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Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

O ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça e

DOSSIÊ
desigualdade racial nos Estados Unidos da América

Aldon Morris*
Vilna Bashi Treitler**

Este artigo investiga o papel da raça e do racismo nos Estados Unidos da América. Ele trata de raça como con-
ceito, explorando, primordialmente, o motivo da existência de categorias raciais e da desigualdade racial. Também,
nele, examinamos a atual situação da raça nos Estados Unidos ao expor suas manifestações sociais, econômicas e
políticas. Após explorar a magnitude da desigualdade racial nos Estados Unidos, trabalhamos para desvendar os
mecanismos que perpetuam e sustentam, tanto estrutural quanto culturalmente, as disparidades raciais. Em razão
de ações e crenças racistas terem sempre sofrido resistências por parte dos movimentos sociais, atos coletivos, e
resistência individual, nós analisamos a natureza e os resultados dos esforços da luta contra o racismo norte-amer-
icano. Concluímos com uma análise das perspectivas atuais relativas à transformação racial e das possibilidades
para a emergência da igualdade racial. Assim, neste artigo, trazemos uma análise abrangente da situação atual das
dinâmicas raciais nos Estados Unidos e das forças determinadas a combater o racismo.
Palavras-chave: Raça. Racismo. Regimes raciais. Movimentos negros. Desigualdade.

INTRODUÇÃO através do genocídio contra os povos indígenas


da América do Norte, confiscando forçosamen-
Apesar da retórica contrária, e da lin- te suas terras, bem como, de forma engenhosa,
guagem de liberdade e igualdade em seus do- roubando-as e destruindo nações. Esse foi o
cumentos fundacionais, os Estados Unidos da destino daqueles que chamávamos de “índios”
América adotaram o racismo desde sua funda- (Cf. os horrendos erros de navegação do infame
ção. Em 2017, a primeira negra a ocupar o car- Cristóvão Colombo) bem como dos mexicanos,
go de Secretária de Estado, Condoleezza Rice, que tiveram porções do México forçadamente
afirmou: “Esquecemos, nos Estados Unidos, anexadas por colonos europeus. Tais terras rou-
como demoramos a fazer com que ‘Nós, o povo’ badas foram, aos poucos, incluídas na “nova”
significasse pessoas como eu [...] E, realmente, nação, ainda que as pessoas de tais terras não

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penso que os Estados Unidos surgiram com fossem bem-vindas, exceto se pudessem ser es-
um defeito de nascença: a escravidão” (Con- cravizadas e forçadas a trabalhar em prol dos
doleeza Rice, Programa “Sunday Morning”, da colonizadores. Assim, eles passaram a chamar
CBS, de 7 de maio de 2017). a si mesmos de brancos e a criar raças para os
Decerto, ao longo dos quase 250 anos de outros, cuja exclusão de seu regime desejavam.
existência da nação, as elites brancas, nos Es- Além disso, africanos foram transformados em
tados Unidos, deliberadamente construíram e negros ao serem retirados de seu continente e
sustentaram uma sociedade baseada na supre- transportados para a América em navios negrei-
macia branca. Os primeiros colonos vindos da ros, acorrentados e forçados a trabalhar como
Europa desenvolveram uma nação colonizada escravos sem qualquer compensação – e isso
continuou por dois séculos e meio. A riqueza
* Universidade Northwestern. Departamento de Sociologia. da nação foi constituída à medida que as elites
1810 Chicago Avenue, Evanton, Illinois, 60208, EUA.
amorris@northwestern.edu brancas exploravam econômica, social e politi-
** Universidade da Califórnia. Departamento de Estudos Negros. camente aqueles definidos como não brancos.
3631 South Hall. Santa Barbara, Santa Barbara, CA. 93106,
USA. vbashitreitler@ucsb.edu Precisamente, foi o trabalho negro que fez com

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.27828 15
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que os Estados Unidos passassem de uma eco- categorias distintas de acordo com uma cons-
nomia muito parecida com a de um país pobre telação de traços físicos, cognitivos e cultu-
atual para uma economia gigante com uma pu- rais, cuja existência se acredita ser hereditá-
jante economia agrícola (Steinberg, 2001), ten-
ria, distintiva e largamente inescapável (Bashi
do tal trabalho não branco levado o país a seu
Treitler, 2016). Contudo os seres humanos não
estado atual, que rivaliza com o de outros im-
podem ser classificados dessa maneira. Não
périos brancos da Europa Ocidental, os quaisvivemos o suficiente em nosso planeta para
têm um histórico colonial. terem surgido as diferentes subespécies que
Em suma, os colonizadores europeus atualmente chamamos de raças (Gould, 1994).
cunharam raças, para si mesmos e para outrosNão há traço biológico ou genético que marque
seres humanos, criando sua própria suprema- definitivamente um indivíduo como membro
cia branca, à medida que construíam uma hie-de um grupo racial em detrimento de outro;
rarquia racial, sujeitando a ela todos os demais
tampouco há qualquer outra característica que
(Mills, 1999). Colonizadores brancos assegura-
identifique todos os membros de um único
ram a dominação, a supremacia branca e o pri-
grupo racial como distintos de todos os outros
vilégio com a categorização de fenótipos ou tons
grupos raciais (King, J., 1981). De fato, mais de
de pele e com a exploração – todos esses atos en-
100 anos de evidência científica demonstraram
trelaçados, apesar de terem sido criados de modo
que raças humanas (por exemplo, subespécies
inconsistente e ilógico. Assim, alguns europeus
raciais atreladas a um fenótipo e outras carac-
do Norte e seus descendentes mantiveram-se no
terísticas genéticas ou biológicas) não existem.
topo da hierarquia racial, elaborando sistemas
A crença na possibilidade de se categorizar
de classificação racial e criando crenças raciais
cientificamente seres humanos (por exemplo,
juntamente com sistemas de sanção para aque-o racialismo) deriva da fé no positivismo (a
les que não cumprissem tal lógica racial. Como
crença que o conhecimento advém de métodos
os brancos estruturaram a vida social para que
científicos que podem ser aplicados, de modo
pudessem continuar como a “raça” dominante? preciso e empírico, ao comportamento huma-
O que é raça? Como categorias raciais incorpo-
no). Todavia o positivismo é apenas uma cren-
ram não brancos, especialmente quando novas ça, tal como o é o racialismo; nenhum desses
pessoas surgem através de processos de conquis-
sistemas de crenças pode apresentar a ideia de
ta, imigração ou movimentos identitários? Como
raça como cientificamente válida.
um grupo dominante, criando hierarquias de se- Nos Estados Unidos, tendemos a pensar
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res humanos e sistemas de lógica racial que ga-


que possuímos quatro grupos raciais: brancos,
rantem a dominação racial branca, persiste por
asiáticos, hispânicos ou latinos e negros. Esse
séculos? Se quisermos compreender o contextoesquema classificatório acaba por considerar
racial dos Estados Unidos, responder tais per-
pessoas com o cabelo cacheado como brancas
guntas é crucial. As ciências (ambas, naturais e
ou negras; pessoas com pele morena ora como
sociais) deram passos importantes ao dar respos-
asiáticas, ora como negras; enquanto todos os
tas a tais questões incômodas. Na próxima seção,
grupos possuem pessoas com lábios grandes e
revisitaremos essas respostas. pequenos. Materiais genéticos são parecidos
com nossos olhos no que diz respeito à defi-
nição de raças, mas há cientistas naturais que
O QUE É RAÇA E COMO ELA OPERA ainda buscam por uma ferramenta confiável
NOS EUA? para a classificação racial, e muitos têm a es-
perança de que o esclarecimento quanto ao
Raça é um sistema de classificação hu- genoma humano finalmente nos levará até lá.
mana que objetiva classificar humanos em Cientes de que não há meio cientifica-

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mente válido para classificar humanos em ra- construção tem consequências consideráveis.
ças, cientistas sociais estão cada vez mais cer- Norte-americanos partilham um conjunto co-
tos de que raça é uma construção social. Sig- mum de ideias sobre como rotular uma pessoa
nifica dizer que raças são ficções criadas pelo como membro de uma determinada categoria
Homem, criações da mente humana baseadas social, ou, caso se prefira, há um senso comum
em fatores que não têm significado, embora lhe racial. Tal senso comum não apenas é aplicado
seja atribuído um significado por construções na forma como se rotula alguém, como também
feitas por nós e que com as quais (alguns de dita expectativas sobre seu comportamento, e
nós) concordamos. O esquema classificatório define como tais pessoas devem se comportar
mais comum emprega o fenótipo: racialistas diante de pessoas racialmente diversas. Quan-
(e racistas) acreditam que pessoas com certas do expectativas sobre comportamento racial
características físicas (textura ou curvatura ca- não são cumpridas, surgem sanções raciais.
pilar, grau ou ausência de melanina na pele, Elas podem ser brandas – por exemplo, quando
cor da íris, espessura dos lábios) podem ser as- o membro de uma família desaprova a escolha,
sociadas a uma “raça”. Atores sociais decidem por parte de um ente querido, de um amigo ou
utilizar características fenotípicas para atribuir parceiro fora da linha divisória racial –, ou po-
pessoas a raças, declarando pessoas como ra- dem ser rigorosas e duras – por exemplo, quan-
cialmente parecidas. Contudo, quando faze- do alguém se encontra nas mãos de membros
mos tais atribuições, ignoramos, de modo in- de um grupo de ódio, que constitui uma milícia
coerente, a enorme lista de elementos que dis- racial destinada a defender uma ordem racial
tinguem tais pessoas, incluindo naturalidade, estrita. Esses fundamentos que organizam a
língua, cultura, parentalidade e ancestralidade. ordem racial – categorias raciais, hierarquias,
Por exemplo, nos EUA, ilogicamente, acredita- senso comum, e sanção – são vistos como es-
mos que a prole de uma pessoa “branca” com truturantes do paradigma racial dos Estados
uma pessoa “negra” necessariamente será “ne- Unidos (Bashi Treitler, 2016).
gra”, devido à aderência a uma regra de hipo- De forma geral, nos EUA, pessoas que
descendência aplicada a pessoas com qualquer acreditam em raças acabaram por se afastar de
grau de “negritude” – exceto se tal indivíduo ideias atreladas a noções antigas da biologia
for “branco” o suficiente e viver de modo a evi- ou das ciências naturais relativas à raça. Es-
tar sua detecção como uma pessoa negra. Cate- sas pessoas passaram a crer que designações
gorias raciais estão em constante uso nos EUA, raciais se relacionam com o caráter de um gru-

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ainda que mudem com o tempo. Nesse país, a po. Trata-se de um progresso relativo, pois os
identificação racial consta de formulários co- norte-americanos não deixaram de lado todas
tidianos: candidaturas para empregos, questio- as noções biológicas. A maior parte dos nor-
nários médicos, matrículas escolares, e até no te-americanos – incluindo cientistas – pensa
acesso a edifícios em seu controle de visitantes! de uma forma muito mais racializada do que
Como já foi mencionado, a maioria das pesso- podemos esperar, e o essencialismo biológico
as, nos EUA, diria que há por volta de quatro é muito mais prevalente do que a ideia de que
categorias: brancos, asiáticos (e ilhéus do Pací- raça é uma mera construção social (Morning,
fico), latinos e negros. O que é crucial quanto 2011). Ao examinarem ancestralidade e etni-
à raça (diferentemente de etnia ou outras for- cidade, os norte-americanos determinam (com
mas de se classificarem seres humanos) é que ações e palavras) que tais conceitos também
categorias raciais são organizadas de modo são relacionados à ideia de raça (Bashi Treitler,
hierárquico, com brancos na posição mais alta 1996, 2014). Aderimos à crença de que raça
e negros na mais baixa. Ainda que raça seja tem um sentido real (talvez no que diz respei-
proclamada como uma “construção social”, tal to à produção de aptidões e propensões para o

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sucesso econômico, habilidades parentais, ou res racializados. Logo, faz sentido começar a
comportamento criminal) que pode ser aplica- tratar das desigualdades raciais no nascimento
do a grupos raciais, ainda que a forma de se e na morte. Os EUA são notoriamente pobres
classificarem os seres humanos seja variada eentre os países mais desenvolvidos no que
desorganizada (primeiro através da aparência tange aos cuidados com os recém-nascidos e
física e do sangue e, mais recentemente, atra-
com as recém-mães, tendo caído no ranking do
vés dos genes), levando a categorias raciais em
6º ao 26º lugar nos últimos 50 anos (Matoba;
constante mutação e que são nebulosas (Mor- Collins, 2017). A cada ano, 23.000 recém-nas-
ning, 2011). Por certo, os antirracistas necessi-
cidos morrem nos EUA, antes de seu primeiro
tam lutar contra todas essas desigualdades e as
aniversário. Os resultados têm influência de
crenças que as sustentam (Kendi, 2016). questões raciais, uma vez que a maior parte
Em 1860, o Senador Jefferson Davis fezdessas mortes envolve não brancos. Na capital
seu infame discurso no senado, opondo-se às do país, Washington DC, o distrito mais pobre
verbas federais para educação de negros e de-(Ward 8, onde residentes negros são maioria)
clarando que a indiferença racial existia desde o
tem uma taxa de mortalidade infantil que é
início em um governo que “não foi fundado por10 vezes maior que aquela observada no dis-
negros nem para negros, [...] mas por homens trito mais rico (Ward 3, com residentes predo-
brancos para homens brancos” (Kendi, 2016, p.minantemente brancos). Na costa oposta, em
2). A Guerra Civil Americana começaria no anoSão Francisco, mães negras têm 8 vezes mais
seguinte e terminaria em 1865, com a liberta-chances de sofrer com a morte de seu filho re-
ção daqueles tornados escravos pela escravidão
cém-nascido do que as mães brancas. Tem se
racial. As ficções raciais que historicamentetornado claro que a razão de tal disparidade se
tornaram a escravidão uma realidade continu- vincula a uma questão de racismo, não sendo
aram a moldar inequidades raciais contempo- apenas decorrente do fato de elas se situarem
râneas. Decerto, as desigualdades raciais e as
em classificações raciais distintas (Carpenter,
crenças que as justificam assombram a história
2017). Em que pese a taxa de mortalidade in-
dos EUA, moldando nossas políticas socioeco- fantil geral ter caído desde 1950, a diferença
nômicas e nossos comportamentos até a data entre a mortalidade infantil de negros e bran-
de hoje. Elas informam como compreendemos cos, em verdade, cresceu nas quatro décadas
um ao outro como seres étnicos, formando subsequentes (Singh; Yu, 1995) e chega, ago-
nosso conhecimento quanto a quem pertence ra, à situação na qual um número 50% maior
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à nação e quem nunca será incluído, também de crianças negras morre no primeiro ano de
contribuindo para nosso julgamento quanto a vida, em comparação com o de crianças bran-
se devemos culpar a hierarquia racial ou os so-
cas (Firger, 2017). Quando negros norte-ameri-
cialmente excluídos pela situação difícil desses
canos sobrevivem à infância, eles têm a menor
últimos. A seguir, examinaremos, brevemente, expectativa de vida (74,6 anos) dentre todos os
até onde essa falácia de pensamento racial nos
grupos raciais, enquanto asiáticos e latinos têm
levou, dois séculos após a declaração de Davis.
a maior expectativa, no patamar de 86,5 e 82,8
anos, respectivamente, e brancos têm a expec-
tativa de 78,9 anos (Kaiser Foundation, 2009).
O ESTADO ATUAL DAS RELAÇÕES A qualidade de vida de uma pessoa, en-
RACIAIS NOS EUA tre seu nascimento e sua morte, varia de forma
enormemente desigual entre as “raças”. A títu-
As inequidades raciais norte-ameri- lo de exemplo, negros e indígenas (“indígenas
canas são evidentes quando a vida começa e norte-americanos” e nativos do Alasca) têm
continuam presentes ao longo da vida dos se- uma performance muito pior do que brancos

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na maioria dos indicadores de saúde, enquan- carcerados e jogados nas amarras do sistema
to latinos e asiáticos (particularmente certos de justiça criminal tem efeitos devastadores
grupos étnicos asiáticos) têm um desempenho nas comunidades dessas pessoas (Alexander,
pior em alguns e melhor em outros. Pessoas 2010). A existência de ficha criminal torna o
adultas não brancas têm mais chances de estar acesso ao mercado de trabalho excessivamen-
sem seguro de saúde para promover melhores te difícil para ex-detentos não brancos (Pager,
condições de assistência (Artiga et al., 2016). 2003). A alta taxa de encarceramento diminui
Contudo enormemente as possibilidades de matrimô-
nio para mulheres não brancas, afetando ne-
Disparidades raciais e étnicas existem mesmo quan-
do há similaridades em termos de cobertura por se-
gativamente a renda e a estabilidade familiares
guro de saúde, renda, idade, e gravidade de condi- (Wilson, 1987). Além disso, o encarceramento,
ções médicas. Por ser a taxa de mortalidade de cân- muitas vezes, leva à exclusão política de pes-
cer, doenças cardíacas e diabetes significantemente soas negras, a tal ponto que acadêmicos come-
maior entre minorias raciais e étnicas do que entre çam a considerá-la a reencarnação do regime
brancos, tais disparidades são inaceitáveis (Nelson,
de opressão de Jim Crow (Alexander, 2010). É
2002, p. 6).
justo concluir que o encarceramento em mas-
Nos EUA, raças têm vidas segregadas, e sa, tendente à prisão de pessoas não brancas,
todas as grandes cidades nos EUA são hiperse- eleva a opressão racial nos Estados Unidos a
gregadas, significando dizer que a segregação níveis alarmantes, na contemporaneidade.
racial é claramente evidente, independente- Outros indicadores de qualidade de vida
mente de como seja medida. A segregação é demonstram disparidades raciais similares. O
um fator que contribui para uma série de pro- relatório publicado pelo Centro de Pobreza
blemas, dentre eles o não menos importante ra- (CPI) e Desigualdade da Universidade de Stan-
cismo do meio ambiente, uma vez que, quando ford no ano de 2017 se concentrou em 10 áreas
comparados aos brancos, os negros sofrem com de desigualdade (emprego, pobreza, uso de se-
maiores níveis de exposição a toxinas, tanto guridade social, moradia, educação, encarce-
em razão da segregação geográfica, quanto pelo ramento, saúde, renda, riqueza e mobilidade),
fato de empresas poluírem mais em áreas habi- tendo concluído que profundas desigualdades
tadas por pessoas negras (Newkirk, 2018). existem e persistem em muitos desses setores,
Os Estados Unidos também se torna- e que as diferenças entre brancos dominantes
ram infames em razão da sua posição global e não brancos são substanciais e sua diminui-

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como os maiores encarceradores de seu pró- ção vem ocorrendo de forma mais lenta ou
prio povo, uma posição que têm mantido des- deixando de ocorrer por completo. O emprego
de 2002 (Tsai; Scommegna, 2012). Homens de homens negros norte-americanos tem sido
correspondem a 90% dos presos. A situação mais baixo do que o de outros homens desde o
chega a tal ponto que uma entre quatro mulhe- início do registro desses dados; o emprego dos
res americanas possui um ente querido preso primeiros atualmente se encontra em patamar
– para mulheres negras, o número é significati- de 11 a 15% menor do que o de homens bran-
vamente maior, no patamar de 44%, enquanto cos, e tem sido esse o cenário todos os meses,
apenas 12% das mulheres brancas e 6% dos desde janeiro do ano 2000. A recuperação total
homens brancos se encontram na mesma situ- no emprego, após a Grande Recessão de 2008,
ação (Lee et al., 2015). Homens jovens negros alcançou todas as áreas da população, exceto
com idades entre 18 e 34 anos têm seis vezes homens negros (Hout, 2017). A retenção do
mais chances de ser presos do que seus pares emprego também é permeada por disparida-
brancos (Tsai; Scommegna, 2012). O número des raciais: enquanto apenas 1 em 18 brancos
desproporcional de não brancos presos en- tem medo de perder o emprego no prazo de um

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ano, 1 em 9 negros e 1 em 6 hispânicos têm substituíram os negros como vítimas de discri-


o mesmo receio. Negros empregados sofrem minação racial nos Estados Unidos contempo-
com desigualdade salarial, e a pobreza marca o râneos”. Além disso, para eles, os ganhos ob-
grupo como um todo. Logo após o Movimento tidos por pessoas negras são associados com
dos Direitos Civis, alguns ganhos foram obti- uma tendência antibranca, em um jogo racial
dos no que diz respeito à disparidade salarial, no qual um só ganha se o outro perder (“jogo
mas ainda hoje a renda média de homens ne- de soma zero”). Por certo, brancos veem os ga-
gros é 32% menor que a de homens brancos – nhos de não brancos como “racismo reverso”
em quatro décadas, a disparidade salarial teve e creem que esse é um problema maior do que
uma redução de apenas 7%. Paralelamente, a o racismo contra negros! As percepções dos
diferença salarial média entre homens brancos negros são bastante diversas – pessoas negras
e hispânicos foi de 29% a 42%, essencialmente nos EUA não veem a existência de um jogo de
em razão de a legislação anti-imigração ter au- soma zero, e acreditam que as supostas perdas
mentado a desigualdade (Grusky et al., 2017). não ocorrem quando obtêm vitórias em lutas
Paralelamente, brancos e asiáticos pos- pela igualdade.
suem as menores taxas de pobreza na nação O que veio antes, a ação racista ou o
(de 11,5% e 11,2%, respectivamente), enquan- pensamento racial? Isso pode ser debatido.
to negros, indígenas e hispânicos têm taxas de, Alguns sustentam que nem mesmo teríamos
respectivamente, 24%, 27% e 21% (Grusky et raças se seres humanos não insistissem na
al., 2017). Tais grupos altamente afetados pela desigualdade entre eles e aqueles vistos como
pobreza dependem mais da rede de seguridade racialmente inferiores. Em outras palavras, al-
social do país. Os gastos com a casa própria guns acadêmicos sugerem que a desigualdade
correspondem à maior despesa das famílias racial causa nossa percepção de existência e
norte-americanas, levando à ativação de be- visibilidade de diferenças raciais entre seres
nefícios sociais como deduções dos juros de humanos (Fields; Fields, 2014). Se eles esti-
hipoteca, isenções tributárias relativas a imó- verem certos, tornar as “raças” iguais ajudaria
veis, e outros subsídios. Famílias negras, his- muito a resolver os problemas raciais dos EUA.
pânicas e indígenas têm chances 57%, 51% e Faz sentido, portanto, examinar a luta contra
41% menores de ter casa própria hipotecada, “disparidades raciais [que são] mais antigas
respectivamente, se comparadas às famílias que a vida dos Estados Unidos” (Kendi, 2016,
brancas. O ônus de se pagar pela moradia, con- p. 2). Na próxima seção, nós analisaremos a
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siderando-se as diferenças de empregabilidade narrativa de uma história dos movimentos an-


e salário, é considerável: 20% dos locatários tirracistas dos EUA e suas conquistas.
negros e hispânicos gastam mais de metade da
sua renda com moradia e correm maior risco
de despejo. Em contraste, 1 em 6 negros ou REGIMES RACIAIS E RESISTÊNCIA:
hispânicos com casa própria despendem me- escravidão, Jim Crow, opressão
tade da sua renda com moradia, enquanto o racial contemporânea
dado para proprietários brancos é de 1 em 12
(Grusky et al., 2017). Como já foi mencionado, a ideia de raça
Não brancos e brancos não apenas vi- foi inventada por europeus, os quais se autode-
vem vidas completamente diferentes, como nominavam brancos e colocavam a si mesmos
também possuem visões antagônicas sobre o numa posição de supremacia, criando, por ou-
que tem acontecido por aqui. Um estudo da tro lado, negros, os quais subordinavam atra-
Tufts University (Norton; Sommers, 2011, p. vés da escravidão racial. O regime escravagista
215) demonstrou que “Brancos acreditam que norte-americano se aproximou de uma jaula

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de ferro de dominação humana (Morris, 1993). traficantes de escravos e seus vigilantes tinham
Pesquisadores da escravidão norte-americana de se manter sempre alertas para prevenir re-
(Aptheker, 1974; Franklin, 1967) concordam beliões e controlar aquelas que se iniciavam
que a escravidão racial foi um complexo sis- em condições desafiadoras. Em muitos casos,
tema de sujeição. O sistema escravagista utili- escravos rebelados tomavam os navios negrei-
zava medidas duras – assassinato, castigo com ros, matavam traficantes brancos e retornavam
chicote, formas brutais de punição, restrições à África. Alguns navios vagavam eternamente
ao deslocamento e a relações sexuais, ignorân- no mar quando rebeliões os tiravam de curso.
cia imposta, violência ideológica e mental e Também era comum que escravos se jogassem
monitoração constante – para que se manter. no mar, optando pela morte em vez da escra-
A escravatura norte-americana durou por mais vidão em uma terra desconhecida. Decerto, o
de dois séculos, pois, como notou Aptheker protesto negro contra a escravidão nasceu den-
(1974, p. 67), “Atrás do dono e seus agentes tro de navios negreiros, pois sua carga humana
pessoais, existia um sistema elaborado e com- lutou implacavelmente pela liberdade.
plexo de controle militar [...] praticamente to- Escravos que chegavam ao solo norte-a-
dos os homens adultos brancos eram respon- mericano se rebelavam, apesar da brutalidade
sáveis pelo serviço de patrulhamento”. O sis- hostil e da intensa vigilância que acompanha-
tema também se manteve devido ao uso, pela va sua condição de escravos. Através de pro-
aristocracia, das classes trabalhadoras brancas testos, escravos aumentaram os custos da sua
como controladoras e vigilantes, as quais eram subordinação racial e do terror que era utiliza-
recompensadas com rendas escassas e um sta- do para mantê-los subordinados, transforman-
tus modesto com base na ideia de que eram do a instituição cruel em um negócio arriscado
melhores do que os escravos negros (Du Bois, e perigoso, o que levou, posteriormente, à sua
1935). Assim, através da exploração brutal de derrubada. Escravos negros, nos EUA, frequen-
escravos, a aristocracia branca sulista acumu- temente interrompiam os mecanismos da es-
lou enorme riqueza e construiu um elaborado cravidão através de atos individuais de resis-
império fundado na produção de algodão, ta- tência, que incluíam automutilação, suicídio,
baco e outras commodities. As elites europeias abortos indetectáveis, envenenamento de se-
também dependiam da escravidão negra, na nhores e a provocação de incêndios.
América e em outros lugares, para alimentar Com o acúmulo de anos de servidão, os
seus gananciosos impérios. Sob a escravidão, a escravos ensinaram a si mesmos a construir

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pele negra e a dominação branca se tornaram organizações comunitárias, muitas vezes utili-
entrelaçadas, o que levou a uma característica zando disfarces com várias camuflagens, como
duradoura de uma sociedade estadunidense árvores na floresta. Especialmente importante
que provocou terrorismo racial sobre não bran- foi a emergência da igreja negra, inicialmente
cos, enquanto proclamava: “[...] consideramos invisível ao olho não convertido. Através dos
estas verdades como evidentes por si mesmas, tempos, a igreja se tornou uma instituição de
que todos os homens são criados iguais, dota- tijolo e argamassa, mas, mesmo nessa forma
dos pelo Criador de certos direitos inaliená- modificada, continuou a apresentar diferentes
veis, que entre estes estão a vida, a liberdade e disfarces ao mestre e aos congregantes de es-
a procura da felicidade” (Jefferson, 1776). cravos. A resistência coletiva organizada emer-
Negros norte-americanos sempre partici- giu da igreja e de outras formas de organização
param de protestos individuais e coletivos con- de escravos. Essa resistência se manifestou por
tra a opressão racial. A resistência negra à es- meio da redução no ritmo do trabalho, na com-
cravidão teve início dentro de navios negreiros, plexa Ferrovia Subterrânea, pela qual escravos
durante a passagem transatlântica. Nos navios, escapavam para serem livres, e de revoltas de

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O ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça ...

escravos organizadas que ameaçavam as fun- 1863 a 1877), um enorme número de ex-escra-
dações do terrível regime. Aptheker, ao co- vos foi deixado indefeso, sem armas, terras,
mentar sobre a relevância das revoltas de es- riqueza, renda ou abrigo. Após a guerra, o go-
cravos, afirmou: “Rebelião e conspiração para verno nacional retirou as forças que protegiam
rebelar refletem a maior forma de protesto [...] os escravos, deixando a aristocracia branca su-
[e também refletem] uma profunda e ampla in- lista perdedora livre para recapturar ex-escra-
quietação: a insurreição ou o plano correspon- vos e forçá-los ao trabalho com novas formas
diam ao clarão de luz que mostrava o profundo de extrema exploração econômica, política e
distúrbio atmosférico que o criava” (Aptheker, social (Morris, 1984). O regime Jim Crow per-
1974 apud Morris, 1993, p. 34). Revoltas de mitiu que brancos capitalistas do Sul levassem
escravos negros continuaram a balançar o re- os negros de volta às plantações, forçando-os a
gime da supremacia branca, criando instabi- trabalhar em troca de uma compensação que
lidade e possibilitando, eventualmente, que a mal gerava uma renda de subsistência, num
escravidão fosse frontalmente atacada. sistema de débito servil. Como possuidores de
Em seu livro clássico, Black Reconstruc- fração da terra cultivada, os antigos escravos
tion (1935), W. E. B. Du Bois elucidou como ficavam endividados perante seus antigos se-
os escravos negros libertaram a si mesmos, no nhores, presos num sistema de contabilidade
contexto da Guerra Civil Americana, a qual que tornava impossível o acúmulo de dinheiro
correspondeu a um conflito entre os estados suficiente para se tornarem economicamente
nortistas (“a União”), que temiam uma domi- independentes ou providenciarem abrigo e co-
nação da economia escravagista e mais robusta mida de forma adequada às suas famílias. Sob
do Sul, e os estados escravagistas sulistas (“a o regime Jim Crow, as elites brancas prospera-
Confederação”). Os escravos foram bem suce- ram, e as classes trabalhadoras brancas conti-
didos na interrupção da economia sulista com nuaram a servir como intermediárias raciais,
enormes greves, participando dos esforços de possuindo uma renda um pouco maior do que
guerra e provendo serviços de apoio essen- aquela obtida por negros. Tais disparidades ra-
ciais, bem como lutando como soldados que ciais de renda e o bônus do privilégio racial
derramavam seu sangue em prol da liberdade. foram suficientes para desencorajar a união
Du Bois demonstrou que a Confederação teria entre trabalhadores brancos e negros em uma
provavelmente ganhado a guerra, não fosse pe- classe (Du Bois, 1935). O regime em questão
las determinadas insurreições de escravos e os correspondia a um sistema tripartite de domi-
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019

danos que elas causaram ao Sul. Através dos nação (Morris, 1984), uma vez que controlava
anos de aparentemente interminável servidão, os negros política, social e economicamente.
os protestos de escravos enfraqueceram a ins- Durante as nove décadas do regime Jim Crow,
tituição, levando à sua completa queda. Eles os negros do Sul não possuíam direitos políti-
provaram que Frederick Douglas estava corre- cos que os brancos devessem respeitar. A ex-
to: “Aquele que seria livre deve dar o primeiro clusão dos negros significava que eles não po-
golpe” (Douglass, 1863). diam participar como jurados em júris popu-
Mesmo após a libertação, contudo, a lares, nem eleger membros da classe política.
autodeterminação provou ser algo difícil, uma Sem direitos políticos, as pessoas negras não
vez que as severas construções raciais da Era podiam proteger seus interesses. Além disso,
Jim Crow substituíram a escravidão, colidindo elas eram constantemente restringidas, políti-
com os sonhos de liberdade dos ex-escravos. ca e socialmente, por ameaças constantes de
Como afirmou Du Bois, o regime Jim Crow era terror, inclusive linchamento.
a escravidão com um novo nome. No breve A dominação racial que os negros vi-
período da Reconstrução Pós-Guerra Civil (de venciaram sob o regime Jim Crow foi pessoal e

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Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

humilhante. O sistema estabelecia uma rígida A evidência da longa história de protes-


segregação racial entre brancos e negros. Ao to negro, que teve início antes da introdução
analisar tal forma de dominação, Morris (1999, da negritude, passando pelo movimento mo-
p. 518) concluiu: derno de direitos civis, levou Morris (1984) a
concluir que a comunidade negra é parte de
O sistema Jim Crow trabalhou para estampar nos
negros a ideia de que estes constituíam uma po-
uma duradoura tradição de protesto. A partir
pulação subordinada, ao forçá-los a viver em uma de tal tradição, emergiram grandes organiza-
sociedade separada e inferior [...] os negros tinham ções de protesto, incluindo o Movimento Ni-
de utilizar banheiros separados, frequentar escolas ágara, em 1905, a Associação Nacional para o
separadas, sentar-se no fundo de ônibus e trens, Progresso das Pessoas de Cor, em 1909, a As-
dirigir-se a brancos enquanto eram tratados de for-
sociação Unida de Melhoria, em 1914, e o Mo-
ma desrespeitosa, jurar com bíblias diferentes em
um tribunal, comprar roupas sem experimentá-las
vimento da Marcha em Washington, em 1941.
antes, passar por mesas ‘apenas para brancos’ após Em meados do Século XX, numerosas vitórias
adquirirem comida, e viajar sem dormir, pois hotéis em pequena escala começaram a deteriorar as
não os hospedavam. fundações do regime Jim Crow. De toda sorte,
para que o regime caísse, um grande movimen-
Economicamente, trabalhos de “brancos”
to de massa era necessário. Em 1950, ele seria
e “negros” eram divididos em termos de ocupa-
confrontado e viria a ruir.
ções e remuneração. As ocupações negras eram
Um sistema de dominação pode perdu-
as mais sujas, mais perigosas, tinham as piores
rar, pois monopoliza o poder enquanto rende os
remunerações e eram desprotegidas por sindi-
dominados, os não empoderados. Na metade da
catos, os quais tinham uma postura discrimi-
década de 1950, a segregação de Jim Crow era
natória com os negros. Quando Du Bois exami-
a ordem social suprema no Sul, mantendo os
nou as dificuldades econômicas dos negros sob
negros na posição mais inferior da hierarquia
a égide do regime Jim Crow, ele concluiu que,
racial. Ainda assim, os desafios ao regime Jim
“ser um homem pobre é difícil, mas ser uma
Crow tornavam-se visíveis. A Suprema Corte
raça pobre numa terra de dólares é a mais pro-
dos Estados Unidos decidiu, em maio de 1954,
funda das dificuldades” (Du Bois, 1903, p. 6).
que escolas racialmente segregadas eram in-
Assim, a vigência formal do regime Jim
constitucionais – e isso deu esperança às pes-
Crow, que perdurou por nove décadas, cor-
soas negras de que a segregação racial estava
respondeu a um sistema brutal de dominação
no leito de morte. Todavia, em agosto do ano

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019


racial, legitimado pela lei, pela violência e pe-
seguinte, Emmett Till, de quatorze anos, foi lin-
los costumes. Por conta dele, em meados do
chado na cidade de Money, no Mississippi. A
século XX, as enormes populações negras nos
brutalidade do assassinato, a bravura da mãe
Estados Unidos eram pobres, sem teto, tinham
de Till (que deixou o caixão aberto, para que
baixo índice de escolaridade e batalhavam
todos pudessem ver os horrores sofridos pelo
contra a intimidação produzida pela violência.
seu filho), e a absolvição de dois homens bran-
Ainda assim, tal como fizeram durante a escra-
cos, que eram obviamente culpados pelo crime
vidão, os negros nos EUA resistiram ao regi-
racista, deixaram a comunidade negra agitada.
me Jim Crow desde o princípio. Tal resistência
Contudo, um momento de virada ocorreu em
teve início no final do século XIX e persistiu
1º de dezembro de 1955, quando se iniciou um
durante o século XX. Boicotes, ações judiciais,
boicote a um ônibus em Montgomery, Alaba-
marchas e outras formas de resistência, in-
ma, após a detenção de Rosa Parks, que havia
cluindo a proliferação de organizações de pro-
se recusado ceder seu assento num ônibus para
testo, avançaram o ataque contra a segregação
um homem branco. O Movimento dos Direitos
e as desigualdades raciais.
Civis moderno havia ali começado.

23
O ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça ...

Na década de 1950, a comunidade negra diretas não violentas passaram a incluir outros
havia passado por considerável urbanização boicotes, grandes marchas, sit-ins, detenções
em razão da migração de negros do Sul para em massa, demonstrações em massa e outras
as cidades do Norte, e instituições urbanas, técnicas deliberativamente criadas para inco-
em especial a igreja, eram mais fortes e mais modar a ordem do regime Jim Crow. A ação
capazes de mobilizar e apoiar um movimento direta não violenta modificou a distribuição
de massa contra o regime Jim Crow (Morris, de poder entre os dominadores e os domina-
1984). O boicote ao ônibus em Montgomery dos em razão da sua capacidade de perturbar
teve como base essas instituições e organiza- a ordem social de forma simples e eficiente.
ções comunitárias negras e logo evoluiu para Sistemas de dominação perduram, pois mono-
um movimento de massa. Liderado pelo ca- polizam o poder nas mãos daqueles em posi-
rismático líder Martin Luther King Jr., o mo- ções altas e impõem uma ausência de poder
vimento escolheu o método de ação direta não aos dominados. Os movimentos sociais podem
violenta como uma tática principal para der- gerar a força necessária para a mudança atra-
rotar o regime Jim Crow. Também nova para vés da mobilização; uma comunidade faz um
o movimento foi a mobilização em massa. Em pacto para explicitamente recusar que as coi-
tempos anteriores à ação de Montgomery, as sas funcionem como sempre. Os participantes
lutas antirracistas tendiam a ser iniciadas por do Movimento dos Direitos Civis aperfeiçoa-
indivíduos ou travadas por poucos litigantes e ram o uso efetivo de ações diretas não violen-
advogados na justiça. O boicote ao ônibus se tas a partir de meados da década de 1950 e na
diferenciou enormemente de tais esforços: ele década de 1960. Quando grandes mobilizações
envolveu as massas negras diretamente numa forçaram o governo federal a passar a Lei de
atividade organizada que pretendia perturbar Direitos Civis de 1964, a qual baniu todas as
o status quo. O Reverendo James Lawson, um formas de segregação racial, uma grande vitó-
grande estrategista do movimento, explicou a ria contra o regime de Jim Crow foi finalmente
diferença que fez a ação direta de massa não alcançada. Outras mobilizações, em 1965, fo-
violenta: “Muitas pessoas, quando sofrem e mentaram a adoção, pelo governo federal, da
veem seu povo sofrendo, querem participação Lei de Direitos de Voto, a qual trouxe a inclu-
direta. Então, você põe nas mãos de todos os ti- são dos negros do Sul e retirou outro pilar do
pos de pessoas comuns uma alternativa positi- regime Jim Crow, que vedava a participação
va à impotência e à frustração. Essa é uma das política de pessoas negras.
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grandes coisas da ação direta” (Lawson, 1978 Se, por um lado, tais conquistas foram
apud Morris, 1984, p. 124). notáveis, por volta de 1955 ficava claro que a
Martin Luther King, concordando com remoção das barreiras estabelecidas pelo regi-
Lawson, explicou como o poder da perturba- me Jim Crow não excluiria os efeitos de sécu-
ção foi utilizado para a obtenção da mudan- los de opressão econômica e social que debili-
ça: “A ação direta não violenta objetiva criar tara pessoas negras, suas economias e comu-
uma crise e estabelecer uma tensão criativa, de nidades. Uma intervenção direta, na forma de
modo que uma comunidade que sempre se re- ação afirmativa, era necessária para que fosse
cusou a negociar é forçada a confrontar a ques- endereçada essa privação e, em 1965, o Presi-
tão” (King JR., 1963, p. 1). dente Johnson apoiou sua adoção para que fos-
Assim, o boicote ao ônibus mudou in- sem remediadas as dificuldades sofridas pelas
teiramente a lógica da resistência antirracista, pessoas negras, tendo afirmado:
e o sucesso de tal ação foi confirmado com o Mas Liberdade não é suficiente. Não se podem var-
término da segregação nos ônibus de Mont- rer as cicatrizes de séculos ao dizer: ‘Agora vocês
gomery. Partindo de tal vitória, grandes ações estão livres para ir para onde quiserem, fazer o que

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Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

quiserem, e escolher os líderes que lhes agradam’. lização, devido à grande abrangência da tese
Não se pega uma pessoa que, por anos, ficou acor- em questão em várias instituições norte-ame-
rentada e a liberta, trazendo-a para a linha de iní-
ricanas, incluindo a mídia, o mercado de tra-
cio de uma corrida, dizendo: ‘Você está livre para
competir com todos os outros’, acreditando-se que
balho, as escolas e universidades, concursos de
tal situação é justa. Assim, não é suficiente apenas beleza, sendo que visões da supremacia branca
abrir os portões da oportunidade. Todos os nossos estavam presentes em cada um desses contex-
cidadãos precisam ter a possibilidade de caminhar tos. Mas um novo movimento – o Movimento
por esses portões (Johnson, 1965). Black Power – surgiu no final da década de 1960
e no início da década de 1970, para erradicar a
Em apenas uma década, o Movimento tese de inferioridade negra e para buscar o po-
dos Direitos Civis tinha derrubado o regime der, em vez de uma mera integração racial. Esse
formal de Jim Crow e aberto a possibilidade de Movimento defendia um novo modo de se olhar
execução de medidas tangíveis que eram ne- para a negritude: “Negro é lindo” (“Black is be-
cessárias para a equalização da qualidade de autiful”). Tal tema já se fazia presente nas obras
vida entre as raças. A queda do regime certa- de acadêmicos negros anteriores, incluindo
mente abriu a oportunidade para novas possi- Du Bois, Jessie Fauset e o historiador Carter G.
bilidades, incluindo a eleição de Barack Oba- Woodson. Também era um tema central na arte
ma, o primeiro presidente negro dos Estados e na literatura do movimento de Renascimento
Unidos, quatro décadas mais tarde. do Harlem, na década de 1920. Similarmente,
Como resta claro a partir da seção ante- o Movimento Garvey, da década de 1920, con-
rior, que descreve as diferenças entre a vida de tribuiu para essa perspectiva empoderada, ao
não brancos e brancos, os EUA ainda sofrem promover o orgulho negro. O Movimento Black
com dimensões relevantes de racismo que Power popularizou essa perspectiva nas massas,
continuam intocadas, apesar do sucesso dos lutando pelo estabelecimento de Estudos Ne-
movimentos. Europeus e pessoas brancas de gros (“Black Studies”), especialmente em uni-
ascendência europeia oficialmente rotularam versidades, explorando nobres heranças negras
os negros americanos como uma raça inferior, presentes na Diáspora Africana.
ao implementarem a escravidão na América O Movimento Black Power defendia o
do Norte, e tal rótulo perdura. Essa marca se controle comunitário da polícia e o empode-
tornou útil para justificar séculos de opressão ramento econômico como parte de sua luta
contra homens e mulheres negros em uma ter- para o ganho real de poder e para levá-lo às

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ra que alegava sustentar os ideais de democra- comunidades negras. De tal forma, bem como
cia e liberdade (Morris, 2015). De fato, a do- de outras, ele era diferente de movimentos an-
minação racial persistiu, tal como a ideia de teriores e, de modo específico, contrastava sig-
inferioridade negra. Confrontando tal questão, nificativamente com o Movimento de Direitos
Martin Luther King comentou: “Pessoas negras Civis, não violento, pois o Black Power insistia
vêm sendo mantidas sob opressão e privação na ideia de autodefesa. Durante esse perío-
por uma cortina de fumaça envenenada [...] a do, um grande número de rebeliões urbanas
lógica torta propagava que, se o homem negro (negativamente rotuladas por brancos como
era inferior, ele não era oprimido – seu lugar “motins”) ocorreu, geralmente em resposta à
na sociedade era apropriado para seu escasso brutalidade policial perpetrada contra vítimas
talento e intelecto” (King JR., 1968, p. 1). desarmadas. O assassinato de líderes do mo-
Um resultado danoso da tese de inferio- vimento, incluindo Malcolm X, King, e boa
ridade negra foi a internalização de tal mentira parte da liderança do Partido das Panteras Ne-
por muitas pessoas negras nos EUA. Era difícil gras, também serviu para incendiar o protes-
para os negros, de fato, escapar de tal interna- to negro. Posteriormente, o Movimento Black

25
O ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça ...

Power revelou a grande magnitude das dispari- tal fenômeno, incluindo “racismo simbólico”
dades raciais no Norte. Formalmente, o regime (Kinder; Sears, 1981), “racismo laissez faire”
Jim Crow pode não ter afetado o Norte, mas a (Bobo; Kluegel; Smith, 1996), “racismo sem
segregação racial e a opressão, de fato, encon- distinção de cor” (Bonilla-Silva, 2006) e “novo
travam-se espalhadas pelas cidades nortistas. Jim Crow” (Alexander, 2010). Todas essas pers-
Tal como no movimento sulista não violento, o pectivas concordam que o racismo continua
Movimento Black Power obteve concessões do sendo uma clara realidade nos EUA contempo-
governo, apesar de ser difícil traçar sua origem râneos, que se faz presente num amplo discur-
diretamente do movimento. so público somente de formas mais furtivas.
Nos Estados Unidos do século XXI, a es- A pobreza concentrada em bairros ne-
cravidão e a opressão legal do regime de Jim gros e em áreas degradadas, as quais lembram
Crow estão rigidamente proibidas por lei. De colônias internas, continua a ser um problema
fato, a discriminação racial é amplamente con- perturbador e persistente. Em tais localidades,
siderada como politicamente incorreta, mes- residentes negros e pessoas de cor vivenciam
mo no contexto atual, no qual a direita intole- altos índices de desemprego, escolas inferio-
rante tem tido mais espaço, em razão do apoio res, alta criminalidade, intensa violência e al-
explícito e tácito do 45º Presidente dos Estados tos níveis de encarceramento. Essas áreas das
Unidos. A maioria dos brancos nos EUA acre- cidades dos EUA lembram favelas da América
dita que o racismo é uma coisa do passado e do Sul e de outras localidades do mundo onde
crê que ser chamado de “racista branco” é algo se concentram os pobres. O problema assusta-
inexprimível e horrível. Mesmo no ambiente dor é que não há soluções óbvias à vista que
mais gentil dos anos de Obama, vimos negros possam imediatamente transformar tais cida-
ficarem bem atrás de brancos no que diz res- des negras devastadas nos EUA. Do ponto de
peito às chances de uma melhor qualidade de vista do poderoso, essas favelas estão “fora da
vida. Em outros termos, a desigualdade racial vista” e “fora da mente”, não merecendo qual-
institucionalizada é prevalente nos EUA, e tal- quer atenção ou injeção de recursos aptos a
vez seja até óbvia. Ainda assim, nos Estados transformá-las. Ainda assim, mesmo as pesso-
Unidos, não é fácil tratar do racismo de forma as de cor com uma boa qualidade de vida vi-
aberta. A desigualdade, o ânimo e a violência venciam o racismo rotineiramente e estão bem
racistas são amplamente difundidos, mas falar atrás de seus pares brancos, especialmente no
do assunto não é algo tolerado. Parece inaceitá- que diz respeito à riqueza, uma vez que são
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019

vel para uma sonora parcela da população que incapazes de transferir recursos através das ge-
alguém ajoelhe em silêncio, enquanto o hino rações, devido a uma inexistência de heranças,
nacional é tocado antes de uma partida espor- gerada pelo legado da escravidão e pelo regime
tiva, para dar atenção ao silêncio do próprio Jim Crow.
governo quanto aos homicídios frequentes de Atualmente, encontros violentos com a
pessoas negras e desarmadas, cometidos por polícia advindos da sujeição criminal racial
policiais (Branch, 2017). E aparentemente não (racial profiling) ocorrem diariamente durante
importa que a face do movimento tenha sido atividades rotineiras, havendo problemas re-
considerada a “Pessoa do Ano de 2017” pela levantes raciais que necessitam ser resolvidos
revista Time (Gregory, 2017). Contradições nos EUA do século XXI. A fim de proteger os
entre atos claramente racistas e um maior si- interesses de grupos dominantes, a vigilância e
lêncio da sociedade quanto à injustiça racial o policiamento dos pobres e oprimidos consti-
têm desafiado acadêmicos a compreenderem o tuem altas prioridades. Atividades criminosas
que parece ser um novo regime de opressão ra- baseadas em uma economia subterrânea com-
cial. Acadêmicos têm atribuído vários nomes a pensam a inexistência de empregos viáveis,

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Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

mas também justificam (nas mentes dos bran- com movimentos anteriores, os quais tinham
cos dominantes) os altos índices de vigilância fortes elementos homofóbicos ou temiam que a
policial em comunidades negras e de cor, onde participação gay pudesse deslegitimar sua luta.
tais pessoas sofrem com a sujeição criminal, e Os novos movimentos antirracistas também
incessantes abordagens para revista (stop-and- optaram pela descentralização da liderança no
-frisk). Essas práticas, conduzidas muitas vezes lugar da burocratização e de processos decisó-
por policiais brancos, criam interações hostis e rios formais; eles resistem a estratégias “de cima
até mesmo violentas entre agentes de contro- para baixo” e utilizam amplamente as redes so-
le social e pessoas de cor. Ademais, levam a ciais para a mobilização e para a organização
detenções em massa, ferimentos e até mesmo de suas estratégias (Fleming; Morris, 2015). Fi-
à morte. O número de assassinatos de jovens nalmente, os novos movimentos antirracistas
negros – e, cada vez mais, também de mulhe- tendem a ter objetivos limitados, buscando, por
res negras – tem se tornado um barômetro pelo exemplo, o fim da violência policial e do encar-
qual o clima racial é medido (Crenshaw, 1989). ceramento em massa.
Independentemente da existência de evidên- A questão que perdura é se tais movi-
cias, raramente há condenações de policiais mentos serão bem sucedidos. Eles enfrentam
que causam ferimentos ou matam pessoas ne- assustadores desafios, incluindo o de poderem
gras e de cor. Cada uma das absolvições causa sustentar a si próprios, devido à sua organização
revolta, pois elas revelam a injustiça e o caráter ser solta e suas práticas decisórias serem infor-
tendencioso do sistema de justiça criminal e mais. A situação racial nos EUA também atinge
da sociedade em si (Van Cleve, 2016). acadêmicos e ativistas de cor, que têm dificulda-
Novos movimentos sociais, incluindo des para tratar de questões de raça e racismo em
o Dream Defenders, o Black Lives Matter e o instituições de ensino superior que são predomi-
#SayHerName foram organizados para a con- nantemente brancas. Eles sofrem mais com o es-
frontação do moderno regime racista norte-a- gotamento (burnout) e com a “fadiga da batalha
mericano, dando nomes às vítimas e perpetra- racial”, devido à complexidade de seu trabalho e
dores, compartilhando notícias de violência do seu senso de urgência sobre o estado de injus-
antinegra e de desigualdade racial, e educando tiça racial (Gorski, 2018). Talvez o grande desafio
o público para que todos nós tomemos nota do enfrentado por ativistas contemporâneos, tanto
que ocorre. Tais movimentos foram desenvolvi- de dentro quanto de fora da academia, seja a pos-
dos como uma resposta ao grande número de sibilidade de movimentos antirracistas, ampla-

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019


assassinatos de jovens negros nas mãos de poli- mente organizados através das redes sociais, ob-
ciais absolvidos pela justiça, ainda que houves- terem, em comunidades negras e comunidades
se ampla evidência para condenar tais agentes. aliadas, a solidariedade e a confiança necessárias
Os assassinatos de Trayvon Martin, Michael para impulsionar o ativismo de alto risco. Com-
Brown, Sandra Bland e dezenas de outros jo- pete a cada geração de ativistas enfrentar novas
vens negros levaram diretamente à formação de demandas e desafios que precisam ser endereça-
tais novos movimentos, os quais diferem subs- dos suficientemente para que mudanças sociais
tancialmente de movimentos anteriores havi- ocorram. Somente o tempo nos dirá se essa nova
dos durante a escravidão e o regime Jim Crow. geração, constituída de jovens negros ativistas e
Nos movimentos atuais, a liderança feminina é seus apoiadores, vai derrubar mais um regime
central, uma característica não usualmente en- de racismo norte-americano. Se o passado é um
contrada em movimentos pretéritos, que foram prólogo, o racismo norte-americano continuará
liderados por figuras simbolizadas por King e a ser vigorosamente objeto de resistência, com
Malcolm X. Esses novos movimentos também cada vitória levando a uma união mais perfeita.
incluem lideranças gays e queer, contrastando

27
O ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça ...

CONCLUSÕES eleição de Donald Trump para a presidência


dos EUA estimulou brancos racistas a emergi-
Neste artigo, expusemos um panorama e rem de cada canto da sociedade, resistindo a
uma análise do estado das relações raciais nos quaisquer propostas que promovam mudança
Estados Unidos da América. Enquanto existem na questão racial. Por certo, a violência racial
aqueles que, na academia norte-americana, branca e a intolerância são agora abertamente
tendem a sustentar a ideia de que raça é uma demonstradas de modo jamais visto no passado
construção social, demonstramos que muitos recente. Em razão de o sistema atual de opres-
norte-americanos, especialmente pessoas de são racial, nos Estados Unidos, ter tais deleté-
cor, enfrentam a realidade da desigualdade ra- rios efeitos sobre pessoas de cor, um acadêmi-
cial. Negros, latinos e asiáticos vivem de forma co, totalmente ciente dos efeitos opressores da
desigual, se comparados aos brancos, os quais escravidão e do regime Jim Crow, descreveu-o
creem que perdem quando ocorrem ganhos como produtor de uma nova baixa nas relações
para os não brancos. Tais brancos se opõem às raciais norte-americanas (Cha-Jua, Sundiata,
ações afirmativas, alegando que elas promo- prestes a ser publicado).
vem “discriminação reversa”. A ironia é que Contudo sistemas racialmente opressi-
a ação afirmativa beneficiou, de forma des- vos não são naturais, tampouco inevitáveis. A
proporcional, brancos norte-americanos, em resistência ao racismo ocorreu durante a escra-
especial mulheres brancas (Crenshaw, 2006). vidão racial, no regime Jim Crow e ocorre no
Mas, como demonstramos, são os não brancos período contemporâneo no qual a opressão é
que sofrem com as dinâmicas raciais que per- menos formal, mas, de qualquer maneira, for-
meiam as instituições centrais norte-america- midável. Subalternos raciais podem resistir,
nas – economia, política, família, sistema de resistiram, desconstruíram o racismo, e con-
justiça criminal, cultura e interações sociais –, tinuarão a fazê-lo. Suas experiências de vida
produzindo enormes desigualdades sociais e contam a verdade sobre as desigualdades ra-
sofrimento humano. ciais, e eles se organizam para localizar recur-
Nos EUA, as disparidades raciais em ter- sos, energia e conhecimentos necessários para
mos de renda, riqueza, bairros de residência, resistir e derrubar, de forma efetiva, a opres-
educação, pobreza, encarceramento, saúde e são. Com recursos, organização e perspicácia,
expectativa de vida são gritantes. Ao observar- a ação coletiva antirracista é possível. Histo-
mos os dados, chegamos à conclusão de que ricamente, a resistência negra pela liberdade
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019

a realidade de raças desiguais, enraizada na efetivamente derrubou a escravidão e o regime


escravidão racial, ainda permeia a sociedade Jim Crow. Ao fazê-lo, inspirou movimentos
norte-americana. Ainda assim, muitos bran- globais de pessoas que buscam seus sonhos
cos contemporâneos, especialmente aqueles de liberdade. Os desafios da população negra
em posições de elite, veementemente negam continuam a existir nos EUA, estimulando-a
a existência do racismo nos Estados Unidos, a lutar pela sua liberdade em um dos perío-
pois, para eles, a sociedade se tornou indistin- dos mais obscuros da nação. Esperamos que
ta quanto às cores das pessoas, tal como dese- Dr. King (“Our God is marching on” march 25,
java Martin Luther King. Pessoas de cor, por 1965) esteja certo: “O arco do universo moral é
outro lado, continuam a sofrer economicamen- longo, mas ele se inclina em direção à justiça”.
te, vivenciam exclusão de registros eleitorais,
sofrem com negativas para votar em cabinas
Recebido para publicação em 27 de agosto de 2018
de votação, morrem nas ruas nas mãos da polí- Aceito em 13 de novembro de 2018
cia e do seu próprio povo, e se encontram pre-
sas nas amarras da pobreza e do desespero. A

28
Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

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Aldon Morris, Vilna Bashi Treitler

THE RACIAL STATE OF THE UNION: ÉTAT RACIAL DE L’UNION: comprendre la race et
understanding race andr acial inequality in the les inégalités raciales aux États-Unis d’Amérique
United States of America

Aldon Morris Aldon Morris


Vilna Bashi Treitler Vilna Bashi Treitler

This paper interrogates the role of race and racism Notre article évaluera le rôle de la race et du racisme
in the United States of America. The paper grapples en Amérique. Le document aborde conceptuellement
with race conceptually as it explores why racial la race en explorant pourquoi les catégories raciales
categories and racial inequality exist in the first et l’inégalité raciale existent en premier lieu. Le
place. We also examine the current state of race in document passe à l’examen de l’état actuel de la
North America by laying bare it social, economic race en Amérique en mettant à nu les manifestations
and political manifestations. After exploring sociales, économiques et politiques. Étant donné
the magnitude of racial inequality in the United l’ampleur de l’inégalité raciale aux États-Unis, le
States, we labor to unravel the mechanisms both document cherche à démêler les mécanismes à
structurally and culturally that perpetuates and la fois structurels et culturels qui perpétuent et
sustains racial disparities. Because racist actions maintiennent les disparités raciales. Parce que le
and beliefs have always been resisted by social mouvement raciste a toujours été combattu en
movements, collection action, and resistance at the Amérique par des mouvements sociaux, des actions
personal level, we assess the nature and outcomes de collecte et de résistance au niveau personnel,
of struggles to overthrow North American racism. le journal évaluera la nature et les résultats des
We conclude by assessing the current prospects for luttes pour renverser le racisme américain. Ainsi,
racial transformation and the possibilities for the l’article fournira une analyse de l’état actuel de la
emergence of racial equality. Thus, in this paper, dynamique raciale aux États-Unis ainsi que des
we provide an overarching analysis of the current forces déterminées à démanteler le racisme.
state of racial dynamics in the United States and the
forces determined to dismantle racism.
Mots-clés: Race. Racisme. Régimen racial. Movement
Key words: Race. Racism. Racial regimes. Black nègre. Inegalité.
movements. Inequality.

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 15-31, Jan./Abr. 2019


Aldon D. Morris – Doutor em Sociologia pela State University of New York, Stony Brook. Professor
do Departamento de Sociologia e diretor do African American Studies da Northwestern University.
Pesquisa raça, movimentos sociais; sociologia e política de W.E.B. Du Bois. Ganhou vários prêmios por
sua atuação acadêmica e ensino. Em 2017 teve um filme feito sobre sua vida e trabalho – “The Scholar
Affirmed”. Suas mais recentes publicações são: The Scholar Denied: W.E.B. Dubois and the Birth of
Modern Sociology. Seu livro, The Origins of the Civil Rights Movement: Black community organizing
for change, é uma das principais pesquisas sobere o Movimento dos Direitos Civis nos EUA. Tem várias
publicações sobre raça, teoria social, movimentos sociais.
Vilna Bashi Treitler – Doutora em Socilogia pela Universidade de Wisconsin-Madison. Professora
do Departamento de Sociologia da Universidade da California, Santa Barbara. Diretora do Centro de
Estudos Afro-Americanos da Universidade da California, SB. Desenvolve pesquisas sobre desigualdades
raciais, racismo, globalização e estratificação. Suas mais recentes publicações são: The Ethnic Project:
Transforming Racial Fiction into Ethnic Factions e Survival of the Knitted: Immigrant Social Networks in
a Stratified World. Organizou um dossiê para Current Sociology intitulado Dynamics of Inequality in a
Global Perspective, além de inúmeros artigos.

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