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TextoEscravidaoModernaCahiersAfriocaine PDF
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Para escrever este artigo contei com o auxílio e a pesquisa realizada com competência por Suely
Aparecida Ribeiro Monteiro, aluna da Universidade Federal de Minas Gerais e futura historiadora, a
quem agradeço. Também estão incluídos nesse texto resultados de pesquisas que venho desenvolvendo
nos últimos anos, como bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico-CNPq, a partir do projeto Do escravismo à civilização: representações do arcaísmo e da
modernidade nacionais em autores da Brasiliana / Coleção Brasiliana: escritos e leituras na nação
(1931-1941).
1
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 24
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 90.
2
Justiniano a dizer que os escravos não têm caput. Não são pessoas”.2 Juridicamente, e
apenas juridicamente, o escravo era coisa, não era gente. Isso significava a possibilidade
de ser vendido, trocado, legado, empenhado pelo proprietário, salvo ocasiões e
condições especiais. Essas práticas se estenderam legalmente ao período durante o qual
desenvolveu-se no Novo Mundo o que os historiadores chamam de escravidão moderna,
entre os séculos XVI e XIX, assim como a antiga definição romana de escravo por
nascimento, a partir do ventre materno. Filho de mãe escrava, portanto, nascia escravo.
Essas continuidades do Direito Romano nas leis que regiam as relações sociais no
mundo colonial foram bem arroladas e salientadas pelo jurista luso-brasileiro, Perdigão
Malheiros.3
Tornar-se escravo por captura ou por dívidas e nascer escravo, assim como
deixar de ser escravo (manumissão) foram acontecimentos regulados por leis, por
normas e por direitos costumeiros na Antigüidade e no período moderno e isso inclui o
continente africano, mesmo antes da chegada dos primeiros europeus. Escravos e não
escravos costumavam conhecer todos esses aspectos e, até mesmo, em proporção bem
maior do que se imagina, reconhecer e aceitar sua existência. Além disso, reificar
homens e mulheres foi procedimento existente na dimensão jurídica, mas isso,
evidentemente, não correspondeu ao dia-a-dia as sociedades escravistas. De toda forma,
essas possibilidades definiram o que era ser escravo nesses mundos, assim como os
procedimentos mais variados em torno da escravidão. Ser escravo, então, significou ser
propriedade privada de outro e, no caso das mulheres escravas, significou dar sucessão à
prole cativa. Já transformar o escravo em coisa, ignorando-se sua humanidade, suas
capacidades, seus conhecimentos, suas habilidades, seus sentimentos, é, creio, uma
opção equivocada e reducionista, adotada por intelectuais de épocas que aceitavam
essas simplificações, mas inaceitável hoje, como discuto mais à frente.
. Um trabalho escravo?
Outro foco de indagações deve ser o chamado “trabalho escravo”. Assim, em
que medida, pergunta-se, é o tipo de trabalho que define a condição de escravo? Há,
portanto, “trabalho escravo”? Ou haveria certos tipos de trabalho que, dependendo de
época e de região, teriam sido executados, preferivelmente, por escravos? O que
2
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso ... op. cit. p. 90.
3
MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil; Ensaio Histórico-Jurídico-
Social. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, 2 vols.
3
4
Ver o caso do escravo crioulo Cosme Teixeira Pinto de Lacerda, que vivia em Minas Gerais, na segunda
metade do século XVIII, in: PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas
Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001, p. 79-84.
5
Ver BERNAND, Carmen. Negros esclavos y libres em las ciudades hispanoamericanas. Madrid:
Fundación Histórica Tavera, 2001, P. 75-90.
6
Ver SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança; a África antes dos portugueses. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 305.
7
Ver, por exemplo, GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde; histoire d’une mondialisation.
Paris: Éditions de la Martinière, 2004, p. 309-338 e GRUZINSKI, Serge. Os índios construtores de
catedrais. Mestiçagens, trabalho e produção na Cidade do México, 1550-1600. In: PAIVA, Eduardo
França & ANASTASIA, Carla Maria Junho. (orgs.) O trabalho mestiço; maneiras de pensar e formas de
viver – séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMG, 2002, p. 323-340.
4
8
HERMANN, Jacqueline. Palmares. IN: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do Brasil colonial (1500-
1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.467-469 e RISÉRIO, Antonio. Escravos de escravos. In: Nossa
História. São Paulo/Rio de Janeiro: Vera Cruz/Biblioteca Nacional, n. 4, p. 62-66, 2004.
5
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei;
Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o
que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Aumento de pena
(...)
Há os que dizem, e não são poucos, que a lei é pouco rigorosa e que precisa ser
alterada para impedir a ação dos “proprietários de escravos” modernos, preconizando,
inclusive, a perda da terra onde o “trabalho escravo” for empregado.10 Não obstante
eventuais alterações no Código Penal, o trabalho análogo ao de escravo é aí
corretamente definido e considerado crime.
Não há escravos, portanto, porque essa categoria foi legalmente erradicada no
Brasil, em 1888. Ora, recriar a categoria “trabalho escravo” hoje, significa, então, fazer
reviver, fazer renascer o próprio escravo e é, também, transformar, pelas vias política,
ideológica, militante e mesmo religiosa – mas não histórica -, o trabalhador explorado
em escravo.
Estamos, assim, diante de um dilema terrível: o “escravo” moderno renasce
exatamente pelas mãos de quem, no passado, lutou pelo seu desaparecimento. Isto é,
seus antigos protetores e redentores teriam se transformado, hoje, em seus reinventores.
Como compreender essa confusa história e como corrigir essa inversão perversa?
Haveria certa insensibilidade intelectual no uso, hoje, de definições tomadas de
empréstimo ao passado? Qual seria o impacto, junto à opinião pública, da imprecisão
teórico-conceitual em curso? Em que medida, a reinvenção do escravo prejudica o
combate ao trabalho compulsório ilegal no Brasil? Ao mesmo tempo, deve-se indagar
sobre a permanência de referências e valores escravistas no cotidiano da população,
sobretudo nas áreas extrativistas e rurais, onde esse “trabalho escravo” é prática
corriqueira. Além disso, quanto do “imaginário do tronco”, isto é, o “imaginário sobre a
escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou
moldadas pelo pragmatismo político”11, permanece nas mentes e nas práticas dos
brasileiros hoje. Em que medida, o desconhecimento generalizado da nova
historiografia sobre escravidão pode corromper e deturpar esses conhecimentos e
julgamentos? Como o próprio ensino de História, nas escolas fundamentais, médias e
superiores, contribui para recrudescer esse “imaginário do tronco” e para a
reimplantação do “trabalho escravo” enquanto prática corriqueira, a ser combatida nos
confins do Brasil e enquanto categoria analítica? São muitas indagações sem respostas
prontas, mas que poderão apontar caminhos a serem seguidos aqui.
10
Projetos de lei relativos à penalização desse tipo de exploração do trabalho vêm tramitando no
Congresso Nacional brasileiro há alguns anos. Eles prevêem alterações na legislação, tornando-a mais
rigorosa. Ver FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra; a escravidão por dívida no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 47.
11
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo ... op. cit. p. 24.
9
12
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência... op. cit. p. 355.
10
“síndrome de ortopedista”!!) significa, como lembrava Silvia Lara, muito mais uma
atitude a posteriori e discutível do observador, do que uma situação de existência
concreta. Um objeto de estudos instigante para a História das Idéias, para a História
Cultural, mas não um procedimento metodológico facilmente aceitável em nosso tempo,
diante dos parâmetros mais atuais do campo de conhecimento histórico, da História
Social, da História antropológica ou da Antropologia histórica.
Mas, seria ingênuo pensar que as denúncias de “trabalho escravo”
contemporâneo se atrelassem às discussões acadêmicas ou aos melindres
historiográficos. Certamente que não. Essas dimensões dificilmente teriam apelo junto
aos inescrupulosos exploradores ilegais de trabalho compulsório ou, mesmo, junto a
autoridades e, principalmente, junto à opinião pública. É necessário reconhecer essa
face frágil e pouco vigorosa de nosso trabalho e dos resultados daí advindos,
infelizmente. Não representamos, geralmente, referências que a opinião pública deseja
escutar ou que demanda para poder formar opiniões. Nossos estudos não são
impactantes em larga escala, como o são os editorias jornalísticos, as pregações
religiosas, as imagens televisivas e cinematográficas e as ações, por vezes inusitadas e
espetaculares, das ONG’s. Essas sim, são mensagens de grande impacto, internacional
até, que atingem e moldam a opinião pública, seja polemizando, seja emocionando-a,
em ritmo acelerado. É claro que em nosso mundo contemporâneo, cada vez mais
imagético, essas linguagens assumem grande eficácia, mas isso tudo não é tão novo
assim. O envolvimento da opinião pública remonta ao século XVIII, mas, sobretudo ao
século XIX, quando um dos grandes temas internacionais, que causava reações
inflamadas na época, agitou populações espalhadas pelo Velho e pelo Novo Mundo: a
abolição da escravidão. Afinal, o mundo ocidental reconhecia nesses regimes
escravistas a face da barbárie, ameaça à cultivada, decantada e projetada civilização,
cujo centro seria e velha Europa, em pleno estágio superior na linha de evolução da
humanidade.
Não é objetivo aqui tratar das teorias evolutivas do século XIX e da divisão
maniqueísta do mundo entre civilização e barbárie, endossada por elas, nada aceitável
diante dos parâmetros fundados na alteridade e na diversidade cultural, que marcam o
pensamento de hoje. Contudo, é necessário demonstrar como esses antigos e
equivocados filtros conceituais continuam existindo, nem sempre explicitamente, entre
nós. Em que medida reinventar o “trabalho escravo” e o próprio “escravo” é, também,
recorrer a esse antigo e simplório esquema analítico e é, ainda, reforça-lo enquanto
11
13
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando... op. cit. p. 44.
13
como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que
houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os
portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar
tamanho poder de gente.
(...)
A língua desse gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet,
não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não
têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e
desordenadamente.14
14
GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da Terra do Brasil. 5 ed. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco/Massangana, 1995, p. 24. Houve duas versões manuscritas desse mesmo tratado, fundindo-as o
autor para a primeira publicação, que apareceu em 1576, em Lisboa, com o título História da Província
de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Entre uma versão e outra há diferenças na redação do
trecho transcrito acima, mas mantém-se sua essência etnocêntrica.
14
formas, e de todo o benefício que se lhe faz na casa de purgar, até se tirar) do Livro III,
o autor setecentista concluía:
O primeiro barro que se pôs na forma [recipiente onde o açúcar cristalizava-
se, saindo daí sob a forma de sino e sendo chamado de pão de açúcar – daí a
designação do célebre morro homônimo, na cidade do Rio de Janeiro], alto
dous dedos, quando se tira já seco, tem só altura de um dedo, que é depois
de seis dias; quando se tira o segundo (que se botou com a mesma altura de
dous dedos), depois de quinze dias, tem só meio dedo de altura. Acabando o
açúcar de purgar, param tmbém as lavagens; e, três ou quatro dias depois
da última, tira-se o segundo barro, já seco, e, depois do barro fora, dão-lhe
mais oito dias para acabar de enxugar e escorrer, e então pode tirar. Nem
carece de admiração o ser o barro, que de sua natureza é imundo,
instrumento de purgar o açúcar com suas lavagens, assim como com a
lembrança do nosso barro, e com as lágrimas se purificam e branqueiam as
almas, que antes eram imundas 15
É claro que a salvação das almas imundas não excluem os brancos, mas, na obra
de Antonil é quase explícita a idéia de que o trabalho escravo e o trabalho árduo nos
engenhos de açúcar do Brasil eram oportunidade de libertação e de salvação que Deus
dava os “negros”. Mas essa lógica não cessaria de ser evocada tão cedo; na verdade,
tenho dúvidas se já o foi. Seu poder de convencimento, associado a inúmeros
argumentos complementares que variaram de época para época, atravessou o século
XVIII, resistiu à abolição da escravatura ocorrida em 1888 e virou o século XIX para o
século XX com notável vigor, ainda que camuflada pelos discursos cientificistas,
racistas, eugênicos e civilizadores que marcaram tão fortemente as idéias sociais e
políticas formuladas durante esse período.
Formas de trabalho compulsório e condições degradantes de vida dos
trabalhadores no Brasil pós-abolição, muito semelhantes ao que se denomina “trabalho
escravo” hoje, continuaram a existir e em larga medida pela vasta extensão territorial do
país. Não eram mais escravos, é verdade. Talvez a proximidade temporal e espacial,
bem como a do cotidiano da escravidão tenha impedido, naquele tempo, de se nomear
as práticas remanescentes como escravistas. Aliás, práticas que muitos viam e
praticavam normalmente, sem que as autoridades se levantassem para denunciar a
continuidade ilegal da escravidão ou da permanência de alguns tipos de trabalho
análogos ao trabalho escravo. Sob o manto da civilização e da eugenia, ex-escravos,
seus descendentes e mestiços de uma forma geral tinham sua força de trabalho
15
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3 ed. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EdUSP, 1982, p. 133.
15
16
Ver MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema; a formação do Estado Imperial. São
Paulo:Hucitec, 1990, p. 121-123.
16
Conclusões
Não há escravos no Brasil porque a categoria não existe nem legalmente, nem no
costume, portanto, nem no sentido histórico dessas dimensões. Poder-se-ia contra-
argumentar que a categoria foi reinventada historicamente e hoje, então, existira sim.
Claro que categorias não são definíveis uma única vez e não devem permanecer sem
alteração infinitamente. Evidentemente, esse contra-argumento é legítimo e pertinente.
Entretanto, não é isso que ocorre no caso do “trabalho escravo” denunciado nos dias
atuais, sobretudo no Brasil, tema enfocado nesse texto. Ao contrário. Não se trata de
uma nova categoria historicamente recriada, mas da apropriação indevida, anacrônica e,
ao meu ver, muito perigosa (pois tem deturpada a sua historicidade) de uma categoria
antiga, a de escravo. E mais ainda: essa apropriação é realizada, geralmente, tomando-se
definições, representações e, até mesmo, análises fortemente estereotipadas e
ideologizadas do que foram as relações escravistas, a escravidão e o escravo no passado,
tanto na Antigüidade, quanto no período que se estendeu entre o século XV e o século
XIX. Em grande medida, a atual definição da categoria escravo não passa de uma
derivação analógica de definições estereotipadas, construídas ao sabor das ideologias
políticas e das práticas militantes e partidárias que marcaram indelevelmente as análises
historiográficas (entendidas aqui em senso mais amplo) sobre o tema, principalmente
entre as décadas de 40 e 80 do século XX, no Brasil e em outros países. Nesse caso, a
17
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando... op. cit. p. 48.
18
Résume
Le texte présente une réflexion sur l’histoire récente de l’utilisation du terme esclavage
pour désigner des formules de travaille contraint (trabalho compulsório) dans le Brésil
contemporain. Il démontre l’efficace de cette stratégie pour toucher l’opinion publique
nationale et internationale et, encore, pour fortifier les actions de combattre contre le
travail contraint pratiqué dans nos jours. Mais le texte démontre aussi comment l’option
20
Les mots-cles
Esclavage
Travail contraint
Brésil
Historiographie
Méthodologie d’Histoire
Législation