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E O CONSENSO DE “CHICAGO”
As vicissitudes da nomenclatura e suas implicações
regulatórias*
Em minha tese de doutorado (Machado, aqueles das famílias e jovens intersex. No contexto
2008), analisei os elementos em jogo nas decisões desse estudo, uma das questões que se apresenta
envolvendo a “determinação” do sexo em crian- diz respeito às diferentes posições e apropriações
ças intersex e o “gerenciamento”1 sociomédico e no que tange ao uso da terminologia concernente à
cotidiano da intersexualidade. De um lado, tratou- intersexualidade, considerando que também essa
se de compreender as perspectivas, as práticas e denominação (intersex) não é auto-evidente, ou seja,
os discursos de profissionais de saúde e, de outro, ela é tão datada histórica e socialmente como qual-
quer outra e remete a um determinado contexto
* Este trabalho foi apresentado no 31º Encontro Anual social, político e de produção científica.
da Anpocs, no Seminário Temático “Sexualidade e ciên-
cias sociais: desafios teóricos, metodológicos e
O Ocidente lidou de formas muito diferen-
políticos”, coordenado por Júlio Assis Simões (USP) e tes com os corpos considerados “andróginos” ou
Sérgio Luís Carrara (UERJ), em outubro de 2007, “hermafroditas” (Fausto-Sterling, 2000). No decor-
Caxambu-MG. Agradeço as contribuições dos e das rer do tempo, observa-se que foram sendo propos-
participantes do ST, em especial à professora Jane tas e negociadas modificações nas formas de nomi-
Russo (UERJ), debatedora da sessão. O texto integra nação, classificação e apreensão de categorias para
a tese defendida no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
se remeter às “variações da diferenciação sexual”,
Grande do Sul, em 2008, sob orientação da professora desde a antiga concepção de “hermafroditismo”,
Daniela Riva Knauth. passando pela “intersexualidade” do século XX e
Artigo recebido em novembro/2007 chegando à definição atual de “Disorders of Sex
Aprovado em maio/2008 Development” (DSD). Esses usos têm implicações
na forma como os diferentes atores sociais – mé- Na esfera médica, em 1917 o termo “inter-
dicos, juristas, ativistas políticos, religiosos, pessoas sexualidade” foi utilizado provavelmente pela pri-
intersex e seus familiares, entre outros – com- meira vez no sentido de fazer referência “a uma
preendem e agem diante dessas situações. Ou seja, gama de ambigüidades sexuais, incluindo o que
as mudanças não apenas se referem ao modo de antes era conhecido como hermafroditismo” (Dre-
denominar os sujeitos, mas também à maneira de ger, 2000, p. 31).2 Nos anos de 1990, essa denomi-
definir a “condição” que os acometeria e em rela- nação foi apropriada também pelos ativistas políti-
ção às estratégias utilizadas para “corrigir” seus cor- cos intersex engajados na luta pelo fim das cirurgias
pos. Além disso, as transformações e os debates precoces “corretoras” de genitais ditos “ambí-
em torno da nomenclatura apontam para os atores guos”.3 Entretanto, é preciso salientar que médicos
sociais considerados mais legítimos para tratar da e movimento político não definem “intersexuali-
questão e ao modo como os diferentes saberes dade” de maneira idêntica. Os grupos de ativismo
acionados se inter-relacionam. Em outras palavras: intersex normalmente oferecem outras definições
qual ganha mais ou menos valor, qual ganha maior para o termo, por meio das quais buscam contes-
ou menor peso e relevância quando se trata de to- tar a idéia de patologização da intersexualidade,
mar decisões nesses casos? assim como aumentar as possibilidades do que é
Conforme demonstra Anne Fausto-Sterling possível de ser incluído no termo para além das
(2000), o “hermafroditismo” nem sempre foi re- definições médicas.4
gulado pela esfera médica. Segundo a autora, até o A pertinência da nomenclatura “intersex” e
início do século XIX, as decisões envolvendo o es- as categorias de “hermafroditismo” e “pseudo-
tatuto da pessoa intersex estavam a encargo de ad- hermafroditismo” nela compreendida foram re-
vogados e juízes. Michel Foucault (2001) mostra de centemente questionadas de forma “oficial” no
que modo legalmente – e sobretudo penalmente – domínio médico com a publicação, em agosto de
lidou-se com a questão até esse período. Em um 2006, do chamado “Consenso de Chicago”, no qual
curso ministrado no Collège de France, de janeiro está proposta a utilização do termo “Disorders of
a março de 1975, o autor abordou o tema da Sex Development” (DSD)5 no lugar da antiga no-
“Anormalidade”, apontando como a definição do menclatura “Intersex” ou “Estados Intersexuais”.
indivíduo “perigoso”, “anormal”, do século XIX, Um grupo de cinqüenta “especialistas” no tema
remetia a três figuras. Eram elas: o monstro, o in- (médicos de diversos países e, ainda, dois ativistas
corrigível e o onanista. políticos) reuniu-se em 2005, em Chicago, com a
Segundo Foucault (2001), os hermafroditas intenção de discutir diversos tópicos relacionados
constituíam um tipo de monstro que foi privilegia- ao “manejo” médico da intersexualidade. A partir
do na Idade Clássica. Ele demonstra como, ao lon- dessa reunião, foi elaborado o documento. De acor-
go do tempo, foram operadas modificações na do com o consenso,
forma de lidar com essa “monstruosidade”. Des-
creve o autor que, até o século XVI, o simples fato Termos como “intersex”, “pseudo-hermafroditismo”,
de ser hermafrodita justificava a condenação à “hermafroditismo”, “reversão sexual” e as etiquetas
diagnósticas baseadas no gênero são particularmente
morte. Já no século XVII, observou-se uma modi-
controversos. Esses termos são percebidos pelos paci-
ficação desse imperativo e tal penalidade não tinha entes como especialmente pejorativos e podem ser con-
mais vigor. No entanto, o indivíduo incorria em fusos tanto para os profissionais como para os pais (Lee
erro grave contra as leis penais caso, depois de es- et al., 2006. p. e488, tradução minha).
colhido o sexo “dominante” (o que era necessário
fazer), utilizasse o “sexo anexo”. Chegou-se, então, É possível aventar algumas hipóteses a res-
à noção de monstruosidade do século XIX, segun- peito do contexto no qual se assinalou a necessida-
do a qual não haveria “mistura de sexos” e sim de de elaborar esse “consenso” para modificar a
“imperfeições da natureza”, que poderiam evoluir nomenclatura. De um lado, pode-se apontar para
para determinadas condutas criminosas. De algo uma motivação mais “formal”, comum à elabora-
inscrito na natureza, passou-se, de acordo com ção de qualquer consenso na área médica: a atuali-
Foucault (2001), ao que progressivamente foi assu- zação científica em relação a uma área de conheci-
mindo um caráter mais moral. mento e intervenção específica, visando a ditar
não em “mudança”, a autora procura demonstrar De um lado, então, o trabalho de Fleck ([1935]
de que modo o conhecimento é capaz de suscitar 2005) leva a considerar a elaboração do “Consen-
rearranjos na forma de compreender e de lidar com so” como um processo sociocultural. Existiriam,
os fatos. Se antes, por exemplo, a noção de família assim, transformações sociais que culminariam na
estava ligada diretamente à procriação e à construção fabricação tanto de um outro “social”, como de
da identidade social, com as novas tecnologias repro- uma outra “natureza”.7 De outro lado, a análise de
dutivas, é possível pensar a procriação (a união dos Strathern (1995) ajuda a pensar a questão das defi-
gametas) desvinculada da reprodução (que supõe nições e das classificações médicas como efeitos de
laços sociais). De acordo com Strathern, isso signi- deslocamentos gerados pelo conhecimento cientí-
fica passar a ter mais parentes e, paradoxalmente, fico – no caso em questão, mais especificamente,
menos relações. O conhecimento e sua explicitação pelo conhecimento biogenético, como será mais
produzem, assim, rearranjos nas relações sociais, bem explorado. A idéia de que há um rearranjo de
trazendo consigo, segundo ela, mais incertezas para domínios também remete aos desdobramentos
os cientistas, os médicos e outros que o utilizam. práticos gerados pelos novos conhecimentos: o
Um dos efeitos do deslocamento é “tornar o que muda? Quais reordenações sociais e culturais
implícito explícito” (Idem, p. 347), o que faz com são engendradas? São mesmo engendradas? No
que um conhecimento vá se justapondo ao outro, caso da intersexualidade, se o deslocamento é mes-
provocando novos arranjos. O que está em jogo, mo possível, quando e onde podemos percebê-lo
destaca Strathern, não são apenas novos procedi- e/ou provocá-lo, incitá-lo?
mentos que auxiliariam a chegar mais perto da “na- A escolha do “Consenso de Chicago” para
tureza”, mas conhecimentos diferentes. Conforme tratar dessas questões justifica-se basicamente por
aponta a autora, quando o implícito se torna ex- duas razões: em primeiro lugar, é a reformulação
plícito, mudam as concepções e a forma de com- mais atual, elaborada por um grupo de “especialis-
preender, de “olhar”. “O deslocamento torna-se tas”, que a definem, justamente, como um “con-
radical” (Idem, p. 347). senso”; em segundo lugar, é um documento privi-
Fleck ([1935] 2005), em 1935, apontava que legiado, em que se podem identificar algumas
as idéias científicas circulam, ou seja, que não existem diretrizes no “manejo”8 e “diagnóstico” de pessoas
rupturas totais entre uma e outra (como sugeriria, nascidas com corpos sexualmente “não standards”,
mais tarde, a noção de paradigmas de Kuhn, por apontando para algo que, durante o trabalho de
exemplo).6 Por outro lado, Fleck (Idem, p. 53), assim campo no Brasil (mas especialmente na França) foi
como Strathern, aponta para reposicionamentos, se mostrando cada vez mais claro: o importante
ou mesmo “mutações” nos estilos de pensamento, papel desempenhado pela genética e pelos conhe-
o que faz com que a emergência de novos conceitos cimentos em biologia molecular nas tomadas de
desestabilize os antigos e indique outros elementos decisões, nas discussões e nas produções científicas
que devem ser levados em consideração, além de em torno da intersexualidade.
outras formas de constituir “naturezas” e “fatos cien- A análise do “Consenso de Chicago” aponta
tíficos”. Em seu trabalho, em que aborda a história para pelo menos dois tópicos que serão examina-
da sífilis e a “descoberta” da reação de Wassermann dos mais detalhadamente nesse artigo: 1) o surgi-
(teste diagnóstico para a sífilis), Fleck demonstra mento de novas terminologias, nas quais uma es-
que existe uma construção desses “fatos científicos”, pecialidade médica (a genética) ganha destaque; 2)
a qual acontece a partir de um trabalho coletivo o esforço no sentido de uma classificação calcada
dos indivíduos. Nesse sentido, há uma historicida- em termos cada vez mais “técnicos” e com códi-
de da “descoberta”, que não pode ser percebida gos muito complexos e específicos.
como um evento isolado, mas como uma produção
que ocorre no contexto de um “coletivo e de um O Consenso de Chicago
estilo de pensamento”. A produção do conhecimen- e a solidez do invisível
to científico, para Fleck, é um fenômeno social e cultu-
ral (Löwy, 2005). Ao mesmo tempo, o social não é O título oficial do artigo que ficou conhecido
tido por ele como algo que constrange a ciência, mas como “Consenso de Chicago” é “Consensus sta-
o que a torna possível e a legitima (Latour, 2005). tement on management of intersex disorders”.
Logo em sua introdução, aparece o mote geral do Especificamente em se tratando dos “estados in-
texto e do encontro entre os “especialistas” que tersexuais”, de acordo com a literatura médica, eles
contribuíram para a sua forma final: revisar o ma- podiam ser divididos em quatro principais grupos:
nejo das “desordens/distúrbios intersexuais” a partir pseudo-hermafroditismo feminino (presença de
de uma perspectiva mais ampla, revisar os dados ovário, sexo cromossômico 46XX,10 genitália in-
relacionados com os resultados a longo prazo e terna considerada “feminina”, mas genitália exter-
formular propostas para estudos futuros (Lee et na tida como “ambígua”); pseudo-hermafroditis-
al., 2006, p. e488). Nesse sentido, há o reconheci- mo masculino (presença de testículos, cariótipo
mento de que está em questão um fenômeno imerso 46XY, genitália externa considerada “feminina” ou
em uma trama complexa, que compreende os “ambígua”); disgenesia gonadal (presença de gô-
avanços no desenvolvimento científico (os quais se nadas disgenéticas11 ); hermafroditismo verdadeiro
convertem em progressos nas técnicas de diag- (presença de tecido ovariano e testículos na mesma
nóstico e intervenção), aspectos sociais mais gerais, gônada ou separadamente) (Freitas, Passos, Cunha
assim como transformações no lugar dado ao Filho, 2002). Anne Fausto-Sterling (2000, p. 52) ela-
paciente no processo de tomada de decisões, a pa- borou um quadro no qual descreve os “tipos” mais
tient advocacy. Segundo o “consenso”, todos esses comuns de intersexualidade, que figurariam no in-
elementos teriam levado à necessidade de reexami- terior dos principais grupos citados. Esses “tipos”
nar a nomenclatura. seriam os seguintes, segundo a autora: Hiperplasia
Assim, apesar de considerar explicitamente Adrenal Congênita (incluída na categoria de pseu-
uma série de fatores envolvidos no “manejo” de do-hermafroditismo feminino), Insensibilidade
recém-nascidos intersex, pode-se constatar um pro- Periférica aos Andrógenos (tipo de pseudo-herma-
pósito particular do “Consenso” que parece se so- froditismo masculino), Disgenesia Gonadal, Hipos-
brepor aos demais: a revisão da nomenclatura. pádias (conformação corporal que pode ser asso-
Conforme nele descrito, uma nova nomenclatura é ciada a alguns casos diagnosticados como genitália
fundamental no intuito de integrar os avanços da incompletamente formada), Síndrome de Turner (tipo
genética molecular no que concerne ao “desenvol- de disgenesia gonadal) e Síndrome de Klinefelter
vimento sexual”. É interessante notar que a antiga (também incluída, segundo Fausto-Sterling, na ca-
nomenclatura, “Estados Intersexuais”, já compre- tegoria de disgenesia gonadal).
endia, na prática, os conhecimentos da genética, Tal classificação entre “hermafroditas” e
entretanto esses não estavam na base da classifica- “pseudo-hermafroditas” é amparada pela con-
ção. A nova proposta sugere que “os termos deve- cepção dominante no período que Alice Dreger
riam ser mais descritivos e refletir a etiologia gené- (2000) denominou de “The Age of Gonads” (“A
tica, quando disponível, bem como acomodar o Idade das Gônadas”), que teria sido inaugurado
espectro da variação fenotípica” (Idem, pp. e488- no final do século XIX e cuja taxonomia – divisão
e489, tradução minha). Isso sugere que “termos entre “hermafroditas verdadeiros” e “pseudo-her-
mais descritivos” evitariam possíveis confusões, mafroditas” – manteve sua estrutura mais geral
aproximando a nova nomenclatura de algo mais praticamente inalterada até os dias atuais. A idéia
“verdadeiro”, da ordem da “realidade” dos cor- central sobre a qual se baseava essa classificação era
pos. A etiologia genética constitui-se, assim, como a de que a “verdade” sobre o sexo seria determinada
uma versão naturalizada do sexo, que balizaria a pela “natureza das gônadas”. Assim, possuir testí-
diferenciação entre homens e mulheres em um ní- culos ou ovários foi, durante muito tempo, o marca-
vel profundo, posição outrora ocupada principal- dor inequívoco da diferença entre homens e mu-
mente pelas gônadas.9 lheres “verdadeiros”, assim como o balizador para
Tanto quando se refere a crianças nascidas distinguir o “verdadeiro” do “pseudo” hermafrodi-
“intersex” como com uma “DSD”, trata-se de ta. Na época que sucede a “Era das Gônadas”, esse
“casos” envolvendo a decisão por “reconstruir” um critério é relido. A questão, que antes era possuir ou
sexo ou outro por procedimentos cirúrgicos/clíni- não ovários ou testículos, volta-se à resposta do cor-
cos, fundamentalmente no período pós-natal (ain- po aos estímulos hormonais e às “construções” ci-
da que as intervenções pré-natais já possam ser vis- rúrgicas dos genitais. Inaugura-se, assim, um perío-
lumbradas no campo de possibilidades médicas). do em que todo um arsenal endocrinológico e
cirúrgico vai sendo cada vez mais utilizado a fim de Vale destacar que o conteúdo sociocultural dos
“determinar” e “construir” o “sexo verdadeiro”.12 aspectos biológicos considerados sempre estiveram
Dreger (2000) constata que essa divisão basea- muito presentes e, após a “Idade das Gônadas”, prin-
da nas gônadas tornou-se insustentável na prática cipalmente a partir da “Era Money”, nos anos de
médica até o início do século XX,13 ainda que teo- 1950, passaram a ganhar uma nova tradução median-
ricamente (para o diagnóstico e no que concernia te a idéia de função. A função se inscreve, nas definições
aos aspectos fisiológicos) já fosse muito importante médicas, em dois registros: sexual (referente à possibi-
para os médicos. A autora revela que, no processo lidade de se engajar em relações sexuais envolvendo
de definição do sexo a ser “atribuído” a um/uma penetração), e reprodutivo (relacionado à conserva-
“hermafrodita” ou “pseudo-hermafrodita”, outros ção da capacidade procriativa).14 Assim, uma decisão
“traços” eram extremamente relevantes. Tais traços que devesse levar em conta a melhor possibilidade
remetiam a aspectos sociais e morais ligados às ex- de exercício dessas funções é o paradigma sustentado
pectativas culturais de gênero. Com o avanço da com muita força a partir da metade do século XX.
genética e das técnicas cirúrgicas, mais elementos A idéia de “funcionalidade” guiando as esco-
foram agrupados para as tomadas de decisões, que lhas no que diz respeito ao “manejo” da intersexua-
foram se tornando cada vez mais complexas. O que lidade não desapareceu no “Consenso de Chicago”,
se observa nesse sentido é que, quanto mais a pro- porém a nova nomenclatura ofereceu um novo
dução científica na área biomédica avançou na busca enquadramento para essas funções. Não se trata ape-
de elementos inequívocos para se descobrir onde, nas de uma nova estandardização, mas também de
afinal, encontrava-se o “verdadeiro” sexo, mais sur- um novo olhar, de um outro registro da “nature-
giram “ambigüidades” (Kraus, 2000). Isso porque za” e, conseqüentemente, de novos dispositivos de
foram sendo revelados mais “níveis” possíveis de regulação. A mais recente codificação revela, tam-
localização do sexo no corpo – níveis anatômico, bém, a emergência de uma outra biologia, de um
genético, hormonal, gonadal – não necessariamente outro corpo, bem como de outra materialidade que
coerentes entre si e, além disso, passíveis de serem os compõem. O Quadro 1, reproduzido do “Con-
combinados de diferentes formas (Machado, 2005). senso”, esquematiza a revisão da nomenclatura.
Quadro 1
Intersex DSD
Logo em seguida, ainda no artigo referente volvimento Sexual”, a qual merece também uma
ao “Consenso”, é fornecido um exemplo de clas- atenção especial (Quadro 2).
sificação por “Desordens/Distúrbios do Desen-
Quadro 2
46,XX/46,XY
(Quimera, DSD ovotesticular)
Abaixo do Quadro 2, há ainda uma nota que Essa citação fornece no mínimo duas indica-
merece ser destacada. Nela está escrito: ções: em primeiro lugar, que é o cariótipo, e não
mais as gônadas, que sustenta a estrutura da classifi-
Embora a consideração do cariótipo seja operatória cação, remetendo-a ao domínio da genética, da
para a classificação, a referência desnecessária ao carió- embriologia e da biologia molecular. Em segundo
tipo deve ser evitada; idealmente, um sistema apoiado
lugar, estabelece que existem elementos, como a
sobre termos descritivos (por exemplo, síndrome de
insensibilidade aos andrógenos) deve ser utilizado sem- referência ao cariótipo, que, embora importantes
pre que possível (Lee et al., 2006, p. e489, tradução do ponto de vista teórico e conceitual, devem ser
minha). evitados no contexto da relação médico-paciente,
provavelmente para evitar as supostas “confusões” rem rearranjos tanto na nomenclatura, como em
que essa informação possa gerar nos pacientes e relação a alguns aspectos do gerenciamento socio-
em suas famílias. médico da intersexualidade, na medida em que an-
Se observarmos os dois quadros acima, ve- tigos parâmetros de classificação e ação se tornam
remos que algumas das classificações antigas fo- insuficientes do ponto de vista técnico e social. No
ram agrupadas. Por exemplo, a categoria “Homem que se refere às transformações no campo científi-
XX” ou “Reversão Sexual XX” é incluída na cate- co, uma nova taxonomia torna-se necessária já que
goria “DSD 46 XX”, como uma desordem do muda, entre outros elementos, a ênfase que é dada
desenvolvimento sexual testicular ligada a um SRY aos diferentes componentes envolvidos na “deter-
positivo e/ou a uma duplicação de SOX9, consi- minação e diferenciação sexual”. Como apontado
derando que SRY e SOX9 são nomes dados a dois anteriormente, o que sustenta a nova classificação é
dos múltiplos genes descritos como envolvidos nas especialmente a “etiologia genética” do sexo, e não
“DSDs”. Já a antiga categoria “Hermafroditismo simplesmente o modo como a suposta “desor-
Verdadeiro”, ao contrário, é diluída em três novas dem” se expressa no fenótipo, seja ele interno (o
classes: “DSD ligada ao cromossoma sexual”, “DSD que inclui as gônadas) ou externo.
46XX” e “DSD 46XY”. Nesse sentido, o “Consenso de Chicago” e o
Especificamente em relação a esse último uso do termo “DSD” nele proposto expressa o que
ponto, é importante ressaltar que desde os pri- desde o final dos anos de 1990 vem se confi-
mórdios da “Idade das Gônadas”, segundo Alice gurando como o quadro contemporâneo no
Dreger (2000), o “hermafrodita verdadeiro” esta- diagnóstico e no “manejo” envolvendo crianças
va fadado à extinção em termos sociais. Confor- intersex: o papel central ocupado pela genética e
me demonstra a autora, a possibilidade da existên- pela biologia molecular na discussão e na produ-
cia social de um “verdadeiro hermafrodita” era ção de conhecimento no interior do campo médi-
considerada, por definição, algo impossível, na co e biológico do “desenvolvimento (determina-
medida em que era preciso pertencer a um entre os ção e diferenciação) sexual”. Então, ainda que o
dois sexos considerados factíveis. Nesse sentido, “Consenso” afirme que o “desenvolvimento psi-
Dreger interroga a justificativa meramente “cien- cossexual” é influenciado por múltiplos fatores –
tífica” como a única razão de se adotar as gônadas exposição aos andrógenos, genes dos cromosso-
enquanto marca de distinção sexual no que se refe- mos sexuais, estrutura cerebral, contexto social e
re ao período considerado em seu estudo. Para ela, dinâmica familiar (Lee et al., 2006, p. e489) –, do
esta foi uma tentativa de preservar a “clara” distin- ponto de vista do “desenvolvimento sexual”, espe-
ção entre “homens” e “mulheres”, independente- cialmente no período pré-natal, parece ser a gené-
mente da ambigüidade que pudesse ser identificada tica e a rede de conhecimentos que a compõe (oriun-
na aparência física ou nos comportamentos adota- dos da embriologia e biologia molecular, por
dos. Desse modo, Dreger (2000, p. 153) acredita exemplo) que encompassam todo o processo de
não ser uma mera coincidência que na mesma época definição do sexo. O “invisível” genético e molecu-
em que ela identifica o “desaparecimento” da cate- lar, nessa perspectiva, ganha uma concretude – ou
goria “hermafrodita”, outros historiadores apon- seja, uma solidez – e perfaz, sob o signo de outra
tem o nascimento da categoria “homossexual”. Na materialidade, um outro corpo, aquele da verdade
visão da autora, tratava-se, na verdade, da necessi- genética.
dade de localizar esses sujeitos – “o/a herma-
frodita” e “o/a homossexual” – em classificações
específicas e autônomas entre si. Como se pode As subdivisões do “Consenso”
constatar, essas definições acerca do “verdadeiro ou o que mais está em jogo?
sexo” ou do “verdadeiro” ou “pseudo” herma-
froditismo, para além de representarem um inte- O “Consenso de Chicago” é composto por
resse meramente acadêmico, sempre possuíram uma série de subdivisões que pretendem abordar
importantes implicações políticas e sociais (Idem). o “manejo” da intersexualidade a partir de uma
Retomando a análise sobre os quadros e so- perspectiva mais ampla. O artigo (Lee et al., 2006)
bre o “Consenso”, é possível observar que ocor- está, assim, dividido em quatro grandes blocos:
Dessa forma, termos como “intersex”, “pseudo- É fundamental apontar, portanto, que os des-
hermafroditismo”, “hermafroditismo” e “reversão locamentos gerados pelo conhecimento biogenéti-
sexual”, considerados “etiquetas diagnósticas ba- co vão muito além de sua legitimidade científica.
seadas no gênero” (Lee et al., 2006, p. e488) dão No caso específico do gerenciamento sociomédi-
lugar a outras “etiquetas” representadas princi- co da intersexualidade, um desses efeitos é deixar
palmente por letras e números (como evidencia a menos manifestos os elementos sociais envolvidos
sigla DSD 46XX, por exemplo), as quais seriam no processo de tomada de decisões, reafirmando
supostamente menos “controversas” do que as a concretude do sexo – um entre dois, e apenas
primeiras. dois – por meio da reconstrução da sua história
Cabe a pergunta: o que há de tão controver- biológica no interior do corpo. Conforme aponta
so nos antigos termos? Ou ainda: em relação a que Rabinow (1999) ao se referir às novas tecnologias
eles geram tanta polêmica? Se tais termos podem ligadas à genética, ocorre uma espécie de dissolu-
causar “confusão”, como assinalado no “Consen- ção do social, que leva, entre outras conseqüências,
so”, o que, por assim dizer, não deve ser “confun- à construção de uma outra noção de natureza, tal-
dido” em se tratando da diferenciação sexual? Fi- vez menos “romântica” e com contornos menos
nalmente, vale também indagar quem detém o fixos. Para Rabinow, algumas categorias culturais –
poder de falar sobre o “sexo verdadeiro” e sobre como o gênero e o sexo – podem rearranjar-se
a “realidade do corpo” em cada uma de suas par- com outras, serem sobrepostas ou mesmo redefi-
tes mais microscópicas? E que ferramentas (técni- nidas por elas. Nesse ponto, eu gostaria de introdu-
cas, conceituais, lingüísticas, entre outras) é preciso zir o que me parece ser outro efeito do desloca-
dominar para tanto? mento fomentado pelo conhecimento biogenético:
A proposta de mudança da nomenclatura e a a emergência do que chamarei de “sexo-código”.
própria elaboração e significação do “Consenso de O sexo-código é aquele que está sob o regis-
Chicago” oferecem pistas interessantes na direção tro lingüístico e cognitivo da nova genética e da
dessas questões. A hipótese central que pretendo biologia molecular. Desse modo, não se apresenta
desenvolver é a de que a utilização de termos cada através de uma linguagem que pode ser comparti-
vez mais “codificados” responde, por um lado, ao lhada por todos, mas apenas por um grupo restri-
esforço de tentar encobrir aspectos mais relacio- to de “iniciados”. No seu dia-a-dia, as pessoas não
nais envolvidos no “diagnóstico” do sexo de alguém, se perguntam se possuem SRY positivo ou negati-
como as negociações cotidianas entre os profissio- vo, se possuem ou não uma duplicação em SOX9,
nais da saúde envolvidos, famílias e pessoas inter- se apresentam ou não uma mutação em WT1 ou
sex. É como se, através dessa nova proposta, fosse quem sabe, em DMRT1. O sexo-código constitui
possível invisibilizar os processos e as relações so- uma outra verdade sobre o sujeito, que é revelada
ciais implicados nas tomadas de decisão em rela- pelo corpo em cada molécula, em cada seqüência
ção à atribuição do sexo em crianças intersex. As genética. As pessoas são, paradoxalmente, cada vez
letras e os números tornam-se variantes naturalizadas mais inseparáveis (não se pode escapar do sexo-
de conhecimentos informados por valores e repre- código) e, ao mesmo tempo, cada vez mais distan-
sentações socioculturais. tes do seu sexo-código.
Por outro lado, ao afastar-se de expressões mais Instaura-se, assim, uma outra biologia. Segun-
compartilhadas pelo senso comum (como her- do Jean-Paul Gaudillière (2000, p. 54), ao contrário
mafroditismo) ou pelo ativismo político (como dos reducionismos iniciais, o que temos hoje é uma
intersex) e aproximar-se de códigos mais “técni- “ciência de sistemas complexos”. Além disso, ele
cos”, os novos termos buscam invisibilizar o uso afirma que não se está mais tratando dos mesmos
de categorias classificatórias morais e/ou identi- pressupostos que aqueles da embriologia do século
tárias, associando essas últimas a um caráter neces- XIX. Há, assim, uma nova concepção de corpo, de
sariamente “pejorativo”. Dessa forma, o antigo “sexo”, e uma outra compreensão do processo de
“hermafrodita verdadeiro” não é o mesmo, do “determinação e diferenciação sexual”. O sexo-
ponto de vista social e cultural, que o indivíduo código revela o corpo em seu registro microscópico,
“DSD Ovotesticular”, ainda que essas categorias ao mesmo tempo em que se sobrepõe a seu regis-
estejam relacionadas no texto do “Consenso”. tro macroscópico.
Das concepções abstratas e conceituais, sus- em função de uma determinação externa, visto que
tentadas pela biologia molecular e pela “nova em- eles refletem percepções e valores internalizados.
briologia”, à prática clínica e às intervenções cotidia-
nas, há, contudo, uma distância considerável. Em
relação a isso, Camargo Jr. (2003) já apontava para Considerações finais
os paradoxos e contradições possíveis entre a me-
dicina teórica e a prática clínica. Assim, ainda que No que se refere à medicina do século XIX e
eu mesma utilize os termos “intersex”/”intersexua- início do século XX, merece destaque a preocupa-
lidade” e o “Consenso de Chicago” proponha o ção com a origem da “diferença sexual” e a desco-
termo “DSD”, durante o meu trabalho de campo berta dos hormônios sexuais como promessa de
para a pesquisa de doutorado, outros termos eram desvelamento da “chave” ou ponto inequívoco para
também utilizados pelos atores sociais, em contex- entender essa diferenciação (Oudshoorn, 1994;
tos e condições específicas, tanto no hospital brasi- Wijngaard, 1997; Rohden, 2008). Os chamados
leiro como no francês. “hermafroditas” desempenharam um papel fun-
Ainda que a literatura médica fizesse menção damental nessas definições (Dreger, 2000). Se é
aos “estados intersexuais”, mesmo os médicos que possível afirmar que o saber médico impõe um
acompanhei no hospital brasileiro, por exemplo, regime político e de autoridade sobre os corpos
dificilmente utilizavam a denominação “intersexo” de uma forma geral, os corpos intersex constituí-
entre eles e, pelo menos nos momentos em que ram um palco privilegiado de ação dessas regula-
pude observar, nunca fizeram uso desse termo ções, em função de desafiarem a estabilidade da
durante as consultas com os familiares e/ou com dicotomia sexual como norma. De acordo com
as crianças/jovens intersex. Se, de uma forma ge- Elsa Dorlin:
ral, o termo genitália ambígua era visto por eles como
inadequado (porque não daria conta de todos os O poder médico foi historicamente empregado como
“estados intersexuais” e, também, porque faria re- paliativo das tensões e das contradições teóricas, para
ferência à idéia de “ambigüidade”), o termo inter- acabar com os casos excepcionais, com os casos limites,
sexo também não era considerado livre de proble- suscetíveis de minar os modelos explicativos da bi-
mas. No seu dia-a-dia, percebi que os médicos sexuação. Nesse sentido, a questão do hermafroditis-
mo, dos casos de ambigüidade sexual tornando difícil a
permitiam-se utilizar entre eles o termo genitália assignação a um sexo, foi o ensejo para uma longa crise
ambígua quando se referiam a algumas “condições” na história do pensamento médico e das teorias da dife-
consideradas “intersexualidade”. No entanto, esse rença sexual ou da diferenciação sexuada (Dorlin, 2005,
uso era terminantemente contra-indicado diante das p. 123, tradução minha).
famílias e pessoas intersex, situação na qual julga-
vam preferível o uso da expressão genitália incomple- Integrando esse regime político e de autorida-
tamente formada (Machado, 2006). de, estão, como procurei demonstrar, as nomencla-
O modo como as diferentes nomenclaturas turas e as taxonomias empregadas, as quais atuam,
são acionadas pelos médicos mereceria uma dis- também, como práticas regulatórias. Como lem-
cussão mais detalhada. Restrinjo-me, aqui, a salien- bra Judith Butler (2002), a nomeação cria distin-
tar que, em seu cotidiano, os médicos que acompa- ções, estabelece fronteiras e obedece a um conjun-
nhei mesclavam o uso de algumas nomenclaturas to de normas, que são exaustivamente reiteradas.
(como genitália ambígua e genitália incompletamente for- Assim, as categorias classificatórias dirigidas ao cor-
mada) e sistemas de classificação (conforme obser- po, em particular à “determinação e diferenciação
vei no hospital francês em relação ao sistema pré e sexual”, e a regulação da sexualidade por elas ope-
pós-”Consenso de Chicago”), dependendo do radas possuem implicações na forma como ocor-
contexto da enunciação, ou seja, se a mesma era re o gerenciamento sociomédico da intersexualida-
feita em uma situação de discussão acadêmica, se de e, também, na maneira como é pensado o
estava restrita aos pares no cotidiano do hospital, estatuto corporal e ético das pessoas intersex. A
se era remetida aos pacientes e seus familiares, entre partir de uma perspectiva crítica, e considerando a
outras possibilidades. Além disso, deve ser salienta- perspectiva dos direitos sexuais enquanto direitos
do que o uso dos termos não muda repentinamente humanos, vale refletir, entre outros elementos, acerca
das implicações políticas e éticas, em um nível mais cesso de transformar o corpo do sujeito “político”
amplo de análise, das terminologias como opera- em um corpo que necessita de cuidados médicos.
doras de diferença, bem como para as conseqüên- É a medicalização do político, em última análise,
cias concretas que elas podem gerar nos corpos que acaba mediando o acesso aos direitos.
intersex, como as intervenções clínico-psicoterapêu- Encerro este texto reforçando a importância
tico-cirúrgicas. de lançar um olhar teórico e metodológico para
Conforme já salientado, as transformações e essa questão das definições em “consensos” e no-
os embates em torno da nomenclatura indicam que, menclaturas que designam estados – e estatutos –
de um lado, mudam os atores sociais envolvidos corporais. Como procurei demonstrar no decor-
no processo, mas, de outro, transforma-se o modo rer deste artigo, essas definições entrelaçam dife-
como os saberes desses atores se compõem entre rentes questões e permitem situar as decisões que
si, ora se aliando, ora se distanciando. A partir das acontecem nos hospitais em um contexto social mais
análises sobre o “Consenso de Chicago” fica, en- amplo de produção de conhecimento. A termino-
tão, evidente que a nomeação, ou o “ato de no- logia emerge, assim, como um nó situado entre
mear”, é estabelecida dentro de um campo de dis- considerações técnicas, humanas e ético-políticas. A
putas (Bourdieu, 1996). reflexão sobre a mesma se estende, ainda, à minha
As reflexões apresentadas também apontam própria pesquisa e às minhas escolhas terminológi-
para determinadas reconfigurações provocadas cas como pesquisadora. Desse modo, projeta-se,
pelo conhecimento científico na esfera da interse- também, sobre as implicações éticas, políticas e teó-
xualidade. No contexto das novas tecnologias re- rico-metodológicas que delas decorrem.
produtivas, Marilyn Strathern (1995) chama aten-
ção, por exemplo, para a emergência de novos
elementos, provocada pela produção de conheci- Notas
mento e de tecnologias, os quais tensionam os limi-
tes de antigas definições e geram deslocamentos 1 Agradeço a sugestão do professor Richard Miskolci
que perturbam a suposta estabilidade dos domí- (UFSCAR) quanto à utilização desse termo, pro-
nios da “natureza” e “da cultura”. Ao mesmo tem- posta na ocasião da apresentação do trabalho no
po, cabe lançar algumas questões para reflexão a 31º Encontro da Anpocs. A palavra “gerenciamen-
partir das análises realizadas: no que concerne às to”, aqui, remete à idéia de administração e gestão.
intervenções, o que muda, efetivamente, com o Essa noção também se vincula ao que Foucault (1988)
descreve como o poder de gerir a vida, ou “bio-
“Consenso de Chicago”? Se, como desenvolvi ao
poder”. Da forma como utilizo o termo, “gerenci-
longo do artigo, os conhecimentos em biogenética
ar” é, ao mesmo tempo, dirigir, regular e acompa-
geram deslocamentos, emergindo nesse processo
nhar de maneira sistemática e constante por meio
novas concepções de corpo e de sexo – o “sexo-
de ferramentas e estratégias específicas. Nesse senti-
código” – por que a lógica das decisões parece se
do, tanto médicos, como familiares e pessoas inter-
manter inalterada? O que, nesse sentido, extrapola sex “gerenciam” a intersexualidade. Ao fazer refe-
as definições médicas? rência a um gerenciamento adjetivado como
Os embates em torno da nomenclatura ou dos “sociomédico”, busco chamar a atenção para o fato
“termos corretos” a serem utilizados indicam, ainda, de que existem aspectos socioculturais, como o gê-
que existem rupturas e ruídos não apenas entre profis- nero, que se entrelaçam com os argumentos técni-
sionais de saúde ou entre campos de saber, mas tam- co-científicos.
bém no contexto das relações entre esses profissio-
nais, as pessoas intersex e seus familiares. Ainda, a 2 Conforme esclarece a autora, o termo apareceu no
artigo do pesquisador biomédico Richard Goldsch-
adesão da ISNA à nomenclatura DSD (e a posterior
midt (1917), intitulado “Intersexuality and the en-
dissolução do grupo para dar origem à Accord
docrine aspect of sex”.
Alliance) parece marcar algo importante do ponto
de vista do ativismo intersex, em particular, e do 3 O primeiro grupo de ativismo intersex foi a Inter-
ativismo pelos direitos humanos, em geral. Con- sex Society of North América (ISNA), fundada por
forme ressalta Mauro Cabral (2008), essa adesão a Charyl Chase nos anos de 1990, nos Estados Uni-
termos “medicalizados” inscreve-se em um pro- dos (ver site <http://www.isna.org>).
4 Vale destacar que a ISNA também passou a pro- lação às definições e às intervenções médicas pode
mover o uso do termo DSD (sem, necessariamente, ser mais adequada nesse caso.
abandonar o termo “intersex”). Recentemente, esse 13 De acordo com a autora, foi apenas por volta de
grupo encerrou seu trabalho, dando lugar a uma 1915, com o advento de novas tecnologias médicas,
nova organização, chamada Accord Alliance, inau- como as laparotomias e as biópsias, que foi possí-
gurada oficialmente em março de 2008 e que adota vel identificar de fato testículos em mulheres vivas,
a nova nomenclatura DSD. Disponível no site <http: ovários em homens vivos e ovotestes em “verda-
//www.isna.org>. [Acesso em maio de 2008]. deiros hermafroditas” vivos (Dreger, 2000).
5 Termo que tem sido traduzido para o português Sobre a importância da idéia de “função” no con-
como “Anomalias do Desenvolvimento Sexual”
14
texto empírico em que foi realizada minha pesquisa
(ADS) (Damiani, Guerra-Júnior, 2007). Há tam- para o doutorado, ver Machado (2005).
bém a proposta de “Distúrbios do Desenvolvimen-
to Sexual” (DDS), conforme me esclareceu uma 15 Significa 5 alfa-reductase.
médica brasileira, única latino-americana a ter parti- 16 Insensibilidade Completa (ICA) ou Parcial (IPA)
cipado da reunião para elaboração do “Consenso”. aos Andrógenos.
6 No posfácio à edição francesa da obra de Ludwik 17 Disgenesia Gonadal Mista.
Fleck, Bruno Latour (2005) sugere que uma das in- Para uma análise médica crítica à proposta de revi-
18
justiças dirigidas a esse pensador é o fato de seu são de nomenclatura ver, por exemplo, Durval Da-
conceito de “coletivo de pensamento” ter sido con- miani e Gil Guerra-Júnior (2007).
siderado um mero “precursor” da noção de “para-
digma” de Kuhn. Segundo Latour, para Fleck não 19 Conferir site <http://www.isna.org/node/1066>.
se tratava apenas de estudar o contexto social das
ciências, mas de perseguir todas as relações, os em- BIBLIOGRAFIA
bates e as alianças envolvidas na produção do conhe-
cimento e na história do pensamento. Latour o con- BOURDIEU, Pierre. (1996), A economia das trocas lin-
sidera, assim, um pioneiro ainda atual e instigante.
güísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, Edusp.
7 Esse aspecto remete ao conceito de “co-produção”, BUTLER, Judith. (2002), Cuerpos que importan: sobre
nos termos de Sheila Jasanoff (2006), que aponta los límites materiales y discursivos del “sexo”. 1 ed.
para a inseparabilidade entre o domínio da “nature- Buenos Aires, Paidós.
za” e da produção dos “fatos científicos”, além da CABRAL, Mauro. (2008), Sospechas australianas.
ordem social e política. Córdoba (mimeo.).
8 “Manejo” é uma palavra utilizada no meio médico, CAMARGO Jr., Kenneth Rochel de. (2003), Biome-
especialmente na literatura científica. No inglês, tem- dicina, saber & ciência: uma abordagem crítica. São
se o termo “management”, que diz respeito à forma Paulo, Hucitec.
como uma determinada “condição” será manipula- DAMIANI, Durval & GUERRA-JÚNIOR, Gil.
da, gerida, conduzida. (2007), “As novas definições e classificações
9 Sobre o papel central das gônadas na medicina do dos estados intersexuais: o que o Consenso
final do século XIX e início do século XX, no que de Chicago contribui para o estado da arte?”.
diz respeito à diferenciação entre homens e mulhe- Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabolo-
res, ver Alice Dreger (2000). gia, 51 (6): 1013-1017, São Paulo.
DORLIN, Elsa. (2005), “Sexe, genre et intersexua-
10 A sigla 46XX (ou 46XY) é uma convenção biomé-
lité: la crise comme régime théorique”. Rai-
dica, em que 46 diz respeito ao número total de
sons Politiques, 18: 117-137, maio.
cromossomos de um indivíduo e XX ou XY refe-
rem-se a um dos pares desse conjunto. São os cha-
DREGER, Alice Domurat. (2000), Hermaphrodites
mados “cromossomos sexuais”. and the medical invention of sex. Londres, Har-
vard University Press.
11 Gônadas com “alterações”. FAUSTO-STERLING, Anne. (2000), Sexing the
12 Não parece, contudo, que a “Idade das Gônadas” body: gender politics and the construction of sexuality.
tenha sido suplantada. A idéia de rearranjos em re- Nova York, Basic Books.
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