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Trabalho compulsório e escravidão: usos e definições nas diferentes épocas*

Eduardo França Paiva


Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Para se estudar as práticas que, recentemente, passaram a ser nomeadas como


“trabalho escravo” ou que se consubstanciam em uma “escravidão moderna” (mesmo
termo, note-se, histórica e historiograficamente empregado para se diferenciar a
escravidão no mundo greco-romano e a escravidão no Novo Mundo, entre os séculos
XVI e XIX) é imprescindível a volta a antigas definições jurídicas e a conceitos
históricos sobre essas categorias. O que define um escravo e o que o diferencia
essencialmente de um outro ser livre, seja ele um camponês, um servo ou um
aristocrata? Creio ser essa a indagação central, que poderá nos conduzir em um esforço
de comparação entre as formas de trabalho compulsório e a historicidade delas. Desde
já, saliento, pensar ou empregar categorias sem conhecer sua trajetória histórica e sem
considerar sua historicidade é beirar um procedimento bastante condenável, pelo menos
no campo do conhecimento histórico: o anacronismo, principalmente em sua versão
notadamente pragmático-ideológica. Impor modelos prontos e conceitos obtusos a
qualquer tempo, a qualquer sociedade é opção que facilita muito a invenção quase
ficcional, de histórias convenientes, demasiadamente distanciadas das realidades
históricas construídas e vivenciadas por agentes históricos e gravadas em variados
registros.
No Direito Romano, base de inúmeras definições jurídicas que vigoraram em
Portugal e na América portuguesa, a condição de escravo já era bem definida. Segundo
CRETELLA JÚNIOR, na visão romana “o homem livre é um ser humano. O escravo
não é ser humano. É coisa (res). Servus et res.”1 Esse mesmo autor, citando o
jurisconsulto Gaio, ainda lembra que entre os romanos “a divisão fundamental é a que
reparte os homens em livres e escravos. Só os livres têm capacidade jurídica, o que leva

*
Para escrever este artigo contei com o auxílio e a pesquisa realizada com competência por Suely
Aparecida Ribeiro Monteiro, aluna da Universidade Federal de Minas Gerais e futura historiadora, a
quem agradeço. Também estão incluídos nesse texto resultados de pesquisas que venho desenvolvendo
nos últimos anos, como bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico-CNPq, a partir do projeto Do escravismo à civilização: representações do arcaísmo e da
modernidade nacionais em autores da Brasiliana / Coleção Brasiliana: escritos e leituras na nação
(1931-1941).
1
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 24
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 90.
2

Justiniano a dizer que os escravos não têm caput. Não são pessoas”.2 Juridicamente, e
apenas juridicamente, o escravo era coisa, não era gente. Isso significava a possibilidade
de ser vendido, trocado, legado, empenhado pelo proprietário, salvo ocasiões e
condições especiais. Essas práticas se estenderam legalmente ao período durante o qual
desenvolveu-se no Novo Mundo o que os historiadores chamam de escravidão moderna,
entre os séculos XVI e XIX, assim como a antiga definição romana de escravo por
nascimento, a partir do ventre materno. Filho de mãe escrava, portanto, nascia escravo.
Essas continuidades do Direito Romano nas leis que regiam as relações sociais no
mundo colonial foram bem arroladas e salientadas pelo jurista luso-brasileiro, Perdigão
Malheiros.3
Tornar-se escravo por captura ou por dívidas e nascer escravo, assim como
deixar de ser escravo (manumissão) foram acontecimentos regulados por leis, por
normas e por direitos costumeiros na Antigüidade e no período moderno e isso inclui o
continente africano, mesmo antes da chegada dos primeiros europeus. Escravos e não
escravos costumavam conhecer todos esses aspectos e, até mesmo, em proporção bem
maior do que se imagina, reconhecer e aceitar sua existência. Além disso, reificar
homens e mulheres foi procedimento existente na dimensão jurídica, mas isso,
evidentemente, não correspondeu ao dia-a-dia as sociedades escravistas. De toda forma,
essas possibilidades definiram o que era ser escravo nesses mundos, assim como os
procedimentos mais variados em torno da escravidão. Ser escravo, então, significou ser
propriedade privada de outro e, no caso das mulheres escravas, significou dar sucessão à
prole cativa. Já transformar o escravo em coisa, ignorando-se sua humanidade, suas
capacidades, seus conhecimentos, suas habilidades, seus sentimentos, é, creio, uma
opção equivocada e reducionista, adotada por intelectuais de épocas que aceitavam
essas simplificações, mas inaceitável hoje, como discuto mais à frente.

. Um trabalho escravo?
Outro foco de indagações deve ser o chamado “trabalho escravo”. Assim, em
que medida, pergunta-se, é o tipo de trabalho que define a condição de escravo? Há,
portanto, “trabalho escravo”? Ou haveria certos tipos de trabalho que, dependendo de
época e de região, teriam sido executados, preferivelmente, por escravos? O que

2
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso ... op. cit. p. 90.
3
MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil; Ensaio Histórico-Jurídico-
Social. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, 2 vols.
3

diferencia um trabalho realizado por um escravo – por exemplo, preparar a terra e


plantar ou transportar dejetos noturnos e despejá-los no rio pela manhã – do mesmo
trabalho realizado por um camponês livre ou por um branco pobre, não-proprietário?
Qual a diferença essencial entre o mesmo trabalho realizado, conjuntamente, por um
escravo e seu senhor liberto ou descendente de liberto, como, por exemplo, extrair
partículas de ouro nas margens dos rios ou cortar e costurar panos? Para além desses
tipos de trabalho, digamos, mecânicos (a nomenclatura mecânico/intelectual é outro
aspecto que merece a atenção revisionista!), como classificar o trabalho de escrever em
cartórios, realizado por um escravo, no Brasil do século XVIII4 ou de inúmeros pintores
e escultores escravos, escondidos até hoje sob a pele de “aprendizes” e de músicos e de
poetas que povoaram a América escravista?5 Como associar a esses quadros um
ocorrido muito mais antigo, como o caso de Sacura, ex-escravo, que se tornou soberano
do grande império do Mali, no fim do século XIII?6 E, voltando à escravidão no Novo
Mundo, quanto aos inumeráveis tipos de trabalho executados pela grande população
forra que existiu na região: como identifica-los? “Trabalho livre” ou trabalho de livres?
“Trabalho escravo” ou trabalho de escravos? Como comparar esses trabalhos com os
executados pelos índios, escravos nos aldeamentos da América portuguesa e explorados
na América espanhola, mas em ambas desenvolvendo habilidades intelectuais e
artísticas?7 Diante desses casos, comuns nesses períodos e mais freqüentes ainda na
escravidão moderna (século XVI ao XIX), como sustentar a categoria “trabalho
escravo”? Parece, portanto, que se trata de falar sobre o emprego de escravos na
execução de certos tipos de trabalho rejeitados ou “concedidos” pelas camadas mais
ricas e proprietárias de escravos.
Todas as questões foram levantadas para se perguntar, ao final, se a expressão
“trabalho escravo” consegue, realmente, expressar o que ela tem de essencial, isto é, o
fato de se tratar de uma forma de trabalho compulsório, de trabalho forçado ou de

4
Ver o caso do escravo crioulo Cosme Teixeira Pinto de Lacerda, que vivia em Minas Gerais, na segunda
metade do século XVIII, in: PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas
Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001, p. 79-84.
5
Ver BERNAND, Carmen. Negros esclavos y libres em las ciudades hispanoamericanas. Madrid:
Fundación Histórica Tavera, 2001, P. 75-90.
6
Ver SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança; a África antes dos portugueses. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 305.
7
Ver, por exemplo, GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde; histoire d’une mondialisation.
Paris: Éditions de la Martinière, 2004, p. 309-338 e GRUZINSKI, Serge. Os índios construtores de
catedrais. Mestiçagens, trabalho e produção na Cidade do México, 1550-1600. In: PAIVA, Eduardo
França & ANASTASIA, Carla Maria Junho. (orgs.) O trabalho mestiço; maneiras de pensar e formas de
viver – séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMG, 2002, p. 323-340.
4

exploração acentuada e usurpadora da força de trabalho de alguém. Ora, trabalho


compulsório é um conceito geral, que abarca mais de uma forma de exploração de mão-
de-obra. Entre essas formas, encontram-se a servidão, a mita, a encomienda, a corvéia e,
também, a escravidão. Então, formas de obrigar alguns a prestarem serviço a outros são
conhecidas das sociedades humanas há milênios e vêm sendo praticadas nas mais
diferentes regiões, sob as mais diversas justificativas, lógicas e estratégias. Afirmar-se
hoje, que essas práticas foram sistemas (com sua carga implícita de invariabilidade)
ilegítimos e ilegais, como facilmente se escuta e se lê, é procedimento apressado,
anacrônico e equivocado. Assim o fazendo, retira-se desses objetos de investigação e de
reflexão toda a sua historicidade e, junto, a possibilidade de conhecer realidades
passadas que os adotaram no seu cotidiano, com a concordância, em larga medida e sob
diversa motivação, dos próprios submetidos. Seu beneplácito baseou-se em razões que
variaram entre as possibilidades de libertação, ascensão e transformação deles próprios
em proprietários de outrem ou em exploradores do trabalho de alguns, a natureza
divina/real desses tipos de prestação de serviços aos mais poderosos e o direito natural
exercido pelos soberanos e mandatários.
Evidentemente, houve muitas revoltas e estratégias para se livrar de tal
submissão e do pesado fardo do trabalho obrigatório, mas isso não invalida as
observações anteriores. É bom se lembrar, por exemplo, que em alguns quilombos
houve também escravos, além de se reproduzir a organização e o mando escravistas.8
Mas, o importante, é que não recorramos aqui à reducionista visão baseada na
polaridade antagônica vítima X algoz, que acaba por ofuscar a complexidade das
relações sociais desenvolvidas mesmo sob o trabalho forçado. Esclareço, desde logo,
para evitar acusações ingênuas e desnecessárias, que não se trata, de minha parte, de
defesa desses procedimentos, nem no passado, nem no presente, mas se trata de abordá-
los compreendendo-os historicamente. Não é, portanto, um julgamento que se faz aqui,
mas, ao contrário, uma problematização histórica e historiográfica.

. Escravidão moderna e escravidão atual


No Brasil, sobretudo durante a segunda metade do século XX, sociólogos,
antropólogos, economistas e historiadores marcados fortemente pelo pensamento

8
HERMANN, Jacqueline. Palmares. IN: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do Brasil colonial (1500-
1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.467-469 e RISÉRIO, Antonio. Escravos de escravos. In: Nossa
História. São Paulo/Rio de Janeiro: Vera Cruz/Biblioteca Nacional, n. 4, p. 62-66, 2004.
5

marxista voltaram-se para os escravos do passado brasileiro, muito interessados em, a


partir daí e em última instância, explicar as condições do trabalhador no capitalismo
brasileiro de periferia. Sem revolução de escravos no passado e sem revolução socialista
naquela época: a comparação entre os dois momentos e os agentes potencialmente
revolucionários recorreria, sem pudor, ao conceito de alienação. Os valores daquele
tempo suscitaram releituras do passado, o que é natural, mas, além disso, buscaram
enquadrar o passado em um paradigma que, pretensamente, submeteria toda a existência
humana. Diante do paradigma preponderante, trabalhadores alienados e sem consciência
de classe não poderiam mesmo promover revolução: eram social e politicamente
incapacitados. No caso dos escravos – saliente-se, muito mais numerosos que os
senhores e que o restante da população livre, durante quase todo período escravista –
optou-se por entendê-los a partir de uma definição jurídica e não como agentes
históricos. Assim, a reificação, isto é, entende-los como coisa, vigorou largamente entre
vários estudos produzidos nessa época, assinados por alguns dos intelectuais mais
influentes daquele momento.
Mas sabia-se, assim como na Antigüidade e no período moderno, dos perigos de
se considerar todos os escravos apenas como coisas. Por isso, foi importante estabelecer
exceções à regra, isto é, quando o alienado/coisa agia, quando ele resistia à escravidão e
quando ele transgredia a norma. Nesses momentos, deixavam de ser coisas, pois teriam
que responder por seus atos, e coisas não respondem, nem são punidas. Assim, a
humanidade do escravo foi associada à rebelião, à fuga, às atitudes violentas e ao
suicídio, atitudes chamadas, então, de resistência. É como se apenas a violência pudesse
restabelecer a liberdade e a humanidade, equação demasiadamente perigosa, confusa e
rude. Foram necessárias duas outras décadas e centenas de novos estudos revisionistas
para se conseguir dissipar idéias tão absurdas.9 Entretanto, a reificação do escravo foi
idéia muito evocada, o suficiente para ser incorporada pelos manuais didáticos de
História, fazendo com que gerações e gerações de brasileiros, até hoje, infelizmente,
continuem executando, matematicamente, essa equação. Junto com ela vêm todas a
formas de desqualificação política, cultural, inventiva, religiosa e afetiva dos escravos
9
As revisões iniciadas dentro do próprio marxismo tiveram papel importante nesse movimento. Cite-se,
nesse caso, trabalhos como HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça; idéias radicias durante a
Revolução Inglesa de 1640. (trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 1987; HOBSBAWN, Eric J.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. (trad.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3
v.; THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase; estúdios sobre la crisis de la
sociedade preindustrial. (trad.) Barcelona: Editorial Crítica, 1989. No Brasil, um marco dessa nova
historiografia é LARA, Silvia Hunold. Campos da violência; escravos e senhores na Capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
6

de outrora e de seus descendentes hoje. É, por exemplo, a idéia que continua


associando, sem alardes, o trabalho bruto ou o menos valorizado socialmente à mão-de-
obra de negros e mulatos. Dessa forma, tanto ficaram facilitadas as práticas de trabalho
compulsório mais de cem anos após legalmente se exterminar a figura do escravo,
quanto se mostrou viável denominar esse tipo de atividades de “escravidão moderna”,
atingindo imediatamente a memória coletiva e a opinião pública. A estratégia é
eficiente, entretanto escamoteia imprecisões históricas e conceitos muito discutíveis.
O trabalho compulsório, infelizmente, existe hoje no Brasil e em outras partes do
mundo e deve ser combatido por autoridades e pela população. Quanto a isso, não
restam dúvidas, pois esse tipo de exploração é socialmente inaceitável. Pouquíssimas
seriam as vozes que se levantariam contra tal posicionamento. Combate igualmente
intenso deve ser travado contra a escravidão existente, hoje, em regiões africanas,
incluindo a venda de seres humanos por seus “proprietários”, assim como contra os
reflexos disso na forma de exploração do trabalho nas grandes cidades européias, que
obriga ao trabalho não remunerado, por exemplo, jovens africanas. Mas, o que significa
nomear esse tipo inadmissível de exploração como “trabalho escravo”?
Inicialmente, é necessário lembrar, voltando ao caso brasileiro, que na atual
Constituição (promulgada em 5 de outubro de 1988) não há definição do que seja um
escravo, nem do que seja trabalho escravo, porque não existe legalmente essas
categorias, nem é prevista sua existência. Entretanto, o texto da Constituição é objetivo
e claro:

TÍTULO II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO I - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta


Constituição;

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei;

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Diante disso, evidentemente, fica proibido o trabalho compulsório e torna-se


ilegal manter um trabalhador em cativeiro. Os casos do chamado “trabalho escravo” no
7

Brasil contemporâneo, são, na verdade, casos de exploração ilegal da força-de-trabalho


e, até mesmo, cárcere de pessoas que enganadas, iludidas, obrigadas e falsamente
endividadas tornam-se trabalhadores submetidos ao mando ilegal de outras pessoas sem
escrúpulos, mas que devem responder à lei, por crime previsto no Código Penal
brasileiro:

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

DECRETO-LEI N.º 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940

CAPÍTULO VI: DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL

SEÇÃO I: DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL

Constrangimento ilegal

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o
que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do


crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

(...)

III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.

§ 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave


sofrimento físico ou moral:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.

Redução a condição análoga à de escravo

Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.


8

Há os que dizem, e não são poucos, que a lei é pouco rigorosa e que precisa ser
alterada para impedir a ação dos “proprietários de escravos” modernos, preconizando,
inclusive, a perda da terra onde o “trabalho escravo” for empregado.10 Não obstante
eventuais alterações no Código Penal, o trabalho análogo ao de escravo é aí
corretamente definido e considerado crime.
Não há escravos, portanto, porque essa categoria foi legalmente erradicada no
Brasil, em 1888. Ora, recriar a categoria “trabalho escravo” hoje, significa, então, fazer
reviver, fazer renascer o próprio escravo e é, também, transformar, pelas vias política,
ideológica, militante e mesmo religiosa – mas não histórica -, o trabalhador explorado
em escravo.
Estamos, assim, diante de um dilema terrível: o “escravo” moderno renasce
exatamente pelas mãos de quem, no passado, lutou pelo seu desaparecimento. Isto é,
seus antigos protetores e redentores teriam se transformado, hoje, em seus reinventores.
Como compreender essa confusa história e como corrigir essa inversão perversa?
Haveria certa insensibilidade intelectual no uso, hoje, de definições tomadas de
empréstimo ao passado? Qual seria o impacto, junto à opinião pública, da imprecisão
teórico-conceitual em curso? Em que medida, a reinvenção do escravo prejudica o
combate ao trabalho compulsório ilegal no Brasil? Ao mesmo tempo, deve-se indagar
sobre a permanência de referências e valores escravistas no cotidiano da população,
sobretudo nas áreas extrativistas e rurais, onde esse “trabalho escravo” é prática
corriqueira. Além disso, quanto do “imaginário do tronco”, isto é, o “imaginário sobre a
escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou
moldadas pelo pragmatismo político”11, permanece nas mentes e nas práticas dos
brasileiros hoje. Em que medida, o desconhecimento generalizado da nova
historiografia sobre escravidão pode corromper e deturpar esses conhecimentos e
julgamentos? Como o próprio ensino de História, nas escolas fundamentais, médias e
superiores, contribui para recrudescer esse “imaginário do tronco” e para a
reimplantação do “trabalho escravo” enquanto prática corriqueira, a ser combatida nos
confins do Brasil e enquanto categoria analítica? São muitas indagações sem respostas
prontas, mas que poderão apontar caminhos a serem seguidos aqui.

10
Projetos de lei relativos à penalização desse tipo de exploração do trabalho vêm tramitando no
Congresso Nacional brasileiro há alguns anos. Eles prevêem alterações na legislação, tornando-a mais
rigorosa. Ver FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra; a escravidão por dívida no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 47.
11
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo ... op. cit. p. 24.
9

Em 1988, em plena celebração do centenário da abolição da escravidão no Brasil


e no cerne de um movimento revisionista da própria história do Brasil e, em particular,
da história da escravidão, a historiadora Silvia Hunold Lara apresentava sua tese de
Doutorado transformada em livro. Entre as propostas centrais estava redimensionar a
“violência” no escravismo moderno e, evidentemente, sublinhar a condição de agentes
históricos dos escravos, durante todo o período de escravidão, ao contrário da
vitimação, quase que exclusiva, à qual eles eram submetidos pelos historiadores e
demais estudiosos a posteriori. Ao finalizar seu importante texto, a autora, então,
plantava indagações que foram cultivadas pelos historiadores mais jovens, com o passar
dos anos, que polemizavam com as gerações anteriores à dela e com seus próprios pares
e que servem, nesse ensaio, para se refletir sobre os conceitos antigos apropriados
atualmente. Lara provocava então:
Assim, mais que insistir na renúncia da violência, não seria melhor
recuperar os escravos com sujeitos históricos, como agenciadores de suas
vidas mesmo em condições adversas? Sobre vítimas é possível somente um
discurso de pena, proteção, discurso que rira desses homens e mulheres sua
capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas.
O discurso da vitimação é o discurso da denúncia, mas não é, também, a
fala do intelectual insensível ao potencial político do outro, do diferente?12

Não reconhecer a capacidade e a inventividade dos escravos no passado,


desumanizando-os e tornando-os coisas, assim como transformar o trabalhador
explorado de hoje em escravo são atitudes que se assemelham. Escravos no passado e
homens e mulheres submetidos hoje ao trabalho compulsório, presos em cárcere
privado, impedidos à força de armas de romperem com o esquema de exploração não se
consideravam, nem se consideram coisas, não obstante poderem, de acordo com a
conveniência e o pragmatismo, assumirem essa imagem ou se apropriarem do discurso
da vítima. É bom relembrar que entre eles, entre os antigos e os novos, houve e há os
que aplicariam recursos idênticos, caso beneficiados por eles, o que, evidentemente, não
torna tolerável sequer essas práticas hoje.
O papel do intelectual/observador, do pesquisador, no exercício de seu grande
poder de convencimento, de sua autoridade de cientista, não é, a meu ver, “engessar”
esses agentes históricos, sua historicidade, a dinâmica dos tempos, toda a mobilidade
das relações sociais em categorias reducionistas e simplificadoras. “Engessa-los” (um
aluno, um dia, traduziu essa metáfora, ironicamente e com senso de humor, como

12
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência... op. cit. p. 355.
10

“síndrome de ortopedista”!!) significa, como lembrava Silvia Lara, muito mais uma
atitude a posteriori e discutível do observador, do que uma situação de existência
concreta. Um objeto de estudos instigante para a História das Idéias, para a História
Cultural, mas não um procedimento metodológico facilmente aceitável em nosso tempo,
diante dos parâmetros mais atuais do campo de conhecimento histórico, da História
Social, da História antropológica ou da Antropologia histórica.
Mas, seria ingênuo pensar que as denúncias de “trabalho escravo”
contemporâneo se atrelassem às discussões acadêmicas ou aos melindres
historiográficos. Certamente que não. Essas dimensões dificilmente teriam apelo junto
aos inescrupulosos exploradores ilegais de trabalho compulsório ou, mesmo, junto a
autoridades e, principalmente, junto à opinião pública. É necessário reconhecer essa
face frágil e pouco vigorosa de nosso trabalho e dos resultados daí advindos,
infelizmente. Não representamos, geralmente, referências que a opinião pública deseja
escutar ou que demanda para poder formar opiniões. Nossos estudos não são
impactantes em larga escala, como o são os editorias jornalísticos, as pregações
religiosas, as imagens televisivas e cinematográficas e as ações, por vezes inusitadas e
espetaculares, das ONG’s. Essas sim, são mensagens de grande impacto, internacional
até, que atingem e moldam a opinião pública, seja polemizando, seja emocionando-a,
em ritmo acelerado. É claro que em nosso mundo contemporâneo, cada vez mais
imagético, essas linguagens assumem grande eficácia, mas isso tudo não é tão novo
assim. O envolvimento da opinião pública remonta ao século XVIII, mas, sobretudo ao
século XIX, quando um dos grandes temas internacionais, que causava reações
inflamadas na época, agitou populações espalhadas pelo Velho e pelo Novo Mundo: a
abolição da escravidão. Afinal, o mundo ocidental reconhecia nesses regimes
escravistas a face da barbárie, ameaça à cultivada, decantada e projetada civilização,
cujo centro seria e velha Europa, em pleno estágio superior na linha de evolução da
humanidade.
Não é objetivo aqui tratar das teorias evolutivas do século XIX e da divisão
maniqueísta do mundo entre civilização e barbárie, endossada por elas, nada aceitável
diante dos parâmetros fundados na alteridade e na diversidade cultural, que marcam o
pensamento de hoje. Contudo, é necessário demonstrar como esses antigos e
equivocados filtros conceituais continuam existindo, nem sempre explicitamente, entre
nós. Em que medida reinventar o “trabalho escravo” e o próprio “escravo” é, também,
recorrer a esse antigo e simplório esquema analítico e é, ainda, reforça-lo enquanto
11

instrumento conceitual-metodológico aplicável, embora absolutamente anacrônico?


Seria exatamente esse anacronismo a ponte entre a denúncia e a opinião pública
contemporânea, mantenedora, em grande porção, de fórmulas explicativas binárias,
como o antagonismo entre civilização e barbárie? Mais algumas indagações sem
resposta rápida, mas indicativas de reflexões necessárias!
A opinião pública, hoje, é conjunto muito mais amplo e complexo em sua
constituição que há 150 anos. Uma grande parcela dela, não obstante a alfabetização e a
educação formal mais estendidas ao conjunto, cultiva algumas definições que se
encontram no cerne das preocupações apresentadas neste texto. De um lado, são
crenças, valores e julgamentos que explicam a pouca transformação ocorrida nas formas
de ver e de compreender a vida e de vivenciar a história. Aí se incluem entendimentos
mais gerais sobre cultura, história, política e formas de organização social, o que
interfere diretamente nas práticas, nas representações e nos discursos oriundos desse
grande conjunto, assim como nos que exercem ascensão sobre os vários grupos que o
compõem. De outro lado, são esses os parâmetros que acabam possibilitando a
comunicação dos grupos que denunciam as mazelas sociais e que precisam causar
impacto na opinião pública, para contar com ela nas pressões coletivas, junto a
autoridades e infratores.

. Convencimento, militância, apropriações e anacronismos


Combater formas de exploração, de violação dos direitos humanos, de inibição
dos direitos individuais e de cerceamento da liberdade de cada um é tarefa árdua e é
atitude de muitos méritos. Mas, para se alcançar esses objetivos tão nobres, qualquer
medida é cabível? Talvez resida nesse campo um grande dilema que envolve
historiadores e combatentes do “trabalho escravo”. No livro que resultou de sua tese de
Doutorado, o padre Ricardo Rezende Figueira expõe o problema, mas acaba não
dispensando a atenção devida a ele. De toda forma, o autor demonstra, claramente,
como a categoria “trabalho escravo” foi sendo apropriada por organizações de defesa de
direitos humanos, por instituições, como a Igreja, pelo Estado e, também, como foi
sendo associada a bandeiras e agendas político-partidárias. Tomando de empréstimo as
palavras escritas por Neide Esterce, Figueira esclarece:
Escravidão tornou-se, pode-se dizer, uma categoria eminentemente política;
faz parte de um campo de luta, e é utilizada para designar toda sorte de
trabalho não-livre, de exacerbação da exploração e da desigualdade entre
os homens. Muitas vezes, sob a designação de escravidão, o que se vê mais
12

enfaticamente denunciado são maus-tratos, condições de trabalho, de


remuneração, de transporte, de alimentação e de alojamento não
condizentes com as leis e costumes.
Determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que
escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização;
espécie de metáfora do inaceitável, expressão de um sentimento de
indignação que, afortunadamente, sob esta forma afeta segmentos mais
amplos do que os obviamente envolvidos na luta pelos direitos.13

Essa formulação é clara. O uso da categoria escravidão é opção pragmática e


política e a intenção é, a partir daí, associando as condições degradantes denunciadas à
decantada crueldade da escravidão no passado e ao imaginário do tronco, chocar a
opinião pública. Entretanto, as definições de escravo e de escravidão que são aí
apropriadas, na verdade, não se produziram a partir de condições similares e de
sentimentos semelhantes. O conceito usado para causar indignação é o antigo, que
aparece inchado, sob um véu de inverdades e de exageros que, principalmente o século
XIX e o abolicionismo, trataram de tecer e que no século XX permaneceu inalterado.
Essas definições, como já chamei a atenção, vitimizam, coisificam e desconsideram a
capacidade, a inteligência e os saberes desses homens e mulheres do passado e do
presente.
Diminuir a capacidade do outro, assim como eximi-lo de responsabilidades para
constituir-se em seu protetor e salvador é praxe antiga e foi estratégia de dominação que
os mais poderosos, de todas as cores, credos e tendências políticas, recorreram. Pero de
Magalhães de Gândavo, um súdito português de ascendência flamenga, que esteve na
América portuguesa entre as décadas de 50 e 70 do século XVI, pode ser aqui evocado
como bom exemplo. Imbuído de valores cristãos e ocidentais, Gândavo olhava o Novo
Mundo e julgava sua população, colocando-se, junto com suas referências culturais, em
um patamar central e mais elevado de observação. O outro, o diferente é identificado,
mas é, ao mesmo tempo, incluído em uma escala de classificação, na qual aparecia nos
níveis inferiores. Em uma das primeiras publicações, senão na primeira delas, sobre a
história do Brasil os naturais da terra ficaram assim descritos e foram assim conhecidos
na Europa durante muito tempo:
Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que
semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo
sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache
povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assim

13
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando... op. cit. p. 44.
13

como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que
houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os
portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar
tamanho poder de gente.
(...)
A língua desse gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet,
não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não
têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e
desordenadamente.14

A ausência dessas letras e dos significados atribuídos a elas, senão de forma


idêntica, pelo menos, na essência, foram observação e constatação realizadas por
portugueses e por outros europeus nas várias regiões do Oriente e da África onde
circularam e se instaram durante os séculos XV, XVI e XVII. Essas ausências foram
tomadas como certidão de barbárie e de atraso com relação ao centro civilizado da
cristandade, onde as Justiças divina e humana imperavam, julgando dever submeter a
todos. Na África sub-saariana, assim como no Novo Mundo, essa lógica serviu de
alicerce sobre o qual escravizou-se vários milhões de pessoas e submeteu-se outros
tantos milhões a regimes de trabalho compulsório. Igreja e Estado atuaram, portanto,
como agentes civilizadores e como instituições que salvavam pagãos e hereges,
escravizando-os para tanto.
Um pouco mais tarde, início do século XVIII, foi a vez de um jesuíta natural da
Toscana e residente na Bahia, já no final do século XVII, André João Antonil (João
Antônio Andreoni, S. J.), dar continuidade a essa lógica e não seria incorreto afirmar
que ele a tenha complementado. A diferença é a analogia à qual Antonil recorre. A
salvação era processada na terra, que se transformava em purgatório. Sob a forma de
metáfora, o jesuíta descreve o longo e doloroso percurso da cana-de-açúcar, desde o
plantio até o resultado final manufaturado, o açúcar branco, comparando-o com a paixão
de Cristo e com a purificação da alma. Os variados tipos de trabalho exercidos pelos
escravos nos engenhos de açúcar merecem do autor grande atenção, sendo descritos
pormenorizadamente, assim como o esforço despendido pelos “negros” para que o
açúcar se tornasse alvo. Ao final do capítulo V (Do modo de purgar o açúcar nas

14
GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da Terra do Brasil. 5 ed. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco/Massangana, 1995, p. 24. Houve duas versões manuscritas desse mesmo tratado, fundindo-as o
autor para a primeira publicação, que apareceu em 1576, em Lisboa, com o título História da Província
de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Entre uma versão e outra há diferenças na redação do
trecho transcrito acima, mas mantém-se sua essência etnocêntrica.
14

formas, e de todo o benefício que se lhe faz na casa de purgar, até se tirar) do Livro III,
o autor setecentista concluía:
O primeiro barro que se pôs na forma [recipiente onde o açúcar cristalizava-
se, saindo daí sob a forma de sino e sendo chamado de pão de açúcar – daí a
designação do célebre morro homônimo, na cidade do Rio de Janeiro], alto
dous dedos, quando se tira já seco, tem só altura de um dedo, que é depois
de seis dias; quando se tira o segundo (que se botou com a mesma altura de
dous dedos), depois de quinze dias, tem só meio dedo de altura. Acabando o
açúcar de purgar, param tmbém as lavagens; e, três ou quatro dias depois
da última, tira-se o segundo barro, já seco, e, depois do barro fora, dão-lhe
mais oito dias para acabar de enxugar e escorrer, e então pode tirar. Nem
carece de admiração o ser o barro, que de sua natureza é imundo,
instrumento de purgar o açúcar com suas lavagens, assim como com a
lembrança do nosso barro, e com as lágrimas se purificam e branqueiam as
almas, que antes eram imundas 15

É claro que a salvação das almas imundas não excluem os brancos, mas, na obra
de Antonil é quase explícita a idéia de que o trabalho escravo e o trabalho árduo nos
engenhos de açúcar do Brasil eram oportunidade de libertação e de salvação que Deus
dava os “negros”. Mas essa lógica não cessaria de ser evocada tão cedo; na verdade,
tenho dúvidas se já o foi. Seu poder de convencimento, associado a inúmeros
argumentos complementares que variaram de época para época, atravessou o século
XVIII, resistiu à abolição da escravatura ocorrida em 1888 e virou o século XIX para o
século XX com notável vigor, ainda que camuflada pelos discursos cientificistas,
racistas, eugênicos e civilizadores que marcaram tão fortemente as idéias sociais e
políticas formuladas durante esse período.
Formas de trabalho compulsório e condições degradantes de vida dos
trabalhadores no Brasil pós-abolição, muito semelhantes ao que se denomina “trabalho
escravo” hoje, continuaram a existir e em larga medida pela vasta extensão territorial do
país. Não eram mais escravos, é verdade. Talvez a proximidade temporal e espacial,
bem como a do cotidiano da escravidão tenha impedido, naquele tempo, de se nomear
as práticas remanescentes como escravistas. Aliás, práticas que muitos viam e
praticavam normalmente, sem que as autoridades se levantassem para denunciar a
continuidade ilegal da escravidão ou da permanência de alguns tipos de trabalho
análogos ao trabalho escravo. Sob o manto da civilização e da eugenia, ex-escravos,
seus descendentes e mestiços de uma forma geral tinham sua força de trabalho

15
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3 ed. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EdUSP, 1982, p. 133.
15

explorada em condições degradantes, mas muito próximas do que as toleradas e


praticadas em larga medida naquela sociedade.
Entretanto, a forma de exploração do trabalho já não no final do século XIX e no
início do XX a degradante e degenerativa escravidão: o trabalhador livre, e não mais o
escravo, é que estava sendo submetido a essas práticas compulsórias. Nesse período, a
mestiçagem biológica e cultural passava a ser combatida no lugar da escravidão, já
abolida. Combatia-se a mestiçagem em nome de um futuro civilizado da nação
(idealizada, ainda que de maneira implícita, como branca e europeizada). {Pourtant, la
forme d’exploitation du travail n’était pas, à la fin du XIXe siècle et au début du XXe,
l’esclavage dégradant et dégénéré: le travailleur libre, et non plus l’esclave, était soumis
aux pratiques forcées. À cette époque, le métissage biologique et le métissage culturel,
et non plus l’esclavage, ont été combattu pour que le futur de la nation deviendrait
civilisé, ça veut dire, un futur blanc et de façon européen} O trabalho manual,
explorado de variadas maneiras, era, portanto, naturalmente destinado às camadas mais
pobres, a negros e mestiços, a caboclos e caipiras do interior do grande país. Epítetos os
mais diversos foram empregados para nomear essa “plebe” descendente da escravidão e
recém-emancipada. Ilmar Rohloff Matos arrolou expressões empregadas no século XIX
para designar esses grupos. Entre outras expressões usadas, eles foram chamados de
“vadios”, “a pobreza”, “a mais vil canalha aspirante”, “ralé de todas as cores”.16 Em um
país onde a escravidão recém-abolida havia dominado as relações de trabalho durante
quase 400 anos, o imaginário, as práticas, os valores e os discursos, naturalmente,
permaneciam imbuídos de escravismos. Permaneciam idéias que vinham
fundamentando, havia séculos, o escravismo, tais como a de incapacidade intelectual de
africanos, crioulos e mestiços, a quem o trabalho manual estaria, como já disse,
naturalmente destinado, inclusive como uma forma de apuramento cultural e de
aproximação com o pretenso mundo civilizado.
Em grande medida, as práticas de trabalho compulsório hoje, assim como seus
adeptos, alimentam-se de permanências escravistas, que continuam destituindo certos
grupos populacionais, com marcante perfil negro e mestiço, de capacidades as mais
variadas, sejam elas técnicas, sejam culturais ou políticas. Continuam menosprezando
essa gente e sua condição de agentes históricos e, por isso, devem ser punidos pela
Justiça, é claro. Mas, a permanência dessas definições e desses julgamentos antigos não

16
Ver MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema; a formação do Estado Imperial. São
Paulo:Hucitec, 1990, p. 121-123.
16

está restrita ao grupo de exploradores ilegais de trabalho alheio. Infelizmente, como já


foi demonstrado, esse antigo conjunto de valores e de “verdades” continua informando
enorme parcela da população brasileira, subsidiando até mesmo os que combatem o
procedimento hediondo.
Apropriar-se dos antigos e, como já afirmei, por vezes estereotipados conceitos
de escravo e de escravidão significa, também, ressuscitar valores cientificistas,
eugênicos e civilizatórios associados a eles, sobretudo durante os séculos XIX e XX.
Reforçar esses valores e definições hoje, mesmo que involuntariamente, é histórica e
historiograficamente um erro. Evocar velhas imagens pode causar impacto junto a
opinião pública, pode transformar-se, até mesmo, em chave importante para que o
diálogo mais amplo, com pessoas, com instituições e com autoridades seja estabelecido,
no intuito de combater essas formas degradantes de trabalho humano. Mas, essa opção
pode se reverter em grave equívoco político, histórico e cultural, ao escravisar,
coisificar e tutelar o trabalhador explorado. Torna-lo escravo para chocar o mundo e
obrigar a atuação efetiva do Estado onde ele se ausenta é uma estratégia que, além de
tudo já enumerado aqui, não ouve adequadamente os trabalhadores envolvidos. Por
acaso eles se dizem convictamente escravos, descontadno-se, evidentemente, o
pragmatismo espontâneo e o estimulado? Sentem-se realmente escravos e agem como
tal? Se a resposta for positiva – o que não invalida em nada os argumentos contrários ao
uso do conceito hoje – será necessário compreender histórica e historiograficamente
uma permanência tão arraigada em áreas, que, saliente-se, não conheceram tão
intensamente o escravismo quanto em outras áreas onde o fenômeno inexiste hoje. Se,
ao contrário, a resposta for negativa, todo o esforço de reconstrução do conceito e de
seu emprego hoje torna-se procedimento fatalmente avariado, uma vez que construiu-se
sem considerar a voz e a experiência dos principais interessados e sem dar crédito à
historicidade do fenômeno.
Continuando com as indagações, mais que apresentando respostas, parece-me
necessário saber se para extinguir o trabalho compulsório de hoje e para punir os
infratores – e é o que importa, afinal – é necessário recorrer a anacronismos. É preciso
cultivar e fomentar procedimentos que tendem a simplificar e reduzir a atuação histórica
dos escravos no passado e dos trabalhadores explorados hoje? É, então, imprescindível
continuar vitimizando agentes históricos, no lugar de (re)conhecer trajetórias e práticas?
O padre Figueira, não obstante a importância de sua denuncia e de seu estudo – não há
qualquer dúvida sobre isso –, assim como outras pessoas que se preocupam com o tema
17

e atuam em organizações e instituições imprescindíveis, parecem apostar na velha


máxima, segundo a qual os fins justificam os meios. Para o autor do robusto e
referencial Pisando fora da própria sombra,
... por força de construção social, manifestada nas pressões de grupos
específicos e no seu uso cada vez mais freqüente pelo conjunto das
organizações oficiais e não oficiais,a modalidade de trabalho forçado sobre
a qual escrevo tem sido reconhecida como não apenas parecida com a
escrava, mas de fato escrava. Os que empregam a categoria consideram que
sua utilização não obscurece ou confunde seu significado, mas o torna
visível.17

Não é essa, contudo, a lógica que preside a construção de conceitos e métodos


de pesquisa, nem, tampouco, a aplicação deles, pelo menos não é um procedimento
endossado pela historiografia mais recente, que tem revisado com autoridade muito do
que foi escrito sob a égide de opções tão pragmáticas.

Conclusões
Não há escravos no Brasil porque a categoria não existe nem legalmente, nem no
costume, portanto, nem no sentido histórico dessas dimensões. Poder-se-ia contra-
argumentar que a categoria foi reinventada historicamente e hoje, então, existira sim.
Claro que categorias não são definíveis uma única vez e não devem permanecer sem
alteração infinitamente. Evidentemente, esse contra-argumento é legítimo e pertinente.
Entretanto, não é isso que ocorre no caso do “trabalho escravo” denunciado nos dias
atuais, sobretudo no Brasil, tema enfocado nesse texto. Ao contrário. Não se trata de
uma nova categoria historicamente recriada, mas da apropriação indevida, anacrônica e,
ao meu ver, muito perigosa (pois tem deturpada a sua historicidade) de uma categoria
antiga, a de escravo. E mais ainda: essa apropriação é realizada, geralmente, tomando-se
definições, representações e, até mesmo, análises fortemente estereotipadas e
ideologizadas do que foram as relações escravistas, a escravidão e o escravo no passado,
tanto na Antigüidade, quanto no período que se estendeu entre o século XV e o século
XIX. Em grande medida, a atual definição da categoria escravo não passa de uma
derivação analógica de definições estereotipadas, construídas ao sabor das ideologias
políticas e das práticas militantes e partidárias que marcaram indelevelmente as análises
historiográficas (entendidas aqui em senso mais amplo) sobre o tema, principalmente
entre as décadas de 40 e 80 do século XX, no Brasil e em outros países. Nesse caso, a

17
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando... op. cit. p. 48.
18

coisificação ou a reificação de homens e mulheres escravizados no passado é, talvez, o


aspecto mais pernicioso e, infelizmente, um dos que mais fortemente permanecem
incrustados no entendimento atual sobre a escravidão no passado, o que tem reflexos
diretos na definição do “escravo” hoje. De forma semelhante essas apropriações
fomentam atitudes, julgamentos e valores sobre a força de trabalho explorada
compulsoriamente e sobre, claro, esse trabalhador submetido a condições inaceitáveis
de vida e de trabalho. Portanto, sublinhe-se, discordar metodológica, conceitual e
historiograficamente do emprego anacrônico da categoria escravo não significa
endossar ou preconizar antigas e novas formas de exploração de pessoas e de sua
capacidade de trabalho.
Esse tipo de entendimento, infelizmente, impede que estudos e reflexões de
cunho teórico-conceitual menos binários, menos simplificadores de realidades e,
portanto, menos convenientes ao diálogo alargado com a opinião pública, tenham
espaços de divulgação e possam ser conhecidos em larga escala. É lamentável que isso
ocorra frequentemente, inclusive fomentado por organizações governamentais ou não
governamentais, por instituições civis e religiosas, pela mídia de uma maneira geral, até
mesmo pela escola, todos canais de enorme importância social, com amplo poder de
convencimento e com grande potencialidade de informação e de formação. Muitos
desses órgãos têm claro objetivo de instruir e de contribuir para a melhoria dos índices
sociais de populações que vivenciam historicamente altos níveis de desigualdade, como
no caso brasileiro.
Em 2004, mais exatamente no dia 01 de maio, data em que se celebra o “Dia do
trabalho”, fui convidado para gravar entrevista sobre o “trabalho escravo no passado e
hoje”, que seria veiculada por um canal oficial de TV, que se dedica, prioritariamente, a
programação de cunho educativo e cultural. O programa contou com a participação de
outros estudiosos e de pessoas que se dedicam ao combate do “trabalho escravo” atual.
Cada um dos convidados discutiu aspectos ligados ao trabalho e coube-me falar sobre o
uso do conceito “escravo” hoje. Como fiz nesse texto, tentei demonstrar o anacronismos
e as imprecisões históricas que envolviam esse procedimento. O programa foi ao ar e
minha entrevista havia sido cortada sumariamente pelos editores, sem que qualquer
explicação me fosse dada sobre o ocorrido. Evidentemente, tratava-se de um discurso
pouco conveniente e de uma reflexão que se diferenciava bastante da maior parte das
outras, pude supor, ainda que perplexo. Ao escrever esse texto, porém, pude entender
melhor o episódio que já havia colocado em uma espécie de baú de memórias não muito
19

importantes de minha vida. Recupera-lo, contudo, me possibilitou perceber que minhas


reflexões não faziam a ligação pretendida pelos editores do tal programa com a opinião
pública. Não se tratava de um documentário histórico e eu não havia compreendido isso.
Em nome, portanto, desse diálogo pragmático o tema poderia perder, em boa medida,
sua historicidade e tornar-se a-temporal. Expurgar do programa de TV a entrevista que
sublinhava a historicidade das práticas compulsórias de trabalho foi uma escolha que
favoreceu o impacto da denúncia sobre a opinião pública e isso pode ter contribuído
para fortalecer, ainda mais, o combate imediato desse procedimento hediondo.
Entretanto, o expurgo foi, ao mesmo tempo, uma péssima escolha no que se refere à
compreensão histórica dessas práticas, o que, a meu ver, é condição imprescindível
para, em médio prazo, serem elas completamente erradicadas.
{Exclure du programme de TV l’interview que voulait souligner l’historicité des
pratiques contraints de travail a bien favorisé l’impact de la dénonce sur l’opinion
publique et, encore, c’est un choix que fortifié les actions de combat immédiat de ces
formules hideux. Pourtant, l’exclusion a eu aussi un terrible choix dans ce que concerne
à la compréhension historique de ces pratiques, une condition indispensable, je crois,
pour qu’elles soient éradiqués en quelques années.}

{Pourtant, la forme d’exploitation du travail n’était pas, à la fin du XIXe siècle et au


début du XXe, l’esclavage dégradant et dégénéré: le travailleur libre, et non plus
l’esclave, était soumis aux pratiques forcées. À cette époque, le métissage biologique et
le métissage culturel, et non plus l’esclavage, ont été combattu pour que le futur de la
nation deviendrait civilisé, ça veut dire, un futur blanc et de façon européen}

Résume
Le texte présente une réflexion sur l’histoire récente de l’utilisation du terme esclavage
pour désigner des formules de travaille contraint (trabalho compulsório) dans le Brésil
contemporain. Il démontre l’efficace de cette stratégie pour toucher l’opinion publique
nationale et internationale et, encore, pour fortifier les actions de combattre contre le
travail contraint pratiqué dans nos jours. Mais le texte démontre aussi comment l’option
20

d’appeler d’esclave le travail contraint d’aujourd’hui est une équivoque historique,


méthodologique et conceptuel et comment elle est aussi une stratégie qui n’aide pas
l’éradication rapide du problème. Le travail esclave comme il est définit historiquement
n’existe pas au Brésil contemporain, car il n’existe plus ni sur la législation, ni comme
pratique quotidienne. Pour faire cette affirmation il a été nécessaire une discussion
historiographique sur le thème et une comparaison entre les formules de travail esclave
moderne et de travaille contraint contemporain. Comme conclusions présentées, il les
faut souligné deux : les combattants du travail contraint contemporain au Brésil se
trompent quand ils évoquent les anciennes images stéréotypées d’esclavage et c’est
justement ces gents bien intentionnés que recrée l’esclave au Brésil d’aujourd’hui.

Les mots-cles
Esclavage
Travail contraint
Brésil
Historiographie
Méthodologie d’Histoire
Législation

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