que, justamente quando o
Projeto Genoma Humano estava entrando em marcha acelerada, sofreu um acidente que o deixou
gravemente ferido e transformou a moto em ”um amontoado de porcas e parafusos”, em suas
palavras. O Wellcome Trust, que financiava o Centro Sanger, ficou horrorizado ao saber que o
diretor científico do projeto arriscava a própria vida cada vez que ia para o trabalho: ”Logo agora
que investimos tanto dinheiro nesse cara!”, reclamou Bridget Ogilvie, diretora do consórcio na
época.

Waterston, o parceiro americano de Sulston, formara-se em engenharia pela Princeton e levara sua
ampla experiência para o grande centro de seqüenciamento que dirigia na Universidade
Washington. Era um exímio extrapolador: pouco no início; tudo no fim. Certa vez, ao acompanhar
sua filha numa corrida, descobriu que apreciava o esporte e hoje é um maratonista bastante
razoável. Ao longo do ano inicial, seu grupo de seqüenciamento produziu
204

Cooperação internacional:

cientistas britânicos e americanos foram os

primeiros a completar o seqüenciamento âo

genoma de um organismo complexo,

o nematóiâe C. elegans. Os diretores

do projeto (abaixo), Bob Waterston

ejohn Sulston, ainda encontram tempo

para relaxar.

¥
apenas 40 mil pares de bases da seqüência do verme, mas nos anos subseqüentes a produção atingiu
níveis fenomenais e Waterston foi um dos primeiros a propor que não se poupassem esforços para
seqüenciar o genoma humano.
Entretanto, ao mesmo tempo que se iniciava a colaboração internacional para seqüenciar
organismos-modelo, em preparação para a grande tarefa, um verdadeiro terremoto biológico
molecular sacudiu todo o Projeto Genoma Humano.

Craig Venter e o tigr estavam se saindo bem. Tendo auferido o máximo possível da estratégia de
descobrir genes com cdna durante vários anos, Venter começou a se interessar pelo seqüenciamento
de genomas inteiros. Também aqui ele estava convencido da superioridade da sua abordagem. O
Projeto Genoma Humano optara por mapear o sítio de diferentes trechos de dna nos cromossomos
antes de seqüenciá-los. pesse modo, sabia-se de antemão que o
205
trecho A era adjacente ao trecho B e, portanto, podia-se buscar sobreposições dos dois quando
chegasse a hora de compor a seqüência final. Venter preferiu uma abordagem que excluía esse
mapeamento inicial, conhecida como whole genome shotgun [algo como ”atirar a torto e a direito
para acertar o genoma inteiro”]: divide-se o genoma em trechos aleatórios, seqüenciam-se todos
eles, colocam-se as seqüências no computador e confia-se que este conseguirá ordená-las
corretamente com base em sobreposições, sem a vantagem de nenhuma informação prévia sobre sua
posição. Venter e sua equipe no tigr mostraram que esse método de força bruta podia realmente
funcionar, ao menos no caso de genomas simples: em 1995, eles publicaram a seqüência do genoma
de uma bactéria, Haemophilus influenzae, usando esse método.

Mas a capacidade de o método shotgun funcionar para genomas grandes e complexos como o
humano continuava discutível. O problema são as repetições, ou seja, segmentos com seqüências
idênticas que ocorrem em diferentes pontos do genoma e que podem, em princípio, arruinar esse
método de seqüenciamento, pois nada garante que tais repetições não acabem iludindo até o mais
sofisticado algoritmo de computador. Se, por exemplo, ocorrer uma repetição nos trechos A e P, o
computador pode equivocadamente situar A próximo a Q, e não no sítio correto, junto de B. Nós, do
Projeto Genoma Humano, havíamos discutido essa possibilidade quando analisamos o uso de uma
abordagem shotgun e, com base em cálculos meticulosos realizados por Phil Green em Seattle, o
consórcio concluiu que grandes confusões poderiam surgir devido à enorme quantidade de longas
seqüências repetidas do chamado ”dna-Kxo” existentes no genoma humano.

Em janeiro de 1998, Mike Hunkapiller, da Applied Biosystems, Inc., fabricante de máquinas


automatizadas de seqüenciamento, convidou Venter para testar o mais novo modelo da empresa, a
prism 3700. Venter ficou muito bem impressionado, mas nada poderia tê-lo preparado para o que
viria em seguida. Hunkapiller sugeriu-lhe que fundasse uma nova firma, financiada pela empresa-
mãe da ABI, a PerkinElmer, para seqüenciar o genoma humano. Venter não teve pudor de
abandonar o tigr; suas relações com Haseltine, da hgs, já tinham degringolado havia tempos. Não
querendo perder um minuto sequer, ele logo fundou a empresa que mais tarde viria a se chamar
Celera Genomics. O lema do novo empreendimento? ”Rapidez é tudo; as descobertas não podem
esperar.” O plano? Seqüenciar todo o genoma humano pelo método shotgun usando
206

trezentas máquinas de Hunkapiller e a maior concentração de potência computacional do mundo


fora do Pentágono. O projeto levaria dois anos e custaria entre US$ 200 e USS 500 milhões.

A notícia foi divulgada pouco antes de os líderes do Projeto Genoma Humano público (em oposição
ao privado), como viria a ser chamado, se reunirem no laboratório Cold Spring Harbor. Dizer que a
notícia não foi bem recebida fica bem aquém da verdade. O consórcio público mundial já gastara
cerca de USS 1,9 bilhão (de dinheiro público) e agora, do modo como o New York Times deturpara a
questão, talvez não tivesse nada a mostrar exceto a seqüência do genoma do camundongo, enquanto
Venter levava para casa o santo Graal, o genoma humano. Particularmente aviltante foi o fato de
Venter desacatar o acordo que ficara conhecido como os ”princípios das Bermudas”. Em 1996,
numa conferência do Projeto Genoma Humano nas ilhas Bermudas, da qual Venter participou, ficou
acertado que os dados seqüenciados seriam divulgados tão logo fossem gerados. Todos
concordaram que a seqüência do genoma deveria ser um bem público. Agora, como um renegado,
Venter tinha outras idéias: afirmou que adiaria a divulgação das novas seqüências por três meses e
que venderia licenças a laboratórios farmacêuticos ou a qualquer outra parte interessada em obter
acesso antecipado aos dados.

Por sorte, poucos dias após o pronunciamento de Venter, Michael Morgan, do Wellcome Trust,
anunciou que iria dobrar a verba dedicada ao Centro Sanger, totalizando agora cerca de us$ 350
milhões, dando assim o empurrãozinho de que o projeto público tanto carecia — ainda que, devido
à data em que foi anunciada, a iniciativa parecesse uma resposta direta ao desafio de Venter. Mas o
aumento da dotação orçamentária já vinha sendo contemplado havia bastante tempo. Pouco depois,
o Congresso dos Estados Unidos também aumentou sua contribuição aos cofres do Projeto Genoma
Humano público. Fora dada a largada. Na verdade, sabíamos desde o início que haveria no mínimo
dois vencedores. A ciência só tinha a ganhar com duas seqüências do genoma humano, o que
permitiria que fossem cotejadas — pois, com mais de 3 bilhões de pares de bases envolvidos, é
inevitável que surgisse um ou outro erro. Outro vencedor seria certamente a abi: a empresa venderia
muito mais máquinas de seqüenciamento prism, que a maioria dos laboratórios participantes do
consórcio público teria agora de comprar para acompanhar o ritmo de Venter!

As acusações malcriadas entre os diretores dos projetos público e privado


207
’ipf
iriam adornar a seção científica dos jornais nos dois anos seguintes. A troca de farpas chegou a tal
ponto que o presidente Clinton orientou seu assessor científico’ ”Dê um jeito de fazer esses caras
trabalharem juntos”. Mas, em meio a tudo o seqüenciamento seguiu em frente e Venter demonstrou
que a abordagem shotgun era capaz de funcionar com um genoma de dimensões respeitáveis
quando, em colaboração com a ala drosófila do consórcio público, anunciou a conclusão de um
rascunho avançado do genoma da mosca-das-frutas no início de 2000. Contudo, como esse genoma
contém relativamente pouco ”dna-lixo” repetitivo, o sucesso obtido pela Celera em seu
seqüenciamento não foi, em absoluto, garantia de que o método shotgun funcionaria no genoma
humano.

Nenhuma pessoa se revelou tão imprescindível para enfrentar o desafio da Celera do que Eric
Lander. Foi ele quem vislumbrou um processo de seqüenciamento inteiramente automatizado, no
qual robôs tomariam o lugar de técnicos humanos, e foi ele quem teve a energia para transformar
esse objetivo em realidade. Seu currículo mostra que ele, de fato, tinha energia de sobra. Nascido no
Brooklyn, em Nova York, revelou-se um gênio matemático na escola Stuyvesant High em
Manhattan, acabou conquistando o primeiro prêmio do Westinghouse Talent Search, o famoso
programa para encontrar novos talentos, e, como o aluno que obteve as melhores notas da classe, foi
orador da turma em Princeton (1978) antes de obter o doutorado em Oxford com uma bolsa Rhodes.
Em
19g7 um ”prêmio de gênio”, como é conhecido, da Fundação MacArthur pareceu quase redundante.
Sua mãe, por sinal, não faz idéia de como isso tudo aconteceu’ Eu adoraria dizer que sou
responsável, mas não é verdade. [...] Tenho de confessar que foi pura sorte”.

Lander, um ser humano bastante sociável pelos parâmetros da sua disciplina acabou achando a
matemática pura ”um campo árido e monástico” e ingressou no corpo mais alegre dos docentes da
Harvard Business School. Mas logo ficou fascinado e intrigado com as atividades do irmão mais
jovem, um neurocientista. Assim inspirado, tornou-se autodidata em biologia e começou a trabalhar
à noite nos departamentos de biologia da Harvard e do mit, sem perder um único tento em seu
emprego diurno na faculdade de administração. ”Eu basicamente aprendi biologia molecular nas
esquinas”, diz ele. ”Só que por aqui ha muitas excelentes esquinas.” Em 1989, tornou-se professor
de biologia numa dessas esquinas, o Instituto Whitehead do mit.

Mesmo entre o chamado G5 — os cinco principais centros do consórcio


A produção em massa chega ao

seqüenciamento do DNA:

o Instituto Whitehead do MIT.

público, que também incluíam o Centro Sanger, o Centro de Seqüenciamento Genômico da


Universidade Washington, a Faculdade de Medicina Baylor e o laboratório do Departamento de
Energia em Walnut Creek —, o laboratório de Lander foi o que mais contribuiu com seqüências de
dna. Sua equipe no mit também seria responsável por grande parte do tremendo aumento da
produtividade no final do projeto, que culminou na divulgação da primeira versão do genoma. Em
17 de novembro de 1999, o consórcio público do Projeto Genoma Humano comemorou seu
bilionésimo par de bases ao seqüenciar um g. Apenas quatro meses depois, em 9 de março de 2000,
um t foi a base de número 2 bilhões. O G5 avançava a todo o vapor. Como a Celera estava usando
dados do projeto público, que eram divulgados imediatamente na Internet e começavam a chegar
em ritmo acelerado, Venter, talvez enfim se esfalfando um pouco, reduziu pela metade a previsão
original do número de seqüenciamentos que sua empresa efetuaria.

Enquanto a corrida entre os projetos público e privado chegava a um clímax na mídia, por trás das
barricadas o interesse estava se voltando cada vez mais para o consórcio de cérebros matemáticos
da iniciativa — os cientistas que permaneciam ocultos em salas obscuras em meio a fileiras de
computadores. Seriam eles que dariam sentido a todos os as, ts, gs e cs da seqüência rudimentar.
Tinham duas tarefas fundamentais. Primeiro, montar a seqüência final completa a partir da vasta
quantidade de trechos fragmentários disponíveis. A maioria desses trechos tinha sido seqüenciada
repetidas vezes, de modo que o numero de seqüências existentes era suficiente para formar muitos e
muitos genomas. Tudo teria de ser destilado para formar uma única seqüência canônica do genoma
humano — um empreendimento computacional gigantesco. Segundo, decifrar o que era o quê na
seqüência final e, sobretudo, onde estavam °s genes. A identificação dos componentes do genoma
— isto é, o trabalho de
208
209
distinguir um trecho de as, ts, gs e cs que não codificava coisa alguma, apenas lixo, de outro que
codificava, por exemplo, uma proteína — dependia de um esforço concentrado e intenso de
computação.

No cerne das operações computacionais da Celera estava Gene Myers, o cientista de tecnologia da
informação que havia sido o primeiro e mais ardoroso defensor da abordagem shotgun. Junto com
James Weber, da Fundação Marshfield de Pesquisas Médicas, de Wisconsin, ele propusera que o
consórcio público adotasse essa abordagem muito antes de a Celera existir. Para ele, portanto, o
sucesso da via escolhida pela Celera era motivo de orgulho e legitimação.

Para o consórcio público, ancorado em marcos gênicos já mapeados, a tarefa de montar a seqüência
correta, embora imensa, parecia menos intimidante do que a de Myers, que tinha diante de si o
mundo sem marcos da abordagem shotgun. (Em sua análise final, a Celera usou informações de
mapeamento que o consórcio público disponibilizará gratuitamente.) Entretanto, para falar a
verdade, ao se fiar nesses marcos, o consórcio público subestimara bastante as necessidades
computacionais. Com isso, enquanto a Celera ampliava sua capacidade computacional, o projeto
público permanecia concentrado em preparar as operações de seqüenciamento. Só bem tardiamente
é que os diretores do projeto público perceberam que, a despeito do mapa, como o proverbial pai
que tenta montar as peças de uma nova bicicleta na véspera de Natal, eles também tinham um grave
problema de montagem em mãos. A data para completar (e montar) um ”rascunho” do genoma fora
fixada: final de junho. Estávamos no início de maio e o projeto público ainda não dispunha de
meios práticos de reunir todas as seqüências. Foi quando surgiu um estranho deus ex machina sob a
forma de um estudante de pós-graduação da Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

Seu nome era Jim Kent e parecia um integrante do Grateful Dead. Ele vinha programando
computadores desde o advento dos computadores pessoais, escrevendo códigos para desenhos e
animações. Mas, na faculdade, decidiu que queria fazer parte da bioinformática, um novo campo
dedicado a analisar seqüências de dna e proteínas. Kent decidiu abandonar a programação comercial
quando recebeu o volumoso pacote para desenvolvedores de programas para o Windows 95, com
doze cd-roms: ”Pensei comigo mesmo: ora, o genoma humano caberá em um único cd e não
precisará ser atualizado a cada três meses”. Assim, em maio, confiante de que sabia resolver o tão
falado e malfadado problema de montagem das seqüências, convenceu a universidade a -
Jim Kent usou cem computadores pessoais

para preparar a versão preliminar

do Projeto Genoma Humano público.

autorizalo a ”tomar emprestado” cem computadores pessoais recém-adquiridos para fins didáticos.
Embarcou então numa maratona de programação de quatro semanas, mergulhando os pulsos no
gelo à noite para não sofrer cãibras enquanto digitava códigos de computador durante o dia. Seu
prazo final era 26 de junho, o dia em que o término da versão preliminar do genoma seria
anunciado. Kent concluiu o programa, colocou os cem computadores para funcionar e, no dia 22 de
junho, sua gangue de PCs resolveu o problema de montagem de seqüências do consórcio público.
Myers, na Celera, terminou ainda mais em cima da hora, concluindo a montagem das seqüências na
noite do dia 25 de junho.
E então chegou o dia 26 de junho de 2000. Bill Clinton, na Casa Branca, e Tony Blair, em Downing
Street, anunciaram simultaneamente a conclusão da primeira versão do Projeto Genoma Humano. A
corrida foi considerada um empate e as honras foram compartilhadas fraternalmente. Por sorte, os
antagonistas conseguiram deixar para trás seus rancores, ao menos naquela manhã. Clinton
declarou: ”Estamos hoje conhecendo a linguagem com a qual Deus criou vida. De posse desse
profundo conhecimento, a humanidade está no limiar de adquirir um novo e imenso poder de cura”.
Palavras grandiosas para uma ocasião grandiosa. Era impossível não sentir orgulho de um feito que
a imprensa logo comparou com a primeira alunissagem da nave Apollo, ainda que a data ”oficial”
do triunfo tenha sido um tanto arbitrária. O seqüenciamento estava longe de terminar e somente seis
meses depois os periódicos científicos começariam a publicar sumários do genoma. Chegou-se a
sugerir que o prazo fora determinado não pelo cronograma do Projeto Genoma Humano, mas pelas
agendas de Clinton e Blair.
26 de junho de 2000: com uma versão preliminar do genoma em mãos, Craig Venter e Francis Collins deixam temporariamente as
rivalidades de lado e se deleitam na ribalta presidencial

Do lado de fora da Casa

Branca: eu ao lado de Eric

Lander (Whitehead, M/r),

Richard Gibbs (Baylor,

Houston), Bob Waterston

(St. Louis) e Rick Wilson

(St. Louis).

Em meio ao furor publicitário da Casa Branca, relegou-se o fato de que o objeto de celebração era
apenas uma minuta do genoma humano. Ainda restava muito trabalho pela frente. Na realidade, só
as seqüências dos dois menores cromossomos, o 21 e o 22, estavam razoavelmente completas e
haviam sido publicadas. E mesmo aqui não se podia garantir que as seqüências abrangessem o
cromossomo inteiro de ponta a ponta. Quanto aos demais cromossomos, algumas seqüências ainda
apresentavam consideráveis lacunas. Após o grande anúncio, fixou-se um novo prazo, abril de
2003, para preencher todas essas lacunas e finalizar um seqüenciamento pleno e preciso. Algumas
regiões, no entanto, mostraram-se literalmente inseqüenciáveis e, na prática, a meta tornou-se então
obter um seqüenciamento ”essencialmente completo”, ou seja, concluir no mínimo
95% das seqüências com uma taxa de erro inferior a 1 em cada 10 mil bases.

Um dos responsáveis por induzir o grupo de centros internacionais de seqüenciamento a superar os


obstáculos finais foi Rick Wilson, um rude nativo do Meio-Oeste dos Estados Unidos, que sucedera
a Bob Waterson como chefe do centro da Universidade Washington. Controle de qualidade era a
questão, e para cada cromossomo foi designado um coordenador que supervisionaria o progresso e
asseguraria que a tarefa sob sua responsabilidade satisfizesse as especificações gerais do projeto.
Problemas ocasionais sempre surgem — por exemplo, um fragmento errante da seqüência do arroz
esgueirou-se misteriosamente na base de dados —, mas os procedimentos de filtragem mostraram-
se eficazes na remoção desses poluentes. Em abril de 2003, o Projeto Genoma Humano estava
”essencialmente completo”, coincidindo com o qüinquagésimo aniversário da publicação da
descoberta da dupla-hélice.

O Projeto Genoma Humano é uma façanha tecnológica extraordinária. Se alguém houvesse


sugerido em 1953 que todo o genoma humano estaria seqüenciado em cinqüenta anos, Críck e eu
teríamos dado boas risadas e pedido uma outra rodada de drinques. O mesmo ceticismo continuava
válido mais de vinte anos depois, quando os primeiros métodos para seqüenciar dna foram enfim
idealizados. Não resta dúvida de que tais métodos representaram um tremendo avanço técnico, mas
o seqüenciamento continuava sendo um trabalho intoleravelmente lento — naquele tempo, era uma
tarefa descomunal gerar a seqüência de um pequenino gene que fosse, com poucas centenas de
pares de bases de comprimento. Mas lá estávamos nós, apenas 25 anos depois, comemorando a
conclusão do seqüenciamento de cerca de 3,1 bilhões de pares de bases. Por outro lado, devemos
também ter em mente que o genoma, por mais assombroso que seja, é muito mais do que um
monumento à nossa sagacidade tecnológica; qualquer que tenha sido a motivação política imediata,
aquela comemoração na Casa Branca foi perfeitamente justificável ao saudar as possibilidades de
uma maravilhosa arma nova na luta contra a doença e ainda mais ao antever um avanço sem
precedentes do nosso entendimento da formação e funcionamento dos organismos, e do que nos
distingue biologicamente de outras espécies — daquilo que, em outras palavras, nos torna humanos.
212
213
8. Leitura de genomas: A evolução em marcha
Meu desejo, quando enfim seqüenciássemos o genoma humano em sua totalidade, era que ele
tivesse 72.415 genes. A predileção por esse número obscuro provinha da primeira grande surpresa
que o Projeto Genoma Humano nos reservou. Em dezembro de 1999, espremida entre dois grandes
marcos — o primeiro e segundo bilhão de pares de bases — estava a primeira seqüência integral de
um cromossomo, o de número 22. Embora seja pequeno e represente
Acima: Após o genoma: análise dos padrões de ativação /desativação de genes numa microplaca. Neste caso, cada ponto corresponde a
um dos 6 mil genes diferentes do parasito Plasmodium falciparum, que causa a forma mais grave de malária. Em nossa busca de uma
vacina ou uma cura, precisamos saber quais genes estão ativos em diferentes fases do ciclo de vida. Nesta microplaca, um ponto
vermelho indica um gene ativo em uma fase mas não em outra; um ponto verde indica a situação oposta; e pontos amarelos tendem a
indicar genes ativos em ambas as fases.

214

apenas 1,1% do genoma total, o cromossomo 22 possui 33,4 milhões de pares de bases. Foi o nosso
primeiro vislumbre da configuração do genoma; ou, como escreveu um comentarista na revista
Nature, foi como ”ver a superfície ou paisagem de um novo planeta pela primeira vez”.
Particularmente interessante era a densidade dos genes ao longo do cromossomo. Não havia motivo
para acreditarmos que o cromossomo 22 não fosse representativo do genoma inteiro, já que, por
calcularmos na época que o ser humano possuiria 100 mil genes no total, deveríamos ter encontrado
cerca de 1.100 genes no cromossomo 22. Mas a cifra real foi menos que a metade: 545. Ali estava o
primeiro grande indício de que o genoma humano não era tão rico em genes quanto havíamos
suposto.

De repente, o número de genes humanos estava na boca de todos. Durante a conferência sobre o
genoma no laboratório Cold Spring Harbor em maio de 2000, Ewan Birney, que dirigia a análise
computadorizada do seqüenciamento realizada pelo Centro Sanger, organizou um concurso
chamado Genesweep: uma loteria para adivinhar o número total de genes do ser humano, que
conheceríamos quando se completasse o seqüenciamento do genoma em 2003. O vencedor seria
aquele que mais se aproximasse da resposta correta. (O fato de Birney ter se tornado o bookmaker
oficial do Projeto Genoma Humano era esperado: os números sempre foram a sua paixão. Depois de
formar-se em Eton, foi morar um ano na minha casa em Long Island, quando se dedicou à resolução
de problemas quantitativos de biologia — um projeto bem diferente de explorar o Himalaia ou
cuidar de um bar no Rio, duas maneiras mais comuns de um jovem inglês passar o seu gapyear [ano
vago] antes de ingressar na universidade. O trabalho de Birney no laboratório Cold Spring Harbor
resultou na produção de duas importantes monografias antes mesmo de ele pôr os pés em Oxford.)

Birney começou cobrando US$ 1 por aposta, mas o preço de participar da loteria foi aumentando a
cada estimativa publicada (que nos aproximava do número final). Consegui entrar no bolão logo no
começo, apostando USS 1 em
72.415. Minha aposta foi uma tentativa de conciliar a quantidade de genes mencionada nos livros
didáticos — 100 mil — e a aproximação decorrente da nova estimativa — 50 mil —, baseada nos
resultados do cromossomo 22. O número exato ainda não é conhecido no momento em que escrevo,
mas a cada mês minha aposta vai se revelando mais estapafúrdia. Ao que tudo indica, o genoma me
obrigará a dar esse dólar como perdido.

Afora o número de genes, talvez a única outra questão que gerou o mesmo
215
grau de especulação improficua tenha sido saber de quem eram os genes que estávamos
seqüenciando. Essa informação foi, por princípio, mantida confidencial, de modo que não havia
como fazer apostas, mas em nada esmoreceu a curiosidade de muitos. No caso do Projeto Genoma
Humano público, as amostrás de dna seqüenciadas vieram de alguns indivíduos selecionados
aleatóriamente na região de Buffalo, Nova York, a mesma área em que se realizava o trabalho de
processamento — isolar o dna e inseri-lo nos cromossomos bacterianos artificiais para
mapeamento e seqüenciamento. No início, a Celet declarou que o seu material também proviera de
um grupo multicultural de seis doadores anônimos, mas em 2002 Craig Venter não resistiu e
anunciou ao mundo que o principal genoma seqüenciado era o dele. Hoje, porém, essa seqüência é a
única ligação existente entre ele e a empresa. Ainda que o seqüen ciamento fosse sedutor e
fascinante para a imprensa, a Celera decidiu que ele não estava se mostrando viável do ponto de
vista comercial, mandou o seu fundador embora em 2002 e reestruturou-se como um laboratório
farmacêutico. Venter criou dois novos institutos, um para estudar as questões éticas levantadas pela
genética moderna e outro especializado em utilizar os genomas de bactérias para encontrar novas
fontes de energia renovável.

Quando estávamos com o rascunho completo do genoma em mãos, ficou confirmado que não há
nada atípico na densidade gênica do cromossomo 22. Pelo contrário, em relação ao seu tamanho, o
cromossomo 22, como seus 545 genes, é mais rico em genes do que a média. Só 236 genes foram
definitivamente localizados no cromossomo 21, que tem quase o mesmo tamanho. Até o momento,
encontramos um total de apenas 35 mil genes no complemento humano inteiro, com seus 24
cromossomos (22 + x + y). E, embora seja preciso ressaltar que o número final só fará aumentar à
medida que formos fazendo mais descobertas, é praticamente certo que ficará bem abaixo de 50 mil
— e a anos-luz da estimativa anterior de 100 mil genes.

Mas só o tempo poderá dizer em que medida esse número será menor do que o previsto. Encontrar
genes não é uma tarefa tão direta quanto se possa imaginar: as regiões que codificam proteínas são
apenas cadeias de as, ts, gs e cs inseridas no meio de todos os outros as, ts, gs e cs do genoma —
não se destacam de nenhuma maneira óbvia. Além disso, vale lembrar que somente cerca
216

de 2% do genoma humano de fato codifica proteínas; o restante, conhecido desdenhosamente como


junk [lixo], é composto de trechos de comprimento variável muitas deles repetidos e que parecem
sem função Além disso, podemos ncontrar ”lixo” imiscuído nos próprios genes: salpicados de
segmentos que nada codificam (íntrons), os genes podem às vezes estar dispersos em extensões
enormes de dna — as partes efetivamente codificantes seriam como cidades isoladas entre longos
trechos ermos da estrada molecular. O maior gene humano encontrado até o momento, o da
distrofina (cujas mutações causam distrofia muscular), abrange cerca de 2,4 milhões de pares de
bases. Destes, míseros
11.055 (ou 0,5% do gene) codificam a proteína em si; o restante é formado pelos seus 79 íntrons
(um gene humano típico tem oito). É essa estranha arquitetura do genoma que torna tão difícil a
identificação dos genes.

Contudo, encontrar os genes humanos tornou-se menos árduo agora que conhecemos melhor o
genoma do camundongo. Devemos isso à evolução, pois, em suas partes funcionais, o genoma
humano e o do camundongo, como os de qualquer outro mamífero, são notavelmente semelhantes,
tendo divergido pouquíssimo ao longo dos éons desde o ancestral comum das duas espécies. As
regiões de ”dna-Hxo”, por outro lado, constituem a fronteira selvagem da evolução; sem a seleção
natural para manter as mutações sob controle (ao contrário do que acontece nos segmentos
codificantes), mutações sem fim vão se acumulando nessas regiões, nas quais existe hoje uma
considerável divergência genética entre ambas as espécies. Buscar seqüências similares no genoma
humano e no genoma do camundongo é, portanto, uma maneira eficaz de identificar as áreas
funcionais, como os genes.

A identificação dos genes humanos também foi facilitada pela conclusão de um rascunho inicial do
genoma do baiacu. O fugu, como é mais conhecido entre os amantes da culinária japonesa, contém
uma poderosa neurotoxina: um c/te/competente remove os órgãos que contêm o veneno e o jantar
produz no máximo uma pequena dormência na boca. Mas cerca de oitenta pessoas morrem todos os
anos por ingestão de fugu mal preparado; a família imperial japonesa é proibida por lei de apreciar
essa iguaria. Há mais de uma década, Sydney Brenner tornou-se um apreciador do baiacu, pelo
menos como objeto de pesquisa. O genoma desse peixe, cujo tamanho é apenas 1/9 do genoma
humano, contém muito menos lixo que o nosso: cerca de um terço do genoma codifica proteínas.
Sob a direção de Brenner, o rascunho inicial do genoma do fugu foi
217
completado a um custo de US$ 12 milhões, uma pechincha em termos de seqüenciamento
genômico, e verificou-se que o número de genes parece girar entre 32 e 40 mil, a mesma ordem de
grandeza dos genes humanos. Um aspecto interessante, porém, é que, embora os genes do fugu, do
ser humano e do camundongo tenham aproximadamente o mesmo número de íntrons, os íntrons do
fugu tendem a ser muito menores.

Mesmo 35 mil genes, a atual estimativa do genoma humano, dão uma impressão meio exagerada da
nossa complexidade gênica essencial. Ao longo da evolução, certos genes engendraram uma
sucessão de outros genes aparentados, resultando em grupos de genes similares, com funções
apenas sutilmente diferentes. Essas ”famílias gênicas” originam-se por acidente quando, durante a
produção de óvulos ou espermatozóides, um trecho do interior de um cromossomo é
inadvertidamente duplicado e, assim, este acaba possuindo duas cópias de um determinado gene. Se
uma das cópias continuar a funcionar, a outra não será afetada pela seleção natural e permanecerá
livre para divergir em qualquer direção que a evolução quiser. Com isso, as mutações vão se
acumulando e, às vezes, fazem com que o gene adquira uma nova função, quase

1>
Os genes do cromossomo 2 humano: 255 milhões de pares de bases de comprimento.
132133 134 135

sempre intimamente relacionada à do gene original. Na realidade, muitos genes humanos consistem
em ligeiras variações de um grupo relativamente pequeno de temas gênicos. Considere, por
exemplo, que 575 genes humanos (quase 2% do nosso complemento total) são responsáveis por
codificar diferentes formas das enzimas protéicas cinases (mensageiras químicas que transmitem
sinais dentro da célula). Temos também novecentos genes associados à nossa capacidade olfativa:
as proteínas codificadas são receptores olfativos, cada um dos quais reconhece uma molécula ou
classe de moléculas de cheiro diferente. Praticamente os mesmos novecentos genes também estão
presentes no camundongo, mas com uma diferença: o camundongo, que se adaptou a uma
existência mais noctívaga, necessita mais do olfato — e a seleção natural favoreceu-lhe o faro
preservando a maioria dos novecentos genes detectores de odor. No caso humano, por outro lado,
cerca de 60% desses genes acabaram se deteriorando no decorrer da evolução. Presumivelmente, à
medida que fomos nos tornando mais dependentes da visão, precisamos de menos receptores
olfativos; com isso, a seleção natural não interveio quando mutações tornaram muitos de nossos
genes olfativos incapazes de produzir proteínas funcionais. É por esse motivo que somos
farejadores relativamente ineptos em comparação com outras criaturas de sangue quente.

Em que medida o número de genes dos seres humanos é comparável ao de outros organismos?
,W,198 99 oo 01 202 £03 £04 £05 206 £07 208 £09 £10 £11 £12 £13 £14 £15 216 217 218 £19 220 £21 222 £23 224 225 £26 £27 £28 £29 £30 £31 £32 £33 £34 £35 £36 £37 £36 £39 £40 £41 242 243 244 245 246 247 248 249 250 251 252 £53 254 255
218

219
NOME COMUM

NOME DA ESPÉCIE

NÚMERO DE GENES

Homem

Homo sapiens

35 mil

Tipo de mostarda

Arabidopsis thaliana

27 mil

Verme nematóide

Caenorhabditis elegans

20 mil

Mosca-das-frutas

Drosophila melanogaster

14 mil

Levedo

Saccharomyces cerevisiae

6 mil

Bactéria intestinal

Esáieridúa coli

4 mil

Portanto, em termos do complemento gênico, somos apenas fracionariamente mais complexos do


que uma pequenina e obscura erva parente da mostarda. Ainda mais humilhante é a comparação
com o nematóide, uma criatura de apenas 959 células (versus nossos estimados 100 trilhões), das
quais cerca de
302 são células nervosas que compõem o cérebro irrefutavelmente pequenino do verme (o nosso
contém 100 bilhões de células nervosas) — uma diferença de várias ordens de magnitude em
complexidade estrutural. No entanto, nosso complemento gênico não chega a ser duas vezes maior
que o do verme. Como
Ser humano atggtttgatgtcctccagaragtgtctacccagttgaagacaaacctcacgagtgtcacaaagaaccgtgcagatjjÍ camunaongo gtggtttgatgtactcc
gaaagtgtctgcccaattgaagacgaacctaacaagcgtcacaaagaaccgtgcagatmÍ

Ser humano camundongo

Ser humano camundongo

TAAATGGTGCCGTTTGTGGCATGTGAACTCAGGCGTGTCAGTGCTAGAGAGGAAACTGGAGCTGAGACTTTCC-AGGE TGAATGGCAC
TGCAGCTAGAGATGACATGCG-GATATCACTGGGGTGGAAAC-AGAGCTCAGACTTTTCTAGÍ.i:

TTTGCTTGAAGCTTTTAGTTGAAGGCTTACTTATGGATTCTTTCTTTCTTTTTTTCTTTTTTATAGSJATGCTATTCE
GTTGCCAGAAGATTCTAATTGCAA- -CTG TGG T - - TTCTTTCÃCTTTTTCCTATAG2&TGCTATTCA’
-ttctttcactttttcctatagã|atgciattca:a.:

Ser humano tcacattcgtttgtttgaacctcttgttataaaagctttaaaacagtacacgactacaacatgtgtgcagttacag»camundongo


tcacattaggttatttgagcctcttgttataaaagcattgaagcagtacaccacgacaacatctgtacaattgcagMC-
Ser humano AGGTTTTAGATTTGCTGGCGCAGCTGGTTCAGTTACGGGTTAATTACTGTCTTCTGGATTCAGATCAG

camundongo aggttttggatttgctggcacagctggttcagctacgggtcaattactgtctactggattcagaccag

Comparação do DNA de um mesmo gene nos camundongos e nos seres humanos. Inclui um íntron — uma região do gene que nada
codifica (ressaltada por retângulos) — e partes de dois éxons — regiões que codificam a proteína produzida pelo gene. As bases
destacadas são aquelas em que não houve mudança nas duas seqüências no curso da evolução das duas espécies. Um traço indica a
operância de uma base em uma das espécies. A semelhança geral das seqüências do camundongo e do ser humano sugere que a seleção
natural foi extraordinariamente eficaz em eliminar mutações. No íntron, onde as mutações em geral não irrelevantes, encontramos muito
mais divergência do que nos éxons, onde uma alteração pode prejudicar o funcionamento da proteína.

eXplicar essa embaraçosa discrepância? Ora, não é motivo de embaraço: ao que parece, os seres
humanos são simplesmente capazes de realizar mais coisas com seu aparato gênico.

Na realidade, eu até sugeriria que existe uma correlação entre inteligência e baixa contagem gênica.
Minha hipótese é que a inteligência — isto é, a posse de um centro nervoso decente (como o nosso,
ou mesmo como o da mosca-das-frutas) — é que permite um funcionamento complexo com
relativamente poucos genes (se é que a palavra ”poucos” tem algum sentido em relação ao número
35 mil). Nosso cérebro nos confere uma capacidade sensorial e neuromotora muito superior à de um
pequeno verme sem olhos que se move rastejando, e, portanto, uma maior gama de opções de
respostas comportamentais. As plantas, sendo enraizadas, têm ainda menos opções: elas precisam
incorporar um conjunto completo de recursos gênicos para enfrentar as contingências ambientais.
Uma espécie inteligente, por outro lado, é capaz de reagir a uma onda de frio, por exemplo, usando
as células nervosas para buscar condições mais favoráveis (uma caverna quentinha já serve).

A complexidade dos vertebrados também pode ser promovida por alguns sofisticados ”comutadores
gêmeos”, que, em geral, estão localizados próximo aos genes. Agora que completamos o
seqüenciamento do genoma, podemos analisar em detalhes essas regiões que ladeiam os genes e
onde as proteínas reguladoras se ligam ao dna para ativar ou desativar o gene adjacente. Os genes
dos vertebrados parecem ser regidos por um conjunto bem mais sofisticado de mecanismos
comutadores que o de organismos mais simples. É essa ágil e complicada coordenação de genes que
torna possível a complexidade da vida vertebrada. Além disso, um gene pode ainda produzir muitas
proteínas distintas, seja porque os vários éxons se juntam para criar proteínas ligeiramente
diferentes (um processo conhecido como ”splicing alternativo”), seja porque as proteínas sofrem
alterações bioquímicas depois de ser produzidas.

O número inesperadamente baixo de genes humanos provocou diversas especulações editoriais


sobre seu significado, a maioria convergindo para um tema comum. Stephenjay Gould (cuja recente
morte prematura silenciou tragicamente uma voz veemente e passional), num artigo para o New
York Times, celebrou a baixa contagem como o atestado de óbito do reducionismo, a doutrina
subjacente a quase toda investigação biológica, segundo a qual os sistemas complexos são formados
de baixo para cima, por assim dizer. Dito de outra
maneira, se quisermos compreender eventos com níveis complexos de organização, precisamos primeiro
compreendê-los em níveis mais simples e depois juntar essas dinâmicas mais elementares. Em conseqüência,
se compreendermos o funcionamento do genoma, acabaremos compreendendo como os organismos se
formam. Gould e outros interpretaram o número surpreendentemente baixo de genes humanos como prova de
que essa abordagem de baixo para cima não só não vigora como também não é válida. Diante dessa
inesperada simplicidade gênica, argumentaram os anti-reducionistas, o organismo humano é prova viva de
que é impossível chegarmos a uma compreensão de nós mesmos como um somatório de processos menores.
Para eles, a baixa contagem gênica significa que é o ambiente, e não a herança, o principal fator determinante
de quem somos. Trata-se, em suma, de uma declaração de independência da tirania supostamente exercida por
nossos genes.

Como Gould, também estou ciente de que o ambiente desempenha um papel importante na constituição de
cada um de nós. Todavia, sua avaliação do papel da herança está totalmente equivocada: de modo algum a
baixa contagem gênica invalida uma abordagem reducionista dos sistemas biológicos, como também não
justifica a inferência lógica de que não somos determinados por nossos genes. Um óvulo fertilizado contendo
o genoma do chimpanzé continua, inexoravelmente, produzindo um chimpanzé, ao passo que um óvulo
fertilizado contendo o genoma humano produzirá sempre um ser humano. Nenhum grau de exposição a
música clássica ou violência televisiva pode mudar isso. Por certo, temos um longo caminho a percorrer até
entendermos com exatidão como as informações desses dois genomas notavelmente similares acabam
produzindo dois organismos tão diferentes à primeira vista, mas permanece o fato inegável: a maior parte do
que um organismo irá se tornar está inelutavelmente programado em cada célula — no genoma. Na realidade,
vejo a baixa contagem gênica dos seres humanos como uma boa notícia para as abordagens reducionistas da
biologia: é muito mais fácil estudar 35 mil genes do que 100 mil.

Ainda que os homens não tenham um número descomunal de genes, nosso genoma é enorme e caótico, como
ilustra o desordenado gene da distrofina. Retomando a comparação com o verme nematóide, embora não
tenhamos sequer o dobro de genes, nosso genoma é 33 vezes maior. Por que essa discrepância? Os
mapeadores de genes descrevem o genoma humano como um deserto pontilhado ocasionalmente por oásis
gênicos — os genes. Cinqüenta por cento do genoma é constituído de seqüências repetitivas sem nenhuma
função aparente. Dez por cento do nosso dna consiste em 1 milhão de cópias dispersas de uma única
seqüência, conhecida como AluGGCCGGGCGCGGTGGCTCACGCCTGTAATCCCAGCACTTTGG
GAGGCCGAGGCGGGTGGATCACCTGAGGTCAGGAGTTCGAGA
CCAGCCTGGCCAACATGGTGAAACCCCGTCTCTACTAAAAAT
ACAAAAATTAGCCGGGCGTGGTGGCGGGCGCCTGTAATCCCA
GCTACTCGGGAGGCTGAGGCAGGAGAATCGCTTGAACCCGGG
AGGCGGAGGTTGCAGTGAGCCGAGATCGCGCCACTGCACTCC
AGCCTGGGCAACAAGAGCGAAACTCCGTCTCAAAAAAA

Se copiássemos essa seqüência no quadro-negro 1 milhão de vezes, teríamos uma noção da escala da presença
da Alu em nosso dna. Na realidade, o número de seqüências repetitivas é ainda maior do que aparenta, pois
seqüências que teriam sido outrora instantaneamente identificadas como repetições acabaram, ao longo de
inúmeras gerações de mutações, divergindo e se tornando elementos irreconhecíveis de uma determinada
classe de dna repetitivo. Imagine um grupo de três repetições curtas: attg attg attg. Com o tempo, mutações
irão modificá-las, mas, se esse tempo não for muito longo, ainda conseguimos enxergar a sua proveniência:
actg atgg gttg. Num período mais extenso, porém, a sua identidade original se perde completamente no
tumulto das mutações: acct cggg gtcg. A proporção de dna repetitivo é muito menor em outras espécies: 11%
do genoma da Arabidopsis thaliana, 7% do genoma do verme nematóide e apenas 3% do da mosca-das-
frutas. O tamanho do nosso genoma se deve sobretudo ao fato de conter mais ”lixo” que o da maioria das
outras espécies.

As diferenças na quantidade de ”dna-lixo” explicam um antigo paradoxo da eVolução. Seria de esperar que
organismos mais complexos tivessem genomas Maiores, pois precisam codificar mais informações do que
organismos simples. £, de fato, existe uma correlação entre o tamanho do genoma e o grau de complexidade
de um organismo: o genoma da levedura é maior que o da E. coli mas menor que o nosso. Trata-se, porém, de
uma correlação bastante frágil.
223
TAMANHO APROXIMADO DO GENOMA (EM MILHÕES)
NOME COMUM

NOME DA ESPÉCIE

PARES DE BASES

Mosca-das-frutas

Drosophüa melanogaster

180

Fugu (baiacu)

Fugu rubripes

400

Jibóia

Boa constrictor

2.100

Homem

Homo sapiens

3.100

Gafanhoto
Schistocerca gregaria

9.300

Cebola

Allium cepa

18.000

Salamandra

Amphiuma means

84.000

Peixe pulmonado

Protopterus aethiopicus

140.000

Samambaia

Ophioglossum petiolatum

160.000
Ameba

Amoeba dúbia

670.000

É razoável supor que a seleção natural atue de maneira a manter o tama-; nho do genoma o menor
possível. Afinal, cada vez que uma célula se divide,, precisa replicar todo o seu dna: quanto mais
dna tiver de copiar, maior a mar-1 gem de erro e maior a energia e o tempo exigidos pelo processo.
Essa é uma tarefa e tanto para uma ameba (ou salamandra, ou peixe pulmonado). Então, o ; que
poderia ter exacerbado a quantidade de dna dessas espécies? Em casos de : genoma descomunal, só
podemos inferir que alguma outra força seletiva deve
Cebolas nas alturas: o genoma de cada uma delas é seis vezes maior que o de vendedor que

as carrega na cabeça. . ;
224

Barbara McClintock, descobridora dos elementos gênicos móveis (transposons).

ter anulado o impulso igualmente seletivo de manter o genoma esguio. Genomas grandes, por
exemplo, talvez sejam uma vantagem para espécies expostas a extremos ambientais. Os peixes
pulmonados vivem no limiar entre a terra e a água, e são capazes de sobreviver a prolongadas
estiagens enterrando-se na lama; é possível, pois, que precisem de um maior aparato gênico do que
uma espécie adaptada a um único ambiente.

Dois grandes mecanismos evolutivos explicam o excesso de dna: a duplicação do genoma e a


proliferação de seqüências específicas em um genoma. Muitas espécies, sobretudo do reino vegetal,
são produto do cruzamento de duas outras espécies preexistentes. Muitas vezes, a nova espécie
simplesmente combina o complemento de dna de cada uma das espécies-mãe, produzindo um
genoma duplo. Ou, alternativamente, por meio de algum tipo de acidente genético, o genoma pode
ser duplicado sem insumo de nenhuma outra espécie. Por exemplo, um dos organismos favoritos da
biologia molecular, o levedo, possui cerca de 6 mil genes. Contudo, um exame mais atento revela
que uma grande proporção desses genes são duplicações — o fermento biológico costuma ter duas
cópias divergentes de muitos genes. Em algum ponto primordial da sua história evolutiva, o genoma
do levedo deve ter se duplicado. No início, talvez as cópias do gene fossem idênticas, mas, com o
tempo, acabaram divergindo.

Uma fonte ainda mais rica de dna excedente decorre da multiplicação de seqüências gênicas
capazes de se replicar e inserir em mais de um local de um dado genoma. Verificou-se que existe
uma grande variedade de tais ”elementos móveis” [também conhecidos como ”elementos
transponíveis” ou transposons].
225
Contudo, quando a sua descoberta foi anunciada por Barbara McClintock em
1950, a idéia de genes ”saltitantes” era delirante demais para a maioria dos cientistas, acostumados
com a lógica simples de Mendel. A carreira de McClintock, uma excepcional geneticista
especializada em milho, já fora cheia de percalços. Em 1941, quando ficou claro que não seria
efetivada na Universidade de Missouri, ela juntou-se ao laboratório Cold Spring Harbor, onde
permaneceria em plena atividade até sua morte em 1992, aos noventa anos de idade. Em certa
ocasião, comentou com um colega: ”Devemos confiar plenamente naquilo que vemos”, e era
exatamente assim que ela fazia ciência. A sua idéia revolucionária de que alguns elementos gênicos
podem se mover pelo genoma decorreu de simples fatos observados. Ela vinha estudando a genética
do desenvolvimento de grãos de milho de cores diferentes e notou que, às vezes, no meio do
desenvolvimento de um grão, sua cor mudava. Um único grão podia tornar-se multicolorido, com
trechos de células amarelas (conforme o esperado) e trechos de células roxas. Como explicar essa
súbita alteração? McClintock inferiu que um elemento gênico — um elemento móvel — havia
entrado ou saído do gene pigmentário.

Somente com o advento das tecnologias de dna recombinante é que


pequeno cromossomo humano (número 20)

centrômero

telômero

66 milhões de pares de bases


747 genes

gene

região que codifica a proteína

DNA repetitivo

seqüências únicas

seqüências repetidas

genes outros

codificantes

de proteínas | 1,5%

-1% do DNA cromossômico

íntrons

elementos móveis outras repetições

0 10 20 30 40 50 % do genoma

O aspecto do nosso genoma: as principais características áe um pequeno cromossomo humano, o nw

220

pudemos avaliar a trivialidade da presença dos transposons e hoje os reconhecemos como um dos
principais componentes de diversos genomas, talvez da maioria, entre os quais o nosso. Alguns dos
elementos transponíveis mais comuns, aque,gS que aparecem repetidamente em diferentes pontos
do mesmo genoma, receberam nomes que refletem seu estilo de vida itinerante: dois transposons da
mosca-das-frutas, por exemplo, foram designados gypsy [cigano] e hobo [errantej. E, entre os
estudiosos de uma pequenina alga chamada vólvox, um elemento transponível foi batizado em
homenagem à sua extraordinária capacidade de saltar por todo o genoma: é conhecido como
”Michael Jordan”.
Os transposons contêm seqüências de dna que codificam enzimas que, graças à sua capacidade de
recortar-e-colar dna cromossômico, asseguram que cópias de seu elemento particular sejam
inseridas em novos sítios cromossômicos. Se um salto levar um transposon a uma nova seqüência-
lixo, o funcionamento do organismo não será afetado e o único resultado será mais dna-lixo. No
entanto, se o salto levar o transposon a um gene vital, comprometendo assim sua função, a seleção
natural intervirá: o organismo morrerá ou será de alguma forma impedido de transmitir adiante o
gene que ”pulou” para dentro. Muito raramente, as movimentações dos transposons criam novos
genes ou alteram genes antigos de uma maneira que beneficie o organismo hospedeiro. Portanto, ao
longo da evolução, o efeito dos transposons parece ter sido basicamente a geração de novidade.
Curiosamente, na história humana recente, há poucos indícios de saltos ativos: ao que parece, a
maior parte do nosso dna-Lixo foi gerada há muito tempo. Em contraste, o genoma do camundongo
contém muitos elementos transponíveis que continuam se reinserindo ativamente em novos sítios,
tornando o genoma do roedor muito mais dinâmico. Mas isso não parece afetar de modo negativo a
espécie: o potencial reprodutivo intrinsecamente alto dos camundongos parece ajudar a espécie
como um todo a tolerar os desastres genéticos decorrentes de saltos freqüentes em regiões gênicas
de funcionamento vital.

A E. coli, tendo sido usada para estabelecer grande parte das noções fundamentais acerca do
funcionamento do dna, possui um currículo inigualável de organismo-modelo. Logo, nada mais
natural que a presença de seu genoma na lista das prioridades iniciais do Projeto Genoma Humano.
Fred Blattner, da
227
universidade de Wisconsin, era um dos mais ansiosos para iniciar o seqüenciamento. Mas seus
pedidos de financiamento deram em nada, até que o Projeto Genoma Humano fosse dotado de um
orçamento e ele recebesse uma das primeiras dotações substanciais para seqüenciamento. Não fora
sua relutância em adotar o seqüenciamento automatizado, seu laboratório teria sido o primeiro a
sequenciar um genoma bacteriano completo. Mas, em 1991, a estratégia que usou para incrementar
as operações — contratar mais universitários —já era antiquada. Outro a adotar a automação
tardiamente foi Wally Gilbert. Dois anos antes, eu insistira que ele se incumbisse do menor genoma
bacteriano conhecido, o das parasitárias micoplasm&s — minúsculas bactérias que vivem dentro
das células. Infelizmente, quando uma nova e inteligente estratégia de seqüenciamento manual que
ele idealizara malogrou, seu projeto com as micoplasmas também foi por água abaixo. Blettner;
porém, chegou a adotar a automação a tempo de determinar, em 1997, que o genoma da E. coli
possui cerca de 4.100 genes.

A grande corrida para concluir o primeiro genoma bacteriano havia sido ganha dois anos antes pelo
tigr, com uma grande equipe chefiada por Hamilton Smith, Craig Vente e sua esposa, Claire Fraser.
A bactéria seqüenciada foi a Haemophilus influenzae, da qual, vinte anos antes, Smith — um
enorme matemático de 2 metros de altura que decidira estudar medicina — isolara as primeiras
enzimas úteis para clivar o Dna (enzimas de restrição), um feito que lhe proporcionou o prêmio
NobeJl de fisiologia/medicina em 1978. Usando o dna da Haemophilus preparado poi> Smith,
Venter e Fraser fizeram uma abordagem shotgun para sequenciar o 1,8 imílhão de pares de bases. E
pudemos ter uma idéia do gigantismo da tarefa de sequenciar genomas maiores: se todos os As, Ts,
Gs e Cs do genoma da Haet Qp i fossem impressos em papel do tamanho deste livro, o volume
teria sido cerca de 4 mil páginas. Em média, seriam necessárias duas páginas para cada um dos
seus 1.727 genes, dos quais apenas 55% possuem funções facilmente identificáveis pOr exemplo, a
produção de energia envolve no mínimo 112 genes, enquanto a replicação, o reparo e a
recombinação do dna exigem um mínimo de 87 Podemos afirmar, a partir das seqüências obtidas,
que os 45% restantes representam genes funcionais, mas nesse estágio ainda não temos certeza do
que eles fazem.

De acordo com parâmetros bacterianos, o genoma da Haemophilus é bastante pequeno. O tamanho


de um genoma bacteriano está relacionado com a diversidade de ambientes que a espécie poderá
encontrar. Uma espécie com
228

uma vida monótona em um único ambiente — digamos, o intestino de outra criatura — pode muito
bem levar a vida adiante com um genoma relativamente pequeno. Mas uma espécie que queira
desbravar o mundo e que, portanto, irá encontrar as mais variadas condições precisa estar equipada
para reagir à altura — e tal flexibilidade geralmente depende de ela possuir conjuntos alternativos
de genes, cada um adequado a condições específicas e sempre pronto para ser ativado quando
necessário.

A Pseudomonas aeruginosa, uma bactéria que pode provocar infecções em seres humanos (e que
representa uma ameaça especial às vítimas de fibrose cística), habita muitos ambientes diferentes.
Vimos no capítulo 5 como uma forma geneticamente alterada de uma espécie aparentada tornou-se
o primeiro organismo vivo a ser patenteado; naquele caso, o organismo fora adaptado para viver em
manchas de petróleo, um ambiente bastante diferente do pulmão humano. O genoma da
Pseudomonas aeruginosa contém cerca de 6,4 milhões de pares de bases e 5.570 genes. Cerca de
7% desses genes codificam fatores de transcrição (proteínas que ativam e desativam genes) e,
portanto, uma proporção respeitável do seu complemento gênico é dedicada à regulação. O
”repressor” da E. coli, cuja existência foi prevista por Jacques Monod e François Jacob no início da
década de 1960 (veja capítulo 3), é um desses fatores de transcrição. Poderíamos adotar a seguinte
regra prática: quanto maior a variedade de ambientes que uma espécie bacteriana pode encontrar,
maior será o seu genoma e maior a proporção do genoma dedicada a ativar e desativar genes.

O tigr não parou na Haemophilus. Em 1995, em colaboração com Clyde Hutchinson, da


Universidade da Carolina do Norte, o instituto seqüenciou o genoma da Mycoplasma genitalium,
como parte do que foi apelidado de ”projeto genoma mínimo”. A M. genitalium (que, a despeito do
nome sinistro, é uma habitante benigna do trato geniturinário humano) possui o menor genoma não-
viral conhecido: cerca de 580 mil pares de bases. (Os vírus têm genomas menores mas, por se
apropriarem dos genomas de seus hospedeiros, conseguem se safar sem o equipamento gênico
necessário para muitos processos fundamentais.) Verificouse que essa seqüência relativamente curta
continha 517 genes e, com isso, surgiu naturalmente uma pergunta: seria esse o complemento
gênico mínimo capaz de conter vida? Pesquisas subseqüentes tornaram inoperantes um a um os
genes da M. genitalium para verificar quais eram ou não absolutamente vitais. No momento, parece
que o genoma mínimo contém não mais que 350 e, talvez, algo em
229
Um genoma completo. O mapa genético da Haemophilus influenzae: 1.727genes em 1,8 milhão de pares de bases.
Smal i

Sma I 11 Not I
1800000 / Smal I W

100000 I Rsr II I Sma I

1600000

Sma Sma]

200000 I Smal

?L Smal
«bj ,Smal
Sma I
1200000

1100000

Smal

900000

Sma I I Sma I

800000

torno de 260 genes. Admito que essa é uma definição um tanto artificiosa de ”mínimo”, pois os
debilitados microorganismos recebem do meio em que são cultivados todas as substâncias de que
poderiam concebivelmente precisar. É mais ou menos como afirmar que os rins não são necessários
à vida porque um paciente pode sobreviver usando máquinas de diálise.

Será que um dia conseguiremos construir a partir do zero uma célula funcional mínima,
combinando artificialmente os componentes distintos purificados? Se considerarmos que a
Mycoplasma genitalium possui mais de cem proteínas cujas funções permanecem um mistério, a
meta de criar uma célula viva parece ainda muito distante. Mesmo as quinhentas proteínas da
Mycoplasma — algumas representadas na célula por um número enorme de moléculas, outras por
um mero punhado — constituem um sistema vivo extraordinariamente complexo. Eu, por exemplo,
tenho dificuldade em acompanhar um filme como Assassinato em Gosford Park [de Robert
Altman], em que há mais de quatro ou cinco personagens principais, de modo que a idéia de
delinear toda a complexidade de interações entre os muitos protagonistas vitais presentes no interior
de uma célula viva não deixa de ser esmagadora. Uma célula viva não é uma bem-
230

ordenada máquina em miniatura; como bem explicou Sydney Brenner, é mais como ”um fosso
cheio de moléculas retorcendo-se como serpentes”. Não obstante, Craig Venter está convicto de que
a era das células artificiais é iminente e não perdeu tempo em montar uma equipe de bioeticistas
para aconselhá-lo a seguir adiante ou não. Como eu, eles não vêem nenhum dilema moral em tentar
”criar vida” dessa maneira. Se tal proeza for um dia possível, não faria mais do que reafirmar o que
a maioria dos estudiosos de biologia molecular já sabe há muito tempo: que a essência da vida é
uma complexa questão de química, nada mais. Essa constatação provocaria manchetes polêmicas
um século atrás; hoje é o senso comum. Somente a conclusão oposta — de que existem mais coisas
na vida da célula do que a soma de seus componentes e processos — poderia gerar grande comoção
no mundo científico contemporâneo.

A análise do dna já modificou a face da microbiologia. Antes que técnicas de dna fossem
largamente utilizadas, os métodos para identificar espécies bacterianas tinham um poder de
resolução bastante limitado: podíamos observar a forma das colônias que cresciam num prato de
laboratório, examinar o formato de cada célula sob o microscópio ou recorrer a análises
bioquímicas relativamente toscas como o método de Gram, pelo qual as espécies são classificadas
como ”negativas” ou ”positivas” dependendo das características da parede celular. Com o
seqüenciamento do dna, os microbiologistas passaram subitamente a dispor de um fator de
identificação perceptível e definitivamente diferente em cada espécie. Mesmo espécies que não
podem ser cultivadas em laboratório (pela dificuldade de reproduzir suas condições naturais de
crescimento, como no caso das criaturas que habitam o fundo do oceano) se prestam à análise do
dna, desde que uma amostra possa ser coletada das profundezas.

O tigr, atualmente dirigido por Claire Fraser, continua sendo o líder da genômica bacteriana. Eles
rapidamente concluíram os genomas de mais de vinte bactérias diferentes, incluindo Heliobacter
(que provoca úlceras), Vibrio (que causa cólera), Neisseria (que ocasiona meningite) e Chlamyãia
(que induz um tipo de doença respiratória). Seu maior concorrente é um grupo do Centro Sanger. O
contingente britânico é dirigido por Bart Barrell, que teve a sorte de não viver nos Estados Unidos,
onde suas credenciais acadêmicas limitadas o teriam impedido de assumir um cargo de liderança.
Barrell não possui
231
doutorado,
pois começou a fazer ciência tão logo se formou no colégio e foi trabalhar como assistente
de Fred Sanger, muito antes de o seqüenciamento do dna se tornar realidade. Especialista em
bactérias, ele ja fizera nome como um dos pioneiros da automação, usando diversas máquinas de
seqüenciamento da abi para seqüenciar cerca de 40% dos 14 milhões de pares de bases do genoma
do levedo, enquanto o consórcio formado para realizar esse seqüenciamento (abrangendo
principalmente instituições européias) permanecia preso aos métodos manuais. Mais tarde, o grupo
de Barrell teve a satisfação de ser o primeiro a completar o seqüenciamento da Mycobacterium
tuberculosis, o agente da terrível calamidade conhecida outrora como consumpção.

No colégio, Claire Fraser sentia-se ”marginalizada, pois não viam com bons olhos uma mulher que
freqüentava tantos cursos de ciência”. Depois de formar-se no Instituto Politécnico Rensselaer, onde
começou a se interessar por micróbios, quis ingressar numa faculdade de medicina. Mas, em vez de
aceitar uma vaga na prestigiosa Yale, optou pela faculdade da suny [State University of New York],
em Buffalo, porque seu namorado estava se mudando para Toronto. O diretor de matrículas de Yale
ficou pasmo: ”Bem, minha jovem, espero que saiba o que está fazendo”. O elo com Toronto se
revelaria efêmero e, em
1981, Fraser casou-se com Venter, que na época era um jovem professor-adjunto da suny. ”Fomos
para um congresso científico em nossa lua-de-mel”, recorda ela, ”onde redigimos um pedido de
bolsa.”

A análise de micróbios por dna é um processo poderoso e tem sido utilizado com grande sucesso no
diagnóstico médico: para recomendar um bom tratamento contra uma infecção, o médico precisa
antes identificar o micróbio causador. Tradicionalmente, tal identificação exigia o cultivo de
bactérias do tecido infeccionado, um processo que pode ser irritantemente lento, ainda mais quando
o fator tempo é fundamental. Usando testes de dna — mais rápidos, mais simples e mais precisos —
para identificar o micróbio, o tratamento adequado pode ser iniciado muito mais cedo. No final de
2001, a mesma tecnologia foi utilizada durante uma grave emergência nacional: a busca do
perpetrador dos ataques com antraz nos Estados Unidos. Os investigadores do tigR seqüenciaram a
bactéria de antraz da primeira vítima e obtiveram uma ”impressão digital” genética da cepa
utilizada. A esperança é que essa informação pre” cisa sobre a fonte do antraz possa levar à captura
do culpado.

À medida que aprendemos mais sobre os genomas microbianos,


232

Claire Fraser, guia do TIGR pela selva genômica.

começamos a vislumbrar um padrão notável. A evolução dos vertebrados é uma história de


economia gênica progressiva: graças a uma variedade crescente de mecanismos reguladores dos
genes, tornou-se possível fazer cada vez mais com os mesmos genes. (Os novos genes que surgem
tendem a ser meras variações de um tema genético existente.) A evolução das bactérias, por outro
lado, vem se mostrando uma saga de transformações bem mais radicais, um processo atordoante
que favorece a importação ou geração de genes inteiramente novos, não o rearranjo daquilo que já
existe.

De fato, a tecnologia da recombinação deve sua existência à extraordinária capacidade das bactérias
de incorporar novos pedaços de dna (geralmente plasmídeos). Não chega a surpreender, portanto,
que a evolução microbiana também traga a marca de episódios dramáticos de importação de genes
no passado. A E. coli, uma habitante quase sempre inofensiva do nosso intestino (e dos pratos de
laboratório), transformou-se numa variante assassina graças à importação de genes. As toxinas
produzidas por uma cepa que periodicamente provoca surtos de envenenamento alimentar (21
pessoas! chegaram a morrer na Escócia em 1996-97) e manchetes sobre ”Hambúrguerés assassinos”
podem ser atribuídas a ”empréstimos” gênicos maciços tomados de outras espécies.

Em geral, o material genético se move verticalmente numa linhagem — de antepassado a


descendente —, de modo que a importação de dna externo é conhecida como ”transferência
horizontal”. Uma comparação entre a seqüência genômica da E. coli normal e a da cepa patogênica
revelou que ambas comPartilham um ”esqueleto” genético que as identifica como membros de uma
233
mesma espécie, embora o patógeno possua muitas ”ilhas” de dna divergente. No total, estão
ausentes do patógeno 528 genes encontrados na cepa normal e, o que é ainda mais alucinante,
existem 1.387 genes no patógeno que não estão presentes na cepa normal. Nessa permuta de 528
por 1.387 está a chave da transformação de um dos produtos mais inócuos da natureza em um
agente letal.

Outros facínoras bacterianos também trazem indícios de transferências horizontais em larga escala.
O Vibrio cholerae, o agente da cólera, é um caso raro entre as bactérias por possuir dois
cromossomos distintos. Um deles, o maior, tem cerca de 3 milhões de pares de bases, parece ser o
equipamento original do micróbio e contém a maioria dos genes essenciais ao funcionamento da
célula; o outro, menor, com cerca de 1 milhão de pares de bases, apresenta-se como um mosaico de
pedaços de dna importados de outras espécies.

Organismos complexos, sobretudo os de maior porte como os seres humanos, são, por concepção,
guardiões relativamente inabaláveis de sua própria bioquímica interna: na maioria dos casos, desde
que não ingiramos ou inalemos uma substância, ela não pode nos afetar profundamente. Com isso, e
com o tempo, os processos bioquímicos de todos os vertebrados tenderam a permanecer bastante
similares. As bactérias, por outro lado, são muito mais suscetíveis aos caprichos químicos do meio
ambiente: uma colônia pode subitamente se ver imersa em algum produto químico nocivo — um
desinfetante, digamos, como água sanitária. Portanto, não chega a surpreender que esses organismos
extremamente vulneráveis tenham desenvolvido uma variedade gigantesca de relações químicas. Na
verdade, a evolução das bactérias foi movida por inovações químicas, ou seja, pela invenção de
novas enzimas (ou a remodelação de velhas enzimas) para a realização de novos malabarismos
químicos. Um dos exemplos mais fascinantes e instrutivos desse mecanismo evolutivo ocorre entre
certas bactérias cujos segredos só há pouco começamos a desvendar: um grupo conhecido
coletivamente como ”extremófilos” por causa da predileção de seus membros pelos mais inóspitos
ambientes.

Foram encontradas bactérias nas termas do parque Yellowstone (a Pyrococcusfurious se desenvolve


em água fervente e morre congelada em temperaturas abaixo de 70 °C) e nas águas superaquecidas
próximas a vulcões submarinos (onde a alta pressão impede a água de ferver). Outras foram
encontradas em ambientes tão ácidos quanto o ácido sulfúrico concentrado e em ambientes
alcalinos igualmente extremos. A Thermophüa acidophüum é um extremófilo
234

bastante versátil, capaz de suportar, como seu nome indica, temperaturas elevadas e pH baixo.
Algumas espécies foram descobertas em rochas associadas a depósitos petrolíferos, convertendo
óleo natural e outros materiais orgânicos em fontes de energia celular — mais ou menos como se
fossem sofisticados e rninúsculos automóveis. Uma dessas espécies habita rochas a quase 2
quilômetros de profundidade, morre na presença de oxigênio e foi apropriadamente batizada de
Bacillus infernus.

Os micróbios mais extraordinários descobertos nos últimos anos talvez sejam aqueles que
subvertem o que era outrora considerado o dogma principal da biologia, a saber, que toda a energia
para processos vivos provém, em última análise, do Sol. Se, mesmo no caso do Bacillus infernus e
das bactérias devoradoras de petróleo encontradas em rochas sedimentares, existe uma ligação a um
passado orgânico — o Sol brilhou éons atrás sobre as plantas e animais cujos restos são hoje os
nossos combustíveis fósseis —, os chamados litoautótrofos, por sua vez, são capazes de extrair
nutrientes de rochas criadas por vulcões, sem interferência solar. Essas rochas — o granito é um
exemplo — não trazem o menor vestígio de material orgânico ou de qualquer tipo de energia de
dias préhistóricos ensolarados. Os litoautótrofos precisam construir suas próprias moléculas
orgânicas a partir de material inorgânico. Eles se alimentam, literalmente, de pedras.

Não há indicador mais claro da nossa ignorância geral do universo microbiano do que a serôdia
descoberta do gênero bacteriano Prochlorococcus, cujas células planctônicas realizam fotossíntese
flutuando em alto-mar. É possível que haja 200 mil desses microorganismos em cada mililitro de
água marinha, tornando-os talvez a espécie mais abundante do planeta. No mínimo, são
responsáveis por uma enorme parcela da contribuição dos oceanos à cadeia alimentar. E, no entanto,
o Prochlorococcus era desconhecido para nós até 1988.

O extraordinário universo microbiano à nossa volta reflete o poder colossal de éons de seleção
natural. Na realidade, na história da vida em nosso planeta, os protagonistas são as bactérias;
organismos mais complexos, entre os quais nos incluímos, são aparições embaraçosamente tardias
— uma espécie de adendo. A vida parece ter se originado sob a forma de bactérias há cerca de 3,5
bilhões de anos. Os primeiros eucariotos — células cujos genes estão envoltos no núcleo —
surgiram quase 800 milhões de anos depois, mas permaneceram unicelulares por mais 1 bilhão de
anos. O ponto de ruptura que acabaria
235
permitindoo surgimento de criaturas como minhocas, moscas-das-frutas e Homo sapiens só ocorreu
cerca de meio bilhão de anos atrás. A predominância das bactérias reflete-se na reconstrução da
árvore da vida a partir do dna realizada por Carl Woese, da Universidade de Illinois: a árvore da
vida é basicamente uma árvore bacteriana, com alguns seres multicelulares que se formam num
galho extemporâneo. Hoje aceitas por quase todos, as idéias de Woese já enfrentaram feroz
oposição dos biólogos. Mesmo assim, algumas implicações da sua árvore baseada em dna são
difíceis de engolir: ela mostra, por exemplo, que, ao contrário do que se supunha outrora, os animais
não têm parentesco muito íntimo com as plantas; pelo contrário, nossos parentes mais próximos são
os fungos. Os seres humanos e os cogumelos provêm da mesma raiz evolutiva.

O Projeto Genoma Humano provou que Darwin estava mais certo do que o próprio Darwin teria
ousado sonhar. As semelhanças moleculares provêm, em última análise, do modo como todos os
organismos estão relacionados em decorrência da sua ancestralidade comum. Uma ”invenção”
evolutiva bemsucedida (uma mutação ou série de mutações favorecida pela seleção natural) é
transmitida de uma geração à seguinte. A medida que a árvore da vida se diversifica — ou seja, à
medida que as linhagens existentes se dividem para produzir novas linhagens (os répteis persistem
como tal, mas também se ramificam nas linhagens aviaria e mamífera) —, invenções podem surgir
numa enorme gama de espécies descendentes. Por exemplo, cerca de 46% das proteínas
encontradas na levedura também estão presentes nos seres humanos. É provável que a linhagem
fúngica (da levedura) e aquela que acabou dando origem ao homem tenham se separado há cerca de
1 bilhão de anos. Desde então, ambas se desenvolveram independentemente, livres para seguir sua
própria trajetória evolutiva, de modo que, para todos os efeitos, houve 1 bilhão de anos de atividade
evolutiva desde o ancestral comum das leveduras e do homem. No entanto, durante todo esse
tempo, o conjunto de proteínas presentes no ancestral comum sofreu alterações mínimas. Depois
que soluciona um determinado problema — por exemplo, uma enzima que catalise certa reação
bioquímica —, a evolução tende a se ater a essa solução. Vimos como esse tipo de inércia evolutiva
explica o papel central do rna nos processos celulares: a vida teve início num ”mundo feito de rna”
cujo legado permanece conosco até hoje. A inércia está presente
236

até em detalhes bioquímicos: 43% das proteínas dos vermes, 61% das proteínas da mosca-das-frutas
e 75% das proteínas do fugu têm seqüências nitidamente semelhantes às das proteínas humanas.

A comparação de genomas também revelou como as proteínas evoluem. Via de regra, as moléculas
de proteínas podem ser vistas como coleções de domínios distintos — ou seja, trechos de cadeias de
aminoácidos que têm uma função especial ou que formam uma determinada estrutura
tridimensional — e a evolução parece agir embaralhando esses domínios para criar novas
permutações. Presume-se que a maioria das novas permutações seja tão inútil quanto aleatória,
fadada a ser eliminada pela seleção natural. Mas, nos raros casos em que uma nova permutação se
mostra vantajosa, nasce uma nova proteína. Cerca de 90% dos domínios identificados em proteínas
humanas também estão presentes nas proteínas da mosca-das-frutas e dos vermes. Portanto, para
todos os efeitos, mesmo uma proteína exclusivamente humana tenderá a ser nada mais do que uma
versão reembaralhada de uma outra encontrada na Drosophila.

Não há melhor demonstração dessa similaridade bioquímica fundamental entre organismos do que
os chamados ”experimentos de resgate”, que eliminam determinada proteína de uma espécie e
recorrem à proteína correspondente de outra espécie para ”resgatar” a função ausente. Já vimos essa
estratégia sendo implementada no caso da insulina: como as insulinas humana e bovina são bastante
similares, diabéticos que não conseguem produzir sua própria insulina podem receber a bovina
como substituto.
Há também exemplos que lembram o roteiro de um filme B de ficção científica: pesquisadores
conseguiram induzir moscas-das-frutas a desenvolver olhos nas patas, manipulando certo gene que
especifica onde o olho deve nascer. Esse gene, por sua vez, induziu os vários outros genes
envolvidos na produção de um olho completo a atuar no ponto designado. O gene correspondente
do camundongo é tão similar ao da mosca-das-frutas que consegue realizar a mesma função se,
graças a uma prestidigitação do engenheiro genético, for inserido numa mosca-das-frutas cujo gene
original foi eliminado. O simples fato de isso ser possível é extraordinário. As moscas-das-frutas e
os camundongos estão separados pela evolução há pelo menos meio bilhão de anos; logo, seguindo
a mesma lógica aplicada à evolução independente dos seres humanos e da levedura, esse gene foi
conservado ao longo de 1 bilhão de anos de evolução. A proeza é ainda mais assombrosa quando
consideramos
237
que o olho da mosca-das-frutas e o do camundongo têm estrutura e sistema óptico
fundamentalmente diferentes. Presume-se que cada linhagem tenha aperfeiçoado um olho adequado
a seus respectivos propósitos, mas o mecanismo básico para determinar a localização desse olho,
por não precisar ser aperfeiçoado, permaneceu o mesmo.

Até o momento, o aspecto do Projeto Genoma Humano que mais pôs à prova nossa humildade foi
termos percebido como sabemos pouco sobre as funções da vasta maioria dos genes humanos. Se
quisermos usar com propriedade as informações obtidas com tanto esforço, precisamos idealizar
métodos para estudar as funções dos genes numa escala genômica.

Como conseqüência do Projeto Genoma Humano, surgiram dois novos campos pós-genômicos,
ambos carregando o fardo de nomes pouco imaginativos que incorporam o ”ômica” de seu
progenitor: a proteômica e a transcriptômica. Proteômica é o estudo das proteínas codificadas pelos
genes. A transcriptômica dedica-se a determinar onde e quando os genes se expressam — isto é,
quais genes são ativos na transcrição de determinada célula. Se tivermos a pretensão de um dia
compreender o genoma em toda a sua dinâmica realidade — ou seja, não como um mero conjunto
de instruções para a ”montagem” da vida, mas como o roteiro do ”filme” da vida, cujo enredo
dramático se desenrola numa ordem rigorosa —, então a proteômica e a transcriptômica fornecem a
chave para vislumbrarmos esses eventos ao vivo. Quanto mais aprendermos, melhor entenderemos
Vida — O Filme.
Já sabemos há bastante tempo que, em termos biológicos, uma proteína é muito mais do que a
cadeia linear de aminoácidos que a constituem. O modo como essa cadeia se dobra e redobra para
produzir a configuração tridimensional característica é, na verdade, a chave da sua função — aquilo
que a proteômica almeja conhecer. A análise estrutural ainda é feita usando a difração de raios X: a
molécula é bombardeada com raios x, que rebatem em seus átomos e se dispersam num padrão do
qual o formato tridimensional pode ser inferido. Em 1962, meus ex-colegas no laboratório
Cavendish, em Cambridge, John Kendrew e Max Perutz, receberam o prêmio Nobel de química por
elucidarem, respectivamente, a estrutura da mioglobina (que armazena oxigênio nos músculos) e da
hemoglobina (que transporta oxigênio no fluxo sangüíneo). Foi um
238

Proteômica: a estrutura tridimensional da proteína BCR-ABL, que provoca câncer. A fusão de dois genes causada por uma anomalia
cromossômica leva à produção dessa proteína, que estimula a proliferação celular e pode provocar uma forma de leucemia. Em roxo, a
pequena molécula de uma droga, Gleevec, que inibe o funcionamento da BCRABL (veja capítulo 5). É com informações tridimensionais
como estas que, no futuro, se criarão drogas capazes de visar proteínas específicas. Esta representação da estrutura da BCR-ABL não
mostra detalhes como átomos ou aminoácidos

individuais, mas é um retrato bastante preciso da proteína.

empreendimento monumental. A complexidade das imagens obtidas com a difração de raios x que
eles tiveram de interpretar tornou-me saudoso da relativa simplicidade do dna!

Desvendar a estrutura tridimensional de uma proteína ajuda muito o trabalho dos químicos médicos
que buscam novas drogas, muitas das quais inibem a atuação de certas proteínas. No mundo cada
vez mais especializado e automatizado das pesquisas farmacêuticas, há hoje diversas empresas
oferecendo serviços para determinar a estrutura das proteínas, como se estas fossem commodities de
uma linha de produção. O trabalho hoje em dia é também incomensuravelmente mais fácil do que
na época de Perutz e Kendrew: com fontes mais poderosas de raios x, gravação automatizada de
dados e computadores mais rápidos com software cada vez mais inteligente, o tempo necessário
para elucidar uma estrutura reduziu-se de vários anos para algumas semanas.

Entretanto, muitas vezes a estrutura tridimensional em si não oferece nenhuma indicação especial
da função de uma proteína. Nesses casos, podemos obter indícios importantes estudando como a
proteína desconhecida interage com outras já conhecidas. Uma maneira simples de identificar tais
interações é espalhar amostras de um conjunto de proteínas conhecidas numa lâmina de
microscópio e espargi-las com a proteína desconhecida, tratada previamente para que fique
fluorescente sob luz ultravioleta. Quando a proteína investigada ”gruda” num determinado ponto
dessa grade de proteínas, ela se liga à proteína presente nesse local, fazendo com que esta também
passe a fluorescer.
239
presume-se então que as duas proteínas estejam configuradas para interagir no interior da célula.

Para conhecermos o roteiro da vida, para ”assistirmos” ao filme da vida, o ideal seria descobrir com
precisão todas as mudanças na composição protéica no decorrer do desenvolvimento de um
indivíduo, desde o momento da fertilização até a idade adulta. Ainda que descubramos que muitas
proteínas permanecem ativas durante todo o processo, algumas se mostrarão específicas de
determinado estágio do desenvolvimento, de tal modo que podemos dar como certa a presença de
conjuntos diferentes de proteínas em cada fase de crescimento. As hemoglobinas adultas e fetais,
por exemplo, têm diversas diferenças sutis. Do mesmo modo, cada variedade de tecido produz o seu
próprio perfil protéico.

A maneira mais garantida de classificar as várias proteínas de determinada amostra de tecido ainda
é o tradicional método que usa géis bidimensionais para separar as moléculas de proteínas com base
em diferenças de carga elétrica e peso molecular. Os milhares de pontos protéicos assim
diferenciados podem ser analisados com um espectrômetro de massa (um instrumento capaz de
determinar a seqüência de aminoácidos de cada uma). Infelizmente, para aplicarmos a proteômica
dessa maneira ao vasto número de proteínas codificadas por um genoma inteiro, precisaríamos de
muito mais verba do que os cientistas acadêmicos costumam dispor. Hoje, quase todos os
empreendimentos mais dispendiosos são realizados por pesquisadores mais bem financiados das
grandes empresas farmacêuticas. Contudo, devido às limitações do método, nem mesmo esses
laboratórios conseguem localizar proteínas presentes em quantidades diminutas.

Portanto, esse tipo de proteômica de alto rendimento, com um maquinário dispendioso e automação
em escala industrial de procedimentos complicados, não é o modo como a maioria dos cientistas
hoje estuda as funções dos genes no âmbito do genoma. Em seu lugar, têm sido adotados os
métodos da transcriptômica, por serem mais baratos e mais fáceis de aplicar: com eles, o
funcionamento de todos os genes de um genoma pode ser rastreado medindo-se as quantidades
relativas de seus respectivos produtos de rna mensageiro (mRNA). Se, por exemplo, estivermos
interessados nos genes que se expressam numa célula do fígado humano, isolamos uma amostra de
mRNAs do tecido hepático. Esta constitui uma ”fotografia” da população de mRNAs da célula
hepática: genes muito ativos, os que são transcritos em maior grau e que
240

produzem muitas moléculas de mRNA, estarão representados em maior abundância ao passo que os
genes raramente transcritos contribuirão com apenas algumas cópias para a amostra de mRNA.

A chave da transcriptômica é uma invenção surpreendentemente simples conhecida como


microarray [ou microplaca] de dna. Imagine uma lâmina de microscópio na qual uma grade com 35
mil minúsculos ”poços” circulares foi entalhada. Usando técnicas precisas de micropipetagem,
seqüências de dna de um único gene são depositadas em cada poço, de tal modo que a grade
contenha todos os genes do genoma humano. O fator mais crítico, a localização na lâmina de cada
gene do dna, é conhecido. A Affymetrix, uma empresa com sede perto da Universidade Stanford,
conseguiu miniaturizar ainda mais essas microplacas, gravando-as numa lasca de silício do tamanho
de um pequeno chip de computador — o chamado ”chip de dna” .

Por meio de técnicas bioquímicas usuais, podemos rotular os mRNAs do fígado com um marcador
químico, de tal modo que, como as proteínas mencionadas acima, eles fluoresçam sob luz
ultravioleta. Em seguida vem a etapa em que a capacidade e simplicidade dessa técnica se tornam
aparentes: basta despejar nossa amostra de mRNAs na microplaca, o minúsculo tabuleiro com 35
mil casas [poços] cheios de genes. As mesmas ligações entre pares que mantêm unidas as duas fitas
da dupla-hélice farão com que cada molécula de mRNAs se emparelhe com o gene da qual proveio.
A complementaridade é precisa e garantida: o mRNA do gene x só se ligará ao local exato ocupado
pelo gene x da microplaca. O passo seguinte consiste apenas em observar quais pontos da placa
captaram os mRNAs fluorescentes. Um ponto sem fluorescência significa que não havia mRNA
complementar na amostra — e, portanto, podemos inferir que não houve transcrição ativa desse
gene na célula hepática. Pontos que ficarem fluorescentes, alguns com uma intensidade especial,
indicam que muitas moléculas de mRNA se ligaram ao gene lá situado. Conclusão: trata-se de um
gene muito ativo. Desse modo, com uma única análise experimental simples identificamos todos os
genes que estão ativos no fígado. Esse inédito panorama molecular tornou-se possível graças ao
sucesso do Projeto Genoma Humano e à nova mentalidade que ajudou a introduzir na biologia. Já
não precisamos nos contentar com o estudo de um pedaço aqui e outro acolá; agora podemos
contemplar o quadro completo em toda a sua gloriosa grandiosidade.
Portanto, nada mais plausível do que Pat Brown, da Universidade Stanford,
241
um dos principais praticantes do método, considerar a microplaca de dna ”um novo tipo de
microscópio”. Maravilhado com o potencial dessa tecnologia para revelar um universo genético
inteiramente novo, ele declarou: ”Somos bebês começando a descobrir o mundo em que vivemos”.

A transcriptômica é mais do que uma mera inovação técnica brilhante; ela promete nos içar a um
novo patamar na busca dos genes causadores de doenças: graças à tecnologia da microplaca,
podemos descobrir a base química de determinadas enfermidades estudando as diferenças entre
tecidos saudáveis e mórbidos como uma função da expressão gênica. A lógica é simples: analisamos
a expressão gênica de uma microplaca com tecido normal e de outra com tecido canceroso, e
identificamos as diferenças entre ambas, ou seja, quais genes são expressos em uma e não na outra.
Uma vez identificados os genes defeituosos — ou seja, que se expressam insuficientemente ou em
demasia no tecido canceroso, por exemplo —, podemos tentar estabelecer alvos que possam ser
atacados com terapias moleculares de alta precisão, em vez das quimioterapias e radioterapias
genéricas e tóxicas que destroem tanto as células saudáveis como as cancerosas.

Podemos aplicar as mesmas tecnologias para distinguir entre diferentes formas de urna mesma
doença. A microscopia normal nos oferece ajuda limitada nessa tarefa: cânceres que, sob um
instrumento óptico, parecem iguais para o patologista podem ter diferenças cruciais no nível
molecular. As células de um linfoma, por exemplo, possuem variedades difíceis de distinguir
visualmente, mesmo com a máxima resolução do microscópio, mas as diferenças nos perfis da sua
expressão gênica são claras e de importância vital para determinar o tratamento mais eficaz.
Referindo-se à antiga idéia de que todos os cânceres de um determinado tecido têm a mesma raiz,
Brown observou: ”Era como achar que todas as dores de barriga têm uma única causa.
Reconhecendo essas distinções, podemos aperfeiçoar o tratamento desses cânceres”.

No laboratório Cold Spring Harbor, Michael Wigler vem usando o mesmo método de oiatra
maneira: em vez de acrescentar rna à microplaca e observar a expressão gênica, ele tem adicionado
dna de células cancerosas para estabelecer um perfil da diversidade gênica presente nos tumores.
Muitos cânceres são causados por um reordenamento cromossômico — como o que pode ocorrer
quando segmentos de um cromossomo são inadvertidamente duplicados, provocando um excesso
no número de genes que codificam proteínas promotoras do crescimento. Outros cânceres surgem
em decorrência da perda de genes que codificam
242

J
proteínas que restringem a proliferação celular. Para aplicar a técnica de Wigler, o médico realiza
uma biópsia do tecido canceroso e saudável do mesmo indivíduo. O dna do tecido canceroso é
rotulado quimicamente com um corante vermelho, e o do tecido normal com um corante verde. As
microplacas de dna, contendo todos os 35 mil genes humanos conhecidos, são expostas a uma
mistura das duas amostras. Como acontece com o mRNA num experimento comum com a
microplaca, as moléculas rotuladas de dna se ligam, par de bases a par de bases, com suas
seqüências complementares na grade. Os genes amplificados nas células cancerosas são marcados
por pontos vermelhos (pois há um número muito maior de moléculas rotuladas em vermelho
ligando-se àquele ponto do que moléculas com rótulo verde), ao passo que os genes eliminados de
células cancerosas aparecem como pontos verdes na microplaca (pois não há moléculas rotuladas
em vermelho se ligando ali). Tais experimentos já contribuíram para ampliar sobremaneira a lista
dos genes que sabidamente favorecem o câncer de mama.
Sempre que nos defrontamos com uma doença humana específica, percebemos quanto ainda
tateamos no escuro. Poderíamos avançar muito mais depressa ao cerne do problema — isto é,
conhecer a natureza exata do que está errado e como poderia ser consertado — se tivéssemos um
conhecimento mais detalhado de como nossos genes se expressam quando tudo está bem. Dotados
de um conhecimento dinâmico completo de quando e onde cada um dos nossos 35 mil genes atua
durante o desenvolvimento normal do óvulo fertilizado a adulto funcional, teríamos uma base
comparativa para compreender todas as enfermidades. Ou seja, o que precisamos é de um
”transcriptoma” humano completo. Esse é o próximo santo Graal da genética, o próximo
megaprojeto a exigir superfinanciamentos. No curto prazo, um objetivo mais provável e ainda
Divisão celular: os cromossomos de

uma célula (em azul) são duplicados

e, em seguida, alinhados junto a um

’fuso” especial (em verde) antes de

serem designados a cada célüla-füha.

Tecnologias imagéticas avançadas

ajudam a dar vida à extraordinária

dança dos cromossomos que sustenta

a capacidúde da vida de perpetuar-se.

243
mais importante será obter o transcriptoma completo do camundongo — cuja vantagem em relação
ao do homem é o fato de podermos ao mesmo tempo observar e intervir experimentalmente no
curso do desenvolvimento pré-natal No entanto, mesmo coletar todos os dados relevantes do
camundongo exigirá um grande investimento de dinheiro e tempo. Assim, como demonstrou nossa
experiência com o seqüenciamento do dna, faríamos bem em dedicar todos os nossos esforços para
concluir os transcriptomas de organismos-modelo mais simples e só depois enfrentar o do
camundongo e, um dia, o do homem.

Graças às microplacas, os estudos da expressão gênica ao longo do ciclo celular da levedura já


revelaram a espantosa complexidade inerente na dinâmica molecular da divisão das células. Há
mais de oitocentos genes envolvidos, cada um convocado a agir num momento preciso do ciclo. E,
também aqui, talvez precisemos nos fiar na relutância da evolução em consertar o que não está
quebrado: um processo biológico, após uma evolução benvsucedida, provavelmente continuará a
empregar os mesmos protagonistas moleculares básicos enquanto houver vida na Terra. Logo, pelo
que podemos saber, as mesmas proteínas que controlam o desenvolvimento do ciclo celular da
levedura desempenham papéis semelhantes nas células humanas.

Em última análise, a meta das três ”ômicas” (gen-, prote- e transcript-) é criar um quadro completo,
detalhado até o nível de cada molécula individual, de como as coisas vivas se encaixam e
funcionam. Como vimos, a complexidade é estonteante até nos casos mais simples. E, apesar do
espetacular avanço da última década, ainda temos diante de nós vários desafios desalentadores.
Com relação aos organismos complexos, o sustentáculo molecular do desenvolvimento — isto é, da
extraordinária jornada de óvulo a adulto regida por uma fita linear codificada composta de apenas
quatro letras — pode ser mais bem compreendido no caso da mosca-das-frutas.

A mosca-das-frutas tem sido objeto de intensa investigação genética desde que foi adotada por T. H.
Morgan. A Drosophüa melanogaster permaneceu uma mina de ouro genética durante todas as
inovações ocorridas nos anos subseqüentes. No final da década de 1970, no Laboratório Europeu de
Biologia Molecular em Heidelberg, Alemanha, Christiane ”Janni” Nüsslein-Volhard e Eric
Wieschaus iniciaram um projeto extremamente ambicioso envolvendo a
244

rriosca-das-frutas. Eles utilizaram certos produtos químicos para induzir mutações e observaram as
transformações ocorridas nos mais incipientes estágios embrionários da progênie das moscas.
Classicamente, a meta dos geneticistas que estudam a mosca-das-frutas sempre foram as mutações
que afetam os espécimes adultos — como a descoberta por Morgan, que produziu olhos brancos
(em vez de vermelhos). Ao se concentrarem nos embriões, Nüsslein-Volhard e Wieschaus estavam
não só se condenando a anos de esforço ocular crônico ao microscópio em busca desses esquivos
mutantes, mas também se aventurando em território totalmente desconhecido. A recompensa, é
claro, foi fantástica. Suas análises levaram à descoberta de vários grupos de genes que determinam
o plano fundamental do desenvolvimento das larvas.

A mensagem mais universal do trabalho de ambos é que as informações genéticas são organizadas
hierarquicamente. Nüsslein-Volhard e Wieschaus notaram que alguns mutantes apresentavam
efeitos bastante nítidos, ao passo que outros denotavam efeitos mais restritos. A partir disso,
inferiram corretamente que os genes com efeitos marcantes atuam no início do desenvolvimento —
ou seja, estão no topo da hierarquia — e que os genes com efeitos restritos só começam a atuar mais
tarde. O que eles descobriram foi um encadeamento dos fatores de transcrição: genes que ativam
outros genes, que, por sua vez, ativam outros, e assim por diante. Na realidade, a ativação
hierarquizada dos genes é a chave para construir corpos complexos. Um gene que produza o
equivalente biológico de um tijolo, se restrito apenas aos seus próprios recursos, produzirá uma
pilha de tijolos; mas, com coordenação adequada, poderá erigir uma parede e, em última análise,
um edifício inteiro.

O desenvolvimento normal depende de as células ”saberem” onde se localizam no corpo. Afinal,


uma célula na ponta da asa de uma mosca dev< desenvolver-se de maneira bastante diferente de
uma localizada na região que dará origem ao cérebro do inseto. A primeira informação essencial de
posição é á mais simples: como o embrião da mosca-das-frutas sabe reconhecer qual é uma e qual é
outra extremidade? Aonde deve ir a cabeça? A bicóide, uma proteína produzida por gene presente
na mãe, é distribuída em concentrações variáveis por todo o embrião. Esse efeito é dito um
”gradiente de concentração”: os níveis da proteína são mais elevados na extremidade da cabeça e
vão diminuindo à medida que avançamos rumo à parte posterior. Desse modo, o gradiente de
concentração da bicóide instrui todas as células do embrião acerca de onde elas se encaixam no eixo
245
cabeça/cauda. O desenvolvimento da mosca-das-frutas é segmentário, ou seja, o seu corpo é
organizado em compartimentos, os quais têm muito em comum, embora cada um possua algumas
características exclusivas. Sob vários aspectos, o segmento da cabeça é organizado do mesmo modo
que o segmento do tórax (a parte intermediária do corpo de um inseto), mas o primeiro tem órgãos
cefálicos específicos — como os olhos — e o segundo, órgãos específicos do tórax — como patas.
Nüsslein-Volhard e Wieschaus encontraram grupos de genes que especificam as identidades dos
diferentes segmentos. Por exemplo, os chamados genes da ”regra-dos-pares” codificam os fatores
de transcrição (comutadores gênicos) expressos em segmentos alternados. Genes ”regra-dos-pares”
mutantes resultam em embriões com problemas de desenvolvimento a cada segundo segmento.

Em 1995, Nüsslein-Volhard e Wieschaus receberam o prêmio Nobel de fisiologia/medicina por seu


trabalho pioneiro. Ao contrário da maioria dos laureados, os dois continuaram trabalhando
ativamente no laboratório — ou seja, não se retiraram para um escritório ricamente ornado com
diplomas nas paredes. Para Wieschaus, a ciência continua sendo algo irresistível: ”Os embriões são
lindos e as células realizam coisas notáveis; por isso continuo entrando todos os dias no laboratório
cheio de entusiasmo”. Nascido em Birmingham, Alabama, ele sonhava ser artista. Mas, vendo-se
em situação de penúria em seu segundo ano na Universidade de Notre Dame, aceitou um dos
empregos mais servis e malcheirosos do mundo da ciência: preparar a ’ração das moscas” (uma
mistura infecta à base de melaço) para a população experimental de moscas-dasfrutas do laboratório
de pesquisa. A maioria das pessoas que chega a trabalhar como cozinheiro para centenas de
milhares de insetos sujos e ingratos provavel-
Dois rostos de moscas-das-frutas. À esquerda, um indivíduo normal, com um par de antenas emplumadas projetando-se da testa. À
direita, a mutação conhecida conto antennapedia, na qual as antenas foram substituídas por duas patas inteiramente formadas.

mente adquire uma aversão vitalícia pelas criaturas. Para Wieschaus, no entanto, aconteceu o
oposto: uma dedicação inabalável às moscas-das-frutas e aos mistérios do seu desenvolvimento.

Nüsslein-Volhard, filha de uma família alemã de artistas, era daquelas alunas que se destacam em
tudo que lhes interessa mas não aplica o mínimo esforço ao restante. Seu trabalho árduo para
esclarecer a genética do desenvolvimento da mosca-das-frutas teria sido feito suficiente para
justificar duas carreiras profícuas, mas, após receber o prêmio Nobel, ela redirecionou sua
formidável atenção ao desenvolvimento de uma outra espécie totalmente diferente: os peixes-zebra.
Sua nova ocupação promete desvendar muitos segredos do desenvolvimento dos vertebrados. No
evento de 2001 em comemoração ao centenário do prêmio Nobel, dei-me conta de que ela era a
única cientista do sexo feminino presente em meio a uma horda de homens grisalhos. Na verdade,
ela é uma dentre as únicas dez mulheres a receberem o prêmio.

Um desses homens já não tão jovens era Ed Lewis, do Caltech, um traquejado conhecedor das
moscas-das-frutas que partilhou o prêmio com NüssleinVolhard e Wieschaus, embora não se
enquadre muito bem no estereótipo do cientista grisalho: com mais de oitenta anos na ocasião, era
sempre visto fora das cerimônias (nas quais tinha de vestir casaca) em traje de corrida! Havia muito
ele se ocupava do controle genético do desenvolvimento da mosca-dasfrutas, mas seu interesse
especial eram as ”mutações homeóticas”, que produzem os mais bizarros resultados quando um
segmento em desenvolvimento adquire inadvertidamente a identidade de um segmento vizinho. Sua
dedicação ferrenha e duradoura aos genes Hox, nos quais ocorrem tais mutações, exemplifica
valores que estão desaparecendo numa época em que cada vez mais são modismos que determinam
o programa da ciência.

As mutações homeóticas — que, hoje sabemos, podem abalar os genes que codificam fatores de
transcrição (os comutadores gênicos) — podem ter efeitos drásticos. A mutação conhecida como
antennapedia faz com cresçam patas no lugar onde deveria haver antenas e a mosca nasça com um
par de patas perfeitamente formadas projetando-se da testa. A mutação ”bitórax” é igualmente
esquiita. normalmente, um dos segmentos que constituem o tórax produz o par de sas do inseto,
enquanto o segmento torácico seguinte, mais próximo à parte Posterior, gera um par de pequenas
estruturas estabilizadoras chamadas ”haltes [ou balancins]. Numa mosca bitórax, o segmento dos
halteres equivocada-
246

Â
2.47
*r
mente produz asas, de tal modo que o inseto que deveria ter duas asas acaba com quatro — e o
segundo par é tão perfeitamente formado quanto o primeiro.

Quando funcionam corretamente, os genes que regulam a identidade dos segmentos asseguram que
cada seção do corpo irá adquirir os órgãos apropriados da sua posição: o segmento da cabeça
adquire antenas, o segmento torácico adquire asas e patas. As mutações homeóticas, porém,
confundem a identidade dos segmentos. Assim, no caso da antennapedia, o segmento da cabeça
imagina ser um segmento torácico e, por conseguinte, produz uma pata em vez de uma antena.
Porém, note-se que, embora esteja no lugar errado, trata-se de uma pata perfeitamente formada.
Conclusão: o gene posicionai da antennapedia ativa toda uma série de outros genes — em geral, os
que produzem a antena, ou, em situações aberrantes, os que produzem a pata. Mas a coordenação
existente nessa coletânea de genes não é prejudicada, mesmo quando os genes são ativados no lugar
errado e na hora errada. E vemos confirmar-se aqui como os genes em posições elevadas na
hierarquia do desenvolvimento controlam o destino de muitos outros genes em posições
”subalternas”. Como qualquer bibliotecário sabe, a organização hierárquica é uma maneira eficiente
de armazenar e recuperar informações. Com esse tipo de arranjo em cascata, um número
surpreendentemente pequeno de genes pode ir longe, muito longe.

Agora que a biologia ingressou numa era de abrangência e completude, inaugurada pelo antes
inimaginável Projeto Genoma Humano, pode parecer curioso que as pesquisas de ponta da próxima
fronteira — a genética do desenvolvimento — retornem às moscas-das-frutas. O fato é que não há
aonde ir senão de volta para o futuro, pois, mesmo com o genoma inteiro à nossa disposição, o
programa e as indicações que determinam como as instruções desse genoma são levadas a cabo
permanecem um mistério quase insondável. Com o tempo, haveremos de conhecer o roteiro da vida
humana tão bem quanto conhecemos o da mosca-das-frutas. Elaboraremos uma descrição
minuciosa dos padrões da expressão gênica humana (o transcriptoma) e produziremos uma relação
completa das ações de todas as nossas proteínas (o proteoma). Teremos então um quadro completo e
espetacularmente complexo de como cada um de nós é formado e da contribuição de cada uma das
inumeráveis moléculas que nos constituem para o funcionamento do nosso corpo.
248

9. A descendência da África: O dna e o passado do


homem

w
Em agosto de 1856, ao explodirem a entrada de uma caverna de calcário no vale Neander, perto de
Dusseldorf, Alemanha, os trabalhadores de uma pedreira descobriram parte de um esqueleto. A
princípio, os resquícios pareciam pertencer a uma espécie extinta de urso, cujos ossos eram
encontrados com freqüência em cavernas. Mas logo um professor local percebeu que a criatura
pertencia a uma espécie muito mais próxima da nossa, embora a identidade exata do ”dono” dos
ossos se tornasse uma questão controversa. Particularmente enigmático era o profundo sulco na
fronte do crânio. Um dos palpites mais bizarros foi que os ossos pertenceriam a um cavaleiro
cossaco que se ferira
Acima: O churrasco na antigüidade e na modernidade: uma reconstrução artística (em cima) de um acampamento neandertal no sul da
Europa, há cerca de 35 mil anos, e uma cena equivalente de um passado mais recente (embaixo). Será que descendemos dos
neandertais? O DNA parece sugerir que não.

2,49
durante as Guerras Napoleônicas e se arrastara até a caverna para morrer. Ainda segundo essa teoria
excêntrica, a dor crônica por alguma condição preexistente produzira um rego permanente na fronte
do pobre homem, deformando os ossos cranianos com um sulco característico. Em 1863, enfim, no
meio do debate sobre as origens humanas provocado pela publicação quatro anos antes de A origem
das espécies, de Darwin, o dono original dos ossos recebeu um nome: Homo neanderthalensis. Os
ossos pertenciam a uma espécie distinta da Homo sapiens, mas semelhante a esta.

Embora os ossos alemães tenham sido os primeiros oficialmente designados como neandertais,
outros encontrados antes na Bélgica e em Gibraltar foram mais tarde identificados como
pertencentes à mesma espécie. Passado mais de um século, muitos outros espécimes do H.
neanderthalensis foram desenterrados e hoje se acredita que os neandertais residiram na Europa,
Oriente Médio e partes do norte da África até cerca de 30 mil anos atrás. O paleontólogo francês
Marcellin Boule foi o grande responsável pela imagem popular dos neandertais como boçais e
desajeitados. Sua reconstituição, porém — que usou material de um sítio arqueológico francês em
La Chapelle-aux-Saints —, baseou-se num único indivíduo que, hoje se sabe, era idoso e artrítico.
Na realidade, o cérebro dos neandertais é ligeiramente maior que o nosso (e tem um formato
diferente, devido ao crânio mais achatado); indícios em seus cemitérios sugerem que eles tinham
sofisticação cultural suficiente para conceber ritos fúnebres e é até possível que acreditassem numa
vida após a morte.

No entanto, o principal ponto de discórdia acerca dos neandertais não diz respeito à inteligência,
mas ao seu parentesco conosco. Será que descendemos deles? A paleontologia sugere que os seres
humanos modernos chegaram à Europa mais ou menos na mesma época em que os últimos
neandertais desapareciam. Os dois grupos chegaram a se acasalar ou os neandertais foram
simplesmente eliminados? Como esses eventos ocorreram num passado longínquo e as evidências
remanescentes são fragmentárias — pouco mais do que alguns ossos aqui e ali —, tais discussões
podem se arrastar infindavelmente, mantendo os paleontólogos e antropólogos acadêmicos
entretidos para sempre. Será que determinado osso é um espécime intermediário entre o esqueleto
robusto dos neandertais e o esqueleto mais leve dos seres humanos modernos? Ou será que
pertenceu a um indivíduo híbrido produzido pelo acasalamento dos dois grupos — um elo perdido?
Ou, ainda, será que proveio de um neandertal legítimo com
250

oSsos mais leves que o normal — ou de um ser humano totalmente moderno com ossos mais
espessos que a média?

Para surpresa de todos, a discussão foi resolvida pelo dna. Em 1997, uma amostra de 30 mil anos de
idade foi extraída dos mesmos ossos que engendraram toda a controvérsia em 1856. Como não
poderia deixar de ser, o dna, que evoluiu como um meio seguro de armazenar informações e
transmiti-las de uma geração a outra, é quimicamente bastante estável. Não sofre degradação
espontânea nem reage facilmente com outras moléculas. Contudo, não é imune a danos químicos.
No momento da morte, o material genético do corpo (como todos os demais elementos
constituintes) torna-se suscetível a uma profusão de possíveis agentes degradantes: reagentes
químicos e enzimas que decompõem o tecido molecular, entre outros. Como essas reações químicas
exigem a presença de água, o dna pode ser preservado se o cadáver desidratar-se suficientemente
depressa. Contudo, mesmo em condições ideais de preservação, a sobrevida máxima absoluta da
molécula não deve passar dos 50 mil anos. Obter uma seqüência legível de dna dos restos de um
neandertal de 30 mil anos de idade, conservado em condições muito aquém de perfeitas, é um
empreendimento e tanto.

Mas Svante Páãbo, um sueco alto e lacônico da Universidade de Munique, não se deixou intimidar.
Se havia alguém capaz de ter sucesso, era ele. Pããbo foi o pioneiro das pesquisas sobre recuperação
de dna antigo: obteve seqüências das múmias egípcias, de mamutes congelados e do ”homem do
gelo” de 5 mil anos [conhecido como Oetzi] encontrado numa geleira derretida dos Alpes em
1991. A despeito desse currículo impressionante, a perspectiva de perfurar uma preciosa relíquia
neandertal em busca de um pouco de dna intacto, sem garantia alguma de que isso seria possível,
chegava a intimidar. Um colega de Pããbo, o arqueólogo Ralf Schmitz, relembra: ”Era como pedir
permissão para fazer um corte na Mona Lisa”.

Matthias Krings, um orientando de Pããbo, ficou encarregado do projeto. A princípio, mostrou-se


pessimista. Mas as análises iniciais para avaliar o estado de preservação dos ossos foram favoráveis
e ele sentiu-se encorajado a ir em frente. A procura de dna viável concentrou-se não no núcleo das
células, como seria de esperar, mas nas mitocôndrias, pequenos corpúsculos espalhados fora do
núcleo e que produzem a energia da célula. Cada mitocôndria possui uma pequena alça de dna com
cerca de 16 mil pares de bases. Como há entre quinhentas e mil mitocôndrias em cada célula, mas
apenas duas cópias do genoma
251
propriamente dito (no núcleo), Krings sabia que era muito mais provável que aqueles ossos
neandertais em decomposição contivessem seqüências mitocondriais intactas do que seqüências
nucleares intactas. Além disso, como o dna mitocondrial (DNAmt) já se tornara o feijão-com-arroz
dos estudos sobre evolução humana, Krings não careceria de seqüências humanas modernas para
estabelecer comparações.

Uma das principais preocupações de Krings e Pàabo era a contaminação. No passado, diversos
supostos bons resultados em seqüenciamento de dna antigo haviam se revelado incorretos quando
se descobria que a seqüência provinha de uma fonte moderna que contaminara a amostra. Dia a dia,
todos nós descartamos uma enorme quantidade de células epidérmicas mortas, espargindo
descontroladamente o nosso dna no meio ambiente. A reação em cadeia da polimerase, com a qual
Krings pretendia amplificar o trecho de DNAmt que esperava encontrar, é tão sensível que pode
atuar sobre uma única molécula, amplificando todo e qualquer dna seja a fonte antiga ou ainda viva.
E se o dna neandertal estivesse degradado demais para a reação em cadeia da polimerase funcionar
mas, não obstante, a reação ocorresse e amplificasse uma seqüência de dna de uma partícula
contaminadora invisível descarnada do próprio Krings? Nesse caso, precisaria explicar como ele e o
neandertal compartilhavam a mesma seqüência de DNAmt, algo que dificilmente agradaria a seu
superior — e menos ainda seus pais. Para se prevenirem contra tal possibilidade, Krings e Pããbo
conseguiram que um laboratório distinto (o de Mark Stoneking, na Universidade Estadual da
Pensilvânia) reproduzisse o estudo. Poderia também haver contaminação lá, mas dificilmente com o
dna de Krings, localizado a um continente de distância. Por outro lado, se ambos os laboratórios
obtivessem o mesmo resultado com a amostra, seria razoável supor que haviam encontrado uma
seqüência neandertal insuspeita.

”Mal posso descrever minha empolgação”, diz Krings referindo-se ao momento em que viu os
primeiros resultados do seqüenciamento: ”Senti um calafrio subindo pela espinha”. Ainda que
algumas seqüências mostrassem sinais de contaminação, como temera, em outras ele pôde
vislumbrar algo maravilhoso: uma série de semelhanças intrigantes e de diferenças igualmente
intrigantes em relação à seqüência humana moderna. Juntando os diversos segmentos, conseguiu
reconstruir um trecho de DNAmt neandertal com 379 pares de bases antes de receber os resultados
da universidade. Quando, por fim, o
252

laboratório de Stoneking enviou suas seqüências, Krings verificou que elas continham um trecho
idêntico com os mesmos 379 pares de bases. ”Foi nesse momento que começamos a estourar o
champanhe.

A seqüência neandertal tinha mais em comum com seqüências de DNAmt humano moderno do que
com seqüências de chimpanzés, indicando que os neandertais eram inquestionavelmente parte da
linhagem evolutiva humana. Ao mesmo tempo, porém, havia diferenças radicais entre as seqüências
neandertais e as 986 seqüências disponíveis de DNAmt humano moderno com as quais Krings
comparou sua amostra. Além disso, mesmo a mais similar dessas
986 seqüências ainda diferia da seqüência neandertal em pelo menos vinte pares de bases (ou 5%).
Mais tarde, foram seqüenciados dois outros neandertais, um encontrado no sudoeste da Rússia,
outro na Croácia. As seqüências, conforme esperado, não eram idênticas à original (embora
contássemos com variações entre indivíduos neandertais, assim como há variações entre seres
humanos modernos), mas eram semelhantes. A totalidade das evidências genéticas disponíveis nos
leva a concluir que, embora os neandertais tenham o seu lugar na árvore evolutiva dos seres
humanos e aparentados, o ramo neandertal está bem distante da ramificação humana moderna. Se os
neandertais e os seres humanos modernos houvessem se acasalado quando se encontraram na
Europa há 30 mil anos, seqüências de DNAmt neandertal teriam entrado no pool gênico humano
moderno. O fato de não haver sinal desse ínsumo neandertal implica que os seres humanos
modernos não se acasalaram com os neandertais; pelo contrário, os eliminaram — mas o dna não é
capaz de revelar se perpetramos esse extermínio pelo confronto direto ou recorrendo a meios mais
sutis.

Estudos com o dna dos neandertais mostraram que somos geneticamente distintos deles. Contudo,
no geral, a lição das pesquisas moleculares da evolução humana parece indicar a direção oposta,
mostrando como somos geneticamente próximos do resto do mundo natural. Na realidade, os dados
moleculares têm freqüentemente contestado (e derrubado) pressupostos de longa data sobre as
origens humanas.

O grande químico Linus Pauling foi o pai da abordagem molecular moderna da evolução. No início
da década de 1960, ele e Emile Zuckerkandl compararam seqüências de aminoácidos de proteínas
correspondentes em diversas
2.53
espécies. Estávamos nos primórdios do seqüenciamento das proteínas e os dados obtidos foram
inevitavelmente limitados. Não obstante, os dois observaram um padrão extraordinário: quanto mais
próximas fossem duas espécies em termos evolutivos, mais similares eram as seqüências de suas
proteínas correspondentes. Por exemplo, ao compararem uma certa cadeia protéica das moléculas
de hemoglobina dos seres humanos e dos chimpanzés, Pauling e Zuckerkandl notaram que, do total
de 141 aminoácidos, apenas um era diferente — ao passo que as versões humana e eqüina diferem
em dezoito aminoácidos. Esses dados refletem o fato de os cavalos terem se separado
evolutivamente dos seres humanos há mais tempo que os chimpanzés. Hoje, desencavar a história
evolutiva soterrada em moléculas biológicas tornou-se prática comum; na época, porém, a idéia era
inédita e controversa.

A abordagem molecular do estudo da evolução depende da correlação de duas variáveis: o tempo de


separação de duas espécies (ou populações) e o grau de divergência molecular entre ambas. A lógica
por trás desse ”relógio molecular” é simples. Para ilustrá-la, imaginemos o casamento entre dois
pares de gêmeos idênticos: um de duas fêmeas univitelinas, outro de dois machos univitelinos. Cada
mulher se casa com um dos homens e os dois casais são colocados em ilhas desabitadas. Do ponto
de vista genético, as populações das duas ilhas são indistinguíveis no início. Agora deixemos esses
casais e seus descendentes a sós por alguns milhões de anos. No final desse período, terão ocorrido
algumas mutações na população de uma das ilhas que não ocorreram na população da outra, e vice-
versa. Como a ocorrência de mutações é um fenômeno raro e como os genomas individuais, por
serem grandes, oferecem uma quantidade enorme de possíveis sítios onde essas mutações podem
ocorrer, é inconcebível que após milhões de anos as duas populações possuam o mesmo conjunto de
mutações. Portanto, ao seqüenciarmos o dna dos descendentes de cada casa original, encontraremos
muitas diferenças acumuladas entre os dois genomas outrora idênticos. Dizemos que as populações
”divergiram” geneticamente. Quanto maior o tempo de separação, maior a divergência.

Mas como fazer com que esse ”relógio molecular” marque a hora certa, por assim dizer? Dito de
outra maneira, como medir a divergência genética exis tente entre, digamos, nós e o resto do mundo
natural? No final dos anos 1 muito antes do advento do seqüenciamento do dna, Allan Wilson, um
extrav gante neozelandês da Universidade da Califórnia em Berkeley, e seu coleg

Vince Sarich começaram a aplicar a lógica de Pauling e Zuckerkandl aos seres humanos e seus
parentes mais próximos. Numa época em que o seqüenciamento de proteínas ainda era algo
exasperadoramente intricado e laborioso, Wilson e Sarich encontraram um atalho bastante
inventivo.

A intensidade de uma reação imunológica a uma proteína estranha indica como ela é estranha: se for
relativamente similar à proteína do próprio corpo, a reação imunológica é relativamente branda,
mas se for muito diferente a reação é proporcionalmente mais forte. Wilson e Sarich compararam a
intensidade das reações tornando uma proteína de uma espécie e medindo as reações imunológicas
que ela provocava em outra espécie. Com isso, obtiveram um índice de divergência molecular entre
as duas espécies. Porém, para introduzir uma dimensão temporal nesse ”relógio molecular”,
precisavam antes calibrá-lo. Evidências fóss;eis permitem deduzir que os macacos do Novo Mundo
e do Velho Mundo (os dois principais grupos de primatas) se separaram de um antepassado comum
há cerca de 30 milhões de anos. Assim, Wilson e Sarich determinaram a ”distância imunológica”
entre os macacos do Novo Mundo e do Velho Mundo como sendo equivalente a uma separação de
30 milhões de anos. Segundo esse parâmetro, como ficavam os seres humanos em relação aos seus
parentes evolutivos mais próximos, os chimpanzés e gorilas? Em 1967, Wilson e Sarich publicaram
uma estimativa: a linhagem humana teria se separado da linhagem dos grandes macacos há cerca de
5 milhões de anos. A afirmação provocou um grande alvoroço, pois nos círculos
paleoantropológicos pressupunhase que essa (divergência teria ocorrido há cerca de 25 milhões de
anos. Segundo a sabedoria convencional, entre seres humanos e macacos havia claramente uma
diferença muito maior do que 5 milhões de anos. Para muitos, isso bastaVa para declarar não só que
o novo método genético da equipe de Berkeley era pouco confiável mas também que os geneticistas
deveriam se ater às suas mos-

as-frut»s e deixar os seres humanos para os antropólogos! Wilson e Sarich, em’ s°breviveram à
tempestade. E pesquisas subseqüentes mostraram que a

atação da cisão homem/macaco era notavelmente precisa.

Quand«o chegou a hora de estender a análise da separação homem /maca-

co das daMa

Proteínas para o dna, Wilson confiou o empreendimento a sua orientan-

ary-Cla_ire King. O resultado, em 1975, foi uma das monografias científicas t . S extraor~dinárias
do século xx. Durante muito tempo, porém, resultados tão ais par-eceram improváveis,
particularmente do ponto de vista de King.

trillnfais
2.54

2.55
Mary-Claire King

Seu trabalho não estava indo bem, em parte devido à tremenda distração em Berkeley provocada
pelo movimento contra a Guerra do Vietnã no início dos anos 1970. King chegou a pensar em ir
para Washington, d.c, trabalhar com Ralph Nader, mas, felizmente, buscou antes o conselho de
Wilson. ”Se todos aqueles cujos experimentos malograram deixassem de fazer ciência”, ele
sabiamente orientou, ”não teríamos ciência”. King resolveu segurar a barra.

Para comparar os genomas do chimpanzé e do ser humano, ela e Wilson combinaram diversas
técnicas, incluindo uma particularmente engenhosa chamada ”hibridização do dna”. Quando duas
fitas complementares de dna se juntam para formar uma dupla-hélice, elas podem ser separadas
aquecendo-se a mistura a 95°C, um fenômeno chamado ”desnaturação” no jargão dos geneticistas
moleculares. Mas o que acontece quando as duas fitas não são perfeitamente complementares, isto
é, quando ocorreu alguma mutação em uma delas? Bem, as duas fitas irão se ”desnaturar” numa
temperatura inferior a 95 °C — quanto maior a diferença entre ambas as fitas, menor o calor
necessário para separá-las. King e Wilson usaram esse princípio para comparar o dna de seres
humanos e de chimpanzés. Quanto mais próximas fossem as seqüências das duas espécies, mais o
ponto de desnaturação tenderia aos 95 °C de fitas idênticas. A semelhança das seqüências foi
realmente surpreendente: King conseguiu inferir que as seqüências de dna dos seres humanos e dos
chimpanzés diferem em apenas 1%. Na realidade, os seres humanos têm mais em comum com os
chimpanzés do que estes têm em comum com os gorilas, pois os genomas destes últimos diferem
em cerca de 3%.

Tão impressionante foi esse resultado que King e Wilson se sentiram compelidos a apresentar uma
explicação para a aparente discrepância entre a taxa de evolução genética (lenta) e o ritmo de
evolução anatômica e comportamental

(acelerado). Como alterações genéticas tão ínfimas poderiam explicar as enormes diferenças que
constatamos entre um chimpanzé no zoológico e a espécie que o observa do outro lado da grade?
Os dois cientistas sugeriram que a maior parte das mudanças evolutivas havia ocorrido nos pedaços
de dna que controlam o ligar-e-desligar dos genes. Desse modo, pequenas alterações gênicas
poderiam ter grandes efeitos — modificando, por exemplo, o momento da expressão de um gene.
Em outras palavras, a natureza pode criar duas criaturas de aparência bastante dessemelhante
organizando os mesmos genes para atuarem de maneiras diferentes.

O laboratório de Wilson em Berkeley lançou uma outra bomba, ainda maior que a primeira, em
1987. Estudando os padrões das variações entre seqüências de dna, ele e sua colega Rebecca Cann
decifraram a árvore genealógica da nossa espécie inteira — um dos pouquíssimos feitos científicos
a merecer uma capa da revista Newsweek.

Como Krings faria uma década depois ao analisar os neandertais, Cann e Wilson recorreram ao dna
mitocondrial. Havia vários motivos para essa escolha, mas, como sempre, os de ordem prática
foram os mais importantes. Nessa época, quando a reação em cadeia da polimerase ainda não se
tornara uma tecnologia cotidiana de pesquisas, obter uma quantidade suficiente de dna para
investigar determinado gene ou região podia ser uma tarefa bastante árdua. E o estudo de Cann e
Wilson exigia que se analisasse não uma, mas 147 amostras. Eles, portanto, precisavam
desesperadamente de todo e qualquer dna que pudessem encontrar. Uma amostra de tecido humano
é riquíssimo em dna mitocondrial quando comparado com o dna cromossômico encontrado nos
núcleos das células. Mesmo assim, Cann e Wilson precisariam de muito tecido se pretendessem
extrair até mesmo DNAmt em quantidade suficiente. A solução encontrada? Placentas. Estas
costumam ser descartadas após o parto pelos hospitais e são uma rica fonte de DNAmt. Tudo o que
Cann e Wilson tinham de fazer era persuadir 147 gestantes a doarem a placenta de seus bebês para a
ciência — ou melhor, 146, pois Mary-Claire King estava mais do que disposta a oferecer a placenta
da sua filha. Eles sabiam que reconstruir a família humana da maneira mais completa possível
exigiria tecidos da gama de doadores mais geneticamente diversa que pudessem achar. Aqui o
famoso melting pot [cadinho de raças] dos
256

257
Estados Unidos mostrou ser uma nítida vantagem — eles não teriam, por exemplo, de viajar até a
África para obter dna africano, já que a escravidão trouxera os genes africanos até nossas praias
(embora continuassem dependendo de colaboradores na Nova Guiné e na Austrália para encontrar
mulheres aborígines — pouco representadas no pool gênico americano — dispostas a participar).

Herdamos o DNAmt de nossas mães. A contribuição genética dos pais, contida na cabeça de um
único espermatozóide, não inclui material mitocondrial. O dna do espermatozóide é injetado no
óvulo, que já contém mitocôndrias provenientes da mãe. Desse modo, Cann e Wilson estariam
rastreando a história da linhagem humana feminina. O DNAmt, que herdamos de apenas um de
nossos genitores, nunca sofre recombinação (o processo pelo qual segmentos de braços de
cromossomos são intercambiados, fazendo com que as mutações passem de um cromossomo a
outro). O caráter não-recombinante do DNAmt é uma grande vantagem quando se quer reconstruir
a árvore genealógica com base na similaridade das seqüências de dna. Se duas seqüências
apresentam a mesma mutação, sabemos que têm de descender de uma antepassada comum, em
quem a mutação ocorreu pela primeira vez. Se houvesse recombinação, seria possível uma das
linhagens adquirir a mutação recentemente graças a algum evento recombinante de entrelaçamento,
e o fato de terem uma mutação comum não indicaria necessariamente uma ancestralidade comum. A
lógica de usar o DNAmt para construir a árvore genealógica é simples: seqüências similares
(aquelas com muitas mutações em comum) indicam parentesco próximo; seqüências com muitas
diferenças entre si indicam um parentesco mais longínquo. Em termos visuais, parentes próximos
(aqueles que provêm de um ancestral comum relativamente recente) irão se agrupar na árvore
genealógica; parentes distantes ficarão mais espalhados, pois seu ancestral comum está
relativamente mais distante no tempo.

Cann e Wilson constataram que a árvore genealógica humana possui dois grandes galhos principais,
um abrangendo apenas os diversos grupos da África e o outro contendo alguns grupos africanos e
todos os demais grupos. Isso significa que os seres humanos modernos surgiram na África — ou
seja, foi Ia Q viveram os ancestrais comuns a todos nós. A idéia em si não é nova. Ao obse var que
nossos parentes mais próximos, os chimpanzés e os gorilas, são nati da África, Charles Darwin já
inferira que os seres humanos devem ter evolui

a partir desse continente. O aspecto mais surpreendente, e mais controverso,

da
A arvore genealógica do DNA humano da tnitocôndria.
lão-africano africano

CO ESTRAL

c°mumMais
RECENTE

H?SERES ATUais

— chukchis (esquimós siberianos) aborígines australianos aborígines australianos

pimas (nativos norte-americanos)

italianos

neoguineanos

neoguineanos

neoguineanos

georgianos
— alemães -usbeques

samis (Lapônia)

- tártaros da Criméia

— holandeses

- franceses ingleses

— samoanos

— coreanos

chineses

indianos asiáticos

-chineses

neoguineanos

aborígines australianos

j evenques (Sibéria)

- buriats (Mongólia) ’—quirguizes

_r waraos (nativos sul-americanos) L- waraos (nativos sul-americanos)

— inuítes siberianos

— guaranis (nativos sul-americanos)

- japoneses japoneses

mkambas (Tanzânia)

ewondos (Camarões)

bamileques (Camarões)

lisongos (República Centro-Africana)

iorubas (Nigéria)

iorubas (Nigéria)

- mandenkas (Senegal)

_j efiks (Nigéria)

’— efiks (Nigéria)

- ibos (Nigéria) ibos (Nigéria)

I mbenzeles (pigmeus, República Centro-Africana)

L biakas (pigmeus, República Centro-Africana)

r biakas (pigmeus, República Centro-Africana)

*~ mbenzeles (pigmeus, Rep. Centro-Africana)

1 quicuios (Quênia)

- haussàs (Nigéria)

r- mbutis (pigmeus, República Democrática do Congo)

mbutis (pigmeus, República Democrática do Congo)

I— sãs (bosquímanos, Botsuana)

— sãs (bosquímanos, Botsuana)

258

259
árvore genealógica de Cann e Wilson é o quanto ela se estende no passado. Mediante algumas
suposições simples acerca da taxa de acumulação de mutações ao longo da evolução, é possível
calcular a idade da árvore genealógica — a época em que viveu a tata-tata-tata-tata...tataravó de
todos nós. A estimativa de Cann e Wilson foi de 150 mil anos. Ou seja, todos os seres humanos que
hoje vivem, até mesmo os menos aparentados entre si, tiveram um ancestral comum há no máximo
150 mil anos.

Como acontecera com os resultados obtidos por Sarich e Wilson duas décadas antes, as conclusões
de Cann e Wilson foram saudadas por muitos da comunidade antropológica com descrença e
escândalo. Uma teoria da evolução humana amplamente aceita sustentava que nossa espécie
descendia de indivíduos que saíram da África há cerca de 2 milhões de anos para se fixar no Velho
Mundo. Segundo esse modelo, a árvore genealógica humana deveria estenderse cerca de treze vezes
mais longe no tempo. A alternativa de Cann e Wilson, apelidada pela mídia de ”Eva Africana” ou,
menos enganosamente, ”Out of África” * não negava essa migração mais antiga, mas implicava
que, ao chegarem à Europa, os seres humanos modernos expulsaram as populações dos primeiros
hominídeos lá existentes, originárias do êxodo original quase 2 milhões de anos antes. Homo
erectus, a espécie que se disseminou a partir da África há 2 milhões de anos, vagou por todo o
Velho Mundo e, cerca de 700 mil anos atrás, acabou dando origem aos neandertais — seus
descendentes europeus, portanto. Em seguida, há não mais de 150 mil anos, um outro grupo, Homo
sapiens (os seres humanos modernos), igualmente descendente do Homo erectus (embora não tenha
deixado o seu continente de origem), decidiu repetir a odisséia para fora da África realizada éons
antes por seus ancestrais. Vimos que os neandertais não se acasalaram com esses recém-chegados à
Europa e o mesmo parece ter acontecido sempre que o H. sapiens se deparou com o H. erectus —
mas, em todas as ocasiões em que chegaram a se encontrar, os primeiros expulsaram os últimos. O
desaparecimento do último neandertal, cerca de 29 mil anos atrás, representou a extinção dos
últimos descendentes não-modernos do H. erectus.

Cann, Wilson e seus colegas haviam modificado fundamentalmente o modo de compreendermos o


nosso passado humano.
* Ou ”Para fora da África”, referenda ao livro de Karen Blixen (Isak Dinesen), lançado no Brasil como A fazen-

da africana. (N. T.)

260

Eva müocondrial como a garota da capa.

Pesquisas subseqüentes confirmaram a tese de Cann e Wilson — uma grande parte das quais
proveio do laboratório de Luigi Luca Cavalli-Sforza em Stanford. Cavalli-Sforza, um pioneiro na
aplicação de abordagens genéticas a problemas antropológicos, nasceu em uma eminente família de
Milão e sempre foi fascinado por microscópios. Em 1938, matriculou-se como um precoce
estudante de medicina de dezesseis anos na Universidade de Pavia. ’Acabou sendo uma escolha
muito feliz”, gosta de observar (a alternativa teria sido servir no exército de Mussolini). Quando o
conheci em 1951, Cavalli-Sforza ainda era um geneticista bacteriano promissor e ambicioso. Mas
um comentário casual de um pós-graduando o inspiraria a afastar-se da genética das bactérias e
mergulhar na genética dos seres humanos. Esse aluno, um ex-seminarista, mencionara que a Igreja
Católica preservava registros detalhados dos casamentos dos três últimos séculos. Percebendo que
esses registros ofereciam possibilidades inauditas de pesquisa, Cavalli-Sforza passou a se dedicar
cada vez mais à genética humana. Ele é, com certeza, um dos únicos geneticistas humanos que pode
legitimamente afirmar que encontrou sua vocação através da Igreja.

Cavalli-Sforza percebeu que, idealmente, a confirmação mais convincente das conclusões de Cann e
Wilson sobre a evolução humana viria dos genes que só são transmitidos de pai para filho, isto é,
por algum componente do genoma humano propagado pela linhagem masculina. Se fosse possível
chegar às mes-
261

L
T
mas conclusões estudando a linhagem masculina — ou seja, seguindo o caminho patrilinear, não a
trajetória matrilinear adotada por Cann e Wilson ao analisarem o DNAmt —, teríamos certeza de
uma confirmação verdadeiramente independente. O componente específico dos machos em um
genoma é, sem dúvida, o cromossomo y. Por definição, quem possui um cromossomo Y é macho
(vale lembrar que o cromossomo y é herdado pelos homens de seus pais, cujos espermatozóides
podem conter um x ou um y; ao se fundir com o óvulo, que sempre contém um cromossomo x, o
espermatozóide determina o sexo do novo ser: combinações xx geram mulheres, combinações xy,
homens). Portanto, é no cromossomo Y que encontramos a chave da história genética masculina.
Além disso, como a recombinação só ocorre entre cromossomos emparelhados, o uso do
cromossomo Y permite-nos evitar a mais temida armadilha das análises evolutivas, a recombinação:
um cromossomo y é sempre único, de modo que nunca existe um Y correspondente com o qual
poderia permutar material.

Numa monografia fascinante publicada em 2000, Peter Underhill, colega de Cavalli-Sforza, fez
pelo cromossomo y o que Cann e Wilson haviam feito pelo DNAmt. E os resultados foram
extraordinariamente semelhantes. Mais uma vez, constatou-se que a árvore genealógica humana
tinha raízes na África e, mais uma vez, ela se mostrou notavelmente recente: nossa árvore não é o
sempiterno carvalho imaginado pelos antropólogos, e sim o singelo arbusto das análises de Cann e
Wilson, com cerca de 150 mil anos de idade.

A existência de dois conjuntos independentes de dados, ambos apresentando o mesmo quadro do


passado humano, é irresistível. Quando apenas uma região é estudada (digamos, o DNAmt), os
resultados, embora sugestivos, permanecem inconclusivos; o padrão encontrado pode refletir apenas
peculiaridades da história daquela região específica do dna, não o impacto de algum grande evento
histórico sobre a nossa espécie como um todo. O mais crucial, porém, é que o ponto para o qual
uma árvore genealógica converge — ou seja, o ancestral comum mais recente de todas as
seqüências do estudo, o/a tata-tata-tatatata...tataravô/avó de todos nós — não está necessariamente
associado a nenhum evento específico da história humana. Embora possa conotar a origem da nossa
espécie ou algum outro episódio demográfico historicamente significativo, pode também implicar
algo muito mais trivial do ponto de vista da história humana — talvez nada mais do que o efeito da
seleção natural sobre o DNAmt no passado. Entretanto, se o mesmo padrão de mudanças puder ser

observado em mais de uma região do genoma, tudo indica que de fato se encontrou a marca
genética conclusiva de um evento importante do passado.

Para melhor compreender como a seleção natural pode afetar os padrões de variação genética (e a
idade total de uma árvore genealógica), imagine a seguinte situação: 150 mil anos atrás, a tribo de
proto-humanos possuía uma profusão de seqüências de DNAmt, como a nossa espécie hoje. Num
dado momento, uma mutação benéfica, isto é, favorecida pela seleção natural, ocorreu numa dessas
seqüências. A freqüência dessa mutação teria aumentado até que, muitas gerações depois, estivesse
presente em todos os membros da espécie. Como não ocorre recombinação nas mitocôndrias, ou
seja, como não há intercâmbio entre os vários DNAmts, o processo seletivo afetaria a seqüência
inteira em que a mutação favorecida surgiu pela primeira vez, de tal modo que todos os membros da
espécie acabariam com a mesma seqüência de DNAmt. Assim, quando a seleção natural houvesse
completado seu serviço e todos os indivíduos já estivessem dotados da mutação favorecida, não
haveria variação genética no DNAmt da espécie. Contudo, pouco a pouco, ao longo dos anos
subseqüentes, outras mutações ocorreriam e as variações voltariam a se acumular — mas, em última
análise, todas essas novas seqüências de DNAmt descenderiam daquela mesma seqüência, a saber,
o ponto de convergência da árvore genealógica, o ancestral comum mais recente de todas as
seqüências. O padrão seria exatamente como aquele encontrado por Cann e Wilson, mas nesse caso
o ponto de convergência representa apenas um episódio de ajuste fino do DNAmt pela evolução.

Foi essa ambigüidade que perseguiu os resultados de Cann e Wilson: teria sido produzida por algum
tipo de reparação evolutiva ou por algo muito mais importante no quadro geral da pré-história
humana? Seja como for, quando Underhill observou um padrão similar para o cromossomo Y, essa
ambigüidade desapareceu. A coincidência sugeriu enfaticamente que, no momento em questão (150
mil anos atrás), as populações humanas realmente sofreram uma alteração gênica radical, capaz de
afetar simultaneamente o DNAmt e o cromossomo y. Esse fenômeno, que examinaremos em breve,
é conhecido como ”gargalo genético”.

Como fatores demográficos podem afetar uma árvore genealógica? Toda genealogia é produto das
idas e vindas das linhagens que a compõem: ao longo do tempo, algumas irão prosperar, outras se
extinguir. Basta pensar na questão
262

263
dos sobrenomes. Suponha que há mil anos, em alguma ilha remota, todos os habitantes tivessem um
de três sobrenomes possíveis: Smith, Brown e Watson. Suponha ainda que pequenos erros de
transcrição — ”mutações” — às vezes ocorressem quando o nome de um recém-nascido era
registrado. Esses erros são raros e mínimos, de modo que é possível dizer de quais nomes originais
as formas alteradas provieram: ”Browne” é claramente uma mutação de ”Brown”. Imagine agora,
mil anos depois, que todos os habitantes da ilha se chamam Brown, Browne, Bowne, Frown ou
Broun. Smith e Watson desapareceram, enquanto a linhagem Brown prosperou (e diversificou-se
por meio de mutações). O que aconteceu? O mero acaso levou à extinção das linhagens Smith e
Watson. É possível, por exemplo, que vários srs. e sras. Smith de uma geração só tivessem filhas.
Suponha (como se faz tradicionalmente, embora não na convenção alternativa moderna) que os
sobrenomes sejam transmitidos pela linhagem masculina; uma safra recorde de filhas teria, pois, o
efeito de reduzir a representação dos Smith na geração seguinte. Digamos agora que essa nova
geração de Smith também tenha gerado um número desproporcional de filhas e que, portanto, o
efeito demográfico foi reintensificado. É fácil perceber o quadro: com o tempo, o nome Smith
desaparecerá por completo. No nosso exemplo, o mesmo aconteceu com Watson.

Em termos estatísticos, esse tipo de extinção aleatória é inevitável. Em geral, porém, ela ocorre tão
lentamente que seu impacto só pode ser sentido após enormes períodos de tempo. Às vezes, porém,
um gargalo (isto é, um período de redução populacional aguda) acelera tremendamente o processo.
Se houvesse apenas três casais (seis indivíduos) na ilha no início da sua história demográfica, existe
uma probabilidade razoável de os Smith e os Watson desaparecerem em uma única geração, pois é
plausível que ambos só tenham filhas ou nem cheguem a procriar. Numa população maior, esse
desaparecimento abrupto de linhagens não pode ocorrer; se houver muitos casais Smith, é
estatisticamente inconcebível que todos tenham apenas filhas ou não cheguem a gerar uma
progênie. Somente ao longo de muitas gerações é que os efeitos do decrescimento dos Smith iriam
pouco a pouco se acumulando. Na verdade, no sul do Pacífico, houve um exemplo real desse
processo hipotético de extinção de nomes, quando seis amotinados do Bounty colonizaram a ilha
Pitcairn com suas treze noivas taitianas. Após sete gerações, o número de sobrenomes minguara
para três.
264

i
Se examinarmos hoje os sobrenomes da nossa população hipotética — Brown, Browne, Bowne,
Frown ou Broun —, poderemos inferir que todos descendem de apenas uma das três linhagens
iniciais, a dos Brown. Portanto, a implicação dos dados relativos ao DNAmt e ao cromossomo y dos
seres humanos não deveria nos surpreender: 150 mil anos atrás, havia muitas seqüências diferentes
de DNAmt e de cromossomos y, mas todas as seqüências atuais descenderam, respectivamente, de
apenas uma. Todas as demais se extinguiram, talvez durante um gargalo genético antigo — alguma
redução populacional provocada por peste, alteração climática ou seja o que for. Porém, qualquer
que tenha sido o evento cataclísmico em nossa história primordial, uma coisa é clara: algum tempo
depois, grupos de nossos ancestrais começaram a emigrar da África, iniciando a saga épica da
colonização humana do planeta.

Outra descoberta interessante confirmada por ambos os estudos — do DNAmt e do cromossomo Y


— é a posição dos sãs,* da África meridional, na árvore genealógica humana. O ramo desse povo é
o mais comprido e, portanto, o mais antigo da árvore. Isso de modo algum implica que seja mais
”primitivo” que o restante de nós: todo ser humano encontra-se na mesma distância evolutiva e
molecular dos nossos parentes mais próximos entre os pongídeos. Se estendermos as linhagens até o
último ancestral comum dos seres humanos e dos chimpanzés, vemos que minha linhagem tem
cerca de 5 milhões de anos, como a dos sãs. Na realidade, ambas as nossas linhagens permaneceram
idênticas durante a maior parte desses éons: somente há 150 mil anos é que a linhagem dos sãs se
separou das outras linhas humanas.

Evidências genéticas parecem indicar que, após uma migração inicial para o sul e o leste da África,
os sãs permaneceram relativamente isolados ao longo da história. Esse padrão é confirmado pela
sociolingüística quando consideramos a distribuição da sua língua oclusiva incomum (ao menos
para meus ouvidos). Atualmente, a distribuição dos sãs é bastante limitada, devido à expansão de
povos de língua banto vindos do centro-oeste africano iniciada cerca de 1.500
* Os sãs também são conhecidos como bosquímanos (ou boxímanes). O termo em inglês, bushmen [homens dos arbustos], derivado de
sanqua em holandês, é depreciativo, sendo usado pelos colonizadores holandeses do final do século xvn.

265
Caçadores sãs.

anos atrás. A expansão dos bantos expulsou os sãs para regiões marginais, como o deserto Kalahari.

Considerando sua história relativamente estável, será que os sãs podem indicar qual era a aparência
dos ancestrais de todos os seres humanos modernos? Talvez — mas não necessariamente, pois
mudanças substanciais podem ter ocorrido na linhagem sã ao longo dos últimos 150 mil anos. Até
mesmo inferir o modo de vida de nossos ancestrais a partir dos sãs é questionável, pois o seu estilo
de vida atual é uma adaptação ao ambiente inóspito do deserto a que foram confinados desde a
chegada relativamente recente dos bantos. Em 2000, tive o privilégio de passar vários dias numa
comunidade sã no deserto Kalahari. Fiquei impressionado com o seu notável pragmatismo, com a
eficiência com que realizaram todas as tarefas que tinham diante de si, mesmo aquelas fora da sua
experiência normal, como consertar um pneu furado. Vi-me desejando que um número maior de
meus colegas fosse igualmente adaptável. Se, em termos genéticos, essas pessoas eram mais
”diferentes” de mim do que quaisquer outras no planeta, não foi com pouca emoção que me dei
conta de como nossas mentalidades eram parecidas.

A singularidade genética e cultural dos sãs logo desaparecerá. Os jovens da região do deserto
Kalahari não desejam dar continuidade ao estilo nômade de caça e coleta de seus pais. Quando o
grupo que visitei apresentou uma ”dança extática” tradicional, por exemplo, os mais jovens da
comunidade ficaram visivelmente envergonhados com os trejeitos dos mais velhos. Eles certamente
deixarão suas comunidades e se casarão com membros de outros grupos.

Na realidade, a história já registra uma tendência de miscigenação entre os sãs e outros grupos. A
tribo xhosa, de Nelson Mandela, por exemplo, é uma mistura biológica de povos bantos e sãs, e a
língua xhosa, embora baseada no banto, possui muitos sons oclusivos característicos da sã. Em
nossa época de aceleração tecnológica, é improvável que a integridade genética e cultural dos sãs
consiga perdurar por muito mais tempo. Felizmente, considerável esforço foi empreendido ao longo
das últimas décadas para compreender e documentar esse povo singular e seu modo de vida. Philip
Tobias, da Universidade de Witwatersrand, em Johannesburgo, esteve na vanguarda desses estudos
e, durante muitos anos, foi um porta-voz extra-oficial dos sãs, defendendo-os durante os dias mais
turbulentos do apartheid. E Trefor Jenkins, um galés loquaz que desembarcou na África do Sul
depois de trabalhar como médico nas minas de cobre da Zâmbia, foi um pioneiro dos estudos
genéticos sobre os sãs e outros grupos indígenas.

Lamentavelmente, elucidar as origens da cultura humana permanece além do alcance até mesmo
dos métodos genéticos mais sofisticados. Evidências arqueológicas mostram que nossos
antepassados estavam envolvidos em ativida-
A descendência da África. Nossa espécie originou-se na África e, de lá, disseminou-se para o resto do mundo. As datas estimadas de
colonização são baseadas no dna mitocondrial.

2.66

267
des bastante semelhantes às de outros hominídeos (neandertais inclusive) durante a primeira fase de
sua evolução. De fato, num sítio em uma caverna em Skhul, em Israel, há provas de que, cerca de
100 mil anos atrás, populações de Homo sapiens e Homo neanderthalensis coexistiram, sem
prejuízo mútuo aparente. Subseqüentemente, porém, há cerca de 30 mil anos, como vimos, os seres
humanos modernos eliminaram seus primos de fronte larga. Portanto, é provável que, nesse período
intermediário de 70 mil anos, os seres humanos modernos tenham adquirido alguma vantagem
decorrente de avanços tecnológicos e/ou culturais. Dados arqueológicos independentes corroboram
essa hipótese. Ao que parece, há cerca de 50 mil anos, os seres humanos modernos de repente se
tornaram culturalmente modernos: encontramos nos resquícios dessa época os primeiros
ornamentos incontestáveis, o primeiro uso cotidiano de ossos, marfim e conchas na produção de
artefatos úteis e os primeiros entre muitos aperfeiçoa mentos na tecnologia da caça e da coleta. O
que aconteceu? Talvez jamais saibamos. Mas somos tentados a especular que foi a invenção da
linguagem que possibilitou tudo isso — e todas as nossas realizações desde então.

Pré-história, por definição, refere-se ao período anterior aos registros escritos. Não obstante, nas
seqüências de dna de todo indivíduo, encontramos um registro escrito das várias jornadas de seus
ancestrais. A nova ciência da antropologia molecular utiliza esses padrões de variação genética entre
os diferentes grupos para reconstruir a história da colonização humana. Com isso, a ”pré-história”
humana tornou-se acessível.

Estudos da distribuição das variações genéticas entre os continentes soma-’ dos a todo tipo de
informações arqueológicas revelaram alguns detalhes da expansão global de nossos antepassados. A
expedição pela orla da Ásia e pelos arquipélagos da Indonésia moderna, até a Nova Guiné e a
Austrália, foi empreendida cerca de 60 mil anos atrás. Para chegar à Austrália é preciso cruzar
várias extensões de água consideráveis, o que sugere que nossos ancestrais já usavam barcos nessa
época primeva. Os seres humanos modernos chegaram à Europa por volta de 40 mil anos atrás e
penetraram o norte da Ásia, incluindo o Japão, cerca de 10 mil anos depois.

Como tantos outros pioneiros nesse campo (entre eles, Rebecca Cann e Svante Pàãbo), Michael
Hammer, da Universidade do Arizona, recebeu seu treinamento no laboratório de Allan Wilson em
Berkeley. E, embora o seu interesse inicial fossem os camundongos, a publicação do estudo de
Cann e Wilson sobre DNAmt conduziu-o dos roedores para o passado humano. Ele foi dos
primeiros a perceber que as informações sobre o cromossomo y poderiam fornecer uma prova
crucial para a hipótese genérica de Cann e Wilson. No início, porém, o cromossomo y relutou em
revelar seus segredos. Certo estudo, realizado no laboratório de Wally Gilbert, seqüenciou um
mesmo trecho de dna extraído de vários indivíduos, mas conseguiu apenas constatar que a
seqüência era idêntica em todos os casos — um esforço estafante que não produziu nenhuma
informação sobre inter-relações genéticas. Hammer, porém, persistiu e, por fim, ele e outros
conseguiram transformar o cromossomo Y numa verdadeira mina de ouro antropológica, cujo
resultado máximo foi a memorável monografia de Underhill.

Dessa mina, um grande veio contribuiu sobremaneira para reconstituir0105 a colonização humana
do Novo Mundo, um acontecimento relativamente tardio. A identidade do mais antigo povoamento
humano das Américas permanece uma questão controversa: um sítio em Clovis, Novo México, com
11.200 anos de idade, tradicionalmente deteve o título, mas os partidários de um sítio em Monte
Verde, Chile, afirmam que este tem no mínimo 12.500 anos. Também se debate se os primeiros
ameríndios cruzaram o estreito de Bering por uma ponte terrestre durante a última Idade do Gelo ou
se viajaram em barcos por uma rota mais meridional. O que os dados genéticos deixam claro é que
o grupo fundador era pequeno: somente duas classes principais de seqüências do cromossomo y
foram detectadas, de modo que parece ter havido apenas dois desembarques distintos, cada um
envolvendo provavelmente uma única família. Entre os ameríndios, há muito mais variações no
DNAmt do que no cromossomo y, o que sugere que havia mais mulheres do que homens em cada
grupo fundador. É provável que a mais comum dessas duas seqüências do cromossomo y represente
o grupo que chegou primeiro; seus descendentes já teriam se estabelecido antes da chegada do
segundo grupo, que incluiu antepassados dos atuais navajos e apaches. A seqüência mais comum
também possui outra distinção: a presença (notada pela primeira vez em 2002) de uma mutação
raramente encontrada em outra parte do planeta. Corroborando a precedência pioneira de seus
portadores, estima-se que essa mutação tenha cerca de 15 mil anos de idade — não muito mais do
que os mais antigos sítios arqueológicos conhecidos.
268

269
Análises genéticas também permitiram reconstituir fases mais recentes da pré-história. Hammer, por
exemplo, mostrou que os japoneses modernos são uma mistura entre os jomons (antigos
caçadores/coletores, representados atualmente pelos ainos, a população aborígine japonesa) e
imigrantes relativamente recentes, os yayois, que chegaram da península coreana há cerca de 2.500
anos, trazendo consigo a tecelagem, a metalurgia artesanal e uma agricultura baseada no arroz.
Também na Europa encontramos indícios de ondas migratórias, muitas vezes associadas a avanços
em tecnologia agrícola. Grupos como os bascos (que vivem nos Pireneus, a cadeia de montanha na
fronteira franco-espanhola) e os celtas (que chegaram mais tarde e são encontrados por toda a orla
noroeste da Europa, da Bretanha, na França, até a Irlanda e o oeste da Inglaterra) são geneticamente
distintos do resto da Europa. Uma explicação é que ambos foram expulsos para regiões
relativamente remotas por outros grupos que chegaram depois.

Bryan Sykes, em Oxford, trabalhou assiduamente para revelar a complexidade do mapa genético da
Europa moderna. Segundo a teoria convencional, os europeus modernos proviriam em grande parte
das populações do Oriente Médio que inventaram a agricultura no Crescente Fértil, entre o
Mediterrâneo e o golfo Persa. Sykes, no entanto, verificou que a maior parte dos ancestrais
europeus deve ter vindo não do Crescente Fértil, mas de linhagens indígenas mais antigas,
anteriores às incursões dos médio-orientais, e de grupos migrantes da Eurásia central. Tais grupos
incluem os celtas e os hunos, que adentraram a Europa vindos do Oriente por volta de 500 a.C. e
400 d.C, respectivamente. Levando a análise do DNAmt um passo além, Sykes afirmou que
praticamente todos os europeus são descendentes de uma das sete ”filhas de Eva”, sua designação
para o número surpreendentemente pequeno de nós de ancestralidade existentes na árvore
genealógica formada pelo DNAmt dos europeus. Ele fundou uma empresa, chamada Oxford
Ancestors, que, mediante uma taxa, seqüência o DNAmt do indivíduo para determinar de qual
dessas sete ”filhas” ele descende. É possível que outra chave para compreendermos o passado
humano seja a observação proficuamente explorada por Cavalli-Sforza e outros: os padrões de
evolução genética estão muitas vezes correlacionados com padrões de evolução lingüística.
Existem, é claro, alguns paralelos óbvios entre genes e palavras. Ambos são transmitidos de uma
geração à seguinte e ambos sofrem mudanças, que no caso da língua podem ser extremamente
rápidas, como qualquer pai de
270

adolescente bem sabe. Do mesmo modo, o inglês dos Estados Unidos é semelhante ao inglês
britânico mas distinto deste, embora ambos só tenham evoluído separadamente há algumas centenas
de anos. Com base em tais semelhanças e diferenças, a árvore genealógica das línguas pode ser
reconstituída de maneira semelhante à árvore genealógica genética. Mais importante, porém, como
o próprio Darwin foi o primeiro a prever,* podemos identificar correspondências instrutivas entre as
duas árvores, de tal modo que o que aprendemos sobre uma pode aprofundar nosso entendimento da
outra. O caso dramático dos celtas e dos bascos é pertinente aqui: esses povos são geneticamente
isolados do resto da Europa e suas línguas são correspondentemente distintas daquelas do resto do
continente. Quanto ao Novo Mundo, uma teoria lingüística controvertida propõe que existem
apenas três grandes grupos lingüísticos nativos na América, dois dos quais correlacionam-se com os
dois eventos migratórios discernidos nos dados sobre o cromossomo y dos ameríndios. O terceiro,
de longe o menor, envolve os isolados esquimós.

A disponibilidade de dados genéticos específicos a cada sexo — DNAmt para mulheres,


cromossomo y para homens — permite comparações entre a história masculina e a história
feminina. Mark Seielstad, um orientando de Cavalli-Sforza, decidiu comparar os padrões de
migração de cada sexo. A lógica é simples. Imagine uma mutação que ocorra num cromossomo Y
na Cidade do Cabo, na África do Sul. A rapidez com que chega, digamos, ao Cairo, é um índice da
taxa de migração masculina. Do mesmo modo, podemos dizer que a rapidez com que uma mutação
no DNAmt na Cidade do Cabo chega ao Cairo indica a taxa de migração feminina.

Bem ou mal, a história sempre foi muito mais uma crônica da movimentação de homens
(geralmente atrás de despojos ou impérios) do que de mulheres: basta pensar na marcha de
Alexandre, o Grande, da Macedônia até o norte da índia; ou nos vikings e suas violentas incursões
marítimas da Escandinávia à Islândia e à América; ou em Gengis Khan e seus cavaleiros
* Em A origem das espéces, Darwin observou: ”Se possuíssemos uma perfeita genealogia do homem, a ordenação genealógica das raças
humanas nos proporcionaria a classificação ideal das várias línguas hoje faladas em todo o mundo.”

271
avançandopelas estepes da Ásia Central. Porém, mesmo excluindo as guerras como uma desculpa
para viajar, pensamos nos homens como os membros mais móveis da sociedade humana.
Tradicionalmente, são os homens que caçam, uma atividade que costuma levá-los para longe do lar,
ao passo que as mulheres, numa típica sociedade de caçadores /coletores, permanecem em casa,
colhendo alimentos na própria região e cuidando dos filhos. Portanto, Seielstad tinha motivos para
supor que os homens fossem os principais agentes de mobilidade genética da nossa espécie. Os
dados, porém, mostraram que ele estava totalmente equivocado. Em média, as mulheres são oito
vezes mais móveis que os homens.

Por mais contrário ao senso comum que possa parecer, isso é facilmente explicado. Em todas as
sociedades tradicionais, como característica quase universal, nós, seres humanos, somos adeptos do
que os antropólogos chamam ”patrilocalidade”: quando duas pessoas de vilarejos diferentes se
casam, a mulher se muda para o povoado do marido, não vice-versa. Imagine que uma mulher da
vila A se case com um homem da vila B e mude-se para lá. O casal tem uma filha e um filho. A filha
se casa com um homem da vila c e muda-se para lá; o filho se casa com uma mulher da vila D, que
se muda para a vila b a fim de ficar com o marido. Com isso, a linhagem masculina permanece fixa
na vila B, ao passo que a feminina se mudou, em duas gerações, de A para c, passando por b. Esse
processo se repete geração após geração e, como resultado, a migração feminina é extensiva, ao
contrário da masculina. De fato, os homens às vezes saem para conquistar terras distantes, mas
esses eventos têm pouca importância no grande esquema dos padrões migratórios humanos; na
verdade, foi a migração passo-a-passo, vila-a-vila, das mulheres que moldou a história humana,
pelo menos no âmbito genético.

Detalhados estudos das variações regionais no cromossomo y e no DNAmt também podem revelar
algo sobre os padrões de relações sexuais e hábitos de acasalamento promovidos ao longo do
processo de colonização. Na Islândia, por exemplo, que era inabitada antes da chegada dos vikings,
encontramos uma nítida assimetria ao compararmos dados sobre o cromossomo y e o DNAmt.
Previsivelmente, a maioria dos cromossomos y é nórdica, mas uma grande proporção dos tipos de
DNAmt provém da Irlanda. Ao que parece, os nórdicos que colonizaram a Islândia levaram consigo
mulheres irlandesas. Infelizmente, não é possive extrair do DNAmt como as mulheres irlandesas se
sentiram em tais circunstâncias-

Um estudo recente das variações no cromossomo y e no DNAmt na Colômbia revelou um efeito


semelhante. Na maioria dos segmentos da sociedade, os cromossomos Y colombianos são
espanhóis, um legado biológico direto da conquista da região costeira da América espanhola: cerca
de 94% dos cromossomos y estudados têm origem européia. Curiosamente, porém, o padrão
mitocondrial é bem variado: os colombianos modernos possuem uma gama de tipos de DNAmt
ameríndio. A inferência é clara: os invasores espanhóis — homens — tomaram mulheres locais
como esposas. A quase total ausência do cromossomo Y ameríndio revela a trágica história do
genocídio colonial: os homens nativos foram dizimados, enquanto as mulheres locais eram
sexualmente ”assimiladas” pelos conquistadores.

Às vezes, no entanto, assimetrias duradouras são mais uma questão de continuidade cultural do que
de choque violento de culturas. Os parses, um grupo minoritário da índia, acreditam descender dos
zoroastrianos, um povo ariano indo-europeu que fugiu das perseguições religiosas no Irã no século
VII. Análises genéticas de parses modernos mostram que, de fato, eles preservaram o cromossomo
y ”iraniano”, mas que seu DNAmt tende a ser do tipo ”indiano”. Nesse caso, a assimetria foi
mantida pela tradição. Para ser aceito como um verdadeiro parse zoroastriano, é preciso ter um pai
parse zoroastriano. Desse modo, o direito de pertencer à comunidade parse é transmitido pelo pai
junto com o cromossomo y — e a genética confirma o jugo da tradição.
A tradição também contribuiu para conformar os padrões de variação genética entre os judeus. Um
estudo recente mostrou que os membros da casta sacerdotal, os kohanim (e seus descendentes, hoje
geralmente identificáveis pelo sobrenome Cohen), têm um cromossomo y diferente o bastante para
distinguilos de todos os demais grupos. Mesmo entre os povos mais obscuros, aqueles lançados
mais longe pela diáspora judia, como os lembas da África do Sul, o cromossomo y dos ”Cohen” se
preservou — à maneira de um texto religioso sagrado. Acredita-se que a origem desse cromossomo
seja Aarão, irmão de Moisés, que, segundo as Escrituras, foi o fundador da casta dos kohanim. Por
certo, não é impossível que a seqüência do cromossomo y dos kohanim tenha realmente pertencido
a ele e tenha sido transmitida intacta, de pai para filho, por todas as gerações desde então. Tais são
os rigores da tradição no curso da história judaica.

Hammer e outros conseguiram usar o cromossomo Y para acompanhar


272

v_-*/4i

273
Abraão contempla seu complicado arranjo doméstico.

toda a diáspora, com resultados bastante interessantes. Os judeus asquenazes, por exemplo, que
vivem na Europa há 1.200 anos (e hoje também nos Estados Unidos e outros lugares), preservaram
as indicações genéticas de suas origens médio-orientais. Na realidade, estudos moleculares
deixaram claro que os judeus, ao menos geneticamente, são quase indistinguíveis de outros grupos
do Oriente Médio, incluindo os palestinos. Isso, também, está escrito. Abraão, o grande patriarca,
teria tido dois filhos com mulheres diferentes: Isaac, de quem os judeus descendem, e Ismael,
predecessor dos árabes. Que uma inimizade tão mortal tenha surgido entre os descendentes do
mesmo homem é uma ironia — tanto mais amarga porque os genes parecem comprovar a narrativa
da tradição.

Uma simples caminhada por qualquer rua de Manhattan poderia sugerir que, geneticamente falando,
nossa espécie é a mais variada do planeta. Na verdade, porem, o genoma humano é bem menos
variado que o da maioria das outras espécies das quais dispomos de informações genéticas.
Somente cerca de um em cada mil pares de bases humanos varia de indivíduo para indivíduo.
Geneticamente, pois, somos todos 99,9% idênticos — uma variação mínima pelo padrão de outras
espécies. Nas moscas-das-frutas, embora todas pareçam iguais para nós, o grau de variação é dez
vezes maior. Até os pingüins-adelia [Pygoscehs adeliae], esses ícones de mesmice com suas vastas
colônias antárticas
de indivíduos indistinguíveis, são duas vezes mais variáveis que nós. Tampouco essa escassa
variabilidade é encontrada em nossos parentes mais próximos: os chimpanzés são cerca de três
vezes mais variados que nós, os gorilas, duas vezes, os orangotangos, 3,5 vezes.

Com os resultados do DNAmt e cromossomo y familiais em mãos, fica fácil de perceber por que
nós, humanos, somos tão parecidos: o nosso ancestral comum é muito recente. Cento e cinqüenta
mil anos é um piscar de olhos na evolução — tempo insuficiente para surgirem grandes variações
por mutação.

Outra constatação contrária ao senso comum sobre a variação humana, por menor que esta seja, é
que, de um modo geral, não existe correlação alguma entre variação e raça. Antes de Cann e Wilson
demonstrarem que a nossa espécie saiu há surpreendentemente pouco tempo da África, supunha-se
que os diferentes grupos houvessem se mantido isolados uns dos outros em continentes diferentes
por longos períodos de tempo — até 2 milhões de anos. Isso teria permitido um acúmulo de
diferenças genéticas palpáveis, segundo o modelo de Pauling-Zuckerkandl, pelo qual o grau de
divergência genética entre populações isoladas é uma função do tempo em que permaneceram
isoladas. A luz da conclusão de Cann e Wilson (de que todos nós compartilhamos um mesmo
ancestral comum bem mais recente), fica claro que simplesmente não houve tempo para que
populações geograficamente separadas divergissem de modo significativo. Assim, embora
diferenças genéticas genéricas, como cor de pele, se manifestem em grupos, as diferenças genéticas
específicas às raças tendem a ser bastante limitadas. Na verdade, a maior parte das nossas parcas
variações está espalhada de maneira quase uniforme entre as diversas populações: as chances de
encontrarmos uma determinada variante genética numa população africana e numa população
européia são iguais. Somos levados a inferir que grande parte da variação genética da nossa espécie
surgiu na África antes de termos deixado esse continente e, portanto, já estava presente nos grupos
que partiram para colonizar o resto do mundo.

O golpe de misericórdia em qualquer orgulho que pudéssemos ter de nossa variedade genética foi
dado pelo Projeto Genoma Humano, que concluiu que somente cerca de 2% do nosso dna realmente
codifica e que, portanto, pelo menos 98% das variações ocorrem em regiões do genoma em que não
têm
efeito algum. Como a seleção natural é bastante eficiente em eliminar as mutações que afetam
partes do genoma com importância funcional (como os genes), as
274

275
p

variações vão se acumulando preferencialmente em regiões que nada codificam (”dna-Lixo”). A


diferença entre os seres humanos é mínima; e a diferença que ela faz é ainda menor.

Por causa da diminuta escala de tempo evolutivo, a maioria das diferenças consistentes que vemos
entre grupos é, provavelmente, produto da seleção natural: a cor da pele, por exemplo.

Debaixo do denso pêlo emaranhado, a pele de nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, é
praticamente destituída de pigmentação. (Poderíamos dizer que os chimpanzés são brancos.) E,
presumivelmente, também o era o ancestral comum dos chimpanzés e dos seres humanos do qual a
linhagem humana se ramificou há 5 milhões de anos. Assim, inferimos que a intensa pigmentação
de pele característica dos africanos (e dos primeiros seres humanos modernos, nascidos na África)
surgiu no curso da evolução humana subseqüente. Com a perda dos pêlos, o pigmento tornou-se
necessário para proteger as células epidérmicas da perigosa radiação ultravioleta do Sol. Hoje
sabemos que, no âmbito molecular, os raios ultravioleta podem provocar câncer de pele, pois fazem
com que as bases de timina da dupla-hélice adiram umas nas outras, criando um enroscamento, por
assim dizer, na molécula de dna. Quando o dna se replica, o enroscamento muitas vezes promove a
inserção de uma base errada, produzindo assim uma mutação. Se, por acaso, essa mutação ocorrer
num gene que regula o crescimento celular, o resultado pode ser um câncer. A melanina, o pigmento
produzido pelas células epidérmicas, reduz os danos causados pela radiação ultravioleta. Como bem
sabe qualquer pessoa de pele clara como a minha, as queimaduras de sol, embora não costumem ser
letais, constituem uma ameaça muito mais imediata à saúde do que o câncer de pele. Portanto, é
fácil imaginar a seleção natural favorecendo a aquisição de pele mais escura para prevenir não só o
câncer, mas também as infecções que podem facilmente resultar de queimaduras severas.

Por que os habitantes de latitudes mais elevadas perderam melanina? A explicação mais razoável
envolve a síntese da vitamina d?, um processo que ocorre na pele e que requer luz ultravioleta. A
vitamina d? é essencial para a assimilação do cálcio, que, por sua vez, é um ingrediente crucial de
ossos fortes. (Deficiência de vitamina D3 pode resultar em raquitismo e osteoporose.) É possível
276

que, quando nossos ancestrais trocaram a África por regiões onde as estações do ano são bem
demarcadas e onde há menos radiação ultravioleta ao longo do ano, a seleção natural tenha
favorecido as variações de pele mais clara — pois, tendo menos pigmento na pele bloqueando a luz
solar, eram mais eficientes na síntese da vitamina D3 com a radiação ultravioleta limitada
disponível. A mesma lógica se aplica aos movimentos de nossos ancestrais dentro da África. Os sãs,
por exemplo, na África do Sul, onde a intensidade da radiação ultravioleta é semelhante à do
Mediterrâneo, têm a pele notavelmente clara. Mas o que dizer dos povos esquimós, que vivem
próximo do pouco ensolarado Ártico mas são surpreendentemente escuros? Suas chances de
produzir a vitamina parecem ser prejudicadas pela necessidade de permanecerem totalmente
vestidos a maior parte do tempo em virtude do clima. Na realidade, a pressão seletiva favorável à
pele clara não parece ter se imposto entre eles e o motivo talvez seja que conseguiram resolver a
questão da vitamina D3 à sua própria maneira: com uma dieta abundante em peixes, uma fonte rica
desse nutriente essencial.

Considerando a importância da cor da pele como um fator determinante, quase sempre negativo, da
história humana e da experiência individual, é surpreendente que saibamos tão pouco sobre os
aspectos genéticos subjacentes. Mas esse desconhecimento talvez tenha menos a ver com as
limitações da ciência do que com a intromissão da política no âmbito científico. Num mundo
acadêmico tiranizado pelo politicamente correto, estudar até mesmo a base molecular dessa
característica tornou-se uma espécie de tabu. O pouco que compreendemos provém de estudos
antigos com crianças mestiças, que constataram que diversos genes são responsáveis pela
pigmentação. Contudo, pelo que conhecemos de outras espécies e da similaridade dos processos
bioquímicos básicos entre os mamíferos, o quadro é mais complicado. Sabemos, por exemplo, que
muitos genes afetam a cor do pêlo dos camundongos e é provável que esses genes tenham
equivalentes humanos diretos. Entretanto, até o momento, só conseguimos identificar dois genes
envolvidos na pigmentação humana: um que provoca o albinismo quando sofre mutação e outro, o
”receptor de melanocortina”, associado a cabelos ruivos e uma tez clara (geralmente com sardas). O
gene do receptor de melanocortina é variável entre os europeus e asiáticos, mas invariável entre os
africanos, o que sugere ter havido uma rigorosa seleção natural na África contra a sua mutação, isto
é, contra indivíduos de cabelos vermelhos e pele clara. Às vezes, surgem albinos em populações
277
Respostas evolutivas âe adaptação do formato corporal ao clima: um massai adaptado ao calor no Quênia e três

inuítes adaptados ao frio na Groenlândia.

africanas, mas, carecendo totalmente de pigmentação, sua extrema sensibilidade à luz solar lhes
confere uma terrível desvantagem.

Outro traço morfológico provavelmente determinado por seleção natural é o formato do corpo. Em
climas quentes, em que a dissipação do calor corporal é prioritária, dois tipos básicos se
desenvolveram. A ”forma nilótica”, representada pelos massais da África Oriental, é alta e esguia,
maximizando a razão superfície/volume e facilitando assim a dissipação do calor. A forma pigméia,
por outro lado, embora ainda esbelta, é bastante baixa. Nesse caso, o extenuante estilo de vida dos
caçadores/coletores selecionou o tamanho diminuto para minimizar a energia despendida em
movimentação — por que arrastar um corpanzil enquanto se busca comida? Em latitudes mais
elevadas, por outro lado, a seleção favoreceu formas corpóreas que promovem a retenção de calor,
com baixo coeficiente superfície/volume. Os neandertais do norte da Europa eram bem encorpados
e o mesmo acontece hoje com o habitante médio de alguns climas boreais. É de se presumir que
certas variações no desempenho atlético entre um e outro grupo possam ser atribuídas a tais
diferenças no formato do corpo. É mais do que evidente que para o salto em altura, por exemplo,
um corpo nilótico de grande estatura está mais bem adaptado do que um corpo baixo e
rechonchudo.

Se existe um traço cuja distribuição entre as populações humanas é difícil de compreender, é a


intolerância à lactose. O leite dos mamíferos, incluindo a variedade humana, é rico em um açúcar
chamado lactose e os recém-nascidos de quase todas as espécies produzem uma enzima especial, a
lactase, para decompô-lo no intestino. Porém, quando deixa de mamar no peito, a maioria
278

dos mamíferos (seres humanos inclusive — ou, pelo menos, a maioria dos africanos, americanos
nativos e asiáticos) cessa de produzir lactase, de modo que os adultos não conseguem digerir a
lactose. ”Intolerância à lactose” significa que beber um copo de leite pode ter conseqüências
desagradáveis — diarréia, flatulência e aumento do volume abdominal. Todavia, a maioria das
pessoas de cor branca e membros de alguns outros grupos continuam a produzir lactase pelo resto
da vida e, portanto, podem suportar uma dieta com laticínios. Uma explicação sugere que a
intolerância à lactose se desenvolveu nos grupos mais dependentes de produtos lácteos ao longo da
história, mas essa teoria não chega a ser totalmente convincente, pois certos padrões desse traço não
a confirmam: existem, por exemplo, povos pastores na Ásia Central — queijo para todos — que são
intolerantes à lactose. E, a despeito de pertencer a um grupo étnico que costuma ser tolerante à
lactose, eu pessoalmente não a tolero. Se a seleção natural houvesse favorecido a tolerância num
determinado grupo, por que teria deixado o serviço incompleto? O sinal que melhor corrobora a
explicação-padrão é a tolerância à lactose de grupos africanos tradicionalmente associados com a
pecuária. Talvez jamais compreendamos plenamente a dimensão adaptativa desse traço, mas
biólogos moleculares que estudavam uma população finlandesa identificaram recentemente a
mutação responsável. Assim, embora não se trate em absoluto de combater alguma condição letal,
agora é possível, mediante um teste genético simples, determinar se um recém-nascido terá no
futuro de escolher entre privar-se de sorvete e sofrer eólicas gástricas crônicas.

Mais interessante do que o número relativamente pequeno de diferenças entre as raças é o que todos
nós temos em comum — aquilo que nos torna tão diferentes de nossos parentes mais próximos.
Como vimos, desde a separação entre a linhagem humana e a dos chimpanzés há cerca de 5 milhões
de anos, mal tivemos tempo de desenvolver 1% de diferenças genéticas. Mas nesse 1% estão as
mutações críticas que fizeram de nós essas extraordinárias criaturas pensantes e falantes que somos.
Podemos até discutir se outras espécies possuem alguma forma limitada de consciência, mas
claramente nunca nenhuma delas produziu um Leonardo da Vinci ou um Francis Crick.

Os cromossomos dos seres humanos e dos chimpanzés são muito similares. Os chimpanzés, no
entanto, possuem 24 pares, ao passo que nós temos 23.
279
Acontece que o nosso cromossomo 2 foi produzido pela fusão de dois cromossomos de chimpanzé.
Há também diferenças no cromossomo 9 (o dos seres humanos é maior) e no cromossomo 12 (o dos
chimpanzés é maior), além de diversos exemplos de inversões, ou ftips, nos próprios cromossomos
que são diferentes nos seres humanos e nos chimpanzés. Mas é difícil dizer se essas diferenças
cromossômicas são significativas ou não.

Os méritos relativos de cada espécie não são muito mais claros no âmbito bioquímico, onde até o
momento só conseguimos discernir duas diferenças entre os seres humanos e os chimpanzés.
Primeira diferença: em ambas as espécies, uma molécula de açúcar chamada ácido siálico está
presente na parte externa de todas as células. Porém, enquanto a molécula é sutilmente modificada
nos chimpanzés pela ação de uma enzima, nos seres humanos o gene que codifica essa enzima
sempre sofre mutação: nenhuma enzima é produzida e o ácido siálico na superfície das células
humanas não se modifica. Não fazemos a menor idéia se isso é importante ou não. A segunda
assimetria, descoberta em 2002 pela equipe de Svante Pããbo, é mais sugestiva: uma diferença no
foxp2, um gene que está de algum modo ligado à linguagem humana. (Como foi constatado que
mutações na versão humana desse gene causam problemas lingüísticos, a mídia equivocadamente
designou o foxp2 como o ”gene da gramática”.) Em uma cadeia com 715 aminoácidos, apenas duas
alterações distinguem os seres humanos dos chimpanzés e gorilas (cujas proteínas foxp2 são
idênticas). Na realidade, esses aminoácidos são idênticos em todos os mamíferos testados, exceto
nos seres humanos. Além disso, análises estatísticas do padrão das variações do dna no gene e nas
proximidades sugerem que a seleção natural pode ter atuado para formar essa proteína ao longo da
evolução humana. Portanto, é tentador (mas prematuro) sugerir que o foxp2 seja o equivalente
evolutivo de uma prova dos nove — um vislumbre de uma etapa crucial na origem da linguagem.

O laboratório de Páãbo também foi pioneiro no desenvolvimento de uma abordagem promissora e


original para identificar outros genes que talvez codifiquem diferença(s) crítica(s). Usando
microplacas de dna, que determinam quais genes estão ativados em determinado tecido (veja
capítulo 8), Pàábo comparou padrões de expressão gênica — ou seja, quais os genes ativados — em
seres humanos, chimpanzés e primatas do gênero Macaca em três tecidos diferentes: glóbulos
brancos, fígado e cérebro. Como seria de esperar de acordo com seu parentesco, os seres humanos e
os chimpanzés estão bem próximos em
280

relação às células sangüíneas e ao fígado. Já o padrão de expressão gênica no cérebro é uma outra
história: o cérebro humano é muito diferente do cérebro do chimpanzé e de outros símios. Talvez
isso não deva surpreender: poucos de nós precisariam de um laboratório cheio de equipamento para
calcular que os cérebros humanos são diferentes dos cérebros de chimpanzés. A importância da
pesquisa está, pois, em nos fornecer um inventário dos genes cujas expressões diferem em um e
outro cérebro. Isso, porém, na melhor das hipóteses, é apenas um ponto de partida. É improvável
que, quando dispusermos de um catálogo completo dos mecanismos subjacentes, consigamos
compreender precisamente como os genes nos distinguem. Provavelmente a nossa humanidade é
muito mais difícil de descrever do que uma lista detalhada dos eventos moleculares controlados.
Mas a busca de nossos alicerces genéticos parece agora dispor ao menos de uma lista de suspeitos.

No momento em que escrevo, o projeto do genoma do chimpanzé começa a tomar fôlego. Quando
estiver terminado, terá revelado o dna que constitui aquele 1% de diferença identificado por King e
Wilson. Meu prognóstico é que sua conclusão será confirmada: as diferenças cruciais não estão nos
genes em si, mas no modo como são orientados. Desconfio que os seres humanos são nada mais do
que grandes macacos com alguns comutadores genéticos únicos — e muito especiais.

A missão mais grandiosa da biologia molecular é, por certo, responder a perguntas acerca de nós
mesmos e de nossas origens como espécie. Mas o espírito humano anseia conhecer sua história
pessoal tanto quanto a dos seus ancestrais. E o dna também é capaz de nos fornecer um relato mais
individualizado de ancestralidade. Em certo sentido, escrita em minhas moléculas de dna, encontra-
se a história da minha linhagem evolutiva — uma narrativa que pode ser interpretada em diversos
níveis: posso situar a seqüência do meu DNAmt na árvore genealógica humana de Cann e Wilson
ou posso examinar em mais detalhe o passado conhecido da minha família. Meu cromossomo y e
meu DNAmt contarão histórias diferentes — o lado de minha mãe e o lado de meu pai.

Nunca me interessei por genealogia. Mas minha família — como muitas outras, suspeito — tem seu
próprio arquivo genealógico ambulante na pessoa de tia Betty, que dedicou a vida a ruminar o
parentesco de todos com todos. Foi ela
281
quem descobriu que os Watson, uma família das terras baixas da Escócia, despontaram pela
primeira vez em terras americanas em 1795, em Camden, Nova Jersey. E foi ela quem insistiu que
algum antepassado paterno meu projetou a casa de Abraham Lincoln em Springfield, Illinois. Eu,
porém, sempre me interessei mais pelo meu lado irlandês, a família da minha avó materna. Os avós
de minha mãe deixaram a Irlanda durante a Grande Fome de 1845-46, provocada pelo fracasso da
safra de batatas. Acabaram em Indiana, onde o avô de mamãe, Michael Gleason, faleceu em 1899, o
mesmo ano em que ela nascia. Em seu túmulo está escrito que ele viera de uma cidade na Irlanda
chamada Glay.

Numa visita que fiz à Irlanda, tentei descobrir mais sobre meu bisavô no cartório de registros do
condado de Tipperary, cuja sede em Neneagh, a 30 quilômetros de Limerick, havia sido outrora uma
prisão. Meu trabalho de detetive foi um fracasso abissal. Como não encontrei nenhuma menção a
”Glay”, só pude concluir que o nome escrito na lápide de meu ancestral, provavelmente analfabeto,
era fantasioso. E assim findou meu único contato pessoal com pesquisas genealógicas — até
recentemente. Agora que a estrutura da árvore genealógica humana foi estabelecida por Cann e
outros, estou ansioso para descobrir onde me encaixo. Empresas como a Oxford Ancestors, de
Bryan Sykes, representam a nova era das pesquisas genealógicas, em que laboratórios de alta
tecnologia substituíram os arquivos empoeirados. Com uma amostra do meu dna, a Oxford
Ancestors realizou análises do DNAmt e do cromossomo y. Infelizmente, os testes nada revelaram
de romântico, heróico ou exótico. Como eu temia, sou de fato o produto de uma estirpe escócio-
irlandesa basicamente comum. Não posso sequer atribuir minhas facetas mais rudes a antigas
incursões vikings na minha linha ancestral.
282

io. Identificação genômica: O dna forense


Em 1998, Marvin Lamont Anderson, de 34 anos de idade, foi solto da Penitenciária Estadual da
Virgínia. Ele estivera preso por quinze anos, quase toda a sua vida adulta, condenado por um crime
hediondo: o estupro brutal de uma jovem em julho de 1982. A promotoria apresentara um caso
totalmente inequívoco: a vítima reconheceu Anderson em uma fotografia e identificou-o numa
fileira de outros suspeitos e no tribunal. Anderson foi considerado culpado de todas as acusações e
recebeu sentenças consecutivas que totalizaram mais de duzentos anos.

Um caso inequívoco. Mas quem sabe um advogado de defesa mais hábil conseguisse rebater o
esforço da promotoria em arrumar uma arapuca contra o réu. A prisão de Anderson foi baseada
exclusivamente no depoimento da vítima (branca) à polícia, que disse que o agressor (negro) se
gabara de ”ter uma
Acima: Barry Scheck, PeterNeufeld e O.J. Simpson.

283
mulher branca”. Até onde as autoridades sabiam, Anderson era o único negro da cidade com uma
namorada branca. De todas as fotografias de arquivo que a vítima examinou, somente a de
Anderson era colorida. E, de todos homens cujas fotos lhe foram mostradas, só ele foi incluído na
linha de identificação. Ainda que tenha sido provado que a bicicleta usada pelo agressor fora furtada
trinta minutos antes da ocorrência por outro homem, John Otis Lincoln, o advogado de Anderson
não quis convocar Lincoln como testemunha.

Cinco anos após o julgamento, Lincoln confessou o crime sob juramento, mas o juiz acusou-o de
mentiroso e se recusou a tomar providências. Anderson, enquanto isso, continuava protestando sua
inocência e solicitou que fosse feita uma análise do dna das evidências físicas encontradas na cena
do crime. Mas informaram-no de que tudo fora destruído, em conformidade com os procedimentos
usuais. Foi então que Anderson entrou em contato com os advogados do Innocence Project, um
grupo que atraíra atenção nacional usando análises do dna para estabelecer provas definitivas de
culpa ou inocência em processos criminais. Enquanto o Innocence Project estudava o pedido de
Anderson, ele foi solto sob condicional. Se não cometer nenhuma infração, permanecerá em
condicional até 2088 — ou seja, certamente até o fim da vida.

No final, o que o salvou foi um desleixo da perita que, em 1982, realizara uma análise inconclusiva
de grupo sangüíneo com material obtido no local do crime: ela se esquecera de devolver as amostras
às autoridades competentes, que as destruiriam como medida de rotina. Com isso, as amostras ainda
existiam quando Anderson solicitou um novo exame. Mas o diretor do Departamento de Justiça
Criminal da Virgínia indeferiu o pedido, argumentando que constituía um ”precedente indesejável”.
Graças a uma nova legislação, no entanto, os advogados do Innocence Project obtiveram uma
liminar determinando que os testes fossem realizados. Em dezembro de 2001, os resultados
provaram categoricamente que Anderson não poderia ter sido o agressor. A ”impressão genômica”
do dna da cena do crime combinava com a de Lincoln. Este acabou sendo condenado e Anderson
foi perdoado pelo governador da Virgínia, Mark Warner.

dna fingerprinting ou ”identificação genômica” [literalmente, ”datiloscopia do dna”], como é


chamada a técnica que salvou Marvin Anderson de uma prisão perpétua indevida, foi uma
descoberta acidental de um geneticista britânico, Alec Jeffreys. Desde o início da revolução
instaurada pela tecnologia do
284

Üec]e$rcys> Pai dã identificação genômica.

dna recombinante, Jeffreys se interessara pelas diferenças genéticas entre as espécies. Suas
pesquisas na Universidade de Leicester concentraram-se no gene da mioglobina, que produz uma
proteína semelhante à hemoglobina, encontrada principalmente em tecido muscular. Foi durante
essa ”dissecação molecular” que ele constatou algo muito estranho: um pequeno trecho de dna que
se repetia continuamente. Um fenômeno similar havia sido observado em 1980 por Ray White e
Arlene Wyman, que, ao examinarem outro gene, constataram que o número dessas repetições
variava de indivíduo para indivíduo. Jeffreys concluiu que faziam parte do dna-Lixo, por
participarem da codificação de proteínas, mas logo verificou que esse lixo em particular poderia ser
muito bem aproveitado.

Jeffreys constatou que esse curto trecho de dna repetitivo aparecia não apenas no gene da
mioglobina, mas espalhado por todo o genoma. E, embora os trechos variassem um pouco de uma
repetição a outra, todos tinham em comum uma seqüência curta, praticamente idêntica, de cerca de
quinze nucleotídeos. Ele decidiu usar essa seqüência como uma ”sonda”: utilizando uma amostra
purificada da seqüência, marcada com uma molécula radioativa, pôs-se a ”caçar” a seqüência por
todo o genoma. O dna do genoma é espalhado numa folha de náilon especial e, por emparelhamento
das bases, a sonda irá grudar na sua seqüência complementar sempre que a encontrar. Usando um
filme de raios x sob a folha de náilon, JefFreys pôde registrar o padrão desses pontos radioativos.
Quando revelou o filme desse experimento, ficou pasmo com o que viu. Embora a sonda houvesse
detectado muitas seqüências similares em inúmeras amostras de dna, ainda restava tanta variação
entre uma amostra e as demais que, mesmo naquelas extraídas de membros da mesma família, era
pos-
285
sível distinguir um indivíduo do outro. Como disse no artigo que escreveu a res peito para a revista Nature em
1985, o ”perfil nos fornece uma fingerpriyit [impressão digital] específica de cada indivíduo”.

O nome identificação genômica, ou dna fingerprinting, é pertinente, pois essa tecnologia tem a capacidade de
identificar indivíduos por meio da sua ”impressão” — impressão digital na datiloscopia tradicional, uma
impressão genômica no caso do dna fingerprinting. Jeffreys e seus colegas extraíram amostras de dna do
próprio sangue e as submeteram ao mesmo procedimento. Conforme esperado, as imagens estampadas no
filme de raios X permitiram distinguir, sem ambigüidade, cada um deles. Jeffreys percebeu que havia um
amplo espectro de utilidades possíveis:

Em teoria, sabíamos que a técnica poderia ser usada na identificação forense e em testes de paternidade. E
também para determinar se dois gêmeos são realmente idênticos — uma informação importante nos
transplantes de órgãos. Poderia ser aplicada a enxertos de medula óssea para verificar se haviam sido aceitos
ou rejeitados. Também era possível ver que a técnica funcionaria em animais e aves. Poderíamos descobrir
como cada criatura está relacionada com as demais — e, se quisermos compreender a história natural de uma
espécie, essa é uma informação fundamental. Também vislumbramos a sua aplicação na biologia da
conservação. A lista de aplicações parece infindável.

Mas a primeira aplicação prática do procedimento foi mais estranha do que Jeffreys poderia ter previsto.

identificação genômica: o gel usado Por Vcr Alec Jeffreys para determinar os verdadeiros pais de Andrew Sarbah.

286

No verão de 1985, Christiana Sarbah estava no limiar da loucura. Dois anos antes, seu filho Andrew
retornara à Inglaterra depois de visitar o pai em Gana. No aeroporto de Heathrow, porém, as
autoridades imigratórias britânicas haviam se recusado a permitir a entrada do rapaz — embora ele
houvesse nascido na Grã-Bretanha e fosse súdito britânico. As autoridades negaram que Sarbah
fosse sua mãe e afirmaram que, na verdade, Andrew era filho de uma das irmãs de Sarbah e estava
tentando entrar ilegalmente no país com um passaporte falso. Ao ler no jornal uma reportagem
sobre o trabalho de Jeffreys, um advogado envolvido no caso resolveu pedir ajuda ao geneticista.
Será que esse novo teste de dna poderia provar que Andrew era filho, não sobrinho, da sra. Sarbah?

A análise foi prejudicada pelo fato de nem o pai de Andrew nem as irmãs de Sarbah estarem
disponíveis para oferecer amostras. Jeffreys obteve o dna a partir de amostras extraídas da sra.
Sarbah e de três filhos que eram inquestionavelmente seus. A análise mostrou que Andrew tinha o
mesmo pai que os irmãos e que Sarbah era realmente sua mãe. Ou, mais especificamente, a chance
de uma das irmãs de Sarbah ser a mãe de Andrew era inferior a 1 em 6 milhões. As autoridades
imigratórias não contestaram os resultados de Jeffreys, mas evitaram admitir oficialmente o erro,
abandonando o caso. Andrew foi reunido com sua mãe e Jeffreys ficaria conhecendo os dois: ”A
expressão de alívio no rosto dela era absolutamente encantadora”.

Mas será que a técnica funcionaria se usasse sangue, sêmen e pêlos — os tecidos normalmente
encontrados no local de um crime? Jeffreys não demorou a provar que sim, e logo as impressões
genômicas atrairiam a atenção do mundo inteiro, revolucionando a ciência forense.

Em 1983, na manhã de uma terça-feira de novembro, o corpo de uma estudante de quinze anos
chamada Lynda Mann foi encontrado em Black Pad, uma trilha nos arredores do vilarejo de
Narborough, perto de Leicester, na Inglaterra. Ela havia sido violentada. Três anos se passaram sem
que nenhuma prisão fosse efetuada. E então o agressor atacou novamente: num sábado de agosto de
1986, o corpo de Dawn Ashworth, outra menina de quinze anos, foi encontrado em Ten Pond Lane,
uma outra trilha de Narborough. A polícia estava convencida de que o mesmo homem cometera os
dois assassinatos e logo indiciou um auxiliar de cozinha de dezessete anos. Embora confessasse o
assassinato de
287
Ashworth, o suspeito negou envolvimento no caso anterior. Foi quando a polícia decidiu consultar
Alec jeffreys para tentar confirmar que o suspeito havia matado ambas as moças.

A análise de Jeffreys reservava boas e más notícias para as autoridades. A comparação das amostras
das duas vítimas mostrou que, de fato, o mesmo homem cometera ambos os assassinatos, como a
polícia acreditava. Infelizmente (para a polícia), o mesmo teste provou que o auxiliar de cozinha
sob custódia não matara nenhuma das moças — um resultado confirmado por outros especialistas
convocados pela polícia. O suspeito foi libertado.

Com a única pista inutilizada e a comunidade local cada vez mais preocupada, a polícia tomou uma
medida excepcional. Confiante em que a identificação genômica ainda se revelaria a chave da
elucidação, decidiu solicitar amostras do dna de todos os homens adultos de Narborough e
cercanias. Foram criados postos para receber amostras de sangue e, com isso, um grande número de
candidatos pôde ser eliminado pelo tradicional e mais barato teste de tipo sangüíneo. As amostras
restantes foram enviadas para identificação genética. Numa boa versão hollywoodiana dessa
história, Jeffreys acabaria identificando o verdadeiro assassino — e foi isso mesmo que aconteceu,
mas não sem antes uma outra reviravolta no enredo digna dos melhores filmes policiais. O culpado
conseguiu a princípio safar-se da emboscada genética que ia se armando contra ele. Ao perceber que
teria de fornecer a amostra compulsória, Colin Pitchfork, alegando pavor de agulhas, convenceu um
amigo a fornecer uma amostra em seu lugar. Só mais tarde, quando alguém entreouviu esse amigo
comentando o que havia feito, é que Pitchfork foi preso — merecendo assim a dúbia honra de ser o
primeiro criminoso preso com base na ”impressão digital” do seu dna.

O caso de Narborough mostrou aos órgãos de segurança do mundo inteiro que a identificação
genômica representava, de fato, o futuro da imputação criminal. Não demoraria até que esse tipo de
evidência fosse utilizada pela primeira vez num tribunal dos Estados Unidos.

/ Culturalmente, os britânicos talvez sejam mais afeitos à autoridade, ou talvez esse obscuro
falatório molecular simplesmente tenda a irritar mais os americanos. Seja como for, a introdução da
identificação genômica nos Estados Unidos foi bastante controve rtida.
288

O direito sempre teve dificuldade para assimilar as implicações, ou talvez a idéia em si, de
evidência científica.* Até os mais inteligentes advogados, juizes e jurados acham penoso entendê-la
a princípio. Basta lembrar um caso famoso e marcante: o de Charlie Chaplin. Um teste de tipo
sangüíneo determinara inequivocamente que o lendário Carlitos do cinema mudo não era o pai da
criança cuja mãe movera o processo de paternidade. Não obstante, o júri decidiu em favor dela.

Há muito tempo que os tribunais americanos utilizam a ”Prova de Frye” como padrão para admitir
uma evidência científica. Tomando por base um dos primeiros julgamentos a utilizar provas
forenses, esse teste visa a eliminar evidências pouco confiáveis ao exigir que a ciência na qual se
baseiam seja ”bem-estabelecida o suficiente para gozar de aceitação geral no seu campo
específico”. Todavia, por se fundamentar num entendimento equivocado do que constitui ”ciência
bem-estabelecida”, a Prova de Frye é uma maneira bastante ineficaz de determinar a credibilidade
de um testemunho ”perito”. Somente em 1993, no caso ”Daubert contra Merrell Dow
Pharmaceuticals”, é que a Suprema Corte determinou que as chamadas ”regras federais para
evidências” fossem utilizadas: é o juiz que preside o julgamento que deve determinar se as
evidências apresentadas são fidedignas, isto é, se são cientificamente válidas sem a menor sombra
de dúvida.
Hoje em dia, com a transformação da Court tv em presença marcante na paisagem televisiva dos
Estados Unidos e um sem-número de séries em horário nobre tendo as investigações forenses como
tema, talvez seja difícil avaliar como foi difícil para o sistema jurídico americano engolir o dna.
Embora todos tivessem ouvido falar da nossa descoberta pioneira em 1953, ainda pairava sobre ela
uma aura de ciência impenetrável. Na realidade, cada novo avanço noticiado pela mídia de massa só
fazia o campo da genética parecer mais abstruso. Talvez o pior fosse que as indiciações
fundamentadas no dna eram apresentadas não como certezas cabais, e sim como meras
probabilidades. Mas que probabilidades! Cifras como ”1 em 50 bilhões” eram lançadas a torto e a
direito para estabelecer a culpa ou inocência do réu; assim, não é de admirar que alguns
questionassem o valor de advogados, juizes, júris e dispendiosos julgamentos, já que um simples
geneticista, envolto pela autoridade da ciência, parecia capaz de dar conta do recado.
O sistema judiciário americano distingue entre eviâence (apresentação ou declaração documental ou oral que pode ser admitida como um
testemunho num tribunal) e proofÇo resultado ou efeito da evidence). (N. T.)

289
Seja como for, a maioria dos julgamentos depende de mais fatores do que uma simples comparação
de duas amostras de dna e a aceitação dos novos métodos ia avançando lenta mas inelutavelmente.
Podemos dizer que o entendimento e aceitação desses métodos foram ajudados por advogados que
criaram fama contestando precisamente os casos que dependiam de evidências de dna. Hábeis
advogados de defesa, como Barry Scheck e Peter Neufeld, tornaram-se tão peritos quanto os
especialistas que interrogavam. Scheck — baixo, desalinhado e belicoso — e Neufeld — alto,
elegante e belicoso — ficaram famosos buscando falhas técnicas nos casos apresentados durante os
primórdios da identificação genômica. Os dois se conheceram em 1977 na Bronx Legal Aid Society,
um centro local de advocacia para indigentes. Scheck, filho de um agente bemsucedido de estrelas
como Connie Francis, crescera em Nova York mas encontrara sua vocação política em Yale, ao
participar da greve nacional de estudantes convocada após o assassinato de quatro alunos pelos
fuzileiros navais convocados para dissolver os protestos estudantis na Universidade Estadual Kent
em
1970. Sempre desconfiado das autoridades instituídas e do seu potencial de abusar do poder, ele se
ofereceu para colaborar com a equipe de defesa de Bobby Seale durante o julgamento desse
membro dos Panteras Negras em New Haven. Peter Neufeld cresceu num subúrbio de Long Island,
onde sua mãe ainda vive, não muito longe do laboratório Cold Spring Harbor. Ele não foi menos
precoce em suas inclinações esquerdistas, chegando a ser repreendido no último ano do ensino
secundário por organizar protestos contra a guerra.

Ninguém se surpreendeu quando esses dois jovens com o progressismo social no sangue se
tornaram advogados militantes, prestando assistência jurídica em Nova York — uma época
turbulenta na vida da cidade, quando o aumento dos índices de criminalidade tornou o lema ”justiça
universal” um ideal ameaçado pelo esforço de garantir a segurança pública. Uma década depois,
Scheck lecionava na Faculdade de Direito Cardozo e Neufeld montara seu próprio escritório de
advocacia.

Encontrei-os numa conferência histórica sobre identificação genômica organizada pelo laboratório
Cold Spring Harbor. A controvérsia estava no auge, talvez porque a tecnologia forense estivesse
sendo cada vez mais aplicada, embora ainda se usasse a técnica original, ainda não aperfeiçoada, de
Jeffreys — a barulhenta e obscura análise dos polimorfismos do comprimento dos fragmentos de
restrição [conhecidos pela sigla em inglês rflp = restriction fragment length poly-
290

morphisms]. Inevitavelmente, alguns resultados eram difíceis de interpretar e, com isso, a


identificação genômica passara a ser contestada por motivos técnicos e legais. Na verdade, o
encontro em Cold Spring Harbor foi a primeira ocasião em que cientistas moleculares — Alec
Jeffreys inclusive — se viram frente a frente com peritos forenses e advogados que já utilizavam o
dna nos tribunais. As discussões foram acaloradas. Os geneticistas moleculares acusaram os
cientistas forenses de utilizarem técnicas laboratoriais desleixadas e de simplesmente não
realizarem os testes com o devido cuidado. De fato, naqueles dias, a identificação genômica em
laboratórios forenses estava sujeita a pouca ou nenhuma regulamentação ou supervisão.
Contestaram-se também os pressupostos estatísticos, igualmente não padronizados, usados para
calcular as cifras imponentes que sugeriam certeza quase absoluta. O geneticista Eric Lander falou
em nome de um bom número de participantes preocupados quando foi direto ao assunto: ”A
implementação da identificação genômica foi apressada demais”.

Esses problemas de ordem prática proliferavam num caso em que Scheck e Neufeld estavam
trabalhando em Nova York. Joseph Castro fora acusado de assassinar uma mulher grávida e sua
filha de dois anos. A análise dos RFLPs, realizada por uma empresa chamada Lifecodes,
determinara que a mancha de sangue no relógio de pulso de Castro pertencia à gestante assassinada.
Todavia, após um exame meticuloso dos dados do dna, testemunhas-peritas da promotoria e da
defesa informaram ao juiz numa audiência preliminar que, na opinião delas, os testes de dna não
haviam sido realizados de modo competente. O juiz excluiu todas as evidências baseadas em dna
como sendo inadmissíveis. Todavia, o caso não chegou a ir a julgamento, pois Castro confessou
ambos os assassinatos no final de 1989.

Apesar da exclusão das evidências baseadas em dna, o caso Castro ajudou a estabelecer padrões
legais para a genética forense. Esses padrões seriam aplicados num caso muito mais proeminente
que Scheck e Neufeld estavam prestes a assumir e que colocaria a identificação genômica na boca
de todos nos Estados Unidos e no resto do mundo, onde quer que houvesse uma televisão ligada: o
julgamento de O. J. Simpson em 1994. O ex-ídolo esportivo poderia ser condenado à morte se fosse
declarado culpado pelos crimes hediondos de que era acusado pelos promotores públicos de Los
Angeles: o assassinato sangrento de sua ex-esposa, Nicole Brown Simpson, e de seu amigo Ronald
Goldman. Como integrantes do arcam tom jurídico contratado pelo réu, Scheck e Neufeld seriam
291
peças-chave na defesa e absolvição de Simpson. A polícia técnica coletara manchas de sangue no
local do crime (na casa de Nicole Brown Simpson), na casa de O. J. Simpson, nas famigeradas luva
e meia e no igualmente famigerado Bronco, o utilitário esportivo branco de Simpson. Segundo a
procuradoria, as evidências de dna — 45 amostras de sangue no total — constituíam uma
”montanha de evidências” que apontavam para a culpabilidade do réu. Mas Simpson tinha do seu
lado os mais hábeis alpinistas que o dinheiro poderia comprar. As contestações da defesa foram
curtas e grossas, e, com o mundo inteiro assistindo ao caso pela televisão, essas refutações fariam
ferver algumas das controvérsias centrais da ciência forense que permaneciam havia anos em
banho-maria. Uma década antes do julgamento de Simpson, quando os promotores estavam
começando a apresentar evidências baseadas em dna e somente eles recorriam às aplicações da
tecnologia genética, os advogados de defesa logo levantaram uma dúvida óbvia: qual o critério para
definir compatibilidade entre uma amostra de dna encontrada no local do crime e outra obtida do
sangue de um suspeito? Essa era uma questão particularmente contenciosa numa época em que a
tecnologia ainda dependia dos rflps. Por esse método, a impressão digital do dna aparece como uma
série de faixas num filme de raios x. Se as faixas produzidas pelo dna da cena do crime não forem
idênticas às faixas produzidas pelo dna do suspeito, qual o grau de diferença que pode ser
legitimamente tolerado antes de se considerarem as amostras incompatíveis? Ou seja, que grau de
semelhança precisam ter as amostras iguais? Havia também o problema da competência técnica. No
início, quando a identificação genômica era realizada em laboratórios forenses não-especializados
no manuseio e análise do dna, erros crassos não eram incomuns. Os órgãos de segurança pública
logo perceberam que, se quisessem que essa nova e poderosa arma continuasse sendo usada, tais
questões teriam de ser resolvidas. Foi quando um novo tipo de marcador genético — as chamadas
”repetições curtas enfileiradas”, conhecidas pela sigla em inglês strs [short tandem repeats] —
substituiu o método dos rflps. O tamanho das strs pode ser medido com bastante precisão,
eliminando-se assim a avaliação subjetiva das faixas de rflps num filme de raios x. E a comunidade
da ciência forense também resolveu rapidamente o problema da competência técnica variável ao
estabelecer não só um código uniforme de procedimentos para a identificação genômica, mas
também um sistema de credenciamento de laboratórios.
292

Porém, os ataques mais veementes foram reservados aos números. Se é verdade que os promotores
preferiam apresentar as evidências de dna sob a forma de estatísticas frias e aparentemente
incontroversas, às vezes, como os advogados de defesa começaram a argumentar, a margem de
certeza de ”1 bilhão para 1” em favor do Estado poderia decorrer de alguma suposição tendenciosa.
A pergunta é: ao obtermos uma impressão genômica na cena do crime, com base em que devemos
calcular a probabilidade (ou, na maioria das vezes, a improbabilidade) de ela pertencer a outra
pessoa que não o principal suspeito? Devemos comparar esse dna com o de uma amostra aleatória
de indivíduos? Ou, por exemplo, se o principal suspeito for uma pessoa de cor branca, será que essa
amostra deve ser comparada apenas com o dna de outros brancos (uma vez que a semelhança gênica
tende a ser maior entre os membros do mesmo grupo racial do que numa seção transversal aleatória
da população)? As probabilidades irão variar dependendo do que considerarmos um pressuposto
razoável.

Além disso, qualquer tentativa de defender uma conclusão baseada em obscuros princípios de
genética populacional pode sair pela culatra, seja confundindo os jurados, seja pondo-os para
dormir. Vale mais — muito mais, diz-nos a experiência — ver alguém tentando resolutamente vestir
uma luva que não lhe cabe do que examinar uma montanha de estatísticas.

Na realidade, as evidências de identificação genômica apresentadas no julgamento de O. J. Simpson


apontavam para o réu. Mostrou-se, quase sem sombra de dúvida, que uma gota de sangue recolhida
perto do corpo de Nicole Brown Simpson, bem como outras gotas encontradas na calçada do local
do crime, pertenciam a ele. Com o mesmo grau de certeza, a mancha de sangue na luva retirada da
casa de O. J. se revelou uma mistura do sangue do réu e das duas vítimas. E comprovou-se que o
sangue encontrado nas meias e no Bronco correspondia ao de Simpson e ao de sua ex-esposa.

No final, aos olhos do júri, a anulação das provas forenses contra Simpson decorreu menos da
impossibilidade de explicar aspectos obscuros da genética populacional do que de velhas acusações
de incompetência policial. O dna é uma molécula tão estável que pode ser extraída de manchas de
sêmen com vários anos de idade ou de manchas de sangue raspadas de uma calçada ou do volante
de um utilitário esportivo. Por outro lado, também é verdade que o dna pode se degradar, sobretudo
em ambientes úmidos. Como qualquer outro tipo
2.93
de evidência, o dna só é confiável se os procedimentos para coletar, classificar e apresentar o
material também o forem. Todo julgamento criminal exige que se estabeleça formalmente uma
”cadeia de evidências” a fim de assegurar que o que a polícia diz ter encontrado em tal e tal lugar
estava realmente lá antes de acabar num saco plástico hermeticamente fechado como ”Prova A”.
Em comparação com facas e revólveres, controlar as evidências moleculares é algo particularmente
dificultoso; as raspas de uma calçada podem ser visualmente indistinguíveis das raspas de um
mourão e, portanto, amostras de dna extraídas subseqüentemente de uma e de outro com certeza
parecerão ainda mais semelhantes dentro de pequenos tubos de ensaio plásticos. A equipe de defesa
de O. J. Simpson conseguiu apontar diversos momentos em que parece possível, ou mesmo
provável, que as amostras tenham sido confundidas — ou, pior ainda, contaminadas.

Houve, por exemplo, a questão da mancha de sangue no portão traseiro da casa de Nicole Brown
Simpson, que passou despercebida na primeira perícia da cena do crime e só foi coletada três
semanas após os assassinatos. O cientista forense Dennis Fung apresentou uma fotografia da
mancha, mas Barry Scheck retrucou com outra foto tirada no dia seguinte ao crime, em que a
mancha não aparecia. ”Onde está ela, senhor Fung?”, perguntou Scheck, com um floreio retórico
digno de Perry Mason. Não houve resposta. A defesa conseguiu levantar tantas dúvidas na mente
dos jurados acerca do manuseio e das origens das amostras de dna que a evidência genética se
tornou irrelevante.

Como vimos no capítulo anterior, a contaminação das amostras é um dos grandes perigos quando se
tenta estabelecer uma identidade por métodos genéticos. A reação em cadeia da polimerase, que
permite obter uma impressão genômica a partir de amostras diminutas de dna, tornou-se o método
predileto dos cientistas forenses para amplificar segmentos específicos de dna. No julgamento de
Simpson, por exemplo, uma prova crucial foi uma singela gota de sangue raspada da calçada. Mas
também é possível extrair dna em quantidade suficiente das células da saliva absorvida numa
guimba de cigarro. Na verdade, a reação em cadeia da polimerase consegue amplificar dna a partir
de uma única molécula. O outro lado da moeda é que o mais ínfimo traço de dna de outra fonte —
alguém manuseando as amostras, por exemplo — pode contaminar a amostra usada como prova,
tornando os resultados confusos, na melhor das hipóteses, ou mesmo inúteis.
294

A
COMO FUNCIONA A IDENTIFICAÇÃO GENÔMICA
cromossomo paterno

cromossomo materno -

cromossomo 7

cromossomo 7

[ 1 u,i.m

4 £

IX
í_

1 1 i”.n
cromossomo 2

i m 1 1 laa ~

I I IW MB cromossomo 16
DNA do indivíduo ”A”

1 C=n

XE
cromossomo 2

ÇZ.I I f

d-TT I
cromossomo 16

DNA do indivíduo ”B”

número de repetições curtas enfileiradas (STRs)

cromossomo 16

DNA da cena do crime (C)

SOE? o b;
<u ro

CL”O (U [0

<D CD

repetições amplificadas, separadas por tamanho num gel, determinam a ”impressão genômica”

Identificação genômica (dna fingerprinting) usando repetições curtas enfileiradas (STRs). O DNA de dois suspeitos é comparado com o
DNA recuperado da cena do crime. A ”impressão genômica” de B corresponde ao DNA do local do crime.

Hoje, as ”repetições curtas enfileiradas” (STRs = short tandem repeats) substituíram os polimorfismos do comprimento dos fragmentos de restrição (RFLPs
= restriction fragment length polymorphisms) como o principal método de identificação genômica. As STRs, cujas seqüências de duas a quatro bases podem
se repetir até dezessete vezes, são segmentos comumente amplificados pela reação em cadeia da polimerase. Por exemplo, a D7S82O é uma região do
cromossomo 7 onde a seqüência AGAT pode ocorrer entre sete e catorze vezes. No entanto, a dna polimerase (a enzima que copia dna) não é muito eficiente
em copiar esses trechos repetidos de dna — seu sistema de contagem não é muito preciso —, de modo que há um grande número de mutações nas cópias que
ela faz da seqüência AGAT na posição D7S820. Em outras palavras, há muita variação no número de cópias de AGAT em cada ser humano. Como possuímos
duas cópias do cromossomo 7 (uma de nosso pai, outra de nossa mãe), costumamos ter um número diferente de
repetições AGAT em cada uma — digamos, oito em uma das cópias e onze na outra —, mas isso não significa dizer que um indivíduo não possa ser
homozigótico para um determinado número de repetições (e.g., onze e onze). Se realizarmos uma análise de identificação genômica numa amostra de sangue
encontrada na cena de um crime e constatarmos que ela corresponde às características do suspeito na região D7S820 (digamos, oito e onze repetições),
teremos um indício, mas não uma prova conclusiva da sua culpabilidade — afinal, muitas outras pessoas também têm um genótipo 8/11 na região D7S820.
Portanto, é necessário examinar diversas regiões; quanto maior o número de regiões em que o dna da cena do crime corresponder às do suspeito, maior a
probabilidade de ele ser culpado e mais remotas as chances de o dna encontrado no local do crime ter vindo de outra pessoa. No sistema do fbi, a
identificação genômica se faz mediante análise de doze regiões, mais um marcador que determina o sexo do indivíduo de quem a amostra de dna foi retirada.
Ao longo da última década, com o aumento das aplicações da identificação genômica e da sua
aceitação como prova de identidade, os órgãos de segurança
tiveram uma súbita inspiração: e se obtivéssemos a impressão genômica de
bem... — todos, ou pelo menos de todos que possam ser criminosos? Segundo essa linha de
raciocínio, o fbi certamente deveria ter uma base de dados centralizada com impressões genômicas,
como acontece com as impressões digitais convencionais. De fato, vários estados aprovaram leis
exigindo a obtenção de uma amostra de dna de toda pessoa condenada por algum crime violento,
como estupro ou assassinato. Em 1994, por exemplo, a Carolina do Norte promulgou uma lei que
permite às autoridades obter amostras de sangue de criminosos encarcerados — à força, se
necessário. Alguns desses estados ampliaram o estatuto para que abrangesse todas as pessoas que
forem presas, não importa que venham a ser consideradas culpadas ou não.

O clamor dos defensores das liberdades civis tem sido intenso, não sem motivo: as impressões
genômicas não são como as impressões digitais. Uma amostra de dna tirada para fins de
identificação pode, em princípio, ser usada para muitos outros fins afora provar a identidade de
alguém: pode revelar muito a nosso respeito — por exemplo, se sou portador de mutações
causadoras de doenças como fibrose cística, anemia falciforme ou doença de Tay-Sachs. Em algum
momento de um futuro não muito distante, poderá até mesmo revelar se sou portador de variações
genéticas que me predispõem à esquizofrenia e ao alcoolismo — ou traços ainda mais ameaçadores
à paz social. Será que um dia as autoridades poderão me submeter a algum tipo de sindicância pelo
simples fato de eu possuir uma mutação no gene da monoamina oxidase, que reduz a atividade
dessa enzima? Afinal, certas pesquisas indicam que, sob determinadas circunstâncias, essa mutação
pode me predispor a comportamentos anti-sociais. Será que o perfil gênico pode, de fato, tornar-se
uma ferramenta de ação preventiva dos órgãos de segurança? Minority report: a nova lei, o livro de
Philip K. Dick de 1956 que inspirou o filme de 2002, talvez não seja uma obra de ficção científica
tão mirabolante quanto gostaríamos de imaginar.

Sejam quais forem as conseqüências das discussões hoje travadas a respeito de quem deve ser
obrigado a fornecer amostras de dna e sob quais salvaguardas essas amostras devem ser
preservadas, o fato é que, no momento em que escrevo, há muita identificação genômica ocorrendo
em toda parte. Em 1990, o fbi montou uma base de dados de dna, o Sistema Conjunto de Indexação
do
296

DNA [codis = Combined dna Index System], que, em junho de 2002, continha
1.013.746 impressões genômicas. Dessas, 977.895 eram de criminosos condenados e 35.851
provenientes de amostras obtidas no local de crimes não resolvidos. Desde a sua criação, o codis já
efetuou 4.500 identificações que não teriam sido possíveis de outra maneira.

Uma das principais justificativas para uma base de dados nacional é o potencial de se fazer cold kits
— identificações a partir exclusivamente de dados já cadastrados. Suponha que investigadores
encontrem um pouco de dna — sangue numa janela quebrada, sêmen numa peça íntima — no local
de um crime e determinem a impressão genômica dessa amostra. Suponha agora que eles não
tenham obtido nenhum outro tipo de pista convencional. Porém, quando a impressão genômica é
cadastrada no codis, o sistema acusa uma correspondência. Foi o que aconteceu em St. Louis em
1996. A polícia investigava o estupro de duas jovens em regiões opostas da cidade e, embora as
duas amostras de sêmen analisadas pelo método dos rflps mostrassem que o mesmo homem
cometera ambos os crimes, não tinha sido possível identificar um suspeito. Três anos depois, as
amostras foram reanalisadas usando as strs e os resultados comparados com as impressões
cadastradas no codis. Com isso, encontraram o estuprador em 2001, um certo Dominic Moore, cuja
impressão genômica fora cadastrada no codis ao confessar três outros estupros em 1999.

O intervalo entre o crime e o cold kit pode ser ainda mais impressionante; não poucos malfeitores
devem ter levado um choque ao se depararem com o j’accnse molecular de vítimas há muito tempo
enterradas. Na Grã-Bretanha, Marion Crofts, de catorze anos, foi estuprada e assassinada em 1981,
muito antes de as técnicas de identificação genômica entrarem em uso. Felizmente, algumas provas
materiais foram preservadas, tornando possível estabelecer uma impressão genômica em 1999. Mas
as autoridades e a família pesarosa de Crofts acabaram desapontadas mais uma vez, ao serem
informadas agora de que não havia impressão correspondente na Base Nacional de Dados de dna do
Reino Unido. Dois anos depois, em abril de 2001, Tony Jasinskyj foi preso por atacar sua esposa e
uma amostra de dna foi extraída dele como procedimento de rotina. Ao ser inserida na base de
dados, a correspondência veio à tona: Jasinskyj era o estuprador desconhecido de vinte anos antes.

Nos Estados Unidos, crimes como estupro costumam ter um período de prescrição em diversos
estados. Em Wisconsin, por exemplo, um mandado para
297
prender um suposto estuprador não pode ser emitido mais de seis anos após o crime. Embora
possam parecer desalentadoras e injustas para as vítimas — afinal, será que o horror do crime
simplesmente desaparece após seis anos? —, a verdade é que tais leis tradicionalmente permitem
preservar o devido processo legal [due process of ihe law, ou sujeição peremptória aos princípios do
direito] Os relatos de testemunhas oculares, em especial, não só são pouco confiáveis como toda
lembrança tende a se diluir com o tempo. Assim, os períodos de prescrição visam a impedir erros
judiciários. O dna, entretanto, é uma testemunha de outra ordem. Amostras armazenadas em
condições apropriadas permanecem estáveis por muitos anos, enquanto as impressões genômicas
nunca perdem seu poder incriminativo.

Em 1997, o Laboratório Estadual de Criminalística de Wisconsin criou um cadastro de impressões


genômicas e, no mesmo ano, o Departamento de Polícia de Milwaukee começou a reexaminar casos
não resolvidos de estupro usando as evidências físicas disponíveis para encontrar possíveis
correspondências. Foram encontradas 53 e, em seis meses, as autoridades haviam conseguido oito
cold hits com impressões genômicas de criminosos que já cumpriam pena. Em um dos casos, a
identificação ocorreu tão em cima da hora que o mandado de prisão foi emitido apenas oito horas
antes de o crime prescrever.

O Departamento de Polícia do estado também encontraria na base de dados evidências de um


estuprador em série — três ataques distintos e três amostras distintas de sêmen, cujas impressões
genômicas apontavam para o mesmo homem. Como os crimes estavam prestes a prescrever, Norm
Gahn, um promotor adjunto, viu-se diante de um dilema: de um lado, não havia tempo suficiente
para identificar o agressor na base de dados; de outro, Gahn não podia emitir um mandado de prisão
sem o nome do suspeito. Mas acabou encontrando uma estratégia brilhante. O código criminal de
Wisconsin determina que, caso o nome de um suspeito não seja conhecido, é possível emitir um
mandado válido se este contiver ”uma descrição do indivíduo a ser preso que o identifique com
razoável grau de certeza”. Gahn raciocinou que qualquer tribunal aceitaria que uma impressão
genômica é capaz de identificar alguém segundo esses critérios. E emitiu o mandado: ”Estado de
Wisconsin contra John Doe,*
* Nome usado em procedimentos legais para designar um indivíduo não identificado do sexo masculino.

(N. T.)

298

indivíduo do sexo masculino desconhecido cujo perfil do ácido desoxirribonucléico (dna) apresenta
similitude nos sítios gênicos Dls7, d2s44, D5S110, d10s28 e d17s79”. Apesar do estratagema de
Gahn, porém, esse criminoso ainda não foi pego.

Nesse ínterim, a primeira contestação legal de um mandado anônimo baseado em dna acontecia em
Sacramento, cuja polícia acreditava que um mesmo homem, conhecido como ”o estuprador do
segundo andar”, cometera três estupros ao longo de alguns anos. Anne Marie Schubert, uma
promotora local, inspirou-se na iniciativa de Gahn e resolveu solicitar um mandado anônimo apenas
três dias antes de os crimes prescreverem. Mas precisou atender a requisitos específicos da sua
jurisdição, em particular uma lei estadual da Califórnia que exige que o mandado identifique o
suspeito com ”grau razoável de particularidade”; no final do documento, ela especificou-o assim:
”Homem desconhecido [...] cujo perfil genético peculiar ocorre aproximadamente 1 vez em 21
sextilhões na população branca, 1 vez em 650 quatrilhões na população afro-americana e 1 vez em
420 sextilhões na população hispânica”. Pouco depois da emissão do mandado, depois que a
impressão genômica desse ”John Doe” foi cadastrada na base de dados estadual, verificou-se que
correspondia à de um certo Paul Eugene Robinson, que fora preso em 1998 por violar a condicional.
O mandado foi retificado, inserindo-se ”Paul Eugene Robinson” no lugar de ”John Doe” e suas
respectivas strs. Robinson foi preso novamente. Seu advogado argumentou que o primeiro mandado
não era válido, pois não nomeava o seu cliente. Felizmente, o juiz ratificou a validade do mandado,
comentando que ”o dna parece ser o melhor identificador de pessoas a nosso dispor”.

Diante da publicidade gerada por esses mandados anônimos baseados no dna de ”John Doe”,
muitos estados emendaram suas leis sobre estupro de modo a abrir uma exceção quando houver
evidências de dna disponíveis.

Hoje, o alcance das impressões genômicas se estende além do túmulo. Em


1973, três adolescentes — Sandra Newton, Pauline Floyd e Geraldine Hughes — foram estupradas
e assassinadas em South Wales, no País de Gales. Vinte e seis anos depois, impressões genômicas
foram obtidas a partir de amostras retiradas dos locais dos crimes e preservadas; infelizmente,
porém, a Base Nacional de Dados de dna não apontou nenhuma correspondência. Diante disso, em
vez de
299
buscarem uma correspondência exata, os cientistas forenses começaram a procurar indivíduos cujas
impressões genômicas indicassem alguma relação com o assassino. Cem homens foram
identificados — uma abundância de pistas que permitiu à polícia reavaliar o grande volume de
informações coletadas ao longo das investigações originais. Graças a uma combinação de técnicas
avançadas de dna forense e de velho e bom trabalho detetivesco, encontraram uma trilha que levava
a um suspeito, Joe Kappen. O único problema era que o sr. Kappen falecera em 1991, vítima de
câncer. O que fazer?

Em 1999, Kappen foi exumado e ”fichado”. Verificou-se então que a sua impressão genômica
correspondia à do dna recuperado das três vítimas. O câncer pode ter cobrado a dívida de Kappen
com a sociedade antes que a lei pudesse encontrá-lo, mas pelo menos as famílias das três moças
puderam ter, ainda que tardiamente, a compensação de conhecer o seu nome.

As técnicas de identificação genômica já solucionaram mistérios envolvendo cadáveres muito mais


ilustres que o de Joe Kappen. Vejamos o caso extraordinário da família real russa, os Romanov.

Em julho de 1991, um pequeno grupo de detetives, peritos forenses e policiais reuniu-se numa
clareira enlameada, encharcada pela chuva, na floresta de Koptiaki, na Sibéria. Lá, em julho de
1918, onze corpos haviam sido enterrados às pressas. Eram os restos do czar Nicolau n e da czarina
Alexandra; de seu filho, Alexis, herdeiro do trono; de suas quatro filhas, Olga, Tatiana, Marie e
Anastácia; e de quatro acompanhantes — todos brutalmente assassinados alguns dias antes.
Anastácia ainda segurava Jemmy, seu cachorrinho de pelúcia, ao sucumbir a uma saraivada de
balas. Os assassinos haviam jogado os corpos no fosso de uma mina, mas, temendo que acabassem
descobertos, retiraram-nos de lá no dia seguinte e os enterraram num fosso na floresta.

A cova foi descoberta em 1979 graças ao trabalho investigativo de Alexander Avdonin, um geólogo
obcecado em descobrir o destino da família do czar, e do cineasta Geli Riabov, que, ao conquistar o
privilégio de realizar um documentário oficial sobre a revolução, obtivera acesso aos arquivos
secretos relevantes. Na realidade, foi um relatório do chefe dos assassinos a seus superiores em
Moscou que levou Avdonin e Riabov à sepultura, onde encontraram três crânios e vários outros
ossos. Porém, como o jugo do Partido Comunista per-
300

manecia mais forte do que nunca, os dois acertadamente perceberam que nada teriam a ganhar se
chamassem a atenção para a matança da família real pelos bolcheviques. E reenterraram os restos.

O abrandamento da atmosfera política, que culminou na derrocada da União Soviética, trouxe a


oportunidade pela qual Avdonin e Riabov aguardavam. E pás e picaretas voltaram para a clareira na
floresta.

Os restos exumados — um total de mais de mil pedaços de crânios e ossos — foram encaminhados
a um necrotério em Moscou, onde teve início o lento e demorado processo de montar e identificar
os esqueletos. Logo surgia a primeira surpresa. Sabia-se que onze pessoas haviam sido mortas, seis
mulheres e cinco homens, mas a cova só continha ossos de nove corpos — cinco mulheres e quatro
homens. Os resquícios esqueletais deixavam claro que os corpos desaparecidos eram os de Alexis
(de catorze anos) e Anastácia (dezessete).

A identificação foi recebida com certo ceticismo, especialmente pela discórdia entre os cientistas
russos e uma equipe americana que participava do projeto. Mas, em setembro de 1992, o dr. Pável
Ivanov levou nove amostras de ossos ao laboratório de Peter Gill, do Serviço de Ciência Forense
[Forensic Science Service] da Grã-Bretanha. Gill e um colega, David Werrett, eram coautores do
primeiro trabalho que Alec Jeffreys publicara nesse campo e haviam fundado o Serviço de Ciência
Forense, o primeiro laboratório do Reino Unido especializado em identificação genômica.

Gill desenvolvera um método de identificação que utilizava dna mitocondrial (DNAmt) — que,
como vimos na análise dos restos neandertais, é muito mais profícuo quando o dna disponível é
velho ou difícil de obter (o DNAmt é muito mais abundante do que o dna cromossômico do núcleo
celular).

A primeira incumbência de Gill e Ivanov foi o delicado trabalho de extrair dna nuclear e DNAmt
das amostras de ossos. A análise mostrou que cinco corpos eram aparentados e que três deles
pertenciam a três irmãs. Mas seriam ossos dos Romanov? No caso da czarina Alexandra, pelo
menos, era possível encontrar uma resposta comparando a impressão genômica do DNAmt de seus
ossos com a impressão do DNAmt de seu sobrinho-neto, o príncipe Philip, duque de Edimburgo. As
impressões eram simétricas.

Encontrar um parente do czar foi bem mais difícil. O corpo do grão-duque Georgij Romanov, irmão
caçula do czar, jazia num requintado sarcófago de mármore considerado precioso demais para ser
arrombado. O sobrinho do czar
301
IO 20 cm

recusou-se a cooperar, ainda rancoroso com a recusa do governo britânico em conceder asilo à sua
família quando irrompeu a revolução. Sabia-se da existência de um lenço ensangüentado no Japão,
que o czar usara após ser atacado por um espadachim homicida em 1892. Gill e Ivanov obtiveram
um pequeno pedaço do lenço, mas verificaram que ao longo dos anos a relíquia fora tão
contaminada por dna estranho que se tornara inútil para esse fim. Só quando dois parentes distantes
puderam enfim ser localizados é que se confirmou que a impressão do DNAmt era realmente do
czar.

Contudo, a análise guardava mais uma surpresa: as seqüências de DNAmt do suposto czar e de seus
parentes modernos eram semelhantes, mas não idênticas. Especificamente, na posição 16.169, o
DNAmt do czar continha um C e o dos dois parentes apresentava um T. Testes subseqüentes
mostraram outras complicações. O dna mitocondrial do czar era, na realidade, uma mistura de

dois tipos (C e T), uma condição bastante rara conhecida como ”heteroplasmia” — a coexistência
num mesmo indivíduo de mais de um tipo de DNAmt.

Alguns anos depois, as dúvidas de todos (exceto as dos mais ferrenhos adeptos de teorias
conspiratórias) foram finalmente resolvidas. O governo russo concordara em romper o sarcófago e
proporcionar a Ivanov uma amostra de tecido de Georgij Romanov, irmão do czar. As mitocôndrias
do grão-duque apresentavam exatamente a mesma heteroplasmia encontrada nos ossos do fosso em
Koptiaki. Agora não havia dúvida de que os ossos eram do czar.

E quanto à lendária Anastácia, cujo esqueleto nunca chegou a ser recuperado? Pretendentes à
linhagem Romanov é que não faltaram. Entre eles, nenhuma foi mais persistente do que Anna
Anderson, que durante a vida inteira sempre insistiu ser a grã-duquesa desaparecida. Anderson
alegou ser Anastácia pela primeira vez em 1920 e, com o tempo, tornou-se assunto de muitos livros
e também do filme Anastácia, no qual, interpretada por Ingrid Bergman, termina sendo quem
pretendia ser. Quando morreu em 1984, sua identidade ainda era contestada. Enquanto os
argumentos e contra-argumentos de seus partidários e críticos se prolongavam, surgia enfim o meio
de resolver a questão.

Anna Manahan (seu nome de casada) fora cremada, tornando impossível recuperar qualquer tecido
de seus restos. Mas descobriu-se uma fonte alternativa do seu dna: em agosto de 1970, ela sofrerá
uma cirurgia abdominal de emergência no Hospital Martha Jefferson, em Charlottesville. O tecido
removido
A pretendente Anna Anderson em 1955 e Ingrid Bergman no papel-título âe Anastácia (1956), o filme inspirado nas

pretensões de Anderson.
302

303
durante a operação havia sido enviado a um laboratório de patologia, onde foi preparado para
microscopia e onde, 24 anos depois, ainda permanecia arquivado. Após uma série condignamente
bizantina de demandas jurídicas para obter acesso ao espécime, Peter Gill viajou para
Charlottesville em junho de 1994, de onde partiu com uma pequena fatia preservada de Anna
Manahan.

Os resultados foram claríssimos. Anna Anderson não era aparentada nem com o czar Nicolau n nem
com a czarina Alexandra. Mas, após tão longa odisséia, é compreensível que alguns tenham
preferido ignorar o dna e acreditar no que desejavam. E o mito de que Anna era Anastácia
permanece.

O destino dos Romanov e de Anna Anderson pode parecer material de contos de fadas, distante de
nossa vida cotidiana, mas as impressões genômicas costumam ser utilizadas em realidades lúgubres
bem mais próximas. Uma das tarefas mais horrendas que os investigadores devem realizar após
uma catástrofe violenta — como a queda de um avião — é a identificação dos corpos. Por diversos
motivos — emissão de certidões de óbito, por exemplo —, a lei exige que isso seja feito. E ninguém
deve subestimar o desesperado anseio emocional das famílias de enterrar seus entes queridos com a
devida cerimônia. Para a maioria de nós, o respeito aos mortos exige a recuperação de seus restos,
por mais fragmentários que estejam, o que requer uma identificação positiva.

Em 1972, um avião de guerra dos Estados Unidos, presumivelmente pilotado por Michael Blassie,
foi abatido durante a batalha de An Loc, no Vietnã. Restos mortais do piloto foram recuperados do
local da queda, mas um exame forense inadequado em 1978, baseado em tipos sangüíneos e em
uma análise dos ossos, indicou que não pertenciam a Blassie. Os ossos anônimos foram etiquetados
— ”x-26, Caso 1853” — e, numa cerimônia solene que contou com a presença do presidente
Reagan, depositados no Túmulo do Soldado Desconhecido no cemitério Arlington. Em 1994, a CBS
News divulgou uma reportagem de Ted Sampley, publicada no U.S. Veteran Dispatch, que afirmava
que x-26 era Blassie. Investigações subseqüentes da cbs revelaram indícios que confirmavam a
alegação de Sampley e a família de Blassie decidiu requerer que o Departamento de Defesa
apurasse o caso. Dessa vez, a impressão genômica do DNAmt dos ossos anônimos correspondeu às
da mãe e irmã de Blassie. Vinte anos após sua morte, Blassie retornou a St. Louis. Diante do
túmulo, sua mãe
304

pôde enfim dizer: ”Meu filho voltou para casa; meu filho finalmente voltou para casa”.

Pouco depois, o Departamento de Defesa instituiu o Armed Forces Repository of Specimen


Samples for the Identification of Remains [Repositório das Forças Armadas para Amostras de
Espécimes para Identificação de Restos Mortais]. Desde então, amostras de sangue e de dna são
obtidas de todos os novos membros das forças armadas, tanto os da ativa como os reservistas, e em
março de 2001 o repositório continha mais de 3 milhões de amostras.

Eu estava a caminho de meu escritório quando soube que um avião colidira com uma das torres do
World Trade Center. Como tantos outros, supus inicialmente que se tratasse de um acidente —
qualquer outra hipótese era inimaginável. Logo, porém, quando o segundo avião atingiu a outra
torre, ficou evidente que um ato criminoso dos mais hediondos havia sido cometido contra milhares
de pessoas inocentes. Ninguém que tenha acompanhado as imagens daquele dia poderá esquecer as
pessoas penduradas nas janelas ou despencando para a morte. Nem mesmo o ambiente tranqüilo do
laboratório Cold Spring Harbor, a 50 quilômetros de Manhattan, pôde nos proteger dessa tragédia,
pois dois de nossos funcionários perderam filhos naquele dia.
O número total de vítimas foi estimado em 2.792 — uma cifra incrivelmen-

te baixa considerando-se que talvez houvesse 50 mil pessoas nas torres na hora do ataque. Não
obstante, sendo um evento de violência tão cataclísmica, não se poderia esperar um grande número
de corpos intactos e, muito menos, vivos. Assim, a busca de sobreviventes transformou-se, com
trágica inevitabilidade, numa busca de restos mortais. Peneirou-se 1 milhão de toneladas de aço
retorcido, concreto pulverizado e vidro estilhaçado, visando extrair quaisquer restos humanos que
porventura contivessem. Cerca de 20 mil fragmentos foram encontrados e levados a vinte carretas
refrigeradas estacionadas perto do Instituto de Medicina Legal. Desde que teve início esse esforço
forense hercúleo, diversas identificações foram feitas a partir de arcadas dentárias e impressões
digitais convencionais; mas, à medida que os casos mais fáceis iam sendo resolvidos, cada vez mais
o fardo era transferido para a análise do dna. Para fins de comparação com todos os vestígios
gênicos encontrados no local do evento, parentes forneceram amostras do seu próprio sangue ou
itens como escovas de
305
dente ou de cabelo das vítimas — qualquer peça que pudesse conter algumas células do seu dono e
da qual pudesse ser extraído dna. A responsabilidade de preparar as impressões genômicas coube às
empresas Myriad Genetics, de Salt Lake City, e Celera Genomics, ambas acostumadas a analisar
dna em escala gigantesca. Porém, mesmo com a mais avançada tecnologia, este é um processo lento
e laborioso.

É um desejo humano bastante comum querer conhecer nossos antepassados: quem eram, de onde
vieram. Nos Estados Unidos, uma nação formada por gerações e gerações de imigrantes, esse
anseio é particularmente intenso. Nos últimos anos, surgiu uma verdadeira mania genealógica,
inflamada pela Internet — que também nos oferece uma medida informal das dimensões desse
fenômeno: uma busca no Google pela palavra ”genealogy” gera cerca de 15 milhões de resultados
(mais ou menos a mesma quantidade que a palavra ”dna”). Ao permitir que se comparem as
impressões genômicas dos indivíduos, o ácido desoxirribonucléico torna possível o tipo de
investigação genealógica extremamente específica que Gill e Ivanov realizaram para descobrir o
não-parentesco entre Anna Anderson e os Romanov, por exemplo. Mas genealogias também podem
ser montadas num âmbito maior, estabelecendo-se vínculos entre pessoas por meio de comparações
entre a impressão genômica de um indivíduo e a de uma população inteira.

Em Oxford, Brian Sykes usou a análise do dna para descobrir a sua história genética pessoal. Ciente
de que sobrenomes e cromossomos y são transmitidos pela linhagem masculina, ele pressupôs que
todos os homens nascidos com o mesmo sobrenome deveriam ter também o mesmo cromossomo T
— aquele pertencente ao primeiro homem a adotar esse nome. É claro que esse vínculo entre
cromossomo Y e sobrenome é rompido se o nome surgir de maneira independente, se por algum
motivo o homem mudar seu nome de família ou se um grande número de rapazes acabar adotando o
nome de outro homem que não o de seu pai biológico (um garoto gerado em segredo pelo leiteiro,
por exemplo, provavelmente acabará com o sobrenome do marido de sua mãe).

Após entrar em contato com 269 homens chamados Sykes, o professor Sykes conseguiu coletar 48
amostras para análise. E verificou que cerca de 50 /o dos cromossomos eram, de fato, idênticos ao
seu próprio cromossomo ”Sykes ,
306

os demais traziam indícios de lapsos conjugais da parte de mais de uma sra. Sykes em gerações
passadas. Como a origem do nome está documentada e data de cerca de setecentos anos atrás, foi
possível determinar o índice de infidelidade por geração: em média, apenas 1%, um número
bastante respeitável — o que sugere que 99% das esposas dos Sykes em cada geração conseguiram
resistir a tentações extraconjugais.

Quando Sykes fundou uma empresa para oferecer serviços de identificação genômica, um dos
primeiros clientes foi a Sociedade John Clough, cujos membros remontam suas origens a um bretão
de mesmo nome que emigrara para Massachusetts em 1635. A sociedade sabia também que um
certo antepassado de John Clough, Richard, da linhagem galense da família, recebera o título de
cavaleiro por seus feitos numa cruzada à Terra Santa. Mas não havia nenhuma prova histórica que
associasse suas famílias àquelas do outro lado do Atlântico. A empresa de Sykes analisou o dna de
cromossomos Y dos Clough de Massachusetts e de um homem que descendia diretamente de sir
Richard: eram idênticos — comprovação para o ramo de Massachusetts. Mas nem todos os Clough
americanos tiveram a mesma sorte, pois constatou-se que membros da sociedade no Alabama e na
Carolina do Norte não tinham parentesco nem com sir Richard nem com os Clough de
Massachusetts.
Jovens nervosos de ambos os sexos são personagens constantes em três talk shows sensacionalistas:
The Montei Williams Show, Ricki Lake ejennyjones. O apresentador abre um envelope, lança um olhar
significativo para o casal e lê o que está escrito numa ficha. A mulher cobre o rosto com as mãos e
irrompe em lágrimas, o homem dá um pulo e ergue o punho no ar. Ou então a mulher se levanta
subitamente e, triunfante, aponta o dedo para o homem, que permanece desenxabido na cadeira, os
ombros recurvados. Em ambos os casos, acabamos de presenciar uma das aplicações mais bizarras
da identificação genômica: DNAfingerprinting tornou-se a última palavra em infotainment
(entretenimento informativo).

Embora os programas vespertinos de tv transformem a identificação genômica num novelão, testes


de paternidade são um negócio sério com uma longa tradição. Desde os primórdios da história
humana, uma grande parte da vida de todas as pessoas — suas realidades psicológicas, sociais e
legais — sem-
307
pre dependeu da identidade paterna. Nada mais natural, pois, que a ciência tenha sido convocada a
serviço dos testes de paternidade desde o surgimento das técnicas genéticas para distinguir
indivíduos. Até o advento da genética molecular, o indício mais cientifico de paternidade era o
sangue, cujos padrões de hereditariedade eram confiáveis e bem compreendidos. Contudo, como só
existem poucos grupos sangüíneos a serem testados, o poder de discriminação desse traço é
limitado. Em termos práticos, um teste de tipo sangüíneo tem um poder limitado para excluir pais
falsamente acusados, mas nunca é capaz de fornecer uma afirmação categórica sobre o verdadeiro
pai. Se nossos tipos sangüíneos não forem compatíveis, então eu certamente não sou seu pai; porém,
se forem, isso não prova que eu o seja — pois qualquer homem com o mesmo tipo sangüíneo que o
meu também poderia sê-lo. O uso de outros marcadores que não o já familiar grupo sangüíneo abo
aumenta o poder de resolução desse tipo de teste, mas nada que se compare ao furor estatístico das
repetições curtas enfileiradas: a tipificação de uma impressão genômica baseada nas strs pode
estabelecer uma prova definitiva de paternidade. E, graças à reação em cadeia da polimerase, o
método é conveniente o bastante para ser usado.

Tão conveniente, na realidade, que empresas que oferecem testes de paternidade por reembolso
postal estão prosperando. Em certas cidades, gigantescos outdoors anunciam o serviço local de
testes de paternidade com uma chamada pouco sutil: Who’s iheDadãy? [Quem é o pai?]. Mediante
uma taxa, essas empresas lhe enviarão um kit para colher uma amostra do seu dna, que inclui um
tipo de cotonete para obter células no interior da boca. (Amostras coletadas dessa forma não são
aceitas em julgamentos. Para ser admitida em tribunal, a impressão genômica deve provir de uma
amostra coletada por um laboratório credenciado, que terá de comprovar toda a cadeia de
evidências a fim de impedir o tipo de troca-troca gênico que vimos no caso de Pitchfork.) Essas
amostras de

DNA Patemity Testing


BRT Laboratories, Inc.
400 W. Franklin Street 410-225-9595
308

tecido são enviadas como encomenda expressa para o laboratório de testes, onde o pna é extraído.

A impressão genômica da criança é comparada com a da mãe; podemos presumir que quaisquer
repetições curtas enfileiradas presentes na criança mas ausentes na mãe terão vindo do pai, seja ele
quem for. Se a impressão genômica do suposto pai carecer de alguma dessas repetições, ele deve ser
excluído do rol de candidatos. Se possuir todas as repetições, o número destas nos permite
quantificar a probabilidade de uma correspondência ser definitiva: é o chamado ”índice de
paternidade”, que mede as chances de outro homem que não o pai biológico ter fornecido uma
determinada str e varia de acordo com o grau de ocorrência dessa str na população em geral. Os
respectivos índices de paternidade de todas as strs são multiplicados e o resultado é um índice de
paternidade composto.

A maioria dos testes de paternidade é tratada com a máxima discrição, é claro, a menos que você
seja convidado de um talk show. Houve, porém, um caso recente que mereceu várias manchetes
devido ao grande interesse histórico do suposto pai. Há muito se suspeitava que Thomasjefferson,
terceiro presidente dos Estados Unidos e principal autor da Declaração de Independência, fora mais
do que um dos pais fundadores da nação, pois teria tido um ou mais filhos com sua escrava, Sally
Hemings. A primeira acusação data de 1802, apenas doze anos após o nascimento de um menino,
Tom, que adotaria o sobrenome de um de seus donos subseqüentes, Woodson. Além disso, uma
forte semelhança com Jefferson havia sido notada no último filho de Hemings, Eston. Mas era o dna
que estava fadado a resolver a questão.

Jeíferson não deixou descendentes homens legítimos, de modo que é impossível determinar os
marcadores do seu cromossomo y. Em vez disso, os pesquisadores obtiveram amostras do dna dos
descendentes masculinos do seu tio paterno, Field Jefferson (cujo cromossomo y teria sido idêntico
ao do presidente), e as compararam com amostras dos descendentes masculinos de Tom e Eston. Os
resultados identificaram uma inconfundível impressão jeffersoniana no cromossomo y, mas a
mesma impressão genômica não estava presente nos descendentes de Tom Woodson. A reputação de
Jefferson conseguiu escapar üesa dessa bala. Todavia, nos descendentes de Eston Hemings, a
assinatura jeftersoniana no cromossomo y estava clara e distinta. O que o dna não pode connrrnar
sem razoável margem de dúvida é a origem desse cromossomo. Não
309
podemos dizer com certeza se o pai de Eston foi realmente Thomas Jefferson ou se algum outro
homem da linhagem jeffersoniana teve acesso a Sally Hemings. (Alguns desconfiam de Isham
Jefferson, o sobrinho do presidente.)

Em outras palavras, séculos de reverência nacional não bastam para garantir proteção contra a luz
incriminadora do dna. Fama e dinheiro também de nada valem. Quando a modelo brasileira Luciana
Morad afirmou que Mickjagger era o pai de seu filho (a quem deu o nome de Lucas Moradjagger),
o cantor dos Rolling Stones negou e exigiu um teste de dna. Talvez estivesse blefando, na esperança
de que a ameaça de um desfecho forense abatesse a determinação de Morad e a induzisse a
abandonar o caso. Não foi o que aconteceu. O resultado do teste foi positivo e Jagger viu-se
legalmente obrigado a se responsabilizar pela educação do filho. O tenista Boris Becker também se
submeteu a um teste para determinar a paternidade de uma filha da modelo russa Angela Ermakova.
Os tablóides fizeram a festa com reportagens segundo as quais o astro do tênis se julgava vítima de
um esquema de chantagem organizado pela máfia russa — os detalhes escabrosos de como a trama
teria sido perpetrada cabem melhor nas páginas dos tablóides. Aqui basta dizer que, quando os
resultados do exame de dna chegaram, o arrogante Becker admitiu o que tinha feito e comprometeu-
se a sustentar a filha.

O dnafingerprinting também foi usado para identificar parentes biológicos de uma criança em
causas mais nobres que as dos srs. Jagger e Becker. Entre
1975 e 1983, 15 mil pessoas foram silenciosamente eliminadas na Argentina por defender opiniões
malvistas pela junta militar governante. Muitos filhos desses ”desaparecidos” foram colocados em
orfanatos ou adotados ilegalmente por oficiais do exército. As mães dos desaparecidos, tendo
perdido seus próprios filhos para o regime, começaram a buscar os filhos de seus filhos — a tentar
resgatar seus netos. Las Abuelas (As Avós) atraíram a atenção nacional marchando todas as quintas-
feiras na praça central de Buenos Aires. Sua busca continua até hoje. Depois que uma criança é
localizada, métodos de identificação genômica são usados para determinar seus parentes. Mary-
Claire King (que conhecemos em outro capítulo, em outro tipo de relacionamento, entre seres
humanos e chimpanzés) tem fornecido desde 1984 a Las Abuelas as análises genéticas necessárias
para reunir famílias dilaceradas por oito anos de pesadelo autoritário.

Iff-
A identificação genômica avançou muito desde as primeiras aplicações forenses e hoje faz parte do
dia-a-dia da nossa cultura popular — um bem de consumo para os interessados em genealogia, uma
armadilha no espetáculo constante de ”pega-pega” que jogamos com celebridades e com todos
aqueles cujo desejo maior é aparecer na televisão. Mas sua aplicação mais séria continua sendo para
resolver questões legais envolvendo vida ou morte. Os Estados Unidos são a única nação do
Ocidente que ainda impõe a pena de morte. Entre 1976, quando a Suprema Corte reinstituiu a pena
capital após um hiato de dez anos, e 2001, 749 condenados foram mortos e no final desse período
havia 3.593 na death row, o corredor da morte, aguardando aplicação da pena. E nesse contexto que
temos de examinar o trabalho do Innocence Project e de seus fundadores, Barry Scheck e Peter
Neufeld, os primeiros e mais veementes críticos da identificação genômica

— ou, no mínimo, do modo como era praticada no início. Desde os primórdios, Scheck, Neufeld e
outros advogados de defesa aprenderam a ver que a tecnologia forense à qual se opunham é, na
realidade, um poderoso instrumento de justiça
— mais propícia, na realidade, a descriminalizar os inocentes do que a condenar culpados. Para
provar a inocência, basta apenas encontrar uma única assimetria entre a impressão genômica do réu
e a obtida na cena do crime; a culpa, por outro lado, exige que se demonstre estatisticamente que
são desprezíveis as chances de outra pessoa que não o réu possuir aquela impressão genômica em
particular.

Desde novembro de 2002, o trabalho de advogados e alunos no Innocence Project (existe hoje toda
uma rede de projetos similares nas faculdades de direito dos Estados Unidos) já provou a inocência
de 117 pessoas condenadas por engano. Em Illinois, seis dessas condenações errôneas resultaram
em sentenças de morte, o que levou o governador George Ryan a tomar uma medida notável e —
levando em conta o apoio popular a paliativos de lei e ordem como a pena capital — politicamente
perigosa: a suspensão indefinida das execuções naquele estado. Além disso, Ryan nomeou uma
comissão especial para rever o tratamento dos casos capitais; publicado em abril de 2002, o
relatório dessa comissão inclui enfaticamente entre suas recomendações que sejam feitos testes de
dna de todos os réus e prisioneiros do sistema de justiça criminal do estado.

Por outro lado, nem todos os testes de dna realizados naqueles que insistiam ser inocentes
resultaram na revogação da condenação. James Hanratty foi
310

311
condenado por um dos assassinatos mais notórios da Inglaterra no século xx, Ele abordou um jovem
casal, matou o homem a tiros e estuprou a mulher antes de matá-la com cinco tiros. A despeito de
insistir que estava a quilômetros de distância quando o crime aconteceu, Hanratty foi julgado
culpado e condenado à forca. Em 1962, tornou-se um dos últimos criminosos a serem executados na
Grã-Bretanha.

Hanratty morreu proclamando inocência e sua família começou uma campanha póstuma para
limpar-lhe o nome. O empenho dos familiares acabou se tornando cause célebre e conseguiram
fazer com que as autoridades determinassem a extração de dna das manchas de sêmen na calcinha
da vítima e do lenço que ocultara o rosto do agressor. As duas amostras foram comparadas com as
impressões genômicas do irmão e da mãe de Hanratty. Para seu desgosto, os testes mostraram que o
dna da cena do crime proviera de um membro da família Hanratty. Ainda insatisfeitos, em 2000 os
Hanratty exumaram o corpo da ovelha negra da família a fim de obter amostras de tecido para
extração de dna. Essa análise mais direta mostrou inequivocamente que era de Hanratty o dna na
calcinha e no lenço. Por fim, em desespero de causa, e após a recente defesa
A cruzada solitária (e, por fim, desesperançada) de um pai: & prolongada campanha para limpar o nome de James Hanratty dá em
nada diante da comprovação do DNA. Na

312

bemsucedida de O. J. Simpson, a família argumentou que as amostras haviam sido manuseadas com
negligência e contaminadas. Mas o magistrado responsável mostrou-se menos maleável que o júri
de Simpson e rejeitou o pleito sem meias palavras: ”A evidência do dna estabelece sem sombra de
dúvida que James Hanratty foi o assassino”.

Em geral, as maiores objeções à reabertura de um caso vêm da promotoria, que,


compreensivelmente, reluta em expor uma condenação conquistada a duras penas a uma sabatina
pós-julgamento. Mas tal rigidez pode ser contraproducente e, se os promotores aprenderam que a
evidência genética pode fechar um caso, também precisam reconhecer que o dna pode ser a maneira
mais garantida de mantê-lo fechado. O exemplo de Benjamin LaGuer é ilustrativo. Condenado em
1984 a quarenta anos de prisão por um estupro em Worcester, Massachusetts, ele nunca deixou de
protestar sua inocência. Como Hanratty, atraiu um séquito de simpatizantes ricos e famosos, que,
em 2001, financiaram a análise de amostras de dna. O resultado deve ter surpreendido a todos:
LaGuer era o estuprador. Mas é fácil imaginar um homem que, tendo pela frente quarenta anos atrás
das grades, suponha nada ter a perder fazendo tal exigência. Ironicamente, foram necessários dois
anos para convencer a promotoria a aceitar o uso da identificação genômica. Como observou um
sensato editorial no St. Petersburg Times: ”Em retrospecto, a promotoria poderia ter poupado tempo
e sentido antes o prazer de dizer ’Eu não falei?’ se houvesse concordado desde o início com o teste
de dna”.

Os defensores das liberdades civis irão sempre fazer objeções à larga aplicação da identificação
genômica na sociedade como um todo. Mas acho difícil argumentar contra a utilidade social de
aplicar a tecnologia àqueles que, por algum motivo, acabem passando pelo sistema de justiça
criminal — pois, lamentavelmente, é grande a probabilidade de que aqueles que passaram pelo
sistema uma vez acabem passando outra vez. Dados criminológicos indicam que indivíduos
condenados por crimes menores têm mais probabilidade de cometer delitos mais graves: 28% dos
homicídios e 12% dos ataques sexuais na Flórida foram atribuídos a indivíduos condenados
anteriormente por furto ou roubo. Padrões similares de reincidência podem ser detectados também
nos criminosos de ”colarinho branco”: dos 22 condenados por falsificação no estado da Virgínia,
dez foram
313
relacionados a assassinatos ou agressões sexuais quando submetidos à identificação genômica. Seria
proveitoso que os chefões corporativos da Enron, ImClone e Adelphia Communications também
fornecessem amostras do seu dna.

Há iniciativas em andamento para ampliar os cadastros de impressões genômicas. O governo


britânico propôs recentemente que a polícia guardasse amostras de dna obtidas de réus absolvidos e
daqueles que foram presos mas não chegaram a ser acusados. A mesma lei permitiria que as
autoridades preservassem as amostras oferecidas voluntariamente (por exemplo, aquelas obtidas
quando a polícia testa todas as pessoas de uma localidade, como em Narborough). Essas mudanças
nas regras de coleta de amostras irão triplicar em três anos o número de impressões cadastradas na
base de dados da polícia. Nos Estados Unidos, dezenove estados hoje coletam amostras de dna de
todos os infratores, não apenas dos que cometeram crimes violentos.

Pessoalmente, acho que todos deveríamos dar uma amostra do nosso dna. Não que eu seja
insensível às questões de privacidade individual ou ao potencial de uso impróprio das informações
genéticas; como disse anteriormente, na qualidade de primeiro diretor do Projeto Genoma Humano,
reservei uma parcela considerável de nosso orçamento para estudar tais questões no que concerne à
aplicação clínica das informações genéticas. Mas a justiça criminal é uma outra questão — em
minha estimativa, o potencial de um enorme bem social supera em muito os riscos de mau uso. E,
como sempre temos de abdicar de algo pelo privilégio de vivermos numa sociedade livre, sacrificar
essa forma específica de anonimato não me parece um preço descabido a pagar, desde que as leis
imponham um controle rigoroso e prudente ao acesso às bases de dados. Para ser sincero, a
possibilidade remota de que um dia o Grande Irmão vá examinar a minha impressão genômica com
vistas a algum fim nefando me preocupa menos do que a idéia de um criminoso de alta
periculosidade permanecer em liberdade — para talvez cometer outros delitos — ou de um
indivíduo inocente mofar na prisão por falta de um teste de dna.

Mas objeções à coleta generalizada de dna continuam a ser ouvidas, partindo às vezes dos mais
distantes e inesperados grupos e indivíduos. Tanto em Nova York como no estado australiano da
Tasmânia, os legisladores propuseram que todos os policiais tivessem sua impressão genômica
cadastrada. A lógica é simples: o cadastramento dos policiais permitiria que o seu dna fosse
facilmente excluído de qualquer crime que investigassem. Surpreendentemente, a
314

rnedida foi repudiada pelos órgãos de segurança de ambas as jurisdições. Ou seja, aqueles que,
supostamente, são os cidadãos mais respeitadores das leis, cujo trabalho só seria facilitado pela
disponibilidade generalizada de impressões genômicas, são justamente os que querem ficar de fora
quando se trata do seu próprio dna. Desconfio que haja algum mecanismo irracional atuando
aquiComo acontece em relação aos alimentos transgênicos, o dna parece ter um certo ar de vodu na
imaginação popular: existiria algo assustador, algo misterioso nele. Se ao menos entendêssemos
melhor as complexidades genéticas, ficaríamos menos suscetíveis a toda sorte de ansiedade e teoria
conspiratória. Se compreendêssemos a fundo a questão, creio que desapareceria essa hesitação em
aproveitar ao máximo uma nova, poderosa e benéfica tecnologia.

Barry Scheck e Peter Neufeld expressaram bem a questão no prefácio de seu livro Actual
innocence: ”Os testes de dna são para a justiça o que o telescópio é para as estrelas; não uma lição
de bioquímica, não uma exibição das maravilhas da lente de aumento, mas uma maneira de ver as
coisas como realmente são”. O que poderia haver de errado nisso?
315
ii. Caçadores de genes: A genética das doenças humanas
Era cedo demais para alguém já estar embriagado — o que dizer então daquela mulher de meia-
idade impecavelmente vestida, cambaleando de um lado para o outro da rua? Ela realmente parecia
estar de pileque — foi o que achou o policial de plantão perto do fórum que a repreendeu por estar
fazendo cenas. Leonore Wexler, no entanto, não estava bêbada, mas sim começando a sucumbir ao
mesmo destino assustador que já destruíra vários parentes diante de seus próprios olhos, um destino
do qual ela tinha esperança de estar eximida.

Não muito tempo depois, em 1968, o ex-marido de Wexler, Milton, queria celebrar seu aniversário
de sessenta anos em Los Angeles com as duas filhas — Alice, de 26 anos, e Nancy, de 23. Mas
comemoração não foi a ordem
Acima: Nancy Wexler abraça um menino com a doença de Huntington de manifestação precoce, no lago Maracaibo, Venezuela.

316

do dia. Milton resolvera informar às moças que a mãe delas, de 53 anos , sofria do mal de
Huntington, uma doença neurológica devastadora que provoca a deterioração progressiva das
funções cerebrais, fazendo com que as vítimas pouco a pouco percam toda a noção de si mesmas e
de seus entes queridos. Também perdem a coordenação dos braços e pernas: no início, apenas o
caminhar é afetado, como no caso de Leonore, mas, à medida que o o mal progride, o paciente
começa a ter movimentos espasmódicos involuntários. Nao existe cura nem tratamento para protelar
esse definhamento imparável e impiedoso até a morte.

Alice e Nancy agora compreendiam alguns fatos inquietantes sobre os parentes de sua mãe — e
também certas insinuações que deixara ver de que nem tudo corria bem na família. Elas sabiam
que todos os tios –e os três irmãos de Leonore — tinham morrido jovens e que, antes do fim, todos
~tinham apresentado o mesmo rosto contorcido, o mesmo modo claudicante andar, a mesma fala
enrolada. Sabiam também que seu avô paterno, .Abranafl oabm, morrera igualmente jovem,
embora Leonore houvesse cuidadosamente vitado mencionar que ele apresentara esses mesmos
sintomas. Ia ficando cada vez mais claro para as duas moças que o mal de Huntington acometia a
família- Coube a Milton a desagradável tarefa de esclarecer as dúvidas imediatas das moças: Qual
era o risco de Alice ou Nancy sucumbirem à doença? ”Cinqüenta Por cennto , respondeu o pai.

A doença que afligiu Abraham Sabin e seus descendentes foi observada pela primeira vez por
George Huntington. Filho e neto de médicos, Huington foi criado em East Hampton, Long Island, e
costumava acompanhar o pai nas rondas que este fazia. Depois de se formar em medicina pela
Univversidade Columbia, Huntington retornou à clínica da família em Long Island por alguns
anos, antes de mudar-se para Pomeroy Ohio. Em 1872, apresentou uma» Monografia na Academia
de Medicina Meigs and Mason, perto de Midcileport» intitulada ”Sobre coréia”. Era esse nome,
derivado da palavra grega ciue °*ca dança”, que, desde o século XVII, os médicos usavam para
designar doenças que produzem movimentos espasmódicos nas vítimas. Tempos depois, Hurt
Igton relembraria como ficara fascinado por essa misteriosa enfermidade:

Certa vez, há mais de cinqüenta anos, ao acompanhar meu pai em suas idas e vindas, deparei-me
com o meu primeiro caso ”daquele mal”, que é como os nativos

?7
sempre se referiam a essa temida doença. Lembro-me tão claramente como se fosse ontem. Ficou
uma impressão indelével na minha mente jovem, que se tornaria um dos grandes motivos de eu
escolher a coréia como objeto da contribuição inédita que eu desejava fazer ao conhecimento
médico. Estávamos no carro, meu pai e eu, dirigindo por uma estrada arborizada que ia de East
Hampton a Amagansett quando de repente encontramos duas mulheres que se dobravam, se
retorciam faziam caretas. Fiquei olhando, pasmo, com certo medo. O que era aquilo? Meu pai parou
o carro para falar com elas e seguimos em frente. Foi assim que teve início minha instrução à
maneira de Gamaliel,* essa foi a gênese da minha instrução médica. Desse momento em diante,
nunca mais cessou por inteiro o meu interesse pela doença.

Partindo de observações próprias e das anotações clínicas do pai e do avô (o manuscrito original
tem anotações a lápis de seu pai), a monografia do jovem médico continha uma descrição magistral
do que se tornaria conhecido como coréia de Huntington e hoje se chama doença de Huntington.
”Os movimentos coréicos”, explicou, ”vão pouco a pouco se intensificando, à medida que entram
em ação espasmódica os músculos que ainda estavam preservados, até que todos os músculos do
corpo são afetados.” Observou também a deterioração mental que acompanha esses sintomas: ”Com
o avanço da doença, a mente acaba mais ou menos comprometida, levando alguns à insanidade,
enquanto em outros a mente e o corpo vão se degenerando pouco a pouco até que a morte os liberta
de seu sofrimento”. E reconheceu que a doença era herdada: ”Quando um ou ambos os genitores
apresentam manifestações da doença, um ou mais filhos invariavelmente acabam padecendo do
mal. Nunca acontece de a doença saltar uma geração e voltar a manifestar-se em outra. Se abdicou
uma vez de seu jugo, não retorna mais para retomá-lo.”

Huntington identificou corretamente as principais características desse tipo de doença hereditária.


Reconheceu que atinge ambos os sexos e compreendeu que era transmitida de uma geração a outra.
Toda criança cujo pai ou mãe sofra da doença de Huntington tem 50% de probabilidade de herdá-la.
Em algumas famílias, todos os filhos são afetados; em outras, nenhum. Se a criança não
* Ganialiel, um rabino famoso, mestre de são Paulo (Atos 22:3), acreditava na integração do conhecimento erudito à experiência
cotidiana.

318

herdar o gene anormal de um genitor, não poderá transmiti-lo à geração seguinte Hoje sabemos que
a doença de Huntington é provocada por uma mutação e como o gene não tem preferência por
expressar-se em um ou outro sexo (ou seja, não é vinculado ao sexo), inferimos que o gene afetado
não está nos cromossomos sexuais x ou y. Designemos ”h” a versão normal do gene e ”h” a versão
mutante. Todos nós temos duas cópias de cada cromossomo não-sexual (chamados ”autossomos”)
e, portanto, duas cópias do gene de Huntington. Indivíduos com duas cópias do gene normal (hh)
estão livres da doença, como seria de esperar. Mas indivíduos com duas cópias (hh) do gene
mutante, ou mesmo uma (Hh), estão fadados a contrair o mal. Damos a esse padrão o nome de
”hereditariedade autossômica dominante”. (”Dominante” significa que basta uma cópia de um gene
mutante para provocar a doença — o gene anormal prepondera sobre seu equivalente normal.)

Como é muito mais provável que alguém adquira uma só cópia do gene mutante, a maioria das
vítimas da doença é Hh. Essas pessoas podem transmitir o gene h ou o gene h a seus filhos, daí a
probabilidade de 50% de uma determinada criança ser afetada, como Milton Wexler explicara a
Alice e Nancy.

Nos idos de 1968, pouco se conhecia da doença de Huntington além dos seguintes fatos: ela é
herdada e, em seu avanço irreversível, vai matando as células nervosas em áreas específicas do
cérebro. Milton Wexler decidiu investir de frente contra o terror que acometia sua família e fundou
a Hereditary Disease Foundation [Fundação Doença Hereditária] para levantar dinheiro e pressionar
o governo a financiar pesquisas sobre a doença de Huntington. Sua filha Nancy também se
envolveu no projeto. Depois de obter o doutorado em psicologia na Universidade de Michigan (sua
tese, apropriadamente, tratava da psicologia de pessoas sob situação de risco), começou a participar
cada vez mais dos assuntos da fundação. Na década de 1970, quando ficou evidente que só
avançaríamos no combate à doença se compreendêssemos suas causas genéticas, Nancy Wexler se
tornou geneticista.

Nas margens do lago Maracaibo, na Venezuela, o fardo de uma pobreza opressora é agravado pela
incidência excepcionalmente elevada da doença de Huntington. Se quisermos desvendar os
segredos genéticos desse mal, o lago Maracaibo parece ser o melhor lugar de se começar. Em 1979,
Wexler pôs-se a coletar amostras de dna e a registrar históricos familiares visando compor uma
genealogia de todas as pessoas afetadas. Para uma geneticista, foi um trabalho
3i9
T
penoso, mas para Wexler, filha de uma vítima da doença com a possibilidade de sucumbir a ela no
futuro, foi muito mais que isso. Significou ver coisas familiares em ambientes pouco familiares:
pessoas que viviam em barracos de madeira com telhado de zinco em palafitas sobre as águas do
lago e que, não obstante, cambaleavam tanto quanto sua mãe ao caminharem. Depois de sua
primeira viagem ao lago Maracaibo em 1979, Wexler retornou todos os anos para dar continuidade
ao seu trabalho. As pessoas com as quais trabalhava passaram a chamá-la La Catira, por causa de
seus longos cabelos loiros. Nas palavras de seu colega venezuelano Américo Negrette, o cientista
que divulgou pela primeira vez a grande ocorrência da doença no lago Maracaibo, Wexler
transformou toda aquela gente em sua família estendida, relacionando-se ”sem teatro, sem
simulação, sem pose e com uma meiguice que salta aos olhos”.

Mas a ternura, em si, poderia apenas mitigar a devastação provocada pela doença de Huntington. A
meta das expedições de Wexler era encontrar o gene responsável pelo mal. Mas de que forma as
genealogias dos habitantes do lago Maracaibo que ela vinha elaborando poderiam ajudar a
identificar o culpado? A chave estava nos avanços da genética humana.

Se realmente quisessem chegar ao gene de Huntington, Wexler e outros interessados em doenças


genéticas teriam de fazer com seres humanos o que Morgan e seus alunos haviam começado a fazer
com as moscas-das-frutas meio século antes. Como vimos no capítulo 1, Morgan comparou as taxas
a que certos marcadores genéticos — digamos, olhos brancos (em vez de vermelhos) e asas rugosas
(em vez de lisas) — coincidiam na progênie de cruzamentos entre genitores com várias
combinações desses traços. Partindo de tais dados, pôde determinar a que distância uns dos outros
estavam os genes que regem tais características. Entretanto, a genética humana progredira menos
que a da mosca-dasfrutas por dois motivos básicos. Primeiro, a impossibilidade — por questões
práticas e morais — de realizar o tipo de experimento que ainda era insubstituível na análise
genética: não podemos acasalar dois seres humanos que nos interessam e analisar a progênie
resultante duas semanas depois. Segundo, mesmo que os seres humanos pudessem ser acasalados
conforme nossa vontade, sofremos de uma perceptível escassez de marcadores genéticos. Morgan
pôde acompanhar várias diferenças simples e óbvias na aparência das moscas causadas por
mutações específicas em genes específicos; os seres humanos, porém, não possuem muitos traços
herdados facilmente analisáveis — mesmo o exemplo canônico, a

cor dos olhos, é regida por diversos genes, não um só. Além disso, com as moscas-das-frutas é
possível aumentar o nível de variação genética submetendo-as a raios x ou outros agentes
mutagênicos; para nossa sorte, tais opções não existem em se tratando de seres humanos. Somente
com o advento do dna recombinante esses dois grandes impedimentos viriam a ser superados.

Na era do seqüenciamento do dna, não é mais preciso que os marcadores sejam visíveis como os
olhos brancos de uma mosca-das-frutas. Uma variação em uma seqüência é suficiente para torná-la
um marcador, o qual será possível acompanhar numa árvore genealógica — ou seja, ao longo de
diversos cruzamentos genéticos — apenas analisando-se o dna de diversas gerações. A revolução
fora deflagrada um ano antes de Wexler iniciar sua pesquisa genealógica. E aqui, como em tantos
outros avanços da ciência, a boa fortuna interveio.

Já se tornara um ritual anual: um pequeno grupo de pós-graduandos da Universidade de Utah


acompanhava seus orientadores até Alta, uma estação de esqui na montanha Wasatch, para um
workshop intensivo de estudos (e... bem... um pouco de esqui nas horas vagas). Em geral, dois
cientistas renomados de outras instituições eram convidados para examinar com olhos críticos os
dados apresentados por cada aluno nervoso. Em 1978, os dois figurões foram David Botstein, do
mit, e Ron Davis, de Stanford.

Alguns já observaram que David Botstein ”tende a pensar e falar excessivamente depressa, e quase
sempre ao mesmo tempo”. Ron Davis, por sua vez, é calado e retraído. Naquele abril em Utah, a
despeito de seus estilos contrastantes, Botstein e Davis vivenciaram uma mesma epifania. Enquanto
ouviam os pós-graduandos de Mark Skolnick discutir as doenças genéticas encontradas nas extensas
árvores genealógicas dos mórmons, seus olhares de repente se cruzaram no instante em que ambos
tiveram o mesmo insight. Embora fossem especialistas em levedura, haviam achado um meio de
localizar genes humanosl Eles perceberam que as técnicas recém-descobertas de dna recombinante
permitiriam aplicar aos seres humanos o mesmo tipo de análise genética usada pela primeira vez
por Morgan para estudar a mosca-das-frutas. Na realidade, marcadores de dna já haviam sido
usados antes para mapear genes em algumas outras espécies, mas Botstein e Davis seriam os
primeiros a desenvolver o potencial da técnica em seres humanos.
320

321
A técnica, chamada ”análise de ligação” [linkage analysis], determina a posição de um gene em
relação às posições conhecidas de certos marcos gênicos. O princípio é simples. Na ausência de
qualquer outra informação, seria difícil localizar a cidade de Springfield num mapa dos Estados
Unidos. Porém, se eu disser que Springfield fica mais ou menos na metade do caminho entre Nova
York e Boston — dois marcos indicados no mapa —, a tarefa fica muito mais fácil. A análise de
ligação visa a fazer o mesmo com os genes: estabelecer vínculos entre marcadores genéticos
conhecidos e genes desconhecidos. Foi um método extremamente bem-sucedido com a mosca-das-
frutas, mas, como vimos, a escassez de marcadores conhecidos impediu que fosse aplicado a
doenças humanas — até Botstein e Davis perceberem que os avanços da biologia molecular haviam
resolvido o problema.

Os marcadores do dna que chamaram sua atenção foram os polimorfismos do comprimento dos
fragmentos de restrição (rflps), que ocorrem quando uma seqüência de dna clivável por uma
determinada enzima de restrição em um indivíduo sofre uma mudança tal que não pode mais ser
clivada pela mesma enzima em outro indivíduo. (Vale lembrar que as enzimas de restrição são
específicas a cada seqüência. Por exemplo, a enzima EcoRl só cliva quando encontra a seqüência
gaattc, que ocorre num determinado ponto do genoma. Contudo, devido à presença de mutações,
certos indivíduos possuem uma forma variante do segmento — digamos, gaagtc. A enzima
consegue clivar as seqüências originais, mas não a versão alterada.) Essas diferenças nas seqüências
de dna ocorrem naturalmente e, como são mais freqüentes no chamado dna-Hxo, não costumam ter
efeito funcional, embora haja literalmente milhões delas espalhadas por nosso genoma.

Durante meses após o encontro em Alta, Botstein, Davis e Skolnick estudaram o conceito de
polimorfismo do comprimento dos fragmentos de restrição juntamente com Ray White, que na
época estava na Universidade de Massachusetts. Em 1980, a monografia revolucionária que se
originou dessa colaboração anunciava o advento da nova era da genética molecular humana. Os
pesquisadores apresentaram um plano claro mostrando como os rflps poderiam ser usados e
calcularam matematicamente quantos deles seriam necessários para garantir que cada ponto do
genoma humano estivesse razoavelmente próximo de pelo menos um desses polimorfismos —
condições que, em principio, permitiriam mapear o genoma inteiro. Seria como fixar num mapa dos
Mapeamento genético do gene de uma doença. Por conveniência, somente

duas gerações e alguns individuos estão indicados.

Para que a análise seja estatisticamente

significativa, é necessário obter informações de um grande número de indivíduos aparentados.

GENITOR ”A” COM DOENÇA ”X”

cromossomo 6 paterno a

<n mr~
mutação responsável pela doença X (paradeiro desconhecido)

I
cromossomo 6 materno

c’ d’

marcadores RFLP mapeados

A RECOMBINAÇÃO EMBARALHA A VARIAÇÃO


GENÉTICA NA PRODUÇÃO DO ÓVULO E

DO ESPERMATOZÓIDE

FERTILIZAÇÃO, MUITOS FILHOS COM

INDÍCIOS DA DOENÇA ”X” E PRESENÇA

DE MARCADORES RFLP

cópia do cromossomo
6 de cada filho, proveniente do genitor ”A

DOENÇA ”X”

0

CONCLUSÃO:

A DOENÇA ”X” NOS FILHOS SÓ É ASSOCIADA AO RFLP c E, PORTANTO, SÓ É IDENTIFICADA NESSA REGIÃO DO CROMOSSOMO 6.

Estados Unidos um número de cidades que permitisse localizar qualquer outro local com respeitável
precisão utilizando apenas informações sobre sua distância das cidades demarcadas. Mas o que seria
uma proximidade ”respeitável” no caso do mapa genético? Botstein e seus colegas estimaram que
bastariam 150 Rflps, espalhados uniformemente por todo o genoma humano. O benefício mais
imediato do sistema foi uma nova estratégia para identificar genes causadores de doenças: (1) tomar
famílias em que a doença abrangesse várias geraÇões; (2) obter amostras de dna tanto de indivíduos
doentes como de saudáveis;
322

1
33
e (3) aplicar métodos de recombinação para testar um rflp após o outro para tentar identificar
aqueles que acompanham a doença de família em família.

Em 1979, antes da publicação da monografia, White apresentou essas idéias numa conferência
realizada no laboratório Cold Spring Harbor. Ele observou que ”houve muitos grunhidos e
resmungos entre os biólogos moleculares mais ortodoxos”; entretanto, o que ouvira foram
manifestações de extremo ceticismo quanto à exeqüibilidade do método. Mesmo aqueles que
acreditavam que pudesse funcionar não chegavam a um acordo quanto à melhor maneira de aplicá-
lo. As discordâncias vieram à tona numa outra reunião posterior em que se discutiu como a análise
de ligação dos rflps poderia ser usada para encontrar o gene responsável pela doença de Huntington.

Nancy Wexler queria que suas genealogias dos habitantes do lago Maracaibo fossem usadas
imediatamente nos estudos de ligação, mas Botstein e White julgaram ser cedo demais utilizar a
análise de ligação dos rflps para buscar o gene de Huntington ou qualquer outro. Argumentaram que
era preciso realizar muito trabalho preparatório antes que a técnica pudesse ser aplicada para um
fim tão específico — afinal, os próprios marcadores ainda tinham de ser encontrados e mapeados. A
determinação de Wexler acabou resultando numa cisão: a Fundação Hereditary Disease defendia a
caça ao gene de Huntington; Botstein e White advogavam um mapa completo do genoma humano.

Esta última meta exigia que fossem encontrados marcadores rflp em cada cromossomo e em
número suficiente para garantir que pelo menos um estivesse próximo de cada ponto do genoma.
Logo se viu a necessidade de rever para cima a estimativa inicial de 150 rflps. Mas, sem
esmorecerem, laboratórios como o de White começaram a isolar os rflps e não demorou até que
empresas comerciais de biotecnologia também entrassem na jogada.

Em 1983, Helen Donis-Keller, uma experiente bióloga molecular e esposa de David Botstein na
época, criou o departamento de genética humana da Collabora-I tive Research, Inc., uma empresa
com sede perto de Boston. Sua meta era produzir um mapa de ligação dos rflps de todo o genoma
humano, com marcadores em número suficiente para localizar genes de doenças em qualquer
cromossomo. Os frutos de seu esforço foram publicados quatro anos depois, numa monografia
apropriadamente intitulada ”Um mapa das ligações gênicas do genoma humano”. O mapa trazia 403
loá gênicos (muito mais do que a estimativa original de Botstein) e cálculos que mostravam que
95% do genoma estava a uma distância razoável de um marcador. Foi um dia grandioso para o
mapeamento genômico, mas em
1987 ressurgiam as rixas e rivalidades entre os pesquisadores.

Para começar, houve rancor na comunidade acadêmica pelo fato de a Collaborative Research haver
incorporado livremente dados obtidos por laboratórios universitários sem revelar nenhum dos seus.
(Nesse aspecto, a Collaborative foi pioneira da estratégia de extrair o melhor dos dois mundos que
Craig Venter e outros empresários sequiosos de lucrar com o dna logo adotariam na corrida para
seqüenciar o genoma.) O imunologista francês Jean Dausset, por exemplo, vinha seguindo um
caminho ligeiramente diferente. O prêmio Nobel de fisiologia/medicina que ganhara em 1980
atraíra um patrocinador generoso, cuja dotação substancial lhe permitiu adotar uma estratégia
própria na elaboração do mapa das ligações humanas. Dausset percebeu que a tarefa ficaria muito
mais fácil se todos os pesquisadores do mundo trabalhassem com um conjunto padronizado de
genealogias — isto é, de amostras de dna das mesmas famílias. Com isso em mente, fundou o
Centro de Estudo do Polimorfismo Humano (ceph) em Paris para coletar as genealogias mais
apropriadas para análise genética, a saber, as famílias grandes, com três gerações vivas. A coleção
do ceph chegou a conter dna de 61 famílias, incluindo muitos dos mórmons estudados por Ray
White, as famílias do lago Maracaibo de Nancy Wexler e várias famílias amish catalogadas por
Victor McKusick da Faculdade de Medicina Johns Hopkins. O ceph disponibilizou livremente
amostras do dna de todas essas famílias aos pesquisadores, exigindo apenas que enviassem suas
análises ao centro para que fossem integradas em uma base de dados mundial. A Collaborative
Research tirou plena mas lícita vantagem desse benefício.

De longe, a crítica mais séria ao mapa da Collaborative foi a distribuição irregular dos marcadores.
O cromossomo 7 — associado à fibrose cística, um dos alvos da empresa — tinha 63 marcadores,
mas no cromossomo 14 somente seis foram identificados. A distância entre marcadores nos
cromossomos mais destituídos nesse aspecto era muito maior do que a média geral do genoma. Ray
White ficou particularmente irritado com as alegações da Collaborative. Ele mesmo havia
encontrado mais de 470 marcadores, mas tinha publicado seus dados cromossomo por cromossomo
à medida que cada um era preenchido com a densidade requerida de rfl-Ps. ”Nunca sonharíamos em
fazer esse tipo de publicação com os dados de que dispúnhamos — por sinal, em número
324

325
consideravelmente maior que o deles — pois ainda existem lacunas significativas”, observou ao
rejeitar a pretensão grandiosa da Collaborative. Se a pretensão era grandiosa ou não, o fato é que o
mapa da Collaborative representou um grande avanço e provou que mapear o genoma inteiro era
algo exeqüível.

No entanto, como observamos, algumas pessoas — Nancy Wexler entre elas — haviam
descortinado outro caminho após a monografia de 1980 sobre os rflps. A medida que as iniciativas
para produzir um mapa completo ganhavam força, David Housman, no mit, ia se preparando para o
que David Botstein declarou ser uma missão impossível naquela altura do jogo: descobrir a
localização do gene da doença de Huntington. Ele colocou essa tarefa monumental nas mãos de Jim
Gusella, que acabara de obter o doutorado no laboratório de Housman. Com isso, o trabalho de
mapeamento daria uma arrancada em outra frente.

O pessimismo inicial de Botstein provinha da escassez de marcadores: os rflps pareciam ótimos no


papel, mas o trabalho de efetivamente encontrá-los apenas começara. De fato, levaria anos de
esforço da parte de White, Donis-Keller e outros até que o número de marcadores conhecidos
chegasse à casa das centenas. Tendo começado a trabalhar logo que os rflps foram descobertos, a
tarefa parecia feita sob medida para Gusella. Em 1982, porém, ele obtivera um total de apenas doze
marcadores, cinco dos quais encontrara sozinho e sete haviam sido fornecidos por outros. Wexler,
enquanto isso, retornara ao lago Maracaibo para tentar pormenorizar suas genealogias — quem se
casara com quem, quais filhos tiveram, quem era primo de quem. Os costumes locais às vezes
prejudicavam: certos nomes eram bastante comuns e muitos indivíduos eram conhecidos por mais
de um nome. Mesmo assim, a árvore que construiu para uma determinada família continha mais de
17 mil nomes! Periodicamente, ela e seus colegas reservavam um dia inteiro apenas para coletar
sangue, pois todas as amostras tinham de ser enviadas a Boston ao mesmo tempo, evitando que o
calor tropical do lago Maracaibo acelerasse a degradação do dna.

Gusella, por sua vez, não pretendia ficar aguardando as amostras do lago Maracaibo. Lembro-me de
uma reunião no laboratório Cold Spring Harbor em outubro de 1982 na qual apresentou seus
primeiros resultados. Tomando como amostra uma pequena família de Iowa afligida pela doença de
Huntington, ele testara apenas cinco dos seus doze rflps, verificando-os um a um para determinar se
havia alguma correlação com a enfermidade. Não havia. (E não pude deixar de pensar que, tendo
decidido buscar uma agulha num palheiro, ele parecia
326

estar fazendo um grande estardalhaço por ter levantado algumas palhas.) Somente com uma análise
meticulosa de todo o palheiro — o vasto genoma em sua totalidade — ou, alternativamente, com
muita sorte é que alguém poderia ter esperança de encontrar o que Gusella buscava. Assim, quando
concluiu sua palestra dizendo que ”a localização do gene da doença de Huntington é agora apenas
uma questão de tempo”, eu pensei comigo mesmo: ”É, de muito, muito tempo”.

Mas a sorte favorece os audazes. Gusella voltou ao seu laboratório e experimentou mais alguns
marcadores rflp. Estupefato, verificou que o décimo segundo, denominado g8, parecia mostrar uma
ligação com a doença de Huntington na família de Iowa. Estatisticamente, porém, a correlação não
era muito forte, e ele ficou aguardando ansiosamente as amostras do lago Maraicabo, que testou
usando o g8 tão logo as recebeu. Mal pôde conter sua empolgação: o G8 de fato identificava a
doença de Huntington. No verão de 1983, contrariando todas as expectativas, Gusella descobrira
uma ligação depois de testar apenas doze rflps. Não foi, porém, um golpe de sorte como qualquer
um: pela primeira vez, o gene de uma doença humana fora localizado num cromossomo sem os
préstimos da vinculação ao sexo [sex linkage] e sem nenhum conhecimento prévio da base
bioquímica da enfermidade. Descortinava-se um panorama científico inteiramente novo. Parecia
que conseguiríamos enfim analisar com rigor todos os defeitos genéticos que afligem nossa espécie
desde que ela existe. Os rflps haviam se mostrado um instrumento realmente eficaz. Agora que o
gene da doença de Huntington havia sido localizado numa região restrita do genoma humano,
certamente seria apenas uma questão de tempo até que as novas e poderosas técnicas de clonagem
de genes nos permitissem isolar o próprio gene.

A doença de Huntington é um terrível golpe para os adultos. Mas as doenças genéticas que afligem
crianças têm um horror adicional, pois atacam quem mal teve chance de começar a viver. Uma vez
feito o diagnóstico, geralmente é possível prever com cruel certeza o curso da vida da criança. É o
caso da distrofia muscular do tipo Duchenne (dmd), uma degeneração progressiva do tecido
muscular. A dmd é uma doença ligada ao sexo, pois a mutação responsável ocorre num gene do
cromossomo x. As mulheres podem portar a mutação em um de seus dois cromossomos x, mas
geralmente estão protegidas pela presença de uma versão normal do gene no outro cromossomo x. É
bastante improvável que
327
a mulher receba duas cópias defeituosas, pois os homens portadores da mutação quase nunca
sobrevivem até a idade de terem filhos. Se, no entanto, o cromossomo com o gene mutante for
transmitido a um filho, o garoto desenvolverá dmd, já que não possui outro cromossomo x para lhe
fornecer uma cópia normal do gene. Quando tiver cerca de cinco anos de idade, seus pais
perceberão que ele tem dificuldade para levantar-se do chão ou para subir escadas. Aos dez anos,
precisará de uma cadeira de rodas. E provavelmente morrerá no final da adolescência ou, no
máximo, com vinte e poucos anos. A distrofia muscular do tipo Duchenne não é rara: ela atinge
cerca de 1 em cada 5 mil meninos.

A caça aos genes responsáveis por doenças humanas é uma história protagonizada menos por
grandes instituições de pesquisa e empreendedores intrépidos do que por grupos como a Fundação
Hereditary Disease — organizações criadas por pessoas com uma vivência pessoal da devastação
provocada por doenças genéticas. Encabeçados por pessoas que têm algo extremamente precioso
em jogo, esses grupos, por natureza, são mais propensos a apoiar pesquisas de risco ou de
vanguarda, indo até onde as universidades ou empresas de biotecnologia têm receio de pisar.

A Associação Americana de Distrofia Muscular e suas congêneres na Europa têm de longa data
apoiado pesquisas laboratoriais voltadas à compreensão da biologia básica da dmd. No final da
década de 1970, os citogeneticistas (que estudam os cromossomos microscopicamente) obtiveram a
primeira pista genética: entre o número bastante reduzido de meninas que desenvolvem a distrofia
muscular do tipo Duchenne foi encontrada uma anomalia no braço curto dos cromossomos x, no
lócus xp21. Seria essa a localização do gene da dmd?

Pouco depois, Bob Williamson, na Faculdade de Medicina do hospital St. Mary de Londres,
começou a usar os rflps para pesquisar o gene causador da fibrose cística e o gene envolvido na
distrofia muscular do tipo Duchenne. Sua colega Kay Davies pôs-se a caçar rflps no cromossomo x
e a testar sua ligação com a dmd. Ela teve sucesso, e o fator decisivo foi a localização dos rflps:
estavam na região xp21, exatamente como seria de esperar a partir daqueles estranhos cromossomos
x de mulheres com dmd.

Enquanto os caçadores de genes continuavam tentando isolar os genes envolvidos na doença de


Huntington e na dmd, uma revolução mais discreta ia se processando nos consultórios dos
geneticistas clínicos. Desde o início, Nancy Wexler e David Housman perceberam que os rflps
associados ao gene de uma
328

doença poderiam ser usados não apenas para localizar o gene em si, mas também como um teste
diagnóstico para determinar quais membros de uma família são portadores da mutação. Poderiam
ser usados para testar até mesmo crianças ainda por nascer. Imagine o caso de uma família
hipotética com dmd. Pelo menos um menino será diagnosticado com a doença — o ”caso índice”,
que revela pela primeira vez a presença de uma mutação dmd na família. A mãe do garoto,
portadora de gene mutante, também possui uma cópia normal do gene. As irmãs podem igualmente
ser portadoras, ou seja, quaisquer filhos homens que venham a ter correm o risco de contrair a
doença. Suponha agora que a mãe engravide outra vez de um menino; há 50% de probabilidade de
que esse segundo filho também seja afetado. Por meio dos rflps, seu médico poderá lhe dizer o
destino que aguarda o feto caso a gravidez não seja interrompida.

Primeiro, o cromossomo x do filho afligido pelo mal é analisado para identificar os rflps
especificamente associados ao gene da dmd nessa família. Em seguida, extrai-se dna do feto — uma
amostra da placenta ou do líquido amniótico, que contém células fetais. Se os rflps do feto
corresponderem aos do garoto afetado, então podemos ter quase certeza de que o feto pOr nascer
terá o mesmo destino. Por que ”quase” certeza? Como vimos no capítulo 1, quando o óvulo é
produzido, os pares de cromossomos são recombinados, trocando dna entre si: as duas cópias do
cromossomo l intercambiam dna, o mesmo acontecendo com as duas cópias do cromossomo 2, as
duas cópias do cromossomo x e assim por diante. Se a troca ocorrer num ponto do cromossomo x
entre os marcadores rflp e o gene dmd, é possível que os rflps associados à versão normal do gene
acabem se associando à cópia mutante (dmd)- A experiência nos mostra que, no caso dos primeiros
rflps indicativos de dmd, isso ocorre cerca de 5% das vezes. Portanto, um diagnóstico baseado nos
rflps só pode ter uma precisão de 95%. Esse grau de imprecisão é uma conseqüência inevitável da
recombinação. Assim, embora o diagnóstico representasse um tremendo avanço, a certeza absoluta
dependia de se identificar o próprio gene, não apenas os marcadores associados a ele.

A peça-chave para isolar o gene da dmd foi um menino chamado Bruce Bryer, em cujo cromossomo
x faltava um trecho bastante grande do braço curto. Na verdade, esse trecho era tão extenso que
Bruce padecia de três outras doenças genéticas afora a dmd. Em 1985, Lou Kunkel, da Faculdade
de Medicina de Harvard, raciocinou que seria possível usar o dna de Bruce para ”pescar”
329
Bruce Bryer, cuja supressão gênica no cromossomo X levou à identificação âo gene da distrofia muscular do tipo Duchenne. Ele
conseguiu levar uma vida bastante normal ejá era um exímio organista quando faleceu num acidente de carro, aos dezessete anos de
idade.

um gene normal do dna de um garoto saudável. O caso de Bruce era especial, pois a doença fora
causada não por uma cópia defeituosa do gene, mas pela total ausência desse gene. Kunkel
percebeu que todo o dna de Bruce deveria estar presente no dna do garoto normal e que em
quaisquer seqüências presentes neste último e ausentes em Bruce estaria a chave da questão.
Usando métodos de recombinação, Kunkel subtraiu o dna de Bryer do dna normal e guardou a
diferença, a saber, o dna que deveria conter o gene da dmd. Embora a subtração não tenha sido
perfeita, foi bem-sucedida o bastante para que Kunkel encontrasse os trechos de dna que procurava
usando marcadores genéticos ligados à região xp21.

Tony Mônaco, um orientando de Kunkel, ficou encarregado de determinar se algum trecho de dna
na região xp21 poderia constituir parte do próprio gene da dmd. A única maneira de levar isso a
cabo era testar cada trecho e comparálo com o dna de diversas vítimas da distrofia muscular do tipo
Duchenne sem parentesco algum com Bryer. Mônaco tirou a sorte grande na oitava tentativa, ao
constatar que uma seqüência chamada pERT87 não estava presente em cinco garotos com dmd. Isso
implicava, com certeza quase absoluta, que a pERT87 estava muito próxima do gene e talvez até
fizesse parte dele. Mônaco começou a isolar outras seqüências próximas da pERT87 e verificou que
também estavam ausentes do dna de pacientes com dmd. Até que, em 1987, o grupo de Kunkel
conseguiu isolar o gene completo, cujo produto recebeu um nome condigno: distrofina. Mesmo
agora que a seqüência completa do genoma foi estabelecida, esse gene ainda é o recordista de
tamanho, devido principalmente ao grande número de íntrons compridos que possui.
330

O novo conhecimento foi logo utilizado para produzir um diagnóstico prénatal infalível de dmd. Os
cientistas também logo descobriram que várias mutações diferentes podiam danificar o gene da
distrofina e provocar a doença. Mas ainda não estava claro qual era exatamente a atuação do gene.
Será que a sua função poderia fornecer indícios para desenvolver terapias eficazes contra a distrofia
muscular do tipo Duchenne?

O primeiro passo era localizar a proteína produzida pelo gene nas células musculares. Eric
Hoffman, no laboratório de Lou Kunkel, descobriu que, via de regra, a proteína distrofina estava
localizada nas células musculares logo abaixo da membrana que envolve as fibras musculares.
Estudos adicionais revelaram o papel crucial da distrofina de ligar as proteínas da arquitetura
interior das células musculares a um conjunto de moléculas que ultrapassam a membrana celular e
interagem com outras proteínas fora da célula. De algum modo, a ligação entre as moléculas
internas e as situadas na membrana preserva a membrana celular quando os músculos se contraem e
relaxam. Sem a distrofina, a membrana sofre lesões e o músculo começa a morrer célula por célula.
Em vista do conhecimento detalhado que hoje temos da distrofina e sua função, pode parecer
surpreendente que ainda não haja cura para a dmd. Essa é a grande frustração inerente ao estado
atual dessa ciência: a genética tornou possível identificar e compreender várias doenças, mas na
maioria dos casos não nos permite corrigir os erros gênicos.

A abordagem de Kunkel é típica da maneira moderna de dissecar uma doença a partir de


mapeamentos. Hoje esse método é uma prática comum, mas quando Kunkel o aplicou ainda estava
tão além dos limites ortodoxos de pesquisa que a Associação de Distrofia Muscular se arriscou ao
apoiar os seus esforços durante quatro anos — embora o risco tenha mais do que compensado. No
passado, recorríamos a análises bioquímicas dos sintomas de uma doença para tentar identificar o
gene responsável; hoje, depois de Kunkel, mapeamos o gene e depois interpretamos os sintomas à
luz da função desse gene.

Um dos mais poderosos argumentos em favor do mapeamento gênico é que esse trabalho tem
utilidade antes mesmo de o gene ser totalmente identificado. A caça aos genes da doença de
Huntington e da distrofia muscular do tipo Duchenne levou à descoberta de marcadores genéticos
que podem ser utilizados no diagnóstico dessas enfermidades — mesmo que os genes em si ainda
não tenham sido encontrados. O mesmo aconteceu no caso de uma das doenças
33i
genéticas mais comuns, a fibrose cística. Entretanto, a caça ao gene dessa patologia revelou-se
excepcional por dois motivos: foi a primeira vez que uma empresa participou do mapeamento do
gene de uma doença humana e a primeira vez que houve uma concorrência brutal entre os cientistas
participantes.

Nos pacientes que sofrem de fibrose cística, um espesso muco se acumula nos pulmões,
dificultando a respiração. As células que revestem os brônquios do pulmão não conseguem limpar o
muco, no qual bactérias prosperam, produzindo infecções pulmonares. Antes do advento dos
antibióticos, as vítimas dessa doença tinham uma expectativa de vida de apenas dez anos; hoje as
taxas de sobrevivência são bem maiores. A fibrose cística é também uma das doenças genéticas
mais comuns, afetando cerca de 1 em cada 2.500 indivíduos de ascendência, norte-européia. Ela
segue um padrão recessivo de hereditariedade, ou seja, a vítima precisa ter duas versões mutantes
do gene. Contudo, como cerca de 1 em cada 25 pessoas originárias do norte da Europa é portadora
de uma versão mutante, embora ela própria esteja protegida por possuir uma cópia normal do gene,
o risco de dois portadores se unirem e transmitirem a doença aos filhos é relativamente alto. Assim,
desenvolver um teste diagnóstico passou a ser uma prioridade médica tão logo isso se tornou uma
meta realista.

Nascido em Xangai, criado e educado em Hong Kong, Lap-Chee Tsui desembarcou nos Estados
Unidos em 1974 como um aluno de pós-graduação. Tsui e studou genética molecular e realizou
pesquisas com vírus antes de transferir-se em 1981 para o laboratório de Manuel Buchwald em
Toronto, onde trabalharia com fibrose cística. Tsui é um homem discreto, de maneiras agradáveis,
que, não obstante, se mostra veemente e passional no que concerne a suas metas. Ao decidir caçar o
gene da fibrose cística por meio da análise de ligação dos rplps, dedicou os dois primeiros anos a
encontrar famílias com vítimas da doença antes de iniciar o laborioso processo de testar o dna delas
com cada rflp de que conseguisse dispor. Todavia, a boa sorte que agraciara Jim Gusella em sua
busca do gene da doença de Huntington não favoreceu Tsui: após um ano de trabalho, tudo o que
conseguira fora eliminar muitos rflps. Muito mais era preciso e ele achou ótimo quando a
CoUaborative Research se ofereceu para compartilhar os seus marcadores rflp.

O grupo de Tsui em Toronto não era o único que estava atrás do gene da
332

fibrose cística: Bob Williamson, em Londres, que já trabalhara com a dmd, também participava da
caça, o mesmo acontecendo com Ray White, agora em Utah, atraído pelo acesso às gigantescas
árvores genealógicas preparadas pela igreja mórmon. Esses registros, o chamado Ancestral File,
permitem que os membros atuais da Igreja zelem pelos antepassados falecidos que não pertenceram
à congregação ou morreram antes de a igreja ser fundada em 1830. O propósito é unir as famílias
por toda a eternidade. Poucas vezes os requisitos da religião e da genética estiveram tão
oportunamente alinhados.

Mas foi o grupo de Toronto que obteria o primeiro sucesso, ao descobrir em 1985 uma ligação entre
um dos rflps da CoUaborative Research e o gene da fibrose cística. Nessa época, a localização desse
rflp era desconhecida, mas, ciente de que seria uma mina de ouro, a empresa não poupou esforços
para localizá-lo. Embora tenham constatado que esse rflp estava situado no cromossomo 7, não
informaram Tsui, seu colaborador, de imediato. Nem mencionaram a localização do cromossomo
quando divulgaram a descoberta no exemplar de 22 de novembro do prestigioso periódico Science.
Estavam claramente tentando preservar o monopólio sobre a nova informação. No entanto, sigilo e
ciência não costumam andar de mãos dadas e logo se espalhava informalmente a notícia de que era
no cromossomo 7 que as coisas estavam acontecendo.
Enquanto a CoUaborative se mantinha em silêncio, Williamson e White estavam a apenas dias de
fazer a mesma descoberta. As monografias de ambos, publicadas na Nature, a rival britânica da
Science, mencionavam que os rflps em questão se localizavam no cromossomo 7. Tsui enfureceu-
se: ele estava prestes a perder a primazia da descoberta da ligação por causa das trapalhadas de seus
parceiros — na ciência não há nenhum prêmio para o segundo colocado —, mas
Lap-Chee Tsui, rastreador de genes.

333
Helen Donis-Keller convenceu a Nature a aceitar uma monografia da parceria grupo de
Toronto/Collaborative anunciando a localização. Foi assim que três artigos acabaram sendo
publicados no exemplar de 28 de novembro da Nature, além de um editorial explicando como tudo
acontecera.

A parceria entre o grupo de Toronto e a Collaborative não sobreviveu ao entrechoque das culturas
acadêmica e comercial. A empresa descobriria que o mundo acadêmico não pretendia mais
colaborar com ela e esse intento só se agravou com a declaração ofensiva e pouco sustentável de
Orrie Friedman diretor-presidente da Collaborative: ”O cromossomo 7 é nossa propriedade”.
Felizmente, o último capítulo dessa novela foi ao ar em dezembro de 1985, quando todos os grupos
de pesquisa concordaram em unir recursos e esforços para testar 211 famílias à procura de ligações
com os rflps do cromossomo 7. Os resultados foram espetaculares. Os rflps estavam situados muito
próximos do gene, não mais que 1 milhão de pares de bases de distância, o que os tornava úteis no
diagnóstico de fibrose cística — uma das principais metas dos pesquisadores da doença.

O passo seguinte prometia ser ainda mais difícil. Saber que Nova York fica na metade do caminho
entre Washington e Boston é melhor do que só saber que fica em algum lugar dos Estados Unidos.
Mas, se estivermos indo a pé de Washington a Boston, essa dica talvez não pareça tão útil se
precisarmos parar a cada metro para achar uma placa que indique ”Bem-vindos a Nova York”. Um
milhão de pares de bases pode ser uma distância pequena pelos parâmetros da análise de ligação,
mas é um longuíssimo caminho a ser percorrido pelos clonadores de genes, que têm de analisar as
regiões um par de bases por vez. Para percorrer a distância entre os dois rflps mais próximos do
gene da fibrose cística, Tsui associou-se a Francis Collins, que na época trabalhava na Universidade
de Michigan e mais tarde me substituiria na direção do Projeto Genoma Humano.

Collins desenvolvera técnicas de ”saltos” que facilitavam a clonagem de genes entre pares de rflps
conhecidos, mas estava tão ciente quanto Tsui da magnitude dos problemas que iriam enfrentar.
Mas, após dois anos de trabalho, conseguiram localizar o gene da fibrose cística num segmento de
dna com 280 mil pares de bases: ali estava a seqüência de um gene que sabidamente tem uma
função importante nas glândulas sudoríparas humanas, que são disfuncionais em pacientes com
fibrose cística. Parecia que, enfim, o gene completo da doença estava prestes a ser encurralado.
334

A única maneira de se convencerem de que estavam certos era seqüenciar o dna complementar em
busca de mutações causadoras da doença. Uma região com 6.500 pares de bases de comprimento
era um belo desafio em 1989 e o seqüenciamento teria de ser feito duas vezes: uma usando o dna de
um paciente com fibrose cística, outra com o dna de um indivíduo saudável. O resultado, porém, foi
claríssimo: no dna do paciente faltava um trecho de três pares de bases, o que resultava na ausência
de um único aminoácido na proteína. Essa pequenina mutação é responsável por cerca de 70% dos
casos de fibrose cística. Entretanto, mais de mil outras mutações encontradas no gene da fibrose
cística também podem provocar a doença. A multiplicidade de variantes perniciosas complicou, e
muito, os diagnósticos baseados no dna.

Voltemos agora a Nancy Wexler, David Housman, Jim Gusella e seus colegas, que deixamos em
1983, no momento triunfante em que um rflp em particular, o G8, fora associado ao gene da doença
de Huntington. Se até aquele instante eles pareciam ter tido mais do que uma parcela eqüitativa de
boa sorte, localizando o gene da doença de Huntington com espantosa rapidez, os deuses logo
corrigiriam esse desequilíbrio. Encontrar o gene levara apenas três anos; isolá-lo para que fosse
detalhadamente analisado exigiria dez anos e uma equipe internacional de 150 cientistas. Nesse
caso, a região em que o gene fora localizado tinha 4 milhões de pares de bases de comprimento.
Embora os geneticistas que estudavam a doença trabalhassem arduamente para reduzir essa faixa, o
mapeamento vai se tornando mais difícil à medida que a distância gênica diminui. Por fim, todo
esse esforço foi recompensado com dados não mais que ambíguos. Imagine que estamos viajando a
pé de Washington a Boston, querendo chegar a Nova York. Imagine agora chegar a um cruzamento
na Filadélfia e encontrar uma placa indicando Nova York em ambas as direções.

Os caçadores do gene da doença de Huntington, abandonando os resultados contraditórios da


análise de ligação, conceberam uma estratégia alternativa: concentrar-se na região mais similar
entre as vítimas da doença, uma abordagem que acabou reduzindo a região visada para apenas 500
mil pares de bases. Chegara a hora de recorrer às técnicas de clonagem de genes. Os primeiros
resultados foram decepcionantes: eles encontraram três genes na metade direita da região, mas
nenhum apresentava anormalidade em vítimas da doen-
335
ça. Sem desanimar, exploraram a metade esquerda, onde encontraram um único gene, com um
nome bastante prosaico: it15. Depois de dez anos e muitos bilhetes de loteria espúrios, a sorte
pareceu sorrir para eles novamente. Esse gene continha uma seqüência curta — cag — que se
repetia continuamente, como as repetições curtas enfileiradas (strs) usadas na identificação
genômica. Verificou-se que pessoas livres da doença tinham menos de 35 seqüências cag e que
pessoas com mais de quarenta seqüências acabavam desenvolvendo a doença na idade adulta. Nos
raros casos em que o indivíduo possuía mais de sessenta seqüências repetidas, uma forma severa da
doença se instalava antes dos vinte anos. cag é o código genético do aminoácido glutamina, de
modo que cada repetição de cag acrescenta uma glutamina extra à proteína. No caso das vítimas da
doença de Huntington, a proteína codificada pelo gene da doença — a quase impronunciável
huntingtina — contém glutaminas extras. Essa diferença provavelmente afeta o comportamento da
proteína nas células cerebrais, o que talvez faça com que as moléculas se aglutinem em
protuberâncias pegajosas no interior das células e, de algum modo, provoquem a sua morte.

Foi um esforço descomunal de todos os laboratórios associados à Fundação Hereditary Disease e,


reconhecendo tratar-se de uma iniciativa verdadeiramente colaborativa, o único nome que consta
como autor do artigo é Huntington Disease Collaborative Research Group [Grupo Colaborativo de
Pesquisa da Doença de Huntington]. O mesmo tipo estranho de mutação — repetições de uma
seqüência com três pares de bases —já foi relacionado a três outras enfermidades, todas de natureza
neurológica, surpreendentemente. Hoje conhecemos catorze doenças causadas por seqüências
repetidas de trinucleotídeos, mas ainda não fazemos idéia da razão por que as células cerebrais são
tão suscetíveis a esse tipo de mutação.

Talvez seja deprimente constatar que, apesar de todo o tempo dedicado a caçar seus respectivos
genes, essas doenças — Huntington, Duchenne e fibrose cística — são consideradas ”simples” aos
olhos dos geneticistas, ou seja, são causadas por mutações em um único gene e não são muito
afetadas por fatores ambientais. Se ambos os nossos genes de fibrose cística apresentarem uma
lacuna de três pares de bases ou se houver mais de quarenta repetições da seqüência cag em um dos
nossos genes da doença de Huntington, iremos desenvolver

essas patologias não importa onde moramos ou o que comemos ou bebemos. Há um grande número
de doenças provocadas por um único gene (o cadastro de doenças genéticas inclui vários milhares
delas), mas a maioria é extremamente rara, só ocorrendo em muito poucas famílias.

Bem mais comuns são as doenças ”complexas” ou ”poligênicas”, que incluem muitas das
enfermidades mais comuns: asma, esquizofrenia, depressão, doenças cardíacas congênitas,
hipertensão, diabetes e câncer. Essas são causadas pela interação de vários — talvez muitos —
genes, cada um dos quais, isoladamente, com pouco ou nenhum efeito detectável. Além disso, como
costuma acontecer em doenças poligênicas, existe um outro agravante: embora esses grupos de
genes interativos possam criar predisposição a uma determinada doença, a manifestação efetiva
desta depende de fatores ambientais. Suponhamos que eu seja portador de um conjunto de variantes
gênicas que predisponham para o alcoolismo. Se irei ou não me tornar um alcoólatra depende de
minha exposição ao gatilho ambiental — no caso, o álcool. Meu destino será bem diferente se eu
crescer num condado ”seco” do Texas ou em Manhattan. O mesmo princípio vale para a asma: num
”bom” verão, com baixos índices de pólen e esporos, posso não apresentar nenhum sintoma, apesar
de possuir uma predisposição genética à doença.

A complexa interação entre genes e meio ambiente fica mais evidente no caso do câncer. O câncer é
fundamentalmente uma doença genética causada por mutações em diversos genes. Cada mutação
altera um elemento adicional no comportamento da célula até que ela adquire todas as
características da malignidade. As mutações cancerígenas surgem de duas maneiras. Algumas são
herdadas. Todos já ouvimos alguém dizer que ”isso está na família” e, embora alguns traços assim
descritos (catolicismo, por exemplo) não sejam necessariamente hereditários, certos tipos de câncer
o são. Infelizmente, porém, a doença é tão comum que não raro ocorrem dois ou até três casos de
câncer numa família sem que haja um componente hereditário. (Portanto, os geneticistas que
estudam ”famílias cancerosas” aplicam critérios extremamente rígidos para verificar se um câncer é
herdado ou não.) Além disso, muitas mutações cancerígenas ocorrem no curso normal da vida e o
dna pode ser danificado por erros que as enzimas cometem ao se duplicarem ou repararem a
molécula genética, ou como conseqüência de efeitos colaterais de reações químicas normais no
interior da célula. Afora isso, muitos cânceres surgem em decorrência da nossa
336

337
p
estupidez: os raios ultravioleta do Sol são poderosos agentes mutagênicos aos quais os adeptos do
culto da pele bronzeada se expõem de bom grado, e o cigarro é uma maneira eficientíssima de levar
carcinógenos aos pulmões, onde podem provocar o câncer. Verificou-se que outros fatores
ambientais — por exemplo, asbesto no local de trabalho — também promovem o câncer. O fato é
que o dna pode ser danificado naturalmente; cabe a nós, portanto, minimizar esses danos mediante
opções sociais e pessoais conscientes.

Em 1974, Mary-Claire King (que já encontramos envolvida com seres humanos e chimpanzés, e
também ao lado de Las Abuelas) transferiu-se para a Universidade da Califórnia em San Francisco,
indo trabalhar num laboratório que estudava o câncer de mama. Lá decidiu dedicar-se à caça do
gene responsável. Na época, seis anos antes do advento dos rflps, King já sabia que encontraria
pistas em árvores genealógicas e, por isso, começou a cadastrar famílias. Procurou famílias cujos
membros tivessem tido câncer de mama bem jovens e nas quais também houvesse casos de câncer
de ovário, raciocinando que isso poderia indicar um fator hereditário. Os únicos marcadores
genéticos de que dispunha eram os marcadores protéicos, e, após alguns anos, publicou sua primeira
monografia sobre câncer de mama, descrevendo testes que não haviam conseguido estabelecer uma
ligação com as proteínas da superfície celular. Logo vieram outras monografias mostrando
resultados igualmente negativos. Os céticos se mostraram apropriadamente dúbios: o câncer de
mama é afetado demais pelo meio ambiente para ser objeto de uma análise genética, diziam,
referindose como sempre a agulhas e palheiros. Sem esmorecer, King continuou refinando seus
dados e, em 1988, tendo analisado 1.579 famílias, julgou ter encontrado bons indícios de um gene
responsável pelo câncer de mama nessas famílias de alto risco.

O mundo da medicina ficou pasmo quando, em 1990, ela anunciou que tinha descoberto no
cromossomo 17 um rflp associado ao câncer de mama em um subgrupo de 23 famílias (com um
total de 146 casos de câncer de mama ao longo de três gerações). King vasculhou todos os fatores
que poderiam ter confundido a análise — talvez essas mulheres tivessem sido expostas a mais raios
X do que a média ou talvez houvesse algo de diferente no histórico de suas gestações — mas os
dados se mantiveram firmes. Havia um gene no lócus 17q21 do
338

cromossomo que, ao sofrer mutação, aumentava enormemente o risco de câncer. A monografia de


King desencadeou uma corrida para isolar esse gene, designado brcaI [BReast CAncer = CÂncer de
MAma] e uma controvérsia sem fim sobre a exploração comercial de genes.

Isolar o brcaI seria, sem sombra de dúvida, um grande acontecimento. Embora só fosse importante
para um pequeno subgrupo de famílias de alto risco (ou seja, o gene só é responsável por uma
pequena proporção de todos os cânceres de mama), os conhecimentos que poderiam advir da sua
identificação eram motivo suficiente para entusiasmo. King juntou-se a Francis Collins, cujas
credenciais de caçador de genes eram impecáveis, mas a dupla enfrentou acirrada concorrência.
Mark Skolnick, o geneticista de populações de Utah que participou da descoberta crucial da análise
de ligação dos rflps, fundou uma empresa, Myriad Genetics, com Wally Gilbert, cujo espírito
empreendedor sobrevivera ao seu instável mandato na direção da Biogen. O plano de negócios da
Myriad consistia em usar as genealogias familiares dos mórmons para mapear e clonar genes, e logo
o brcaI estava sob seus microscópios. Em 1994, um consórcio de geneticistas da Myriad, da
Universidade de Utah, do nih, da Universidade McGill e da Eli Lilly saiu à frente do resto do
mundo para anunciar o que foi chamado, com certo recato, de ”forte candidato” ao gene brcaI. O
gene fora encontrado. Todos os envolvidos requereram uma patente (embora a Myriad pretendesse
inicialmente excluir os cientistas do nih). Em 1997, a requisição da Myriad foi deferida.

Enquanto o BRCAI era clonado, um outro consórcio de geneticistas, incluindo cientistas da própria
Myriad e do Instituto de Pesquisas sobre o Câncer [Institute for Câncer Research] na Inglaterra,
noticiou que havia localizado um segundo gene do câncer de mama, o brca2, no cromossomo
humano 13. Outra corrida foi desencadeada e, um ano depois, o grupo inglês anunciou que
conseguira isolar o gene. Eles souberam que a corrida estava ganha quando haviam identificado
cerca de dois terços da seqüência do dna do gene e constataram que era defeituosa em seis famílias
diferentes. Não querendo ficar para trás, a Myriad formou um terceiro consórcio, dessa vez com
institutos do Canadá e da França, e logo publicou a seqüência completa do brca2, um gene
gigantesco. Como não poderia deixar de ser, tanto a Myriad como o Instituto de Pesquisas sobre o
Câncer requereram a patente do gene.

Não havia dúvida de que esses genes teriam grande importância comercial.
339
Suas mutações traziam conseqüências gravíssimas para as mulheres. O risco de uma mulher
desenvolver câncer de mama até os setenta anos por causa de uma cópia mutante do BRCAl ou do
BRCA2 pode chegar a 80%. Além disso, determinou-se que essas mesmas mutações também
aumentam para até 45% o risco de câncer de ovário. Mulheres em cujas famílias essas mutações
estão presentes precisam ser informadas o quanto antes se são portadoras da variante defeituosa de
algum dos genes. E escolhas difíceis, mas capazes de salvar vidas, precisam ser feitas: uma
mastectomia bilateral profilática em mulheres de alto risco pode reduzir a incidência de câncer em
até 90%. Ao mesmo tempo, a triagem genética pode identificar nessas famílias os indivíduos que
têm os genes normais, proporcionando-lhes o conforto de saber que não correm esse risco adicional.

Parecia algo louvável a ser oferecido no mercado: um teste genético para uma doença muito grave,
um meio de ajudar as mulheres a tomar decisões esclarecidas sobre sua saúde. Por que, então, a
Myriad costuma ser retratada como exemplo de tudo o que há de pior no casamento entre comércio
e ciência? A Myriad hoje detém nove patentes do brcaI e do brca2 nos Estados Unidos; em 2001,
obteve uma patente na União Européia, uma na Nova Zelândia, quatro no Canadá e duas na
Austrália. Para todos os efeitos, a empresa detém o monopólio internacional desses genes e um
controle global sobre o modo como são usados. É perfeitamente razoável que lhe seja permitido
ganhar dinheiro com testes para identificar mutações do brcaI e do BRCA2 — afinal, trata-se de um
serviço valioso e muito dinheiro foi investido para desenvolver o teste. Mas quanto seria um retorno
razoável? Hoje cada teste custa mais de us$ 2.700. Ao mesmo tempo, a Myriad impede
pesquisadores acadêmicos de usarem seqüências dos genes brca no desenvolvimento de testes
alternativos. E as informações sobre mutações do brca obtidas no seqüenciamento do dna de
pacientes inscritos em projetos acadêmicos de pesquisa são sonegadas até mesmo aos próprios
pacientes (pois, caso fossem fornecidas, seria sinal de que o gene foi usado num diagnóstico clínico,
infringindo as patentes da empresa

A Myriad fez algumas concessões recentemente. Um acordo com o governo agora permite que
cientistas envolvidos em pesquisas financiadas pelo NIH apliquem o teste pelo preço especial de
us$ 1.400. Mas os críticos da empresa vêem isso como um mero gesto simbólico e continuam a
soltar o verbo especialmente no Canadá e na Europa. O Parlamento Europeu aprovou uma
resolução expressando seu ”desalento” com as ações do Serviço Europeu de Paten-
340

tes e instruindo os funcionários do Parlamento a contestar as patentes da Myriad sobre os dois


genes. Os parceiros franceses da empresa no seqüenciamento do brca2 — o Instituto Curie e o
Instituto Gustave-Roussy — ficaram revoltados com a patenteação do BRCA2 e impetraram um
protesto formal ao Serviço Europeu de Patentes. Seja como for, o monopólio da Myriad não parece
ser vantajoso para os pacientes. O teste da empresa é incapaz de detectar todas as possíveis
alterações cancerígenas que afetam o gene, de modo que mesmo pessoas cuja triagem das mutações
tenha dado resultado negativo podem estar em situação de risco. Hoje a Myriad obriga quem faz o
teste a assinar um documento dizendo-se ciente de que um resultado negativo não indica
necessariamente um atestado de boa saúde genética. Desenvolver um teste mais abrangente é difícil
por questões técnicas, mas, não fossem as patentes cerceadoras da Myriad, certamente haveria no
mundo inteiro um número maior de laboratórios que pesquisam o câncer de mama dispostos a
tentar.

Ao longo dos últimos quinze anos, a análise de ligação também foi utilizada para identificar outros
importantes genes ligados ao câncer, incluindo os da neurofibromatose (síndrome de Von
Recklinghausen ou do homem-elefante, que geralmente não é tida como uma forma de câncer),
câncer colorretal e câncer de próstata. Embora eficaz, a abordagem gene-a-gene é lenta e laboriosa,
e cada estudo depende de se encontrarem famílias adequadas para análise. Aqui o Projeto Genoma
Humano será de enorme valor. As microplacas [microarrays] de dna e proteína que vimos no
capítulo 8 constituem uma arma de altíssimo calibre para os caçadores do gene do câncer. Quando
comecei a me interessar pelas pesquisas sobre câncer na década de 1960, sabíamos tão pouco sobre
a genética subjacente e dependíamos de ferramentas tão primitivas que achei melhor me dedicar aos
vírus que causam câncer em animais. Eu esperava que esses vírus (cujo estudo era possível mesmo
naquela época, uma vez que possuem pouquíssimos genes) poderiam me proporcionar algum
insight sobre o câncer humano. Hoje, as pesquisas sobre câncer não estão mais restritas aos vírus,
pois já temos condições de mapear e clonar as dezenas de milhares de genes existentes num tumor
humano. Um enorme cabedal de conhecimento nos aguarda à medida que vamos descobrindo, cada
vez mais detalhadamente, todos os diminutos desvios bioquímicos que facilitam a transformação de
uma célula normal em cancerosa.
341
iPPW

A maioria dos estudos da análise de ligação depende de irmos atrás da nossa presa genética no
maior número possível de genealogias. Todavia, existe uma outra estratégia, que consiste em
estudar populações pequenas com alta incidência da doença. E, por falar em populações pequenas, é
difícil haver uma menor que a de Tristão da Cunha.

Tristão da Cunha, uma ilha vulcânica que emerge íngreme e inospitamente do mar, é um minúsculo
pedaço de terra — apenas 100 quilômetros quadrados — no meio do Atlântico Sul, um dos lugares
mais remotos do planeta. O primeiro povoado permanente foi uma guarnição britânica estabelecida
em
1816 para impedir que os franceses usassem o local como uma base para libertar Napoleão do seu
exílio em Santa Helena, uma ilha quase 2 mil quilômetros ao norte. O aumento populacional
subseqüente foi esporádico — alguns colonos aqui, alguns sobreviventes de naufrágios ali — e no
recenseamento extraoficial de 1993 havia apenas 301 habitantes. Naquele ano, uma equipe da
Universidade de Toronto foi até a ilha para dar continuidade a estudos médicos realizados com os
ilhéus em 1961, ano em que a população inteira foi evacuada para a Inglaterra quando o vulcão
adormecido entrou temporariamente em atividade. Na época, a constatação mais surpreendente fora
que cerca de metade dos evacuados tinha um histórico de asma.

Quando pesquisadores do Programa da Genética da Asma de Toronto examinaram 282 habitantes


em 1993, verificaram que 161 (57%) tinham alguns sintomas de asma. Os canadenses elaboraram
uma genealogia das famílias locais e não foi difícil ver que todos os moradores eram descendentes
de quinze colonos originais, de tal modo que suas linhagens estavam intimamente inter-relaciona-
Possivelmente o ponto

habitado mais remoto

do planeta: Tristão da Cunha, vista âe uma

ilha desabitada das proximidades.

342

das. Aparentemente, a asma fora introduzida na ilha por duas mulheres que r se fixaram em 1827.
Uma população dessas é uma dádiva para os caçadores d genes: a ilha toda é, em essência, uma
grande família estendida e, por isso, o genes que causam qualquer enfermidade observável tendem a
ser os *nesmOs em todos os habitantes — o cenário ideal para uma análise de ligação. Etn popu
lações maiores e mais variadas, a asma de uns pode ser causada por unn grun de genes enquanto a
de outros é causada por um grupo diferente. É esssa hete rogeneidade que torna tão difícil
identificar os fatores genéticos determinantes de doenças complexas.

A equipe de Toronto coletou amostras de sangue e preparou dna, mas pre cisava de verbas para
concluir o estudo. Foi quando receberam notícias da Sequana, uma empresa fundada para caçar
genes de doenças, que decidiu financiar o estudo. Imediatamente surgiram acusações de que ela
estava explorando os moradores da ilha, que talvez nem sequer entendessem qual era o seu papei na
estratégia comercial da empresa. Ativistas canadenses, autodenominando-Se Fundação
Internacional de Fomento Rural [Rural Advancement Foundatioj! International], acusaram a
Sequana de estar cometendo ”um ato de biopirataria [...] violando os direitos fundamentais das
pessoas das quais estava tirand0 amostras de dna”. Numa atitude fadada a provocar novas acusações
de ”biopj. rataria”, a empresa declarou que encontrara dois genes que conferiam susceti. bilidade à
asma, mas recusou-se a divulgá-los antes de apresentar um pedido 4e patente na Europa. Os genes
estão localizados no cromossomo 11 e estudos subseqüentes de populações continentais
heterogêneas confirmaram o papel d0 cromossomo 11 na asma. Aparentemente, pois, os fatores
genéticos subjacentes à alta incidência de asma em Tristão da Cunha não são relevantes apenas para
habitantes isolados das ilhas do Atlântico Sul.

Seja como for, a tempestade em torno da ”biopirataria” da Sequana ficou parecendo uma bonança
perto da borrasca que envolveria Kari Stefansson e sua empresa, decoDE Genetics, alguns anos
depois. Reconhecendo que seria tedioso e ineficiente tentar achar uma micropopulação à Ia Tristão
da Cunha para cada doença, Stefansson julgou que precisava era de uma ilha isolada, mas com uma
população muito maior, na qual pudesse buscar os genes de diversas doenÇas ao mesmo tempo. Por
acaso ou desígnio, Kari Stefansson nascera justamente numa ilha assim.

A Islândia é mais ou menos do tamanho de Kentucky [102 mil quilômetros


343

ijgg|
.kku
quadrados], mas tinha apenas 272.512 habitantes, cerca de Vis da população daquele estado. A ilha
foi colonizada nos séculos ix e x por vikings, que trouxeram consigo mulheres capturadas na Irlanda
durante a viagem. A Islândia oferece diversas vantagens para um intrépido caçador de genes.
Primeiro, sua população é bastante homogênea, quase toda proveniente dos primeiros
colonizadores, pois houve pouquíssima imigração desde a época dos vikings. Segundo, existem
registros genealógicos detalhados abrangendo muitas gerações; não poucos islandeses sabem quem
são seus ancestrais de quinhentos anos atrás. Esse recurso, útil em si, é suplementado por um
cadastro detalhado de nascimentos iniciado em 1840 na Universidade da Islândia. Terceiro, o país
possui um serviço nacional de saúde desde 1914, de modo que todos os prontuários médicos são
uniformizados, ordenados e facilmente acessíveis — em princípio, pelo menos.

Stefansson, um neurologista da Harvard, interessava-se por doenças genéticas complexas como a


esclerose múltipla e o mal de Alzheimer. Ciente de que seu povo constituía uma população quase
perfeita para pesquisas genéticas, elaborou um projeto para cotejar registros genealógicos e médicos
a fim de criar uma base de dados para caçar genes. A despeito do propósito meritório do projeto, a
legislação local sobre privacidade constituía um empecilho. Até que, em
1998, o Althingi (o Parlamento islandês, fundado no ano 930) aprovou uma lei regulamentando a
utilização dos cadastros de saúde do país, que autorizava ”a criação e operação de uma base de
dados centralizada com informações de saúde pessoalmente inidentificáveis com vistas a ampliar
nossos conhecimentos e melhorar a saúde e os serviços de saúde”.

Em 2000, a decoDE obteve uma licença de doze anos para montar e operar à sua custa o cadastro
nacional de saúde da Islândia, em troca de uma taxa anual a ser paga ao governo do país. O módulo
genealógico dessa base de dados contém informações de domínio público, mas o acesso aos
registros médicos é mais restrito e funciona segundo o princípio do ”consentimento presumido” —
ou seja, informações sobre a saúde de uma pessoa são cadastradas a menos que ela opte pelo
contrário. O módulo genotípico é o mais restritivo de todos, exigindo consentimento explícito — o
indivíduo deve ostensivamente concordar em doar amostras de tecido para obtenção de dna. E é
aqui que está o pomo da discórdia: embora a decoDE tenha implantado um sistema para proteger a
privacidade dos doadores, os críticos afirmam que é inadequado. Como o dna do indivíduo pre~
cisa ser correlacionado com s registros genealógicos e médicos, as amostras nao
344

são obtidas anonimamente; em vez disso, a identidade do doador é criptografada. Em teoria, pois, o
código poderia ser quebrado e, sobretudo numa população tão pequena, a notícia de que uma
família ou outra é portadora de genes ”ruins” poderia se espalhar — abrindo caminho para a
discriminação gênica. O projeto da decoDE cristalizou num microcosmo muitas das questões sobre
privacidade genética que vinham sendo discutidas mais hipoteticamente em outros lugares.
Entretanto, a despeito da controvérsia, a maioria dos islandeses foi favorável à iniciativa da
empresa, considerando-a um meio de combinar uma missão nobre — o combate a doenças
genéticas — com a alegre perspectiva de injetar um bom dinheiro na pequena economia do país.
Empolgados, muitos islandeses fizeram maciços investimentos na empresa, arrebatando suas ações
por até US$ 65 antes mesmo de a decoDE ser oficialmente cotada na nasdaq. Mas o retrocesso
econômico não foi benfazejo nem para a biotecnologia em geral nem para a decoDE em particular.
No momento em que escrevo, as ações valem cerca de us$ 2 e não poucos habitantes da ilha sentem
remorsos daquela época de compra-compra. E inegável, porém, que a decoDE trouxe dinheiro para
a Islândia graças a parcerias lucrativas com a Hoírmann-LaRoche e a Merck. No entanto, com o
governo da Islândia disposto a servir de avalista para um empréstimo de us$ 20O milhões e com a
empresa sendo forçada a dispensar uma parcela razoável de seus funcionários, a realidade financeira
é que a decoDE talvez tenha sido para o país uma benesse econômica bem menor do que se
esperava.

A prova de fogo para a decoDE será não os caprichos do mercado de ações, mas a ciência que
conseguirá produzir. Aqui, infelizmente, o imperativo comercial de não-divulgação ou divulgação
tardia dificulta uma avaliação. Segundo os press releases da empresa, a decoDE no momento
realiza análise de ligação em 46 doenças, incluindo asma, depressão, câncer, osteoporose e
hipertensão. Ela teria encontrado marcadores de ligação para 23 delas e isolado os genes que
favorecem doenças vasculares periféricas, derrames e esquizofrenia. Todavia, dada a escassez de
detalhes publicados em periódicos científicos, é digcil distinguir ciência de propaganda. Não
obstante, a decoDE certamente se mostrou capaz de fazer contribuições úteis: em junho de 2002,
pesquisadores da empresa publicaram um novo mapa do genoma humano com uma resolução
nitidamente superior à do velho mapa do ceph. Além disso, a tão aguardada publicação das
pesquisas da empresa sobre esquizofrenia parece indicar um futuro científico — e comercial —
bastante profícuo.
345

L*.
O que quer que os próximos anos reservem para a decODE, ficou claro que a sua abordagem — o
cotejo tríplice de registros médicos, genealógicos e genéticos de uma população bem definida —
possui um grande potencial. Em vista disso, a empresa não está sozinha quando submete a
população de um país inteiro a uma investigação genética. A Finlândia, por exemplo, tem 6 milhões
de habitantes e uma notável incidência de cerca de 35 doenças genéticas — algumas restritas ao
país, outras simplesmente mais comuns lá do que em outros lugares da Europa —, tornando-se
bastante interessante para os geneticistas humanos. Outros países também estão entrando na onda
dos cadastros genéticos. Em abril de 2002, a Grã-Bretanha lançou o programa Biobank e o governo
da Estônia começou a promover uma iniciativa nacional similar. Estudos populacionais em grande
escala como esses acabarão por permitir que detectemos até o mais esquivo dos genes.

A genética humana possui uma longa história, que começou com a curiosidade de nossos mais
antigos ancestrais acerca de certas características que são transmitidas de geração em geração. Mas,
ao longo de praticamente toda essa história, os fundamentos científicos da investigação sempre
foram no mínimo frágeis. As tentativas de Charles Davenport para consolidar o seu programa de
eugenia buscando os fundamentos genéticos daquilo que chamou de ”mente fraca” não merecem ser
qualificadas de ciência. Para termos uma idéia da lentidão com que o campo se desenvolveu, basta
notar que durante muito tempo um parâmetro genético fundamental na definição da nossa espécie
estava errado. Somente em 1956, três anos após a descoberta da dupla-hélice, verificou-se que o
número correto de cromossomos humanos é 46, e não 48, como se aceitara sem questionamento
desde 1935. Mas a enxurrada de conhecimentos que jorraram nos vinte anos desde o início dos
estudos de ligação com rflps criou, com fantástica rapidez, um terreno fértil no que era antes solo
estéril. Com o fim do seqüenciamento do genoma humano, é certo que encontraremos os genes
subjacentes a quase todas as doenças genéticas importantes. A questão agora é: o que fazer com
eles?
346

12. A nova luta da medicina: Tratamento e prevenção de


doenças genéticas
Nunca, desde o momento em que nasceu, David Vetter sentiu o toque direto de outro ser humano.
David sofria de uma condição hereditária chamada síndrome da imunodeficiência severa combinada
[conhecida pela sigla em inglês scid = severe combined immunodeficiency disorder], a incapacidade de o
corpo gerar células B e células T, ambas cruciais em nossa reação imunológica, que o deixava
suscetível à mais reles infecçã.o.

Os pais de David sabiam, desde antes do nascimento, que o filho poderia sofrer de scid: seu
primogênito já sucumbira à doença. Dessa vez, no entanto, os Vetter e os médicos estavam prontos e
logo no início decidiram que, se o bebê tivesse scid, seria isolado num ambiente livre de germes até
que um tra-
Acima: David Vetter, cuja doença hereditária do sistema iniunológico o tornou suscetível às mais reles infecções, foi criado num
mundo estéril. Ele foi o primeiro bubble boy, ”menino àa bolha de plástico”.

347
tamento surgisse — o que certamente não demoraria muito em vista do rápido progresso da
medicina. David nasceu por cesariana em setembro de 1971 e foi imediatamente colocado numa
incubadora estéril. Todo contato com ele era intermediado por luvas de látex integradas na lateral da
pequenina câmara. À medida que crescia, ia sendo colocado em ambientes estéreis
progressivamente maiores — ”bolhas” plásticas. As luvas, contudo, permaneceriam uma constante e
continuariam sendo a única maneira de ele sentir algo ou alguém do mundo externo.

A tão aguardada cura se mostrou esquiva. David permaneceu na sua bolha, de onde atraiu a atenção
do país inteiro. A nasa tentou ajudá-lo oferecendo um ”sistema biologístico móvel de isolamento”,
essencialmente um traje espacial que permitia ao garoto uma certa liberdade para aventurar-se fora
da bolha. Mas, na realidade, um traje espacial é apenas um outro tipo de bolha.

Avanços nas técnicas de transplante pareciam promissores e, em outubro de 1983, um mês após o
seu décimo segundo aniversário, David recebeu um transplante de medula óssea da irmã mais velha.
Infelizmente, a medula continha um vírus que provocou o surgimento de um linfoma maligno no
sistema indefeso de David. Em fevereiro de 1984, ele precisou abandonar a bolha e ser transferido
para uma unidade de terapia intensiva, onde veio a falecer pouco depois. Nos últimos dias de vida,
pôde enfim pelo menos sentir o calor do toque humano.

Devemos agradecer o fato de a scid ser uma enfermidade rara, ainda que as doenças genéticas sejam
surpreendentemente comuns entre crianças. Cerca de 2% dos bebês nascem com algum tipo de
anomalia genética grave. Estima-se que os genes sejam responsáveis por um décimo das internações
em hospitais infantis e estejam indiretamente implicados em cerca de metade. O caso de David
Vetter é, lamentavelmente, representativo do atual estado do nosso conhecimento sobre a maioria
das doenças genéticas: podemos compreender o que está errado, podemos diagnosticar o mal, mas
há relativamente pouco que possamos fazer em termos de tratamento — e, muito menos, de cura.

É interessante acompanhar a evolução da imagem da scid na cultura popular. Na década de 1970, a


síndrome inspirou um telefilme melodramático chamado The boy in the plastic bubble [O menino da
bolha de plástico]. Na década de
1990, o Bubble Boy tornou-se uma figura cômica no seriado Seinfeld. E, em 2001, a Disney lançou
um filme de extremo mau gosto que narrava, numa série de
348

aventuras bobocas, a vida de um garoto confinado numa bolha devido a uma doença inominada,
mas inconfundível.* A perene impotência da ciência diante de um mal tão horrível talvez explique
em parte essa trajetória do sentimentalismo à farsa, mas é essa mesma impotência que torna mais
difícil para as vítimas e suas famílias suportar a realidade da doença. No caso específico de doenças
que causam degeneração progressiva e inexorável, o diagnóstico é quase uma sentença de morte.
Uma vez que não existe tratamento, alguns prefeririam não conhecer seu destino macabro,
sobretudo se já testemunharam a degradação causada em entes queridos. No capítulo anterior
ficamos conhecendo Nancy Wexler: com 50% de chance de desenvolver a doença de Huntington, o
flagelo que destruíra sua mãe e seus tios, Wexler trabalhou longa e arduamente no lago Maracaibo e
em laboratórios de genética nos Estados Unidos para descobrir o gene responsável. Porém, mesmo
que sua extraordinária cruzada tenha levado ao isolamento do gene e à identificação das mutações
letais, ainda não existe o menor vislumbre de cura. E, embora tenha se esforçado tanto para
disponibilizar um teste de diagnóstico genético, ela própria afirma que não pretende realizar o
exame — pelo menos não enquanto não houver um tratamento viável no horizonte. Wexler preferiu
continuar vivendo uma grande incerteza a descobrir uma verdade com apenas 50% de chance de ser
agradável, já que também tem 50% de chance de vir a sofrer um declínio mental e físico que a
tornará uma pálida imagem da mulher dinâmica que é hoje.
De certo modo, chega a ser mais insuportável cuidar de uma vítima do que se tornar uma. Carol
Carr, de Hampton, Geórgia, acompanhou a saga de seu marido, Hoyt, que contraiu a doença de
Huntington aos trinta e poucos anos. A irmã dele, Roslyn, morrera do mesmo mal, e o irmão,
George, suicidara-se logo depois de receber o mesmo diagnóstico. Carol largou o emprego e tornou-
se enfermeira em tempo integral do marido, que continuou se deteriorando durante os vinte anos
subseqüentes. O casal já tivera três filhos antes do diagnóstico e em 1995, quando Hoyt enfim
faleceu, Carol já estava cuidando dos dois mais velhos, Randy e Andy — alimentando, dando banho
e remédios, ajudando-os no banheiro, como fizera com o marido. Não demorou até que o caçula,
James, também começasse a apresentar os sintomas. Desesperada, relutantemente internou
* O fim dado pela Disney? O garoto do filme descobre que, afinal, não sofre da imunodeficiência: sua mãe superprotetora e estabanada é
que resolvera colocá-lo na bolha para mantê-lo longe de encrencas.

349
w
Randy e Andy num asilo, onde, em 8 de junho de 2002, matou ambos a tiros. 1 Segundo o New
York Times, James afirmou que a doença de Huntington matara seus irmãos muito antes que sua
mãe desconsolada apertasse o gatilho.

Nem todas as doenças são tragédias de impotência médica. Talvez o melhor exemplo de uma
situação oposta seja a patologia que levou àquelas estranhas advertências impressas na embalagem
de alguns produtos alimentares, refrigerantes em especial: ”Contém fenilalanina”. A fenilalanina é
um aminoácido — um componente corriqueiro das proteínas — que não pode ser processado por
pessoas que sofrem de uma doença genética chamada fenilcetonúria [também conhecida pela sigla
pku, abreviação do nome em inglês phenylketonuria].

A história começa em 1934, na Noruega. Uma jovem mãe estava determinada a descobrir o que
havia de errado com seus dois filhos, de quatro e sete anos, que pareciam perfeitamente normais ao
nascer. O mais velho ainda usava fraldas e mal era capaz de balbuciar meia dúzia de palavras,
dificilmente formando uma frase completa. O caso chegou ao conhecimento do médico e
bioquímico Asbjorn Folling. Depois de realizar uma bateria de testes, Folling encontrou uma
anomalia bioquímica que associou à situação das crianças: havia um excesso de fenilalanina na
urina. Mas também descobriu que não se tratava de um caso isolado: ao encontrar 34 outras
crianças em 22 famílias espalhadas pela Noruega, percebeu que havia se deparado com uma doença
genética.

Hoje sabemos que a fenilcetonúria é causada por uma mutação do gene da fenilalanina hidroxilase,
a enzima que converte a fenilalanina em outro aminoácido, a tirosina. É uma doença rara, que afeta
cerca de uma em cada 10 mil pessoas na América do Norte, e possui um padrão recessivo de
hereditariedade, ou seja, a vítima precisa ter duas cópias mutantes do gene, uma de cada genitor,
para desenvolver a doença. As crianças afetadas carecem de uma enzima funcional, de modo que a
fenilalanina vai se acumulando no sangue, prejudicando o desenvolvimento do cérebro e levando a
graves deficiências mentais. A prevenção é simples: crianças com fenilcetonúria criadas desde o
nascimento com uma dieta de baixo teor de fenilalanina — um mínimo de proteínas e nenhuma
bebida adoçada artificialmente, as duas fontes principais — crescem normalmente. Cuidados
nutricionais são suficientes para fazer a diferença entre o desenvolvimento nor-

mal do cérebro e uma grave deficiência. Logo, seria importante descobrir o quanto antes após o
nascimento qual é a reação da criança à fenilalanina. Robert Guthrie idealizou um teste simples para
diagnosticar o nível de fenilalanina no sangue e promoveu incansavelmente a sua adoção até que se
tornasse uma prática neonatal corriqueira. Desde 1966, mediante uma pequena punção no calcanhar,
uma amostra de sangue é extraída de todo recém-nascido para determinar o teor de fenilalanina.
Desse modo, sem examinar um único par de bases do dna, o teste de Guthrie [conhecido como
”teste do pezinho”] verifica todos os anos a presença ou não de uma doença genética em milhões de
bebês. Antes desse programa, talvez até 1% dos casos de retardamento mental nos Estados Unidos
podiam ser atribuídos à fenilcetonúria; hoje o percentual é irrisório.

A década de 1950 foi testemunha do surgimento da citogenética: o estudo dos cromossomos através
do microscópio. Como instrumento de diagnóstico, essa abordagem logo revelou que anomalias no
número de cromossomos — em geral, um a mais ou a menos — invariavelmente provocam
disfunções graves. Os problemas decorrem de um desequilíbrio no número de genes, da
transgressão da norma ”dois de cada”. Esse tipo de condição não é hereditária, como a distrofia
muscular do tipo Duchenne ou a fibrose cística, mas certamente é genética — ou seja, surge
espontaneamente a partir de acidentes ocorridos na divisão celular que leva à geração dos
espermatozóides e dos óvulos.

A mais conhecida é a síndrome de Down. O nome é uma homenagem a John Langdon Down, que,
na qualidade de supervisor médico de um abrigo para retardados mentais, foi o primeiro a descrever
as características clínicas típicas do mal em 1866. Ele observou que 10% dos residentes da sua
instituição eram muito parecidos uns com os outros. ”Tão marcante é a semelhança que, colocados
lado a lado, fica difícil acreditar que os espécimes comparados não sejam filhos dos mesmos pais.”
Entretanto, a primeira noção dos fundamentos biológicos do mal só viria noventa anos depois,
quando o médico francês Jérôme Lejeune verificou que as crianças com síndrome de Down têm três
cópias de um cromossomo — subseqüentemente identificado como sendo o cromossomo 21. A
condição normal, duas cópias de um cromossomo, é dita ”dissomia”; a síndrome de Down,
portanto, é conhecida no jargão genético como ”trissomia 21”.
350

351
1
47,XY,+21 TRISOMY 21 (DOWN’S SYNDROME)

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12345’

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6 7 8 9 10 11 12

« *5 Íl 1| II i|
O cariótipo — o conjunto completo de cromossomos — de um homem com sínârome de Down. Observe-se a cópia extra do

cromossomo 21
13 14 15

19 20

16 1? 18

•• »*’ II
21 k 22

A incidência da síndrome de Down aumenta com a idade da mãe. Aos 20 anos, a chance de uma
mulher gerar um bebê com Down é cerca de 1 em 1.700; aos 35, pula para 1 em 400; aos 45 dispara
para 1 em 30. Por esse motivo, muitas gestantes mais idosas optam por realizar um diagnóstico pré-
natal do feto para determinar se possui o cromossomo 21 em triplicata. O teste foi aplicado pela
primeira vez em 1968 e hoje é oferecido a todas as mulheres grávidas com mais de 35 anos.

Como o feto precisa ser grande o suficiente para suportar a extração de uma amostra de tecido, o
diagnóstico não pode ser feito nos primeiros estágios da gravidez. Normalmente, é realizado entre a
décima quinta e a décima oitava semana, por meio de uma amniocentese — o procedimento de
retirar um pouco de líquido amniótico (que contém naturalmente células do feto). Um teste
alternativo, que pode ser feito até mesmo na décima semana, obtém células da vilosidade coriônica,
a parte da placenta que se liga à parede uterina, mas o método é menos confiável. Como ambos os
procedimentos apresentam um certo perigo — 1% de risco de aborto no caso da amniocentese, 2%
no caso da amostra da vilosidade coriônica —, aconselha-se às mulheres mais jovens que os evitem:
a probabilidade de o feto ter um defeito genético é inferior à probabilidade de ele vir a ser lesado
pelo procedimento. Antes, as células fetais extraídas tinham de ser cultivadas em laboratório em
preparação para análise cromossômica; hoje, porém, um diagnóstico mais rápido é possível por
meio da hibridação in situ fluorescente [conhecida pela sigla fish, do inglês fluorescence in süu
352
A
hybridization]. Nesse método, uma pequena molécula fluorescente é afixada a um trecho da
seqüência de dna específica do cromossomo 21 e introduzida na amostra, onde se liga ao dna do
cromossomo 21 fetal. Se duas manchas fluorescentes aparecerem no núcleo de uma célula, o feto é
normal; se houver três, ele possui a síndrome de Down.

Na Grã-Bretanha, 30% dos fetos com síndrome de Down são detectados por meio de testes de
rotina realizados nos 5% de gestantes mais velhas. Esse método é bastante eficiente em termos do
número de detecções por libra gasta (o Serviço Nacional de Saúde britânico é forçado a realizar esse
tipo de cálculo desde a grande investida da sra. Thatcher contra gastos públicos), mas o que dizer
dos outros 70% dos casos de Down? Embora a síndrome seja mais rara em bebês de mães mais
jovens, essas são a vasta maioria das gestantes. Como, estatisticamente, os testes-padrão não
compensam o risco, tem se buscado encontrar indicadores não-invasivos alternativos, e descobriu-
se que certas substâncias detectáveis no sangue da mãe podem nos oferecer algumas informações
úteis. Taxas reduzidas de alfa-fetoproteína e taxas elevadas de gonadotropina coriônica, por
exemplo, têm uma correlação significativa com a síndrome de Down (embora não sejam, de modo
algum, indicadores infalíveis de trissomia). Assim, a prática clínica atual consiste em oferecer às
mulheres mais jovens a opção do teste sangüíneo e, caso este sugira a possibilidade de Down,
aconselhá-las a realizar uma amniocentese ou retirar uma amostra da vilosidade coriônica para um
diagnóstico definitivo.

Hoje, porém, a mulher que descobre que seu feto porta a síndrome de Down só tem, infelizmente,
duas opções: tornar-se mãe de um bebê de Down ou abortar o feto. É uma decisão dolorosa, que os
vários graus de severidade da
JD, 6, com o pai. JD é porukr i çíndrome de Down.

353
wrr
Tintura fluorescente para determinar o número âe cromossomos. O núcleo de uma célula (azul-escuro) é sondado em busca do
cromossomo 10 (azulclaro). A imagem da esquerda mostra um cariótipo normal, com duas cópias de cada cromossomo; na da direita,
vemos um cariótipo de Down, com uma cópia extra do cromossomo 21.

doença só tornam mais difícil. Todos os pacientes com síndrome de Down apresentam os traços
faciais identificados pelo dr. Down — rosto largo e achatado, nariz pequeno e pálpebras estreitas e
arqueadas* — mas o seu Qi varia consideravelmente, de 20 a 85 (ou seja, de severamente
retardados a ligeiramente abaixo do normal). Além disso, são bastante propensos a uma vasta gama
de enfermidades, incluindo doenças cardíacas (às quais 15% das crianças sucumbem no primeiro
ano de vida), anomalias gastrintestinais, leucemia e, com a idade, catarata e Alzheimer. Por outro
lado, é bem possível que o indivíduo tenha relativamente poucos problemas de saúde. Com
melhores cuidados e um maior conhecimento dos riscos médicos resultantes da posse de um
cromossomo extra, houve um aumento perceptível da expectativa de vida: hoje 50% dos indivíduos
afetados chegam aos cinqüenta anos. Embora acabem adquirindo com o tempo o que a maioria de
nós julgaria ser uma familiaridade deprimente com enfermarias e hospitais, pessoas com Down
podem perfeitamente desfrutar a vida e trazer alegria para suas famílias. A condição talvez seja mais
dura com os pais da vítima, que precisam se adaptar para cuidar de alguém com necessidades
médicas especiais e suportar a idéia de que seu filho, sob muitos aspectos, jamais será realmente um
adulto.

Em sua maioria, as mulheres que descobrem estar gerando um feto com


* O dr. Down originalmente designou a doença ”mongolismo” com base nessas características, e intitulou sua monografia de 1866
”Observações de uma classificação étnica dos idiotas”. Ele endossava os conceitos evolucionistas racistas do seu tempo e acreditava que
a doença representava um retrocesso evolutivo do estado branco superior a um estado mongolóide ”inferior”. Porém, para lhe dar o
devido crédito, também concluiu que o que chamara de ”retrogressão” desautorizava aqueles que se recusavam a aceitar que brancos e
nãobrancos fossem membros da mesma espécie.

354

Down optam por interromper a gravidez.* Como resultado, em países onde exames pré-natais são
rotineiros, o número de bebês que nascern com Down está diminuindo. Em termos estatísticos,
porém, essa constatação é mais complicada do que parece, pois a tendência de as mulheres
protelarem a maternidade, muitas vezes por motivos profissionais, fez aumentar as fileiras de
mulheres com risco de gerar um filho com Down. Na Grã-Bretanha, portanto, a eficiência dos
programas de triagem é medida em relação ao número estimado de bebês com Down dependendo
da idade das mulheres dando à luz naquele ano. A proporção de bebês com Down não pára de cair;
em 1994, por exemplo, os programas de triagem reduziram a incidência da doença em cerca de
40%.

Trissomias também podem ocorrer com outros cromossomos, mas, com exceção das que envolvem
os cromossomos 13 e 18, provocam anomalias tão graves que sempre resultam em aborto
espontâneo. Mesmo assim, bebês com trissomia 13 raramente sobrevivem mais do que algumas
semanas e aqueles com trissomia 18 geralmente morrem antes de completar um ano de idade. É
provável que anomalias cromossômicas, entre as quais se incluem as trissomias, sejam muito
comuns. Embora várias sejam letais, outras têm pouco ou nenhum efeito: estima-se que cerca de
30% das gestações terminem em abortos espontâneos e que em cerca de metade desses casos haja
alguma forma de aberração cromossômica. As alterações podem ser bem menos drásticas do que a
perda ou ganho de um cromossomo inteiro — por exemplo, a reordenação àt segmentos num
cromossomo ou a transferência de parte de um cromossomo para outro. Se houver ganho ou perda
de material genético (como no caso de um cromossomo inteiro extra), então o desequilíbrio
resultante em geral é deletério. Infelizmente, a análise citológica usual de cromossomos fetais só
consegue detectar desequilíbrios graves, embora até uma desarmonia menor possa ter efeitos
desastrosos.

Depois de muito esforço para engravidar, Rathleen McAuliffe, de 37 anos de idade, ficou aliviada
ao descobrir que apenas dois cromossomos 21 haviam aparecido na sua amniocentese. O que ela
não sabia é que o mesmo teste também pode revelar outras anomalias cromossômicas. O
citogeneticista detectara uma
o Reino Unido, 92% dos fetos diagnosticados com Down são abortados. De modo geral, somente mulheres dispostas a pensar na hipótese
de aborto realizam esse tipo de teste pré-natal (não faz sentido submeter o efo aos nscos do teste se a mãe pretende manter a gravidez seja
qual for o resultado), de modo que esse per «ntual elevado é compreendei

355
inversão do cromossomo 2 do feto, como se um segmento houvesse saltado para fora do
cromossomo, girado e se reinserido ao contrário. A informação não foi complementada com
nenhum conselho aproveitável: havia uma probabilidade de essa inversão causar problemas
(poderia resultar num desequilíbrio gênico, por exemplo), mas também era provável que não tivesse
efeito algum. Uma linha de investigação seria examinar o cromossomo 2 da própria sra. McAuliffe
e o de seu marido. Se algum deles apresentasse a mesma inversão (ou seja, se esta não fosse uma
alteração espontânea no filho), a dedução possível é que teria pouco ou nenhum impacto, já que pai
e mãe eram normais. Porém, nem McAuliffe nem seu marido tinham o cromossomo 2 invertido;
isso significava que a inversão surgira no óvulo ou no espermatozóide. O que poderia provocar no
bebê? McAuliffe deparou-se subitamente com uma decisão de vida ou morte. Após um período de
agonia, resolveu que a incerteza era insuportável e interrompeu a gravidez. Embora tivesse
especificamente solicitado para não ser informada do resultado da autópsia — estava triste e cheia
de culpa pela perda do feto —, por alguma falha administrativa o relatório foi enviado à sua casa e
ela acabou descobrindo que o feto tinha graves anormalidades. Mas isso não lhe serviu de consolo e
até hoje a sra. McAuliffe mantém a imagem do ultra-som guardada numa gaveta. Felizmente,
gestações subseqüentes não tiveram complicação e McAuliffe foi abençoada com duas crianças de
”saúde retumbante”; como gosta de dizer. O conhecimento genético gera dilemas éticos. McAuliffe
não fora advertida de que a amniocentese é capaz de detectar outros problemas afora a trissomia 21;
talvez o citogeneticista tenha ultrapassado os limites da svia obrigação e devesse apenas ter
informado os resultados do teste solicitado. É certo que não teria havido opção se o médico
houvesse solicitado o exame fish, que revela apenas o número de cromossomos 21 presentes. À
medida que ficam mais sofisticados, os testes genéticos se tornam uma caixa de Pandora, cujas
conseqüências vão muito além das questões originais que motivaram o exame — e, às v-ezes,
afetam a vida de outras pessoas não examinadas, como fica evidente em testes genéticos realizados
em famílias com histórico de uma condição hereditária como dmd, doença de Huntington ou fibrose
cistica. Nesses casos, o diagnóstico é realizado não por um citogeneticista, mas por um biólogo
molecular, que analisa não pedaços de cromossomos, mas trechos específicos de dna. O dna é
extraído de uma amostra de tecido (obtido do feto por amniocentese, ou do sangue de uma criança
ou adulto, ou ainda de células raspadas do interior da boca com uma, espátula). Esses testes
356

geralmente utilizam a reação em cadeia da polimerase para amplificar a região crítica — o gene
suspeito — da amostra de dna, que é em seguida analisada para determinar se possui ou não a
mutação. O fato é que os resultados do exame de uma pessoa podem nos dizer algo sobre a situação
genética de seus parentes.

Vejamos, por exemplo, o teste da doença de Huntington. Num caso recente, um homem de vinte e
poucos anos de idade pediu que uma clínica genética lhe aplicasse o teste. Seu avô paterno morrera
da doença e seu pai, de 45 anos, resolveu não fazer o teste — preferindo, como Nancy Wexler, viver
com 50% de dúvida a saber a verdade. Como a doença de Huntington ataca mais ou menos
tardiamente na vida, era possível que o pai fosse portador da mutação, mesmo que os sintomas
ainda não se houvessem manifestado. O jovem sabia que a probabilidade de ele portar a mutação —
e, portanto, de vir a sofrer da doença no futuro — era 1 em 4.* Mas ele queria ter certeza. O
problema era o seguinte: se descobrisse ser portador da mutação, isso significava que ele a herdara
do pai e, conseqüentemente, que o pai iria desenvolver a doença. Em sua busca de conhecimento
genético, o filho contrariaria explicitamente o desejo do pai de evitar tal conhecimento. Seguiu-se
uma briga em família e, no final, só a intervenção da mãe do jovem o impediu de fazer o exame.
Segundo ela, o desejo do filho de saber se anulava diante do direito do marido de se proteger do que
poderia ser uma devastadora sentença de morte. Esse exemplo dramático mostra a diferença entre o
diagnóstico genético e o de qualquer outro tipo: o que eu vier a saber sobre meus genes tem
implicações para meus parentes biológicos, a despeito de eles quererem ou não adquirir esse
conhecimento.

Às vezes, as implicações atingem não a geração atual, mas gerações futuras. A síndrome do x-frágil
é a forma mais comum de retardamento mental hereditário. (A síndrome de Down é mais freqüente
mas, por ocorrer espontaneamente, em geral não é herdada.) Além de qi baixo, em geral os sintomas
incluem um rosto bastante alongado, com maxilares e orelhas desproporcionalmente grandes, e um
temperamento hiperativo, chegando à irritabilidade. Como a distrofia muscular do tipo Duchenne, o
x-frágil é uma doença ligada ao sexo (o gene responsável está no cromossomo x), mas, ao contrário
da dmd, atinge tanto as
* Havia 1 chance em 2 de seu pai ter recebido a mutação do avô; caso isso houvesse acontecido, havia mais 1 chance em 2 de o pai tê-la
transmitido ao filho. A probabilidade do filho é produto desses dois eventos independentes, ou seja, 1 chance em 4, ou 25%.

357
mulheres como os homens. Evidentemente, uma só cópia normal do gene não basta para anular o
efeito de uma cópia mutante, ainda que as mulheres tendam a ter sintomas menos severos e a
incidência da doença entre elas ser de 1 em
8.300 (comparada com 1 em 5 mil entre os homens). A síndrome do x-frágil é causada por uma
mutação semelhante à responsável pela doença de Huntington: um tripleto, cgg, que se repete
continuamente no dna. Indivíduos normais têm cerca de trinta deles, ao passo que portadores do x-
frágil têm pelo menos cinqüenta, chegando às vezes a noventa. Por motivos que não chegamos a
entender por inteiro, o número de repetições tende a aumentar a cada geração e quando há cerca de
230 tripletos cgg o gene se torna incapaz de produzir rna mensageiro — deixando, portanto, de
funcionar. O nome da doença vem da fragilidade estrutural discernível no cromossomo x causada
por todas essas repetições.

À medida que o número de repetições vai crescendo de geração em geração, aumenta também a
severidade da doença e diminui a idade de sua manifestação em cada família. Os últimos
descendentes de uma linhagem x-frágil têm o maior número de repetições e tendem a ser afetados
mais cedo e mais gravemente do que aqueles de quem herdaram a mutação. Com isso, os
geneticistas podem identificar indivíduos portadores de uma ”pré-mutação” — uma quantidade de
repetições insuficiente para causar problemas mas suficiente para provocar a síndrome em gerações
subseqüentes. Ainda não sabemos exatamente o que faz a proteína produzida pelo gene afetado, mas
ela parece se aglutinar com moléculas de rna mensageiro nas conexões — sinapses — entre células
nervosas.

Como acontece com as pesquisas em andamento sobre a doença de Huntington, dmd e outras
enfermidades genéticas, os estudos sobre a síndrome do x-frágil são estimulados por aqueles mais
diretamente afetados: as famílias e entes queridos das vítimas. A fraxa, a Fragile x Association, tem
feito um trabalho estupendo para obter verbas e induzir o Congresso americano a financiar
pesquisas sobre a doença. Embora alguns cientistas de índole mais cética considerem tais grupos
meros expedientes que dão às pessoas em situação penosa a reconfortante ilusão de não serem
totalmente impotentes, a experiência mostra que organizações dedicadas, inventivas e, sobretudo,
motivadas como a fraxa as vezes detêm a chave para a decifração dessas doenças contra todas as
expectativas. Às vezes, com sorte, os que mais arriscam — financeira e cientificamente — obtêm as
maiores recompensas.

Muitas leitoras devem estar se perguntando por que não lhes foram
358

pedi dos exame de fibrose cística, x-frágil ou dmd quando estavam grávidas. Algumas talvez até
tenham filhos com uma dessas doenças. Mesmo após a revolução genética que transformou a
tecnologia médica, persiste uma realidade deprimente e inexplicável, a saber, o grande hiato entre o
progresso científico e o atendimento aos pacientes. Na verdade, talvez fosse mais exato dizer que
não se dedica atenção suficiente para unir ambas as coisas. Seja como for, muitas mulheres
simplesmente não são informadas das opções a seu dispor, e os exames hoje disponíveis tendem a
ser bastante subutilizados.

Como diretor do Projeto Genoma Humano, fiz questão de disponibilizar verbas para estudar como o
conhecimento que logo estaria jorrando das máquinas de seqüenciamento iria afetar, para melhor ou
pior, as vidas de incontáveis pessoas. Tendo reservado inicialmente 3% do nosso orçamento total
(aumentado mais tarde para 5%) a essa finalidade, convidei Nancy Wexler, a especialista em doença
de Huntington, para dirigir uma comissão chamada elsi [Ethical, Legal and Social Implications of
the Human Genome Project], que examinaria as implicações éticas, jurídicas e sociais de nossa
pesquisa. Uma das principais iniciativas da elsi foi uma série de estudos-piloto sobre exames
genéticos. Numa época em que todo recém-nascido já fazia o ”teste do pezinho” para detectar
fenilcetonúria, será que a medicina poderia abdicar de sua responsabilidade de, pelo menos,
oferecer a opção de exames para detectar fibrose cística, dmd, x-frágil e outras doenças humanas
graves que a ciência tivesse condições de prever? Isso foi no início da década de 1990. Desde então,
as coisas praticamente não avançaram além do estágio-piloto e hoje há apenas alguns pequenos
estudos sendo realizados aqui e ali. Os motivos de tal paralisia são vários, de prosaicas questões
financeiras a profundas discordâncias filosóficas acerca da essência da vida e da dignidade
humanas. Em suma, abrangem toda a gama de fenômenos sociais que acompanharam a revolução
genéticas, desde manobras para obter financiamento até os exames coletivos de consciência.

Os testes para doença de Huntington e distrofia muscular do tipo Duchenne em geral só são
aplicados em famílias em que já houver alguém afetado. A justificativa é que essas doenças são
raras e os testes, caros. Afora o fato de esse tipo de cálculo social ser discutível, o raciocínio não se
sustenta no caso da fibrose cística — e, no entanto, os testes para detectá-la também são pouco
usados. Vale lembrar que a fibrose cística atinge 1 em cada 2.500 pessoas, o que a torna a doença
genética mais disseminada que existe, sendo particularmente comum

é
359
w
entre pessoas de ascendência norte-européia. A alta taxa de incidência é ainda mais notável se
considerarmos que a deficiência subjacente, que ocorre num gene do cromossomo 7, segue um
padrão recessivo de hereditariedade, ou seja, somente alguém que receba duas cópias mutantes do
gene pode «desenvolver fibrose cística. Quem só possui uma cópia não é afetado, embora seja
portador e possa transmitir a mutação aos filhos. Pesquisas e estimativas epidemiológicas nos dizem
que 1 em cada 25 americanos de ascendência européia é portador.

Uma das dificuldades de um teste para detectar a fibrose cística é de ordem técnica, relacionada à
grande variabilidade da deficiência subjacente. Uma forma de mutação é responsável por cerca de
70% dos casos: uma deleção chamada AF508, que elimina três bases — ctt.* Se apenas algumas
outras poucas mutações fossem responsáveis pelos 30% restantes, então um programa para
identificar portadores do gene de fibrose cística na população inteira seria viável. No entanto, a
maioria das outras mutações causativas ocorre em apenas uma linhagem familiar e mais de mil
mutações diferentes causadoras de fibrose cística foram descobertas até hoje. O que isso significa
em termos de examinar uma população inteira? Na prática, qualquer teste seria capaz de identificar
no máximo 25 mutações diferentes, mas essas 25 formas mais comuns ainda representariam apenas
cerca de 85% dos casos. Ou seja, estaríamos deixando escapar mais ou menos 1 em cada 6
mutações — muito aquém do desejável para um diagnóstico. Imaginemos um homem e uma mulher
cujos testes extremamente deficientes tenham dado negativo para mutações de fibrose cística: não
poderíamos lhes dizer convictamente que não há perigo de gerarem um filho com a doença.
Segundo essa linha de argumentação, para que então se preocupar com um teste inconclusivo que
chega a custar us$ 300?

Não obstante, a despeito das dificuldades técnicas, o exame pré-natal de fibrose cística consegue
identificar uma grande proporção dos fetos afetados. Por que não é mais utilizado? Paradoxalmente,
a importante atuação dos grupos de solidariedade aos doentes de fibrose cística conseguiu restringir
o exame a famílias já afetadas pela doença, pois temem que ampliar o universo dos
* A cifra de 70% se aplica a pessoas de ascendência norte-européia, a população em que a fibrose cística é mais comum. No entanto, a
AF508 só é responsável por cerca de 35% das mutações causadoras da doença entre os afro-americanos e os judeus asquenazes. São
diferenças de ancestralidade como essas que complicam a elaboração de programas de testes.

360

exames desviará os limitados recursos disponíveis da meta maior — que é descobrir a cura. É uma
preocupação compreensível, ainda mais hoje em dia. Estima-se que 30 mil americanos sofram de
fibrose cística. Avanços no tratamento já aumentaram consideravelmente sua expectativa de vida e é
concebível que a cura esteja disponível num futuro não muito distante. Isso posto, seria
irresponsável sugerir que a cura é iminente: bebês nascidos hoje com fibrose cística ainda têm
diante de si a perspectiva de uma vida inteira lutando contra uma doença debilitante. Embora a cura
deva, sem dúvida, ser uma grande prioridade, creio que ainda assim haveria espaço para permitir
que uma gestante tivesse acesso ao teste, caso desejasse. Plenamente informada da situação do seu
feto, teria então a liberdade de tomar a decisão que julgasse mais adequada.
A ampliação dos testes também sofre oposição por razões menos materiais. Existem aqueles que
consideram a triagem um reconhecimento de derrota, uma solução equivocada. Os grupos de defesa
das vítimas visam a assegurar que essas se sintam integradas à comunidade e valorizadas pela
sociedade; como conciliar essa missão com a realização de testes, que, nos termos mais crus
possíveis, significa promover o aborto dos fetos acometidos pelo mal?

Grupos de apoio a doentes de fibrose cística se esforçam para que esses não sejam estigmatizados e
temem que, de forma indireta, os testes tenham justamente esse efeito. Na realidade, houve um
lamentável precedente na história dos exames genéticos que ainda hoje assombra todos os grupos de
apoio a vítimas de alguma doença. Muito antes do advento dos testes de dna, uma das primeiras
ferramentas de diagnóstico de uma doença hereditária foi criada para identificar a anemia
falciforme, que nos Estados Unidos afeta sobretudo os afroamericanos. Como vimos no capítulo 3,
pessoas com duas cópias do gene mutante da hemoglobina, em forma de ”foice”, sofrerão sintomas
dolorosos e debilitantes, enquanto aquelas com uma única cópia — portadoras — não terão
nenhuma manifestação da doença.

Após o surgimento de exames de sangue simples na década de 1960, programas de triagem foram
instituídos às pressas no país. Apesar das melhores intenções, porém, fizeram mais mal do que bem.
A maioria dos examinadores deixou de informar aos pacientes o significado do teste ou seus
resultados. Muitos que foram diagnosticados como portadores supuseram equivocadamente sofrer
da doença; alguns chegaram a perder oportunidades de emprego, outros não puderam contratar
planos de saúde devido ao resultado do teste, e casais
361
que corriam o risco de gerar filhos com a doença foram aconselhados sem o menor tato a pensar
melhor. Na verdade, os testes eram coercivos — alguns programas eram compulsórios — e
sugeriam a alguns o renascimento da eugenia racista nos Estados Unidos, estigmatizando todos com
teste positivo. A triste ironia é que, de um ponto de vista puramente médico, a campanha foi bem
concebida: a despeito dos avanços no tratamento, a anemia falciforme continua sendo uma doença
crônica dolorosa. Os testes são a melhor solução quando for mais fácil evitar do que enfrentar uma
doença, mas os primeiros mecanismos idealizados para erradicar a anemia falciforme foram tão mal
aplicados que, justificadamente, enfureceram muitos dos que deveriam ser seus beneficiários.

Felizmente, em 1972, novas diretrizes federais reformularam o programa de testes, permitindo que
cumprissem sua função sem disseminar temores, como acontecera na primeira iniciativa. Mais
difícil de sanar é a desconfiança dos grupos de apoio a vítimas de doenças genéticas em geral; a
experiência dos atingidos pela anemia falciforme deixou-os para sempre receosos dos programas de
triagem e o medo do estigma persiste — lamentavelmente, muitas vezes à custa da saúde pública.

Em numerosos aspectos, os testes genéticos, a despeito de sua incontroversa utilidade, acabam se


tornando um chamariz de controvérsias. Randi Hagerman, que trabalhava no Hospital Infantil de
Denver, decidiu aplicar um teste de dna para identificar a síndrome do x-frágil em crianças que
freqüentavam uma escola especial da sua cidade. Seu raciocínio foi simples: crianças cujo
aprendizado era prejudicado por essa doença só teriam a ganhar se o problema fosse identificado,
pois o ensino poderia ser adaptado às suas necessidades específicas. Dos 439 alunos testados, cinco
com mutações do x-frágil foram encontrados. (Um levantamento mais amplo na Holanda revelou 11
casos não-diagnosticados de x-frágil num grupo de 1.531 estudantes.)

Talvez a parte mais interessante do estudo de Denver tenha sido a reação dos pais e tutores à
proposta de Hagerman. A maioria reconheceu os benefícios do diagnóstico, fosse pelo potencial de
melhorar a educação de suas crianças ou por identificar a presença da doença na linhagem familiar.
Mas um terço deles não autorizou a realização do teste, citando como motivos a certeza de que seus
filhos não portavam o x-frágil ou a preocupação de que as crianças achassem o
362

teste estressante demais. Hagerman foi criticada por seu trabalho. A proposta tornou-se um prato
cheio para aqueles que insistem em ver ameaças de um futuro genético totalitário em cada tentativa
de usar o dna para resolver um problema social.

De fato, trata-se de uma questão ao mesmo tempo social e pessoal. A elevada incidência da pré-
mutação do x-frágil — presente em talvez 1 em cada 200 cromossomos x — pode justificar o teste
de toda a população. Nos Estados Unidos, se computarmos uma vida inteira de não-trabalho e
internação, estima-se que um único paciente relativamente grave custará cerca de us$ 2 milhões em
valores atuais. A dificuldade cada vez maior de oferecer serviços de saúde acessíveis seria, em si,
um poderoso argumento para proporcionar a todas as mães a oportunidade de serem testadas. A
lógica da árdua realidade vale igualmente para países menores, onde a margem de erro das políticas
públicas é ainda menor. Um estudo-piloto em Israel examinou 14.334 mulheres; 207 eram
portadoras da pré-mutação. O diagnóstico pré-natal foi oferecido a quem o solicitasse; foram
identificados cinco fetos com um número excessivo de repetições do tripleto cgg. O destino dessas
gestações foi, acertadamente, deixado às gestantes: uma sociedade livre não pode exigir nem que
uma mulher aborte um feto com doença genética nem que leve a gravidez até o fim. Porém, nem
toda mulher está preparada para criar uma criança incapacitada, como nem toda mulher está
preparada para pôr fim a uma gravidez por causa da futura qualidade de vida da criança. Contudo,
qualquer que seja a escolha individual, permanece o fato de que a triagem só pode reduzir a
incidência da enfermidade —e isso é um bem social inquestionável.

A despeito da frustrante relutância em tirar proveito de exames genéticos em larga escala, a curta
história dessa prática não é recheada apenas de pequenos estudos-piloto e controvérsias
condenatórias. Há algumas histórias esclarecedoras com final feliz de programas bem-sucedidos de
triagem de doenças genéticas em populações de alto risco.

Hemoglobinopatias são doenças provocadas por alguma disfutição na molécula da hemoglobina.


Incluem os vários tipos de talassemia e a anemia falciforme, e provavelmente constituem a classe
mais comum de doenças genéticas: cerca de 4,5% da população mundial porta uma mutação de
algum tipo de
363
hemoglobinopatia. Como vimos, o gene da anemia falciforme traz consigo propriedades
antimaláricas e, por conseguinte, foi favorecido pela seleção natural em regiões onde a malária é
endêmica. Como resultado, outrora essa mutação só era freqüente nessas partes do mundo. A
mesma vantagem adaptativa explica o padrão similar de distribuição de outras hemoglobinopatias.
Já faz tempo que a medicina descobriu que, por esse motivo, certas mutações tendem a ser muito
mais comuns em determinados grupos étnicos do que em outros, a despeito de onde as pessoas
possam estar vivendo hoje.

Entre os imigrantes cipriotas gregos em Londres, portadores de talassemia constituem a espantosa


fração de 17% da população. Em sua forma mais severa, a afecção é a mais perniciosa das
hemoglobinopatias, resultando em glóbulos vermelhos deformados ou, às vezes, nucleados, que
provocam hipertrofia do fígado e do baço. A vítima costuma morrer antes de chegar à idade adulta.
Um programa sistemático de triagem iniciado em 1974 por Bernadette Modell na Royal Free
Medicai School foi recebido com alegria e entusiasmo pelos cipriotas londrinos, cientes da
gravidade da moléstia que havia muito assolava sua comunidade. Um programa semelhante na
Sardenha, também lançado em 1974, reduziu drasticamente a incidência da talassemia: de um caso
em 250 para um em 4 mil.

Os judeus asquenazes são outro grupo que sabe na carne o que uma mutação mortífera pode fazer
com uma população geneticamente isolada. Tay-Sachs é uma doença assustadora e é cem vezes
mais comum nesse grupo do que entre a maioria dos não-judeus. Bebês com Tay-Sachs nascem
aparentemente saudáveis, mas pouco a pouco seu desenvolvimento vai se tornando mais lento e
começam a perder a visão. Aos dois anos de idade, mais ou menos, têm início as convulsões. A
deterioração prossegue e a maioria acaba falecendo com cerca de quatro anos — cegos e paralíticos.
A diferença das hemoglobinopatias, cuja incidência mais elevada em certas populações pode em
geral ser explicada pela proteção adaptativa concomitante que oferece contra a malária [no caso da
anemia falciforme], a alta incidência da doença de Tay-Sachs entre os asquenazes permanece um
mistério. Um gargalo genético poderia ser responsável: a mutação talvez estivesse presente no
segmento relativamente pequeno que se desmembrou da comunidade judaica durante a segunda
Diáspora. Um fenômeno similar — a presença fortuita de uma mutação funesta em pequenas
populações fundadoras — talvez explique a elevada incidência da mutação entre os franco-
canadenses do sudoeste de Quebec e
364

também entre os cajun* da Louisiana. Uma explicação alternativa seria que portar esse gene
recessivo (isto é, possuir uma cópia da mutação de Tay-Sachs) confere certa resistência à
tuberculose, uma vantagem para os judeus europeus que, ao longo da história, sempre tenderam a
viver em centros urbanos densamente povoados.

A causa da doença de Tay-Sachs foi descoberta em 1968, quando se verificou que os glóbulos
vermelhos dos pacientes eram sobrecarregados com gangliosídeo gm2. Esse lipídio é um
componente essencial da membrana celular e, em indivíduos normais, qualquer excesso é
decomposto por uma enzima essencial, da qual as vítimas da doença carecem. Em 1985, a equipe de
Rachel Myerowitz no nih isolou o gene que codifica essa enzima e mostrou que ele realmente é
mutante nos pacientes com Tay-Sachs.

Com isso, dispúnhamos agora dos fundamentos para elaborar um exame pré-natal infalível e de
uma população-alvo bem definida — condições ideais para implementar um programa vitorioso de
triagem. Entretanto, a triagem pré-natal só oferece uma solução no caso de um diagnóstico positivo:
aborto, que é proibido, pelo menos entre o segmento ortodoxo praticante dos asquenazes.
Felizmente, há alternativa, pois também é possível examinar os futuros pais, e a solução
moralmente aceitável para os mais austeros foi um programa dirigido aos casais. O rabino Yosef
Eckstein, de Nova York, viu quatro de seus dez filhos morrerem de Tay-Sachs. Em 1985, fundou o
Dor Yeshorim, a ”geração dos justos”, um programa para realizar exames de Tay-Sachs entre a
comunidade ortodoxa judaica local. Os jovens são incentivados a fazer o teste, oferecido
gratuitamente em dias especiais em escolas de segundo grau e faculdades. Um aspecto incomum
desse programa é a sua extrema confidencialidade: nem mesmo às pessoas testadas é informado se
são portadoras ou não; em vez disso, cada uma recebe um código. Mais tarde, quando um casal
estiver contemplando casamento, os dois telefonam para o Dor Yeshorim e informam seus
respectivos códigos. Somente no caso de ambos serem portadores é que a condição de um dos
parceiros é revelada, acompanhada de uma oferta de aconselhamento. A idéia de só revelar
informações quando estas se tornam necessárias pretende evitar a estigmatização dos portadores,
sem prejuízo de combater a ameaça representada pela doença de Tay-Sachs.
* Descendentes de colonos franceses exilados da Acádia no século xviii, que se fixaram no sul da Louisiana.

(N. T.)

i
1
y

365
Até o momento, o programa Dor Yeshorim já testou mais de 70 mil pessoas e detectou cerca de cem
casais em situação de risco. Como resultou numa redução constante da incidência da doença, o
programa parecia ser um sucesso irrestrito; no entanto, há membros da comunidade judaica que se
opõem a ele. Alguns vêem coerção no fato de todos os jovens serem convidados ao teste, e
intimidação na enfática recomendação de que alguns indivíduos reconsiderem sua decisão de casar.
Os opositores rotularam a iniciativa do rabino Eckstein de ”eugenia” (uma palavra cuja ressonância
em nenhum lugar é mais dolorosa do que na comunidade judaica), mas tal demagogia dificilmente
alterará um fato consumado: o programa goza do apoio maciço da comunidade que atende — uma
comunidade que conhece bem os horrores da doença de Tay-Sachs. Na verdade, o Dor Yeshorim
demonstrou que um programa de triagem pode ser ao mesmo tempo eficaz e respeitoso com
questões culturais, funcionando até em situações em que costumes sociais e preceitos religiosos
parecem em princípio contrários a exames genéticos.

Os exames pré-natais apresentam uma escolha penosa para qualquer mulher cujo feto testou
positivo para uma doença genética: pôr fim ou não à gravidez, ou seja, abortar ou não abortar. O
fato de que a amniocentese só pode ser realizada depois que o feto tiver no mínimo quinze semanas
torna a opção ainda mais traumática. Nesse estágio, um aborto não elimina um amontoado indistinto
de células, mas um pequenino ser — real o bastante para que laços afetivos já tenham se
estabelecido graças ao poder das imagens de ultra-som. A maioria dos pais — pelo menos aqueles
que não se opõem ao aborto por uma questão de princípios — há de preferir infinitamente fazer as
difíceis escolhas propostas por um exame genético num estágio anterior de desenvolvimento. Essa
foi a inspiração que levou à invenção do diagnóstico genético pré-implantacional de embriões.

Robert Winston, do Hospital Hammersmith, de Londres, é um renomado microcirurgião


ginecológico, especialista em procedimentos como a correção de defeitos nas tubas uterinas
[trompas de Falópio] que impedem a mulher de engravidar. Tornou-se um divulgador de pesquisas
científicas e biomédicas extremamente popular na televisão britânica. E ainda consegue encontrar
tempo para, na condição de lorde Winston de Hammersmith, assessorar o Parlamento sobre
366

Embrião de oito células.

questões afins. Combinando duas tecnologias de ponta — a fertilização in vitro’ e o diagnóstico por
dna amplificado pela reação em cadeia da polimerase —, Winston foi o primeiro a desenvolver um
método para examinar o estado genético de um embrião antes de este ser implantado no útero. Após
a fertilização in vitro, os diversos embriões são cultivados em laboratório até que cada óvulo
fertilizado tenha se dividido três ou quatro vezes, produzindo um aglomerado de oito a dezesseis
células. Uma ou duas células são cuidadosamente removidas de cada um, extrai-se delas o dna e
recorre-se à reação em cadeia da polimerase para amplificar as seqüências relevantes e determinar
em cada caso se há ou não uma mutação presente. É a reação em cadeia da polimerase, com sua
espantosa capacidade de amplificar até as mais diminutas quantidades do DNA-alvo, que torna
possível esse método de diagnóstico hiperprecoce. Os pais então ficam livres para implantar
somente os embriões que testarem negativo para doenças genéticas.

Os primeiros exames pré-implantacionais, realizados em 1989, determinavam o sexo do feto —


uma informação importante em se tratando de doenças ligadas ao sexo, como a dmd. Uma mãe
portadora pode decidir gerar apenas embriões femininos, partindo da premissa de que não serão
afetados pela doença a despeito da sua condição pessoal. Foi Alan Handyside, um colega de
Winston, e outros que mais tarde ampliaram o diagnóstico pré-implantacional para além da mera
determinação de sexo, permitindo a detecção de mutações específicas. Em 1992, aplicaram a
técnica pela primeira vez para diagnosticar fibrose cística, que é uma doença não ligada ao sexo.
* A fertilização in vitro é um método de reprodução assistida pelo qual espermatozóide e óvulo são fundidos num prato de laboratório. O
embrião resultante — que, nos primórdios dessa tecnologia, era conhecido pelo nome um tanto ameaçador de ”bebê de proveta” — é
então transferido para o útero, onde se desenvolve naturalmente.

é
367
Como vimos, apesar de ser ligada ao sexo, a síndrome do x-frágil pode atingir homens e mulheres,
o que a torna um alvo natural do diagnóstico préimplantacional de genes específicos. Mesmo assim
foi preciso que pais diligentes, familiarizados com as dificuldades de criar uma criança x-frágil, se
mobilizassem para forçar os médicos a realizá-lo. Debbie Stevenson, uma repórter da emissora
cnbc, tem um filho, Taylor, que só foi diagnosticado como x-frágil depois do nascimento de seu
segundo filho, James. Embora James tenha saído vitorioso nos seus 50% de chance de ser afetado,
os Stevenson não queriam deixar seu terceiro filho nas mãos do destino e decidiram realizar o
diagnóstico pré-implantacional. ’Algumas pessoas podem achar que não é ético selecionar embriões
saudáveis”, explica Debbie Stevenson, ”mas, no meu modo de ver, é melhor do que tomar a decisão
dilacerante entre interromper e continuar a gravidez depois de saber que seu bebê sofre de uma
doença grave”. Em 2000, depois de um ano frustrante em busca de um laboratório disposto a
realizar o exame, a mais jovem Stevenson foi concebida e, poucos dias depois, submetida ao teste
para detectar o x-frágil. Como James, Samantha está livre da moléstia debilitante de Taylor.

Em nossa cultura, a biologia reprodutiva humana parece ser fonte inesgotável de controvérsia, e
qualquer procedimento que envolva a manipulação de
A família de Debbie Stevenson. O filho mais velho, Taylor, sofre da sínãrome do X-frágil. O diagnóstico pré-implantacional garantiu que
Samantha, o bebê, estava livre da doença.

368

embriões humanos, para qualquer finalidade, está fadado a tornar-se o pomo da discórdia. O
diagnóstico pré-implantacional não foi exceção, pois, mesmo deixando considerações éticas de
lado, o procedimento tem duas grandes desvantagens: requer um compromisso muito firme do casal
que está se submetendo a ele e, como todas as formas de fertilização in vitro, é caríssimo. Contudo,
o método é teoricamente tão poderoso, e tão menos traumático que o aborto, que só podemos
esperar que o tempo traga aperfeiçoamentos na técnica e também reduções de custo — o que
costuma acontecer com tecnologias em desenvolvimento. O diagnóstico pré-implantacional pode
vir a se tornar uma arma importantíssima em nossa guerra contra a doença genética.

Todas as doenças discutidas até aqui são ”simples” no sentido genético, isto é, são causadas por
mutações em um único gene, e o meio ambiente não tem nenhuma relação com o fato de
contrairmos ou não alguma delas. A situação é bem mais complicada no caso de doenças como o
câncer, que, como vimos, podem ser provocadas por uma combinação de fatores hereditários e
ambientais. Porém, mesmo com o câncer, certos genes têm um grande efeito, não importa o que
aconteça no meio ambiente. Embora o brcaI, um dos genes relacionados a câncer de mama, só seja
responsável por cerca de 5% do total de casos, estima-se que mulheres com mutações nesse gene
tenham 90% de chance de desenvolver a doença até os sessenta anos de idade.

No início da década de 1990, Francis Collins, que na época trabalhava na Universidade de


Michigan, juntou forças com Mary-Claire King, da Universidade da Califórnia em Berkeley, para
caçarem o brcaI. Eles adotaram a abordagem usual: cadastrar famílias, preparar amostras de dna,
testar os marcadores

— tudo com vistas a identificar o gene. Uma família com mais de cinqüenta membros possuía
vários casos de câncer de mama — uma situação clara de predisposição herdada à doença. Em
setembro de 1992, uma mulher dessa família

— que chamarei de Anne — revelou a Barbara Weber, uma colega de Collins, que havia marcado
uma mastectomia bilateral para a semana seguinte, embora não houvesse sinal algum de que tivesse
câncer. Ela simplesmente não suportava mais a incerteza, o ponto de interrogação sempre pendente
sobre seu futuro, e preferira tomar essa drástica medida preventiva. Weber, porém, a partir da
análise do dna, concluíra que Anne não estava sob ameaça especial: seu risco de
369
contrair câncer não era maior que o de uma mulher sem histórico familiar da doença. Entretanto,
essa inferência fora feita no contexto de um projeto de pesquisa e havia sido previamente
combinado que os dados preliminares coletados não poderiam ser usados em diagnósticos clínicos.

Mas Weber e Collins concluíram que a provação de Anne valia mais do que o manual de regras e
informaram-na de que seu risco era baixo. Aliviada, ela cancelou a cirurgia. Porém, tendo revelado
suas descobertas a um membro da família, os pesquisadores sentiram-se compelidos a conceder o
mesmo benefício a outras mulheres que solicitassem tais informações. Com isso, Weber e Collins
montaram um programa improvisado de aconselhamento genético sobre câncer de mama. Uma
outra mulher, que também não estava sob nenhuma ameaça especial, havia se submetido a uma
mastectomia bilateral profilática cinco anos antes. Ela ouviu o diagnóstico tardio filosoficamente:
pelo menos a cirurgia lhe proporcionara cinco anos de paz de espírito. Mas, se houvesse testado
positivo para a mutação, sua opção radical poderia ter lhe dado mais do que paz de espírito. Durante
anos, a mastectomia profilática foi recomendada pelos médicos, embora nenhuma cirurgia consiga
remover completamente todo o tecido mamário e não houvesse dados irredutíveis mostrando que
essa medida salvava vidas. Hoje, contudo, existe prova de que a abordagem extrema realmente
reduz os índices de mortalidade entre mulheres de alto risco: de um grupo de 639 mulheres que
realizaram a cirurgia, somente duas acabaram morrendo de câncer de mama (em vez da média
estatística, que seria entre vinte e trinta). Do mesmo modo, a remoção dos ovários antes dos
quarenta anos (mas depois que a mulher parou de procriar) reduz não só o risco de câncer de ovário,
mas também de câncer de mama. A análise genética confere às mulheres o poder de tomar decisões
que praticamente fazem a diferença entre a vida e a morte.

Mas esse vislumbre do futuro que a análise do dna nos oferece também pode criar oportunidades de
derrotar o câncer de mama por meios menos extremos, como revela um outro caso do estudo de
Michigan. Uma prima de Anne foi informada de que, com toda a probabilidade, era portadora da
mutação brcaI que vinha devastando sua família. Como havia anos ela não fazia uma mamografia
(uma negligência proveniente do medo — que, ironicamente, não é incomum em famílias de alto
risco), ela entrou em pânico. Weber agendou o procedimento para mais tarde naquele dia e um
pequeno tumor incipiente foi encontrado. Era de fácil remoção, mas quase certamente teria passado
desper-
370

cebido num exame de rotina. É certo que o auto-exame e mamografias periódicas já salvaram
muitas vidas, mas a campanha para universalizar esses procedimentos pode ter inadvertidamente
criado uma falsa sensação de segurança em muitos casos. A análise do risco genético permite-nos
identificar os indivíduos cujo diagnóstico por imagens aconselha um exame mais minucioso. Mais
risco significa necessidade de mais vigilância. No longo prazo, acharemos tanto mais agulhas
quanto menor for o palheiro.

Nancy Wexler, que pertence a uma família com várias vítimas da doença de Huntington, e Anne,
cuja família tem um histórico de câncer de mama, fazem parte de uma nova geração para a qual
exames desenvolvidos recentemente oferecem um vislumbre do seu destino genético. A medida que
aprendermos mais sobre os fundamentos genéticos de afecções adultas relativamente comuns — de
diabetes a cardiopatias —, a bola de cristal biológica irá se tornar cada vez mais poderosa,
revelando sinas genéticas que dizem respeito a todos nós.

Na última década, poucas doenças inspiraram tanto terror em tantos corações quanto o mal de
Alzheimer, que a cada ano arrasta mais vítimas a uma debilitação mental e física assustadora — a
doença afeta mais de 4 milhões de americanos. Tudo começa mais ou menos do mesmo modo, com
a família e os amigos de um paciente de Alzheimer percebendo alguns pequenos lapsos de memória
— dificuldade para lembrar de um acontecimento recente ou encontrar a palavra certa — que talvez
prefiram atribuir ao envelhecimento normal. O temperamento dos afligidos pode então começar a
oscilar (o que também não é raro entre os idosos). Mas, à medida que a doença progride, os
sintomas vão se tornando mais pronunciados e inconfundíveis: a perda de memória logo se torna
anormalmente severa, impossibilitando a vítima de realizar qualquer tipo de trabalho ou até mesmo
as tarefas domésticas mais simples. Falar tornase fatigante e as frases vão ficando inacabadas
enquanto o doente perde o encadeamento de idéias. A consciência desses fatos pode levar o paciente
à depressão, o que por sua vez intensifica o efeito de outras mudanças perturbadoras de
personalidade. Pacientes em estado avançado de Alzheimer não sabem quem são ou onde estão; não
conseguem reconhecer nem os familiares mais íntimos. Com a inexorável erosão da memória e da
personalidade, sua própria essência como indivíduos vai sendo gradualmente destruída.
37i
O mal de Alzheimer costuma aparecer por volta dos sessenta anos de idade, embora uma forma
mais rara, representando cerca de 5% dos casos, atinja pessoas com quarenta e poucos anos. Essa
forma precoce da doença lança as famílias no mesmo tipo de inferno que a doença de Huntington,
arrebatando suas vítimas na plenitude da vida e, pouco a pouco, implacavelmente, destruindo-as.
Certa família, que viu diversos membros sucumbirem ao mal ao longo de várias gerações, foi
descrita como vítima de um ”holocausto biológico”. Segundo a tese lançada por Mary-Claire King
em seu estudo pioneiro sobre câncer de mama, de que é mais provável que a versão precoce de uma
doença tenha uma base genética clara do que a versão normal, a maior parte das pesquisas iniciais
sobre Alzheimer se concentrou na forma precoce do mal. Em 1995, três genes haviam sido
encontrados, todos envolvidos de algum modo no processamento dos depósitos da proteína
amilóide, cujo acúmulo no cérebro dos pacientes já fora observado em 1906, na descrição original
da doença pelo dr. Alois Alzheimer. A Alzheimer precoce é, pois, claramente hereditária. Mas o que
dizer da variedade mais comum?

Allen Roses, da Universidade Duke, preferiu ignorar o critério adotado pela maioria e partiu para
enfrentar diretamente a forma mais familiar da doença, de manifestação mais tardia, que só em
certos casos é hereditária. Ronald Reagan, por exemplo, que anunciou sofrer da moléstia em 1994,
perdera o irmão Neil para a forma tardia da doença dois anos antes. A mãe de ambos também
morrera da doença.

Roses, com especialização em neurologia e em moléstias musculares como a dmd, começou sua
busca em 1984. Em 1990, afirmou que havia um gene no cromossomo 19 que parecia ter uma
correlação com a doença, mas sua descoberta foi recebida com ceticismo. Só que nada dá mais
prazer a Roses do que uma oportunidade de provar que os outros estão enganados. Dois anos
depois, identificou o gene crítico, verificando que codificava a apolipoproteína E (apõe), envolvida
no processamento do colesterol. O gene se manifesta em três formas (alelos) — APOEe2, APOBe3
e APOEe4 —, mas foi a última que se mostrou crucial: a presença de uma única cópia dessa
variante quadruplicava o risco de alguém desenvolver Alzheimer. Em indivíduos com duas cópias, o
risco era dez vezes maior que o de uma pessoa sem nenhum alelo APOEe4. Roses verificou que
55% dos que tinham duas cópias do APOEe4 acabavam por desenvolver o mal antes de completar
oitenta anos. Será que essa correlação poderia fundamentar um
372

teste genético? Provavelmente não. Embora esteja correlacionado com a doença, o alelo APOEe4 é
comum e não constitui um fator confiável de previsão de Alzheimer; mesmo que o seu risco de
contrair Alzheimer seja maior, pessoas com dois alelos APOEe4 nunca desenvolvem a doença. No
entanto, usurgimento do APOEe4 em conjunto com avaliações clínicas pode melhorar a precisão
do diagnóstico da doença. E, talvez, depois de compreendermos essa correlação em termos causais,
a análise genética possa ser aperfeiçoada. Pesquisas recentes, nas quais se conseguiu induzir em
camundongos sintomas semelhantes aos do mal de Alzheimer, sugerem que a apõe está envolvida
no metabolismo da proteína que provoca a morte das células nervosas em pacientes humanos do ai
mal de Alzheimer.

E quanto a tratamentos? A maioria das doenças genéticas nos deixa con a mesma frustração aflitiva
provocada pela doença de Huntington: sabeiflos o suficiente para diagnosticá-las, talvez até como
evitá-las, mas não como tratá-las. Felizmente, embora poucos, existem alguns casos em que o
conhecimento genético nos permitiu percorrer o restante do caminho e chegar a terapias que
funcionam. Por outro lado, poucos desses remédios são tão simples e efícazes quanto o combate à
fenilcetonúria, em que uma vida normal se torna possível com pequenas restrições alimentares.

Muitas vezes, as doenças genéticas resultam numa dizimação célula a célula de determinados
tecidos: músculos no caso da dmd, células nervosas na doença de Huntington e no mal de
Alzheimer. Não há nenhuma correção para esse tipo insidioso de deterioração. Porém, embora ainda
estejamos nos primórdios de uma nova era, acredito que há uma chance realista de conseguirmos
tratar doenças como essas por meio de células-tronco [também chamadas ”células estaminais”]. A
maioria das células do corpo é capaz <de reproduzir apenas a si mesma — uma célula hepática, por
exemplo, só produz células hepáticas; as células-tronco, por sua vez, conseguem gerar uma
variedade de tipos especializados de células. No caso mais simples, o óvulo refértilizado — a
célula-tronco de máximo potencial — acaba gerando todos os 16 tipos diferentes de células
humanas identificadas. Por esse motivo, o modo mais eficaz de obter células-tronco é a partir de
embriões, embora também possam ser encontradas em adultos (só que tendem a carecer da
capacidade embriônica

373
de se diferenciarem em qualquer tipo de célula). Estamos começando a aprender como induzir as
células-tronco a produzirem determinados tipos de células e espero que algum dia consigamos
substituir as células nervosas lesadas dos pacientes de Huntington e Alzheimer por novas células
saudáveis. Porém, devo advertir que ainda temos um longo caminho a percorrer até entendermos
plenamente os gatilhos moleculares que fazem uma célula se desenvolver numa direção e não em
outra. Ainda estaremos às voltas com esse problema fundamental da biologia do desenvolvimento
por no mínimo dez anos antes de termos condições de tirar proveito do valor terapêutico das
células-tronco. Creio que seria uma tragédia para a ciência — e para todas as pessoas que um dia se
beneficiarão das terapias estaminais — se as pesquisas fossem prejudicadas por considerações
religiosas. Sondagens de opinião mostram regularmente que a maioria dos americanos é favorável a
pesquisas com células-tronco embrionárias e, no entanto, os políticos continuam a bajular uma
minoria religiosa eloqüente que é contra. O resultado é uma legislação restritiva nos Estados Unidos
que estorva o desenvolvimento dessa tecnologia potencialmente valiosa.

Por ora, o tratamento de doenças genéticas não envolve a substituição de células em grande escala
(como aconteceria na terapia estaminal), mas pode envolver a substituição de uma proteína ausente.
A doença de Gaucher, que acomete 1 em cada 40 mil indivíduos, é uma condição rara que resulta de
uma mutação no gene da glucocerebrosidase, uma enzima que ajuda a decompor certo tipo de
molécula graxa (que de outra forma se acumularia perigosamente nas células do corpo). A
enfermidade pode ser devastadora, com uma profusão de sintomas, entre os quais dor nos ossos e
anemia. As primeiras tentativas de repor diretamente a enzima ausente foram feitas em 1974. Os
resultados mostraram-se promissores, mas a logística era um verdadeiro pesadelo: a enzima
substituta precisava ser extraída de placentas humanas e 20 mil eram necessárias para suprir a
necessidade anual de um único paciente. Um grande avanço ocorreu no início dos anos 1990,
quando pesquisadores sintetizaram uma forma modificada da enzima, assimilada com mais
eficiência pelas células que mais precisavam dela. Em 1994, a Genzyme, uma empresa de
biotecnologia, começou a produzir uma forma modificada usando métodos de recombinação. O
tratamento da doença de Gaucher não combate a origem genética da enfermidade, e sim o efeito da
mutação, oferecendo ao paciente a proteína vital que seu gene imperfeito é incapaz de produzir.
374

Corrigir anomalias genéticas por esse caminho bioquímico é algo claramente exeqüível e eficaz.
Entretanto, apesar da extraordinária eficiência dos métodos recombinantes, o tratamento é caro —
us$ 175 mil por ano — e a necessidade de infusões constantes desgasta os pacientes. Naturalmente,
pois, os geneticistas há muito sonham com uma maneira prática de retificar a causa de um problema
em vez de compensar seus efeitos. O tratamento ideal para doenças genéticas seria uma forma de
alteração gênica, ou seja, uma correção dos genes que causam o problema. E os benefícios de tal
terapia gênica perdurariam pelo resto da vida do paciente: uma vez corrigido, corrigido para
sempre. Existem, ao menos em princípio, duas abordagens: a terapêutica gênica somática (em que
trocamos os genes no interior das células do corpo do paciente) e a terapêutica das células da linha
germinal (pela qual alteramos os genes no espermatozóide ou óvulo do paciente, impedindo a
transmissão de uma mutação nociva para a geração seguinte).

Essas soluções à devastação causada por defeitos genéticos podem parecer óbvias, mas a idéia de
terapia gênica não teve uma recepção calorosa por parte dos profissionais ou do público. Tal reação
não chega a surpreender: é previsível que uma cultura que desconfia de modificações genéticas num
pé de milho seja avessa a pessoas transgênicas — seres humanos geneticamente modificados —,
por maiores que sejam os benefícios potenciais. As objeções mais vociferantes, como também
poderíamos imaginar, são reservadas à abordagem das células da linha germinal, devido ao risco de
danos genéticos na manipulação do dna. Na terapêutica gênica somática, tais danos têm um efeito
limitado; na terapêutica da linha germinal existe a possibilidade de acidentalmente produzirmos
pessoas deficientes. Nem mesmo seus proponentes, entre os quais me incluo, ousam sugerir que tal
procedimento seja realizado enquanto nossas técnicas não estiverem aperfeiçoadas o bastante para
termos certeza de que não iremos causar danos inadvertidamente. Muitos cientistas, no entanto,
estão convencidos de que jamais devemos tentar aplicar uma terapêutica da linha germinal. A meu
ver, quer se baseiem em questões éticas ou em temores infundados acerca do desconhecido, em
última análise seus argumentos não chegam a ser convincentes. A terapêutica da linha germinal, em
princípio, nada mais é do que corrigir o que foi horrivelmente corrompido pelo acaso. Seja como
for, por ora a controvérsia se restringe à academia, pois essa terapêutica ainda está muito além da
nossa capacidade técnica. E, até que se torne exeqüível, devemos concentrar nossos esforços em
transformar a terapêutica gênica somítica num instrumento poderoso de cura.

375
A primeira terapia gênica aparentemente bem-sucedida foi realizada por French Anderson, Michael
Blaese e Ken Culver no National Institutes of Health, em 1990. Eles escolheram uma doença
bastante rara chamada deficiência de adenosina deaminase [conhecida como ada, do inglês
adenosine deaminase ãeficiency], na qual a falta de uma enzima desativa o sistema imunológico,
deixando a vítima tão indefesa quanto David Vetter, o menino da bolha plástica. Os pacientes foram
duas meninas, Ashanti DeSilva, de quatro anos, e Cindy Cutshall, de nove anos de idade.

Como injetar um novo gene num paciente? Naquela época, os retrovírus se apresentaram
logicamente como a arma escolhida. Em geral, os vírus são vetores genéticos eficientes; afinal, eles
ganham a vida injetando dna em outras células. Os retrovírus, um grupo especial, possuem rna, não
dna, como material genético. A maioria dos vírus infecta uma célula, reproduz-se e então destrói a
hospedeira para permitir que os ”vírus-filhos” escapem e infectem outras células; os retrovírus, por
sua vez, costumam ser mais delicados e gentis, pelo menos para com a célula hospedeira, pois as
novas cópias virais são remetidas sem destruí-la. Isso não significa que um retrovírus seja mais
ameno para o organismo hospedeiro; às vezes justamente o oposto é verdade, como demonstram os
efeitos do hiv, talvez o mais conhecido retrovírus. Todavia, significa que os genes virais — e
qualquer gene extra que o vírus possa ser induzido a transportar — se tornam parte permanente do
genoma da célula não destruída. Para fins da terapêutica gênica, a engenharia genética produziu os
retrovírus mais seguros possíveis: privados de todos os genes virais que não são essenciais para
invadir o genoma da célula hospedeira — e vale notar que os meios de que eles dispõem para
realizar isso são formidáveis —, os retrovírus se tornam o vetor gênico ideal.

Mas ainda resta um problema: como visar somente às células afetadas pela mutação, somente
àquelas que precisam do gene substituto? Esse ainda é o maior desafio da terapia gênica: como
inserir o gene bom em células musculares para tratar a dmd, em células pulmonares para tratar a
fibrose cística, em células cerebrais para tratar a doença de Huntington? A escolha da obscura
deficiência de adenosina deaminase foi, portanto, bastante sensata para o primeiro teste de uma
terapia gênica: as células-alvo da doença são de fácil acesso, pois são as células do sistema
imunológico, que circulam no sangue. A equipe de Anderson extraiu milhões e milhões de células
imunológicas do sangue das meninas e cultivou-as em pratos de laboratório, onde foram infectadas
por um
376

retrovírus contendo uma cópia funcional do gene. Depois que o dna natural das células incorporou o
genoma viral contendo o gene substituto, as células estavam prontas para serem reinseridas na
corrente sangüínea das pacientes.

Ashanti DeSilva foi a primeira a submeter-se ao procedimento, em setembro de 1990. A terapia de


Cindy Cutshall ocorreu quatro meses depois. Cada uma recebeu infusões de células imunológicas
geneticamente modificadas a intervalos de alguns meses. Ambas também continuaram sendo
submetidas à terapia nãogênica de substituição enzimática, o mesmo método pelo qual os pacientes
da doença de Gaucher são tratados, mas com doses menores. Essa precaução foi uma exigência da
Subcomissão de Terapia Gênica Humana do nih, que argumentou, com razão, que seria perigoso
demais expor as meninas a uma nova terapia sem algum tipo de resguardo. O experimento, embora
não fosse totalmente controlado, pareceu funcionar: o sistema imunológico de ambas melhorou e
elas conseguiram combater algumas infecções menores. Posso atestar pessoalmente que Cutshall
parecia uma menina muito saudável de onze anos quando ela e sua família visitaram Cold Spring
Harbor em 1992. Onze anos depois, porém, os resultados não se mostraram tão conclusivos. O
funcionamento do sistema imunológico de DeSilva está próximo do normal, mas somente cerca de
um quarto de suas células T proveio da terapia gênica. O sangue de Cutshall tem uma proporção
ainda menor de células T provenientes da terapia, embora seu sistema

Cindy Cutshall, paciente pioneira da terapia gênica.

Depois de uma visita a Cold Spring Harbor, recebi um

desenho que da fizera de mim em atividade.

377
imunológico também esteja funcionando bem. Contudo, é difícil dizer exatamente quanto dessa
melhora se deve à terapia gênica e quanto é uma decorrência do tratamento enzimatico contínuo. O
resultado, pois, é ambíguo demais para ser interpretado como um sucesso inequívoco da terapia
gênica.

Os experimentos de Cutshall e DeSilva não foram a primeira vez que o nih se fizera impor no
mundo da terapia gênica. Na realidade, a Subcomissão de Terapia Gênica Humana foi formada em
1980 como uma resposta ao primeiro experimento desse tipo. O teste foi um fracasso e gerou tanta
controvérsia que o governo quase interveio para tolher a iniciativa ainda no berço. Segundo todos os
relatos, o homem no olho do furacão, Martin Cline, era um médico sagaz, ambicioso e dedicado a
aliviar o sofrimento de seus pacientes, com um interesse especial pela beta-talassemia, a
hemoglobinopatia que Bernadette Modell investigara na comunidade de cipriotas londrinos. Após
vários experimentos bem-sucedidos com animais, Cline solicitou permissão à comissão revisora da
Universidade da Califórnia em Los Angeles, onde trabalhava, para tentar a terapia gênica em seres
humanos usando dna não-recombinante. Enquanto seu pedido era examinado, Cline, com
entusiasmo excessivo, já se preparara para tratar duas mulheres fora dos Estados Unidos — uma em
Israel, outra na Itália —, mas empregou genes recombinantes, cuja utilização ainda estava proibida
pelas normas do nih. Quando retornou a Los Angeles, descobriu que seu pedido fora indeferido: a
comissão revisora decidiu solicitar dados adicionais sobre testes com animais antes de autorizar o
experimento com seres humanos. Cline descumprira quase todas as regras: não só começara a tratar
seres humanos sem autorização como usara um método terminantemente proibido. E sofreu as
conseqüências: perdeu a verba que recebia do governo federal e foi forçado a renunciar à chefia do
departamento. A terapia gênica perdia assim seu primeiro praticante.

O caso Cline não foi, de modo algum, a última vez que cientistas envolvidos em experimentos de
terapia gênica se viram às voltas com órgãos legisladores. Tragicamente, foi preciso que um
paciente morresse num experimento para transmitir com clareza uma mensagem severa: a terapia
gênica — esse complicado coquetel de vírus, fatores de crescimento e pacientes — é perigosa. Mas
a mensagem dizia mais que isso: por haver tantas incógnitas na equação desse tipo de terapia, uma
supervisão rigorosa de todos os procedimentos que envolvam

seres humanos é absolutamente necessária. Jesse Gelsinger morreu não só porque não sabemos o
suficiente para prever com segurança total a reação de um indivíduo à terapia gênica, mas também
porque os cientistas decidiram tomar atalhos indesculpáveis.

Em 1999, Gelsinger, um adolescente do Arizona, ouviu falar de um experimento que vinha sendo
realizado por James Wilson, diretor do Instituto de Terapia Gênica Humana da Universidade da
Pensilvânia. Gelsinger sofria de deficiência de ornitina transcarbamilase [conhecida como OTC, do
inglês ornithine transcarbamylase deficiency], uma insuficiência hereditária da capacidade do
fígado de processar uréia, que é um produto natural do metabolismo protéico. Se não for tratada, a
doença pode ser letal. Como a fenilcetonúria, ela pode ser controlada com alguns medicamentos
simples e uma dieta adequada, mas a otc deixa suas vítimas particularmente vulneráveis a outras
afecções. O caso de Gelsinger, de dezoito anos, era brando, mas um breve encontro com a morte
quando era garoto, precipitado pela sua doença, instigou-o a se oferecer como voluntário na
esperança de encontrar uma cura para si e para outros como ele. A terapia da Universidade da
Pensilvânia pretendia usar um adenovírus (pertencente ao grupo que causa o resinado comum)
como vetor para o gene retificado. Entretanto, algumas horas depois de os vírus com a versão
normal do gene da otc terem sido injetados em seu fígado, Gelsinger foi acometido de intensa febre,
resultado de uma infecção galopante, acompanhada de coágulos sangüíneos e hemorragia no fígado.
Três dias depois de receber a injeção, Jesse Gelsinger estava morto.
A morte do jovem foi um choque não apenas para sua família, mas para toda a comunidade de
pesquisa. Uma investigação detalhada revelou graves lapsos procedimentais, dos quais talvez o
mais evidente tenha sido este: embora dois pacientes houvessem apresentado sinais de toxicidade
hepática em outra ocasião anterior do mesmo estudo, os casos não foram comunicados a nenhum
órgão regulador nem foram divulgados aos voluntários do estudo. Se os Gelsinger houvessem sido
informados, é provável que Jesse não se oferecesse tão sofregamente como voluntário e talvez ainda
estivesse vivo. A tragédia foi um duro golpe no progresso da terapia gênica. Durante um tempo, a
Food and Drug Administration decretou uma moratória em todos experimentos congêneres na
universidade e em diversos outros programas por todo o país. Bill Frist, do Tennessee, o único
médico no Senado, conduziu um inquérito dos procedimentos de divulgação ad -íos em testes com
seres humanos e o presidente Clinton
378

379
pediu padrões mais rígidos de ”consentimento informado”, defendendo o direito de todo sujeito de
um experimento ser notificado de todos os riscos possíveis. Se algum bem derivou da morte de
Jesse Gelsinger, foi a intensificação da supervisão federal dos experimentos com seres humanos.

A comunidade de terapeutas gênicos ainda estava se recuperando do choque provocado pela morte
de Gelsinger quando notícias encoraj adoras de uma história com final feliz chegaram da França. A
doença visada era a síndrome da imunodeficiência severa combinada, a mesma que condenara
David Vetter a viver dentro de uma bolha de plástico. Embora um transplante de medula óssea possa
curá-la (o beneficiário do primeiro transplante, realizado em 1968, ainda está vivo e saudável hoje),
a taxa de sucesso é de apenas 40% — e mesmo transplantes bem-sucedidos muitas vezes levam a
complicações severas, como no caso lastimável de David. Em 2000, uma equipe sob o comando de
Alain Fischer, no Hospital Necker, de Paris, empreendeu uma terapia gênica em dois bebês que,
como David, eram mantidos em isolamento estéril desde o nascimento. À maneira do tratamento da
deficiência de adenosina deaminase, foi usado um retrovírus para inserir o gene necessário em
células extraídas das crianças, células essas que foram posteriormente reintroduzidas no corpo
delas. Mas, numa inovação notável, o grupo francês decidiu colher da medula óssea dos bebês as
células que seriam modificadas. Por usar células-tronco imunológicas da medula em vez das células
T comuns encontradas no sangue, o método, caso tivesse êxito, prometia uma correção genética
auto-regenerante, pois quando células-tronco se reproduzem aumentam não só o número delas
mesmas, mas também o das células somáticas especializadas em que se transformam naturalmente.
Logo, quaisquer células T produzidas a partir das células-tronco alteradas também portariam o gene
inserido, tornando desnecessárias novas infusões de células modificadas.

Foi exatamente o que aconteceu: dez meses depois, células T contendo uma cópia funcional do gene
ausente foram encontradas em ambos os pacientes e seus sistemas imunológicos estavam
funcionando tão bem quanto o de qualquer criança normal. O método de Fischer já foi aplicado em
outras crianças com síndrome da imunodeficiência severa combinada. Após um longo e pouco
auspicioso começo, a terapia gênica parecia enfim ter obtido seu primeiro sucesso inequívoco.
Contudo, as comemorações duraram pouco. Em outubro de 2002, os médicos constataram que um
dos bebês estava sofrendo de leucemia, um câncer da medula óssea que leva à produção excessiva
de certos tipos
380

Quando toâas as noticias eram boas:

Alain Fischer e Marina Cavazzana-Calvo

anunciam sua inovadora e bem-sucedida

terapia gênica em abril de 2000.

de células. Embora não tenha ficado estabelecido que a terapia gênica foi responsável, as provas
circunstanciais são difíceis de negar. A terapia gênica aparentemente curou a síndrome da
imunodeficiência severa combinada dos bebês, mas provocou leucemia num deles como efeito
colateral.

Os efeitos colaterais sempre exasperaram a medicina. Toda droga pode afetar mais do que apenas o
alvo pretendido e qualquer procedimento cirúrgico corre o risco de provocar complicações. Ainda
que sob muitos aspectos a medicina genética se afaste da medicina convencional, hoje sabemos que
ela também está sujeita à mesma lei das conseqüências involuntárias. É provável que o tratamento
contra a síndrome da imunodeficiência severa combinada tenha inadvertidamente criado novos
problemas ao tentar corrigir a falha original. Afinal, todo tratamento que implique inserir dna viral
no dna das células de um paciente é intrinsecamente arriscado, pois esse dna estranho pode
prejudicar o funcionamento de algum gene crucial. Em geral, como a célula em que isso ocorre
termina morrendo, esse tipo de evento não costuma ter impacto algum. Entretanto, é possível que
afete algum gene cuja eliminação não provoque a morte da célula e que, em vez disso, suscite a sua
capacidade de multiplicar-se irrestritamente: nesse caso, a inserção viral pode provocar câncer. É o
que parece ter acontecido com o bebê.

Talvez a terapia gênica ainda esteja longe de oferecer os milagres previstos no início da revolução
genética. A morte de Jesse Gelsinger foi um grave revés. E o efeito colateral leucêmico no
tratamento da síndrome da imunodeficiência

severa mostrou-se ainda mais danoso. No caso de Gelsinger, tudo indica que uma imperdoável
falha burocrática foi a principal responsável — um problema que, espera-se, possa ser corrigido por
regras mais rígidas. Mas não
381
há solução fácil para o problema dos efeitos colaterais. Talvez tenhamos de recorrer a um tipo
deprimente de avaliação nesse caso — a terapia gênica ao menos curou uma doença (a síndrome da
imunodeficiência severa combinada) pior do que a que provocou (leucemia). A boa notícia é que o
bebê em questão parece estar reagindo bem ao tratamento quimioterápico contra leucemia. Seja
como for, o incidente com Gelsinger e a manifestação da leucemia cristalizaram muitos temas
difíceis que ainda precisam ser esclarecidos se quisermos que a terapia gênica somática faça parte
da medicina oficial. Não sou ingênuo a ponto de achar que experimentos futuros não revelarão
outras dificuldades. Talvez leve algum tempo até que possamos afirmar convictamente que
conseguimos neutralizar todos os perigos imagináveis, mas acredito que o potencial dessa
tecnologia de nos livrar da praga das doenças genéticas é simplesmente enorme demais para que a
medicina lhe dê as costas.

Nosso dna pode revelar muito a nosso respeito. Como vimos, se a doença de Huntington estiver
presente em uma família, o dna pode praticamente revelar que futuro aguarda seus membros. Se
possuirmos determinada variante de um gene (ou combinação de genes), o dna também revelará em
breve qual é nosso risco relativo de sucumbir a assassinos mais comuns, como as cardiopatias.
Nossa versão do gene apõe já pode servir como indicador do mal de Alzheimer. Será que devemos
nos preocupar que essas informações extraordinariamente íntimas venham a ser usadas contra nós?
Muitos americanos hoje temem que seu perfil genético possa um dia impedi-los de contratar
qualquer tipo de seguro-saúde.

Em 2000, o American Journal of Human Genetics publicou os resultados de uma pesquisa que
perguntara às administradoras de planos de saúde se pretendiam ajustar seus preços de modo a levar
em conta as informações genéticas de seus segurados, caso estas lhes fossem disponibilizadas. Será
que, em princípio, estariam dispostas a cobrar mais de um cliente em perfeita saúde se ele fosse
portador de uma mutação que o predispusesse a alguma doença? Cerca de dois terços admitiram
que sim. As demais provavelmente mentiram. Seguradoras não são organizações filantrópicas; são
negócios que têm de prestar contas aos acionistas. Não há motivo para supor que, por conta própria,
não continuem fazendo o que sempre fizeram, ou seja, maximizar o prêmio dos clientes de maior
risco e, se possível, evitar por completo os clientes com mais probabilida-
382

de de precisarem de atendimento médico dispendioso. O mesmo relatório descreve o caso em que


uma administradora de planos de saúde aumentou o preço cobrado de um cliente com base numa
suspeita de doença genética, simplesmente porque essa pessoa solicitara um teste para doença de
Huntington.

À medida que vamos nos conhecendo no âmbito molecular, será inevitável que aqueles que não
tiverem sorte na grande loteria genética acabem pagando um preço — dessa ou de outra maneira? E
por que imaginar que tais abusos ficariam restritos às seguradoras? O perfil do meu dna pode
indicar minha propensão a um ataque cardíaco ou derrame, a tornar-me alcoólatra, a sofrer de
depressão clínica. Será que tais informações fariam um possível empregador pensar duas vezes
antes de me contratar?

Questões como essas sugerem que o Admirável mundo novo terá se tornado a realidade do nosso
mundo muito antes do século xxv imaginado por Huxley. O dna é um fato marcante e consumado
da vida no século xxi — um gênio que nunca mais voltará para dentro da garrafa. O que viermos a
permitir que seja feito com ele depende do que nós, como uma sociedade democrática, decidirmos.
Infelizmente, em tais sociedades as leis só tendem a ser promulgadas depois de terem se tornado
necessárias: um semáforo costuma ser instalado num cruzamento perigoso depois que vários
acidentes já aconteceram ali. Talvez seja preciso haver mais algumas histórias assustadoras de
flagrante injustiça, de indivíduos vitimados por seu próprio genoma, para motivar a aprovação da
legislação apropriada. Que formato ela tomaria? A privacidade genética deve ser um critério básico,
mas não necessariamente o objetivo derradeiro. Precisamos atingir um equilíbrio com as demais
prioridades da sociedade — dentre as quais a principal talvez seja o combate às doenças, um
esforço que cada vez mais dependerá do acesso de pesquisadores médicos ao maior número de
dados genéticos coletáveis da população em geral. Embora a legislação não deva atrapalhar nossa
ambição de explorar o pleno potencial do dna em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem
somos e de onde viemos, ou em identificar quais dentre nós são culpados de algum crime, ela deve
no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja privado de seus direitos civis ou humanos com base
no que porventura estiver inscrito em seus genes.

Até lá, talvez seja reconfortante constatar que, a despeito da profusão de informações genéticas já
disponíveis para as administradoras de planos de saúde e não importa o que digam aos
entrevistadores, essas empresas, de modo geral,
383
têm mostrado pouca propensão a incluir considerações genéticas na apuração dos seus preços. A
desafortunada pele clara que herdei de meus pais já provou sua suscetibilidade ao câncer, mas, da
última vez que fiz os cálculos, eu não estava sendo cobrado a mais por isso. Mas também aqui o
teor da questão é comercial, não caritativo. Ao longo do tempo, as seguradoras sempre fixaram seus
preços com base em tabelas atuariais que estimam a saúde e a longevidade geral da população a
partir, basicamente, do modo como vivemos. Desconfio que, mesmo que dados genéticos
estivessem universalmente disponíveis, as seguradoras continuariam achando que os fatores
associados ao estilo de vida (se alguém fuma ou não, se trabalha numa mina de carvão ou numa
floricultura) oferecem prognósticos muito melhores dos riscos à saúde individual do que as
diferenças determinadas pelas variações genéticas entre uma pessoa e outra — as quais, em sua
esmagadora maioria, são sutis. É indiscutível que aqueles cujos dnas revelarem um destino
inevitável de debilitação precisam de proteção especial da lei, mas a propensão a doenças como
cardiopatias ou câncer certamente se mostrará tão difundida e tão complexa a ponto de tornar-se
impraticável como base de discriminação de custos. A premissa essencial de qualquer seguro — que
os pagamentos feitos pelos muitos felizardos que nunca precisarão ser indenizados cobrirão o
conforto proporcionado a alguns poucos desafortunados — dificilmente será abolida, não importa o
acúmulo de informações genéticas disponíveis.

Entretanto, mesmo que nossos direitos individuais sejam protegidos das possíveis revelações do
nosso dna, paz de espírito não é algo que se restaure tão facilmente assim. Como Nancy Wexler
bem o sabe, o conhecimento genético pode ser uma perspectiva assustadora. Concordo com ela: não
faz sentido sabermos algo que somos impotentes para remediar ou aliviar. O mal de Alzheimer é
uma grande preocupação para pessoas da minha idade, mas, diante da ausência de uma
possibilidade comprovada de tratamento, não tenho o menor desejo de fazer o exame para verificar
a presença ou não do alelo APOEe4. (Craig Venter, por falar nisso, possui indubitavelmente uma
cópia desse alelo; sabemos disso porque ele insistiu em tornar público que o genoma seqüenciado
pela empresa Celera era o dele.) E esse alelo, graças ao papel que desempenha no processamento do
colesterol, está associado a um maior risco não só de Alzheimer, mas também de doenças cardíacas.
Resumindo, o APOEe4 não é, em abso-
384

luto, uma vantagem. Cativo dessa autoconsciência genética, Veinter está sendo prudente e reagindo
com a melhor profilaxia possível: começoua tomar estatinas, uma classe de drogas que reduzem as
taxas de colesterol e podem retardar ou prevenir a aparição do mal de Alzheimer. Mesmo sem sabei
qual é a situação dos meus alelos apõe, eu também estou tomando estatinas, Pois julgo que um
pouco de medicação preventiva não pode causar dano. Se as estatísticas forem tão eficazes quanto
alguns afirmam, o mundo ainda terá de suportar muitos anos de controvérsias venterianas (e,
espero, watsonianas).

O conhecimento genético continuará sendo algo assustador enquanto permanecermos nesse estágio
intermediário, isto é, termos basicamente o poder de diagnosticar mas não de curar. Por outro lado,
não se trata de um dilema médico inédito. Basta pensarmos no início do século xx, quando o
diagnóstico do diabetes infantil era uma sentença de morte. Hoje, com a terapêutica da insulina,
nada impede que essa criança chegue até a velhice. O que anima nossos esforços de pesquisa é a
esperança de que, num dia não muito distante, aconteça a mesma transformação no diagnóstico de
uma doença como a de Huntington — de uma sentença de morte em uma prescrição típica.

Hoje estamos em condições muito melhores do que há vintf anos para anular certas desventuras
genéticas — a expectativa de vida cada vez mais longa de pessoas com síndrome de Down, por
exemplo, ou com fibrose cística comprova esse avanço. Entretanto, por ora, nossas armas mais
poderosas sã os diagnósticos. A escolha entre fazer e não os testes deve caber a cada pessoa Ou a
cada pai ou mãe, àqueles que terão de suportar mais diretamente o fardo desse conhecimento
genético. No caso do diagnóstico pré-natal, é a futura mãe quem deve tomar as decisões. Isso não
vale dizer que outros não possam participar; significa apenas que, em última análise, a escolha deve
caber à mulher — nao só por ser ela que irá ter a criança, mas também porque, queiramos ou não, o
mundo ainda espera que as mulheres arquem com a maior parte da criaçao dos filhos no dia-a-dia.
Todavia, sejam quais forem as circunstâncias específicas de cada decisão, uma coisa me parece
mais do que clara: ao longo da existêcia humana, as doenças genéticas já foram a causa de
inimaginável tormento para incontáveis famílias, como a de Carol Carr, assolada pela doença de
HuntiAgton. Os testes genéticos têm o poder de, pela prevenção, reduzir esse sofrimento- Se
existem, é uma irresponsabilidade inão divulgar sua existência a todos aqueles que puderem usá-los
e é indesculpável não torná-los universalmente disponíveis

385
13. Quem somos? Herança vs. ambiente
Quando era garoto, embora não comentasse com ninguém, eu me preocupava com o meu legado irlandês, o
lado materno da família. Minha ambição era ser o garoto mais esperto da classe, mas então me deparava com
toda sorte de piadas sobre a insuficiência intelectual dos irlandeses. Alguém chegou a me dizer que outrora
havia cartazes de ”procuram-se empregados” que incluíam a advertência ”irlandeses não precisam se
candidatar”. Eu ainda não tinha condições de compreender que esse tipo de discriminação talvez tivesse a ver
com algo mais do que uma mera avaliação honesta das aptidões dos irlandeses. Sabia apenas que, embora
possuísse muitos genes irlandeses, não havia nenhum sinal de que eu fosse mais estúpido que a média. Por
isso, imaginei que o intelecto irlandês, e as deficiências pelas quais era conhecido, deveriam ter sido
moldados
Acima: Gêmeos idênticos que participam da convenção anual que se realiza em Twinsburg, Ohio.
386

pelo ambiente da Irlanda, não pelos gene, A culpa era do ambiente não da herança. Agora que conheço um
pouco melhor a históriaminhas conclusões juvenis não estavam assim tão longe da verdade. Os irlandeses nao
sao nem um pouco idiotas, ainda que os britânicos certamente tenham se esforçado em torná-los assim.

A conquista da Irlanda por Oliver Cromwell foi, sem dúvi da, um dos episódios mais brutais da história.
Culminou com o desterro da população irlandesa nativa para as regiões subdesenvolvidas e inóspita, do oeste
do país como Connaught enquanto os despojos do leste mais salubre eram divididos entre os asseclas do lorde
protetor [título de Cromwell como chefe de Estado que logo começariam a anglicizar a província derrotada.
Com a chegada de pro’ restantes, que acreditavam que as heresias do catolicismo eram um bilhete sem volta
para a perdição, Cromwell proclamou em 1654 que os irlandeses podiam escolher entre ”ir para o inferno” ou
”irpara Connaught”. Na época, talvez não fosse claro o que era pior. Julgando que o catolicismo era a causa-
mor do ”problema irlandês”, os britânicos tomaram medidas draconianas para suprimir a religião e, com ela, a
cultura e a identidade nacional irlandesa - ou pelo menos, é o que pretendiam. O período subseqüente da
história irlandesa foi portanto caracterizado por uma forma de aparteid tão severo e infame quanto o praticado
na África do Sul, a principal diferença sendo a base da discriminação a religião em vez da cor da pele.

Um dos principais alvos das ”Leis Penais”, promulgadas para ”prevenir o crescimento posterior do papismo”,
foi a educação. Um regimento de 1709 continha a seguinte cláusula:

Toda pessoa da religião papista que lecionar publicamente em escola ou educar


em casa particular jovens para o aprendizado, ou for assistente ou auxiliar de
algum mestre-escola protestante, será processada.
Pela revelação que levar à apreensão e condenação de qualquer arcebispo
bispo, vigario-geral, jesuíta, monge ou qualquer pessoa que exerça asuca estranha, será oferecida uma
recompensa de cinqüenta libras,, e de vimte
Aras por léngo comum ou clérigo secular não.certificado de dez llibras por cada mestre-escola papista;
assistente ouauxiliar; a dita recompensa será arrecadada entre os habitantes Papistas do condado em que for
encontrada a pessoa.
387
Os britânicos esperavam que os jovens irlandeses que freqüentassem as escolas protestantes
britânicas se alienassem naturalmente do catolicismo. Mas suas esperanças foram em vão: seria
preciso mais do que opressão e mais do que recompensas para afastar os irlandeses de sua religião.
O resultado foi um movimento educacional alternativo espontâneo, as chamadas hedge schools
[escolassebe], com professores católicos itinerantes que davam aulas em locais secretos ao ar livre,
mudados constantemente. As condições eram quase sempre execráveis, como observou um visitante
em 1776: ”Poderiam bem ser chamadas de ditch schools [escolas-fosso], pois não foram poucas
valas que vi repletas de estudantes”. Não obstante, em 1826, de um corpo estudantil total de 550 mil
alunos, estimava-se que 403 mil freqüentassem as hedge schools, que se tornaram um símbolo
romântico da resistência irlandesa e inspiraram o poeta John O’Hagan:

Agachados ainda sob a sebe protetora;

Ou estendidos entre samambaias numa encosta,

O mestre e seus pupilos, transgredindo, reuniam-se para aprender.*

No entanto, embora os britânicos não tenham atingido a meta de impor a conversão religiosa, e a
despeito dos esforços heróicos dos professores das hedge schools, houve um grave prejuízo à
qualidade da educação de várias gerações de irlandeses. O arquétipo resultante, o ”irlandês burro”,
seria mais corretamente identificado como o ”irlandês ignorante”, um legado direto das diretrizes
anticatólicas de Cromwell e seus sucessores.

Seja como for, as minhas conclusões de garoto não se mostraram tão disparatadas: a chamada
maldição dos irlandeses foi, na realidade, um resultado de atos sociais (a criação de um certo
ambiente de oportunidades educacionais inferiores) e não da herança (genes irlandeses). Hoje, é
claro, ninguém, nem mesmo o inglês mais intolerante e preconceituoso, pode afirmar que os
irlandeses não são tão espertos quanto os demais povos. O moderno sistema educacional da Irlanda
conseguiu mais do que desfazer os danos da época das hedge schools e atualmente a população
irlandesa é uma das mais bem instruídas do planeta. Minhas ponderações juvenis sobre a questão,
embora absurdamente desinforma-
* Still crouching ’neath the sheltering heáge;/ Or stretched on mountainfern, / The teacher and his pupib metfeloniously to learn. (N. T.)

388

das, tiveram o mérito de me ensinar uma vaüosíssima lição: o perigo de supor que os genes são
responsáveis pelas diferenças que constatamos entre indivíduos ou grupos. Podemos cometer um
erro crasso se não tivermos certeza absoluta de que fatores socioambientais não desempenharam o
papel mais decisivo.

Essa tendência a preferir explicações ”socioambientais” às fundamentadas na ”herança” serviu a um


propósito social útil de reparar gerações e gerações de intolerância. Infelizmente, acabamos
cultivando em demasia uma coisa boa. A atual epidemia do ”politicamente correto” colocou-nos
numa posição em que até mesmo a possibilidade de haver uma base genética para as diferenças
humanas se transformou numa legítima batata quente: existe hoje uma resistência forte e
essencialmente desonesta em se admitir que nossos genes possam desempenhar um importante
papel na definição do que distingue um indivíduo de outro.

Ciência e política, em certa medida, são inseparáveis. A ligação entre ambas é óbvia em países
como os Estados Unidos, onde uma parcela considerável das verbas para pesquisa científica
depende das alocações de um governo eleito democraticamente. Mas a política também interfere na
busca do conhecimento de outros modos mais sutis. Os intuitos da ciência refletem as preocupações
e os interesses da sociedade, e muitas vezes considerações sociais e políticas acabam se sobrepondo
às puramente científicas. A ascensão da eugenia, que foi a resposta de alguns geneticistas às grandes
preocupações sociais da época, é um bom exemplo. Partindo de fundamentos científicos frágeis,
quase desvanecidos, o movimento avançou como um veículo pseudocientífico para os preconceitos
extraordinariamente nãocientíficos de homens como Madison Grant e Harry Laughlin.

A genética moderna levou a sério as lições da experiência eugenista. De modo geral, os cientistas
hoje tentam evitar questões com implicações políticas ostensivas ou mesmo aquelas cujo teor
político não está claro. Vimos, por exemplo, que traços humanos evidentes, como a cor da pele, têm
sido relegados pelos geneticistas — embora seja difícil culpá-los: afinal, com um semnúmero de
questões interessantes disponíveis para investigar, por que escolher uma que pode colocá-los em
maus lençóis ante a imprensa popular ou, ainda pior, conseguir-lhes um lugar de honra na
propaganda dos supremacistas brancos? Mas a aversão à controvérsia tem outra dimensão política
ainda mais prática e ainda mais insidiosa. O fato é que, em sua maior parte, os cientistas, e
389
também os professores universitários, tendem a ser liberais e a votar no Partido Democrata. Embora
ninguém saiba dizer até que ponto essa filiação se dá por uma questão de princípios ou por mero
pragmatismo, há um pressuposto de que os governos democratas são invariavelmente mais
generosos em relação à pesquisa do que os republicanos.* Ora, a maioria dos cientistas, tendo se
agregado à extremidade liberal do espectro político mas vendo-se imersa num clima de intolerância
com verdades que não se conformam à ideologia, hoje se esquiva de pesquisas que poderiam revelar
tais verdades. O fato de aderirem meio às cegas à linha prevalecente da ortodoxia liberal — aquela
que busca honrar as diferenças ao mesmo tempo que rejeita qualquer consideração acerca das bases
bioquímicas dessas diferenças — não é, a meu ver, bom para a ciência, para uma sociedade
democrática nem, em última análise, para o bem-estar humano.

O conhecimento, mesmo aquele que nos perturba, é certamente preferível à ignorância, por mais
ditosa que esta possa parecer no momento. Infelizmente, o que costuma acontecer é que variados
pruridos políticos favorecem a ignorância e a segurança aparente que ela confere: é melhor não se
aprofundar na genética da cor da pele, raciocina o medo dissimulado, para evitar que tais
informações sejam apropriadas de algum modo por chauvinistas cheios de ódio que I se opõem ao
bom convívio entre as raças. Entretanto, esse mesmo conhecimento genético pode ter uma utilidade
vital para pessoas como eu, cuja tez escócioirlandesa se torna vulnerável ao câncer de pele em
qualquer clima mais ensolarado que o de Tipperary ou da ilha Skye, terra natal de meus
antepassados maternos. Do mesmo modo, pesquisas genéticas sobre diferenças na capacidade
mental de pessoa para pessoa podem levantar perguntas constrangedoras, mas esse conhecimento
seria uma dádiva para educadores, permitindo-lhes adequar a experiência educacional de cada aluno
de acordo com sua energia. Mas hoje a tendência é pensar no que de pior poderia acontecer e, a
partir disso, evitar toda ciência potencialmente controversa; acho que é mais do que hora de
começarmos a nos concentrar no que pode haver de benéfico.

Não há nenhuma razão legítima para a genética moderna evitar certas questões só por elas também
terem interessado o desacreditado movimento eugênico. A diferença crucial é a seguinte: Davenport
e outros como ele sim-
* Uma suposição nem sempre correta, pois, na história recente dos Estados Unidos, o orçamento mais mesquinho para a ciência foi o
do governo Jimmy Carter.

390

plesmente não dispunham das ferramentas científicas necessárias para descobrir a base genética de
qualquer traço comportamental estudado. Sua ciência carecia de cabedal para revelar realidades
materiais que confirmassem ou refutassem suas especulações. Por conseguinte, eles ”viam” o que
queriam ver — uma prática que não merece o nome de ciência — e muitas vezes chegavam a
conclusões claramente antagônicas à verdade: por exemplo, que ”mente fraca” é transmitida como
um autossomo recessivo. Quaisquer que sejam as implicações da genética moderna, é certo que não
têm relação alguma com essa linha de raciocínio. Hoje, se encontrarmos uma determinada mutação
no gene associado à doença de Huntington, podemos ter certeza de que seu portador desenvolverá a
doença. A genética humana passou da especulação ao fato. As diferenças entre seqüências de dna
não são ambíguas, não estão sujeitas a interpretação.

É irônico que os mais preocupados com as possíveis revelações de uma genética desenfreada sejam
justamente os que mais promovem a politização das descobertas fundamentais da área. Um caso
típico é a constatação de que a história da nossa espécie indica que não existem grandes diferenças
genéticas entre os grupos tradicionalmente distinguidos como ”raças”: foi sugerido, pois, que nossa
sociedade deveria, por conseguinte, deixar de identificar a categoria ”raça” em qualquer contexto —
eliminando-a, por exemplo, dos prontuários médicos. A idéia subjacente é que a qualidade do
tratamento dispensado num hospital pode variar de acordo com a etnicidade identificada na ficha de
entrada. O racismo, por certo, está presente nas fileiras de qualquer profissão, inclusive da
medicina. Mas não fica inteiramente claro qual a proteção que o anonimato étnico num formulário
poderia conferir a alguém ante um médico preconceituoso. Mais evidente seria o perigo de isso
obstruir o acesso a informações que podem ser importantes no diagnóstico. É um fato que algumas
doenças têm maior incidência em certos grupos étnicos do que na população humana em geral: os
americanos nativos da tribo Pima têm uma propensão especial ao diabetes Tipo II; é bem mais
provável que afro-americanos sofram de anemia falciforme do que irlando-americanos; a fibrose
cística afeta sobretudo pessoas de origem norte-européia; a doença de Tay-Sachs é muito mais
comum entre os judeus asquenazes do que em outros. Isso não é fascismo, racismo ou a intrusão
indesejável do Grande Irmão. É simplesmente uma questão de tirar c melhor proveito possível de
todas as informações disponíveis.
39i
f
Para uma ciência tão jovem, a genética desempenhou um papel central numa quantidade notável de
episódios políticos pavorosos. A eugenia, como vimos, foi em parte uma criação dos próprios
geneticistas. A pseudociência conhecida como lissenkoísmo, que se desenvolveu na União Soviética
em meados do século xx, praticamente se impôs à genética de cima, pois Stálin teve muito a dizer a
respeito. O lissenkoísmo constitui a incursão mais flagrante e ofensiva da política no âmbito da
ciência desde a Inquisição.

No final da década de 1920, a União Soviética ainda buscava seu caminho. Stálin vencera a luta
pela sucessão após a morte de Lênin, esforçava-se para consolidar seu poder e já dera início à
coletivização da agricultura. Num obscuro posto de pesquisas agrícolas no longínquo Azerbaijão,
um camponês inculto mas ambicioso estava começando a se tornar conhecido. Trofim Denissovitch
Lissenko [1898-1976], originário da Ucrânia, parecia uma escolha improvável para supervisionar a
revolução agrícola de Stálin. Semi-analfabeto, trabalhava como técnico no Centro Experimental de
Reprodução Vegetal Ordzhonikidze, em Gandzha, quando, em 1927, foi resgatado da obscuridade
por um jornalista do Pravda que, talvez sem idéia para uma boa matéria, se inspirou na imagem de
Lissenko: ali estava um ”professor de pés descalços” resolvendo problemas agrícolas para que o
”camponês turco local possa atravessar o inverno sem estremecer pensando no futuro”. O artigo, em
seu ponto nevrálgico, retratava Lissenko como um ”solucionador de problemas”, não um acadêmico
empolado: ”Ele não precisou estudar as patas peludas da mosca-das-frutas, pois foi diretamente ao
âmago das coisas”.

A imagem do professor de pés descalços mostrou-se irresistível para os apparátchiks soviéticos: um


filho da terra, o legítimo desabrochar do homem soviético, da classe dos camponeses, cuja intuição
agrícola valia certamente mais do que toda a erudição dos intelectuais indolentes. Ávido por não
desapontar, Lissenko logo tirou proveito de sua recém-conquistada proeminência propondo que o
trigo invernal fosse ”vernalizado”. O trigo invernal é normalmente plantado no outono e atravessa o
inverno como broto; com isso, uma parte da safra se perde, mas o restante está pronto para ser
colhido na primavera. Lissenko sugeriu que, por meio da vernalização, seria possível enganar as
sementes para que só germinassem na primavera, bastando apenas refrigerá-las e

molhá-las — com o benefício adicional de uma colheita mais abundante. A demonstração


experimental definitiva do método foi efetuada por ninguém menos que o próprio pai de Lissenko
em seus campos. De fato, o rendimento foi cerca de três vezes superior ao do trigo convencional
não-vernalizado plantado na mesma região.

Na realidade, a vernalização não foi criada por Lissenko. Não sabemos onde ele resgatou a idéia,
mas o procedimento já existia no mínimo desde o século anterior — sendo mencionado na literatura
agrícola de Ohio na década de 1850, por exemplo. Mas aqui a sua falta de instrução (e sua
conseqüente ignorância do que já fora realizado em outros lugares) foi mais do que útil, permitindo-
lhe reivindicar originalidade. O mesmo, porém, não pode ser dito em relação a todas as tentativas de
aplicação do método, cujos resultados variararn enormemente conforme as condições locais — algo
que os fazendeiros de Ohio sabiam, mas que o professor descalço parecia desconhecer.

Dois anos depois, após fracassos sucessivos, Lissenko deixou de lado a vernalização do trigo de
inverno e pôs-se a defender a vernalização do trigo de primavera — uma manobra digna da mais
aguda sátira soviética, visto que vernal, que significa primaveril, diz respeito à estação em que,
obviamente, o trigo de primavera é plantado. Mais tarde, sua política trigueira sofreu outra
reviravolta e Lissenko pôs-se a exaltar as vantagens de aquecer (em vez de resfriar) as sementes
antes do plantio. A vernalização do trigo foi apenas uma das muitas panacéias agrícolas que
Lissenko sugeriu, mas ilustra bem a sua estratégia geral: ur total desprezo por conhecimentos
especializados e a recusa em realizar testes regulares e rigorosos. Em essência, qualquer idéia que
lhe agradasse intuitiva-

3,>«

Trofim Lissenko mede pés de trigo num raro

rompante de empirismo em uma fazenda

coletiva perto de Odessa, na Ucrânia.

392

393
mente era boa o suficiente para ser implementada. E a minguada metodologia científica que acabou
aceitando parecia inspirada mais por reflexões teológicas, algo estranho vindo de um instrumento de
um Estado comunista ateu: ”Para obter determinado resultado, é preciso querer obter precisamente
esse resultado; quem quiser obter determinado resultado irá obtê-lo”.

Muito mais sagaz e bem pensada foi a sua cuidadosa manipulação dos meios de comunicação. O
contato inicial com a fama via Pravda lhe ensinara que a imprensa oficial do governo era melhor
canal para autopromoção científica do que as páginas empoeiradas dos periódicos acadêmicos ou
profissionais. Em 1929, o Pravda noticiou duas vezes o sucesso do professor descalço com a
vernalização, referindo-se afetuosamente em ambas as ocasiões à contribuição singela de Lissenko
pai.

Naquele momento, a União Soviética precisava de um Lissenko. A ”reorganização agrícola” (como


Stálin preferia designar a coletivização das fazendas) estava se revelando uma catástrofe. Mesmo as
estimativas oficiais, célebres por seu exuberante otimismo, traçavam um quadro lúgubre da
produtividade rural durante esse período. As soluções intuitivas e imediatistas de Lissenko fizeram
dele a grande figura do momento, mesmo que causassem mais mal do que bem num prazo
curtíssimo. Ele era a corporificação de um importante ideal bolchevique: deistvennost —
”aplicabilidade” ou práxis. Nada de teorias grandiloqüentes ou conceitos acadêmicos obscuros. O
professor descalço que punha as mãos na massa era um homem de ação que resolvia problemas
práticos.

Lissenko logo aprendeu a usar o sistema soviético em proveito próprio. Suas palestras nem
remotamente pretendiam ser científicas, num sentido reconhecível para nós: eram verborragias
ideológicas temperadas com o jargão marxista-leninista da época. Stálin, é claro, só podia ser seu fã
e foi o primeiro a aplaudi-lo de pé num Congresso de Trabalhadores das Brigadas de Choque das
Fazendas Coletivas, gritando: ”Bravo, camarada Lissenko!” Em troca, Lissenko astutamente
batizou de ”trigo Stálin” sua mais recente idéia mirabolante. Aceitando de bom grado a honra, por
sorte o generalíssimo nunca chegou a descobrir que o trigo duro se revelara outro fiasco: embora
seu rendimento fosse intrinsecamente maior, exigia um plantio de tão baixa densidade que mais do
que anulava a vantagem das múltiplas inflorescências.

Ao submergir toda a agricultura soviética num vasto experimento cada vez que introduzia um novo
estratagema invariavelmente impraticável, Lissenko
394

acabou sendo responsável pela morte por fome de milhões de pessoas. Mas os registros soviéticos
dessa época (sobretudo os mantidos pelo próprio Lissenko) são infelizmente tão distorcidos que
talvez jamais saibamos o verdadeiro número de Vidas sacrificadas no altar da carreira de Lissenko.
Basta dizer que analistas mais objetivos estimam que, por ocasião da morte de Stálin em 1953, a
oferta de carne e legumes era equivalente à dos mais sombrios dias feudais do czar Nicolau H.
Ademais, a influência perniciosa de Lissenko não se restringiu à agricultura.

Se a agricultura soviética tinha princípios próprios, a ciência soviética também precisava de um


credo científico que lhe fosse peculiar: Lissenko e seus asseclas não suportavam a idéia de que o
novo homem soviético seguisse humildemente os passos dos cientistas ”burgueses” do Ocidente.
Suas teorias desvairadas acerca do desenvolvimento agrícola podiam ser resumidas em uma idéia, a
de que é possível transformar qualquer planta se esta for submetida ao tipo apropriado de ambiente:
ou seja, o trigo de inverno pode tornar-se trigo de primavera mediante uma manipulação ambiental
simples. Nem se tratava de um ajuste temporário, pois, segundo Lissenko, tais transformações
seriam incorporadas à planta e os traços adquiridos transmitidos à geração seguinte. Por fim,
Lissenko tornou-se um lamarckista ferrenho.* Num acesso incomum de entusiasmo experimental,
chegou a solicitar experimentos que ”refutassem” o mendelismo — a base da genética da decadente
tradição ocidental. Devido à sua crassa incompetência matemática, realmente se deixou convencer
de que os resultados desdiziam os cocientes de Mendel, mesmo depois que uma nova análise dos
dados por um eminente matemático soviético mostrou que, na verdade, as proporções
correspondiam exatamente às previsões de Mendel. Lissenko não temia realizar um ou outro
experimento ocasional, mas não tolerava resultados que contradissessem uma hipótese desejada, por
mais estapafúrdia que fosse.

No final da década de 1930, houve uma série de debates entre Lissenko (apoiado por um ”bando de
estúpidos militantes linha-dura”, como alguém os descreveu) e a comunidade de geneticistas
soviéticos — um grupo eminente de cientistas pelos padrões internacionais da época. H. J. Muller,
aluno de T. H.
* Em 1801,Jean-Baptiste Lamarck publicou pela primeira vez a sua teoria da hereditariedade dos traços adquiridos, sugerindo
equivocadamente que as características adquiridas ao longo da vida de um indivíduo podiam ser transmitidas à sua progênie. Por mais
falha que fosse a idéia, Lamarck, ao contrário de Lissenko, pelo menos tentava basear suas inferências na observação.

395
w
Morgan (e meu professor de pós-graduação na Universidade Indiana) viajou até a Rússia a fim de
participar do grande experimento social do comunismo, mas acabou envolvendo-se numa bizarra
sucessão de discussões públicas pré-ensaiadas sobre a hereditariedade lamarckiana. Era a época dos
expurgos stalinistas, quando as verdades políticas tinham mais peso do que as científicas. Em que
medida Lissenko participou diretamente da ”repressão” (o eufemismo soviético favorito de
expurgo) aos geneticistas que se manifestaram contra ele é algo impossível de saber com segurança;
mas permanece o fato de que grande parte da oposição às suas idéias lamarckianas simplesmente
desaparecera ao final da década, a despeito de quem tenha dado as ordens. Alguns poucos
geneticistas defenderam heroicamente suas posições, fazendo críticas públicas a Lissenko. Muller
precisou fugir para sair do país com vida. O decano da genética soviética (e um ardoroso patriota),
Nikolai Vávilov, foi encarcerado em 1940 e acabou morrendo de inanição na prisão.

Em 1948, decretou-se oficialmente o fim do debate: o mendelismo estava banido e o lissenkoísmo


triunfara — uma situação absurda e trágica, particularmente se consideramos que isso aconteceu
quatro anos depois do experimento pioneiro de Avery mostrando que o dna era o fator
transformador mendeliano. Alguns anos depois, a reação lissenkoísta à descoberta da dupla-hélice
foi caracteristicamente obscurantista: ”Diz respeito à duplicação, mas não à divisão de uma coisa
única em seus opostos, ou seja, trata-se de repetição, amplificada, mas não de desenvolvimento”.
Não faço a mínima idéia do que isso quer dizer, mas parece-me coerente (em seu despautério) com
outros escritos de Lissenko sobre hereditariedade:

Em nossa concepção, o organismo inteiro consiste apenas no corpo comum que todos conhecem.
Não há em um organismo nenhuma substância especial à parte desse corpo comum. Todavia,
qualquer partícula, figurativamente falando, qualquer grânulo, qualquer gotícula de um corpo vivo,
por estar vivo, há de ter a propriedade da hereditariedade, isto é, o requisito das condições
apropriadas para viver, crescer e desenvolver-se.

Darwin seria o próximo a receber o tratamento Lissenko. O desarvorado camponês que subiu na
vida decidiu negar o preceito cardeal do darwinismo — a competição entre os indivíduos de uma
espécie para obter acesso a recursos limi-
396

tados — e postulou, como talvez um bom comunista devesse fazê-lo, que os indivíduos não
competem, mas cooperam entre si. E foi além, combinando antimendelianismo e antidarwinismo
numa bizarra teoria unificada da origem das espécies: uma vez que os organismos são moldados
pelo meio ambiente, deveria ser possível, sob condições ambientais propícias, transformar qualquer
espécie em qualquer outra espécie. Para usar o seu exemplo favorito, se pegarmos uma ave canora
qualquer e modificarmos a sua dieta para que só ingira lagartas, conseguiremos produzir um cuco.
Lissenkoístas pertinazes do mundo inteiro logo começaram a escrever dando notícias de seus
sucessos transformacionais: vírus transformados em bactérias, um coelho transformado numa
galinha. Nesse processo, a biologia soviética também sofreu uma transformação: de ciência em
piada.

Com o tempo, porém, a rejeição a Darwin acabou colocando Lissenko numa posição tão
insustentável que até a sua formidável capacidade de sobrevivência política foi ameaçada. Os
últimos anos de Stálin viram o surgimento do ”Grande Plano Stalinista para a Transformação da
Natureza”, que, em parte, implicava plantar muitas árvores para proteger as estepes dos atrozes
ventos do leste, moderando o clima como um todo. Não era uma má idéia em princípio. Mas, como
se poderia esperar, Lissenko tinha noções próprias sobre a melhor maneira de plantar árvores:
segundo ele, se as sementes fossem plantadas em pequenos aglomerados, as mudas que brotassem
não iriam competir entre si por luz solar e nutrientes, mas sim cooperar para o bem da comunidade.
No final da década de 1940, exércitos de camponeses se espalharam pelas estepes plantando
aglomerados de sementes de carvalho de acordo com as prescrições de Lissenko. O resultado?
Intensa competição entre as novas mudas, que enfraqueceu todos os membros de cada aglomerado.
Em 1956, somente 4% de todos os carvalhos plantados estavam viçosos; não mais do que 15%
haviam conseguido sobreviver. O Ministério da Agricultura por fim retirou seu endosso do método
de plantio de Lissenko, mas só depois que cerca de 1 bilhão de rublos haviam sido desperdiçados.*

Foi um revés monumental. Tão sólida, porém, era a autoridade de


* O equivalente atual desse montante é difícil de computar, pois as taxas de câmbio oficiais da época refletiam mais os desejos do Partido
Comunista do que a realidade financeira. Mas, para contextualizar esse valor, podemos dizer que, em 1956, um sexto da força de trabalho
soviética tinha renda anual média de cerca de 3 mil rublos.

397
Licenkoe tão repletas de seus protegidos estavam as fileiras da biologia soviética que somente em
1964 o Kremlin resolveu dar um basta definitivo. O professor descalço ainda conseguira convencer
o sucessor de Stálin de que era o homem capaz de criar o milagre agrícola soviético. De fato,
quando Khruschov foi retirado ignominiosamente do posto pelo Soviete Supremo (e substituído por
Brejnev), correram boatos de que um dos principais motivos dessa intervenção fora a frustração
generalizada diante da confiança que Khruschov continuara depositando no camarada Lissenko. O
professor descalço acabou falecendo em 1976. Sua família solicitou que seu corpo fosse enterrado
no cemitério nacional russo mais prestigioso, no convento Novodievitch. O pedido foi negado.

Ao narrar a parábola de Lissenko, não pretendo nem por um instante sugerir que o destino da
ciência soviética sob o controle desse néscio seja de alguma forma comparável ao estado das
pesquisas contemporâneas no Ocidente, mesmo no ambiente universitário mais politicamente
carregado. Mas esse caso extremo deve bastar para demonstrar que ideologia — de qualquer tipo —
e ciência são, na melhor das hipóteses, cônjuges incompatíveis. Por certo, a ciência pode descobrir
verdades desagradáveis, mas o crucial é que são verdades. Qualquer iniciativa, maligna ou bem-
intencionada, de ocultar a verdade ou de impedir sua divulgação é deletéria. Em nossa sociedade
livre, cientistas dispostos a estudar temas com ramificações políticas acabaram pagando um preço
injusto em inúmeras ocasiões. Em 1975, quando Edward O. Wilson, da Harvard, publicou
Sociobiologia, uma análise monumental dos fatores evolutivos subjacentes ao comportamento de
animais — desde formigas, a sua área de especialização, até seres humanos —, ele enfrentou uma
tempestade de reprovação na literatura profissional e também na mídia popular. O título de um livro
anti-Wilson publicado em 1984 dizia tudo: Not in our genes* Wilson chegou a ser agredido
fisicamente, quando manifestantes contrários ao determinismo genético que viam em sua obra
jogaram um garrafão de água em sua cabeça numa reunião pública. Do mesmo modo, Robert
Plomin, cuja obra sobre a genética da inteligência humana será mencionada mais adiante, julgou a
academia ame-
* Literalmente, ”Não está em nossos genes”. O livro foi publicado em português como Genética e política (Lisboa:

Europa-América, 1987). (N. T.)

r
ricana tão hostil que resolveu deixar a Universidade da Pensilvânia e mudar-se para a Inglaterra.

Há um inevitável florescimento de paixões quando a ciência ameaça perturbar ou redefinir nossos


pressupostos acerca da sociedade humana ou as concepções que temos a nosso próprio respeito —
nossa identidade de espécie, nossa identidade individual. Não há pergunta mais radical que esta:
será que sou o que sou devido a uma seqüência de as, ts, gs e cs herdada de meus pais ou às
experiências que vivenciei desde que o espermatozóide de meu pai e o óvulo de minha mãe se
fundiram muitos anos atrás? Francis Galton, o pai da eugenia, foi o primeiro a formular a questão
em termos de herança versus ambiente, cujas implicações se espraiam por áreas menos filosóficas e
mais práticas. Será que todos os estudantes de matemática nascem iguais, por exemplo? Se a
resposta for ”não”, talvez seja um desperdício de tempo e dinheiro enfiar equações diferenciais
goela abaixo de pessoas como eu, que simplesmente não são constituídas para absorver esse tipo de
coisa. Numa sociedade construída sobre um ideal igualitário, a noção de que todos os homens não
nascem iguais é anátema para muitos. Não só o que está em jogo é bastante grave como as questões
em si são difíceis de resolver. Todo indivíduo é produto dos genes e do meio ambiente: como
podemos desvencilhar os dois fatores e determinar o grau da contribuição de cada um? Se
estivéssemos lidando com ratos de laboratório, poderíamos realizar uma série de experimentos
simples, envolvendo procriação e aprendizado sob condições específicas uniformes. Felizmente,
porém, os seres humanos não são ratos, de modo que esses dados esclarecedores são difíceis de
obter. A importância do tema e a quase impossibilidade de resolvê-lo a contento favorecem
discussões sempre acaloradas. Mas uma sociedade livre não pode se esquivar de perguntas sinceras
feitas com sinceridade. O crucial é que as verdades que vierem a ser descobertas sejam aplicadas
exclusivamente de maneira ética.

Na ausência de dados confiáveis, o debate herança/ambiente fica inteiramente sujeito aos fluxos e
refluxos das transformações sociais. No início do século xx, no apogeu do movimento eugênico, a
herança reinava absoluta. Mas, quando as falácias da eugenia se tornaram evidentes, culminando
nas terríveis aplicações pelos nazistas e outros, os fatores socioambientais começaram a
preponderar. Em 1924, John Watson (nenhum parentesco comigo), o pai america-
398

399
no de uma influente escola de psicologia conhecida como ”behaviorismo”, resumiu da seguinte forma o seu
ponto de vista pessoal em relação à dicotomia herança/ambiente:

Dêem-me uma dúzia de bebês saudáveis, bem formados, e um mundo bem especificado no qual criá-los, e
garanto que posso selecionar qualquer um a esmo e treiná-lo para ser o tipo de especialista que eu selecionar
— médico, advogado, artista,
empresário e, sim, até mesmo mendigo ou ladrão —, sejam quais forem seus talentos, pendores, tendências,
habilidades, vocações e a raça de seus antepassados.
A idéia da criança como uma tabula rasa — uma folha em branco na qual a experiência e a
educação podem escrever qualquer futuro — encaixava-se harmoniosamente com o programa
liberal que brotou na década de 1960. Os genes i (e o determinismo que representam) estavam
fora. Relegando a hereditaridade, os psiquiatras passaram a apregoar que a doença mental é causada
por variedades de estresse ambiental — uma afirmação que gerou culpa e paranóia incomensuráveis
entre os pais dos afligidos, que se perguntavam: onde foi que erramos? A tabula rasa continua sendo
o paradigma predileto dos defensores politizados de certas concepções cada vez mais insustentáveis
acerca do desenvolvimento humano. Entre algumas inveteradas linhas-duras do movimento
feminista, por exemplo, a noção de diferenças biológicas — vale dizer, genéticas — na aptidão
cognitiva dos dois sexos é algo impronunciável: homens e mulheres têm de ser igualmente capazes
de aprender qualquer tarefa, ponto final. O fato de os homens serem mais presentes em algumas
áreas e as mulheres em outras é, segundo essas teóricas, uma simples conseqüência de pressões
sociais divergentes: a tabula masculina é inscrita visando a um destino, a feminina, outro. E tudo
começa quando colocamos um cobertorzinho rosa sobre a menina e um cobertorzinho azul sobre o
menino.

Hoje vemos o pêndulo se afastar da posição socioambiental extrema corporificada por meu
homônimo. E não é coincidência que nosso afastamento do behaviorismo coincida com os
primeiros vislumbres da genética que subjaz ao comportamento. Como vimos no capítulo 11,
durante anos a genética humana ficou muito aquém da genética da mosca-das-frutas e de outras
criaturas devido à falta de marcadores genéticos e à impossibilidade de realizar experimentos de
procriação com pessoas. Porém, desde 1980, com a introdução de marcadores
400

genéticos baseados no dna, a análise de traços humanos pelo mapeamento dos genes correlatos tem
avançado a passos largos. Compreensivelmente, a maior parte desse esforço foi despendido
atendendo a necessidade humana mais urgente de que a genética é capaz: o diagnóstico e tratamento
de doenças herdadas . também se têm pesquisado algumas questões não-médicas. Robert Plomin,
por exemplo, recorreu a essa abordagem para caçar os genes que afetam o qi, aproveitando ao
máximo um encontro de crianças superdotadas dos Estados Unidos inteiros, que se realiza todos os
anos em Iowa. Com um qi médio de 160, esses garotos levemente assustadores são um ponto de
partida óbvio para a busca de genes capazes de afetar o qi. Plomin comparou o dna desses jovens
com amostras do dna de crianças ”normais”, cujo qi está na faixa média (como o meu e os seus,
caros leitores),* e, de fato, encontrou uma tênue associação entre um marcador genético no
cromossomo 6 e um qi estratosférico. Ali estava um motivo para supor que um ou vários genes
naquela região poderiam, de algum modo, contribuir para o qi. É evidente que qualquer mecanismo
que regule um traço tão complexo provavelmente envolve inúmeros genes.

No capítulo 11, examinamos as dificuldades de mapear traços poligènicos, como as doenças


cardíacas, que são produzidas por diversos genes, cada um com um pequeno efeito individual, cada
um dos quais é mediado pelo ambiente. Os traços de comportamento geralmente se enquadram
nessa categoria. Pelo que sabemos, portar a variação apropriada no cromossomo 6 não garante, em
si, genialidade: existem, sem dúvida, variantes necessárias a serem descobertas em outros genes.
Por outro lado, mesmo uma sólida base genética pode acabar em nada se o indivíduo não for criado
num ambiente em que aprender e raciocinar tenham primazia sobre assistir a programas infantis no
canal Nickleodeon. Mas a descoberta e o reconhecimento de uma base molecular da inteligência é o
tipo de avanço que só a revolução genética poderia promover.

Antes dos marcadores genéticos do dna, o feijão-com-arroz da genética comportamental eram os


estudos de gêmeos. Há duas variedades de gêmeos: os ”fraternôS |_ditos bivitelinos ou dizigóticos],
que significa que dois indivíduos se
* O meu é 122, uma marca respeitável, mas nada estelar. Descobri espiando sorrateiramente tona lista sobre a mesa do meu
professor quando tinha onze anos de idade.

401
desenvolveram de dois óvulos distintos, cada um fecundado por um espermatozóide diferente, e os
”idênticos” [univitelinos ou monozigóticos], que significa que ambos vieram de um mesmo óvulo
fertilizado, o qual, no início de seu desenvolvimento (geralmente no estágio de oito ou de dezesseis
células), se dividiu em duas massas celulares. Geneticamente, os gêmeos bivitelinos não são mais
parecidos do que quaisquer outros dois irmãos; os univitelinos, porém, são geneticamente idênticos
— e, portanto, sempre do mesmo sexo (ao passo que os dizigóticos podem ou não ser). É
surpreendente que só tenhamos compreendido essa diferença fundamental entre os dois tipos há não
muito tempo. Em
1876, quando Francis Galton sugeriu pela primeira vez que os gêmeos poderiam ser úteis para
determinar as contribuições relativas da hereditariedade e da formação, ele ainda não estava ciente
dessa diferença (cujos fundamentos tinham sido elaborados apenas dois anos antes) e equivocou-se
ao julgar possível que gêmeos de sexos diferentes pudessem provir de um mesmo óvulo fertilizado.
Suas publicações subseqüentes, no entanto, deixam claro que essa mensagem acabou chegando ao
seu conhecimento.

Em todo o mundo, cerca de quatro em cada mil gestações são de gêmeos univitelinos, e estas não
parecem ser mais do que um acidente aleatório. A gestação gemelar bivitelina, por outro lado, pode
ser hereditária e varia conforme a população: um grupo na Nigéria está no topo da lista (quarenta
em cada mil gestações), enquanto no Japão a proporção cai para três em cada mil.

A premissa básica do tipo usual de estudo com gêmeos é que ambos os membros de um par de
gêmeos do mesmo sexo, univitelinos (uv) ou bivitelinos (bv), são criados da mesma maneira (isto é,
recebem doses comparáveis de ”cultura”). Suponhamos que o nosso interesse seja uma
característica simples e mensurável, como a altura. Se bvI e bv2 foram criados com um mesmo
regime de alimentação, amor etc, qualquer diferença de altura entre ambos pode então ser atribuída
a algum efeito combinado de diferenças genéticas e de diferenças culturais sutis que possam ter se
esgueirado na sua criação (por exemplo, bvI bebia seu leite até o fim e bv2 sempre deixava um
resto). Porém, se realizarmos o mesmo programa com uvl e uv2, o fato de ambos serem
geneticamente idênticos elimina as variações gênicas como fator possível e, portanto, todas as
diferenças de altura deverão ser uma função apenas dessas diferenças ambientais sutis. Mantidas
estáveis as demais condições, gêmeos idênticos tenderão a ser mais semelhantes em altura do que os
fraternos, e o grau da semelhança nos dá
402

uma medida de como os fatores genéticos influenciam a altura. Do mesmo modo, o grau de
semelhança dos qis dos gêmeos idênticos em relação ao dos fraternos reflete o efeito da variação
genética sobre o qi.

Esse tipo de análise também é aplicável à hereditariedade das doenças genéticas. Dizemos que dois
gêmeos são ”concordantes” quando ambos tên a mesma doença. Uma concordância maior entre
gêmeos univitelinos do que entre gêmeos bivitelinos é um forte indício da base genética de uma
doença por exemplo, há 25% de concordância para o diabetes tardio entre gêmeos fraterrios (ou
seja, se um deles padece da doença, há uma chance em quatro de que o mesmo ocorra com o outro),
ao passo que os gêmeos idênticos são 95% concordantes nessa doença (se um deles é vítima, então
dezenove em cada vinte vezes o outro também será). A conclusão? O diabetes tardio possui um
forte componente genético. Porém, mesmo aqui o ambiente desempenha um papel evidente: não
fosse assim, a concordância seria 100% entre gêmeos univitelinos.

Uma velha crítica a esse tipo de estudo com gêmeos refere-se à metodologia: gêmeos univitelinos
tendem a ser tratados de forma mais indiferenciada do que gêmeos bivitelinos pelos pais, que às
vezes transformam a semelhança num verdadeiro fetiche: é comum que gêmeos idênticos sejam
vestidos com o mesmo tipo de roupa, um hábito que alguns estendem até a idade adulta, com efeitos
hvisitados. É, sem dúvida, uma crítica legítima, na medida em que a similaridade mais pronunciada
dos gêmeos univitelinos (quando comparada com a dos bivitelinos) é interpretada como indício de
influência genética, quando na realidade pode ser apenas reflexo dos padrões culturais mais
similares que eles participam. Além disso, há uma agravante adicional: como saber se dois gêmeos
do mesmo sexo são univitelinos ou bivitelinos? ”É fácil”, alguém poderá dizer, ”basta olhar para
eles.” Errado. Num número pequeno mas significativo de casos, os pais tomam gêmeos fraternos
por idênticos (e, portanto, tendem a aplicar a eles a velha rotina da supersimilaridade de costumes
— os mesmos babadinhos cor-de-rosa para mulher e, de modo oposto, uma pequena proporção de
pais de gêmeos idênticos equivocadamente supõe que sejam fraternos (e veste um com babadinhos
rosa e outro com babadinhos verde-limão). Felizmente, as técnicas de identificação genômica
vieram para salvar os estudos com gêmeos dessa comédia à erros e existe um teste que determina
com certeza se dois gêmeos são o que se supõe que sejam, univitelinos ou bivitelinos. Os grupos de
gêmeos com identidade equivocada servem então como um controle experimental perfeito: por
403
plo, diferenças de altura entre gêmeos fraternos não podem ser atribuídas a diferenças culturais
exem

se os pais os criaram como gêmeos idênticos.

Talvez nenhum outro tipo de estudo com gêmeos chame mais atenção popular do que a análise de
gêmeos idênticos separados logo após o nascimento. Nesses casos, os ambientes em que são criados
tendem a ser bem diferentes, de modo que semelhanças marcantes são atribuíveis àquilo que eles
têm em comum: os genes. Isso dá boa matéria de jornal: lemos reportagens sobre gêmeos idênticos
que foram separados logo após o nascimento e acabam descobrindo que ambos têm um sofá de
veludo vermelho na sala ou um cachorro chamado Lulu. Por mais intrigantes que sejam tais
semelhanças, tudo indica que sejam meras coincidências. É quase certo que não existe um código
gênico que determina preferência por estofados vermelhos ou regule impulsos de nomenclatura
canina. Em termos estatísticos, numa lista de mil atributos — marca e modelo de carro, programa
de televisão favorito etc. — de quaisquer duas pessoas, é inevitável encontrar várias coincidências.
E nas reportagens sobre gêmeos são esses atributos que viram notícia, geralmente em matérias do
tipo Acredite Se Quiser. Meu co-autor e eu dirigimos caminhonetes Volvo e apreciamos um ou dois
coquetéis, mas por certo não somos aparentados.

Populares ou não, os estudos com gêmeos têm uma história de altos e baixos. Parte da má reputação
provém da controvérsia em torno de sir Cyril Burt, o ilustre psicólogo britânico que tanto fez para
promover o uso de gêmeos em estudos sobre os aspectos genéticos do Qi. Depois que faleceu em
1971, um exame detalhado da sua obra revelou que parte dela era fraudulenta — alegouse que sir
Cyril não se esquivava de inventar alguns gêmeos aqui e ali se precisasse aumentar o universo de
suas amostragens. A veracidade dessas acusações ainda é discutida, mas uma coisa é inegável: o
caso lançou uma sombra de desconfiança não só sobre os estudos com gêmeos, mas também sobre
todas as tentativas de compreender o fundamento genético da inteligência. Na realidade, a
combinação do caso Burt e da hipersensibilidade política diante do tema fez secar as verbas para
pesquisas, praticamente paralisando-as. Se não houver dinheiro, não há pesquisa. Tom Bouchard, da
Universidade de Minnesota, um respeitado cientista cujo gigantesco estudo de 1990 sobre gêmeos
criados longe um do outro redefiniu esse tipo de pesquisa, enfrentou tantas dificuldades para obter
financiamento que se viu forçado a pedir ajuda a uma organização de extrema direita que apoia a
genética comportamental a fim de promover sua própria plataforma política questionável. Fundado
em 1937, o Pioneer Fund inclui entre seus primeiros luminares Harry Laughlin, o geneticista
especializado emgat nhas que encontramos no capítulo 1 e que, ao dirigir sua atenção para os seres
humanos, passou a integrar a vanguarda do racismo científico americano. Segundo os estatutos da
organização, o Pioneer Fund pretende o ”aprimoramento racial com referência especial ao povo dos
Estados Unidos”. O fato de pesquisadores sérios como Bouchard terem de escolher entre buscar
patrocinadores tao comprometidos e ver o seu trabalho perecer é uma veemente acusação aos
órgãos federais que financiam pesquisas científicas: os impostos dos contribuintes estão sendo
distribuídos de acordo com mérito político, nao cientifico.

***O estudo com gêmeos de Bouchard em Minnesota revelou que diversos traços de personalidade
- avaliados por meio de testes psicológicos padrão eram substancialmente afetados por genes. Na
verdade, mais de 50% de habilidade encontrada numa ampla gama de características — tem
incidência dade por exemplo - era causada basicamente por variações subjacentes nos
c *n rpm um efeito mínimo

genes Bouchard, surpreso, concluiu que nossa formação tem u

sobre nossa personalidade. ”Em diversos parâmetros de personalidade e temperamento, de


interesses ocupacionais e de lazer, de atitudes sociais, gêmeos umvitelinos criados longe um do
outro são quase tão similares quanto gêmeos umv
telinos criados juntos.” Em outras palavras, quando se uai r

mensuráveis da personalidade, a herança parece triunfar sobre o ambiente ausência do impacto da


formação sobre o desenvolvimento da personalidade e no entanto, deixou Bouchard intrigado.
Nossa formação tem pouco
dados continuam mostrando que o ambiente exerce uma influencia considera vel Gêmeos idênticos
criados longe um do outro são tao similares quanto os
criados juntos, embora em ambos os casos haja, , _
os membros do par. Haveria um aspecto do meio ambiente distinto da formação osmemu y rai na
vida do feto dentro

em si’ Suseriu-se que variações na expenencia pre-nai*1’

em si. oug M v r diferenças pequenas nesse

do útero talvez sejam importantes, pois ate mesmo cüierem v H

estágio incipiente- quando, afinal, o cérebro ainda está se desenV° °Até podem tei~$’J:í impacto
significativo sobre a pessoa que iremos nos tornar, sêmeos univitelinos podem vivenciar contextos
uterinos muito í eren e ,

, - / f s-z o do óvulo fecundado na ças aos caprichos da natureza na implantação (a


rixaç*1’-’

parede do útero) e na formação da placenta. A idéia popular de que toJ °S gêmeos idênticos
compartilham uma mesma placenta (e, portanto,
405
404
tes uterinos semelhantes) é errada: 25% dos gêmeos univitelinos são gestados em placentas distintas
e estudos mostram que esses gêmeos diferem mais entre si do que aqueles que compartilharam a
mesma placenta.

O elefante na sala de estar de todos os estudos com gêmeos é a genética da inteligência. Em que
medida nossa sagacidade mental é determinada pelos genes? A experiência cotidiana é suficiente
para provar que há muita variação por aí. Quando eu lecionava na Harvard, vi de perto um padrão
mais do que familiar: em uma dada população, existem alguns que de fato não são nada brilhantes,
alguns que são incrivelmente espertos e uma vasta maioria que está no meio-termo. O fato de o
cenário dessas observações empíricas ser Harvard, onde a população já foi pré-selecionada segundo
o viés da inteligência, não faz diferença: as mesmas proporções persistem em qualquer grupo.
Evidentemente, essa distribuição na chamada ”curva do sino” é capaz de descrever quase qualquer
traço variável dos seres humanos: a maioria de nós é medianamente alta, mas existem algumas
pessoas altíssimas e outras baixíssimas. Porém, quando usada para descrever variações na
inteligência humana, a curva do sino já demonstrou seu potencial de gerar uma espantosa
animosidade. O motivo disso é que, numa terra de oportunidades iguais, onde cada um é livre para
progredir até onde sua capacidade lhe permitir, a inteligência é um traço com profundas implicações
socioeconômicas: medi-la é prever como alguém se sairá na vida. Com isso, o debate herança /
ambiente se entrelaça com as aspirações mais nobres da nossa sociedade meritocrática. Dada a
complexidade da interação entre os dois fatores, será que conseguiremos avaliar seus respectivos
pesos de maneira confiável? Pais inteligentes não só transmitem genes inteligentes como também
tendem a criar seus filhos de maneiras que favorecem o crescimento intelectual, confundindo assim
efeitos gênicos e socioambientais. Esse é o motivo de os estudos com gêmeos serem tão valiosos:
eles nos permitem analisar os componentes da inteligência.

O estudo de Bouchard e outros anteriores ao dele constataram que até


70% das variações de qi podem ser atribuídas a variações genéticas correspondentes — um
poderoso argumento da primazia da herança sobre o ambiente. Mas será que isso realmente
significa que nosso destino intelectual está, em essência, estampado em nossos genes — que a
educação (ou até mesmo o livrearbítrio) tem pouco a ver com a pessoa que somos? Em absoluto.
Como acontece com todos os traços, é ótimo que sejamos contemplados com genes favoráveis, mas
a formação pode ter grande influência na definição de nosso estatuto
406

como indivíduo, pelo menos naquela enorme região mediana da curva do sino onde as variações de
condição social são basicamente determinadas.

Vejamos o caso de um grupo no Japão, os buraku — descendentes dos japoneses que, por costume
feudal, eram outrora condenados a realizar as tarefas ”impuras” da sociedade, como matar animais.
Apesar da modernização da sociedade japonesa, os buraku continuam sendo forasteiros pobres e
marginalizados, com um qi oscilando entre dez e quinze pontos abaixo da média nacional. Seriam
eles geneticamente inferiores ou será que o seu qi apenas reflete uma posição social inferior? Tudo
indica que a segunda hipótese seja verdadeira. Os buraku que emigram para os Estados Unidos,
onde são indistinguíveis de outros nipo-americanos, apresentam um aumento de qi e, com o tempo,
a diferença de quinze pontos em relação a seus compatriotas desaparece. A educação faz diferença.

Em 1994, Charles Murray e Richard Herrnstein publicaram o livro The bell curve [A curva do
sino], no qual argumentavam que, a despeito do efeito inegável e consagrado da educação, as
discrepâncias no qi médio de diferentes raças seriam atribuíveis aos genes. Era uma afirmação
controvertida ao extremo, mas não tão simplória quanto muitos supuseram. Murray e Herrnstein
compreenderam que a dupla constatação da existência de uma base genética para o Qi e das
diferenças entre os qis médios de diversos grupos não leva diretamente à conclusão de que os genes
são responsáveis pelas diferenças existentes entre esses grupos. Imagine a semeadura de uma
determinada planta cuja altura varia segundo ditames genéticos. Coloquemos um grupo de sementes
num canteiro com solo de excelente qualidade e outro num canteiro com solo fraco; em ambos os
canteiros haverá variações de altura — alguns indivíduos serão mais altos que outros, conforme o
esperado em virtude da variação genética. Mas também observamos que a altura média das plantas
no canteiro de solo pobre é menor do que a altura média das plantas no canteiro de solo rico. O
meio ambiente, aqui sob a forma de qualidade do solo, afetou as plantas. Embora a genética seja
fator dominante na determinação das diferenças de altura entre as plantas de cada canteiro (se todos
os outros fatores permanecerem constantes), ela não tem nada a ver com as diferenças observadas
entre os dois canteiros.

Será que o mesmo argumento se aplica aos afro-americanos, que também se saem pior que os
demais americanos nos testes de qi? Como o índice de pobreza entre os afro-americanos é
relativamente alto, havendo uma grande proporção de indivíduos arraigados no solo educacional
mais pobre das
407
periferias
das grandes cidades dos Estados Unidos, o ambiente com certeza contribui para seu mau
desempenho nos testes. Todavia, a tese de Murray e Herrnstein é que a discrepância é tão grande
que dificilmente o meio ambiente poderia justificá-la. Do mesmo modo, fatores ambientais, por si
sós, não dão conta de explicar por que, em termos globais, os asiáticos têm um Qi mais elevado que
os demais grupos raciais. Confesso que preferiria não ter de conviver com a idéia de variações
mensuráveis entre a inteligência média dos diversos grupos étnicos. Entretanto, ainda que as
afirmações contidas em The bell curve sejam questionáveis, não deveríamos deixar que pruridos
políticos nos impeçam de continuar pesquisando nessa direção.

Talvez não haja prova mais auspiciosa do papel do meio ambiente na inteligência humana do que o
efeito Flynn — o fenômeno da tendência ascendente do Qi em todo o mundo, batizado com o nome
do psicólogo neozelandês que foi o primeiro a descrevê-lo. Nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e
outras nações industrializadas para as quais possuímos dados confiáveis, esse aumento tem variado
de nove a vinte pontos por geração desde os primeiros anos do século xx. Considerando o que
conhecemos dos processos evolutivos, de uma coisa podemos ter certeza: não está havendo uma
modificação genética em massa da população global. Logo, essas mudanças precisam ser
reconhecidas basicamente como fruto da melhoria nos padrões gerais de educação, saúde e nutrição.
É certo que outros fatores que ainda não compreendemos também são importantes, mas o efeito
Flynn é útil para confirmar que, no final das contas, mesmo um traço cuja variação seja determinada
em grande parte por diferenças genéticas é bastante flexível. Não somos meros marionetes cujos
cordões são manipulados por nossos genes.

A descoberta de que há um importante componente genético em nosso comportamento não deveria


espantar; pelo contrário, seria muito mais surpreendente se não fosse assim. Somos todos produtos
da evolução: entre nossos antepassados, a seleção natural sem dúvida exerceu uma poderosa
influência sobre todos os traços que contribuíram para a sua sobrevivência. A mão humana, com seu
maravilhoso polegar oponível, é produto da seleção natural. No passado, portanto, devem ter
existido diversas outras formas de mão, até que a seleção natural favoreceu a versão que possuímos
hoje, promovendo a disseminação das
408

1
variantes genéticas subjacentes a ela: desse modo, a evolução garantiu que todos os membros da
nossa espécie seriam dotados desse bem supremamente valioso.

O comportamento também é crucial à sobrevivência humana e, portanto, rigorosamente regido pela


seleção natural. Podemos presumir que nosso entusiasmo por alimentos doces e gordurosos adveio
desse modo. Nossos ancestrais viviam sob pressão para satisfazer suas necessidades nutricionais;
logo, a propensão a tirar máximo proveito de todos os alimentos energéticos sempre que estes
estivessem disponíveis foi um benefício extraordinário. A seleção natural deve ter favorecido as
variações genéticas que asseguraram uma predileção por alimentos doces, pois esse gosto favorece
a sobrevivência. Hoje esses mesmos genes se tornaram o flagelo de todos os que lutam para perder
peso naquelas regiões do mundo onde há abundância de alimentos: o que era um fator de adaptação
para nossos antepassados se tornou um fator de desadaptação.

Nossa espécie é extremamente social; portanto, nada mais lógico do que inferir que a seleção
natural tenha outrora favorecido adaptações genéticas que facilitassem a interação social. Não só
certos gestos (por exemplo, sorrir) teriam evoluído como um meio de o indivíduo indicar o seu
estado de ânimo aos demais membros do grupo como é provável que tenha havido fortes pressões
seletivas em prol de adaptações psicológicas que permitissem ao indivíduo julgar as intenções
alheias. Todos os grupos sociais são propensos ao parasitismo; sempre há aqueles que desejam se
beneficiar do fato de pertencerem à comunidade sem contribuir para o bem comum. A capacidade
de detectar esses bicões é vital para o sucesso de uma dinâmica social cooperativa. E, embora não
nos
Uma ilustração vitoriana de um bebê agindo como manda a natureza.

409
reunamos mais em grupos pequenos ao redor da fogueira para assar o jantar comunal, o dom de
pressentir o estado de espírito e as motivações alheias pode, não obstante, provir dessas primeiras
fases de nosso desenvolvimento como espécie social.

Desde a publicação de Sociobiologia, de Edward O. Wilson, em 1975, as abordagens evolutivas


para compreendermos o comportamento humano também evoluíram, dando origem a uma nova
disciplina: a psicologia evolucionista. Nesse campo, buscam-se denominadores comuns em nosso
comportamento (ou seja, a natureza humana, a saber, aquelas características que todos nós
compartilhamos — desde um montanhês da Nova Guiné até uma dama parisiense), os quais
tentamos compreender, traço a traço, em termos das possíveis vantagens adaptativas proporcionadas
por cada um no passado. Algumas correlações desse gênero são simples e relativamente
incontroversas: o reflexo de agarrar dos recém-nascidos, por exemplo, que conseguem usar as mãos
e os pés para suspender o peso total do corpo, é presumivelmente um legado da época em que a
capacidade de prender-se a uma mãe hirsuta era importante para a sobrevivência das crianças.

Mas a psicologia evolucionista não restringe seu escopo a faculdades tão mundanas. Será que a
representação relativamente pequena de mulheres nas ciências matemáticas é um fato cultural
universal, ou será que éons de evolução selecionaram os cérebros masculino e feminino para
propósitos diferentes? É possível entender em termos estritamente darwinistas a tendência de
homens
A maravilha cultural

que é o Homo sapiens. Duas noções contrastantes de

elegância: Paris, década de 1950,

e os planaltos de Papua-Nova Guiné. A psicologia evolucionista busca denominadores

comuns subjacentes aos nossos mais divergentes comportamentos.

410

mais velhos se casarem com mulheres mais jovens? Como uma adolescente irá produzir mais filhos
do que uma mulher de 35 anos de idade, será que esses homens estão sucumbindo ao poder de um
instrumental evolutivo que exorta cada um a maximizar sua prole? Do mesmo modo, será que
mulheres mais jovens buscam homens ricos de idade porque no passado a seleção natural favoreceu
essa preferência — um macho poderoso com recursos abundantes? Por ora, qualquer resposta a
essas perguntas será mera conjectura, mas, à medida que formos descobrindo mais sobre os genes
subjacentes ao comportamento, estou certo de que a psicologia evolucionista migrará da sua posição
atual no limiar da antropologia para o cerne dessa disciplina.

Por enquanto, o poder dos genes de afetar o comportamento fica mais evidente em outras espécies,
cuja natureza podemos de fato manipular recorrendo a alguns truques genéticos. Um dos truques
mais antigos — e mais eficazes — é a seleção artificial, que os fazendeiros usam há muito tempo
para aumentar a produção de leite das vacas ou a qualidade da lã dos carneiros. Mas as aplicações
do método não se restringiram a traços agrícolas valiosos como esses. Os cães provêm dos lobos —
possivelmente de indivíduos lupinos que perambulavam pelas povoações humanas em busca de
sobras de alimentos, prestando uma oportuna ajuda na eliminação de lixo. Acredita-se que
começaram a fazer jus ao título de ”melhor amigo do homem” há cerca de 10 mil anos, o que teria
coincidido com a origem da agricultura. No breve intervalo de tempo desde então, a diversidade
anatômica e comportamental promovida pelos criadores de cães chega a espantar. Exposições de
cães são verdadeiras celebrações do poder dos genes, em que cada raça é para todos os efeitos uma
linhagem gênica isolada — um fotograma congelado no espetacular longa-metragem da diversidade
genética canina. As diferenças morfológicas são, por certo, as mais marcantes e divertidas de
considerar: a bola fofa que é o pequinês; o enorme e felpudo mastiff inglês, que chega a pesar quase
150 quilos; o salsichíssimo bassê; o buldogue de cara achatada. Mas são as diferenças
comportamentais que eu acho mais impressionantes.

É claro que nem todos os cães de uma mesma raça têm o mesmo comportamento (ou a mesma
aparência), mas em geral os indivíduos de cada uma têm muito mais em comum entre si do que com
espécimes de outras raças. O labra-
411
dor é ágil e afetuoso; o galgo é crispado e irrequieto; o cão pastor escocês irá apascentar qualquer
objeto disponível se não houver um rebanho de carneiros por perto; o pit buli, como as reportagens
policiais às vezes nos lembram, são a materialização canina da agressividade. Alguns
comportamentos caninos são tão entranhados que se tornaram estereótipos. Basta pensar na elegante
posição de ”apontar” dos pointers: não se trata de um ”truque bobo” que se ensina a um animal de
estimação, mas um componente da constituição genética da raça. A despeito dessa diversidade,
todos os cães modernos continuam sendo membros da mesma espécie — o que significa que, em
princípio, até o mais dessemelhante casal é capaz de ter filhotes, como demonstrou em 1972 um
impávido bassê que cruzou com uma enorme dinamarquesa adormecida. Treze ”bassês
dinamarqueses” foram gerados.

Embora a base da maioria dos comportamentos seja certamente poligênica — afetada por diversos
genes —, algumas manipulações gènicas simples em camundongos revelaram que a modificação de
um único gene pode ter um grande efeito comportamental. Em 1999, o neurologista de Princetonjoe
Tsien usou técnicas sofisticadas de dna recombinante para criar um ”camundongo inteligente”
dotado de cópias adicionais de um gene que produz a proteína que atua como receptora de sinais
químicos no sistema nervoso. O roedor transgênico de Tsien saiu-se melhor do que os camundongos
normais numa bateria de testes de aprendizagem e memória; por exemplo, era mais competente em
decifrar labirintos e em reter esse conhecimento. Tsien deu a essa linhagem de camundongo o nome
”Doogie” em homenagem ao jovem estudante de medicina do programa de tv Doogie Howser, M.D.
Em 2002, na Harvard, Catherine Dulac descobriu que, se suprimisse um gene do seu camundongo
experimental,

m
O impacto de um único gene. À esquerda, uma mamãe camundongo dedicada à prole. A mãe da fotografia da direita, que carece de um
gene fos-B funcional, ignora os filhotes recém-nascidos

412

Um casal recém-acasalado de arganazes-do-campo contempla a seqüência de DNA do gene que os torna tão amorosos.

conseguiria modificar o processamento das informações químicas contidas nos feromônios (os
odores que os camundongos usam para se comunicar). Camundongos machos normais tendem a
atacar outros machos quando tentam se acasalar com as fêmeas, mas os machos alterados de Dulac
não conseguiam distinguir entre machos e fêmeas e tentavam cruzar com qualquer camundongo que
encontrassem pela frente. Até o comportamento materno dos camundongos mostrou-se sujeito a
manipulações específicas ao sexo de um único gene. As fêmeas cuidam instintivamente de seus
filhotes, mas Jennifer Brown e Mike Greenberg, da Faculdade de Medicina de Harvard,
descobriram uma maneira de dar um ”curto-circuito” nesse instinto inato desativando a função de
um gene chamado fos-B. Os camundongos fêmeas alterados, embora normais à primeira vista,
ignoram por completo seus filhotes.

Os roedores nos proporcionaram um vislumbre da base mecanicista daquilo que em seres humanos
chamamos ”amor” (e que nos roedores recebe a designação menos romântica de ”acasalamento”).
Os arganazes são comuns por toda a América do Norte. Embora todos pareçam iguais, diferentes
espécies têm modos de vida radicalmente diferentes. Os que habitam planícies são monógamos, o
que vale dizer que os casais se juntam pela vida inteira; mas os arganazes montanheses, parentes
íntimos, são promíscuos: os machos cruzam e seguem adiante, fazendo com que as fêmeas
produzam ao longo da vida crias de diversos machos diferentes. Que diferenças podem estar por
trás de estratégias sexuaistáo divergentes? Os hormônios oferecem a primeira parte da resposta. Em
todos os mamíferos, a oxitocina está presente em diversos aspectos da maternidade: é ela que
estimula as contrações do trabalho de parto e a produção de leite para o recém-nascido. Portanto,
também está envolvida na criação de um estreito laço entre a mãe e seus filhotes. Será que o mesmo
hormônio poderia gerar outro tipo de vínculo, o laço existente entre os casais de
413
arganazes-do-campo? De fato, é o que acontece, com a participação de outro hormônio mamífero
corriqueiro, a vasopressina, conhecida sobretudo por controlar a produção de urina. Ora, mas por
que os arganazes montanheses, que também produzem os dois hormônios, são criaturinhas tão
lascivas quando comparadas com seus primos do campo? A resposta, acabamos por descobrir, está
nos receptores de hormônios — as moléculas que se ligam aos hormônios circulantes, iniciando a
reação das células aos sinais enviados pelo hormônio.

Tom Insel, psiquiatra da Universidade Emory, decidiu se concentrar no receptor de vasopressina e


encontrou uma importante diferença entre as duas espécies de arganaz — não no gene do receptor
em si, mas numa região adjacente do dna que determina quando e onde o gene é ativado. Como
resultado, existe uma grande diferença na distribuição dos receptores de vasopressina entre o
cérebro do arganaz-do-campo e o do arganaz montanhês. Mas será que apenas essa diferença no
controle do gene explica por que uma espécie é, em I termos humanos, carinhosa e a outra
altaneira? Aparentemente sim. Insel e seu colega Larry Young inseriram o gene da vasopressina dos
arganazes-do-campo j (incluindo a região controladora vizinha) num camundongo normal de
laboratório (uma espécie em geral promíscua, como os arganazes montanheses). Embora o
camundongo transgênico não se tornasse um romântico inveterado de uma hora para outra, Insel e
Young observaram uma nítida mudança no seu comportamento. Em vez de agir como um
camundongo típico, acasalando com a fêmea e dando o pinote rudemente, o macho transgênico
parecia terno e solícito com a fêmea. Em suma, o acréscimo do gene, embora não assegurasse um
amor imorredouro, parece ter contribuído para que o camundongo afetado deixasse de agir com
espírito de rato.

Não devemos esquecer que o funcionamento do cérebro humano está a milhões de quilômetros do
de um rato. Nenhum roedor, seja das montanhas ou dos campos, jamais produziu uma grande obra
de arte. Porém, vale ter em mente a lição mais sensata do Projeto Genoma Humano, a saber, a
extraordinária semelhança entre o nosso genoma e o dos camundongos. O aparato genético básico
que rege homens e ratos não mudou muito nos últimos 75 milhões de anos de evolução desde que
nossas linhagens se separaram.
414

Ao contrário dos geneticistas especializados em roedores, que podem visar a genes específicos para
desativar ou reforçar, os geneticistas humanos precisam se fiar no que poderíamos chamar de
”experimentos naturais — mudanças genéticas espontâneas que afetam o funcionamento do
cérebro. Muitas doenças genéticas bem caracterizadas afetam o desempenho mental. A síndrome de
Down, causada por uma cópia extra do cromossomo 21, resulta num qi mais baixo que a média e,
em muitos casos, num temperamento cativante e afável. Pacientes com síndrome de Williams,
provocada pela perda de um pequeno trecho do cromossomo 7, também têm qi reduzido, mas
muitos possuem um talento musical quase sobrenatural.

Mas esses são casos em que, na realidade, os aspectos mentais de determinada doença são
subproduto de uma disfunção sistêmica e, portanto, dizem-nos relativamente pouco acerca da
genética específica de um comportamento. E mais ou menos como descobrir que nosso computador
não funciona quando falta força. Certo; agora sabemos que o computador requer energia elétrica,
embora continuemos desconhecendo quase tudo sobre o próprio funcionamento do aparelho. Para
entendermos a genética do comportamento, temos de examinar as doenças que afetam a mente de
modo direto.

Entre os flagelos mentais que atraíram a atenção dos mapeadores de genes, talvez os dois mais
temíveis sejam o transtorno bipolar (ou psicose maníacodepressiva) e a esquizofrenia. Ambas as
doenças têm fortes componentes genéticos (a concordância para o transtorno bipolar entre gêmeos
idênticos chega a
80%; para a esquizofrenia, fica em torno de 50%) e ambas cobram um preço devastador da saúde
mental em todo o mundo. Uma em cada cem pessoas e esquizofrênica; a mesma proporção vale
para o transtorno bipolar.

Como vimos, mapear traços poligênicos é difícil porque o efeito de cada gene é apenas incrementai
e o traço, em sua totalidade, costuma ser fortemente mediado pelo ambiente — é o que ocorre
nessas duas enfermidades. No entanto t3.’ dificuldade intrínseca também contribuiu para gerar um
mau hábito entre os pesquisadores, que tendem a publicar apenas os resultados positivos e deixam
de divulgar todo o campo das possibilidades eliminadas. Para tornar o problema ainda mais
complexo, existe o caso inverso: o impulso compreensível (mas, em última análise,
contraproducente) de publicar qualquer correlação que se apresente ao pesquisador depois que
incontáveis outros marcadores genéticos se revelaram um beco sem saída. Em termos ideais,
encontrar uma
415
correlação deveria ser apenas o começo de uma análise mais aprofundada que permitisse separar
resultados significativos de coincidências estatísticas — afinal, se experimentarmos um número
suficiente de marcadores, é de se esperar que, mesmo não havendo um vínculo genético, acabemos
encontrando alguma correlação produzida pelo acaso. Muitas vezes as pressões para mostrar
resultados levam à divulgação prematura dos resultados, que então precisam ser
constrangedoramente retratados quando outros grupos não se mostram capazes de reproduzir a
descoberta.

Há outros empecilhos na caça aos genes quando o alvo são as doenças mentais. Por mais que os
manuais psiquiátricos busquem padronizar o diagnóstico, este continua sendo muitas vezes mais
uma arte do que uma ciência. Alguns casos podem ter sido identificados a partir de sintomas
ambíguos e, portanto, é possível que uma parcela dos indivíduos de uma linhagem receba um
diagnóstico equivocado: esses ”falsos positivos” provocam o caos na análise do mapeamento. Outro
fator complicador é que essas doenças são definidas e diagnosticadas de acordo com seus sintomas;
ora, é bastante provável que diversas causas genéticas resultem num quadro semelhante de
sintomas. Assim, os genes subjacentes à esquizofrenia podem diferir de caso para caso. Mesmo
diferenças aparentemente nítidas entre síndromes podem se mostrar confusas quando vistas pelo
microscópio da genética. Sabemos desde 1957 que o transtorno bipolar e o transtorno unipolar (a
condição caracterizada apenas por depressão) são síndromes geneticamente distintas — embora, só
para confundir, exista uma certa sobreposição gênica entre ambas: a depressão unipolar é muito
mais comum entre parentes de pacientes com transtorno bipolar do que na população em geral.

Em parte por esses motivos, os agentes genéticos culpados pelas doenças mentais ainda
permanecem bastante esquivos. Um estudo recente revelou que doze cromossomos — metade do
total — talvez contenham genes que favorecem a esquizofrenia. O mesmo se dá no transtorno
bipolar, no qual genes de dez cromossomos parecem estar implicados. Uma descoberta interessante
é que de fato parece haver uma certa sobreposição entre as regiões gênicas identificadas em estudos
de mapeamento distintos das duas doenças. Assim, talvez haja alguns genes responsáveis pela
organização e pela estrutura gerais de nosso cérebro. O mau funcionamento desses genes seria então
a causa dos episódios de delírio ou alucinação comuns ao transtorno bipolar e à esquizofrenia. A
história

W
dessas pesquisas é repleta de grandes esperanças que deram em nada. Um estudo identifica uma
forte correlação numa linhagem, mas pesquisas subseqüentes não conseguem generalizar o
resultado em outras populações. Foi o que aconteceu em 1987 com um célebre estudo do transtorno
bipolar entre os amish: uma promissora conexão com o cromossomo 11 redundou em nada em
estudos posteriores. Neil Risch e David Botstein, dois geneticistas de Stanford, articularam essas
decepções de modo eloqüente:

Em nenhuma área a dificuldade [de mapear os genes da doença] foi mais frustrante do que no
campo da genética psiquiátrica. O caso da psicose maníaco-depressiva [transtorno bipolar] é típico.
De fato, pode-se afirmar que a história recente dos estudos de vínculos genéticos dessa doença só
encontra paralelo no curso da doença em si. Como uma montanha-russa, a euforia de descobertas de
vínculos é substituída pela disforia da não-reprodução [em outras populações] — assim tem sido a
existência de muitos profissionais de genética psiquiátrica, e também de seus observadores
interessados.
Mesmo reconhecendo tais dificuldades, sinto-me bastante esperançoso de estarmos ingressando
numa era da análise genética que logo deixará para trás esse irritante jogo de esconde-esconde dos
genes. Duas inovações são a chave desse avanço. Primeiro, a abordagem do ”gene candidato”.
Agora que afinal dispomos da seqüência completa do genoma humano e de um entendimento
funcional rudimentar de muitos genes, podemos dirigir nossa busca com uma precisão antes
impossível, concentrando-nos nos genes com funções relacionadas a determinada doença. No caso
do transtorno bipolar, por exemplo, uma afecção aparentemente ligada a falhas no mecanismo pelo
qual o cérebro regula a concentração de certos neurotransmissores químicos (como a serotonina e a
dopamina), podemos decidir nos concentrar nos genes que produzem neurotransmissores ou seus
receptores. Uma vez escolhido o gene candidato, simplesmente comparamos a seqüência desse gene
em indivíduos afetados e não-afetados pela doença, deterninando assim se uma variante estaria ou
não correlacionada com a enfermidade. Em 2002, a equipe de Eric Lander no Instituto Whitehead
do mit estudou 76 genes candidatos do transtorno bipolar. Somente um — o gene que codifica o
fator de crescimento neural específico do cérebro, o agente neuroquímico tido como um possível
tratamento para o mal de Lou Gehrig (veja capítu-
416

417
Io 5) — apresentou correlação com a doença. Mas mesmo um único gene, se verdadeiramente
relevante, pode ser muito valioso. O gene encontrado está localizado no cromossomo 11,
aparentemente comprovando o estudo original realizado com os amish, que muitos anos antes
implicara a mesma região desse cromossomo no transtorno bipolar.

O outro motivo do meu otimismo em relação à caça a esses genes esquivos diz respeito aos
aperfeiçoamentos técnicos. Para detectarmos o efeito sutil de determinado gene, precisamos de
análises estatísticas ultra-sensíveis, as quais, por sua vez, exigem enormes quantidades de dados. Só
com a introdução do seqüenciamento em escala industrial e das tecnologias de tipificação gênica é
que adquirimos a capacidade de coletar apropriadamente os dados provenientes da gigantesca
quantidade de marcadores de um número gigantesco de pessoas. Como seria de esperar, análises
genéticas desse porte estão fora do alcance da maioria dos laboratórios acadêmicos, de modo que
começaremos a ver empresas de biotecnologia, financiadas pela indústria farmacêutica, com uma
participação cada vez mais proeminente nessa área. Em 2002, duas dessas empresas, a Genset na
França e a decoDE na Islândia, identificaram genes distintos relacionados à esquizofrenia. Tais
descobertas são um grande passo na direção certa: uma vez identificados os próprios genes — em
vez da região cromossômica em que atuam —, torna-se possível estudar a função gênica e assim
conhecer a base bioquímica da doença. Curiosamente, os dois genes contribuem para regular a
função de um neurotransmissor específico, o glutamato.

Essas novas abordagens — genes candidatos e mapeamento gênico superpoderoso — me deixam


confiante de que em breve encontraremos os principais genes envolvidos no transtorno bipolar e na
esquizofrenia. Esperamos que levem a tratamentos melhores e também a um entendimento mais
sólido de

como os genes regem o funcionamento do nosso cérebro.

Todavia, no caso de traços cuja base neuroquímica permanece uma grande incógnita, a montanha-
russa de expectativas eufóricas e decepções disfóricas irá provavelmente continuar. É o que costuma
acontecer em estudos de comportamento não-patológico. A análise que Dean Hamer realizou em
1993 sobre a genética da homossexualidade masculina é um bom exemplo. Hamer provocou um
grande rebuliço ao encontrar determinada região do cromossomo x que parecia estar correlacionada
com a homossexualidade. Se fosse provado que ser gay é tanto uma função dos genes quanto,
digamos, a cor da pele, então tal-
418

vez a mesma legislação antidiscriminatória aplicável à cor da pele devesse se aplicar aos
homossexuais. Entretanto, a constatação de Hamer não resistiu ao teste do tempo. Seja como for,
desconfio que, à medida que formos desenvolvendo meios estatísticos mais poderosos de análise (e
aprendermos a reconhecer e descartar as correlações mais fracas), acabaremos por identificar
fatores genéticos que nos predispõem às nossas respectivas orientações sexuais. Todavia, isso não
deve ser interpretado como uma conjectura puramente determinista, pois o meio ambiente nunca
pode ser relegado e predisposição não significa predeterminação. Ainda que a minha pálida
epiderme possa me predispor ao câncer de pele, na ausência de raios ultravioleta no ambiente esses
genes permanecerão em mero estado de potencialidade.

A outra descoberta de grande visibilidade feita por Hamer parece ter bases mais sólidas. Ele
resolveu investigar a genética subjacente à busca de novidades, uma das cinco ”dimensões-chave da
personalidade” identificadas pelos psicólogos. Você se encolhe num canto quando sua rotina é
interrompida? Ou faz o possível e o impossível para evitar o ramerrame, submetendo-se a um
caleidoscópio de novas aventuras? Esses, é claro, são os extremos. O estudo de Hamer apontou para
o efeito discreto mas significativo de uma variação em um gene subjacente a um receptor de
dopamina, uma molécula indispensável na regulação dos sinais do cérebro. Embora algumas
tentativas de reproduzir seus resultados tenham fracassado, outras os confirmaram e ampliaram,
identificando o mesmo gene implicado em tipos específicos da busca do novo — incluindo a
toxicomania.

A violência também pode ser vista pela ótica da genética. Algumas pessoas são mais violentas que
outras. Isso é um fato. E sabemos que o comportamento violento pode ser regido por um único gene
em interação com fatores ambientais. É evidente que isso não significa que somos todos portadores
de um ”gene da violência” (embora seja provável que a maioria dos indivíduos violentos possua um
cromossomo y), mas o fato é que já identificamos pelo menos uma alteração gênica simples capaz
de provocar rompantes violentos. Em 1978, o dr. Hans Brunner, um geneticista clínico do Hospital
Universitário de Níjmegen, na Holanda, soube de uma família na qual os homens eram limítrofes do
retardamento mental e propensos a episódios de agressividade. Trinta anos antes, numa tentativa de
documentar essa ”maldição”, um membro da família compilara um extenso dossiê dos infortúnios
de seus parentes. Brunner atuali-
419
zou esse levantamento e encontrou oito homens do clã que, apesar de virem de outras famílias
nucleares, apresentavam padrões de violência similares. Um estuprara a irmã e, mais tarde,
esfaqueara um guarda da prisão; outro usara o carro para atropelar o chefe depois que este o
repreendera levemente por sua indolência; dois outros eram incendiários.

O fato de apenas homens serem afetados sugeria uma vinculação ao sexo. O padrão de
hereditariedade era compatível com um gene situado no cromossomo x — e recessivo, ou seja, não
costumava se expressar nas mulheres, nas quais a outra cópia (normal), localizada no segundo
cromossomo x, encobriria os efeitos da cópia defectiva. Nos homens, que só possuem um
cromossomo x, a variante recessiva expressava-se automaticamente. Comparando o dna de
membros afetados e não afetados da família, Brunner e sua equipe localizaram o gene no braço
longo do cromossomo x. Em colaboração com Xandra Breakfield, do Massachusetts General
Hospital, ele constatou que os oito homens violentos tinham uma cópia mutante — e não-funcional
— de um gene que codificava a monoamina oxidase. Essa proteína, encontrada no cérebro, controla
os níveis de uma classe de neurotransmissores chamados ”monoaminas”, que incluem a adrenalina
e a serotonina.

A história da monoamina oxidase não termina com os oito holandeses violentos. Ela também nos
oferece um vislumbre elucidativo da interação entre genes e meio ambiente, o complexo dueto de
herança e ambiente que dá forma a todos os nossos comportamentos. Em 2002, Avshalom Caspi e
outros do Instituto de Psiquiatria de Londres decidiram estudar por que alguns rapazes provenientes
de lares violentos se tornavam adultos normais e outros se tornavam anti-sociais (na acepção técnica
do termo de um histórico de problemas comportamentais — não no sentido de preferirem namorar
na Internet ao contato pessoal, ou de, nas festas, ficarem beliscando canapés num canto solitário). A
pesquisa revelou um fator genético preditivo: a presença ou ausência de uma mutação na região
adjacente ao gene da monoamina oxidase e que controla a quantidade de enzima produzida. Garotos
maltratados com um nível elevado dessa enzima tinham menos probabilidade de se tornarem anti-
sociais do que aqueles com níveis reduzidos da enzima. Neste último caso, os genes e o meio
ambiente conspiram para predispor os rapazes a uma vida pontilhada de encontros com a lei. As
moças tendem a ser menos afetadas, pois, como o gene está localizado no cromossomo x, elas têm
de herdar
420

duas cópias da versão geradora de baixos níveis enzimáticos, não apenas uma. Mas aquelas que
possuem duas cópias mutantes do gene tendem a apresentar o mesmo comportamento anti-social
que os rapazes afetados — embora, também aqui, seja nos rapazes, seja nas moças, a relação
causalnão chegue nem de longe a 100%; em outras palavras, sofrer violência na infância e na
adolescência e ter baixos níveis de monoamina oxidase não são, em absoluto, sinôni-

mo de uma carreira criminosa.

Uma das descobertas mais surpreendentes envolvendo impactos monogênicos sobre uma forma
complexa de comportamento humano é o que a mídia passou a chamar de ”gene da gramática”.
Como vimos no contexto da evolução humana (capítulo 9), Tony Mônaco, em Oxford, verificou em
2001 que as mutações que havia detectado no gene foxp2 prejudicavam a capacidade de usar e
processar a linguagem. Não só as pessoas afetadas tinham dificuldade em se expressar como
acabavam paralisadas por raciocínios gramaticais elementares com os quais crianças de quatro anos
de idade não têm problema algum: ”Todos os dias

eu lumo. Ontem eu ”. Vale lembrar que o foxp2 codifica um fator de


transcrição — um comutador gênico — que aparentemente favorece o desenvolvimento do cérebro.
Em vez de exercer um simples impacto comportamental direto (como o da monoamina oxidase), o
foxp2 afeta o comportamento moldando o órgão que está no cerne de todos os comportamentos.
Acredito que esse gene acabará se revelando um modelo para futuras descobertas decisivas; se eu
estiver certo, descobriremos que muitos dos genes mais importantes que regem o comportamento
estão envolvidos na construção desse mais extraordinário dos órgãos, essa ainda inescrutável massa
suprema de matéria cinzenta — o cérebro humano. Esses genes nos influenciam graças ao modo
como elaboram essa requintada peça de hardware que medeia tudo o que fazemos.

Ainda estamos nos primórdios de nossas tentativas de entender a genética subjacente ao nosso
comportamento — tanto no que se refere ao que temos em comum (a natureza humana) quanto
àquilo que nos distingue uns dos outros. É uma área de pesquisas em perpétua agitação; estou certo
de que o que escrevi estará desatualizado no momento em que este livro for publicado. O futuro
promete uma dissecação genética minuciosa da personalidade e é difícil imaginar que o que viermos
a descobrir não fará a balança do debate herança/
ambiente pender cada vez mais na direção da herança — uma idéia assustadora para alguns, mas
somente se insistirmos em continuar reféns de uma dicotomia estática e, em última análise, sem
sentido. Constatar que determinado traço, mesmo um com tremendas implicações políticas, possui
uma base primordialmente genética não significa descobrir algo fixo e imutável. Significa apenas
compreender a herança sobre a qual o ambiente nunca deixa de atuar, e as coisas que nós, como
sociedade e individualmente, precisamos fazer se quisermos participar desse processo. Não
devemos permitir que considerações políticas efêmeras norteiem programas científicos. Por certo,
talvez descubramos verdades que nos deixarão inquietos à luz das nossas circunstâncias atuais, mas
é com essas circunstâncias — não com a verdade da natureza — que os legisladores devem se
preocupar. Como compreendiam muito bem as crianças irlandesas que lotavam as hedge schoob, o
conhecimento, mesmo adquirido da forma mais exótica, será sempre preferível à ignorância.
422

Coda

Nossos genes e nosso futuro


”O evento em que se funda esta obra de ficção não é, presumem o dr. Darwin e certos autores
alemães de fisiologia, de impossível ocorrência.”

Assim começa o prefácio anônimo de Percy Bysshe Shelley para o romance de sua esposa, Mary
Shelley, Frankenstein, uma história cujo domínio sobre a imaginação moderna superou em muito
tudo o que o próprio poeta escreveu. Talvez nenhuma outra obra desde Frankenstein tenha captado
tão assustadoramente as terríveis emoções que acometem a ciência no momento em que se vê diante
do segredo da vida. E é provável que nenhuma outra tenha refletido tão a fundo sobre as
conseqüências sociais de nos apropriamos de um poder tão semelhante ao dos deuses.

A idéia de animar o inanimado e de aperfeiçoar a vida que ocorre naturalmente na Terra já cativara
a imaginação humana muito antes da publicação do livro de Mary Shelley em 1818. A mitologia
grega nos fala de um escultor, Pigmalião, que consegue convencer Afrodite, a deusa do amor, a
insuflar vida na estátua de uma linda mulher que ele esculpira em marfim. Mas foi durante o
frenético rompante de progresso científico após o Iluminismo que os cientistas pela primeira vez se
deram conta de que o segredo da vida talvez estivesse ao alcance do ser humano. Na verdade, o dr.
Darwin ao qual o prefácio de Shelley se refere não é o nosso conhecido Charles, mas seu avô,
Erasmus, cujo uso experimental da eletricidade para reanimar pedaços de cadáveres fascinou seu
conterrâneo. Em retrospecto, sabemos que as investigações do dr. Darwin acerca do que se conhecia
como ”galvanismo” foram um rebate falso: o segredo da vida permaneceria secreto até 1953. Só
com a descoberta da dupla-hélice e a revolução genética subseqüente tivemos motivo para supor
que poderes tradicionalmente tidos como prerrogativa dos deuses poderiam um dia ser nossos. A
vida,
423
tal como a conhecemos, nada mais é que uma vasta gama de reações químicas coordenadas. O
”segredo” dessa coordenação é um complexo e arrebatador conjunto de instruções inscritas —
quimicamente — em nosso dna.

Mas ainda há um longo caminho a percorrer em nossa jornada até o pleno entendimento de como o
dna atua. No estudo da consciência humana, por exemplo, nosso conhecimento é rudimentar a
ponto de alguns elementos do vitalismo ainda persistirem, apesar de tais noções já terem sido
desmascaradas em outras áreas. Seja como for, o nosso entendimento da vida e a nossa capacidade
comprovada de manipulá-la são hoje fatos consumados da nossa cultura. Não chega a surpreender,
pois, que tantos tenham seguido os passos de Mary Shelley: artistas e cientistas, igualmente,
mostram-se sequiosos de explorar as ramificações de nosso recém-adquirido conhecimento
genético.

Muitos desses feitos são superficiais e revelam apenas o desconhecimento de seus criadores do que
é e não é biologicamente exeqüível. Mas há uma obra em especial que, a meu ver, se destaca das
demais e, de maneira requintada, impressionante e convincente, levanta questões importantes.
Refiro-me ao filme Gattaca (1997), de Andrew Niccols, que leva até os limites atuais da nossa
imaginação as implicações de uma sociedade obcecada com a perfeição genética. No filme, que se
passa num mundo futuro, existem dois tipos de seres humanos: a classe dominante geneticamente
aprimorada e a subclasse que vive com os dotes genéticos imperfeitos dos seres humanos de hoje.
Análises supersensíveis de dna garantem que os empregos mais lucrativos sejam reservados à elite
genética, enquanto os ”in-válidos” sofrem toda sorte de discriminação. O herói de Gattaca é o ”in-
válido” Vincent (Ethan Hawke), imprudentemente concebido num frêmito de paixão por um casal
no banco traseiro de um carro. Ao contrário de Vincent, seu irmão caçula, Anton, é concebido em
laboratório, recebendo todos os melhores atributos genéticos. À medida que os dois vão crescendo,
Vincent é sempre lembrado da sua inferioridade toda vez que tenta, sem sucesso, superar o irmão
em corridas de natação. Devido à discriminação genética, Vincent é forçado a aceitar um emprego
subalterno como porteiro da Gattaca Corporation.

Na empresa, Vincent acalenta um sonho impossível: viajar pelo espaço. Todavia, para qualificar-se
a uma missão tripulada até Titã, tem de ocultar sua condição de ”in-válido”. Surge então a
oportunidade de assumir a identidade de um membro da elite genética, Jerome (Jude Law), um ex-
atleta que sofreu um

1
acidente, ficou paraplégico e precisa da ajuda de Vincent. Com amostras do cabelo e urina de
Jerome, Vincent consegue ingressar ilicitamente no programa de treinamento para o vôo. Tudo
parece caminhar bem até que ele conhece a escultural Irene (Uma Thurman) e se apaixona por ela.
Uma semana antes de partir para o espaço, acontece um desastre: o diretor da missão é assassinado
e, na investigação policial subseqüente, descobre-se na cena do crime um fio de cabelo de um ”in-
válido”. Um cílio que Vincent perdera ameaça não só pôr fim ao seu sonho desesperado, mas
também implicá-lo injustamente no assassinato do diretor. A derrocada de Vincent parece inevitável,
mas ele consegue ir se esquivando das diligências genéticas da polícia até que, enfim, se descobre
que um outro diretor da Gattaca é o verdadeiro assassino. O final do filme é apenas semifeliz:
Vincent irá para o espaço, mas sem Irene, que descobriu ser portadora de certas imperfeições
genéticas incompatíveis com longas missões espaciais. Na vida real, os dois atores que representam
Vincent e Irene mostraram ter um controle muito mais pessoal sobre o futuro: Ethan Hawke e Uma
Thurman casaram-se tempos depois e hoje vivem em Nova York.

Poucos ou talvez nenhum de nós gostaria de imaginar nossos descendentes vivendo sob o tipo de
tirania genética sugerida por Gattaca. Seja o mundo do filme tecnologicamente exeqüível ou não,
vale a pena refletir um pouco sobre a essência da questão sugerida: será que nossos conhecimentos
acerca do dna tornarão inevitável um sistema de castas genéticas? Um mundo de ricos e pobres
congênitos? Os comentadores mais pessimistas prevêem um cenário ainda pior e se perguntam: será
que um dia criaremos uma raça de clones, condenados a vidas servis em virtude de seu dna? Em vez
de fortalecermos os fracos, será que optaremos por tornar os descendentes dos fortes ainda mais
poderosos? Em termos bem fundamentais: será que devemos de fato tentar manipular genes
humanos? As respostas a essas perguntas dependem muito de como concebemos a natureza
humana.

Hoje, grande parte da paranóia pública em torno dos perigos da manipulação genética de seres
humanos é inspirada por um reconhecimento legítimo de nosso lado egoísta — o aspecto da
natureza humana que a evolução tornou parte integrante de nosso arcabouço para que
sobrevivêssemos, se necessário à custa dos demais. Os críticos prevêem um mundo em que o
conhecimento a-ético será usado exclusivamente para ampliar o hiato entre os privilegiados
(aqueles em melhor posição para aplicar a genética em pro-
424

425
veito próprio) e os oprimidos (para os quais a genética só servirá para agravar sua situação). Ora,
esse ponto de vista só reconhece um dos lados da nossa humanidade.

Se vejo de maneira bem diferente as conseqüências de aprimorarmos nosso conhecimento e know-


how genético, é porque também reconheço uma outra faceta. Por mais propensos a competir que
possamos ser, somos também seres intensamente sociais. Compaixão por quem está necessitado ou
em dificuldade é tanto um elemento genético da nossa natureza quanto a tendência a sorrir quando
estamos contentes. Mesmo que alguns teóricos morais contemporâneos gostem de atribuir nossos
impulsos altruístas a considerações em essência egoístas (a bondade para com os outros seria apenas
um modo condicionado de obter o mesmo benefício em troca), o fato é que a nossa espécie é
singularmente social. Desde que nossos ancestrais uniram forças pela primeira vez para caçar um
mamute para o jantar, a cooperação entre indivíduos permanece no cerne de nossos sucessos. Já que
o agir coletivo é uma poderosa vantagem evolutiva, é provável que a própria seleção natural tenha
dotado cada um de nós com o desejo de ver nossos iguais (e, portanto, a sociedade como um todo)
serem bem-sucedidos.

Mesmo os que aceitam que o impulso para melhorar a sorte alheia faça parte da natureza humana
discordam quanto à melhor maneira de proceder. Este é um tema perene de discussões sociais e
políticas. A ortodoxia dominante sustenta que a melhor maneira de ajudar nossos concidadãos é
resolver os problemas constitutivos da vida social Seres humanos esfomeados, mal-amados e sem
instrução têm um baixo pc yencial de levar vidas produtivas. Porém, como vimos, esses fatores
socioambientais, embora exerçam enorme influência, têm limites — que se revelam drasticamente
nos casos de uma desvantagem congênita profunda. Mesmo com as melhores nutrição e educação
possíveis, garotos com a síndrome do X-frágil jamais serão capazes de cuidar de si mesmos. E não
há instrução no mundo que possa fazer com que indivíduos de aprendizado lento cheguem a ser os
primeiros da turma. Portanto, quem quiser falar a sério sobre melhorar a educação não pode em sã
consciência limitar-se a buscar soluções culturais ou socioambientais. Na realidade, desconfio que
as políticas educacionais tendem a ser estabelecidas por políticos atraídos por slogans engano-
426

sos como ”leave no child behind’” justamente por serem quase impossíveis de rechaçar. Mas
muitas crianças irão ficar para trás se continuarmos insistindo que todas têm o mesmo potencial de
aprendizado.

Ainda não compreendemos por que algumas crianças aprendem mais depressa que outras, nem sei
se um dia chegaremos a compreender. Contudo, se considerarmos quantas noções biológicas hoje
corriqueiras, inimagináveis há cinqüenta anos, se tornaram possíveis graças à revolução genética, a
questão perde sua razão de ser. Na verdade, a grande pergunta é a seguinte: será que estamos
dispostos a tirar pleno proveito do inegável potencial genético para melhorar a condição humana,
individual e coletivamente? Ou, em termos mais imediatos: será que aceitaremos ser orientados por
informações genéticas ao idealizarmos o aprendizado mais adequado às necessidades individuais de
nossas crianças? Será que iremos querer uma pílula que permita a garotos com xfrágil freqüentar a
escola como as outras crianças? Ou uma que torne possível que crianças de aprendizado
naturalmente mais lento acompanhem uma classe com outras de aprendizado naturalmente mais
rápido? E o que dizer da perspectiva ainda mais distante de uma terapia gênica viável com células
da linha germinal? Uma vez identificados os genes relevantes, será que desejaremos exercer no
futuro o poder de transformar alunos obtusos em alunos perspicazes antes mesmo do nascimento?
Nada disso é ficção científica: já conseguimos aperfeiçoar a memória de camundongos. Existe
algum motivo para que nossa meta não seja fazer o mesmo para o homem?

Qual seria a nossa reação visceral a tais possibilidades se na história da humanidade não houvesse a
passagem tenebrosa do movimento eugênico? Será que ainda assim estremeceríamos diante da
expressão ”aprimoramento genético”? Seja como for, a idéia de aperfeiçoar os genes que a natureza
nos legou deixa muitas pessoas alarmadas. Quando a questão são os nossos genes, parecemos mais
que dispostos a cometer o que os filósofos chamam de ”falácia naturalista”, isto é, supor que o
modo pretendido pela natureza seja necessariamente o melhor. Quando ligamos a calefação em
nossas casas no inverno ou tomamos antibióticos na presença de uma infecção, estamos
cuidadosamente nos esquivando dessa falácia em nossa vida cotidiana; mas qualquer menção ao
aprimoramento genético nos faz gritar em altos brados que ”a natureza sabe o que faz”. Por esse
motivo,
”Não deixar nenhuma criança para trás”, lema da ”política educacional” do governo Bush em 2000. (N. T.)

427
passagem tenebrosa do movimento eugênico? Será que ainda assim estremeceríamos diante da
427
acho provável que o aprimoramento genético acabará sendo aceito como uma decorrência dos
esforços empreendidos na prevenção de doenças.

A terapêutica gênica da linha germinal tem o potencial de tornar os seres humanos resistentes ao
flagelo do hiv. Procedimentos de dna recombinante, que permitiram aos geneticistas moleculares
criar batatas resistentes a diversos vírus, poderiam da mesma forma tornar os seres humanos
resistentes à aids. Será que esse é o caminho que devemos seguir? Alguns argumentam que, em vez
de alterarmos os genes das pessoas, deveríamos concentrar nossos esforços em tratar todos os que
puderem ser tratados e em educar todos os demais acerca dos perigos do sexo promíscuo. Eu,
porém, julgo esse tipo de atitude moralista profundamente imoral. A educação já se revelou uma
arma poderosa mas lamentavelmente insuficiente nessa guerra. No momento em que escrevo,
entramos na terceira década da crise mundial da aids; nossas melhores mentes científicas ficaram
mistificadas pela extraordinária capacidade do vírus de se esquivar das tentativas de controlá-lo. E,
embora a disseminação da doença tenha por enquanto se desacelerado no mundo desenvolvido,
ouvimos em vastas regiões do planeta o tique-taque de bombas-relógio demográficas. O futuro
dessas áreas me causa profundo alarme, pois suas populações não são nem ricas nem instruídas o
suficiente para empreender uma reação eficaz. Existe a esperança de que poderosas drogas
antivirais ou vacinas eficazes contra o hiv sejam produzidas em escala econômica o bastante para
estarem disponíveis a qualquer pessoa em qualquer lugar. Porém, considerando o nosso histórico de
desenvolvimento de terapias até essa data, as chances de haver avanços decisivos são escassas. É
lamentável, portanto, que aqueles que propõem o uso de modificações gênicas da linha germinal
para combater a aids talvez tenham de aguardar até que as esperanças convencionais se
transformem em desesperança — e em catástrofe global — antes de serem autorizados a prosseguir.

Em todo o mundo, existe hoje legislação que proíbe aos cientistas acrescentar dna a células
germinais humanas. O apoio a essas leis vem de diversos setores. Grupos religiosos — que
acreditam que mexer com a linha germinal humana é, na realidade, tomar o lugar de Deus —
representam grande parte da oposição automática do público em geral. Da sua parte, os críticos
seculares, como vimos, temera uma transformação social aterradora como a sugerida no filme
Gattaca — em que as desigualdades humanas naturais são grotescamente ampliadas e todo vestígio
de uma sociedade igualitária desaparece. Entretanto,

embora tal premissa seja interessante como roteiro cinematográfico, não é, a meu ver, menos
fantasiosa do que a noção de que a genética é uma via expressa para a utopia.

Porém, mesmo que admitamos hipoteticamente que o aprimoramento genético, como qualquer
outra tecnologia poderosa, possa ser aplicado para fins sociais nefandos, isso só torna ainda mais
necessário que trabalhemos nessa direção. Visto ser quase impossível reprimir o progresso
tecnológico e o fato de grande parte do que hoje é proibido ir rapidamente se tornando praticável,
será que podemos nos dar ao luxo de tolher nossa comunidade de pesquisa e correr o risco de dar
espaço de iniciativa a alguma cultura que não compartilha nossos valores? Desde o momento em
que nossos ancestrais transformaram um pedaço de pau numa lança, os resultados dos conflitos ao
longo da história sempre foram determinados pela tecnologia. É preciso não esquecer que Hitler
pressionava desesperadamente os físicos do Terceiro Reich para que desenvolvessem armas
nucleares. Talvez um dia a luta contra um Hitler moderno dependa de nosso domínio sobre as
tecnologias genéticas.

A meu ver, só existe um argumento verdadeiramente racional para se protelar o avanço das
pesquisas sobre o aprimoramento genético humano. A maioria dos cientistas compartilha essa
dúvida: será que a terapêutica gênica da linha germinal pode ser aplicada com segurança? O caso de
Jesse Gelsinger lançou uma profunda sombra sobre as terapias gênicas em geral. Vale notar, porém,
que ao contrário das aparências, a terapêutica gênica da linha germinal deve, em princípio, ser mais
fácil de aplicar com segurança do que a terapêutica gênica das células somáticas. Nesta última,
introduzimos genes em bilhões de células, de modo que existe sempre a probabilidade de um ou
alguns genes cruciais serem danificados numa dessas células, provocando o pavoroso efeito
colateral do câncer — como aconteceu recentemente na França no tratamento usado contra a
síndrome da imunodeficiência severa combinada. Em contraste, na terapêutica gênica da linha
germinal, inserimos dna em uma única célula e, na seqüência, o processo todo pode ser monitorado
com muito mais rigor. Por outro lado, há muito mais em jogo neste caso: um experimento
fracassado de linha germinal pode causar uma catástrofe impensável — o nascimento de um ser
humano com defeitos nunca imaginados, decor-
428

429
rentes da manipulação de seus genes. As conseqüências seriam trágicas. Não só a família afetada
ficaria mortificada como a humanidade inteira sairia perdendo com esse revés da ciência.

Quando experimentos de terapia gênica em camundongos saem errados, nenhuma carreira é


interrompida, nenhuma verba é cancelada. Mas, se os protocolos de aperfeiçoamento gênico um dia
resultarem em uma criança menos apta — e não mais apta — para a vida, certamente as pesquisas
para aproveitar o poder do dna sofreriam um atraso de muitos anos. Só devemos realizar
experimentos com seres humanos depois de aperfeiçoar métodos para introduzir genes funcionais
em nossos parentes primatas mais próximos. Porém, mesmo quando o aprimoramento gênico de
macacos e chimpanzés já for possível, o início de experimentos com seres humanos exigirá firmeza
e coragem, pois a promessa de benefícios colossais só poderá realizar-se por meio de experimentos
que, em última análise, colocarão vidas em risco. Por outro lado, qualquer procedimento médico
convencional, sobretudo quando novo, exige coragem similar: uma cirurgia cerebral pode dar
errado, mas isso não impede que os pacientes continuem se submetendo a esse tipo de operação
caso as vantagens superem os perigos.

Meu ponto de vista é que, a despeito dos riscos, devemos considerar seriamente a terapêutica gênica
da linha germinal. Só espero que os muitos biólogos que compartilham a minha opinião não se
acanhem nas discussões que hão de vir e não se intimidem com inevitáveis críticas. Alguns de nós
já conheceram na pele o que significa ser pichado com o mesmo pincel outrora reservado para os
eugenistas. Porém, em última análise, este é um preço pequeno a pagar para corrigirmos injustiças
genéticas. Se esse trabalho for chamado de eugenia, então eu sou um eugenista.

Ao longo de toda a minha vida profissional desde a descoberta da duplahélice, meu assombro diante
da majestade do que a evolução instaurou em cada uma de nossas células só encontra
correspondência na agonia que sinto ante a cruel arbitrariedade das desvantagens e defeitos
genéticos, em particular os que afligem a vida de crianças. No passado, a eliminação dessas
mutações gênicas deletérias era prerrogativa da seleção natural, um processo maravilhoso em sua
eficiência mas assustadoramente brutal. Ainda hoje a seleção natural predomina: de uma
perspectiva biológica desapaixonada, uma criança que nasce com a doença de Tay-Sachs e sucumbe
poucos anos depois é vítima de uma seleção
430

contra a mutação de Tay-Sachs. Porém, agora que identificamos muitas das mutações que causaram
tantas desgraças durante tantos anos, temos o poder de deixar a seleção natural de lado. Havendo
alguma forma de diagnóstico antecipado, é certo que qualquer pessoa pensará duas vezes antes de
colocar no mundo uma criança com Tay-Sachs. O bebê tem diante de si a perspectiva de três ou
quatro longos anos de sofrimento, até que a morte lhe chega como uma espécie de libertação
misericordiosa. Portanto, se há alguma questão ética suprema em torno do novo e vasto
conhecimento genético proveniente do Projeto Genoma Humano, esta é, em minha opinião, a
lentidão com que tudo o que aprendemos está sendo aplicado para diminuir o sofrimento humano.
Deixando de lado as incertezas da terapia gênica, considero totalmente inescrupulosa essa
protelação em adotar até mesmo os benefícios mais evidentes e incontroversos. Numa sociedade
como a nossa, em que a medicina está tão avançada, o fato de as mulheres quase nunca serem
submetidas ao exame da mutação x-frágil, mais de uma década depois que este foi criado, só pode
ser um atestado de ignorância ou de intransigência. Toda mulher que ler estas palavras deve saber
que uma das coisas importantes que ela pode fazer como mãe ou futura mãe é coletar informações
sobre os perigos genéticos que ameaçam seus filhos ainda por nascer — buscando os genes
deletérios presentes na sua linhagem familiar e na de seu parceiro, ou, diretamente, no embrião da
criança concebida. E que ninguém sugira que essa mulher não tem direito a esses dados. O acesso a
tais informações é um direito seu, como é seu direito agir com base nelas, pois é ela que terá de
suportar as conseqüências imediatas da sua decisão.

Dois anos atrás, minhas opiniões sobre esse assunto tiveram uma recepção gélida na Alemanha. A
publicação do meu ensaio ”Implicações éticas do Projeto Genoma Humano” no prestigioso jornal
Frankfurter Allgemeine Zeüung provocou uma onda tempestuosa de críticas. Talvez tenha sido essa
a intenção dos editores, pois, sem meu conhecimento (para não falar no meu consentimento), o
jornal dera ao artigo um novo título concebido pelo tradutor: ’A ética do genoma: por que não
devemos deixar o futuro da raça humana nas mãos de Deus”. Embora eu não seja adepto de
nenhuma religião nem faça segredo das minhas opiniões seculares, jamais teria apresentado minha
posição como uma provocação àqueles que pensam de outra maneira. Houve, por exemplo, uma
reação inesperadamente hostil de um homem de ciência, o presidente da Câmara Federal de
Médicos da Alemanha, que me acusou de ”seguir a lógica dos nazistas, que diferenciavam
43i
entre vidas que mereciam viver e vidas que não mereciam”. No dia seguinte, um editorial intitulado
”Uma proposição aética” apareceu no mesmo jornal que publicara meu ensaio. O autor, Henning
Ritter, argumentava com farisaica convicção que, na Alemanha, a decisão de pôr fim à vida de um
feto com danos genéticos jamais deveria ser colocada como uma questão privada. Na realidade, sua
grandiloqüência demonstrava apenas uma ignorância elementar das leis da nação; hoje, na
Alemanha, é direito apenas da gestante, assessorada por seu médico, decidir se leva sua gravidez a
termo ou não.

Os críticos mais respeitáveis foram aqueles que discutiram abertamente com base em suas crenças
pessoais, em vez de explorarem o espectro terrível do passado alemão. O ilustre presidente alemão,
Johannes Rau, refutou meu ponto de vista afirmando que ”valores e entendimento não se baseiam
apenas em conhecimento”. Como protestante praticante, ele acredita nas verdades da revelação
religiosa, ao passo que eu, como cientista, confio apenas na observação e experimentação. Portanto,
devo avaliar toda ação com base na minha intuição moral. E vejo apenas dano desnecessário em
negarmos às mulheres, como querem alguns, acesso ao diagnóstico pré-natal até que haja cura para
os defeitos em questão. Num comentário menos contido, o teólogo protestante Dietmar Mieth
designou meu ensaio de ”Ética do horror”, refutando a minha afirmação de que um conhecimento
maior proporcionará a nós, seres humanos, respostas melhores a dilemas éticos. Ora, a existência de
um dilema implica uma escolha a ser feita e, a meu ver, uma escolha é sempre melhor do que
escolha nenhuma. Uma mulher que descubra que seu feto sofre de Tay-Sachs enfrenta um dilema
acerca do que fazer, mas pelo menos agora ela tem uma opção, ao passo que antes não tinha
nenhuma. Estou certo de que muitos cientistas alemães concordam comigo, embora muitos deles
pareçam ter se deixado intimidar pelo passado político e pelo presente religioso: com exceção de
meu velho e bom amigo Benno Müller-Hill, cujo corajoso livro sobre a eugenia nazista, Tõdliche
Wissenschaft [Ciência mortal], ainda exaspera a academia alemã, nenhum cientista alemão viu
motivo para se manifestar em minha defesa.

Não questiono o direito de as pessoas procurarem na religião uma esfera moral privada, mas não
concordo com o pressuposto de muitos religiosos de que os ateus vivem num vácuo moral. Aqueles
dentre nós que não sentem
432

necessidade de um código moral escrito em um tomo antigo podem, a meu ver, recorrer a uma
intuição moral inata moldada em tempos imemoriais pela seleção natural ao promover coesão social
em grupos de nossos ancestrais.

A dicotomia entre tradição e secularismo provocada pelo Iluminismo determinou, mais ou menos na
sua forma atual, o lugar da biologia na sociedade a partir do período vitoriano. Alguns continuarão
acreditando que os seres humanos são criaturas de Deus, a cuja vontade devemos servir; outros
continuarão preferindo as evidências empíricas que indicam que os seres humanos são produto de
milhões de gerações de mudanças evolutivas. John Scopes, o famoso professor secundário do
Tennessee condenado em 1925 por ensinar a teoria da evolução, permanece sendo simbolicamente
julgado no século xxi: os fundamentalistas religiosos, sequiosos de influírem na elaboração do
currículo das escolas públicas, estão exigindo que uma narrativa religiosa seja ensinada como
alternativa séria ao darwinismo. Por contradizer diretamente o relato religioso da criação, a
evolução constitui a incursão mais inequívoca da ciência no domínio religioso e, em conseqüência,
incita atitudes de defesa incisivas dos criacionistas. Pode ser que, à medida que o conhecimento
genético se expanda em séculos vindouros e um número cada vez maior de indivíduos passe a se
ver como produtos de lances aleatórios do dado genético — ou seja, como misturas randômicas dos
genes dos pais e de algumas mutações igualmente acidentais —, uma nova gnose (na verdade muito
mais antiga que as religiões de hoje) venha a ser santificada. O nosso dna, o manual de instruções
da criação humana, poderá então vir a rivalizar com as escrituras religiosas como guardião da
verdade.

Embora eu não seja religioso, não deixo de ver nas escrituras muitos elementos que são
profundamente verdadeiros. Na primeira epístola que escreveu aos coríntios, por exemplo, Paulo
diz:

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse caridade, seria como
um bronze que soa ou como um címbalo que tine.

Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência,
ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, eu nada seria.

Paulo, no meu entendimento, revelou com clareza a essência de nossa humanidade. O amor, esse
impulso que nos faz ter cuidado com o outro, foi o
433
que permitiu nossa sobrevivência e sucesso no planeta. É esse impulso, creio, que salvaguardará
nosso futuro ao nos aventurarmos em território genético inexplorado. Tão fundamental é o amor à
natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso dna — um
Paulo secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade. Se, algum dia, esses
genes em particular também puderem ser aprimorados pela ciência humana, pondo fim a ódios
mesquinhos e à violência, em que sentido imaginável a nossa humanidade seria diminuída?

Além de retratarem no filme uma visão equivocadamente lúgubre de nosso futuro, os criadores de
Gattaca conceberam uma epígrafe promocional que toca nossos mais profundos preconceitos contra
o conhecimento genético: ”Não existe um gene do espírito humano”. É um perigoso ponto cego da
nossa sociedade que tantos desejem que assim seja. Se a verdade revelada pelo dna puder ser aceita
sem temor, não há por que não depositar esperanças naqueles que nos sucederão.
434

Notas
’$

Introdução: O segredo da vida

13 ”Estamos hoje”: press release da Casa Branca, disponível em http://www.ornl.gov/hgmis/ project/clíntonl .html.

1. Os primórdios da genética

19 ”Pêlos, unhas, veias”: Anaxágoras, citado em F. Vogel e A. G. Motulsky, Human genctics

(Berlim, Nova York: Springer, 1996), p. 11.


22 ”dificílimo para mim”: Mendel, citado em R. Marantz Henig, A monk and two peas (Londres:

Weidenfeld ÔC Nicolson, 2000), pp. 117-18.


29 ”De todos os animais conhecidos”: Charles Darwin, The origin of speríes (Nova York: Penguin,

1985), p. 117. [Tradução de Joaquim da Mesquita Paul para Lello & Irmão Editores.]

31 ”Considero-me”: Francis Galton, Narrative of an explorer in tropical South África (Londres: Ward Lock, 1889), pp. 53-54.

32 ”um demônio”: Willíam Shakespeare, The tempest (IV:i:188-9).

32 ”Não tenho paciência”: Francis Galton, Hereditary geníns (Londres: MacMillan, 1892),

p. 12.

33 ”É fácil”: ibid., p. 1.

33 ”não há mais”: George Bernard Shaw, citado em Diane B. Paul, Controlling human heredity

(Atlantic Highlands, Nova Jersey: Humanities Press, 1995), p. 75.


35 ”Wyandotte é”: ibid., p. 66.
38 ”família com habilidades”: C. B. Davenport, Heredity in relation to eugenics (Nova York: Henry

Holt, 1911), p. 56.

38 ”ombros largos, cabelos castanhos”: ibid., p. 245.

39 ”Mais filhos”: Margaret Sanger, citada em D. M. Kennedy, Birth control in América (New Haven: Yale University Press, 1970), p.
115.

40 ”criminosos, idiotas”: Harry Sharp, citado em E. A. Carlson, The unfit (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor
Laboratory Press, 2001), p. 218.

41 ”Será melhor”: Oliver Wendell Holmes, citado em ibid., p. 255.

435
42 ”Sob as condições existentes”: Madison Grant, Thepassing of thegreat race (Nova York: Scribner, 1916), p. 49.

43 ”a América”: Calvin Coolidge, citado em D. Kevles, In the name of eugenics (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press,
1995), p. 97.

44 ”o representante visionário”: Harry Laughlin, citado em S. Kuhl, The nazi connection (Nova York: Oxford University Press, 1994), p.
88.

44 ”deve declarar”: Adolf Hitler, Mein kampf citado em Paul, p. 86.

44 ”Os que forem”: Adolf Hitler, Mein kampf traduzido por Ralph Manheim (Boston: Houghton

Mifflin Company, 1971), p. 404.


44 ”lei para a”: Benno Müller-Hill, Murâerous sáence (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold

Spring Harbor Laboratory Press, 1998), p. 35.

44 ”relações sexuais”: ibid.

45 ”uma interferência intrometida”: Alfred Russel Wallace, citado em A. Berry Infinite tropics (Nova York: Verso, 2002), p. 214.

45 ”eugenistas ortodoxos”: Raymond Pearl, citado em D. Miklos e E. A. Carlson, ”Engineering American Society: The Lesson of
Eugenics”, Nature Genetics 1 (2000): 153-58.

2. A dupla-hélice

49 ’A hereditariedade garante”: Friedrich Miescher, citado em Franklin Portugal e Jack Cohen, A

century of dna (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1977), p. 107.


59 ”estúpido, preconceituoso”: Rosalind Franklin, citada em Brenda Maddos, Rosalind Franklin

(Nova York: HarperCollins, 2002), p. 82.


68 ”Ninguém me disse”: Linus Pauling, entrevista citada em http://www.achieve-

ment.org/autodoc/page/pau0int-l.
72 ”o mais belo experimento”: John Cairns, citado em Horace Judson, The eighth àay of creation

(Nova York: Simon & Schuster, 1979), p. 188.

3. A leitura do código

84 ”Quando o vi”: Sydney Brenner, My Üfe in seience (Londres: BioMed Central, 2001), p. 26.
87 ”Nós dois somos os únicos”: Francis Crick, citado em Horace Judson, The eighth àay of creation (Nova York: Simon & Schuster,
1979), p. 485.
95 ”Sem que eu tivesse”: Francis Jacob, citado em ibid., p. 385.

4. Bancando Deus

101 ”tão importante quanto”: Jeremy Rifkin, citado por Randall Rothenberg em ”Robert A. Swan-

son: Chief Genetics Officer”, Esquire, dezembro de 1984.


105 ”From corned beef: Stanley Cohen, http://accessexcellence.org/AB/WYW/cohen.

110 ”Ela fazia da ciência”: Paul Berg, citado em http://www.ascb.org/profiles/9610.html.

111 ”cientistas de todo o mundo”: Paul Berg et alii, ”Potential Biohazards of Recombinant DNA Molecules”, carta a Science 185 (1974):
303.
r
111 ”até que os possíveis”: ibid.
111 ”nossa preocupação”: ibid.
111 ”era evidente que os biólogos moleculares”: Michael Rogers, ”The Pandora’s Box Congress”,

RollingStone 189 (1975): 36-48.


115 ”Senti como teria me sentido”: Leon Heppel, citado em James D. Watson ej. Tooze, The dna

story (San Francisco: W H. Freeman and Co., 1981), p. 204.


115 ”Vestindo um paletó carmim”: Arthur Lubow, citado em ibid., p. 121.

117 ”Na edição de hoje”: Alfred Vellucci, citado em ibid., p. 206.

118 ”Comparado com”: Watson, citado em James D. Watson, A passionfor dna (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor
Laboratory Press, 2001), p. 73.

124 ’A gente ganha uma bela medalha”: Fred Sanger, citado em Anjana Ahuja, ”The Doublé Nobel Laureate Who Began the Book of
Life”, The Times (Londres), 12 de janeiro de 2000.

5. dna, dólares e drogas

128 ”tornar-se um”: Herb Boyer, citado em Stephen Hall, Invisible frontiers (Nova York: Oxford University Press, 2002), p. 65.

137 ”um microorganismo vivo”: Diamond vs. Chakrabarty et alii, citado em Nicholas Wade, ”Court Says Lab-Made Life Can Be
Patented”, Science 208 (1980): 1445.

150 ”Pois eu o transformarei”: Jeremy Rifkin, citado em Daniel Charles, horas of the harvest (Cambridge, Massachusetts: Perseus,
2001), p. 94.

6. Tempestade numa caixa de cereais

152 ”se fôssemos seguir”: http://www.nrdc.org/health/pesticides/hcarsosn.asp.

154 ”operando à margem”: Mary-Dell Chilton et alii, citada em Daniel Charles, Lords of the harvest (Cambridge, Massachusetts:
Perseus, 2001), p. 16.

155 ”o cheiro e o calor”: Rob Horsch, citado em ibid., p. 1.

167 ”Um biólogo molecular: Bob Meyer, citado em ibid., p. 132.

171 ”Eu ingenuamente supus”: Roger Beachy, Daphne Preuss e Dean Dellapenna, ”The Genomic

Revolution: Everything You Wanted to Know About Plant Genetic Engineering but Were

Afraid to Ask”, Bulletin of the American Academy of Arts and Sciences, primavera 2002,

p.31.
173 ”Diante do mal da vaca louca”: press release da Friends of the Earth, citado em Charles,

p. 214.
175 ”esse tipo de modificação”: Charles, príncipe de Gales, ”The Seeds of Disaster”, Daily Tele-

graph (Londres), 8 de junho de 1998.


179 ”Se uma linhagem”: E. O. Wilson, The future of life (Nova York: Knopf, 2002), p. 163.

7. O genoma humano

184 ”colocasse Santa Cruz”: Robert Sinsheimer, citado em Robert Cook-Deegan, The gene wars (Nova York: W W Norton & Co., 1994),
p. 79.

436

.L..
437
185 ”programa do Departamento de Energia”: David Botstein, citado em ibid., p. 98.

185 ”o Instituto Nacional”: James Wyngaarden, citado em ibiá., p. 139.

186 ”O projeto implica”: David Botstein, citado em ibid., p. 111. >


186 ”uma ferramenta incomparável”: Walter Gilbert, citado em ibid., p. 88.

189 ”desde o início”: James Wyngaarden, citado em ibid., p. 142.

192 ”A revelação”: Kary B. Mullis, ”The Unusual Origin of Polymerase Chain Reaction”, Scienti-

fic American 262 (abril 1990): 56-65.


192 ”Mullis teve”: Frank McCormick, citado em Nicholas Wade, ’After the Eureka, a Nobelist

Drops Out”, New York Times, 15 de setembro de 1998.


202 ”Se alguém”: William Haseltine, citado em Pauljacobs e Peter G. Gosselin, ”Experts Fret over

Effect of Gene Patents on Research”, Los Angeles Times, 28 de fevereiro de 2000.

202 ”Temos direito”: William Haseltine, citado em ibid.

203 ”eu era”: Francis Collins, citado em entrevista, Christianity Today, Io de outubro de 2001.

204 ”um amontoado”: John Sulston e Georgina Ferry, The common thread (Londres: Bantam Press), p. 123.

204 ”Logo agora que investimos”: Bridget Ogilvie, citada em ibid., p. 125.

207 ”Dê um jeito”: presidente Clinton, citado em Kevin Davies, Cracking tfie code (Nova York: The Free Press, 2001), p. 238.

208 ”Eu adoraria”: Rhoda Lander, citada em Aaron Zitner, ”The dna Detective”, Boston Globe Sunday Magazine, 10 de outubro de 1999.

208 ”um campo árido”: Eric Lander, citado em ibid.


208 ”Eu basicamente”: Eric Lander, citado em ibid.

211 ”Estamos hoje”: press release da Casa Branca, disponível em http://www.ornl.gov/hgmis/ project/clinton 1 .html.

8. Leitura de genomas

215 ”ver a superfície”: Mark Patterson, citado em Kevin Davies, Cracking Üie coâe (Nova York: The

Free Press, 2001), p. 194.


226 ”Devemos confiar”: Bárbara McClintock, parafraseada por Elizabeth Blackburn em

htrp://www.cshl.edu/cgi-bin/ubb/library/ultimatebb.cgi?ubb=get_topic;f=l;t=000015.
232 ”marginalizada”: Claire Fraser, citada em Ricki Lewis, ”Exploring the Very Depths of Life”,

Rennselaer Magazine, março de 2001.


232 ”Bem, minha jovem”: Claire Fraser, citada em ibid.
232 ”Fomos para”: Claire Fraser, citada em ibid.

242 ”um novo tipo”: http://cmgm.stanford.edu/biochem/brown.html.


242 ”Somos bebês”: Pat Brown, citado em Dan Cray, ”Gene Detective”, Time 158 (20 de agosto de

2001): 35-36.

242 ”Era como achar”: Pat Brown, citado em ibid.


246 ”Os embriões são lindos”: Eric Wieschaus, citado em Ethan Bier, The coiled spring (Cold Spring

Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 2000), p. 64.

438

9. A descendência da África

251 ”Era como”: Ralf Schmitz, citado em Steve Olson, Mapping human history (Boston: Houghton-Mifflin, 2002), p. 80.

252 ”Mal posso”: Matthias Krings, citado em Patrícia Kahn e Ann Gibbons, ”dna from an Extinct Human”, Science 277 (1997): 176-78.

253 ”Foi nesse momento”: Matthias Krings, citado em ibid.


256 ”Se todos”: Allan Wilson, citado por Mary-Claire King em http:/ /www.chemherita-

ge.org/EducationalServices/pharm/chemo/readings/king.htm.
261 ”Acabou sendo”: Luigi Luca Cavalli-Sforza, citado em Olson, p. 164.
271 ”Se possuíssemos”: Charles Darwin, The origin of species (Nova York: Penguin, 1985), p. 406.

10. Identificação genômica

284 ”ter uma mulher branca”: Brooke A. Masters, ”For Trucker, the High Road to dna Victory”,

Washington Post, 8 de dezembro de 2001, p. BOI.


284 ”precedente indesejável”: diretor do Departamento de Justiça Criminal de Virgínia, citado em

http:// innocenceproject.org/ case /display_profile.php?id=99.


286 ”perfil nos fornece”: Alec Jeffreys, Victoria Wilson e Swee Lay Thein, ”Hypervariable ”Mini-

satellite’ Regions in Human dna”, Nature 314 (1985): 67-73.


286 ”Em teoria”: Alec Jeffreys, citado em http://www.dist.gov.au/events/ausprize/ap98/jef-

freys.html.
289 ”bem-estabelecida o suficiente”: Fryevs. United States, 293 F.2d 1013, at 104.

291 ’A implementação”: Eric Lander, ”Population Genetic Considerations in the Forensic Use of dna Typing”, em Jack Ballantyne et alii,
dna technology and forensic science (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 1989), p. 153.

292 ”montanha de evidências”: Johnnie Cochran, citado em http://Simpson.walraven.org/sep27.htm.

294 ”Onde está”: Barry Scheck, citado em http://Simpson.walraven.org/aprll.html.

298 ”Estado de Wisconsin”: Geraldine Sealey, ”dna Profile Charged in Rape”, http://abcnews.go.com / sections / us / Daily News /
dna991007.html.

299 ”Homem desconhecido”: caso n° OOF06871, The People of the State of Califórnia vs. John Doe, 21 de agosto de 2000.

299 ”o dna parece”: juiz Tani G. Cantil-Sakauye, caso n° 00F06871, The People of the State of Califórnia vs. Paul Robinson, moção para
absolver, transcrição do relator, p. 136, 23 de fevereiro de 2001.

305 ”Meu filho”: Jean Blassie, citada em Pat McKenna, ”Unknown, No More”, http://www.af.mil/news/airman/0998/unknown.htm.

313 ”A evidência do dna”: lorde Woolf, caso n° 199902010 S2, ”Regina and James Hanratty”, Julgamento, 10 de maio de 2002,
parágrafo 211.

313 ”Em retrospecto”: ”dna Testing Also Proves Guilt”, editorial, St. Petersburg Times, 30 de maio de 2002.

315 ”Os testes de dna”: Barry Scheck et alii, Actual innocence (Nova York: Doubleday, 2000), p. xv.

439
11. Caçadores de genes

317 ”Cinqüenta por cento”: Milton Wexler, citado em Alice Wexler, Mappingfate (Nova York: Random House, 1995), p. 43.

317 ”Certa vez”: George Huntington, citado em Charles Stevenson, ”A Biography of George Huntington, M. D.”, Bulktin of the Institute
of the History of Medicine 2 (1934).

318 ”Os movimentos coréicos”: ibid.

318 ”Com o avanço da doença”: ibid.


318 ”Quando um ou ambos”: ibid.

320 ”sem teatro”: Américo Negrette, citado em Robert Cook-Deegan, The gene wars (Nova York: W. W. Norton & Co., 1994), p. 235.

321 ”tende a pensar”: ibid., 37.

325 ”Nunca sonharíamos”: Ray White, citado em Leslie Roberts, ”Flap Arises over Genetic Map”,

Science 239 (1987): 750-52.


334 ”O cromossomo 7”: Orrie Friedman, citado em Richard Saltus, ”Biotech Firms Compete in

Genetic Diagnosis”, Science 234 (1986): 1318-20.

343 ”um ato de biopirataria”: Rural Advancement Foundation International, em http://www.rafi.org/article.asp?


newsid=207.

344 ”a criação”: Althingi (Parlamento islandês), ”Law on a Health Sector Database”, em http: / / www.mannvernd.is / english / laws /
law.HSD.html.

12. A nova luta da medicina

351 ”Tão marcante”: John Langdon Down, citado em Elaine Johansen Mange e Arthur P. Mange, Basic human genetics (Sunderland,
Massachusetts: Sinauer Associates, 1999), p. 267.

356 ”saúde retumbante”: Kathleen McAuliffe, ”The Hardest Choice”, em http://blueprint.bluecrossmn .com/topic/ hardestchoice.

368 ”Algumas pessoas”: Debbie Stevenson, ”The Mystery Disease No One Tests For”, Redbook, julho 2002: 137.

372 ”holocausto biológico”: Daniel Pollen, Hannah’s heirs (Nova York: Oxford University Press,
1993), p. 14.

379 ”consentimento informado”: press release do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, ”New Initiatives to
Protect Participants in Gene Therapy Trials”, 7 de março de 2000. Disponível em
http://www.fda.gov/bbs/topics/NEWS/NEW00717.html.

13. Quem somos?

387 ”Toda pessoa”: Leis Penais, citadas em http: / /www.law.umn.edu/irishlaw/education.html.

388 ”Poderiam bem”: Arthur Young, citado em Julie Henigan, ”For Want of Education: The Origins of the Hedge Schoolmaster Songs”,
Ulster FoMife 40 (1994): 27-38.

388 ’Agachados ainda”: John O’Hagan, citado em http://www.in2it.co.uk/history/2.html.


392 ”professor de pés descalços”: Vitali Fiódorovitch, citado em David Joravsky, The Lysenko affair (Cambridge, Massachusetts:
Harvard University Press, 1970), p. 189.

440

392 ”camponês turco”: Vitali Fiódorovitch, citado em Valery N. Soyfer, Lysenko and the tragedy of

Soviet science (New Brunswich, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1994), p. 11.
392 ”Ele não precisou”: Vitali Fiódorovitch, citado em ibid., p. 11.

394 ”Para obter”: Trofim Lissenko, citado em Joravsky, p. 110.

395 ”bando de estúpidos”: ibid., p. 226.

396 ”Diz respeito”: K. lu Kostriukova, citado em ibid., p. 247.

396 ”Em nossa concepção”: Trofim Lissenko, citado em ibid., p. 210.


400 ”Dêem-me”: John B. Watson, Behaviorism (Nova York: W W Norton & Co., 1924), p. 104.

405 ”Em diversos parâmetros”: Thomas J. Bouchard et alii, ”Sources of Human Psychological Differences: The Minnesota Study of
Twins Reared Apart”, Science 250 (1990): 223-28.

417 ”Em nenhuma área”: Neil Risch e David Botstein, ’A Manic Depressive History”, Nature Genetics 12 (1996): 351-53.

Coda

423 ”O evento”: Percy Bysshe Shelley, introdução a Mary Wollstonecraft Shelley Frankenstein

(Nova York: Oxford University Press, 1969), p. 13.


431 ”Implicações éticas”: James D. Watson em Frankfurter Allgemeine Zeitung, 26 de setembro

de 2000.

431 ”seguir a lógica”: Jõrg Dietrich Hoppe, citado em Benno Müller-Hill, ”Speaking Out in Favor of the Right to Choose”, Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 5 de dezembro de 2000.

432 ”valores e entendimento”: Johannes Rau, citado em ibid.

432 ”Ética do horror”: Dietmar Mieth em Frankfurter Allgemeine Zeitung, citado em ibid.

433 ’Ainda que eu falasse”: I Coríntios 13:1-2.

441
Leitura adicional
1. Os primórdios da genética

Carlson, Elof Avel. The unfit: a history of a bad idea (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 2002).
Discussão sobre eugenia, desde os tempos bíblicos até a | genética clínica contemporânea.

í Gillham, Nicholas Wright. A life of sir Francis Galton: from African exploration to the birth of eugenics

i (Nova York: Oxford University Press, 2001). Fascinante estudo recente de uma figura extraor-

> dinária mas esquecida.

Jacob, François. The logic of life: a history of hereâity (Princeton: Princeton University Press, 1993).

Reflexões de um dos fundadores da genética molecular.

I Kevles, Daniel J. In the name of eugenics; genetics and the uses of human heredity (Nova York: Alfred

; A. Knopf, 1985). Estudo erudito mas legível da eugenia,

i Kohler, Robert E. Lords of thefly: Drosophila genetics and the experimental life (Chicago: University

of Chicago Press, 1994). Crônica dos primórdios da genética da mosca-das-frutas. Kühl, Stefan. The nazi conneaion: eugenics, American
racism, and German National Socialism (Nova

York: Oxford University Press, 1994).

Mayr, Ernst. This is biology: the science of the living world (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1997). Excelente
panorama de um biólogo que acaba de celebrar o 75° aniversário da obtenção de seu doutorado.

Müller-Hill, Benno. Murderous science: elimination by scientific selection of Jews, Gypsies

, and others in Germany, 1933-1945, traduzido por Todliche Wissenschaft (Nova York:

Oxford University Press, 1988). Revela como os cientistas e médicos alemães estavam

envolvidos nas políticas nazistas e como retomaram seus cargos acadêmicos depois

da guerra.

Olby, Robert C. Origins of Mendelism (Chicago: University of Chicago Press, 1985). Orei, Vitezslav. Gregor Mendel: the firstgeneticist
(Nova York: Oxford University Press, 1996). A biografia mais completa até o momento.

Paul, Diane B. ControUing human heredity, 1865 to present (Atlantic Highlands, Nova Jersey: Huma, nities Press, 1995). Uma história
sucinta da eugenia.
’ 443

L
2. A dupla-hélice

Crick, Francis H. C. What mad pursuit: a personal view of scientific discovery (Nova York: Basic Books, 1988).

Hager, Thomas. Force of nature: the life of Linus Pauling (Nova York: Simon & Schuster, 1995). Uma excelente biografia
de um gigante da ciência.

Holmes, Frederick Lawrence. Meselson, Stàhl, and the replication of dna: a history of ”the most beautiful experiment in
biology” (New Haven: Yale University Press, 2001).

McCarty, Maclyn. The transforming principie: discovering that genes are made of dna (Nova York: W W. Norton & Co.,
1995). Relato dos experimentos que mostraram que o dna era, de fato, o material hereditário, escrito por um dos três
cientistas que os realizaram.

Maddox, Brenda. Rosalind Franklin: the dark lady of dna (Nova York: HarperCollins, 2002). Biografia abrangente que
lança uma nova luz sobre Franklin.

Olby Robert. The path to the double helix: the discovery of dna, prefácio de Francis Crick (Dover Publishers, 1994).
Perspectiva histórica erudita.

Watson, James D. The double helix: a personal account of the discovery of the structure of dna (Nova York: Atheneum
Press, 1968).

3. A leitura do código

Brenner, Sydney. My life in science (Londres: BioMed Central Limited, 2001). Uma rara combinação: elucidativo e
engraçado.

Hunt, Tim, Steve Prents e John Tooze (orgs.). dna makes rna makes protein (Nova York: Elsevier Biomedical Press, 1983).
Coletânea de ensaios resumindo a situação da genética molecular em
1980.

Jacob, François. The statue within: an autobiography, traduzido por Franklin Philip (Cold Spring Harbor, Nova York:
Cold Spring Harbor Laboratory Press, 1995). Lúcido e magnificamente bem escrito.

Judson, Horace Freeland. The eighth day of creation: makers of the revolution in biology, edição ampliada (Cold Spring
Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 1996). Estudo clássico das origens da biologia molecular.

Monod, Jacques. Chance and necessity: an essay on the natural philosophy of modern biology, traduzido por Austryn
Wainhouse (Nova York: Alfred A. Knopf, 1971). Reflexões filosóficas de uma das figuras mais importantes da genética
molecular.

Watson, James D. Genes, girls, and Gamow (Nova York: Alfred A. Knopf, 2001). Continuação de The double helix.

4. Bancando Deus

Frederickson, Donald S. The recombinant dna controversy: a memoir: science, politics, and the public interest 1974-1981
(Washington, D. C: American Society for Microbiology Press, 2001). Relato de uma época turbulenta das pesquisas
biomédicas, escrito pelo então diretor do National Institutes of Health.

444

Krimsky, Sheldon. Genetic alchemy: the social history of the recombinant dna controvery (Cambridge, Massachusetts:
MIT Press, 1982). O ponto de vista de um crítico.

Rogers, Michael. Biohazard (Nova York: Alfred A. Knopf, 1977). Desenvolvimento do perspicaz relato de Rogers sobre o
encontro em Asilomar publicado na Rolling Stone.

Watson, James D. A passionfor DNA: genes, genomes, and society (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor
Laboratory Press, 2000). Coletânea de ensaios publicados em jornais, revistas, conferências e atas do laboratório Cold
Spring Harbor.

Watson, James D., Michael Gilman, Jan Witkowski e Marz Zoller. Recombinant dna (Nova York: Scientific American
Books, distribuído por W. H. Freeman, 1992). Uma introdução já desatualizada mas ainda substancial da ciência básica
subjacente à engenharia genética.

Watson, James D. e John Tooze. The dna story: a documentary history of gene cloning (San Francisco: W H. Freeman and
Co., 1981). O debate em torno do dna recombinant.e narrado por meio de artigos e documentos contemporâneos.

5. dna, dólares e drogas

Cooke, Robert. Dr. Folkman’s war: angiogenesis and the struggle to âefeat câncer (Nova York: Random

House, 2001). Hall, Stephen S. Invisiblefrontiers: the roce to synthesize a human gene (Nova York: Atlantic Monthly

Press, 1987). Narra com grande verve a história da clonagem da insulina. Kornberg, Arthur. Thegolden helix: inside
biotechventures (Sausalito, Califórnia: University Science Books,

1995). O fundador de diversas empresas descreve a ascensão da indústria da biotecnologia. Werth, Barry. The billion-
dollar molecule: one company’s questfor the perfect drug (Nova York: Touchs-

tone Books/Simon & Schuster, 1995). A história da Vertex, uma empresa que exemplifica a

abordagem biotecnológica da indústria farmacêutica.

6. Tempestade numa caixa de cereais

Charles, Daniel. Lords of the harvest: biotech, big money, and the future offood (Cambridge, Massachusetts: Perseus
Publishing, 2001). Relato fascinante da controvérsia em torno dos alimentos transgênicos, com ênfase no aspecto
comercial e atenção especial à Monsanto.

McHughen, Alan. Panâora’s basket: thepotential and hazards of genetically modifiedfoods (Nova York: Oxford
University Press, 2000). Introdução desigual a algumas das questões, incluindo as científicas, por trás da controvérsia.

7. O genoma humano

Cook-Deegan, Robert M. The gene wars: science, politics, and the human genome (Nova York: W. W. Norton & Co.,
1994). Relato brilhante e completo das origens e primórdios do Projeto Geno-

ma Humano.

Davies, Kevin. Cracking the genome: inside the roce to unlock human dna (Nova York: Free Press,
2001). Continuação da obra de Cook-Deegan, chegando até a conclusão da versão preliminar do genoma humano.

445
Sulston, John e Georgina Ferry. The common thread: a story of science, politics, ethics, and the human genome
(Washington, D. C: Joseph Henry Press, 2002). Relato pessoal das pesquisas sobre o verme e o lado britânico do Projeto
Genoma Humano.

8. Leitura de genomas

Bier, Ethan. Coiled spring: how life begins (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring Harbor

Laboratory Press, 2000). Comfort, Nathaniel C. The tangledfield: Barbara McClintock’s searchfor thepatterns of genetic
control

(Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2001). Um relato erudito mas acessível

da vida e obra de Barbara McClintock. Lawrence, Peter A. The making of afly: the genetics of animal design (Boston:
Blackwell Scientific

Publications, 1992). Uma introdução excelente, embora já desatualizada, do entusiasmo que

existe no encontro entre a genética e a biologia do desenvolvimento. Ridley, Matt. Genome: the autobiography of a
species in 23 chapters (Nova York: HarperCollins, 1999).

Introdução bastante acessível aos estudos modernos da genética humana.

9. A descendência da África

Cavalli-Sforza, Luigi Luca. Genes, povos e línguas, tradução de Carlos A. Malferrari (São Paulo: Companhia das Letras,
2003). Relato pessoal de estudos sobre a evolução humana pelo maior expoente desse campo.

Olson, Steve. Mapping human history: discovering thepast through ourgenes (Boston: Houghton Mifflin, 2002). Relato
equilibrado e atualizado da evolução humana e do impacto de nosso passado sobre nosso presente.

Sykes, Bryan. The seven daughters of Eve (Nova York: W. W Norton 3í Co., 2001).

10. Identificação genômica

Massie, Robert K. The Romanovs: the final chapter (Nova York: Random House, 1995). A história dos assassinatos dos
Romanov e de como a identificação genômica determinou a autenticidade dos seus restos e desmascarou impostores.

Scheck, Barry, Peter Neufeld e Jim Dwyer. Actual innocence: five days to execution and other dispatches from the
wrongly convicted (Nova York: Doubleday 2000). Relato em primeira mão do poder da identificação genômica para
absolver pessoas injustamente condenadas.

Wambaugh, Joseph. The ttooding (Nova York: Bantam Books, 1989). Relato emocionante da primeira vez que a
identificação genômica foi usada para prender um criminoso.

11. Caçadores de genes

Bishop, Jerry E. e Michael Waldholz. Genome: the story of the most astonishing scientific adventure of our time — the
attempt to map ali the genes in the human body (Nova York: Simon & Schuster,
1990). Ainda um dos melhores relatos dos primórdios da caça aos genes de doenças humanas.

Gelehrter, Thomas D., Francis Collins e David Ginsburg. Principies of medicai genetics (Baltimore:

446

Williams & Wilkins, 1998). Um livro didático curto e de fácil leitura sobre a genética molecular humana moderna.

Pollen, Daniel A. Hannah’s heirs: the questfor the genetic origins of Alzheimer’s disease (Nova YorkOxford University
Press, 1993). Capta toda a emoção da busca da origem genética do mal de Alzheimer, enfatizando os aspectos terríveis da
doença.

Wexler, Alice. Mapping fate: a memoir of family, risk, and genetic research (Nova York: Random House, 1995).
Testemunho franco e comovente da irmã de Nancy Wexler.
12. A nova luta da medicina

Davies, Kevin, com Michael White. Breakthrough: the roce tofind the breast câncer gene (Nova York: John Wiley &
Sons, Inc., 1996). História de trabalho árduo, dedicação, ambição e ganância.

Kitcher, Philip. The lives to come: the genetic revolution and human possibüities (Nova York: Simon & Schuster, 1997).
Discussão ética e filosófica sobre como aplicar nosso conhecimento da genética molecular humana.

Lyon, JefF, com Peter Gorner. Alteredfates: gene therapy and the retooling of human life (Nova York: W. W. Norton &
Co., 1995). Inclui um bom relato do tratamento das duas meninas com deficiência de adenosina deaminase.

Reilly, Philip R. Abraham LincoWs dna and other adventures in genetics (Cold Spring Harbor, Nova York: Cold Spring
Harbor Laboratory Press, 2000). Ensaios sobre questões tópicas, escritos sob a ótica extremamente bem informada de um
médico / advogado.

Thompson, Larry. Correcting the code: inventing the genetic cure for the human body (Nova York: Simon & Schuster,
1994). Relato do desenvolvimento da terapia gênica, incluindo o caso de Martin Cline.

13. Quem somos?

Coppinger, Raymond e Lorna Coppinger. Dogs: a startling new understanding of canine origin, béhaviorand evolution
(Nova York: Scribner, 2001). Panorama das enormes diferenças existentes no corpo e na mente dos cães.

Crick, Francis H. C. The astonishing hypothesis: the scientific searchfor the soul (Nova York: Scribner,
1993). Uma perspectiva materialista do problema da consciência. Crick conclui que ”não somos mais do que o
comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e suas respectivas moléculas”.

Herrnstein, Richard J. e Charles Murray. The beü curve: intelligence and class structure in American life (Nova York: Free
Press, 1994). Obra mais citada do que lida.

Jacoby, Russell e Naomi Glauberman (orgs.). The bell curve debate: history, documents, opinions (Nova York: Times
Books, 1995). Coletânea de ensaios sobre The bell curve e resenhas do livro.

Lewontin, R. C, Steven Rose e Leon J. Kamin. Not in our genes: biology, ideology and human nature (Nova York:
Pantheon Books, 1984). Uma resposta esquerdista da academia ao Sociobiologia de Edward Wilson.

Mendvedev, Zhores A. The me and fali of T. D. Lysenko (Nova York: Columbia University Press,

447

ií.
1969). Relato pessoal de um cientista que sofreu na pele o controle da ciência soviética pelo Partido Comunista.

Pinker, Steven. The blank slate: the modem denial of human nature (Nova York: Viking Penguin,
2002).

Pinker, Steven. Como a mente funciona, tradução de Laura Teixeira Motta (São Paulo: Companhia das Letras, 2001). Um
esboço da psicologia evolucionista por um de seus mais eloqüentes defensores.

Ridley, Matt. Nature via nurture: genes, experience, and what makes us human (Nova York: HarperCol-

lins, 2003). Soyfer, Valery N. Lysenko and tfie trageãy of soviet science, traduzido por Leo Gruliow e Rebecca

Gruliow (New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1994). Um relato de alguém

que conheceu Lissenko. Wüson, Edward O. Sociobiohgy: the new synthesis (Cambridge, Massachusetts: Belknap Press of

Harvard University Press, 1975). Propõe uma explicação evolutiva para grande parte de nosso

comportamento.

448

Agradecimentos
Este livro é apenas um de vários fios que, juntos, formam uma grande iniciativa para comemorar o qüinquagésimo
aniversário da descoberta da dupla-hélice. Todos os projetos — este livro, uma série de cinco programas de televisão, um
produto educacional multimídia e um curtametragem para visitantes de museus científicos — estão interligados de
diversas maneiras. Nossa gratidão, pois, abrange mais do que a lista usual de leitores, editores e cônjuges que em geral se
encontra na seção de agradecimentos de um típico livro de não-ficção. O que segue é um reflexo da dimensão e alcance de
um extenso projeto cooperativo.

Ao longo de todo o projeto, contamos com o apoio extraordinariamente generoso da Fundação Alfred P. Sloan, do
Instituto Médico Howard Hughes e da Universidade da Carolina do Norte. Com sabedoria e bom senso, John Cleary e
John Maroney gerenciaram a assustadora e complexa logística do projeto, assegurando assim que os vários fios nunca se
dissociassem.

A série para televisão foi produzida por David Dugan, da Windfall Productions de Londres, sob a direção de David Glover
e Cario Masarella. Na criação dos componentes educacionais, Max Whitby, da Red Green & Blue Company, também de
Londres, colaborou com uma equipe chefiada por Dave Micklos, do Dolan dna Learning Center do laboratório Cold
Spring Harbor, e com o gênio da animação Drew Berry (sem parentesco com o co-autor do livro), do Instituto Walter and
Eliza Hall de Melbourne, Austrália.

As ilustrações desta obra foram preparadas por Keith Roberts, do Centro John Innes, em Norwich, Inglaterra. Com seu
faro costumeiro para combinar design elegante e clareza científica, Keith e Nigel Orme produziram uma série de
ilustrações que, a nosso ver, valorizam sobremaneira o livro. Robin Reardon, editor-assistente da Knopf, contra todas as
expectativas, conseguiu que cumpríssemos prazo após prazo (ou quase), sem nunca precisar recorrer à intimidação física.
O designer Peter Anderson, também da Knopf, realizou o milagroso casamento entre texto e imagens. Keith, Robin e Peter
foram membros indispensáveis da equipe.

Inúmeras pessoas leram versões do livro ou de capítulos referentes a suas respectivas áreas de especialização. As citadas
abaixo gentilmente ofereceram comentários detalhados e perspicazes acerca do manuscrito: Fred Ausubel, Paul Berg,
David Botstein, Stanley Cohen, Francis Collins, Jonathan Eisen, Mike Hammer, Doug Hanahan, Rob Horsch, sir Alec
Jeffreys,

449
Mary-Claire King, Eric Lander, Phil Leder, Victor McElheny, Svante Pàãbo, Joe Sambrook e Nancy Wexler.

Muitos outros também contribuíram com informações e/ou imagens úteis: Bruce Ames, Jay Aronson, Antônio Barbadilla,
John Barranger, Jacqueline Barataud, Caroline Berry, Sam Berry, Ewan Birney, Richard Bondi, Herb Boyer, Pat Brown,
Clare Bunce, Caroline Caskey, Tom Caskey, Luigi Luca Cavalli-Sforza, Shirley Chan, Francis A. Chifari, Kenneth Culver,
Charles DeLisi, John Doebley, Helen Donis-Keller, Cat Ebestark, Mike Fletcher, Judah Folkman, Norm Gahn, Wally
Gilbert, Janice Goldblum, Eric Green, Wayne Grody, Mike Hammer, Krista Ingram, Leemor Joshua-Tor, Linda Pauling
Kamb, David King, Robert Koenig, Teresa Kruger, Brenda Maddox, Tom Maniatis, Richard McCombie, Benno MüUer-
Hill, Tim Mulligan, Kary Mullis, Harry Noller, Peter Neufeld, Margaret Nance Pierce, Naomi Pierce, Toni Pierce, Daniel
Pollen, Mila Pollock, Sue Richards, Tim Reynolds, Matt Ridley, Julie Reza, Barry Scheck, Mark Seielstad, Phil Sharp,
David Spector, Rick Stafford, Debbie Stevenson, Bronwyn Terrill, William C. Thompson, Lap-Chee Tsui, Peter Underhill,
Elizabeth Watson, Diana Wellesley, Rick Wilson, David Witt, Jennifer Whiting, James Wyngaarden, Larry Young, Norton
Zinder.

Nosso mais sincero obrigado a vocês.

Todos deram o máximo de si para garantir que as coisas dessem certo. Somos, pois, inteiramente responsáveis pelos erros
que, com certeza, ainda restam.
45O

Créditos das ilustrações


©AFP:381.

aip Emílio Segrè Visual Archives: 48.

© Paul Almasy/coRBis: 224.

American Philosophical Society: 25.

American Philosophical Society, Eugenics Record

Óffice: 34, 37, 38, 39 Anônimo, século xix © Image Select/Art Resource,

Nova York: 274.

AP/Wide World Photos: 212 (superior), 283. Cortesia de Michael Baden: 302 (esquerda e direita

superior).

© Anthony Bannister; Gallo Images/coRBis: 266. Cortesia de Jacqueline Barataud: 197. © A. Barrington-Brown/Photo Researchers, Inc.:
8. Cortesia de Paul Berg: 109. Dr. David Becker/Biblioteca Fotográfica Wellcome:

367.

© Bettmann/coRBis: 120 (à direita), 278 (direita), 302

(direita inferior), 303, 347. Cortesia do Bio-Rad Laboratories: 156. Foto de Jim Bourg © Reuters New Media Inc./coBis:

177.

Desenhado por Tony Bramley para TiBS/ reproduzido de Irmãs in biomedical Sciences, vol. 3, p. N243, Szybalski: ”Dangers of regulating the
recombinant dna technique” © 1978, com permissão da

Elsevier Science: 119.

Foto de Michael Brooke: 342.

Cortesia de brt Laboratories, Inc.: 308. Pieter Brueghel, o Velho (1551-1569), A colheita,
1565, óleo sobre madeira/The Metropolitan

Museum of Art, Rogers Fund, 1919 (19.164)/Foto © 1998 The Metropolitan Museum of Art: 175 (esquerda superior).
Cortesia de Archives, Califórnia Institute of Techno-

logy: 72.
Cortesia de Stanley Cohen: 105. © Stewart Cohen Photography: 386. Arquivos do laboratório Cold Spring Harbor: 88,

187, 225, 377.

Arquivos do laboratório Cold Spring Harbor, Coleção James D. Watson: 16, 60, 64, 82. Joseph DeRisi: 214. John Doebley: 159. © Laura
Dwight/CORBIS: 353. Arquivos do estado da Flórida: 152 (direita). Cortesia de Igor Gamow: 82 (direita inferior). Foto de Peter
Ginter/Cortesia da Hereditary Disease

Foundation: 316.

Cortesia de Eric Green: 205 (superior). Michael Greenberg e Jennifer Brown, Hospital Infantil, divisão de neurociência, Faculdade de
Medi-

cina de Harvard: 412.

Foto de Fergus Greer/Cortesia de Kary Mullis: 193. David Gregory e Debbie Marshall/Biblioteca Fotográfica Wellcome: 108. Jeff
Hansen, Universidade Yale: 75. Foto de Don Harris © Universidade da Califórnia em

Santa Cruz: 211.

© Coleção Hulton-Deutsch/coRBis: 312, 393, 410

(esquerda). Cortesia de índigo® Instruments (indigo.com): 23.

451
T
© Instituto Pasteur: 94.

© MarkowitzJeffrey/coRBIS Sygma: 150.

Cortesia de Alecjeffreys: 285.

Cortesia de Alecjeffreys/reproduzido com permissão de Nature, vol. 317 (31 de outubro de 1985):
286.

Leemorjoshua-Tor: 239.

Cortesia de Linda Pauling Kamb: 57.

Cortesia de Mary-Claire King: 256.

King’s College London Archives: 56.

JackJ. Kunz © 1964 Time Inc.: 26.

Arquivos Harry H. Laughlin, Universidade Estadual Truman: 36, 43.

Coleção Lear/Carson, Connecticut College: 152 (esquerda).

Cortesia de Phil Leder: 139.

Pintura ©Jay H. Matternes: 249 (superior).

Richard McCombie e Lance Palmer: 220 (inferior).

Cortesia da mitomap.org: 267.

Cortesia da Monsanto: 154, 163.

Fotos de Tim Mulligan, laboratório Cold Spring Harbor: 179.

Joe Munroe: 158.

Reproduzido com permissão da Nature, vol. 171 (25 de abril de 1953): 69.

Reproduzido com permissão da Nature, vol. 409 (15 de fevereiro de 2001): 218, 219.

Newsweek, Inc. © 1988. Todos os direitos reserva-

dos. Reproduzido com permissão: 261.

Capa do exemplar de 8 de maio de 1995 da Business Week, reproduzida com permissão. Copyright © de The McGraw-Hill Companies:
200.

NIH/NGHRI: 182.

Cortesia de Harry Noller: 97.

© Diego Lezama/coRBis: 278 (esquerda).

© 1972 Oxford University Press, Inc.: 19.

Cortesia de Margaret Nance Pierce: 61.

Cortesia da Pioneer: 157.

Coleção particular /Biblioteca de Arte Bridgeman: 15.

© Roger Ressmeyer/CORBIS: 175 (direita inferior).

Cortesia de AJex Rich: 82 (esquerda inferior).

Foto de Conly L. Rieder, divisão de medicina molecular, Centro Wadsworth, Albany, Nova York,
12201-0509: 243.

Cortesia de Keith Roberts: 103.

Keith Roberts: 66, 67, 70, 71, 79, 90, 91, 98, 107, 122,

126, 131, 194, 226, 259, 295, 323.

Reproduzido de Darwin and ajter Darwin, de George J. Romanes, Open Court Publíshing Co. © 1892:
409.

© 1990 Bill Sanderson: 205 (inferior).

Centro Sanger/Biblioteca Fotográfica Wellcome:


195.

© Albrecht G. Schaefer/coRBis: 410 (direita).

© 1983 The Spokesman-Review: 330.

© Rick Stafford: 116.

© Rick Stafford/Cortesia de Walter Gilbert: 120 (à esquerda).

Stanford News Service: 73.

Andrew A. Stern/NAS: 113.

Cortesia de Debbie Stevenson: 368.

Foto de Rob Teteruck, The Hospital for Sick Children: 333.

Cortesia do Institute for Genomic Research: 230.

Time Magazine © Time Inc./Timepix: 127.

F. Rudolf Turner, Universidade Indiana: 246.

© 1945 The University Press, Cambridge, Inglaterra:


47.

Exército dos EUA/foto do forte Detrick: 100.

Cortesia da Vysis Genomic Disease Management:


354.

Foto de Bob Waterson, Instituto Whitehead/Centro

de Pesquisa Genômica do MIT: 209.

Wessex Regional Genetics Centre /Biblioteca Fotográfica Wellcome: 352.

Arquivos da cidade de Westminster: 31.

Sherri Wick: 50.

Foto de Allison Wilson: 212 (inferior).

índice remissivo
Termos-chave ou conceitos no texto aparecem em negrito. Entradas referentes afiguras aparecem em itálico.

aborto, 353, 355, 365-66, 369; espontâneo, 355

Abraão, 274, 274

acasalamento, de roedores, 413-14


ácido nudéico, 51, 81, 86, 111

Actual innocence (Scheck e Neufeld), 315

açúcar-fosfato, esqueleto, 60, 63

adenina (A), 11, 49, 53, 62, 64-66, 70, 80-81, 86, 89,

121, 124, 190, 194, 204, 216, 228, 399

adenina-timina, pares de base, 65-66, 70 adenosina deaminase, deficiência de (ada), 376, 380

Affymetrix, 241

África, 265, 275-78: árvore genealógica humana originada na, 258, 260, 262; saída da, 249-82 africanos, 78-79, 258, 276-77, 279

afro-americanos, 78, 361, 391, 407

Agência de Proteção Ambiental [EPA = Environ-

mental Protection Agency], 162, 171 agricultores orgânicos, 162

agricultura, 13, 159-60, 177, 270: engenharia genética na, 148-49, 169-70; revolução na, 155; tecnologia, 180, 270; transgênica, 151-81;
União Soviéti-

ca, 158-59,392-98

Agrobacterium tumefaciens, 153-56 a-hélice (alfa-hélice), 56-57

AIDS, 130, 138, 192, 201-202, 428

Alberts, Bruce, 186, 188

albinismo, 23, 37-38, 277

alcaptonúria, 76, 92

alérgenos, 176

Alexandra, czarina, 300-301, 304

alimentos, 180-81: alérgenos e toxinas nos, 176

alimentos transgênicos, 150, 151, 159, 166-81, 315:

hostilidade aos, 170, 172-74, 177, 179-81, 1S0 Alpher, Ralph, 81 als (amyotrophic lateral sderosis) [esderose lateral

amiotrófica], 142, 417 Altman, Sidney 97

Alu, 223

Alzheimer, Alois, 372

Alzheimer, mal de, 344, 354, 371-74, 382, 384-85 ambiente/meio ambiente, 32, 38, 401, 405-406, 419: bactéria e, 234; doenças e, 335,
337-38, 369; engenharia genética e, 168; genes e, 337-38, 420; pesticidas e, 151-52, 161; proteção do, 153, 180; QI e, 407-408;
transformação de espécies no, 397; transgênicos e, 177-78 americanos indígenas, 44, 279, 391

ameríndios, 269, 271, 273

Ames, Bruce, 165

Ames, teste, 165

Amgen, 141, 144

aminoácidos, 49, 52, 77-78, 80, 86-88, 91, 280: alfabeto, 52; baixo teor nas plantas, 167; bases especificando os, 81; cadeias de, 56, 89,
90, 124,

452

fc.
453
7?
237, 238; ligados a moléculas de rna, 85; moléculas adaptadoras, 84; ordem dos, 83; seqüências, 80, 84, 123, 147, 253; síntese de proteínas, 85; unidos em
proteínas, 97

amish, 325, 417, 418

amniocentese, 352-53, 355-56, 366

amor/amorosidade, 413-14, 413, 433-34

análise quantitativa, 21-22

análises estatísticas, 418

análises genéticas, 418: em humanos, 322; pré-história, 270

ancestral comum, 258, 260, 262-63, 265: recente, 275

Ancestral File, 333

ancestralidade comum, 236, 243

Anderson, Arma, 303-304, 306

Anderson, French, 376

anemia faldforme, 78-80, 79, 296, 361-64, 391

angiogenéticos, 146

angiostatina, 146-47

antennapedia, 246-48

antibióticos, 103-104, 106, 332

anticorpos, 142, 143; monoclonais, 143-44: tecnologia dos (acms), 142-43

antraz, 232

antropologia, 411: molecular, 268

antropólogos, 255, 262

APOEe4, alelo, 372-73, 384

apolipoproteína E (apõe), 372, 382

Applied Biosystems, Inc. (abi), 196, 206-207, 232

aprimoramento genético, 427, 429-30

aranha, 147: fábrica de teias de, 147

Arber, Werner, 102-103

arganazes, 413-14, 413

árvore genealógica, 257-58, 262-63, 270, 281, 321: afetada por fatores demográficos, 263-64; das línguas, 271; ponto de convergência, 262-63; raízes na
África, 258, 262; ramificações, 258, 260; sãs,

265-67, 266

Asilomar, centro de conferências, 112-14, 117-18,

130, 150, 154, 178-80

asma, 337, 342-43, 345

asquenazes, 274, 360, 364-65, 391

Associação Americana de Distrofia Muscular, 328, 331

ativação genética, 198, 221, 229, 246-48, 280: análise

de microplaca, 214; hierarquizada, 245 ativador plasminogênico tissular (t-PA), 137, 141

autossomos, 319, 391


Aventis, 168, 171-72

Avery, Oswald, 49, 51-52, 62, 75, 396

Baríllus thuringiensis (Bt), 162, 164-66, 168-69, 171,

173, 176-77

bactéria, 102-104, 109, 178, 231-36: cópias do fragmento de dna, 119; geneticamente modificada,
136; induzida a produzir proteína humana, 128-
30; resistência antibiótica da, 103-104, 106; segura, 113-14; seqüenciamento de, 204

bacteriófagos/ fagos, 53-54, 62, 95, 110

Baltimore, David, 130

Bardeen, John, 123n

Barrell, Bart, 231-32

bascos, 270-71

base de dados: de DNA, 296-97; genética, 345-46; genética, para as diferenças, 389-91, 400, 408

base(s), 49, 53, 62, 64-66, 85, 121, 124:

base(s), pares de, 13, 65-66, 70, 86, 101-102, 121, 193,

196-97, 205, 207, 214, 217, 228-29, 243, 251-52,

274, 334-35; conclusão do seqüenciamento de


3,1 bilhões de, 213; no genoma humano, 183; seqüenciando, 122, 188-89, 191, 209, 228

batata, vírus da, 164

Bateson, William, 18

bcr-abl, proteína, 239

Beachy, Roger, 163-64, 171

Beadle, George, 76-78

”behaviorismo”, 400

bell curve, The [A curva do sino] (Murray e Herrnstein),


407-408

Benzer, Seumour, 70

Berg, Paul, 109, 110-12, 113, 123

Bermudas, princípios das, 207

beta-galactosidase, 95-96, 120

beta-talassemia, 378

Bethe, Hans, 81

bicóide, 245

BigBang, 81

Biogen, 129-31, 133-34, 186-87, 339

bioinformática, 210

biologia, 47, 55, 80, 94, 133, 248, 397-98, 433: do

desenvolvimento, 18, 93, 374; reprodutiva, 368 biologia molecular, 13-14, 48, 88, 99, 101, 105, 109,
119-20, 123, 130, 138, 182, 208, 231, 281: acadêmica, 135; caça aos genes, 125; ”cortar-ecolar” da, 155; em escala industrial, 134; paranóia
popular em torno da, 115-16; potencial comercial, 187; revolução em, 108 biólogos, 12, 18, 49, 184-85, 430: moleculares, 111,

125, 153, 155, 167, 200, 279, 324, 356

biopirataria, 343 bioquímicos, 52, 68, 164 bio-risco, 111, 130, 135

biotecnologia, 126, 127-50, 160, 324, 345: agrícola,


155, 174; das plantas, 153-55, 163-64; e a lei, 137; empresas de, 126, 128, 141-42, 144, 147, 200, 418; precisão da, 175-76 Birney, Bwan, 215 Blaese,
Michael, 376

Blair, Tony, 173, 211 Blassie, Michael, 304

Blattner, Fred, 227-28

borboleta-monarca, 176-77

Botstein, David, 185-86, 321-24, 326, 417

Bouchard, Tom, 404-406

Boule, Marcellin, 250 Boveri, Theodor, 24 Boyer, Herb, 104-105, 105, 108, 110-11, 114, 118-19,

123, 126: e biotecnologia, 127-29, 133, 135-36 Bragg, Sir Lawrence, 57-58, 58, 61, 64

BRCAl, 339-40, 369-70

BRCA 2, 339-41

Breakfield, Xandra, 420

Brenner, Sydney 84-86, 93, 112-13, 113, 137, 188, 231: genoma do fugu, 218; Projeto Genoma Huma-

no, 186, 198

Brown, Jennifer, 413

Brown, Pat, 241

Brunner, Hans, 419-20

Buck, Carrie, caso, 41 buraku,407

Burt, sir Cyril, 404

Bt ver Baciüus thuringiensis

C. elegans, 188, 204, 205; ver também verme nematóide caçadores, 268, 270, 272, 278

cães, 411-12

Calgene, 166-67 Califano, Joseph, 118

Caltech, 56, 61, 65, 77-78, 83-85, 94, 195, 247

Cambridge, Massachusetts, 115, 116 camundongo, 237, 277: dna comparado ao humano,
217; elementos transponíveis, 227; genes do olfato, 219; genoma, 207, 217, 227; mutações genéticas em, 412-13, 412; transcriptoma do,
244

câncer, 13-14, 108-109, 111-12, 125, 145-46, 183, 189,


242-43, 276, 337-41, 345, 381, 429: causas do, 242,
369; de pele, 276, 390, 419; genes e, 125; matando células, 144; pesquisa, 118, 139; pesticidas e,
161; procura de terapias, 144-47; ver também mama, câncer de

Cann, Rebecca, 257-58, 260-63, 268-69, 275, 281-82 capacidade mental, pesquisas genéticas sobre, 390,400 características/traços adquiridos, 16, 25, 26:
análise de, 401; genealogia construída por, 37; genética de, 32, 36, 38; herdadas, 23-24, 29-30, 38-39, 320,
346; poligênicos, 401; teoria da hereditariedade dos, 19, 395n

Carlos li, 17

Carson, Rachel, 151-54, 152, 161, 174 ”Carta da Moratória”, 111

casamento, costumes, 272-73

Caspi, Avshalom, 420 Cavalli-Sforza, Luigi Luca, 261-62, 270-71 Cavazzana-Calvo, Marina, 381

CCR5, gene, 201 CDNA, 198-201, 203, 205, 335

cebola, 157

Cech, Tom, 97

Celera Genomics, 188, 206, 208-11, 216, 306, 384

celtas, 270-71

célula(s), 11-13, 24, 74, 81, 83, 85, 125: artificiais, 231; divisão, 224, 243, 244, 351; espermáticas, 22, 24,

454
455
w
351; informação de posição, 245; mínima, 230; T,

202, 377, 380; -tronco, 89, 373-74, 380

Centocor, 143

Centro de Estudo do Polimorfismo Humano (ceph),


325

Centro Nacional de Pesquisa do Genoma Humano,


190

Centro Sanger, 124, 191, 204, 207, 209, 215, 231

cereais, 156

cérebro, 17, 93, 220, 336, 372, 410, 414: desenvolvi-

mento do, 350, 421; dos neandertais, 250;

expressão gênica no, 280; genes responsáveis pela estrutura do, 416; mudanças genéticas afe-

tam o, 415-18

Cetus Corporation, 138, 192

Chakrabarty, Ananda, 136-37

Chargaff, Erwin, 53, 62, 65, 68

Charles, príncipe, 174

Chase, Martha, 62

Chilton, Mary-Dell, 154-56

chimpanzé(s) , 222, 253-56, 258, 265, 276: aprimoramento gênico de, 430; comparação do genoma humano com o do, 256-57; projeto do
genoma do, 281; similaridade humana com, 279-80; va-

riação, 275

China, 163, 180

ciência, 22, 114-15, 117, 349, 389-91: bem remunera-

da, 184, 186; e ideologia, 398; e negócios, 133-35,


140, 186, 340; e política, 277; na União Soviética,
394-98; obrigação moral da, 180; política e, 389-

91, 400, 404-405, 422

ciência forense, 286-87, 289-91, 294, 300, 311: controvérsias em, 292-93; padrões para, 291-92

ciganos, 45

cipriotas gregos, 364, 378

citogenética, 351

citogeneticistas, 328, 355-56

citosina (C), 11, 49, 53, 62, 64-65, 80, 89, 121, 124,

190, 194, 204, 209-10, 216, 228, 399

classes degeneradas, 28, 30, 40-41, 44


clima, formato do corpo e, 278

Cline, Martin, 378

Clinton, Bill, 13, 208, 211, 379

clonagem/ clonagem molecular, 106n, 107-108,

111, 119, 125, 130-31, 131, 137-38, 143, 192, 327,


335: insulina, 128, 132-34, 141; interferon, 133; método Cohen-Boyer, 135; perigos, 108; pesquisa, 112; técnica de saltos, 334

Cochran, Bill, 60

código genético, 13, 86-87, 90, 124, 126: a leitura do,


75-98; decifrar o, 83, 87-89, 92, 96, 101

código molecular, 48

CODIS (Combined DNA Index System), 296-97

códons, 88

Cohen, Daniel, 197, 198

Cohen, Stanley, 103-106, 105, 108-11, 114, 118-19,


123, 127-28: e biotecnologia, 135-36

Cohen-Boyle, método, 130, 135-36, 140, 192

Cold Spring Harbor, laboratório, 36, 62, 73, 110, 140,


207, 215, 226, 242, 305, 326, 377: conferência

sobre identificação genômica, 290; conferências,


92, 215, 324; Dolan DNA Learning Center, 138; encontro sobre genética humana no, 185; estudo do câncer, 109; Eugenics Record Office
[Agência de Registros Eugênicos], 36, 46; plantações experimentais vandalizadas, 179, 181; simpósio sobre vírus, 68, 70; técnicas para
clonagem de genes, 125

Collaborative Research, Inc., 324-26, 332-34

Collins, Francis, 203-204, 212, 334, 339, 369-70

Colômbia, 273

colonização humana, 265, 267-69

Comitê de Aconselhamento Científico do Presidente

[PSCA = President’s Scientific Advisory Commit-

tee], 151

comportamento, 401: anti-social, 420-21; genética do, 37-39, 390-91, 400-401, 408-15, 418-21; herança hereditária, 46

concentração, gradiente de, 245

concordância, 403, 415

”Congresso da Caixa de Pandora”, 112

conhecimento genético, 384-85: casos éticos, 431-32; preconceitos contra, 434; preferível à ignorância, 390, 422; uso do, 425-26

consciência, 279, 424

Coolidge, Calvin, 43

crescimento, fatores de, 142-46

crescimento, hormônios de: bovino, 149-50, 170;

humano, 140, 149; vegetal, 154 Creutzfeldt-Jakob, doença de, 140-41


criacionistas, 433

crianças: aprendizado, 427; como uma tabula rasa,


400; desvantagens genéticas, 430-31; doenças genéticas, 327-31,348

Crick, Francis, 11-13, 48, 58-68, 60, 72-73, 80, 82, 88,

88, 96-97, 105, 126, 213: dogma central, 83; e Gamow, 81; e rna, 84-87, 96; neurobiologia, 92; prêmio Nobel, 73

crime(s), 36: análise do DNA em, 284, 288 cromossomo 21, 101, 191, 351-53, 355-56, 415: densi-

dade gênica, 216; seqüência, 212 cromossomo 22, 101: densidade gênica do, 216;

seqüência, 212, 214-15

cromossomo X, 26, 101, 327-29, 357-58, 418, 420 cromossomo Y, 26, 101, 262-63, 265, 269, 271-73,

275, 281, 306-307: em testes de paternidade, 309; na diáspora judia, 273-74; nas diferenças demográficas entre os sexos, 273

cromossomos, 14, 24, 47-49, 100-101, 182, 188, 215-

16, 226, 338: anomalias, 355; artificiais, 197; densidade gênica do, 216; duplicação, 64-65; genes correlacionados aos, 26-27; humano
/chimpanzé,
279; localização do 17q21, 338; número de, 346,
351; seqüências, 212; sexuais, 26, 101 cromossomos bacterianos artificiais [bacs, bacterial

artificial chromosom.es], 197-98

cultura, 267-68, 273

Culver, Ken, 376

Curie, Marie, 123n

”curva do sino”, 406-407

Cutshall, Cindy, 376-78, 377

dados genéticos, 344, 346, 418

Darwin, Charles, 20, 28-30, 29n, 45, 56, 236, 250, 258,

271: e Galton, 32; teoria da evolução, 12, 19

Darwin, Erasmus, 32, 423

darwinismo, 396, 397, 433

”Daubert contra Merrell Dow Pharmaceuticals”,

caso, 289

Dausset.Jean, 197, 325

Davenport, Charles, 36-39, 42, 45-46, 346, 390

Davies, Kay, 328

Davis, Ron, 321-22

DDT, 161, 172, 178

Dejong, Pieter, 197

decODE Genetics, 343-46, 418

defeitos genéticos, 327, 429-30

Dekalb, 169
Delbrück, Max, 53, 68, 71

Departamento de Agricultura dos Estados Unidos,

153, 169

Departamento de Defesa — Armed Forces Repository of Specimen Samples for the Identification of Remains [Repositório das Forças
Armadas para Amostras de Espécimes para Identificação de

Restos Mortais], 305

Departamento de Energia dos Estados Unidos, 185,

189, 191, 209

depressão, 337, 345, 416

desenvolvimento, 18-19, 93, 240: concepções do,


400; da mosca-das-frutas, 244-48; fator genético preditivo, 420-21; sustentáculo molecular do,
244; desnaturação, 256 desolate year, The, 152 desoxi/ bases didesoxi, 121, 196

desoxinucleotídeos, 49

determinismo, 398, 400, 419

diabetes, 128, 385, 391, 403

diagnóstico, 356-57, 385: antecipado, 431; baseado no DNA, 334-35, 366-67; de doenças mentais, 416; testes, 329, 332, 349; ver
também pré-natal diáspora judia, 273-7’4, 364 diferenças: bases genéticas para, 389-91, 400, 408;

chimpanzés/humanos, 280-81 discriminação gênica, 345, 424 distrofia muscular, do tipo Duchenne (dmd) , 327-31,
333, 336, 351, 357, 367, 372-73: gene, 328-31; testes para, 356, 358; tratamento, 376 distrofina, 217, 222, 330-31

divergência, 254 dizigóticos, 401 dmd, ver distrofia muscular tipo Duchenae

456
DNA (ácido desoxirribonudéico), 49, 75-98, 124,
293, 376-77, 428-29, 434: amplificação, 192-93,
194, 252, 294; amostras de, 325; anterior ao rna,

96,-98; antigo, 251-52; aproveitando o poder do,


430; bases químicas do, 49, 53; cadeias de, 68,
120-21, 123; comparação de seres humanos e chimpanzés, 256-57; comparação entre seres humanos e camundongos, 217; componentes
do, 64; ”cortar, copiar e colar”, 101-102, 104-105,
110; criação de moléculas sob medida, 99; cristalino, 60-61; danos no, 337-38; difração de raios X, 54-56, 59-61, 64-65; e o passado do
homem, 249-82; e proteína, 80-81, 84, 87, 91, 92,
96, 98; esqueleto, 64-65, 73; estranho, 381; estrutura do, 11, 55, 58-59, 63-64, 68; formas A e B, 63,

64; gera RNA, 130; interpretando o mecanismo,


74; introduzidos em mamíferos, 109, 111, 114; linguagem do, 65, 67; manipulação do, 13, 108,
375; marcadores de, 321-22, 401; mecanismos

evolutivos para o excesso de, 225-26; modelos com três cadeias, 60, 63-64; molécula de, 60, 62,

68, 87; na célula da planta, 154; na genealogia,


306; neandertal, 252; no Projeto Genoma Humano, 216; no sistema de castas genéticas, 425; nos testes genéticos, 356; personalizado,
100-26; polimerase, 73, 101-102, 121, 193-94; princípio transformador, 51-53, 62, 75, 396; relato da ancestralidade, 281; replicação do,
70, 71-73, 89,
93, 102-103, 224-25, 276; restrições à pesquisa,
114; revolução do, 13-14, 18, 126; rivalizando com as escrituras religiosas, 433; segredo da vida no, 424; segurança do, 118; síntese
enzimática do, 73; sistema imunológico regido pelo, 183; transferência entre espécies, 154; transferência para as plantas, 156; uso de sua
informação, 382-
84; viral, 102-103, 110,381

dna (ácido desoxirribonudéico), seqüências de,


55, 87, 119-21, 123, 268-69: diferenças nas, 322,
391; e a seqüência de aminoácidos das proteínas,
83; mutações nas, 258; propriedade particular dos dados, 188, 207-208

DNA fingerprinting (identificação genômica), 30, 137,

284, 286, 290-92, 295, 296-301, 313, 336, 403:

aplicações, 286-88, 286, 290,-91, 307-308, 311; base de dados, 296, 314; código uniforme de procedimentos, 292; em genealogia, 307;
em processos criminais, 288, 291-99, 311, 313-14; em questões legais, 311-13; em testes de paternidade, 307-10; identificação de corpos,
304-305; objeções, 291, 313-15; prova de identidade, 294,
296; serviços de, 307

DNA mitocondrial (DNAmt), 252-53, 258, 269, 273,


275, 281: análise, 262, 270; árvore genealógica humana, 257, 259; identificação genômica, 301; neandertal, 253; para mulheres, 271-73;
seqüências, 263, 265; variações entre ameríndios, 269

DNA recombinante, 101-102, 104, 108, 108tt, 117-18,

126, 134-35, 154, 321: aplicações comerciais, 133,


135; engenharia genética com, 104-106,107, 108,
140; perigos, 111, 115, 118; regulamento de pesquisas, 111-12, 115, 117-18; revolução do,
103,285

DNA recombinante, tecnologias de, 99, 101-102, 123,

133, 136, 147, 162, 178-79, 226, 321, 412, 428:

oposição, 150; produzindo proteínas, 147-48

dna, análise de: e microbiologia, 231-32; em crimes,


284, 288; métodos para, 191-92, 194-98; no futuro, 370

doença mental, 400, 415-18

doença(s), 108, 243: causadas por mutações, 183; etnicidade/etnia e, 391; genética das, 189, 316-
46; herdadas, 401, 403; predisposição a, 337; prevenção de, 428

doenças genéticas, 13-14, 16-17, 20, 27-28, 110, 203,


242, 318-19, 322, 324, 345-46: afetando o desem-
penho mental, 415-18; mapeamento, 331-33,
335-36; na infância, 327-31, 348; programas de triagem, 363-66; tratamento e prevenção, 347-85

dominante, 22-23, 26, 37

Donahue.Jerry, 65

Donis-Keller, Helen, 324, 326, 334

Dor Yeshorim, 365-66

Down, John Langdon, 351, 354

Down, síndrome de, 351-52, 352, 357, 385, 415

drogas, 143-45, 202

Dugdale, Richard, 34

458

Dulac, Catherine, 412

dupla-hélice, estrutura da, 47-74, 67, 69-71, 78, 79, 80-


81, 100, 105, 276: aniversário da publicação da descoberta da, 213; descoberta da, 74, 84, 99,
126, 189, 346, 396, 423, 430; importância da, 12-
13; modelo, 68, 70-71, 73, 73; ponto de desnaturação, 256

DuPont, 139, 146, 158

E. coli, 95, 96, 102, 106, 108, 110-11, 178, 194: enxerto de dna humano nas moléculas da, 108; genoma,
223, 227-28; linhagem k-12, 112-13; produção de proteínas, 129; produzindo insulina, 132; repressor da, 229; seqüenciamento, 188;
sistema regulador do gene da beta-galactosidase na, 120; toxinas, 233; transformando a, 104

EcoRl, enzima de restrição, 102-103, 105, 322

edição, processo de, 124, 129-30

educação, 407-408, 426-28

efeito estufa, 149

efeitos colaterais, 143-44, 381-82

egoísmo, 425-26

elefante, 29

elementos móveis, 225-27

Eli Lilly, 132-33, 339

elsi [Ethical, Legal and Social Implications of the Human Genome Project], 359

embrião, 19, 245, 367-69, 373, 431

endostatina, 146

engenharia genética, 113, 148-49, 153, 160, 162, 167-


68, 176, 376: com dna recombinante, 140; insuli-

na humana, 133; plantas, 156

engenheiros genéticos, 148, 162, 164

envelhecimento, 183

enzima(s), 51, 78, 80, 236, 377: de restrição, 102-106,


228, 322; protéicas cinases, 219
epoetina alfa (epo), 141

ervas daninhas, 160-61, 177

ervilhas, 15, 21-25, 75, 92

espermatozóide, 19, 258

esquimós, 271

esquizofrenia, 296, 337, 345-46, 415-16, 418

esteatopigia, 30

esterilização, 40-42, 44-45

estupro, 297-99, 312-13

eucariotos, 125, 235

eugenia, 30, 32-34, 34, 45-46, 346, 366, 389, 392, 399,
430: Davenport e, 36, 38; e racismo, 41-45, 362; negativa, 34, 40; positiva, 34, 39, 44

Eugenics Society, 39

Europa, 268, 270

eutan, 45

evolução, 17, 98, 178, 241-48, 433: abordagem molecular, 253-54; comportamental, 256; das bactérias, 233-34; dos vertebrados, 233;
invenção, 236; lingüística, 270-71; microbiana, 233; molecular dirigida, 148; mutações ao longo da, 260; reação defensiva das plantas,
164-66; taxas de, 256; tempo evolutivo, 276; teoria de Darwin, 12, 19

evolução genética: e evolução lingüística, 270-71; taxas de, 256

evolução humana, 28, 79, 260-61, 263, 268, 280, 421,


430; autocontrolada, 33; comportamento, 408-
11; pesquisas moleculares da, 253

exército americano, 35, 41, 147

éxons, 124, 220-21

experimentação humana, 320, 399-400, 429

experimentos naturais, 415

extinção aleatória, 264

Faculdade de Medicina Baylor, 191, 209

falácia naturalista, 427

Família Kallikak, 34-35, 41

famílias gênicas, 218

farmacêuticas, 133, 138: indústrias, 202-203, 207, 240,

418; pesquisas, 239 fator: de crescimento epidermal, 145-46; de necrose

tumoral, 143

fatores demográficos, árvore genealógica afetada

por, 263-64 Federal Drug Administration (fda), 141-42, 145, 149,

171,379

fenilalanina, 88, 350-51: hidroxilase, 350 fenilcetonúria (pku), 350-51, 359, 373, 379
Fermi, Enrico, 71

fertilização in vitro, 367, 367n, 369

459
p
Feynman, Richard, 83

flbrose cística, 13, 183, 229, 296, 325, 332, 334-36, 351,
385, 391: genes da, 203, 328, 332-34; mutação,

367; testes, 356, 358-61; tratamento, 376

Finlândia, 346

Fischer, Alain, 380, 381

física, 12, 47-48, 67, 74

físicos, 12, 53, 184

Flynn, efeito, 408

Folkman, Judah, 146

Folling, Asbj0rn, 350

forma pigméia, 278

fosfodiesterases, 144

FOXP2, gene, 280, 421

Fraley, Robb, 155

frameshift, 86-87, 125

França, Projeto Genoma Humano na, 190, 197, 197

Frankenstein (Shelley), 423

Franklin, Rosalind, 59-61, 61, 63-64, 64, 68, 73

Fraser, Claire, 228, 231-32, 233

fraxa (Fragile x Association), 358

Friedman, Orrie, 334

Frist, Bill, 379

fugu, genoma do, 217-18

Fundação James S. McDonnell, 186

Fundação Max Hoffman, 184

Fundação Rockefeller, 167

Fundação W. M. Keck, 184

furanocumarinas, 165

G5 (centros de seqüenciamento), 208-209

galha, 153-54, 154

galha-de-coroa, doença, 153-54, 154

Galton, Francis, 30, 32-34, 38, 41, 46, 399, 402


Gamow, George, 80-81, 82, 83-85

gangliosídeo GM2, 365

gargalo genético, 263-65, 364

Garrod, Archibald, 76, 80, 92

Garst, Roswell, 158-59, 158

Gattaca (filme), 424-25, 428, 434

Gaucher, doença de, 374, 377

Gellert, Martin, 102

Gelsinger, Jesse, 379-82, 429

gêmeos idênticos, 286, 386, 402-405

gêmeos, estudos de, 401-406

gene(s), 15-16, 24, 47-48, 52, 55, 124, 222, 400-401: aperfeiçoamento, 427, 430, 433; bons, 34-35, 37,
41; cadeias lineares, 124; candidato, 417; cau-

sadores de doenças, 242, 323-24, 326-29, 331-32,


336-37, 343, 345-46, 349; codificação, 198, 216-
17, 242, 275; complemento, 220, 229; correlacionados aos cromossomos, 26; ”da gramática”,
280, 421; desequilíbrio no número de, 351; e desenvolvimento, 92; e meio ambiente, 337-38,

420-21; e nosso futuro, 423-34; e proteínas, 78-


79, 216-17; erro em, 76; ervilhas, 22; exploração comercial de, 339, 343, 345-46; expressão, 242-
44, 248, 280-81; função, 93, 238, 240; isolamento e caracterização, 101, 125; ligados e desligados,
93-96,257; mensagens genéticas copiadas, 65; na mortalidade, 183; natureza química do, 46; no câncer, 125, 369; no genoma humano,
214-16; no tratamento, 376; número de, 218-22; organização hierárquica, 248; organizados em torno dos cromossomos, 24, 27;
patenteamento, 199,
201-202; processos metabólicos, 76; que afetam o QI, 401; regulamento de, 99; ruins, 30, 34-35,
37, 39, 345; saltitantes, 226

genealogia(s), 36-38, 263, 281, 306-307, 333, 338-39: conjunto padronizado de, 325; Islândia, 343-45; lago Maracaibo, 319, 324-26

Genentech, 128-34, 137-38, 140-41, 143

Genesweep, 215

Généthon, 198

genética, 25, 46, 54, 261-63, 289, 331, 346: aplicações da, 18; avanços da, 320; comportamental, 401-406; da diferença, 390-91, 400,
408; da inteligência,
398; das doenças humanas, 316-46; da inteligência, 404, 406-408; das plantas, 156; do comportamento, 37-38, 400-405, 408-12, 414,
419-21; do

desenvolvimento, 248; e política, 392-98; implicações sociais da, 28; mecanismos da, 18; moderna, 389-90; molecular, 308, 322, 332; na
União

Soviética, 394-98; para melhorar a condição humana, 427-29; populacional, 293; primórdios da, 15-46; santo Graal da, 243; traços, 32,
36-38

geneticistas, 52-53, 75, 78-79, 255-56, 328, 339, 392,


415: e eugenia, 389

Genetics Instirute, 134-35, 137-38, 141

genoma, 182-213, 222-23, 226, 228, 230, 238, 322, 324,


327: bacteriano, 228-29, 231; comercializando,

203; comparação de, 237; consórcio do, 209-11; duplicação do, 225; elementos móveis no, 226; humanos/ratos comparados, 414; leitura
de,
214-48; maior gene, 330; mapa de ligação, 324-
26; mapeamento do, 191, 324-26, 345; mínimo,
229; número de genes do, 215; oportunidade de negócios no, 187, 204; organismo-modelo, 227; primeira versão publicada, 189;
seqüenciamento, 184-89, 195, 205-207, 221, 346, 417; tamanho

e complexidade, 223; tamanho e seleção natural,


224-25; variação do, 274; ver também Projeto

Genoma Humano

Genome Corporation, 187-88

genômica, 244: bacteriana, 231-33

geração espontânea, 12

Gibbs, Richard, 212

Gilbert, Walter (Wally), 96, 119-20, 120, 123-24, 129,


131-33, 186-87, 201, 269, 339: biotecnologia, 134; e o Projeto Genoma Humano, 185-89; genoma bacteriano, 228; prêmio Nobel, 123

Gill, Peter, 301-302, 304, 306

Gleevec, 145, 239

glóbulos vermelhos, 50, 78-79, 79

glucocerebrosidase, 374

glutâmico, ácido, 80

glutamina, 336

Goddard, Henry, 34-35, 41

Gore, Al, 190

gorilas, 255-56, 258, 275, 280

Gosling, Raymond, 63

Gould, Stephenjay, 221-22

Grã Bretanha, 32, 386-88, 408: Base Nacional de Dados de dna, 297, 299; incidência da Síndrome

de Down, 355; MRC: Medicai Research Council,

58, 190, 198; programa Biobank, 346; Serviço Nacional de saúde, 353

Gram, método de, 231

Grant, Madison, 42, 389

Green, Phil, 206

Greenberg, Mike, 413

Griffith, Fred, 50-51, 104

Grunberg-Manago, Marianne, 87-88

Grupo dos Fagos, 53-54, 62

grupos étnicos, doenças entre, 391

guanina (G), 49, 53, 62, 64-65, 80-81, 86, 89, 121, 123,

190, 194, 204, 216, 228, 399

guanina-citosina, pares de base, 65, 70 Gusella.Jim, 326-27, 332, 335 Guthrie, Robert, 351
Habsburgo, lábio dos, 16, 23, 32

Haemophilus influenzae, 206, 228, 230

Hagerman, Randi, 362

Hall, Stephen, 132

Hamer, Dean, 418

Hammarsten, Einar, 52

Hammer, Michael, 268-70, 273

Hanahan, Doug, 146

Handyside, Alan, 367

Hanratty, James, 311-13, 312

Harvard.o rato de, 139, 139

Haseltine, William, 200-202, 200, 206

Healy, Bernardine, 199

hélice, 59, 63-64

hemofilia, 26-27

hemoglobina, 78-80, 89-90, 240, 254: estrutura da,


73, 238; gene da, 89

hemoglobinopatias, 363-64, 378

Heppel, Leon, 115

herança/ambiente, 15, 32, 38, 386-422: debate, 399-


401, 421-22; efeitos na inteligência, 406-408; estudos de gêmeos, 401-406

herbicida, 160, 173, 178: resistência a, 177

hereditariedade, 16-21, 23-24, 28, 49, 396: características de, 37; de doenças, 318-19; do comportamento, 46; leis da, 92; padrão de, 76,
308, 332,
350, 360, 420; predisposição, 369; teoria cro-

mossômica de Sutton-Boveri, 24, 26-27

Hereditary Disease Foundation [Fundação Doença Hereditária], 319, 324, 328, 336

Hereditary genitis (Galton), 32

460

461
Heredity in relation to eugenics (Davenport), 38

Herrnstein, Richard, 407-408

Hershey, Alfred, 53, 62

hibridação: in situ fluorescente [FISH], 352-53,356; do


DNA, 256

Himmler, Heinrich, 44

Hipócrates, 18

Hitler, Adolf, 42, 44-45, 429

HIV, 130, 192, 201-202, 376, 428

Hoagland, Mahlon, 85

Hoechst, 168

Hoffman, Eric, 331

Hoffmann-LaRoche, 138, 195, 345

Holmes, Oliver Wendell, 41

Holocausto, 45, 372

homens, história dos, 271-74

hominídeos, 260, 268

Homo erectus, 260

Homo neanderthaknsis, 250,268; ver também neandertais

Homo sapiens, 236, 250, 260, 268, 410

homogentisate dioxigenase, 92

homossexualidade masculina, 418

homozigótica, 76

homúnculo, 19, 19

Hood, Lee, 191, 195-96

hormônio de crescimento bovino (bGH), 149-50, 170

Horsch, Rob, 155-56, 180

Horvitz, Bob, 93

Housman, David, 326, 328, 335

Human Genome Sciences (hgs), 200-203, 206

humanos, 29: modernos, 252-53, 258, 268; procriação preferencial dos indivíduos dotados, 33-34, 34; separados dos grandes macacos,
255

Hunkapiller, Mike, 196, 206-207

huntingtina, 336

Huntington Disease Collaborative Research Group [Grupo Colaborativo de Pesquisa da Doença de Huntington], 336

Huntington, doença de, 37-38, 316, 317-20, 324, 326-


28, 331, 349-50, 356-58, 372, 382-83, 385; gene da, 203, 320, 324, 328, 331-32, 335-36, 391; localização do gene da, 326-27; teste da,
357; trata-

mento para, 373-74, 376

Huntington, George, 317-18 Hutchinson, Clyde, 229

icos, 144

identificação genômica, 13, 283-315, 295

imigração, 41-45, 271

Immunex, 143

Implicações éticas do Projeto Genoma Humano, 431

imputação criminal, impressão digital do DNA em,

288, 291-310, 313-14

informações biológicas, 47, 49, 52

informações genéticas, 18, 83, 103: aplicação clínica das, 314; fluxo de, 130; organizadas hierarquicamente, 245; troca de, 113; uso das,
382-84

informações hereditárias, 11-12, 75

Ingram, Vernon, 80

Innocence Project, 284, 311

Insel, Tom, 414

inseticidas, 161, 163, 173

insetos, 152-53, 161-62, 166, 178

Institute for Genomic Research, The [Instituto de Pesquisas Genômicas] — TIGR, 200-201, 203,
205-206,228-29,231,233

Instituto Rockefeller, 49, 52-53

instruções, código de, 48-49, 67, 75, 83: codificação à Ia Gamow, 83

insulina, 123, 128-29, 140, 237: clonagem para, 131-

34, 141

inteligência/qi, 357, 415: base molecular da, 401; dos gêmeos, 403; e baixa contagem gênica, 221; genética da, 398, 401, 404-408;
tendência ascendente, 408; testes, 35, 41

interesse, conflitos de, 134-35, 187

interferon, 133

íntrons, 124-25, 129-30, 217, 330: fugu, 217

intuição moral, 433

inversão cromossômica, 355

irlandês, o, 386-88, 422

Islândia, 272, 343-45: cadastro nacional de saúde da,


344

Itano, Harvey, 78

Ivanov, Pável, 301-303, 306


462

Jacob, Prançois, 85, 93-96, 94, 229 Japão, 189, 268, 270, 402: buraku, 407; pgh, 189-91 jaworski, Ernie, 155 Jefferson, Thomas, 309-10
Jeffreys, Alec, 285-88, 28,5, 290-91, 301 Jenkins, Trefor, 267 Johnson & Johnson, 141, 143 Johnson, Lyndon, 102 Johnson-Reed, lei de
imigração, 43, 45 judeus, 42, 44-45, 273-74 Juke, clã dos, 34

junk DNA [dna-Lixo], 198, 206, 208, 210, 217, 223, 227,
276, 285, 322; ver também DNA

Lewis, Ed, 247

ligação, análise de [linkage analysis], 322, 324, 332-33,

339, 341-43, 345

ligação, mapa de, 324-26 ligações peptídicas, 97 ligase, 102, 104, 106 linguagem, 268, 271, 280, 421 Usina, 89, 90

Lissenko, Trofim, 393, 394-98

lissenkoísmo, 392, 396-97

litoautótrofos, 235

Luria, Salvador, 53-54, 57-58

Lwoff, André, 94-95, 94

Kalckar, Herman, 54

Karle.Jerome, 110

Kendrew, John, 57-58, 73, 238-39

Kent.Jim, 210-11, 21Í

Khorana, Gobind, 88, 89

Khruschov, Nikita, 158, 158-59, 398

King, Mary-Claire, 255-7,256, 281, 310, 338-9, 369, 372

King’s College, unidade biofísica do, 59, 61, 64

Kõhler, Georges, 142

Kornberg, Arthur, 73, 73, 101-102, 110

Krings, Mathias, 251-53, 257

Kunkel, Lou, 329-31

Laboratório Europeu de Biologia Molecular, 244

lactose, 95-96: intolerância à, 278

Lamarck, Jean-Baptiste, 19, 395-96, 395

Lander, Eric, 208-209, 212, 417

Laughlin, Harry, 42-45, 43, 389, 405

Leder, Phil, 139, 139

legislação, 130-32, 171, 428: alimentos transgênicos,


171; terapia gênica, 378-80

legislação governamental, 171, 428

Lehman, Bob, 102


lei, 12: biotecnologia e, 137; DNA e, 289-290, 311-13; e

ciência, 289

leucemia mielóide crônica, 145

levedura: ancestral humano e, 236; ciclo celular da,

244; cromossomos artificiais de (yacs), 197; ge-

noma, 188, 223, 225, 232

macacos, 255, 430: vírus, 109

MacLeod, Colin, 50-52

”mal da vaca louca”, 141, 172, 173

malária, 79, 214, 364

mama, câncer de, 139, 143, 338-41, 369-72: genes favoráveis ao, 243, 338-41; ver também BRCAl,

erca2, câncer

Maniatis, Tom, 134

manipulações genéticas, 18, 425: em camundongos,

412,412

mapa das ligações gênicas do genoma humano, Um (Do-

nis-Keller), 324 mapeamento físico, 188, 198

mapeamento genético, 27, 70, 203-206, 321-24, 335,


401, 418: de doenças genéticas, 331; do gene de uma doença, 323; em doenças mentais, 415-17; Projeto Genoma Humano, 197-98
Maracaibo, lago (Venezuela), 319, 324-26 marcadores genéticos, 197, 320-21, 330, 338, 400: novo tipo de, 292; utilizados em
diagnósticos, 331 marcos gênicos, 188, 210 massa, espectrômetro de, 240 Massachusetts General Hospital, 84 Matthaei, Heinrich, 88 •’

McCarty, Maclyn, 50-52 McClintock, Barbara, 225, 226

McKusick, Victor, 325

McPherson, John, 198 Mein feamp/(Hitler), 44

463
melanina, 276

melanocortina, receptor de, 277

Melchett, lorde Peter, 17»’°

Mendel, Gregor, 18-25, . 28’ 36> 7;”76. 92- 157- 226,

395-97

mendelismo, 395-96 mente fraca feebXemmdec nes 34’36. 39> 41- 46> 346.

391

Meselson, Matt, 71-72, 7 ’ 85> 116íf Meselson-Stahl, experim’ento de’ 7J- 72 metabolismo, erro no, 7 ’ 80’ 92

metionina, 176

micoplasmas, 228

microplaca [microarray], /241”44. 28<>, 341 micróbio, 232, 234-35

microbiologia, 231-32 Miescher, Friedrich, 49

Mieth, Dietmar, 432 migração, homens/mull eres’ 271 milho, 156-59,157, 168-7 ’

Milstein, César, 142 mioglobina, 58, 73, 238, 85 Mirsky, Alfred, 52 Mirzabekov, Andrei, 120 MIT, 115, 117, 191:InstiWtoWhitehead> 140,208,209,

417

mitocôndria, 251, 258, 263 Modell, Bernadette, 364, 378 modelos, construção de, 58”61’ 63”65. 67”68> 83”84 Molecular cloning, 125

moléculas: estrutura tTi ° das, 55; processos subjacentes à vií*a” ’ Mônaco, Tony, 330, 421 monoaminas, 420: oxida ’ 296’ 420”21 Monod.Jacques, 93-96,
229 monozigóticos, 402 Monsanto, 149, 152, 154-56’ 164’ 168”70. 173”74. 180:

tecnologia Roundup &«*>’ 160> 168- 173> 177 Morgan, Michael, 207

Morgan, Thomas Hunt, 24”28’ 2S- « 54> 70. 77- 94-


244-45, 320-21, 395-?6: garot°s de Morgan, 25,

28, 70, 94, 188

63

378

mórmons, 321, 325, 333

339

mosaico-do-tabaco, vírus, 62, 81

mosca-das-frutas, 24-28, 54, 70, 77, 94, 227, 236-38,


244-46, 320-22: antennapedia, 246, 247; desenvolvimento, 244-48; elementos móveis, 227; genoma da, 208, 223; potencial reprodutivo, 28, 188; proteínas,
237; seqüenciamento, 188; variação,
274

mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster), 24, 26, 246

movimento eugênico, 34-36, 39, 44, 390, 399, 427

mudança gênica, 51, 375: espontânea, 415

mulheres, história das, 271-74

Muller, HermanJ., 53, 77, 395-96

Müller-Hill, Benno, 96, 432

Mullis, Kary, 192, 193, 195

Murray, Charles, 407-408

mutações, 28-29, 38, 65, 76-77, 148, 217-20, 254, 256,


264: anemia falciforme, 363; benéfica, 236, 263;

causadas por raios X, 53-54; causando doenças,

183, 296, 319, 335-38, 340, 350, 357-58, 360, 369;


diferenças entre humanos e chimpanzés, 281; dna repetitivo, 223; e doença de Huntington,
318, 391; e seguradoras, 382; eliminadas pela seleção natural, 275, 431; em grupos étnicos,
364; ervilhas, 92; homeóticas, 247-48; impacto das, 79; induzidas num mofo tropical do pão,

76-77; mapeamento, 70, 80; na DMD, 327-29,


331; na mosca-das-frutas, 245-48; nas seqüências de dna, 258; no câncer, 125, 276, 337, 339-40,

369-70; no gene da hemoglobina, 79; num cromossomo Y, 271; taxa de acumulação, 260; variações por, 275

mutantes, 25

Mycobacterium tuberculosis, 232

Mycoplasma genitalium, 229-30

Myerowitz, Rachel, 365

Myers, Gene, 210-11

Myriad Genetics, 306, 339-41

Nãgeli, Karl, 21

nama, povo, 31, 31

nanismo, 140

natalidade, controle da, 39

National Academy of Sciences, 111, 117, 186, 188-89

National Institutes of Health [nih], 87, 102, 104, 114,


189-90, 199, 339-40, 376: comissão rac [Recombinant dna Advisory Committee], 118; pesquisas de recombinação em conformidade com,
117-18, 154, 378; Subcomissão de terapia gênica humana do, 377

nature of the chemical bond and the structure of molecules, The (Pauling), 56

Nature, revista, 68-69, 157, 215, 286, 333-34

natureza humana/humanidade, 190, 213, 280-81,

409-10, 421, 425-26: amor à, 434; essência da,

433-34; genoma humano contém a chave da, 183

nazistas, 33, 41-42, 44, 94, 399, 431-32: eugenia, 44-46

neandertais, 249, 250-53, 257, 268, 278: DNAmt, 301;

expulsos pelo H. sapiens, 260

Neufeld, Peter, 283, 290-91, 311, 315

neurobiologia, 92-93

neurofíbromatose (síndrome de Von Recklinghausen ou mal do homem-elefante), 203, 341

Neurospora crassa, 77

neurotransmissores, 143-44, 417-18, 420

Niccols, Andrew, 424

Nicolau II, czar, 300-304, 395

nilótica, forma, 278

Nirenberg, Marshall, 87-89

Nobel, prêmio, 52, 110, 120, 123-24, 123n, 133: comissão selecionadora, 52, 73, 93; de fisiologia/medicina, 73, 73, 89, 93, 130, 228, 246-47,
325; em física, 57; em química, 59, 73, 97, 192,
238

Noller, Harry, 97, 97

Norrish, Ronald, 59

novidades genéticas, 25, 175, 227, 419

Novo Mundo, 255, 269, 271


núcleo, 125

nucleotídeo(s), 11, 52-53, 59, 63, 86, 285

Nüsslein-Volhard, Christiane Janni, 244-47

O que é a vida? (Schrõdinger), 47-48, 47-4«, 58, 65, 94 O’Reilly, Michael, 146 Ogilvie, Bridget, 204 Olson, Maynard, 187, 197

oncorrato, 139-40, 139, 146

oração, eficácia da, 32

organismos alterados geneticamente patenteados,

136

organismos-modelo, 204-205, 227, 244 origem das espécies, A (Darwin), 19, 28, 30, 56, 250 origens humanas, 13, 250, 253, 280-81 ornitina
transcarbamilase (OTC), 379 ovário, câncer de, 338, 340, 370

Oxford Ancestors, 270, 282

P4, laboratório, 100, 131-32, 154

Pããbo, Svante, 251-52, 268, 280

pangênese, 18-20

papel, cromotografia em, 53

parasitismo, 154, 409

Parkinson, mal de, 144, 161-62

parses, 273

passado humano, dna e, 249-82

passing of the great roce, The (Grant), 42

Pasteur, Louis, 12

patente(s), 71, 137-38,142, 156, 343: de idéias, 139; de métodos, 136, 156; de novos genes, 199; especulativa, 202; gene do câncer de mama, 339-40; genes
humanos, 199, 201-202; método CohenBoyle, 135-36; organismos alterados geneticamente, 136; PCR, 194

paternidade: índice de, 309; testes de, 286,289, 307-10

patrilocalidade, 272

Pauling, Linus, 56-58, 58, 61-63, 68, 71, 78-80, 275: abordagem molecular da evolução, 253-55; prêmio Nobel, 123n

Pearl, Raymond, 45

pele: câncer de, 276, 390, 419; cor da, 275-77, 389-90,
418

perfil gênico, 296

PerkinElmer, 206

personalidade, 405, 421

Perutz, Max, 57-58, 73, 238-39

pesquisa, 36, 61, 186, 404-405, 429: adiamento/atraso da, 112, 118; controle governamental, 117; em biotecnologia, 133; falhas na divulgação, 415-17;
impacto das patentes na, 139; regulamentos,
117-18; restrições à, 114

464

465
±
pesticidas, 151-54, 163-64, 174, 177-78: genes como,
171; organofosforados, 161; riscos com, 161-62

pgh, ver Projeto Genoma Humano

pigmentação, 276-78

Pioneer Hi-Bred International, 158, 168-69

piretrina, 161, 164

”pistola gênica”, 156, 156, 159

planta(s), 17, 153-54, 221: biotecnologia, 153-55; cruzamento, 175-76; defesas químicas nas, 164-66; engenharia genética, 168; genética
das, 155; geneticamente modificadas, 148, 153, 159, 162-
63, 167-68; perfil nutricional das, 167-68; prevenção de doenças, 163-64; tecnologia, 167-69

plasmídeo(s), 103-106, 103, 109, 119, 233: combinados, 137; híbridos, 106; replicados, 104; trocas,
113

Plomin, Robert, 398, 401

pneumonia, bactérias de (Pneumococcus), 50, 104

polimerase, reação em cadeia da (pcr), 138,192-95,


193-94, 252, 257, 294: amplificação, 356; aplicação comercial, 138; diagnóstico por DNA, 367

pólio, programa de vacinação contra a, 109

polipeptídeos, 56-57, 96: cadeias, 81, 85, 86

política, 119: ciência e, 277, 389-91, 400, 404-405, 422; genética e, 392-98

poli-u, 87-89

populações: estudos, 346; exames, 360,363; geneticamente isoladas, 275, 364-65; naturais, 28; peque-

nas, 342-44

porfiria, 17

portador(es), 23, 26-27, 332, 360-61, 364-65

Porton Down, 131

pré-formismo, 19

pré-história, 13, 268, 270

pré-implantacional, diagnóstico, 366-69

pré-mutação, 358, 363

pré-natal, exame, 331, 352, 355n, 385, 405, 432

prism, máquinas de seqüenciamento, 206-207

privacidade genética, 345, 383

procariotos, 125

Prochlorococcus, 235

procriação consangüínea, 16

produtos secundários, 164-65

Programa da Genética da Asma de Toronto, 342-43

Projeto Genoma Humano (pgh) , 27, 138, 184-91,


214-16, 236, 238, 248, 275, 314, 334, 359, 414: co-

laboração internacional, 190, 204-205, 205; e pesquisas sobre câncer, 341; implicações éticas, legais e sociais do, 190, 431-32;
osganismos-modelo, 227; público /privado, 207-11, 211, 216; rascunho, 210-11, 216; sucesso do, 241; uso comer-

cial, 199-202, 200

”projeto genoma mínimo”, 229

propriedade intelectual, patentes de, 156

proteção cruzada, 164, 171

proteínas, 49, 51-52, 55, 124, 129-30: alfabeto de vinte letras das, 13, 52; -alvo, 143,145; ancestrali-

dade comum, 236; aperfeiçoamento de, 147; cadeias de, 80, 89; codificação de, 124, 216-17, 242; comercializáveis, 128; configurações
complexas,
90; de manutenção [housekeeping pmteins], 93; e dna, 80, 96-98; e enzimas, 80; em biotecnolo-

gia, 141-42; estrutura tridimensional da, 58, 238-


39; evolução das, 236; função das, 61, 239; genes e, 78-79; geneticamente modificadas, 140; inibidoras naturais da formação de vasos,
146; produzidas por tecnologias recombinantes, 147; reguladoras, 221; seqüência de aminoácidos das,
80; seqüenciamento de, 84, 123, 253, 255; síntese, 81, 83-85, 87, 97; substituição de uma ausen-

te, 374

proteoma, 248

proteômica, 238, 239, 240

Prova de Frye, 289

Pseudomonas aeruginosa, 229

psicologia evolucionista, 410-11

Ptashne, Mark, 96, 116, 134

química, 12, 47, 49, 54, 56, 73-74: essência da vida é

questão de, 13, 231 químicos, 53, 56-57, 67-68

raça, 275, 279, 390-91, 407, 411-12

racismo, 33,391: científico, 42,43,405; eugeniae, 41-

45

radiação ultravioleta, 276-77, 338, 419

466

raios x: difração de, 55-59, 61, 238-39; teoria heli-

coidal, 60

Rathmann, George, 141, 144 reação imunológica, 255 receptores olfativos, 219 recessivo, 22-23, 26, 37, 76, 79, 332, 350, 360, 365,

391,420

recombinação (genética), 27, 70, 108n, 148, 263,

329-30: ausente no cromossomo Y, 262; DNAmt

nunca sofre, 258

recursos, competição por, 29, 397

reducionismo, 221
Regeneron, 142, 144 Reimers, Niels, 135

religião, 333, 387-88, 428, 431-33 relógio molecular, 254-55

ReoPro, 143

repetições, 206, 223, 285: em doenças neurológicas,


336; no X-frágil, 358; nos testes de paternidade,
308

repetições curtas enfileiradas (STRs), 292, 295, 297,

299, 308-309, 336

repressora (molécula), 95-96, 119, 229 resgate, experimentos de, 237

resistência, 168, 177-78: antibiótica, 103-104; das pra-

gas, 166, 177

restrição, polimorfismos do comprimento dos fragmentos de (RFLPs), 290-92, 295, 297, 322-27, 338: G8, 335; ligações, 328-29, 338-39,
346; marcadores, 324-26, 329, 332; na pesquisa da fibrose

cística, 333

retardamento mental, 351, 357, 419

retrovírus, 376-77, 380

revolução biológica, 24, 111 revolução genética, 359, 381, 401, 423, 427 ribossomos, 75, 81, 85-86, 88-89: estrutura tridimen-

sional, 75, 97

Rich, Alex, 82, 84

Rifkin, Jeremy, 101, 149-50, 150, 170 Risch, Neil, 417

rna (ácido ribonucléico), 51, 81, 83-85, 87, 96-97,


166, 376: antecendo o dna, 97-98; cadeias de, 83,
85, 120; convertidos em dna, 130; difração por

raios X, 84; estrutura do, 84; formas de, 85-86; função do, 81; gera proteínas, 130; papel central nos processos celulares, 236;
polimerase, 83, 89,
198; relíquia do processo evolutivo, 98; sintetizando permutações de, 89; Tie Club, 82, 83-84,
86; transportador, 86, 89

rna mensageiro, 85-87, 89-90, 96-98, 124-25, 198,


240, 243, 358: edição de, 129; isolando, 130; papel central na célula, 96

Roberts, Richard, 124

roedores, acasalamento de, 413-14

Rogers, Michael, 111-12

Rogers, Steve, 155

Romanov, Anastácia, 300-301, 303-304

Romanov, os, 300-301, 302, 303-304, 306

Roosevelt, Theodore, 41

Roses, Allen, 372

Roundup Ready, tecnologia, 160, 168-69, 173, 177

Rutherford, Ernest, 57
Sahai, Suman, 178

Sanford, John, 156

Sanger, Fred, 119, 120, 121, 123-24, 191, 195-96, 232: método de seqüenciamento de dna, 120-21,122,
123, 196; prêmio Nobel, 123 Sanger, Margaret, 39 Sarbah, Andrew, 286-87

Sarbah, Christiana, 287

Sarich, Vince, 255, 260

sãs, povo, 265-67, 265, 277 Scheck, Barry, 283, 290-91, 294, 311, 315 Schell.Jeff, 154-56 Schmitz, Ralf, 251

Schrõdinger, Erwin, 47-49, 48, 55, 58, 65, 67, 70, 94 Science (periódico), 111,333 secularismo, 433

seguro-saúde, 382-84 Seielstad, Mark, 271-72 seleção artificial, 159 60, 175, 411 seleção natural, 28 29,45,98, 103, 148, 160, 164, 178,
194, 217-20, 237: e mutações, 275, 430-31; e tamanho do genoma, 224-25; em plantas, 164; evolução por, 19, 280; formato do corpo,
278,

467
s
,1?

Cf | •
278; gene da anemia falciforme, 364; intuição moral inata pela, 433; mutações eliminadas pela,
275-76, 431; na cor da pele, 276-77; na interação social, 426; no behaviorismo, 408-409; poder da,
235; variações genéticas afetando a, 262-63

Sequana, 343

seqüenciamento, 119-21, 123-26, 231-32, 254-55,


340-41: cdna, 199; de genomas, 205-206, 221; dna antigo, 251-52; do genoma humano, 184-86,
188-89, 195, 206-207, 346, 417; em escala indus-

trial, 418; mecanização do processo de, 195-96; métodos/tecnologias, 188, 191, 195-97, 204, 213; organismos-modelo, 204-205

seqüenciamento automatizado, 191, 195-96, 206-208,


228, 232: máquinas, 196, 206-207, 232

seqüências gênicas, multiplicação de, 225

serotonina, 417, 420

Serviço de Ciência Forense [Forensic Science Ser-

vice], 301

sexo/sexual, 1819: cromossomos que determinam o, 26, 101; doenças ligadas ao, 327-28, 357, 367-
68; vinculação ao (sex-linkage), 26

Shapiro, Robert, 169-70

Sharp, Harry, 40

Sharp, Phil, 124

Shelley, Mary, 423-24

Shelley, Percy Bysshe, 423

SIBIA, 144

Süent spring (Carson), 151

Simpson, Nicole Brown, 291-94

Simpson, O. J., 291-94, 313

síndrome da imunodeficiência severa combinada

(SCID), 347-48, 380-82, 429

Sinsheimer, Robert, 184-85

sistema imunológico, 142-43, 201-202, 376-77, 380: regido pelo dna, 183

Skolnick, Mark, 321-22, 339

Smith, Hamilton, 228

Smith, Lloyd, 196

SmithKline Beecham, 201, 203

sobrenomes, 264-65, 306

sociedade humana, ciência e, 399

Sociedade John Clough, 307

Sodobiologia (Wilson), 398, 410

splicing alternativo, 221

Spooner, William Archibald, 23

Stahl, Frank, 71-72

Stálin, Joseph, 81, 159, 392, 394-95,397-98

Starlink, 168, 171-72

Stefansson, Kari, 343-44


Steinberg, Wallace, 200

Stevenson, Debbie, 368, 368

Stoneking, Mark, 252-53

Stopes, Mane, 39

Sugen, 146-47

Sulston.John, 93, 204-205

Suprema Corte, 41, 137, 289, 311

Sutton, Walter, 24

Sutton-Boveri, teoria cromossômica de hereditarie-

dade, 24, 26-27

SV40, vírus, 109-111, 125

Swanson, Bob, 127-29, 132-33

Sykes, Bryan, 270, 282, 306-307 Synergen, 142 Szilard, Leo, 71

talassemias, 363-64

Tatum, Ed, 76-78

Tay-Sachs (ts), 183, 296, 364-66, 391, 430-32

tecnologia, 101, 138-40, 292, 418, 429: transgênica,

vítimas involuntárias da, 176

Teller, Edward, 83

Temin, Howard, 130

tentilhões, 29

terapia gênica, 14, 110, 375-82, 427-31: controvérsias

com respeito à, 378; linha germinal, 375, 428-

30; somática, 375, 382, 429

terminator, gene, 170, 173 testes genéticos: estigmatização dos, 361-62, 365;

implicações éticas, legais e sociais, 356-63; para

Alzheimer, 373; para câncer de mama, 340-41

timina (T), 49, 53, 62, 64-67, 80-81, 87, 89-90, 121,

124, 190, 194, 204, 216, 228, 276, 399

Tobias, Philip, 267 Todd, Alexander, 53, 63, 67

Tbdliche Wissenschaft [Ciência mortal] (Müller-Hill), 432

468
tomates, cultivo de, 166-67, 178

toxinas, 176

tradução, 89, 91, 124

transcrição, 89, 91, 124, 240-1: fatores de, 229, 245-


46, 421; genes que codificam os fatores de, 247 transcriptase reversa, 130-31, 198 transcriptoma, 243, 244, 248 transcriptômica, 238, 241-42, 244
transferência horizontal, 233

transformação, 51: genética, 257 transtorno bipolar, 415-18 triagem genética, 340-41, 351, 361-66, 371 trigo, 175, 115

trinucleotídeos, seqüências repetidas de, 336

trissomia 21, 351, 353, 355-56


Tristão da Cunha, 342-43, 342

Tsien.Joe, 412

Tsui, Lap-Chee, 332-34, 333

tumores, 125, 145-47, 242

Underhill, Peter, 262-63, 269

União Soviética, 81, 158-59, 301, 392-98

Universidade Columbia, 24, 28, 53

Universidade da Califórnia, 184: em Los Angeles (ucla), 378; San Francisco (ucsf), 129, 136, 140,

146, 191,338

Universidade de Cambridge, 62, 64, 85-86, 134-35: laboratório Cavendish, 11, 57, 58, 60, 60, 62, 64-

65, 70, 80, 238; laboratório de biologia molecular, 58-59, 61; mrc — laboratório de biologia molecular, 142

Universidade de Harvard, 24, 85, 115, 117, 119-20,

134, 139, 146, 187, 201, 208, 406: departamento de biologia molecular e celular, 134; empresa de biotecnologia, 134-35

Universidade de Michigan, 191

Universidade de Nottingham, 65

Universidade de Utah, 321, 339

Universidade de Wisconsin, 77, 89

Universidade Stanford, 77, 102-103, 109-10, 118, 135-

36, 138, 185-86, 241, 261, 321, 417: centro de

mapeamento, 191

Universidade Washington, 53, 73, 110, 154-55, 163-

64: centro de mapeamento do genoma, 191,

198, 203-204, 209, 213

uracila (U), 87, 90

vacina, proteína da, 168

valina, 79, 80, 84, 89

van Montagu, Marc, 154-55

Vand, Vladimir, 60

variações genéticas, 28-30, 274-76, 321: distribuição das, 268; padrões de, 268; padrões de, entre judeus, 273; seleção natural nas, 262-63, 275

vasopressina, 414

Vellucci, Alfred, 115, 117-18, 134-35

Venter, Craig, 191, 199-201, 200, 205-209, 212, 216,


228, 231-32, 325, 384-85; genomabacteriano, 228

verme nematóide, 93, 188, 204, 220, 222-23

vernalização, 392-94

vertebrados, 221, 233-34, 247

Vetter, David Qmbble boy), 347-48, 347, 376, 380

Vibrio cholerae, 231, 234

vida, 12-13, 47-48, 74, 108: árvore da, 236; baseada no

rna, 96; criando, 101-102, 231; essência da, 48,

231; evolução da, 98; genoma com um roteiro para a, 238, 240, 248; história da, 235; linguagem da, 65; mecanismo básico da, 99; problema ”ovo-ou-
galinha” da origem da, 98; processos genéticos subjacentes à, 183; processos moleculares subjacentes à, 96, 101; reação química, 12; segredo da, 11-12, 67,
87, 423-24

vikings, 271-72, 344

vilosidade coriônica, amostra da, 352-53

violência, gene da, 419-20

vírus, 101-102, 130-31, 341, 376: mutações em, 70;

tamanho do genoma, 229; tumorais, 118, 125

vitalismo, 12, 48, 74, 424

vitamina A, deficiência de, 167

vitamina D3, síntese da, 276

vitaminas, 77-78

Vitória, rainha, 26-27

vitorianos, 29-30, 33, 433

Wallace, Alfred Russel, 45

Wallace, Henry, 158

469
Waterston, Bob, 204-205, 20S, 212

Watson, John, 399

Weber, Barbara, 369-70

Weber, James, 210

Weismann, August, 20

Weissenbach, Jean, 197, 198

Weissmann, Charles, 133

Wellcome, 137

Wellcome Trust, 198, 204, 207

Wexler, Leonore, 316-17

Wexler, Milton, 316-17, 319

Wexler, Nancy, 316-17, 316, 319, 324-26, 328, 335,

349,357,359,371, 384

White Anglo-Saxon Protestants (wasps), 41 White, Ray, 285, 322, 324-26, 333 whole genome shotgun: abordagem, 206; método,

206, 208, 210, 228

Wieschaus, Eric, 244-47

Wigler, Michael, 242-43 Wilkins, Maurice, 55, 56, 59-61, 63-64, 64, 68, 69:

prêmio Nobel, 73

Williams, síndrome de, 415

Williamson, Bob, 328, 333

Wilson, Allan, 254-58, 260-63, 269, 275, 281

Wilson, E. O., 179, 398, 410

Wilson, James, 379

Wilson, Rick, 212, 213

Winston, Robert, 366-67

Woese, Carl, 236

World Trade Center, 305

Wyeth, 134

Wyman, Arlene, 285

Wyngaarden, James, 185, 189-90

X-frágil, 357-59, 362-63, 368, 368, 426-27, 431

Young, Larry, 414

Zamecnik, Paul, 84-85

Zinder, Norton, 113

zoroastrianos, 273
Zuckerkandl, Emile, 253-55, 275

470

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