Você está na página 1de 97

ALAIN BADIOU

ÉLISABETH RO UDINESCO

JACQUES LACAN,
passado presente

Tradução
Jorge Bastos


DIFEL
Rio de Janeiro I 2012
Copyright © Editions du Seuil, 2012.
Titulo original: Jacques Lacan, passéprésent
Capa: Sérgio Campante
Foto de capa: Maurice ROUGEMONT/Gamma-Rapho via Getty Images
Editoração: FA Studio
Texto revisado segundo o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
2012
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Cip-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ
B126j Badiou, Alain, 1937-
Jacques Lacan, passado presente / Alain Badiou,
Élisabeth Roudinesco; tradução Jorge Bastos — Rio de
janeiro: DIFEL, 2012.
96p. : 21 cm
Tradução de: Jacques Lacan, passé présent
ISBN 978-85-7432-125-7
1. Lacan, Jacques, 1901-1981. 2. Lacan, Jacques,
1901-1981 — Influência. 3. Psicanálise. I. Roudinesco,
Élisabeth, 1944-. II. Título.
CDD: 150.195
12-5211 CDU: 159.964.2
Todos os direitos reservados pela:
DIFEL — selo editorial da
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
Rua Argentina, 171 — 29 andar — São Cristóvão
20921-380 — Rio de Janeiro — RJ
Tel.: (0XX21) 2585-2070 — Fax: (0XX21) 2585-2087
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por
quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
Atendimento e venda direta ao leitor:
mdireto@record.com.br ou (0XX21) 2585-2002
Sumário

Apresentação................................................... 7
1. Um mestre, dois encontros ................. 11
2. Pensar a desordem ................................49
Apresentação

Com origem numa antiga história, cujos primórdios


datam de quase quarenta anos, este livro se deve a uma
conjuntura: a comemoração, em setembro de 2011 , dos
trinta anos de morte de Jacques Lacan. Conhecemo-nos
há muito tempo e, mesmo seguindo tendências políticas
às vezes distintas, mantivemos, de longa data, um diálogo
fecundo, fundado no reconhecimento das diferenças e,
mais ainda, numa amizade que nunca passou por estre­
mecimentos. Tivemos em comum a paixão pelos trágicos
gregos, de que Freud tanto gostava, pela Revolução de
1789 e sua história, pela poesia como ato de resistência
da língua, pelo cinema e pelo engajamento político.
Em abril de 2006, um ano e meio depois da morte de
Jacques Derrida, nosso amigo em comum, estivemos na
École Normale Supérieure* na companhia de Yves Duroux

* Prestigioso curso de formação superior, sendo a Ecole de Paris,


na Rua d’Ulm, a mais famosa. (N.T.)

7
JACQ UES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

para um debate sobre alguns filósofos franceses, entre os


quais Althusser, Foucault, Sartre, Canguilhem, Deleuze.
Em março de 2010, na cidade de Rennes, num fórum
do jornal Libération apresentado por Éric Aeschimann,
nos confrontamos, outra vez, em torno dos “Lendemains
qui chantenf* Tendo Saint-Just em mente, dizíamos:
“A lei da felicidade não pode se limitar ao simples fato
de nos incluirmos no mercado dos objetos disponíveis.”
E também: “A catástrofe atual é o higienismo e a norma:
o contrário da felicidade.” Não gostamos do fanatismo
religioso, do cientificismo, do dinheiro em exagero nem
da avaliação desenfreada, que são sintomas do abandono
dos ideais da razão. Resumindo, temos em comum a con­
vicção de que o engajamento político deve seguir ao lado
do trabalho, do rigor e da erudição.
Era lógico, então, que um dia um diálogo nos reu­
nisse, e foi em torno de Jacques Lacan que isso se deu:
trinta anos depois. Desde sempre, afirmamos que Lacan,

* Literalmente, “Os amanhãs que cantam”. A expressão, tirada da


autobiografia de Gabriel Péri, deputado comunista fuzilado em
1941, se tornou de uso comum. Foram as últimas palavras que
escreveu, na véspera da execução: “...o comunismo é a juventude
do mundo e prepara amanhãs que cantam.” (N.T.)

8
APRESENTAÇÃO

renovador do pensamento freudiano, foi um mestre, no


sentido socrático* do termo, capaz de atualizar uma po­
lítica do sujeito, do desejo e do inconsciente. E acredi­
tamos que a dupla abordagem aqui proposta, histórica
e filosófica — por mais fugaz que seja — , deva permitir
ao leitor interrogar mais uma vez a questão crucial das
relações entre revolução política e revolução subjetiva.
De forma que transformamos essa convicção em diálogo
de duas vozes, em dois tempos e dois momentos: Jacques
Lacan, passado presente.
A primeira parte, “Um mestre, dois encontros”, desen­
volve uma sequência de reflexões pessoais sobre a relação
que cada um de nós teve com Lacan, nos anos 1960-1970.
A segunda, “Pensar a desordem”, é uma crítica, evocando
os aspectos mais pertinentes da contribuição lacaniana,
de todos os sectarismos contemporâneos — ideal comu-
nitarista, obscurantismo, paixão pela ignorância — que
contribuíram, tanto no campo da psicanálise quanto no
da política, para um rebaixamento do pensamento.

* A partir dos diálogos de Platão, percebe-se que Sócrates era um


mestre que se recusava a ter discípulos e que estimulava a autor-
reflexáo. (N.T.)

9
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

Queremos crer, aqui e agora, que, para além da an­


gústia mortífera, sob a qual se obstina a se autoproclamar
nossa sociedade em crise, uma representação do futuro
torna possível nova esperança. Freud, afinal de contas,
elaborou certa concepção trágica do sentido íntimo, bem
distante do cada-um-por-si que caracteriza nossa época.
Por que não pensar a possibilidade daquela invenção
voltar a ser, assim como a revolução, uma ideia nova no
mundo?
A.B. e É.R.

10
1

Um mestre, dois encontros1

Para começar, poderiam se


P h il o s o p h ie M a g a z in e :

situar com relação a Lacan? Contar em quais condições des­


cobriram seu pensamento?

Minha aventura com a psi­


É l is a b e t h R o u d in e s c o :

canálise começou em casa. Minha mãe, Jenny Aubry, era


médica em hospitais e lidava com crianças abandonadas.
Era também psicanalista e foi uma das primeiras a trazer
para a França os princípios clínicos de John Bowlby e de
Anna Freud, a quem conheceu em Londres. Desde 1953
ela se tornou não uma discípula propriamente falando,
mas colega de Lacan, estando com ele no momento da
fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP).

1Parte desse diálogo foi publicada em Philosophie Magazine, n° 52,


de setembro de 2011, com o título “Choisis ton Lacan!” [Escolha
o seu Lacan!]. Foi em seguida totalmente revisto, corrigido e au­
mentado pelos autores, a partir da transcrição de Martin Duru.

11
JACQ UES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

Lacan vinha então com frequência à casa da minha mãe


e do meu padrasto (Pierre Aubry), logo depois do divór­
cio dos meus pais. Ela era muito amiga de Sylvia Bataille,
com quem Lacan acabara de se casar.
Naquela época, eu ia à Prévôté, a casa de campo de
Lacan em Guitrancourt, mas estava longe de imaginar
que aquele homem tão familiar fosse um pensador de
tamanha envergadura. Mais tarde, na adolescência, em
nada me senti atraída pela psicanálise. Não queria me di­
rigir a algo que interessasse tanto à minha mãe. Sonhava
antes em escrever romances ou fazer cinema. Cursei então
Letras, depois Linguística, e adorava a Cahiers du cinéma,
a Nouvelle Vague e o cinema hollywoodiano.
Em 1966, fui dar aula em Boumerdès, na Argélia. No
mesmo ano, foram publicados As palavras e as coisas, de
Michel Foucault, e Escritos, de Lacan. Que momento in­
crível! A onda estruturalista, começada por Claude Lévi-
Strauss e prolongada por Louis Althusser em A favor
de Marx, em 1965, foi uma verdadeira revelação para
mim. O curso de Filosofia que segui no colegial tinha
sido desastroso e eu finalmente descobria filósofos e pen­
sadores que escreviam de maneira formidável: pensadores
da língua. Mergulhei maravilhada em Escritos, facilitada
pelo fato de conhecer bem a linguística estrutural (com

12
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S

origem em Ferdinand de Saussure e desenvolvida por


Roman Jakobson) em que Lacan se baseava. Uma cena
incrível: eu dizendo a minha mãe o quanto achava genial
o Lacan “dela”. E ela respondendo: “Há muito tempo lhe
digo isso!” Começamos então, as duas, a ter discussões,
às vezes animadas, sobre a teoria do significante, a qual
entendíamos de maneira diferente.
Depois de Maio de 68, abandonei o projeto de es­
crever romances e me orientei para as ciências humanas
e a filosofia, terminando meu mestrado em Letras sob a
orientação de Tzvetan Todorov, na Universidade de Paris
VIII — Vincennes (atual Saint-Denis), onde depois de­
fendi um doutorado de terceiro ciclo.* Segui o seminário
O anti-Edipo de Gilíes Deleuze e, em seguida, me incli­
nei para História, ao ter contato com Michel de Certeau,
que dava aula no Departamento de Psicanálise, fundado
em 1969 por Serge Leclaire. Em 1972, encontrei Louis
Althusser. Já Lacan, comecei a assistir a seu seminário
em 1969 na Faculdade de Direito do Panthéon. Quando
minha mãe falou com ele sobre meu interesse por seu
ensino, fui imediatamente convocada. Na conversa que

* Primeiro e mais simples doutoramento no sistema universitário


francês, extinto em 1985. (N.T.)

13
JACQ UES LACAN, PASSADO PRESENTE

tivemos, ele reclamou: “Mas que história é essa? Por que


demorou tanto a vir me ver?” E contei também o que fa­
zia: começava a trabalhar com a obra de Georges Politzer
na revista Action Poétique, dirigida por Henri Deluy, e ele
insistiu para que eu me inscrevesse na Escola Freudiana
de Paris (EFP), que ele havia fundado em 1964, sem que
eu nem sequer estivesse decidida a fazer análise. Aceitei e,
por assim dizer, isso traçou o meu destino. Permaneci na
EFP até a sua dissolução, em 1980, pelo próprio Lacan,
um ano antes de morrer.

Minha trajetória é diferente. Fui um


A l a in B a d io u :

jovem sartriano convicto. Entre 1958 e 1962, como es­


tudante de Filosofia da Ecole Normale Supéríeure (ENS)
da Rua d’Ulm, encontrei meu segundo mestre, depois do
Sartre da minha adolescência, Louis Althusser. Foi como
um choque entre opostos! Althusser propunha que se re­
lesse Marx sem os brilhos humanistas, no momento em
que Sartre propunha uma visão existencial. Inteiramente
por acaso, caiu-me nas mãos o primeiro número da revista
La Psychanalyse, que continha o famoso relatório de Roma
de Lacan (a conferência intitulada “Função e campo da
fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953). Esse texto
literalmente me deslumbrou — passei por verdadeiro

14
UM ME STRE , D OIS E N C O N T R O S

fascínio textual, de forma que minha relação teórica com


Lacan sempre foi mediada pelo escrito. Depois da desco­
berta inicial, continuei a seguir La Psychanalyse e come­
cei a fazer referências a Lacan em minhas dissertações.
Intrigado com isso, Althusser me levou a uma sessão
do seminário no Hospital Sainte-Anne. Estávamos em
1960-1961, de forma que fui o primeiro aluno da Ecole
Normale a apresentar, a pedido de Althusser, dois traba­
lhos orais sobre o pensamento lacaniano.

É.R.: E Freud, você lia?

A.B.: Lia, sim! Comecei a leitura sistemática de Freud


logo no primeiro ano na ENS. Considerávamos Freud um
marco para as ciências humanas, ciências humanas estas
que substituiriam, como muitos acreditavam, o idealismo
filosófico pelo materialismo “sério”. Contudo, além da
evidente continuidade, rapidamente me dei conta da
profunda diferença entre a obra de Freud e a de Lacan,
que era absolutamente inovadora.

É.R.: Tão inovadora que a leitura de Lacan marcou


profundamente a de Freud para numerosos intelectuais,
entre os quais me incluo. Li a obra de Lacan antes de ler

15
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

a de Freud e, com isso, a minha leitura foi “lacaniana”.


Mesmo assim, não devemos unir as obras de Freud e de
Lacan ao ponto de achar que Freud já era lacaniano.

A.B.: Seja como for, Lacan imediatamente se impôs


para mim como figura maior do cenário intelectual,
mesmo tendo publicado apenas uns poucos artigos, nem
sempre fáceis de achar.

É.R.: Era o grande drama de Lacan até 1966, quando


se reuniram os textos em Escritos. Até então, não havia
um livro disponível. Tudo estava espalhado.

A.B.: Em 1966, justamente, eu ensinava filosofia num


liceu da cidade de Reims. Entrei em contato, por intermé­
dio de François Regnault, também professor de lá, com
a redação de Cahiers Pour l ’Analyse, a revista lacano-mar-
xista lançada por um grupo de normaliens um pouco mais
jovens do que eu. Encontravam-se ali, além de François
Regnault, Jacques-Alain Miller, Jean-Claude Milner, Yves
Duroux, Alain Grosrichard... Os dois primeiros artigos
que publiquei na revista, muito articulados em torno da
lógica matemática — minha grande paixão àquela época
e ainda hoje — , se referiam explicitamente a Lacan, mas

16
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S

com um tom crítico, uma reserva distante. Por exem­


plo, contestava a ideia de existir um sujeito da ciência.
Mantinha-me althusseriano nesse ponto: para mim, a
ciência tinha mais a ver com um processo assubjetivo.
Lembre que estávamos em 1966, 1967... Veio depois a
tempestade que se seguiu a Maio de 68 e que revirou
minha vida e me precipitou por muitos anos no pensa­
mento e na ação políticos.

É.R.: Para você, no fundo, a leitura de Lacan foi con­


temporânea de um corte político, enquanto para mim foi
sobretudo uma cesura estruturalista.

A.B.: Acabei encontrando Lacan pessoalmente. Foi


em 1969. Acho que tudo era urgente para ele, que queria
então me ver com toda a urgência. Como era difícil me
localizar durante o dia, pois estava sempre correndo por
fábricas e locais operários, ele nunca conseguia me achar
por telefone. Conseguimos, mesmo assim, marcar um al­
moço. Sempre sedutor, tentou me cooptar, com os mes­
mos encantos a que você se referiu, Élisabeth: “Por que
não me procurou antes?” etc. Mas não me juntei à EFP
e não me tornei analista nem, aliás, analisando. Fiquei
longe do divã. De ponta a ponta, Lacan foi para mim

17
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

um pensador de primeiríssimo plano, mas não um mestre


psicanalista. Ainda o primado do escrito! Nesse sentido,
ocupa um lugar considerável no meu trabalho filosófico,
e isso desde a minha primeira obra sintética, Théorie du
Sujet (1982). Ele esteve, e continua o tempo todo, pre­
sente em meu horizonte intelectual.

P.M.: Como apresentaria o que ele trouxe à filosofia em


geral e ao seu próprio pensamento, em particular?

A.B.: A obra teórica de Lacan penetrou em meu mo­


vimento filosófico por definir uma posição totalmente
singular quanto à questão do sujeito. No início dos anos
1960, estávamos, eu e outros jovens filósofos, em uma
conjuntura particular. Como disse, eu mesmo era um sar-
triano convicto. Com a ajuda de Althusser, porém, veio
a hora de romper com a fenomenologia, da qual Sartre
era um dos representantes ilustres. Por que essa ruptura
inevitável? Desde sua invenção por Husserl, a fenomeno­
logia remete o pensamento do sujeito a uma filosofia da
consciência. Enraíza-se na experiência vivida, imediata e
primitiva. O sujeito se confunde com a consciência e a
compreensão transparente do que acontece com a pes­
soa. Não por acaso os fenomenologistas (pensemos em

18
UM MEST RE , D OIS E N C O N T R O S

Merleau-Ponty) deram tamanha importância à percep­


ção: ela é a experiência mais elementar dessa relação direta
e intencional da consciência com o mundo. Além disso
— e nisso a fenomenología francesa é também herdeira
da psicologia tradicional — , o sujeito é apreendido como
interioridade, pelo ângulo dos seus sentimentos, das suas
emoções etc. Resulta daí uma forte centralização no ego
reflexivo e na esfera da intimidade.
Para libertar um pensamento da emancipação revo­
lucionária, apoiada na ciência (que vinha a ser o nosso
“programa comum” na época), era preciso sair desse
modelo fenomenológico — reflexivo e existencial — do
sujeito. Para isso, podíamos nos apoiar nas ciências hu^
manas, na objetividade científica e no formalismo lógi­
co-matemático. Resumindo, contra a fenomenología,
o estruturalismo representava uma tábua de salvação.
Os pensamentos díspares que se juntaram sob esse rótulo
têm, pelo menos, um ponto em comum: orquestraram
uma revolta contra a concepção tradicional de sujeito.
A constelação estruturalista teve seu acabamento num
“anti-humanismo teórico”, segundo a marcante expres­
são de Althusser, ou na “morte do Homem”, para citar
Foucault. Nesse movimento de conjunto, variantes e in­
flexões são possíveis. Alguns proclamaram que o sujeito
é uma ilusão, um efeito no espelho de estruturas mais

19
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

essenciais, invisíveis e, mesmo assim, pensáveis pela ciên­


cia. Outros procuraram demonstrar, às vezes seguindo
Heidegger, que o sujeito metafísico clássico náo passa de
uma categoria idealista antiga. Diz-se, nesse caso, que o
que há de real na noção de “sujeito” é apenas uma forma
particular de objeto. Já os discípulos de Althusser sus­
tentaram que o sujeito é uma noção emblemática, sendo
inclusive a categoria típica da era burguesa. Finalmente,
qualquer que fosse a abordagem escolhida, todos os ca­
minhos estruturalistas levavam a uma crítica radical do
conceito de sujeito.
Nesse contexto, onde situar Lacan? De um lado, ele
participava da ruptura com a fenomenología, à vontade
pelo fato de conhecer bem o pensamento de Sartre e de
Merleau-Ponty. Inseriu-se na galáxia estruturalista não
apenas por recorrer, mais até do que muitos, aos forma­
lismos lógico-matemáticos, mas também por renegar o
sujeito reflexivo como centro de toda experiência. Em sua
perspectiva analítica, o sujeito depende de uma estrutura
irreflexiva e, de certa maneira, transindividual: o incons­
ciente que, para Lacan, depende inteiramente da lingua­
gem. A ciência do inconsciente toma o lugar, então, da
filosofia da consciência.
Dito isso, Lacan — é a segunda vertente de sua posi­
ção singular — não vai tão longe quanto os estruturalistas

20
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S

“duros”, como Foucault, ou quanto os heideggerianos a


la Derrida, que consideram que a categoria de sujeito não
passa de um avatar da falecida metafísica. Lacan preferiu
conservar essa categoria, mesmo tendo que renová-la pro­
fundamente. Isso porque, para ele, o sujeito se mantém
no centro da experiência clínica, de forma que Lacan sal­
vou o sujeito, em plena ofensiva estruturalista. O “seu”
sujeito certamente estava sujeitado à cadeia significante,
dividido, desconhecido de si mesmo, clivado, exposto a
uma alteridade radical (que Lacan chamou “o discurso do
Outro”). Mas continuava sendo coerente, e até mesmo
necessário, propor uma teoria do Sujeito. Nos anos 1960-
1970, então, Lacan foi quem me permitiu acompanhar o
anti-humanismo teórico, mantendo fidelidade à minha
juventude sartriana e à noção de sujeito. Por esse motivo,
ele me pareceu, logo de início, um contemporâneo deci­
sivo. Um contemporâneo que sabia incorporar os mate­
riais mais díspares para fabricar sua própria construção.

P.M.: E como você, Elisabeth Roudinesco, viu essa revo­


lução lacaniana no que se refere tanto à psicanálise quanto
à filosofia?

21
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

É.R.: Para começar, Lacan se situou no cruzamento


de um encontro inesperado, e muitas vezes conflituoso,
entre as duas disciplinas. Por um lado, foi quem fez os
filósofos compreenderem que a psicanálise trazia uma re­
volução filosófica. Por outro, porém, foi quem levou os
psicanalistas a se voltarem para a filosofia. Esse segundo
movimento da balança me parece capital: Lacan se ali­
mentou de filosofia e fez muitos filósofos irem a seu se­
minário para empurrar para cima os psicanalistas, que ele
considerava carentes de bagagem intelectual.
Por intermédio dele, os psicanalistas redescobriram a
filosofia, e os intelectuais, a psicanálise, numa época em
que essa disciplina estava encurralada entre a psicologia e
a medicina. E, pelo estruturalismo, literatos, como eu, por
exemplo, puderam redescobrir a importância da filosofia,
graças a uma geração de filósofos que, ao mesmo tempo,
eram estilistas da língua e se interessavam por literatura.
Não era o que eu havia encontrado no fim do colegial.
No que me concerne, apenas mergulhei realmente em
Spinoza e Hegel depois de ter lido Althusser e Foucault, e
tendo assistido ao seminário de Lacan. Cheguei à filosofia
pelas fendas abertas pelos estruturalistas e, em seguida,
graças às aulas de Pierre Macherey: devo muito a ele.
Na verdade, um fosso já se abrira antes de 1966 — ano

22
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S

miraculoso para o escruturalismo — entre os psicanalistas


que seguiam Lacan — e se alimentavam de filosofia — e
os que se mantinham afastados e preferiam levar a psica­
nálise para o campo da psicologia.
Acho que a singularidade de Lacan está ligada ao iti­
nerário percorrido por ele. Não se deve esquecer que seu
ponto de partida foi a psiquiatria. E a psiquiatria sempre
foi mais receptiva à filosofia do que à psicologia; a psi­
cologia sempre quis se afastar da filosofia para se tornar
“científica”, o que nunca vai conseguir. Como Georges
Canguilhem, Lacan sempre criticava a psicologia como
falsa ciência, querendo levar a psicanálise para as discipli­
nas “nobres”.
Mais precisamente, no momento em que Lacan evoluiu
em direção à psicanálise, a partir de 1931, a psiquiatria
francesa mais dinâmica tinha uma orientação fenomeno-
lógica. O próprio Lacan foi fenomenólogo àquela época,
antes de empreender sua iniciação no pensamento hege-
liano, por meio de Alexandre Kojève. Após a Segunda
Guerra Mundial, ele se afastou dessa herança, preferindo
o estruturalismo, e se voltou para Saussure, por intermé­
dio de jakobson e Claude Lévi-Strauss, lendo suas obras,
ao contrário do que afirmam hoje alguns psicanalistas la-
canianos que “revisam” a história negando essa influência

23
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

e querendo fazer de Lacan uma esfinge autoproclamada,


com inspiração apenas em si mesmo. Temos, nesse sen­
tido, muitos “revisionistas” no meio psicanalítico.
Com certeza, Lacan se sentiu fascinado pelo pensa­
mento de Heidegger, mas deixou-o de lado a partir de
1957, como se pode constatar em “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud”. Mas nem por isso,
aliás, deixou de querer ser reconhecido pela pessoa de
Heidegger. Claramente, porém, tomou partido da ciên­
cia, da objetividade formal, ali mesmo onde Heidegger,
com uma orientação fenomenológica e ontológica, enun­
ciara que “a ciência não pensa”.
Esse ponto de partida de Lacan, na psiquiatria, é fun­
damental e confirma o que disse Alain sobre ele ter man­
tido o pensamento da problemática filosófica do sujeito.
A psiquiatria não se ocupa apenas do mal-estar psíquico,
abordando também a loucura como um despedaçamento
do sujeito. Essa ideia de excentricidade, de quebra da per­
sonalidade, apareceu bem cedo em Lacan, que, aliás, se
inspirou nos surrealistas e, sobretudo, em Salvador Dali.
Em 1932, ele escolheu como tema de sua tese de medi­
cina uma louca — Marguerite Anzieu (rebatizada “o caso
Aimée”) — , antes de se interessar pela história das irmãs
Papin, duas exemplares empregadas que assassinaram suas

24
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S

respectivas patroas, na cidade de Le Mans, sem motivo


aparente algum. Lacan tinha o dom de mostrar que a pa­
ranoia — e mais ainda, sem dúvida, a paranoia feminina
— era uma loucura lógica que simulava a normalidade,
sem nenhuma causa orgânica ou constitucional. Teria a
ver com a psicogênese. Foi nessa perspectiva que se inte­
ressou por mulheres místicas, em busca de gozo absoluto,
para além das fronteiras da razão.
É uma diferença crucial dele para Freud: enquanto o
fundador da psicanálise tratou essencialmente das neuro­
ses — mesmo que hoje se saiba que os pacientes de que
se ocupou sofressem de patologias bem pesadas — , Lacan
mergulhou no universo atormentado da psicose, da lou­
cura feminina, da paranoia como sistema de pensamento
lógico e até formal. Já seria o bastante, se posso assim
dizer, para mostrar o alcance filosófico de sua iniciativa.
Não devemos esquecer que Freud desconfiava da filosofia,
assimilando-a muitas vezes ao discurso paranoico, isto é,
a uma lógica da loucura...

A.B.: Concordo plenamente. Para dizer isso de ma­


neira mais brutal, as neuroses se remetem, em última
instância, à psicologia clínica. Todo mundo passa por
pequenas histórias de fracassos amorosos, de obsessões

25
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

incômodas, de impotência latente, histórias terrivelmente


idênticas e cansativas. Sempre achei incrível que os psica­
nalistas consigam passar o dia, mesmo que cochilem um
pouco, ouvindo essas confissões sintomáticas. Vejo nisso
certa forma de heroísmo, até. A neurose é um tédio! Já a
loucura perturba a filosofia desde as suas origens: o que
vem a ser essa forma violenta de engolfamento do sujeito?
Como conceber esse surgimento em si de uma alteridade
radical? E evidente que a psicose é muito mais interes­
sante para o filósofo.

É.R.: Confesso certa reticência: Lacan se interessava


muito pela paranoia, mas, para mim, a grande “loucura
filosófica” — loucura de duas faces (exaltação e depres­
são) — , a que me parece mais fascinante, mais literária,
mais criativa continua sendo a melancolia. Por isso me
aprofundei na figura de Théroigne de Méricourt, mulher
melancólica, pioneira do feminismo e que perfeitamente
encarna a exaltação revolucionária de 1789. Foi a queda
do ideal revolucionário que a precipitou na loucura, em
1793. Terminou sua vida no Hospício de la Salpêtrière,
observada por Esquirol. Como não pensar no destino de
Althusser? Sempre me impressionou a falta de interesse

26
UM MEST RE , D OIS E N C O N T R O S

de Lacan por essa forma de loucura que, no entanto, cau­


sou tanta curiosidade, desde Homero e Aristóteles.

A.B.: Lacan privilegiou a paranóia por ser bem mais


sistemática. Isso chama a atenção já em Freud: O caso
Schreber é um texto impressionante, de lógica implacá­
vel. É como se o caso se reconstruísse por inteiro numa
matriz de autossuficiência. A paranóia convém perfeita­
mente bem à análise estrutural, motivo pelo qual Lacan
se interessou tanto por ela.

P.M.: Elisabeth Roudinesco apontou uma primeira di­


vergência entre Freud e Lacan, pela importância que cada
um deu à neurose e à psicose. Mas acredita existir o mesmo
hiato na concepção e na condução do tratamento? As diferen­
ças entre uma análise freudiana e uma análise lacaniana —
e sabemos que a prática das sessões curtas causou escândalo
e, em parte, motivou a exclusão de Lacan da Associação
Psicanalítica Internacional (LPA) — eram imediatamente
visíveis?

E.R.: Com certeza. A diferença saltava aos olhos nos


anos 1960, sobretudo em Paris. Os psicanalistas freudianos
ortodoxos eram adeptos de uma espécie de materialismo

27
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

vulgar. Interessavam-se por lembranças, por emoções,


pelo ego, por perturbações narcisísticas, por comporta­
mentos normais ou anormais, e consideravam tudo que
ultrapassasse o âmbito estrito da clínica como especula­
tivo e, por isso, perigoso: não estávamos longe da psico­
logia do comportamento. Pela teoria e pela prática, Lacan
permitiu que se escapasse disso, pois punha em destaque
a linguagem, com o foco no que se diz, e a necessidade do
corte no centro do processo analítico. Não era limitado,
respeitava as vocações dos pacientes e não ficava obce­
cado por um ideal de cura ou de normalização.
Naquela época, os psicanalistas freudianos ortodoxos
pressionavam os alunos de Lacan para que escolhessem em
qual campo estavam e faziam da psicanálise uma religião
interpretativa. Lacan, ao contrário, demonstrava abertura
de espírito: se um padre, por exemplo, o procurasse em
análise — e isso várias vezes aconteceu — , ele aconse­
lhava que permanecesse padre, se fosse este o seu desejo
de verdade. Foi por Lacan compreender a essência da es­
piritualidade — como, aliás, a da filosofia — que alguns
jesuítas, principalmente, se sentiram atraídos, apesar de
seu ateísmo e de sua plena ligação com o rigor do discurso
da ciência. O paradigma biologizante da teoria freudiana,
revisto pela ótica de um positivismo rasteiro, incomodava

28
UM MEST RE, D O IS E N C O N T R O S

consideravelmente os religiosos que porventura procuras­


sem seguir um tratamento.

A.B.: Isso porque, com frequência, o positivismo é uma


religião invertida, de forma que, em vez de servir à ciência,
à qual se diz vinculado, ele a sujeita por finalidades ideo­
lógicas estranhas ao devir específico da ciência. Donde,
um religioso ter mais motivos para temer o positivismo
do que para temer a ciência propriamente. Nada impede
que se ache, por exemplo, que Deus admire a ciência e
não goste da ideologia positivista...

É.R.: É verdade! E era também incômoda para eles a


assimilação freudiana da religião à neurose. De fato, os
psicanalistas freudianos franceses eram, em sua maioria,
anticlericais, positivistas pouco abertos ao engajamento
intelectual ou espiritual e pouco orientados para o dis­
curso filosófico. Donde a conversão — apesar de não
gostar muito dessa palavra com conotação tão forte —
de muitos jesuítas ao pensamento de Lacan. Dito isso,
Lacan, já no final da vida, deu preferência a uma con­
cepção dogmática do tratamento ultracurto, fonte de
frustração e até de “trapaças”. De tanto criticar o recurso
à emoção, os lacanianos fundamentalistas, obnubilados

29
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

pelo formalismo dos nós e dos maternas, correm o risco de


perder de vista o sofrimento dos pacientes. Quanto mais
inovadora uma teoria — e a de Lacan foi muito! — ,
mais ela corre o risco de cair, a qualquer momento, no
dogma. E o lacanismo náo é uma exceção à regra.

P.M.: Para você, Alain Badiou, o tratamento, no sentido


lacaniano, apresenta um interesse propriamente filosófico?
Sente-se que, potencialmente, ele põe em função a renovação
do sujeito, a que você se referia...

A.B.: O tratamento é um ato que, ao mesmo tempo,


pressupõe e atravessa uma forma. A forma, no caso, são
as estruturas objetivas do inconsciente. E o tratamento,
mesmo se remetendo a elas, também as retalha e frag­
menta. Para Lacan, que nesse ponto é moderado, a análise
não tem como meta a “cura”, mas deve conduzir a esse
ponto real em que o sujeito pode se refazer e voltar a viver.
Ela pode mudar a direção do que se apresentava como um
destino e reabrir as capacidades do sujeito. Sempre achei
magnífica a definição proposta pelo próprio Lacan: o tra­
tamento tem como finalidade “elevar a impotência ao
impossível”. O impossível é o real, no sentido lacaniano;
isto é, o que jamais se deixa simbolizar. O que se espera

30
UM MESTRE, D OIS E N C O N T R O S

da análise, então, é o desbloqueio de uma situação inicial


de impotência da qual o analisando sofre (estou afastado
do meu desejo, tomado pela dureza, pela estagnação da
existência), devendo ela conduzir a um ponto real em que
o sujeito, até então, preso no imaginário, recupere parte
de sua capacidade de simbolização.
No plano filosófico, esse dispositivo é absolutamente
notável. O ato (o que se desenvolve no tratamento) per­
manece inteligível, do ponto de vista da forma (as estru­
turas do inconsciente), ao mesmo tempo que as atravessa.
Algo acontece na análise (o face a face do Sujeito com
um ponto real), mas, para teorizar esse acontecimento,
é preciso vinculá-lo a seu contexto formal. Lacan, sobre­
tudo em seus últimos anos, é para mim um herói filosó­
fico, pois evitou dois obstáculos. De um lado, escapou do
determinismo rasteiro, dizendo que um corte surpreen­
dente pode acontecer no tratamento. Por outro lado,
manteve-se firmemente distante das doutrinas espirituais
ou religiosas, na medida em que esse corte nada tem de
miraculoso — ele se relaciona diretamente com as formas
racionais do inconsciente.

É.R.: Lacan vira as costas tanto ao cientificismo quanto


ao obscurantismo.

31
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

A.B.: Exatamente. São dois obstáculos hoje mais ameaça­


dores do que nunca! Constituem nossa conjuntura! Não
é de agora, aliás, que uma secreta aliança se faz entre esses
supostos adversários que são o cientificismo limitado e
o obscurantismo supersticioso. E é por isso que precisa­
mos tanto de Lacan. Em todo caso, sinto-rne integral­
mente lacaniano nesse ponto. Para pensar o que é uma
verdade, preciso encontrar o ponto em que a forma do
que é e o que provoca ruptura com essa forma são con­
comitantes. Meu trabalho é uma busca do formalismo
adequado para pensar a possibilidade de um corte efe­
tivo no contexto das formas. Nem determinismo (o atual
comportamentalismo é um avatar disso na clínica) nem
abertura neorreligiosa (dentro da qual se inscreve atual­
mente certa fenomenología), apenas materialismo radical
que reconhece o imprevisível real — o que chamo acon­
tecimento. Com esse intuito, sigo à minha maneira os
passos de Lacan.

P.M.: Apesar, no entanto, de ter se interessado filosofica­


mente•, você, Alain Badiou, pessoalmente nunca seguiu trata­
mento.

A.B.: Não. Essa experiência, para mim, se manteve to­


talmente estranha, mesmo que muito praticada à minha

32
UM ME STRE , D O IS E N C O N T R O S

volta. Minha emancipação pessoal, para usar uma expres­


são pomposa, passou pelo ativismo político, pelo encon­
tro amoroso, pela escrita teatral e romanesca, pelo gosto
pelos formalismos matemáticos, tudo isso reunido, afinal,
na filosofia. Não julguei necessário acrescentar a essas ex­
periências uma análise. Acho que, como o próprio Lacan,
sempre considerei que só cabe se engajar num tratamento
analítico quando nos sentimos afetados por sintomas que
introduzem em nossa vida impotência e sofrimento ex­
cessivos. Sendo suportável o sofrimento, por assim dizer,
normal, o único motivo para buscar uma análise seria
o de me tornar psicanalista. Por minha parte, engajado
numa lógica política coerente, ativando simbolizações fi­
losóficas multifacetadas e, principalmente, sendo feliz na
existência, considerei poder perfeitamente não assumir
um tratamento.

É.R.: Por minha parte, hesitei antes de entrar no pro­


cesso de formação psicanalítica. Não tinha certeza de
ter vontade plena de me tornar psicanalista em tempo
integral. Além disso, me sentia bem, não apresentava
sintoma algum! Mas, sendo filha de analista, a passagem
era quase obrigatória. Acabei fazendo análise com Octave
Mannoni e, depois, supervisão com Jean Clavreul. Um

33
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

tratamento freudiano bastante tradicional — com sessões


de 45 minutos — e uma supervisão também tradicional.
No fundo, o que eu gostava naqueles lacanianos era que
tinham permanecido bastante freudianos, mas integrando
na prática e na clínica a inovação lacaniana, como minha
mãe, aliás. De forma alguma iria para o lado da psicotiza-
ção da neurose, defendida por epígonos de Lacan. Muitos
fizeram como eu, e devo dizer que foi uma experiência
formidável. Hoje, infelizmente, a psicanálise muitas vezes
deixa de ser uma aventura intelectual, uma viagem, uma
busca, uma iniciação. Nesse sentido, acabo me juntando
a Alain, mas por outras vias: todo tratamento dito “tera­
pêutico” se parece com a formação dita “didática”.
Hoje em dia, as pessoas fazem análise somente quando
“precisam”. Mas o tratamento é uma apaixonante tra­
vessia de si mesmo, e não um serviço utilitário, visando
“eficácia”, mesmo, havendo a noção de tratamento bem-
sucedido. Quando bem-conduzido, por um clínico inte­
ligente, traz um acréscimo de lucidez, se o comparamos a
outros engajamentos, sobretudo políticos.

P.M.: Falemos de política, justamente. Acham que o pen­


samento de Lacan tem um alcance político? O problema se

34
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S

apresenta ainda mais, pois elepróprio proibiu toda forma de


aproveitamento ideológico ou partidário de seu ensino.

A.B.: A meu ver, a psicanálise lacaniana se inseriu num


contexto político significativo. Encontra-se aí o sentido
profundo do tratamento, que visa, como disse, a uma
abertura do sujeito com relação a um estado original de
impotência. E esse processo pode adquirir uma dimensão
coletiva. Para mim, o campo da política corresponde à
liberação de possibilidades de vida que uma determinada
situação bloqueia, torna impossível. A opressão se define
sempre pela esterilização das capacidades individuais e
coletivas. Desse ponto de vista, o tratamento lacaniano,
apesar de totalmente apolítico em seu próprio exercício,
propõe ao pensamento uma espécie de matriz política.
Vejo uma continuidade entre o pensamento de Lacan e a
atitude de tipo revolucionário, que reabre uma disponibi­
lidade coletiva mergulhada na repetição ou barrada pela
repressão estatal.

P.M.: Lacan inclusive chegou a se apresentar como “o


Lênin da psicanálise"...
A.B.: Exatamente, e concordo com a expressão. Lacan
se comparava a Lênin, comparando Freud a Marx. Com

35
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE

essas aproximações um tanto metafóricas, ele quis subli­


nhar que Freud se situava ainda dentro de uma lógica
médica de cura, e Marx numa postura de promessa.
Lênin deixa de prometer o comunismo: ele decide, age,
organiza. E Lacan, por sua vez, deixa de buscar a cura,
como fazia Freud. E feroz adversário de uma visão adap-
tativa da psicanálise, que se contentaria em domesticar o
animal humano para melhor conformá-lo ao meio social,
transformando-o num animal submetido aos valores do­
minantes, sem ter mais que passar por sofrimentos psí­
quicos ocasionados por qualquer não conformidade ou
originalidade excessiva. A ambição da psicanálise, para
Lacan, é bem mais radical. A psicanálise é um vetor de
emancipação, mesmo que se apresente sob formas expli­
citamente apolíticas. Lacan, com sua visão de tratamento,
foi para nós, jovens, mesmo que ele próprio não visse as
coisas dessa maneira, um dos operadores da mobilização
geral, entre 1968 e os anos 1980. Essa era já a minha aná­
lise, à época de Maio de 68: achei ser um acontecimento
que, assim como o confronto com o real no tratamento,
permitia que voltasse a se abrir uma liberdade nova —
nesse caso, uma esquerda radical — , agindo no sentido
das emancipações locais contra a máquina capitalista de-
sigualitária. Lacan, como se sabe, era claramente menos
entusiasta...

36
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S

É o mínimo que se pode dizer! Para ele, Maio


É .R .:

de 68 foi um movimento de encobrimento, exprimindo


não uma vontade de libertação generalizada, e, sim, pelo
contrário, o desejo inconsciente, por parte dos revoltosos,
de servidão ainda mais feroz.

A .B .:“É ao que aspiram como revolucionários,


um amo.” Quando ele pronunciou, na Faculdade de
Vincennes, essa famosa frase, foi duro engolir a pílula.
E verdade que Hegel também não teria gostado nada do
revolucionarismo proletário do discípulo Marx! Aliás,
quando Lacan morreu, escrevi que era o nosso Hegel.
O fato de um mestre achar que os discípulos estão desen­
caminhando seu pensamento numa direção errada com­
prova estar vivo esse pensamento.

É.R.: No fundo, Lacan estimava que a verdadeira re­


volução, a única que valeria a pena, era a psicanálise freu­
diana! Segundo ele, a agitação esquerdista só poderia levar
à restauração do despotismo. Para além de Maio de 68, a
questão da relação de Lacan com a política implica em al­
gumas referências factuais. Ele vinha de uma família cató­
lica de direita: a França antiga, chauvinista e intolerante,
no que isso tem de mais detestável. Preparou-se, então,

37
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

contra essa genealogia, e sua tendência natural o levou à


centro-esquerda, encarnada na época por personalidades
políticas como Pierre Mendès France e representado na
mídia pela revista semanal L’Express. E isso lhe valeu o
persistente ódio dos meios direitistas. Publicamente, po­
rém, Lacan permaneceu a vida toda uma esfinge. Nunca
se engajou como Sartre. Assinou uma única petição em
toda a sua existência. Mantendo-se voluntariamente afas­
tado das lutas mais ardentes de seu tempo, não participou
da Resistência, à época da Segunda Guerra, e nem se sabe
ao certo, apesar da aversão visceral que tinha pelo racismo,
se foi um anticolonialista ativo. Mas acompanhou o pro-
V J
cesso de descolonização, dando apoio principalmente
a Laurence Bataille, filha de Sylvia e Georges Bataille,
quando, com o primo Diego Masson, ela aderiu a uma
rede de apoio à Frente de Libertação Nacional argelina.
Em maio de 1960, quando foi detida e depois encarce­
rada na prisão de Roquette, ele levou para ela as folhas
datilografadas de seu seminário A ética da psicanálise e,
mais precisamente, as páginas dedicadas a Antígona.
Mas a falta de engajamento militante não impediu que
se interessasse pela atualidade política e acompanhasse os
movimentos da vida cultural francesa. Por exemplo, enten­
deu que a Igreja católica representava uma força política

38
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S

maior e quis encontrar o papa, em 1953. No mesmo ano,


entregou também o relatório de Roma a Maurice Thorez,
que dirigia o Partido Comunista Francês. Ele próprio não
era comunista, longe disso; mas, como eu havia aderido
— de 1971 a 1979 — , ele regularmente me convocava
para perguntar a respeito das evoluções e dos debates in­
ternos do Partido. A fase de desestalinização havia come­
çado, e Lacan a acompanhava com atenção. Pressentia,
tanto na Igreja como no PCF, viveiros em potencial de
recrutas para o seu próprio movimento. Como analista,
ele não recusava ninguém. Chegou a seguir e, inclusive,
a defender personagens bastante extravagantes, às vezes
pouco recomendáveis ou até fora da lei. Mas acho que,
comportando-se dessa maneira — e eu não era a única a
tentar questionar, em particular, seus apoios esdrúxulos
— , ele evitou que alguns pacientes e alunos da minha
geração caíssem no extremismo. Lacan foi uma verda­
deira muralha contra o terrorismo que se propagava, na
época, na Alemanha e na Itália. Soube neutralizar tais
aspirações, fiando-se apenas na prática psicanalítica e
rejeitando firmemente ser utilizado para fins políticos.
Assumiu a função simbólica de barreira de proteção,
adotando a seguinte postura: venha comigo, é melhor do
que a Revolução e melhor do que o ativismo extremado.
É bem verdade que determinada extrema esquerda e

39
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

alguns maoistas em particular se reivindicavam lacania-


nos. Mas Lacan, propriamente, mesmo se interessando
por Mao Zedong como grande figura significante da
época, não tinha simpatia alguma pelo maoismo, ao con­
trário. Quando leio, às vezes, que ele foi maoista, fico
pasmo... Já os lacanianos maoistas, frequentemente se
converteram ao liberalismo de direita, isso é notório.

P.M.: Alain Badiou não poderia se autodefinir assim?

A.B.: Pode-se, hoje, apenas dizer que Mao faz parte da


grande história revolucionária, assim como Robespierre,
Saint-Just, Blanqui, Trótski, Lênin e tantos outros. Dito
isso, deve-se explicar por que a glande maioria dos jo­
vens intelectuais lacanianos dos anos 1960 foi maoista
nos anos 1970. Seria por acaso? Com certeza, não! Tem
precisamente a ver com o conceito lacaniano de sujeito,
ao qual não apenas é necessário, como é totalmente coe­
rente, conferir uma dimensão política subversiva, pela fi­
losofia. Entre Lacan, que dizia “não ceda quanto ao seu
desejo”, e Mao, que dizia “temos razão de nos revoltar”, a
passagem, para nós, era evidente.

E.R.: Mas ele não era um chefe revolucionário ou au­


toritário, estando mais para o monarca constitucional,

40
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S

identificando-se muito, não devemos esquecer, com o


modelo político inglês. A EFP era um lugar de liber­
dade, e não um partido ou uma seita. E claro que Lacan
exercia um poder transferencial sobre pacientes e alu­
nos. Mas quem se submetia o fazia por vontade própria.
Livremente se tornavam discípulos, pois era o desejo de­
les. É ridículo apresentar Lacan como uma figura autori­
tária. Ainda mais porque, mesmo incitando a submissão,
Lacan nunca respeitava os epígonos e, ao mesmo tempo,
valorizava quem resistia à sua sedução.
No fundo, sempre tive reservas quanto às tentativas de
dar significado político à radicalidade lacaniana. O que
é radical em Lacan é a visão sombria que ele tinha com
relação às trocas entre as pessoas. Para ele, o único lugar
em que o malefício da pluralidade humana podia parcial­
mente ceder era no tratamento. Não vejo como fundar
uma política revolucionária sobre semelhante base.
Resumindo, é evidente que Lacan não era um progres­
sista, no sentido clássico, inclusive em termos políticos.
Mas, também, não era um pensador reacionário, como
às vezes querem nos fazer acreditar. Alguns psicanalistas
assim o consideravam por ele se opor ao casamento ho­
mossexual e à homoparentalidade — com o argumento
de que tais medidas abalam a função simbólica do pai.

41
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

Trata-se de um grave contrassenso. Para começar, Lacan


foi um dos primeiros a aceitar homossexuais em análise,
sem querer mudar sua orientação sexual e autorizando-os
a se tornar psicanalistas. Além disso, a chamada função
simbólica do pai pode ser assumida tanto por um homem
quanto por uma mulher: num casal homossexual, por
um dos dois parceiros. São muitas as maneiras possíveis
de se formar família e nenhuma deve ser excluída a priori!
Quando consultaram Lévi-Strauss sobre a hipótese de le­
galização do casamento homossexual, ele, em suma, res­
pondeu existirem tantas formas de organização da família
nas sociedades humanas que isso não o chocava.
Lacan sempre se negou a imaginar a diferença dos se­
xos sob o exclusivo ângulo da determinação biológica.
A questão da família o preocupou desde cedo. Num texto
de 1938, Os complexos familiares, ele associou o nasci­
mento da psicanálise ao declínio da autoridade paterna.
Sustentou então que a figura decaída do pai devia ser
revalorizada. Mas nem por isso fazia apelo ao restabele­
cimento da onipotência patriarcal. Nesse assunto e em
todos os demais, Lacan me parece, no plano político, um
conservador esclarecido, assim como Freud.
P.M.: E Alain Badiou, o que acha? Lacan era um pro­
gressista ou um conservador?

42
UM MEST RE, D O IS E N C O N T R O S

A.B.: Parte da genialidade de Lacan vem da ambigui­


dade constitutiva do seu pensamento. Coexistem nele
inegáveis estratos conservadores e elementos de radicali-
dade extrema. De um lado, o animal humano se enraíza
num terreno inalterável, é estruturado pela linguagem,
assimilado a uma Lei imemorial em que o Nome do
Pai é o significante organizador. Por outro lado, porém,
ele eventualmente pode se libertar desse peso e inventar
coisas.

E.R.: A Lei é incontornável; mesmo assim, se oferece


por si mesma ao jogo da transgressão.

A.B.: É por aí. Se guardarmos apenas a Lei e a pres­


crição simbólica do pai, nesse caso, de fato, faremos de
Lacan um reacionário — o que ele, na realidade, não é.
Em contrapartida, se pusermos o foco na experiência do
sujeito que consegue, apesar de atormentado por estru­
turas do inconsciente, não ceder quanto ao seu desejo,
Lacan se revela um pensador da emancipação — é o uso
que faço do seu ensino. Pois o que é a emancipação senão
esse movimento de torção, de exceção com relação à Lei?
Deve-se entender que é sempre numa figura localizada,
numa exceção, numa espécie de falha quase invisível na
ordem das coisas que a emancipação pode acontecer.

43
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE

A ideia de uma revolução abrupta do todo social nãc faz


sentido. Desse ponto de vista, Lacan tem toda razão de
ser um conservador que não acredita na revolução gene­
ralizada, na Grande Noite.* Mas é também quem critica
totalmente a rejeição dogmática de uma liberação pra­
ticável do sujeito. Sabe-se que ele reformulou o Nome
do Pai na máxima “les non-dupes errent”.** Os não tolos
são os que acham conhecer o fundo negativo das coisas
e negam com cinismo a possibilidade de emancipação.
Erram nesse sentido e são, fundamentalmente, imposto­
res. Lacan não se engana com esses não tolos.

É.R.: Falei de conservadorismo esclarecido, também,


para realçar a dimensão crítica onipresente em Lacan. Era
um pensador do Iluminismo sombrio, revelando sempre
o avesso da razão e da modernidade. Não confiava nas
ideologias do progresso ilimitado e da felicidade para

* Grand Soir. ruptura revolucionária, por marxistas e anarquistas,


com derrubada do poder estabelecido e instauração de uma nova
sociedade. (N.T.)
** No Seminário 21, ainda não traduzido oficialmente em por­
tuguês. Literalmente, “os não tolos erram”, perdendo, porém, a
homofonia original com “o nome do pai”. (N.T.)

44
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S

todos. Sentia-se consciente demais do fato de o mundo


ocidental poder, a qualquer momento, cair no horror, na
deserdação, no niilismo. Já no fim da vida, ele anunciou
explicitamente a expansão dos flagelos atuais: o racismo,
os comunitarismos, que são uma variante do racismo, o
individualismo feroz e, sobretudo, a estupidez que carac­
teriza a demagogia de massa, o reino da opinião pública.
Era o seu lado Tocqueville. Resumindo, diferentemente
de Freud, judeu vienense da velha Europa, Lacan tinha
suas referências no século XVIII francês, na cultura cató­
lica barroca, na filosofia alemã, na modernidade literária
do século XX, na lógica formal, no estruturalismo, na
poesia de Mallarmé.

A.B.: É verdade, era um visionário, um personagem


anterior ao mundo desfeito de hoje. Sempre achei simbó­
lico que ele morresse no início dos anos 1980, isto é, no
momento em que o mundo inepto que é o nosso come­
çava a se desenvolver: o mundo do capitalismo moderno,
da globalização selvagem, da financeirização ilimitada, do
neoconservadorismo generalizado.

P.M.: Chegamos, então, à atualidade de Lacan. Em quais


áreas e quais assuntos o pensamento dele lhes parece mais

45
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

pertinente hoje? Se estivesse entre nós, contra quais fenôme­


nos ainda se levantaria?

É.R.: O século XXI desde já é lacaniano. As derivas


são as que ele previu, e o seu pensamento nos ajuda a
combatê-las. Mesmo sendo alguém voltado para os pra-
zeres, Lacan não preconizava o hedonismo cego que subs­
titui a ilusão na busca da verdade do desejo. Opunha-se
a todos os tipos de fechamentos identitários, que negam
sermos constituídos pela alteridade, opunha-se ao com-
portamentalismo e ao cognitivismo, que rebaixam o ho­
mem à sua naturalidade, reduzem-no ao ser biológico,
ao corpo e ao cérebro. Mesmo adorando animais, Lacan
sempre achou ridícula a ideia de um continuum absoluto
entre homem e animal, como fazem hoje os adeptos da
ecologia profunda e da etologia. Com a teoria do sujeito
e do significante (a linguagem, a palavra), ele guardou
uma cesura necessária entre o humano e o não humano,
mesmo se mantendo darwiniano, é claro. Se ocultarmos
no homem o próprio da linguagem e da subjetividade
psíquica, abriremos caminho para o cientificismo fas­
cista: acha-se compreender o homem pela observação
dos neurônios, tratam-se seus sofrimentos sem dar aten­
ção à sua palavra, enchendo-o de remédios de maneira

46
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S

puramente mecânica. Onde se encontra o sujeito nisso


tudo? O que se torna sua singularidade? É achincalhada,
jogada de lado.

A.B.: Lacan teria, efetivamente, criticado as terapias


cognitivo-comportamentais debilóides, que fazem parte
da própria doença. Teria se colocado contra a medica-
lização generalizada dos sintomas e contra o avanço da
psicologia de feira que nos apresentam como o fino do
fino do conhecimento do sujeito. Teria ridicularizado a
onipotência da comunicação midiatizada em detrimento
do saber. Teria visto o declínio inexorável do discurso
universitário, pelo qual, aliás, já não tinha mesmo muito
respeito. O nivelamento do sentido e a proliferação do
semblant lhe causariam horror. Assim como a fetichização
além dos limites, miserável, da segurança por aqueles que
nos governam. Como disse Élisabeth, Lacan me parece
um antídoto vital contra a estupidez angustiante que dia­
riamente nos invade.

É.R.: Teria certamente alfinetado a volta dos programas


ideológicos mais rasteiros: o populismo, o psicologismo,
as recriminações baseadas na vitimização, a avaliação ge­
neralizada etc.

47
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NT E

P.M.: Não teria também ironizado a reativação do co­


munismo, pregado por alguns filósofos, entre os quais você,
Alain Badiou?

A.B.: Bem suspeita, essa ironia! Os que negam o comu­


nismo são típicos não tolos que erram a serviço dos pode­
rosos do momento. O comunismo é o contrário exato de
uma utopia, é o verdadeiro nome do real como impossí­
vel. Ceder quanto ao comunismo ou quanto a qualquer
outro nome possível de exceções emancipadoras é ceder
quanto a qualquer outra forma de verdadeiro desejo po­
lítico. Lacan, sendo de fato um conservador esclarecido,
achava melhor ceder do que se arriscar ao Terror. Mas se
convenceria da miserabilidade do mundo contemporâ­
neo, achando que ele merecia...

E.R.: ... uma boa palmada!

48
2

Pensar a desordem2

Trinta anos depois de sua morte,


C h r i s t í n e G o êm É :
Lacan nunca esteve tão vivo. No mundo inteiro, seu pensa­
mento e a língua que o sustenta permitem avanços que não
se limitam ao exclusivo campo da prática psicanalítica. Ele
fabricou conceitos operatórios que ajudam a analisar a crise
contemporânea e o mal-estar que se abatem sobre a civiliza­
ção ocidental. Antes de abordar essa modernidade de Lacan,
vocês, Elisabeth Roudinesco e Alain Badiou, poderiam esbo­
çar um retrato pessoal dele?

A l a in B a d io u : Evocar a figura de Lacan não se limita a


traçar o retrato de um grande pensador, significa também

2 Transcrição do debate na Bibliothèque Nationale de France, em


4 de outubro de 2011, com o tema “Lacan, 30 anos depois”, or­
ganizado por Jean-Louis Graton e dirigido por Christine Goémé,
em parceria com a rádio France Culture e a revista Philosophie
Magazine. Transcrição de Martin Duru, inteiramente revista e
corrigida pelos autores.

49
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

voltar a um momento excepcional do pensamento e da


ação no século XX. Desse ponto de vista, Lacan foi sem
dúvida, um mestre. Sua palavra e seus escritos singulares
tiveram uma espécie de ressonância, de eco extraordinaria­
mente extenso que vai muito além das fronteiras da psi­
canálise e do ato analítico como tal. Lacan foi igualmente
um mestre, no sentido de ter sido imediata e violenta­
mente discutido. E foi, dessa forma, atacado porque a no­
vidade do que trazia se impunha de maneira brilhante e
peremptória, bem como por ter criado escolas e se cercado
de discípulos. Como se sabe, um discípulo, por definição,
em geral se sente tentado a trair o mestre. Sempre achará
ter meios para isso. O próprio Lacan era perfeitamente
consciente desse fato: para ele, a prova ética fundamental
que deve, necessariamente, enfrentar quem se encontra
na posição de mestre é a de, um dia, ter de sofrer trai­
ção. De fato, ele foi abundantemente caluniado e traído,
mais do que qualquer outro, no seu período histórico.
E ainda hoje o é como também continuará sendo ama­
nhã. Nisso, ele pura e simplesmente se inscreve na li­
nhagem de Freud, que foi também bastante criticado e
caluniado enquanto vivo.
Para entender os ataques contra Lacan, é preciso re­
lembrar o contexto intelectual em que se enraizava seu

50
PENSAR A D ES OR DE M

pensamento. Na passagem dos anos 1950 para 1960, a


conjuntura filosófica era dominada pelo conflito entre a
fenomenología em declínio (Sartre, Merleau-Ponty) e o
estruturalismo em plena ascensão (Lévi-Strauss, Althusser,
Foucault e muitos mais). Entre essas duas correntes,
Lacan definiu uma posição teórica absolutamente sin­
gular. De um lado, esclarecido pela experiência clínica
e guiado pelo modelo da certeza científica, ele renovou
o conceito de inconsciente como sistema de determina­
ção da experiência subjetiva. Por outro, porém, manteve,
mesmo se dispondo a renová-la em profundidade, a no­
ção de sujeito, que era central na fenomenología — em
Sartre, principalmente, que relaciona o sujeito a uma
teoria da consciência e da liberdade. Lacan seguiu um
caminho entre as duas vertentes, uma trilha bem particu­
lar: captou e adaptou a herança estruturalista, mostrando
que o inconsciente, estruturado “como uma linguagem”,
determina a constituição do sujeito; e, ao mesmo tempo,
novamente estendeu o conceito de sujeito em toda a sua
radicalidade, afirmando a possibilidade, para cada um,
de se engajar num risco livre, de natureza ética. Um dos
principais seminários de Lacan se intitula, não por acaso,
A ética da psicanálise (1959-1960). Essa dimensão ética re­
cupera a afirmação, a reivindicação, pelo próprio sujeito,

51
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

da estrutura do seu desejo. O imperativo, retomando a


célebre expressão lacaniana, é “não ceder de seu desejo”,
expressão que ele dizia frequentemente, não devemos es­
quecer, que significa “cumprir o seu dever”.
Assim, eu diria que Lacan foi um mestre, na medida
em que se situou num ponto de convergência entre duas
exigências: em primeiro lugar, por ter endossado, como
homem do Iluminismo, a exigência de racionalidade, o
ideal de cientificidade que nele se confunde com a sobe­
rania da estrutura e a busca, nunca desmentida, de for­
malização da experiência subjetiva. Em segundo lugar,
por assumir a irredutibilidade do sujeito que configura
seu próprio destino. E uma visão ao mesmo tempo re­
belde e dramática, bastante alimentada pelo teatro e, mais
particularmente, pela tragédia grega, a que ele sempre se
referia. É este, então, o retrato de Lacan que proponho,
na parte que me toca: um homem do Iluminismo que
encontrou a força do teatro.

É l is a b e t h Lacan é evidentemente
R o u d in e s c o :

um mestre, pois estabeleceu uma ampla e nova funda­


mentação do pensamento freudiano, que interessa a
toda a cultura, muito além da psicanálise. Mas o fato de
ter sido psicanalista complica singularmente as coisas.

52
PENSAR A D ES OR DEM

Seu pensamento e sua concepção do tratamento são hoje


veiculados por clínicos que não o conheceram, alunos de
uma geração de clínicos analisados por ele, que se dispersa­
ram depois da sua morte. De forma que herdaram, de ma­
neira transferencial, menos o pensamento de Lacan e mais
a rivalidade que impera entre os diferentes intérpretes.
E essa situação não deixa de ser perigosa. O risco
consiste numa apropriação sectária do ensinamento. E a
ameaça que pesa sobre a psicanálise de hoje, sobretudo
para quem nada quer saber da história da disciplina e
herda “de segunda mão” o ensinamento a que nos referi­
mos. Entre os filósofos e os pesquisadores em ciências hu­
manas também existem mestres, é claro, mas, no campo
da psicanálise, a problemática da identificação e da trans­
ferência com relação à pessoa do mestre é essencial. Lacan
analisou muitos clínicos que o têm como referência e se
dispersaram em grupos rivais. A transmissão da herança
se torna então muito complexa, para não dizer truncada.
Colocando-se numa posição soberana, os psicanalistas
assumiram um direito de visão e de propriedade exclu­
sivista sobre a obra dos fundadores — como se fossem
os únicos capazes de compreender os textos canônicos e
repercuti-los na prática.

53
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

Freud já foi objeto de tais apropriações ao longo do


tempo. Para que seus arquivos fossem abertos ao público,
depois de sua morte, foram necessários quase trinta anos.
Atualmente, o mesmo problema se apresenta com relação
a Lacan, mas com ainda maior intensidade, pelo fato de
não haver uma comunidade verdadeiramente lacaniana,
enquanto os herdeiros de Freud, através da Associação
Psicanalítica Internacional (IPA), de um jeito ou de outro
conseguiram, depois do nazismo, se entender para consti­
tuir arquivos (Biblioteca do Congresso de Washington) e
locais de memória (Museu Freud de Londres). O mesmo
não se passa com Lacan: tudo está avulso e disperso. Por
isso, parece-me indispensável que seu ensino seja laici­
zado, isto é, difundido fora dos exclusivos círculos psi-
canalíticos, da mesma maneira que Freud passou a ser
estudado fora das exclusivas associações de psicanálise.
Resumindo, Lacan deve deixar de ser preemptado pelos
lacanianos.
Reagindo agora ao que Alain disse, concordo total­
mente com a junção do pensamento racional e a reflexão
sobre o teatro. Acrescento que, em Lacan, a orienta­
ção ou a aspiração ao trágico é uma forma de retorno a
Freud, por ele reivindicada e efetuada. A referência aos
gregos é sempre central na filosofia, mas, na psicanálise,

54
PENSAR A D ES OR DE M

é incontornável e se cristaliza em torno da tragédia.


É impossível para quem trabalha sobre ou com a psica­
nálise não se confrontar incansavelmente com o trágico.
O importante não é essa psicologia de balcão que é o
complexo de Édipo, mas a reflexão sobre o trágico grego.
Se Freud não houvesse tido a ideia genial, no fim do sé­
culo XIX, de remeter os pequenos negócios da família
burguesa ocidental à tragédia grega — isto é, a um des­
tino inconsciente — , ele teria permanecido um psicó­
logo da neurose, o mesmo título que Pierre Janet. Desde
então, cada verdadeiro pensador da psicanálise é obrigado
a refazer esse mesmo gesto, assim como os filósofos são
sempre obrigados, para pensar o presente, a rever as ori­
gens da filosofia.
Com relação a isso, há uma diferença decisiva entre
Freud e Lacan. Na genealogia dos Labdácidas, a famí­
lia mais trágica das dinastias gregas e que tanto inspirou
Sófocles, Freud privilegiou Édipo rei, isto é, a história de
um soberano convencido de seu esplendor e de sua in­
vulnerabilidade, tendo chegado ao ápice da glória e da
sabedoria, até se tornar vítima da própria impetuosidade
e húbris. E o que fez Lacan? Deu preferência a Edipo em
Colono. Interessou-se pelos últimos momentos de Édipo,
pela figura do velho despossuído de todo esplendor, já

55
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NT E

moribundo e que amaldiçoa sua descendência. O sen­


tido do trágico, então, difere, quando se vai de Freud a
Lacan.
Freud teorizou sobre o fracasso da onipotência da au­
toridade patriarcal. Ao se interessar por Moisés, em 1909,
partindo da famosa estátua esculpida por Michelangelo
para o túmulo de Júlio II, na igreja romana de San Pietro
in Vincoli, ele ficou impressionado pela maneira como
o profeta sublima a raiva e deixa de lançar as Tábuas dos
Mandamentos contra o povo que voltara, durante a sua
ausência, a adorar ídolos. Em seguida, valorizou a ideia de
que o que fez a grandeza do primeiro monoteísmo, cuja
origem ele atribuiu ao Egito, não foi o judaísmo (iden-
titário), e sim a judeidade (universalizável), a capacidade
de pensar, de se rebelar e de se abstrair da representação,
da afetividade e da submissão: sem ídolo, sem imagem,
com domínio de si e racionalidade. Para ele, isso era o
contrário do cristianismo que veio depois, religião das
massas e da emoção.
Já Lacan se interessou pela autoridade irremediavel­
mente fragmentada. E se sentia mais fascinado pela re­
ligião católica romana, da qual conservou apenas duas
figuras sempre conflitantes: o poder político, de um lado
(poder da Igreja e dos papas), e o conhecimento místico,

56
PENSAR A D ES O R D E M

de outro (a fé pura e sem objeto até a autodestruição, en­


carnada pelas mulheres). Édipo em Colono, então, não é
Edipo rei nem Moisés, mas a versão última do soberano
aniquilado, que não conserva mais importância alguma.
Nada mais tem de sublime em sua desgraça: não que es­
teja desfeito, ele nada é, já está morto. É este o trágico,
segundo Lacan.
De Antígona, entretanto, Freud nada fala, exceto para
designar sua filha Anna, que aceitou o celibato para ser
sua herdeira e seu ponto de apoio. Uma Antígona bem
diferente ronda o pensamento lacaniano. Marcado pela
leitura que Hegel fez desse personagem de Sófocles,
Lacan enuncia o preceito de que nunca se deve ceder
de seu desejo. Antígona, segundo Lacan, é uma mística:
encarna essa obstinação, essa irredutibilidade do sujeito
disposto a tudo para seguir suas próprias inclinações.
A famosa oposição entre as leis do Estado e as leis não es­
critas da família — em nome das quais Antígona afronta
os decretos do tio Creonte, para dar sepultura a seu irmão
— não é o tema central que interessou Lacan. Para ele,
Antígona é a própria instância do trágico. Companheira
do soberano aniquilado, ela é a inscrição do impulso do
sujeito em direção à morte, o que quer dizer o nome

57
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

do desejo inalienável. Ela exige um rito mortuário (dos


funerais) para além de qualquer sepultura. É também
mulher, o que mostra a pregnância, para náo dizer a pree­
minência, em Lacan, do polo feminino, enquanto o uni­
verso referencial de Freud é mais masculino.
Uma última observação sobre o teatro: pessoalmente,
Lacan era também um ator prodigioso, um intérprete
excepcional. Seu seminário era puro teatro. Bem mais
do que as aulas dadas, na mesma época, por Barthes ou
Foucault. Lacan representava a todo tempo. Para ele,
tudo é palavra e tinha muita dificuldade de passar para o
escrito, que o aterrorizava. Todos que assistiram aos seus
seminários passaram por uma experiência inesquecível.
E pena, aliás, que não se tenha filmado tudo, para que as
novas gerações possam se dar conta do seu talento, ence­
nando a si mesmo.

C.G.: Tinha um humor extraordinário...

É.R.: Com certeza, mas, insisto, não se deve esquecer


a dimensão do trágico. Quando se lê ou se assiste aos
poucos vídeos gravados, um grande sofrimento transpa­
rece. Lacan sofria da dificuldade de transmitir seu pen­
samento. Aquele homem do Iluminismo temia o tempo

58
PENSAR A D ES OR DE M

todo não estar sendo claro o bastante, não ser compreen­


dido. É verdade que a sua obra, que é difícil, pareceu her­
mética a alguns.
Para finalizar esse momento lacaniano, minha desco­
berta do seu ensino foi posterior à de Alain. Pessoalmente,
tenho uma admiração particular pelo Lacan estruturalista
dos anos 1950-1965: do relatório de Roma e da Instância
da letra, da teoria do significante, da aposta no cientifi­
cismo, seguindo as pegadas de Alexandre Koyré. Gosto
também, como já disse, do Lacan do entreguerras, o fe-
nomenólogo que frequentava Bataille e os surrealistas e
começava a desconstruir os significantes da família oci­
dental. Em meu último livro, Lacan: a despeito de tudo e
de todos, evoco o último Lacan, dos anos 1970, que segue
até o fim na aventura da linguagem: um Lacan noturno,
assombrado pela morte, pela transmissão de sua obra e
que inverte sua tópica (simbólico, imaginário, real —
SIR), colocando o real em posição mais importante para
dar a entender o heterogêneo, o que escapa à simboliza-
ção, algo muito sombrio. Um vacilo da razão.

C.G.: Para esquematizar, pode-se dizer que Lacan coloca,


ao contrário de Freud, a absoluta primazia da linguagem
como condição e trama do inconsciente. E Lacan se apresenta

59
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE

como aquele que leu Freud e fez um retorno à sua obra.


0 aparente paradoxo encobre urna clara diferença: entre o
fundador da psicanálise, burguês vienense convencional',
e Lacan, parisiense cosmopolita e provocador, há também
uma diferença de estilo. Como vocês avaliam?

A.B.: A questão do estilo literário de Lacan é, de fato,


fundamental e entra, de maneira crucial, em sua identi­
dade. A prosa de Freud, escrita em bela língua clássica, é
ao mesmo tempo densa e clara, em busca de uma ordem
de exposição que siga o movimento real do pensamento.
A estilística de Lacan, no entanto, por vários aspectos, pa­
rece mais próxima dos meandros do inconsciente: capta
no enunciado o que, justamente, escapa a qualquer ordem
reflexiva consciente. Existe urna magia na escrita laca-
niana que sempre me impressionou e que tem a ver, pelo
efeito que causa, com o fascínio exercido por certos poe­
tas modernos, como Mallarmé. A linguagem de Lacan se
utiliza da seguinte astúcia: a escrita dá sempre mais o que
pensar do que achamos ter compreendido — como se cada
frase tivesse um resto, que escapa da compreensão unívoca.
A coisa dita é tomada num dizer que ultrapassa seu ime-
diatismo e não se esgota na captação teórica inicial. Lacan
muitas vezes foi acusado, aliás, de cair na retórica, tanto

60
PENSAR A D ES OR DEM

para seduzir quanto para frustrar seus ouvintes e leitores.


Na realidade, seu estilo mistura, de maneira notável, o
labirinto sintáxico da língua e o elemento bem francês
da sentença. De fato, Lacan engendrou fórmulas que se
tornaram célebres: “Não há relação sexual”, “A mulher
não existe”, “Os não tolos erram”, “Ali onde isso pensa,
não estou” etc. Tais enunciados, que inscrevem seu autor
na linhagem dos grandes moralistas franceses, estão en­
caixados num devir sinuoso que nos leva às aporias e às
surpresas do sonho. A língua de Lacan é o lugar de um
encontro, de uma fusão difícil e quase angustiante entre
a narrativa onírica e toda a agudeza de expressão de que a
língua francesa é capaz. Com genialidade, Lacan explo­
rou suas duas vertentes possíveis: de um lado, apresenta o
brilho das sentenças claras que facilmente se fixam, sem
demora, na memória; de outro, assume caminhos turvos
de uma língua inapreensível, que se difrata com ecos in­
finitos e enigmáticos. Resumindo, é uma língua de psi­
canalista e mais até: uma língua que se confunde com o
próprio movimento da psicanálise como tal. Na verdade,
sem “patriotada” nem nacionalismo ufanista, é uma lín­
gua, acho, profundamente francesa. A distância com re­
lação a Freud, cujos pensamento e escrita são inseparáveis
das fontes próprias do alemão, é visível.

61
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

Lacan se situa ora na altura do século XVII (La


É .R .:

Fontaine, La Rochefoucauld), ora na altura do século


XVIII e do barroco. A escrita romântica e positivista do
século XIX permanece estranha a ele que, de fato, reata
com certa ideia do espírito literário francês. Está por in­
teiro na história de sua língua materna e, aliás, não falava
nenhuma outra. Mas ouvir ou ler Lacan é igualmente
escutar de perto o inconsciente, muito mais do que em
Freud. Lacan é o mímico, o ventríloquo do inconsciente.
E isso se acentua nos últimos anos, quando ele inverte
sua tópica (RSI em vez de SIR), tendo como referência
Finnegans Wake de Joyce.
Freud, por sua vez, é um romântico bem século XIX.
Seus gostos literários são os dos eruditos letrados da
época. Impermeável às vanguardas, ele se aproximava,
em sua obra, da estética do romance, enquanto as senten­
ças dos moralistas franceses, de que Lacan gostava tanto,
nada têm de romanesco. Para encontrar o romanesco à
maneira do século XIX em Lacan, é preciso retornar não
a seus escritos, mas à sua vida, tão cheia de peripécias tu­
multuadas. Que contraste com a existência relativamente
banal de Freud! Note-se que ambos passaram pelo estado
de guerra na Europa: Freud viu desabar o mundo antigo
dos impérios centrais, em que ele próprio tinha origem,

62
PENSAR A DESO RDEM

e Lacan vivenciou como devastação da Europa o triunfo


do nazismo. No entanto, os dois pensadores mantiveram
uma relação extremamente diferente com a escrita. Freud
se assemelhava a Victor Hugo: escrevia diariamente, com
desconcertante facilidade. Foi um incansável epistoló-
grafo, tendo redigido mais de 20 mil cartas, das quais
a metade foi preservada. Não se pode mais seriamente
estudar a sua obra sem dar atenção a essa volumosa cor­
respondência. Em Lacan, ao contrário, a escrita era so­
frimento. Para ele, escrever sempre foi uma experiência
trágica.
Consequentemente, são dois homens que em nada se
parecem. Mesmo assim, foi Lacan quem deu início na
França, a partir dos anos 1950, a um tão fecundo re­
torno a Freud. O paradoxo impressiona. Lacan vinha
da psiquiatria, tinha sido aluno de Gaétan Gatian de
Clérambault e se interessava pela psicose e por tudo de
que não gostava Freud. Mas, precisamente por estar tão
longe do fundador da psicanálise — e totalmente infiel
no plano intelectual — , pôde voltar à letra da sua obra,
recusando-se a encontrá-lo pessoalmente, apesar de ter
havido a possibilidade.
Lacan fez esse retorno a Freud em um contexto his­
tórico nada favorável. Nos anos 1950, a comunidade

63
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

psicanalítica procurava “ultrapassar” e abandonar o Freud


vienense, considerado obsoleto. Aliás, tal abandono era
desejado por aqueles mesmos que haviam conhecido
Freud e tinham sido obrigados a deixar a Europa por
causa do nazismo, por serem judeus e conservarem a me­
mória de um mundo naufragado, pelo qual não se in­
teressavam mais, depois da difícil integração no mundo
anglo-americano.
O católico Lacan, de “cepa do chão francês”, rompido
com a fé e com toda forma de patriotismo exagerado,
entrou então em cena, proclamando o retorno à Viena.
Mas que Viena era essa? Não a dos emigrados, mas uma
Viena sonhada, reinventada pela estrutura e pelo signifi­
cante. E em Viena, aliás, numa conferência de 1955 (“A
coisa freudiana”), Lacan inventou a ideia de a psicaná­
lise ser o equivalente a uma epidemia (a peste), capaz de
subverter as consciências. Lacan não conheceu a Europa
dos impérios centrais: é francês e parisiense de coração.
E essa a proeza: aquele que efetuou uma refundição sem
precedentes da obra freudiana, que levou adiante o que
chamei “a tomada ortodoxa do freudismo”, não era um
homem do serralho nem um emigrado da Viena histó­
rica. Era alguém de fora, um sujeito quase excluído da
saga freudiana. Ninguém esperava Lacan — Freud muito

64
PENSAR A D ES OR DEM

menos. Entende-se, então, por que Lacan muito rapida­


mente provocou os ataques das instâncias psicanalíticas
internacionais, até ser excluído. Era visto como um estra­
nho ameaçador, um herético em potencial. Não aparecia
em lugar algum na genealogia oficial do freudismo, não
se incluía nas origens vienenses nem nas do continente
norte-americano.

C.G.: Você, Alain Badiou, concorda com o que acaba de


dizer Elisabetb Roudinesco? Lacan conseguiu serfiel a Freud
justamente por nada se parecer com ele?

A.B.: É inegável. Mas essa fidelidade infiel de Lacan


com relação a Freud não é um caso único na história do
pensamento. Com frequência, uma invenção intelectual
pode ser bruscamente desdobrada e enaltecida por al­
guma intervenção externa. Pessoalmente, observaria que,
dentre os elementos “estranhos” que Lacan utilizou para
refundir a psicanálise freudiana, coube à filosofia um pa­
pel capital — e isso, naturalmente, me toca de perto...
A filosofia foi um dos maiores instrumentos da renova­
ção lacaniana. Ao longo dos seus seminários, de fato, o
que encontramos? Platão, Spinoza, Hegel, Kierkegaard,
Heidegger, Wittgenstein e muitos outros. O psicanalista

65
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

incessantemente convocou filósofos, e quase seria pos­


sível escrever uma história da filosofia segundo Lacan.
Uma história, sem dúvida, estranha e muito interessante.
A cada vez, os filósofos foram de certa maneira infiltra­
dos, retraduzidos e submetidos a uma disciplina que não
era exatamente a deles. Aliás, tornaram-se possíveis per­
sonagens conceituais da própria cadeia analítica. Vê-se isso
particularmente com Sócrates, um dos interlocutores fa­
voritos de Lacan.

C.G.: Pode-se dizer o mesmo com relação a Platão, que


Lacan chegou a dizer que era lacaniano...

A.B.: De fato! Ele retrospectivamente “lacanizou” mui­


tos filósofos! Mas fez isso com um talento particular.
Ao contrário do que se pode pensar, Lacan foi sempre
bastante literal, fiel aos textos que percorria. Suas inter­
pretações, às vezes ousadas, de forma nenhuma eram
fantasistas ou abusivamente manipuladas a seu favor. Ele
caminhava livre pelo corpus filosófico, oscilando entre a
incorporação plena e a exclusão radical. Visto que Lacan
muitas vezes também se disse antifilósofo. Peguemos
sua leitura de Platão: ele às vezes retomou totalmente
por conta própria dispositivos platônicos. Por exemplo,

66
PENSAR A DESOR DE M

em ...ou pior, integrou em seu pensamento pessoal par­


tes inteiras do diálogo Parmênides. Em outras ocasiões,
zombou duramente de Platão, como quando reduziu o
projeto filosófico e político de A república a uma criação
de cavalos obedientes... Lacan nem sempre foi simpático
com os filósofos, com ataques eventualmente violentos
ao extremo.
Lendo esse estranho antifilósofo atraído por tantos
filósofos, acabei achando que os filósofos da minha ge­
ração não podiam deixar de aceitar um confronto real
com Lacan. Não se trata de apenas apreciar a relação de
exterioridade da filosofia frente à psicanálise, mas sim
de um questionamento mais íntimo e secreto: como nós,
filósofos, podemos e devemos nos situar com relação a
esse uso lacaniano da filosofia e do tema da antifilosofia?
Em que medida nossas concepções da disciplina filosófica
foram afetadas, abaladas pela convocação ambivalente de
Lacan? Para mim, sem dúvida, filósofo contemporâneo
nenhum pode ser considerado importante se não se con­
frontou, num momento ou noutro de sua trajetória, à
intepretação lacaniana da filosofia.
Em todo caso, é altamente significativo que a filosofia te­
nha a tal ponto servido a Lacan para reorganizar e até mu­
dar o rumo do modelo freudiano, vienense, da psicanálise.

67
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

Ao mesmo tempo, isso também criou e estimulou uma


forma de rivalidade velada entre as duas disciplinas. Lacan
carregava em si esse conflito ora latente ora manifesto: às
vezes era personagem do cenário filosófico, outras vezes o
abandonava, decompondo a filosofia num espaço intei­
ramente novo, que era o da análise, da forma como ele a
concebia. Como um mágico, Lacan realçava apenas um
ou outro fragmento da história da filosofia para fazê-lo
desaparecer sob a capa de sua criação psicanalítica.

É.R.: É um novo paradoxo. Lacan fez esse gesto muito


forte que consistiu em levar a filosofia para o campo da
psicanálise. No entanto, sua relação com a filosofia era a
de um embate de morte. Alimentava-se de filosofia para
mais facilmente entrar em conflito com ela, num per­
manente corpo a corpo. Freud de forma alguma tinha
essa posição com relação à filosofia. E isso tem sua im­
portância: na França, vários intelectuais dos anos 1960
liam Freud depois de terem lido Lacan. Liam Freud à luz
da refundição lacaniana. Quando me dediquei à História
da psicanálise na França, precisei me “deslacanizar” para
redescobrir um Freud original. Fora da França, conheço
muitos psicanalistas freudianos e muitos comentadores
da obra freudiana que têm enorme dificuldade para ler

68
PENSAR A D ES OR DE M

a obra de Lacan: é o caso, por exemplo, de Yoseg Hayim


Yerushalmi e de Cari Schorske. No mundo anglo-saxão,
de fato, estuda-se Lacan sobretudo nos departamentos de
letras e de antropologia (estudos culturais e de gênero).
Nesse mundo, Lacan é visto como um filósofo, como um
antropólogo da cultura ou, ainda, como um teórico da
literatura, e pouquíssimo como psicanalista!

C.G.: Como qualificariam, em seguida, as relações dele


com os escritores? Sua obra é repleta de referências literárias,
que vão de Sade a Joyce. Temos o mesmo esquema que com os
filósofos, uma relação de apropriação e, ao mesmo tempo, de
rejeição?

E.R.: Qualquer que fosse o autor de que falasse, Lacan


punha em ação um processo de incorporação: achava que
o outro enunciava o mesmo que ele, ao mesmo tempo.
Com frequência, achou que os pensadores ou escrito­
res que o antecederam anteciparam suas próprias refle­
xões. Como vimos, chegou a afirmar, não sem humor,
que Platão era já lacaniano. Essa assimilação ocasionou,
em alguns seguidores, discursos cômicos. Acharam, por
exemplo, que Freud era lacaniano por antecipação e que
os conceitos de Lacan já se encontravam em sua obra.
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

Com relação a seus contemporâneos, Lacan se sen­


tia “plagiado”. Essa marca podia se tornar patológica:
em cartas, o tempo todo se dizia enganado, que tinha
suas ideias roubadas, enquanto ele próprio comentava
longamente e se apropriava de desenvolvimentos intei­
ros da obra de alguns filósofos. Tal atitude só podia gerar
conflitos. Evoquemos, por exemplo, suas relações com
Jacques Derrida, leitor atento, escrupuloso e implacável
da obra lacaniana. Pois bem, Lacan não o suportava: dizia
que Derrida roubava suas ideias. Ou, então, estimava que
certos escritores, como Marguerite Duras, por exemplo,
apresentavam uma ideia que se intercambiava com a dele,
pelo modo “eu é o outro”, “o outro sou eu”, “ele ou ela
faz como eu” etc.
No que diz respeito aos escritores que o marcaram,
Lacan mencionava, na verdade, muito pouco os surrea­
listas, com os quais teve relações bem próximas. É claro
que o gosto pessoal o encaminhava mais na direção das
experiências poéticas e literárias de Mallarmé e de Joyce.
Ele se sentiu realmente fascinado pela novidade da língua
de Ulisses e de Finnegans Wake e a incorporou, como já
mencionei. A meu ver, no entanto, as relações dele com
a filosofia e com o teatro — os trágicos gregos, mas tam­
bém Shakespeare e Claudel — foram mais fecundas.

70
PENSAR A DESOR DE M

A.B.: Falamos de filosofia, de literatura e de teatro,


mas não se deve esquecer o papel essencial que tiveram
para Lacan as ciências formais e as figuras lógicas da for­
malização contemporânea. Num primeiro momento, ele
se apoiou na linguística estrutural de Roman Jakobson.
Num segundo momento, voltou-se para a lógica mate-
matizada de Boole e de Frege. Num terceiro momento,
enfim, que corresponde ao dos seminários dos anos 1970,
integrou a seu dispositivo a teoria matemática dos conjun­
tos e, com a exploração dos nós borromeanos, a topologia
e a álgebra geornetrizada. Existe, consequentemente, uma
história muito rica de convívio do Lacan com os tipos
mais modernos de formalização no sentido estrito. Ele
não se limitou, o que já seria digno de elogio, a incorpo­
rar a dramaturgia trágica, a grande poesia mallarmeana,
a explosão joyceana da linguagem e a herança conceituai
vienense. Os ramos do saber lacaniano atingiram tam­
bém as mais áridas disciplinas formais.
Para que precisaria delas? Acho que o ponto-chave
é o seguinte: como sublinhei, Lacan foi quem tentou
tornar compatíveis a tragédia subjetiva — na trilha do
romantismo e do existencialismo sartriano — e o estru-
turalismo. E isso com um duplo objetivo: de um lado,
afirmar a irredutibilidade do sujeito (com a figura, ao

71
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE

mesmo tempo, dramática e ética de Antígona), e, de ou­


tro, dispor essa mesma irredutibiíidade num universo es­
trutural transmissível. O último Lacan se virou para a
matemática e a topologia para criar seu conceito de “ma­
terna”. E o materna é precisamente esse espaço formal em
que se pode projetar e transmitir a experiência subjetiva
do tratamento, que se remete então a uma matriz racio­
nal, científica, passível de transmissão sem resto. No en­
tanto, tal transmissão não pode, na realidade, recobrir a
totalidade da experiência subjetiva, pois o sujeito, como
vimos, é e permanecerá irredutível. Do sujeito, há sem­
pre algo que escapa à sua formalização, à sua captação
lógico-matemática, in fine, à sua transmissão pelo saber
formal. Em que sentido? Pelo fato de o sujeito, para o
último Lacan, estar inextricavelmente ligado ao real.
O real, em seu teor conceituai lacaniano, é o que resiste
absolutamente à simbolização, que pode se efetuar por
meio da matemática, da lógica e da topologia. Esse tema
é recorrente: o ponto real do sujeito é não simbolizável.
Lacan, por conseguinte, foi o mais longe possível na for­
malização para experimentar o impasse fundamental. Em
determinado momento, a formalização integral deve se
interromper, por não funcionar mais sobre aquilo que

72
PENSAR A D ES OR DE M

pretendia apreender. É o momento em que se atinge o


ponto real do sujeito.
Para mim, esta é uma das ações mais vigorosas do pen­
samento lacaniano, que igualmente repercute em sua es­
crita: empurrar, estender a formalização até que surja algo
que a desmonte, que a desate. Donde a figura magnífica
do nó, no Lacan tardio: o nó é aquilo que é apertado e,
igualmente, se desfaz. E esse ponto real em que o fazer
e o desfazer são praticamente indiscerníveis, idênticos.
Para mim, com o uso que fez da teoria dos nós, Lacan
ofereceu a seu público já desnorteado a última metáfora
do seu pensamento inteiro Nesse ponto, porém, sei que
Élisabeth e eu não concordamos...

É.R.: Considero a última etapa do percurso dele edi­


ficante. Nos últimos seminários, Lacan caiu em certo
delírio especulativo, obstinando-se a atar e desatar seus
nós. Os matemáticos com quem trabalhou, Pierre Soury,
Michel Thomé ou ainda Jean-Michel Vappereau, parti­
ciparam dessa aventura, que deixou muitos traços: dese­
nhos coloridos com anéis e referências. Em Lacan, essa
aventura acompanhou o desaparecimento progressivo
da palavra e do dizer. No fim da vida, ele se tornou não
afásico, mas praticamente mudo, apesar de multiplicar

73
jA CQ UES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

ao infinito os neologismos. Era fascinante ver aquele


homem desfazer seu pensamento em público. Foi um
gesto inaudito, fundamentalmente subversivo, como
uma última provocação, um pontapé final na suposta
onipotência teórica. Lacan se debateu com suas aporias
e afundou no desespero: temia a morte mas, ao mesmo
tempo, a afrontava. Pessoalmente, não creio que possa ser
imitado nesse ponto, como alguns dos seus epígonos o fa­
zem. A formalização excessiva e seus impasses trazem algo
para a prática analítica? Digamos que não acredito, pois
consistiram sobretudo em dissolver o tempo das sessões,
em nome de um formalismo cruel e brutal, com que não
concordo e que tende a desumanizar o tratamento. Mas
deixemos a questão em aberto. Não nego que o último
Lacan tenha sido heroico até em sua aflição final, muito
pelo contrário. Mas não acho que essa busca final tenha
trazido uma renovação da clínica.

C.G.: A atitude lacaniana não foi importante, também,


por ter barrado o caminho à psicologização do sujeito?

E.R.: Sim. A rejeição da psicologia foi uma constante


em Lacan, que tinha um sacrossanto horror a essa disci­
plina. Na época, não era o único. Essa aversão era muito

74
PENSAR A D ES OR DEM

comum na minha geração, o que foi bom. Mas continua


atual a célebre crítica de Georges Canguilhem, em 1956,
na conferência “O que é a psicologia?”: “Quando saímos
da Sorbonne pela Rua Saint-Jacques, podemos subir ou
descer; se subirmos, nos aproximaremos do Panthéon,
onde se conservam alguns grandes homens, mas se des­
cermos, com certeza nos encaminharemos à policia de
Paris.”* E até mais atual do que à época, já que quase
todos os psicanalistas da nova geração foram obrigados a
seguir faculdade de psicologia, pois é o que dá acesso às
instituições oficiais de tratamento. E isso é muito proble­
mático, por causa da exterioridade crítica da psicanálise,
com relação à psicologia — o que não é o caso, diga-se de
passagem, com a psiquiatria. A formação dos psicanalis­
tas é o ponto sensível decisivo para o futuro.
O retorno de Lacan a Freud serve aqui de guia: para
ele, a psicanálise era precisamente uma antipsicologia.
Lacan desprezava a escola americana da Psicologia do Ego,
polarizada no ego. Queria que se desse mais atenção ao

* A frase inteira, que termina de maneira bem-humorada a confe­


rência, como informação que a filosofia poderia dar à psicologia,
é: “Diga a sua tendência para que eu saiba quem você é [...].
Quando saímos da Rua Saint-Jacques [...].” (N.T.)

75
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

inconsciente, ao real, para evitar os obstáculos da psico-


logização da existência, que não é melhor do que a do­
mesticação comportamentalista das consciências. Não
por acaso, ele cuidadosamente evitou dissertar sobre o
complexo de Édipo, que podia também gerar rasas con­
siderações sobre os conflitos familiares. Nesse ponto,
Deleuze tinha razão em sua crítica da edipização da sub­
jetividade.

C.G.: Insistindo ainda no último Lacan, sente-se que ele


o agrada muito, Alain Badiou...

A.B.: De fato. Mas não apenas por ele ter recorrido


às ciências formais, apoiando-se sobretudo na lógica e na
topologia, como mencionei, mas também por não po­
der deixar de ver nele, como Elisabeth, aliás, Édipo em
Colono. É preciso voltar e insistir nesse ponto: Édipo rei
não agradava tanto a Lacan, que não se reconhecia na fi­
gura do soberano iludido. Em contrapartida, era possível
imaginar-se como Édipo em Colono, isto é, na situação
de um homem que desata por conta própria o nó de sua
existência e impõe a quem quiser ouvir esse desenlace fi­
nal. É claro, sob muitos aspectos, é uma postura obscura,
espectral. Mas que realça e condensa a tragédia do sujeito.

76
PENSAR A D ES OR DEM

Nunca ceder quanto ao seu desejo é também poder e sa­


ber desfazer o que se achava ter feito e firmado de forma
certeira. O último Lacan é a evidência de uma aborda­
gem difícil, mas que, com isso, adquire uma envergadura,
uma estatura excepcional.
É um dos motivos pelo qual a morte dele me abalou
como um acontecimento totalmente particular. Que os
mestres devam um dia morrer todos sabemos. No entanto,
à morte de Lacan se acrescenta uma aura singular, por
esta ressoar sobre sua obra. É uma morte à imagem do seu
pensamento tardio, que se apresenta sob os auspícios de
Édipo em Colono, com a figura de um velho que desapa­
rece e lega ao conjunto do mundo o enigma insolúvel do
seu desaparecimento. Lacan, se posso dizer assim, conse­
guiu esta façanha: o mutismo dos últimos anos e a morte
são parte de seu legado enigmático. Trinta anos depois, o
mistério Lacan permanece. A relação com sua obra não
consegue se estabilizar, mesmo que se reconheça nele um
mestre. Nunca deixaremos de nos interrogar sobre esse
homem, esse pensamento. De que realmente se tratava,
no fundo? De psicanálise? Evidentemente. De filosofia?
Em certo sentido. De escrita contemporânea, de aven­
tura da linguagem? É claro. De dramaturgia subjetiva?
Também. De que mais? Não sobra ainda algo insondável?

77
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

Lacan foi, é e continuará sendo sempre um enigma, um


autor impossível de se catalogar, de se decifrar integral­
mente. Sua multiplicidade imanente desconcerta de ma­
neira inexorável, tanto ontem quanto hoje.

E.R.: Concordo plenamente. No fim da vida, Lacan


se transformou, fisicamente, em Edipo em Colono, pela
maneira de andar e pelos gestos. Entrou num gigantesco
processo de desiquilíbrio: deterioração das faculdades fí­
sicas e do seu raciocínio, dissolução também da Ecole que
ele fundou e mantinha viva. Lembro-me perfeitamente
das sessões do seminário em que ele parou de falar. Foram
momentos comoventes, dos quais certas pessoas, mais
tarde, zombaram de forma detestável. Fíavia, naquela ló­
gica de manifestação, algo de surrealista. Lacan não falava
mais, apenas mostrava e se revelava na decomposição da
sua própria linguagem.

A.B.: O gesto é surrealista, de fato, mas também


muito próximo de Wittgenstein — outra incorporação
filosófica. Todos conhecem o célebre aforisma que fecha
Tractatus logico-philosophicus\ “O que não se pode dizer,
deve-se calar.” Se o real for não simbolizável, ele é, no
fim das contas, aquilo de que não se pode falar, devendo

78
PENSAR A DES OR DE M

ser calado. Porém, ainda numa perspectiva wittgenstei-


niana, calar implica também ser preciso, antes, indicar.
Deve-se apontar aquilo sobre o qual é preciso manter si­
lêncio. Imagino o último Lacan como alguém que conti­
nua indicando com o dedo um real indizível. Só que, no
Hm, não se podia mais saber o que esse gesto designava e
no que implicava realmente. Legou-nos uma espécie de
enigma, como a própria morte.

C.G.: Em setembro de 2011, saiu pela Editions du Seuil


o Seminário 19, do período 1971-1972, que se intitula
... ou pior. Lacan abre o texto comentando o título, com
essa marca de humor que chama a atenção do leitor: “Talvez
alguns de vocês tenham entendido. ...o u pior é, em suma,
o que se pode fazer. ”No fim da introdução, ele acrescenta:
“Meu título sublinha a importância desse lugar vazio e de­
monstra igualmente ser a única maneira de se dizer algo com
a ajuda da linguagem. ”Algum comentário sobre esse título e
esse Seminário em particular, Alain Badiou?

A.B.: Esse título estranho, ... ou pior, introduz um


claro suspense com essa pontuação. Mas a suspensão
também implica o que vem como real. O sintagma com­
pleto, a sentença inteira é: “não há relação sexual... ou

79
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

pior.” Trata-se, então, do que é pior do que a negativa.


É interessante, pois Lacan, desde o começo, sempre pro­
curou desentocar as figuras, as manifestações imaginárias
da realidade. De certa maneira, o pior sobrevêm quando,
no lugar e em vez de um vazio, de um não ser fundamen­
tal, impõe-se pela força a presença de um ídolo. Também
aprecio muito os primeiros seminários de Lacan, por
motivos ao mesmo tempo teóricos e estilísticos — ele
demonstra neles uma serenidade que será genialmente de­
sarrumada em seguida. No Seminário inaugural, Os escritos
técnicos de Freud, há essa interrogação que chama a aten­
ção: os tratamentos não deviam se concluir com enun­
ciados sobre justiça e coragem, no melhor estilo antigo?
É como uma espécie de declaração inicial, um conden­
sado da missão que Lacan apontava para a psicanálise e,
indo mais além, para qualquer esforço intelectual: nunca
o vazio original deve ser preenchido por um ícone; nunca
o abismo primordial deve ser fechado por uma criação do
imaginário. Com a maneira cortante de sempre, Lacan
certa vez disse que a filosofia nada fez além de tapar o
furo da política. Não é muito simpático para os filóso­
fos! Mas entendo perfeitamente o que ele quis dizer. De
modo geral, mais vale cavar no pensamento um novo
furo do que tapar outro com um edredom. Nos dias de

80
PENSAR A DESOR DE M

hoje, a chamada moral dos direitos humanos e a palavra


de ordem do retorno a Kant são esses tais edredons. Se o
que, estranhamente, foi chamado “nova filosofia” fosse
realmente filosofia, coisa de que duvido, a sentença de
Lacan se justificaria plenamente. E o exemplo preciso de
uma escola de pretensos filósofos que, de maneira entu­
siasmada, se dedicou a tapar o furo da política!

É.R.: A frase mostra a violência com que ele eventual­


mente ia contra a filosofia ou a política em geral. ... ou
pior é, de fato, um estranho seminário, pois Lacan fala
da abjeção, do UM, da impossibilidade de relação sexual,
sempre jogando com a língua: ou pior se escreve também
sus...piro.* Há um capítulo que remete às formulações
sobre o amor: “Peço que recuse o que ofereço, pois não
é isso.” O que faz lembrar o famoso “amar é dar o que
não se tem a alguém que não o quer”. Ou seja, Lacan
com isso se dedica a novas construções lógicas, subver­
tendo a ordem simbólica para avançar em direção ao real.
Entende-se aí, como disse Alain, essa ideia que é muito
forte nele de fazer com que apareça um vazio que não se

* ou pire s’écrit aussi s’...oupir. Homófonos em francês. (N.T.)

81
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

pode preencher. E isso aconteceu no momento em que


ele se tornou uma espécie de ídolo para seus discípulos.
Ele desmanchou o que havia construído para se dirigir ao
pior, buscando mostrar que o homem moderno, o ho­
mem da Ciência, pode tender ao pior, de tanto que é
impossível a relação entre dois sujeitos. Em oposição ao
simbólico, Lacan coloca o real; opondo-se ao desejo, o
gozo; e contra qualquer relação que se pretenda fusionai,
a impossibilidade de relação: oferece-se o que não se tem
e que o outro não quer etc. A existência, então, é em si
uma tragédia.
Há nesse pessimismo terrível do último Lacan algo
que evoca o pior da história do século XX: a ruptura
de Auschwitz. Lacan realmente viu, no extermínio dos
judeus da Europa, o “pior”. Interpretou-o pelo ângulo
do desencadeamento da pulsão de morte. Mas não reto­
mou a tese desse acontecimento ter marcado uma cesura
impensável para a filosofia. Também não disse se tratar
de um horror não humano que ninguém poderia inter­
pretar. Pelo contrário, afirmou que apenas a psicanálise
poderia contribuir para pensar esse acontecimento, gra­
ças à leitura do último Freud. Por duas vezes ele mobili­
zou o significante do extermínio maior como elemento

82
PENSAR A DESOR DE M

fundador de uma nova abordagem do inconsciente.


A primeira vez em 1964, no momento da fundação da
Ecole Freudienne de París (EFP), quando, no seminário
Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise, ele evocou
“o Holocausto”, propondo tornar sua escola o lugar de
renovação do pensamento freudiano, diante da esclerose
das sociedades psicanalíticas. A segunda vez em 1967, na
“Proposição de 9 de outubro” (primeira versão), quando
procurou introduzir o procedimento do passe na forma­
ção dos psicanalistas. Naquela ocasião, ele sustentou que
a ÍPA serviu de refúgio para psicanalistas perseguidos
pelo nazismo, logo acrescentando que ela se tornara, de­
pois, um império segregante. E afirmou que, frente a um
mundo bárbaro — do cientificismo e da normalização
dos sujeitos pela sociedade de massa — , os valores do
universalismo freudiano deveriam ser relançados.
Lembremos que a noção de pulsão de morte gerou in­
tensos debates na história do movimento psicanalítico,
entre detratores (americanos, na maioria) e simpatizantes
(europeus). Freud a introduziu em 1920, a título de hi­
pótese, em Além do princípio do prazer, texto especulativo
dos mais surpreendentes e que o levou a certo pessimismo,
na medida, aliás, em que a Europa estava sendo devastada

83
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

pela chamada peste brune. O “mundo de ontem”, o


mundo da velha Europa freudiana, progressivamente se
turvava. E em Moisés e o monoteísmo (1939), verdadeiro
testamento deixado à posteridade, Freud se pôs em busca
da essência do mal e afirmou, como hipótese surpreen­
dente, que o sentimento de judeidade se transmite no in­
consciente, sendo, dessa forma, insubmersível, para além
do próprio judaísmo. Logo, segundo ele, nunca se dará
cabo do antissemitismo, que é seu corolário, inclusive no
ódio judeu por si mesmo.
Que audácia! Compreende-se que alguns psicanalistas
tenham se sentido pouco à vontade com esse último Freud
e preferido voltar para as obras mais clínicas. Justamente
esse Freud interessa muito os filósofos, os antropólogos e
os historiadores hoje em dia. E serviu como modelo lógico
para Lacan, que, também, acabou lançando um desafio
especulativo ao mundo moderno, com RSI. No último
Lacan, o real se afirma e se emancipa: é o indizível, o ino­
minável, a loucura. Tomando seriamente essa reviravolta
revela-se a progressão de Lacan rumo à dissolução de si
mesmo e de sua escola. Esse último Lacan não acredita
em progresso, em mudança ou em Revolução. Ele, ho­
mem da ciência, suntuoso racionalista, foi se tornando,

84
PENSAR A DES OR DE M

ao longo dos anos, um cético assumido. E a sua herança,


com isso, ficando ainda mais indecidível...

A.B.: Talvez houvesse nele, também, certa forma de


romantismo disfarçado, que surge em todo clássico deca­
dente.

E.R.: Concordo, e por isso comparei esse último Lacan


a Balthazar Claès, o personagem de Balzac que, nO fim
da vida, sacrifica tudo por paixão pela alquimia e, na
hora de morrer, tem uma iluminação que ele não con­
segue legar à ciência. E deixa a vida sem ter podido dar
resposta à pergunta que o atormentava: “Sou obstinado,
desapareço”, disse Lacan, lúcido a seu próprio respeito,
até o fim, após meses de obscurecimento. Mas não é um
testamento. Ao contrário de Freud, Lacan nada deixou
de herança. Desfez o que edificou enlaçando seus nós
e pedaços de barbante. E por isso a herança lacaniana
está em perigo, muito mais do que a de Freud: os psica­
nalistas do primeiro círculo lacaniano receberam de he­
rança apenas o nada, receberam a dissolução... Aliás, eles
constantemente reivindicam o “trabalho da dissolução”,
como se fosse um conceito maior. Tenho a impressão de

85
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

ser necessário retomar a obra de Lacan fora da psicanálise:


é a única maneira de ela sobreviver.

C.G.: Para concluir, gostaria de saber em que medida,


segundo vocês, Lacan é um pensador útilpara a compreensão
de nossa época.

A.B.: Ele continua sendo um mestre decisivo por moti­


vos da mais alta importância: a incerteza, a desorientação
e o espectro da crise permanente assombram o mundo
contemporâneo. E Lacan é um grande pensador da de­
sordem. De modo mais amplo, pode-se até definir a psi­
canálise como um entendimento ordenado da desordem
subjetiva. Nesse ponto, ela se situa na proximidade do
marxismo, que igualmente visa a inteligibilidade de uma
existência coletiva fundada na anarquia violenta e nas
não apaziguáveis e vorazes contradições que constituem
a desordem do capitalismo. Se pensarmos na crise atual,
Lacan permanecerá essencial, pois tenta retomar, dentro
da desordem, uma ordem imanente, um enquadramento
referencial que se remete ao horizonte do simbólico. Se
extrapolarmos a partir do pensamento lacaniano, pode­
remos dizer que a crise do mundo contemporâneo é uma
crise (do) simbólica(o). Com isso, as categorias lacanianas

86
PENSAR A D ES OR DE M

podem ser mobilizadas para a compreensão, a partir de


novas bases, de toda uma série de fenômenos: o declínio
das hierarquias herdadas, a onipresença do dinheiro, a
circulação constantemente forçada e vã de todas as coi­
sas etc.
Ao mesmo tempo, o imperativo ético que consiste em
não ceder de seu desejo mantém impressionante atuali­
dade. De fato, numa configuração de crise, podemos nos
sentir arrastados, presos à inexorabilidade de um imedia-
tismo confuso. Se quisermos resistir, no sentido forte do
termo, a essa errância, precisaremos ter a firme vontade
de não nos deixar submergir, de não nos entregar cega­
mente à deriva — de não ceder de nosso desejo.
O que Lacan traz hoje em dia é, por conseguinte,
duplamente fundamental: de um lado, permite que se
adquira uma compreensão estrutural nítida da crise en­
quanto crise (do) simbólica(o); por outro, serve para afir­
mar a irredutibilidade do sujeito desejante enquanto tal.

É.R.: Na linha do que Alain acaba de dizer, pessoal­


mente vejo em Lacan uma arma de subversão contra o
sistema capitalista atual: esse capitalismo financeiro, de-
sumanizado, sem nação nem sujeito, numa deriva incon-
trolável. Inspirar-se em Lacan contra essa loucura pode

87
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

propagar a desordem na ordem. A leitura de “Kant com


Sade” (1963), texto paradigmático que é um ponto de
virada na historia, comprova isso. Associar o imperativo
categórico ao imperativo do gozo, para mostrar que sao
duas faces da mesma problemática, é algo que permite a
indignação inteligente contra as duas faces da sociedade
contemporânea: o cientificismo e o obscurantismo.
No mundo anglófono, filósofos como Slavoj Zizek ou
Judith Butler se referem a um Lacan quase “feminista”
ou anticapitalista. Na França, bom número de psicana­
listas — não todos, felizmente — tende a limitar Lacan
a alguns jogos de palavras, num jargão repetitivo, e ob­
servam o mundo a partir das suas poltronas e dos casos
clínicos de que tratam: narram, de certa maneira, casos
bem “lacanianos” e isso, na maioria das vezes, gera li­
teratura ruim. Além disso, fazem de Lacan o arauto de
valores passadistas. Instituem, dessa forma, o “Nome do
pai” como slogan parado no tempo, encarnação de uma
“lei simbólica” que serve para proteger a sociedade contra
a proliferação de “mães malvadas”, acusadas de fusionar
com os filhos, desrespeitando o “complexo de Edipo”.
Criticam a sociedade moderna, mas querem se manter
politicamente “neutros”. Nem de direita, nem de esquerda,
nem de centro.
PEN SAR A DESOR DE M

Condenam, com isso, não o cientificismo, mas a


ciência — as reproduções medicamente assistidas, por
exemplo — , e também os casais homossexuais, as mães
solteiras, as mães de crianças autistas, consideradas ex­
cessivamente “fusionais” etc. Por que não imaginar, ama­
nhã, psicanalistas criticando o divórcio ou o adultério,
em nome do “bem dos filhos” e do equilíbrio necessário
no seio de uma fratría? E estranho, no fim das contas,
essa tentação de transformar Lacan — pensador barroco
e libertino, conservador esclarecido — numa espécie de
grande senhor de costumes um pouco canalhas, dotado
de bengala fálica. Não é o Lacan que prefiro. Creio ser
necessária uma revolução na França para mudar essa vi­
são. Resumindo: não ao Lacan reacionário e sim ao Lacan
subversivo!

C.G.: Agradeço as análises e as tomadas de posição.


A plateia deseja dizer alguma coisa, fazer alguma observa­
ção ou perguntas a Alain Badiou e Elisabeth Roudinesco?

Alguém na sala: Gostaria de saber qual é, para vocês, a


contribuição de Lacan à questão da existência. Em que ele
pode, hoje, ajudar na compreensão das nossas existências con­
cretas e, mais geralmente, no sentido da vida? Concordo que

89
JA CQ UES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

os conceitos de Lacan sejam subversivos, mas, para se ter uma


ideia a respeito, é preciso entrar em seu sistema e nessa lin­
guagem fechada em si mesma. Pode ser que, ¿lado essefecha­
mento, o ensinamento dele de nada sirva, do ponto de vista da
existência.

A.B.: O ponto que me parece problemático na sua


pergunta é o de saber o que exatamente você entende por
existência. Durante o debate, falou-se da tensão que existe,
em Lacan, entre a ordem simbólica, de um lado, e o prin­
cípio da irredutibilidade subjetiva, de outro. Quando se
evoca essa questão, de que se fala senão da existência pro­
priamente? Além disso, de forma alguma concordo com
o que você disse: a linguagem de Lacan absolutamente se
apresenta fechada em si mesma. Muito pelo contrário, é
furada, repleta de pontos e de linhas de fuga. E como um
labirinto que inclui suas próprias portas de saída, suas
possibilidades de evasão. No que me concerne, nunca li
Lacan com essa sensação de fechamento. E menos ainda
se deve falar de sistema, com relação a ele. É um pen­
samento em camadas, em estratos com ordenação nada
sistêmica. Lacan põe em circulação e torna manuseável
— essa é a sua utilidade — toda uma série de noções ao
mesmo tempo complexas e singulares, ora dispersas ora

90
PENSAR A D ES OR DEM

conectadas. Quem lê está livre para tomá-las como tais


ou para uni-las. Tem liberdade de passar de um estrato a
outro. Lacan autorizou uma liberdade de uso em relação
ao que inventou. Élisabeth e eu mostramos as maneiras
como nos servimos do ensino dele. Lacan nos foi útil por
sua compreensão do ser, do sujeito, do que existe. E não
vejo diferença entre o pensamento do que existe e a exis­
tência. No fundo, sua pergunta tem com fundamento fi­
losófico uma oposição entre o pensamento (fechado, em
Lacan, pelo que sugeriu) e a existência. Tal oposição me
parece totalmente artificial.

Alguém na sala: Lacan fez a psicanálise freudiana evo­


luir. Vocês diriam que, desde que morreu, a psicanálisefran­
cesa continuou a progredir? Modernizou-se, no sentido nobre
do termo?

E.R.: Acho que a situação atual do movimento psi-


canalítico na França confirma o fim da exceção francesa.
Lacan encarnou essa exceção e, hoje, os psicanalistas —
não apenas os lacanianos — estão num momento difícil:
o do luto da figura de um mestre. A prática da psicaná­
lise não é mais a mesma de antigamente: tornou-se uma
profissão enquadrada por regulamentação e por cursos

91
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E

penosos. É preciso ter um diploma de psicologia para tra­


balhar como psicanalista nas instituições. E os psiquiatras
não se orientam mais pela psicanálise, pois a psiquiatria
passou a focalizar na biologia, dominada pelos tratamen­
tos químicos.
A escola francesa de psicanálise, misturadas todas as
tendências, se ajustou às regras e não tem mais grandes
especificidades a oferecer, em escala mundial. Está tomada
por lutas internas, e isso está longe de ser original. Em
Moscou, pelo contrário, a psicanálise está em expansão,
com dezenas de grupos diferentes. Em Buenos Aires, os
grupos são também bastante numerosos. No Brasil, é
ensinada nas universidades, em vez da psicologia. Além
disso, existem quatro grandes associações internacionais
que federam dezenas de associações. Mas faltam hoje em
dia a todas essas poderosas sociedades alma, engajamento
intelectual e político, uma paixão. Ou seja, faltam a es­
sas associações criatividade, espírito de aventura, pensa­
mento.
Tornando-se trabalhadores do psiquismo, os psicana­
listas deixaram de ser intelectuais: tornaram-se psicotera-
peutas, bons médicos do sofrimento psíquico. O drama
é que a psicanálise em lugar nenhum é considerada disci­
plina autônoma, como a antropologia, a história, as letras

92
PENSAR A D ES OR DE M

ou a filosofia. E como também não é uma ciência — no


sentido da biologia ou da física — , ela de certa maneira se
tornou um ramo da psicologia. Tudo se passa, então, como
se fosse uma disciplina privada, da qual os herdeiros dos
pais fundadores se sentem proprietários: os freudianos
acham que a obra de Freud pertence a eles, os kleinianos
que a de Melanie Klein é coisa deles e os lacanianos acredi­
tam ser donos da verdade e da palavra do mestre. Ou seja,
no espaço público e na Universidade, a psicanálise não
conseguiu identidade própria. Não é o caso de outras dis­
ciplinas, que não são — ou não mais — propriedade dos
fundadores. A sociologia não pertence a Émile Durkheim
nem a seus herdeiros. Ela se laicizou.
Estariam os psicanalistas destinados a se tornar psicó­
logos, técnicos da alma ou psicoterapeutas, isto é, sim­
ples clínicos desligados das pesquisas científicas? Estariam
destinados a substituir os psiquiatras, cuja disciplina está
em vias de se reintegrar à neurologia?
É claro que é possível se apoiar em Lacan, pensador
da desordem, para criticar essa transformação do movi­
mento psicanalítico e da “profissão” de psicanalista. A re­
valorização do pensamento psicanalítico não passa mais
exclusivamente pelos clínicos, mas também por trabalhos
externos ao campo clínico. Como podem, os clínicos, se

93
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE

formar com a ajuda de pesquisas criativas de alto nivel,


se forem obrigados, para o exercício da profissão em ins­
tituições de tratamento, a obter diplomas de psicologia,
ao mesmo tempo que seguem tratamento didático em
escolas de psicanálise?

A.B.: Juntando-me ao que disse Élisabeth, gostaria de


concluir com um apelo — por que não, afinal?
Nos últimos tempos, na França, vimos abundar ataques
violentíssimos e particularmente ineptos contra a psica­
nálise. Tais ataques representam um perigo generalizado
para a intelectualidade. Como se sabe, não é somente à
psicanálise que se visa. Marx também sofre fortes ataques,
comprometido que está, segundo nossos moralistas, com a
desumanidade do “totalitarismo”. Até Darwin vem sendo
lançado às gemônias pelos reacionários americanos. Paira
igualmente a tentação de se questionarem as descobertas
de Einstem. São ataques cuja ambição, tácita ou explí­
cita, é destruir as figuras da intelectualidade moderna,
substituindo-as por subprodutos técnicos, de uso rápido
e cômodo, acrescidos de tempero moralizador que serve a
todos os fins. Insisto ser necessário nos firmarmos contra
essa vontade de depreciação e de domesticação do pen­
samento, tanto político quanto científico e psicanalítico.

94
PENSAR A DESOR DE M

O perigo é real, extremamente sério. E, parafraseando um


dito bem conhecido de Clemenceau, não podemos deixar
a defesa da psicanálise nas mãos apenas dos psicanalistas.*
A luta tem que ser mais ampla.
É claro, os psicanalistas estão na linha de frente desse
combate pelo reconhecimento da disciplina e de sua prá­
tica. Mas a profissionalização mencionada por Elisabeth
constitui uma ameaça de autodomesticação. Não deve­
mos abandonar a psicanálise a esse destino funesto e,
nesse sentido, apoios externos são bem-vindos. Os ata­
ques contemporâneos contra a psicanálise, me parecem, é
verdade, ainda mais graves do que os que se fazem contra
o marxismo. No fundo, as polêmicas internas e externas
fazem parte do próprio marxismo. As contradições e os
antagonismos se sentem nelas como num elemento na­
tural. O marxismo pressupõe e implica brigas! O que se
passa hoje com a psicanálise é bem mais perigoso — é
alerta máximo. Afinal, querer erradicar Freud ou Lacan
é atacar a concepção moderna de sujeito. Caso seja abolida,

* Clemenceau foi primeiro-ministro da França, acumulando


também o Ministério da Guerra em 1917 (em plena Primeira
Guerra). Declarou que a guerra era importante demais para ficar
nas mãos dos militares. (N.T.)

95
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE

a porta estará aberta a ideologias reacionárias da pior


espécie.
Por isso, solenemente lanço o apelo: Ergam-se todos
em defesa da psicanálise... como puderem.

E.R.: Como não assinar embaixo deste apelo? E ainda


com mais veemência, por várias vezes ter constatado que
os psicanalistas defendem pouco ou mal a disciplina. Não
é uma provocação que estou lançando, mas uma simples
constatação. Eles têm muita dificuldade para analisar e
combater o antifreudismo primário e, em geral, se man­
têm “neutros” frente à diversidade, desdenhosos, seja por
esperarem dias melhores, seja por terem nostalgia do pas­
sado: “No meu tempo, era melhor.” Hoje, os ataques con­
tra Freud continuam tão desonestos quanto antigamente,
embora mais amplamente divulgados, graças à internet.
O contra-ataque é necessário e urgente. Concordo, preci­
samos nos mobilizar em defesa da psicanálise. E isso será
possível somente se unirmos nossas forças bem além do
círculo dos psicanalistas. Todos devem se sentir concerni­
dos: é uma questão da civilização.

96

Você também pode gostar