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ISSN 1981-1225

Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins

Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e


Punir*

The devices of power and the human body in


Vigilance and Punishment

Saly da Silva Wellausen


Doutora em Filosofia – FFLCH/USP
Correio eletrônico: sswellausen@uol.com.br

Resumo: O artigo examina as relações de poder com o corpo em Vigiar e Punir. Michel
Foucault propõe pensar o poder diferentemente das concepções correntes. Ele não
retoma a análise do poder como processo de totalização, centralização, mas como
transversalidade, isto é, como dispersão, constelação, multiplicidade, como microfísica,
uma vez que o poder está em todo lugar e em todas as coisas. A preocupação de
Foucault está mais voltada para a produção singular do sujeito do que para a questão
ontológica do poder, mostrando que o poder tem duplo aspecto: a parte visível
(instituições) e a invisível (o dispositivo), no interior do qual circulam novas
intensidades de poder, refletindo a paisagem mental de uma época, deixando de lado a
evidência do Estado como lugar do poder Foucault inaugura uma análise microscópica
do poder, investigando as técnicas minuciosas e detalhadas do poder sobre o corpo e
que se estende ao corpo social por inteiro, resultando na normalização dos sujeitos.

Palavras-chave: poder – microfísica – dispositivos – corpo – normalização.

Abstract: The article examines the relationships of power with the human body in
Vigilance and Punishment. Foucault considers the power differently from current
conceptions. He doesn’t take the power analysis as a complete or a central process,
*
Este texto faz parte de minha tese de doutorado A liberdade no pensamento de Michel Foucault, não
publicada.

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Saly da Silva Wellausen
Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

but as a transversal process, which is, dispersion, constellation, multiplicity –


microphysics -, so the power is in every place and in all things.
Foucault’s concern is more concentrated on singular subject’s production than on
ontologic question of power. The power has double aspect: the visible part (the
institutions) and the invisible one (the devices), in the latter circulates new intensities
of power, showing the mental view of one era. The conception of State must be
abandoned as a place of power. Foucault initiates a microscopical analysis of power, to
search detailed techniques of power over the human body and to extend it over the
social body as a whole, and it results in normalization of subjects.

Key-words: power – microphysics – devices – body – normalization.

Introdução

Michel Foucault inverteu a noção de “continuidade”, corrente nos anos


1960-1970, colocando no circuito do pensamento o conceito de
“descontinuidade”, que lhe valeu a atribuição de um relativismo
histórico. Trata-se da presença de um pensamento que precisa articular-
se contra o discurso filosófico corrente, isto é, contra o discurso
marxista e o sartriano.
O poder é pensado como uma questão dos aparelhos e instituições;
é o encontro de “relações”, “saberes” e “subjetividades”. O poder é uma
constelação que aparece em alguns lugares, apresentando caráter
múltiplo e dispersivo. As funções estratégicas do poder, investindo nos
corpos e vontades, fornecem elementos teóricos para uma análise do
saber. É por isso que o nascimento das ciências humanas deve ser
procurado nas relações de poder, que as tornaram possíveis. A
economia do poder corresponde a uma economia da verdade e aos seus
mecanismos de difusão e dominação.

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O estilo foucaultiano recusa o conceito clássico de poder


centralizador e localizado no Estado. O seu modo inverso de pensar, ao
demolir o conceito e as formas tradicionais do poder, gera efeitos de
opinião, levando muitos comentadores a pensarem num anarquismo. A
espacialização institucional vai produzir os personagens; os dispositivos
sociais são os lugares do poder, no interior dos quais os sujeitos se
tornam visíveis, como o negativo da ordem. A História da loucura e O
nascimento da clínica analisam, em diferentes épocas, os dispositivos do
poder produtores do sujeito ocidental, como o OUTRO - o louco, o
doente.
O poder não possui uma essência determinada, mas pode ser
definido como “constelação”. Rudimentos de uma política podem ser
encontrados, quando surge a preocupação em indicar as máquinas de
poderes, sua produção e os lugares onde se sente sua luz. Um dos alvos
de Foucault é o pensamento marxista, cuja idéia de poder está ligada à
de centralização do poder nas mãos da classe dominante. Como forma
diferente de pensar o poder, Foucault o define como dispersão,
localização em lugares particulares - o asilo e a prisão. Existem saídas
de poder que circulam no interior da sociedade, lugares, máquinas
produtoras de sujeitos, uma vez que o poder está em todo lugar e em
todas as coisas.
É preciso ressaltar que a preocupação de Foucault está mais voltada
para o caráter da produção singular do sujeito do que para a questão
ontológica do poder. O “dispositivo” resumirá a topografia da
problemática do poder. A evidência do Estado, como lugar do poder,
tende a desaparecer nas investigações foucaultianas, porque o poder
como multiplicidade apresenta caráter regional. A cartografia de uma

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época é descrita como disseminação, através das máquinas de poder,


nas quais o Estado perde sua substância para uma realidade visível no
campo social. O poder instala-se na horizontalidade do sujeito
individualizado, modelando seu corpo até à passividade.

Analítica do poder

A analítica do poder realiza um duplo movimento: primeiro destitui do


Estado o papel de sede do poder; depois, inaugura-lhe um novo lugar.
Contra a centralização do poder na forma de Estado, é apresentada uma
nova rematerialização - seu lugar, sua particularidade tem um caráter
secundário e subalterno, e pode ser visto no asilo, na clínica, na prisão.
O poder não é assimilável a instituições, porque não existe mais um
centro material. Trata-se mais de relações entre indivíduos e classes,
indivíduos e instituições, polícia e prisão. As instituições são lugares de
intensificação das relações de poder. Embora o poder seja localizável
nas máquinas de poder, ele não se reduz a elas.
Foucault fala do duplo aspecto do poder: a parte visível e a
invisível. A visibilidade do poder são as instituições, as disposições das
máquinas, como formas terminais. O “dispositivo” é aquilo que fica
invisível no interior do qual circulam novas intensidades de poder,
refletindo a paisagem mental de uma época. O poder é o segundo bloco
da obra de Foucault. Vigiar e punir é um livro “pleno de alegria, de júbilo
que se confunde com o esplendor do estilo e a política do conteúdo”
(Deleuze, 1986: 31). Descreve a comédia das punições, as invenções
perversas, os discursos cínicos e os horrores minuciosos. O grande
suplício de Damien e os esforços fracassados de seus carrascos para
executá-lo, a cidade pestificada e seus horrores, presos acorrentados

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desfilando pela cidade são exemplos de uma violência clássica em sua


forma mais extrema. Mais tarde, a nova máquina isolante - a prisão e o
confinamento celular - testemunha outra forma de punir. As análises do
poder são microscópicas, os quadros cada vez mais físicos, exprimindo
“efeitos”, que não visam a estabelecer uma relação de causa-efeito, mas
mostrar que essa microfísica do poder investe no corpo.
Desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de
poder, que pode ser manipulado, modelado, treinado, que responde e
obedece, tornando-se dócil e hábil à medida que suas forças se
multiplicam. O século XVII descobriu, não só a dimensão metafísica do
corpo, como também o conjunto de técnicas e processos empíricos que
controlam suas operações, centralizando na noção de “docilidade” toda
uma teoria do adestramento. A Idade Clássica instrumentalizou a
tortura física utilizada pelo poder real na objetivação do criminoso,
produzindo um duplo efeito: primeiro, inspirar medo e respeito pelo
poder; depois, incitar a revolta da multidão. O século XVII inaugurou
novos métodos de controle minucioso do corpo, através de uma coerção
ininterrupta, velando mais sobre os processos de atividades que sobre
seus resultados, esquadrinhando ao máximo o tempo, o espaço, os
movimentos. Os métodos disciplinares foram se tornando fórmulas
gerais de dominação. Uma “anatomia do poder” define o poder que se
pode ter sobre o corpo, aumentando “as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminuindo essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência), (...) a coerção disciplinar estabelece no corpo o
elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada” (Foucault, 1987: 127). Foucault assinala a inauguração de
uma análise microscópica do poder, investindo nas técnicas minuciosas

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Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

e detalhadas sobre o corpo e que se estende ao corpo social por inteiro.


Foucault não retoma a análise do poder como processo de totalização,
centralização, mas como transversalidade, sugerindo o abandono de
certo número de postulados que marcaram a posição tradicional da
esquerda: propriedade, localização, subordinação, essência ou atributo,
modalidade, legalidade.
O postulado da “propriedade” declara que o poder pertence à classe
que o conquistou. O poder é menos uma propriedade que uma
estratégia, cujos efeitos não devem ser atribuídos a uma apropriação,
aplicando-se mais a disposições, manobras, táticas, técnicas,
funcionamentos. O poder não pode ser o privilégio adquirido ou
conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas
posições estratégicas. Essa nova análise funcional não anula a existência
das classes e suas lutas, mas as distribuem num outro quadro, com
outras paisagens, outros personagens, outros procedimentos, diferentes
daqueles assinalados na história tradicional. O poder não possui
homogeneidade, definindo-se pelos pontos singulares por onde passa.
Pelo postulado da “localização”, o poder circunscrever-se-ia no
Estado, no interior de seus aparelhos, no qual os poderes privados
seriam ainda aparelhos especiais. Para Foucault, o Estado aparece como
efeito de conjunto, multiplicidade de centros que se situam em níveis
bem diferentes. Uma das idéias de Vigiar e punir afirma que as
sociedades modernas podem ser definidas como sociedades
disciplinares. Elas não podem ser identificadas com uma instituição ou
aparelho, porque as sociedades disciplinares são um tipo de poder que
atravessa todos os aparelhos e instituições, para ligá-los, prolongá-los,
convergi-los de um novo modo. A polícia se organiza sob a forma
específica de um aparelho de Estado, encarregando-se da manutenção

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da disciplina no espaço efêmero de um campo social, tornando-se


independente dos aparelhos jurídico e político. A prisão não teve sua
origem nas estruturas jurídico-políticas de uma sociedade, não
dependeu de uma evolução do direito penal; enquanto geradora da
punição, a prisão dispõe de uma autonomia necessária, de um
suplemento disciplinar, que excede um aparelho de Estado. A visão
funcionalista do poder postula um poder fora do Estado.
O postulado da “subordinação” encarnaria o poder no aparelho de
Estado e seria subordinado a um modo de produção, como uma infra-
estrutura. Pode-se estabelecer uma relação entre os grandes regimes
punitivos e sistemas de produção: os mecanismos disciplinares não
estão separados da explosão demográfica do século XVIII; o
crescimento de uma produção, que procura aumentar seu rendimento e
compor as forças extraindo dos corpos toda força útil, não legitima
remeter a uma determinação econômica em última instância - a oficina
ou a fábrica pressupõem estes mecanismos de poder agindo no interior
do campo econômico sobre as forças produtivas e as relações de
produção. As relações de poder não se encontram numa relação de
exterioridade com essas forças produtivas, e nem se situam na
superestrutura. Estão presentes no mesmo espaço em que se exerce a
produção. Para a microanálise funcional foucaultiana, o poder tem o
caráter de imanência, sem a unificação transcendente do pensamento
marxista.
Pelo postulado da “essência” ou do “atributo”, o poder teria uma
essência ou seria um atributo, quantificando aqueles que o possuem
como dominantes, e distinguindo-os daqueles sobre os quais o poder se
exerce, isto é, os dominados. O poder não tem uma essência, porque é

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um conceito operatório; não é atributo, trata-se mais de uma relação,


um conjunto de forças, que passa tanto pelas forças dominantes como
pelas dominadas, constituindo singularidades. Um caso típico são as
“lettres de cachet”. Foucault realizou um estudo nos arquivos da
Bastille, junto com a historiadora Arlette Farge, quando foram
analisados 93 autos de pedido de confinamento, no século XVIII:
memórias e súplicas, certificados de cura e testemunho dos vizinhos,
atestados diversos e depoimentos policiais constituem a massa
documental, atestando uma brutalidade despótica que revela uma
imagem bem diferente daquela veiculada pelos romances e manuais do
Antigo Regime. As “lettres de cachet” deixam aparecer o pequeno e
grande drama das famílias, enfim todos os conflitos da intimidade:
numa noite, em 1727, o jovem Vincent Bérard assalta a casa paterna,
com chaves falsas e age com requintes de crueldade; num dia em 1728,
a mulher de Duchesne tenta cortar o pescoço de seu marido. Os
familiares faziam pedidos de reclusão do indivíduo perturbador à
autoridade real. Era uma moral dos casais, uma ética no interior da
família. Farge analisa as noções de privado e público, enquanto Foucault
procura encontrar mecanismos de poder, cujo modelo não é um
aparelho de Estado, pois o que está em jogo é o entrelaçar de interesses
e táticas. Ele quer mostrar um poder menos opressivo e mais incitativo,
porque a intervenção do poder público na vida privada transforma os
agentes particulares em públicos, instigando-os a confessar seus
segredos mais íntimos. Pode-se ler nos arquivos da Bastille o
nascimento de nosso sistema correcional - a reclusão determinada pela
ordem do rei torna-se educativa, procurando menos estigmatizar os
maus indivíduos através do castigo físico, e mais conduzi-los ao
arrependimento pela privação da liberdade. O interesse de Foucault

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prende-se menos à análise dos comportamentos e mais à história do


pensamento. As “lettres de cachet” mostram que a arbitrariedade do rei
não decorre de um atributo de seu poder transcendente, mas brota da
solicitação dos mais humildes (parentes, vizinhos, colegas) que desejam
o afastamento e a reclusão do elemento perturbador, em suma, o apelo
ao monarca absoluto é a saída para resolver os conflitos familiares,
conjugais ou profissionais. Entre as razões invocadas para o
internamento estão: desordem, devassidão, embriaguez,
vagabundagem, violência dos pais para com os filhos, loucura. Os
arquivos mostram que a coisa pública identifica-se com a ordem familiar
e a família torna-se assunto público. Essa privação da liberdade
estabelece uma relação mais próxima do rei com a gente humilde pela
confissão de um segredo (Foucault, 1982: 83).
Pelo postulado da “modalidade”, o poder agiria por violência ou
ideologia. Foucault afirma que um poder não opera pela ideologia,
mesmo quando se dirige às almas, e nem se exerce necessariamente
pela violência e repressão, mesmo quando recai sobre o corpo. A
violência exprime o efeito de uma força sobre qualquer coisa, objeto ou
ser; para Foucault, as relações de poder são relações de força com outra
força, ou uma ação sobre outra ação. Uma relação de forças é uma
função do tipo “incitar, suscitar, combinar”; nas sociedades disciplinares,
a função é “repartir, seriar, compor, normalizar”. O poder produz o real
antes de reprimir, o verdadeiro antes de ideologizar, abstrair. A
repressão e a ideologia nada explicam, mas supõem um agenciamento
ou “dispositivo” no interior do qual podem operar; elas não constituem o
combate das forças, são apenas “a poeira levantada pelo combate”. A
sociedade disciplinar utiliza técnicas que são simplesmente denominadas

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Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

“disciplina”. A disciplina é uma anatomia política do “detalhe”, é


dispositivo tático de poder, sustentado por uma racionalidade econômica
ou técnica. A disciplina torna-se arte e técnica de compor forças para
obter um aparelho eficiente, no interior do qual o “corpo se constitui
como peça de uma máquina multisegmentar” (Foucault, 1987:148).
Para Foucault, a tática é a forma mais elevada da prática
disciplinar; é “saber” que fundamenta a prática militar no século XVIII,
desde o controle e o exercício dos corpos individuais, até à utilização de
forças mais complexas - é a própria ciência da guerra. Contudo, é
possível que a guerra, como estratégia, seja a continuação da política. A
política, pensada como modelo militar, apóia-se tanto em táticas como
em estratégias: por um lado, o exército-política representa a massa
disciplinada, dócil e útil que garante a paz e a ordem civil, pela disciplina
tática que controla os corpos e as forças individuais, por meio de uma
técnica e de um saber. Por outro lado, a guerra-política representa a
força real e efetiva, no jogo das forças estratégicas entre os Estados. A
ciência militar, para manejar a espada vitoriosa, deve começar pela
coerção individual e coletiva dos corpos. Mais tarde, A vontade de saber
desenvolverá as noções de tática e estratégia, imbricando-as numa
imanência entre saber e poder.
Pelo postulado da “legalidade”, o poder do Estado expressar-se-ia
na lei sendo esta conhecida, ora como um estado de paz imposto às
forças brutas, ora como resultado de uma guerra ou luta ganha pelos
mais fortes. Nos dois casos, a lei é definida pelo término imposto ou
voluntário de uma guerra, e se opõe à ilegalidade que passa a ser
sinônimo de exclusão. Os revolucionários não podem sequer reclamar de
uma outra legalidade que passaria pela conquista do poder e pela
instauração de um outro aparelho de Estado. Foucault substitui a

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oposição lei-ilegalidade por ilegalismos-lei. A lei é sempre uma


composição de ilegalismos que ela diferencia, formalizando-os. A lei é
uma gestão de ilegalismos: alguns, que ela permite, tornam possível o
privilégio da classe dominante; outros, que ela tolera, permitem a
compensação das classes dominadas; e outros mais, que ela interdita e
isola, são tomados como objeto de dominação. No século XVIII, as
mudanças da lei têm no fundo uma nova distribuição de ilegalismos.
Não só porque as infrações tendem a mudar de natureza, portando mais
e mais sobre a propriedade que sobre as pessoas, isto, porque os
poderes disciplinares recortam e formalizam de outra maneira essas
infrações, delineando uma forma original chamada “delinqüência”, e
permitindo um novo controle de ilegalismos. O ilegalismo não é um
acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. A lei não foi feita
para impedir comportamentos inadequados, mas para diferenciá-los
através de sua própria aplicação. A delinqüência é produzida pelo
dispositivo disciplinar da prisão, compreendendo um sistema complexo,
no interior do qual se pode destacar quatro termos: 1) o suplemento
disciplinar da prisão; 2) a produção de uma objetividade, de uma
técnica, de uma racionalidade penitenciária como elemento desse saber;
3) a recondução efetiva de uma criminalidade que a prisão deveria
destruir, mas não o fez; 4) a repetição de uma reforma que é isomorfa
ao funcionamento disciplinar da prisão. O sistema carcerário é um
complexo onde se encontram discursos, arquiteturas, regulamentos
coercitivos, proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias,
programas para corrigir a delinqüência e mecanismos que, por outro
lado, a solidificam. O objetivo mais geral do sistema carcerário estaria,
aparentemente, condenado ao fracasso, porque não conseguiria a

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recuperação do delinqüente, reconciliando-o com a sua “humanidade”


desviada. Foucault afirma que a instituição-prisão, nos anos 1960,
resistiu tanto tempo no imobilismo, porque exercia funções precisas no
interior do corpo social, com a mesma maquinaria do panóptico de um
século atrás.
A penalidade, ou o poder de punir, simplesmente não reprime as
ilegalidades. Se a distribuição e aplicação da justiça privilegiam os
interesses de uma classe, não é porque o ato de punir pertença à classe
dominante como o lugar localizado de um aparelho jurídico-policial;
trata-se mais de dispositivos que gestionam os mecanismos de
dominação. As ilegalidades são mantidas e reproduzidas pelo sistema
penal; a lei e a justiça estabelecem a dessimetria de classes, produzindo
a delinqüência como uma forma nociva de ilegalidade, e o delinqüente,
como sujeito patologizado. A discussão sobre o fracasso da prisão - por
outro lado, sua manutenção resistindo tanto tempo na imobilidade -
encontra sua explicação na hipótese que afirma que a instituição-prisão
produziu a delinqüência, como forma economicamente menos perigosa
de ilegalidade. A delinqüência pode ser controlada, vigiada, localizada,
concentrada, isolada em relação a outras ilegalidades pela classe
dominante, tornando-se também um agente útil para os desvios ilícitos
dessa mesma classe, porque “a vigilância policial fornece à prisão os
infratores que esta transforma em delinqüentes, alvo e auxiliares dos
controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta para
a prisão” (Foucault, 1987: 248). O controle da delinqüência é feito
através de táticas empregadas pelo sistema polícia-prisão, que visam
mais a diferenciar as ilegalidades do que a regenerar os delinqüentes:
táticas de controle através de um sistema de documentação,
fichamento, estatísticas, registros utilizados pelo poder, a partir dos

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quais a delinqüência é transformada em discurso. Dentro desse saber,


os noticiários policiais, as literaturas de crimes ganham o espaço
público, atribuindo à delinqüência uma existência distante, embora
ameaçadora à vida cotidiana. Esse jogo de táticas e discursos produziu
múltiplos efeitos: hostilidade junto às camadas populares, análise
política da criminalidade com o deslocamento da origem da delinqüência
para a sociedade.
Nessa polêmica antipenal, uma teoria política teria surgido,
atribuindo ao crime uma valorização positiva, à medida que é efeito da
“civilização”, constituindo o crime o lado selvagem da sociedade. Neste
sentido, o crime é uma arma contra esse estado mais adiantado da
sociedade, impondo-se como força viva, vigor e futuro. Para Foucault,
“não há natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a
que pertençam os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão”.
Deve-se ver, no crime, mais que uma fraqueza ou uma doença, uma
energia que se ergue, um poder de agir que desafia todos os poderes
constituídos. O discurso da delinqüência traz à luz as estratégias e os
jogos de força que se opõem reciprocamente, a batalha que se trava
entre a rebeldia do delinqüente e os dispositivos disciplinares de
controle. Contra a teoria de uma natureza humana, da qual o
delinqüente se teria desviado e que seria preciso resgatá-lo, Foucault
afirma a existência de uma microfísica do poder distribuídas em
estratégias, em que forças opositoras se defrontam constante e
reciprocamente. Para Foucault, a lei é menos um estado de paz que o
resultado de uma guerra vitoriosa: a lei é a guerra mesma, a estratégia
dessa guerra em ato, da mesma forma que o poder não é uma
propriedade adquirida pela classe dominante, mas o exercício atual de

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sua estratégia. Foucault propõe não só repensar certas noções clássicas,


mas estabelecer novas coordenadas para a prática: pensar a guerra,
com suas táticas locais e suas estratégias de conjunto que não
procedem pela totalização, mas pela transversalidade. Seu interesse é
estudar os conflitos, as oposições, as irredutibilidades entre o
funcionamento do direito e a tecnologia do poder. Em 1981, Foucault
reafirma seu interesse pelo estudo da guerra: “E, se Deus me der vida,
após a loucura, a doença, o crime, a sexualidade, a última coisa que eu
desejaria estudar seria o problema da guerra e da instituição da guerra
no que se poderia chamar a dimensão militar da sociedade (...) o que
faz com que uma nação possa pedir a qualquer um para morrer por ela”
(Foucault, 1981:14).
Vigiar e punir representa uma nova evolução no pensamento de
Foucault, um novo deslocamento, passando do eixo do saber para o de
novas práticas. Quando o livro surgiu, em 1975, Foucault mostrou que
era possível pensar diferentemente, inverter nossas evidências, nossos
olhares tradicionais, para construir uma nova maneira de pensar o
poder, de analisar a progressiva liberalização do direito penal, no final
do século XVIII - o direito penal transformar-se-á numa multiplicidade
de procedimentos escravizantes, capazes de transformar delinqüentes e
seus perseguidores em atores sociais do mesmo tipo, atravessados por
dispositivos de saber e de poder. O livro é um relato violento, porque o
convite provocador de Foucault traz uma dificuldade inerente ao próprio
ato de interrogar às avessas: a violência, como um fato bruto, desafia
nosso saber e nossa capacidade de transformar esse real. A violência
não é só o tema escolhido, ela é constitutiva da interioridade e da
arquitetura do texto. É a passagem do inumano para o humano, quando
se pode ler que “a suavidade das penas (...) se inscreve numa

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racionalidade que tem por nome humanidade e por meio uma infinidade
de procedimentos que brota do inumano” (Farge, 1992:182). Do suplício
à prisão modelo, o itinerário descrito não recupera a reconciliação com a
humanidade, ao contrário, permanecem as espoliações.
No Antigo Regime, a violência assume uma luta entre o soberano e
o culpado: sobre o corpo do criminoso se expõe a violência soberana do
soberano. O abrandamento e a humanização das penas, a passagem da
justiça arbitrária do Antigo Regime a um contratualismo (no qual toda
pena é proporcional ao delito cometido etc.) forma a superfície
macroscópica de um processo microscópio, constituído das tecnologias
do corpo, de um poder-saber. Essa nova arte de punir instaurou uma
nova representação jurídica: pelo respeito à “humanização” do
criminoso, e por essa mesma razão, este adquire o direito à
reintegração social. O criminoso torna-se sujeito jurídico objetivado,
subjugado. Foucault vai mostrar que essa relação Rei-súdito não se
restringe mais aos corpos singulares, a suavidade das penas e a punição
generalizada estendem seus efeitos ao conjunto do espaço social. Uma
mutação desloca o alvo do crime, antes centrado na figura do Rei, para
a sociedade inteira, que se sente atingida pela ofensa recebida. A
dimensão da falta e a responsabilidade moral do súdito remetem-se não
mais à soberania real, mas ao espaço público.
Em Vigiar e punir nosso filósofo utiliza um vocabulário que traduz
um estilo violento e que pode se dar em dois registros diferentes: o
primeiro é suntuoso, poético, fascinante, encantador, ao usar termos
fortes, como “atrocidade”, “abominável”, “terror”, “pavor”, mostrando o
sofrimento mais despojado a desdobrar-se aos nossos olhos; o outro, às
vezes utilizado ao mesmo tempo com o primeiro, é mais interpretativo,

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quando são empregados termos técnicos, como “dispositivo”, “princípios


de racionalidade”, “sistemas”, “formas de enunciação”. É nesse jogo
organizado entre esses dois níveis de enunciados que o texto se
estrutura com força, provocando “uma tensão entre o discurso dos
sentidos e o da elucidação, entre o discurso do corpo e aquele sobre o
corpo” (Farge, 1992: 184). Foucault serve-se dos detalhes, das
minúcias mais ínfimas, do insignificante que se oculta sob os discursos e
os signos. É nesse relato que se aloja a ruptura violenta de seu estilo
com relação às interpretações históricas ou tradicionais. A violência que
fascina, com a qual Foucault descreve os suplícios, os castigos, os
incessantes tormentos do corpo castigado, mantém uma relação sutil
com a sensibilidade e a inteligência que ele manifesta ao falar do
homem simples, do último dos condenados. O poder instala-se na
horizontalidade do sujeito individualizado, modelando seu corpo até à
passividade.
Em Vigiar e punir aparece o estudo sistemático das práticas da
norma. Georges Canguilhem define o conceito moderno de “norma”,
como sendo o nome latino que traduz esquadro, e, “normalis” significa
perpendicular (Ewald, 1992:201). O termo será retomado,
metaforicamente, para designar a regra de direito. No início do século
XIX, ocorre uma transformação nas relações entre a regra e a norma.
Norma “não será mais um outro nome para regra, mas vai designar às
vezes certo tipo de regras, uma maneira de produzir um princípio de
valorização” (Ewald, 1992: 202). A norma designa sempre uma medida
que serve para avaliar o que está conforme a regra e o que a distingue;
não está mais ligada à idéia de retidão, esquadro, mas de “mediana” - a
norma torna-se agora o parâmetro para opor normal/anormal,
normal/patológico; o vocabulário se estende aos conceitos

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Dossiê Foucault
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Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins

“normalidade”, “normativo”, “normalização”, atravessando uma


multiplicidade de domínios técnicos e econômicos, assim, o conjunto das
ciências morais, jurídicas e políticas, a partir do fim do século XIX, vão
se refletir como ciências normativas.
Vigiar e punir define as disciplinas como “poder da norma”,
desempenhando uma das principais tecnologias de poder das sociedades
modernas. A difusão da sociedade disciplinar tem operado segundo três
grandes modalidades: 1) inversão funcional das disciplinas, ocorrendo a
passagem da disciplina compacta, voltada para funções negativas e
mecânicas; 2) proliferação dos mecanismos disciplinares; enquanto os
estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm a
tendência de se desinstitucionalizar, sair das fronteiras fechadas onde
funcionam e circulam em estado livre; toda instituição torna-se
suscetível de utilizar o esquema disciplinar, não se dirigido somente aos
que ela pune, mas pondo-se ao serviço do bem de todos, de toda
produção socialmente útil; 3) estatização dos mecanismos de disciplina,
funcionando através de uma polícia centralizada, com a missão de uma
vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo
visível. A generalização do esquema e das técnicas disciplinares tornou
possível a prisão, assim como as escolas, fábricas, casernas, hospitais.
Com isso, Foucault não quer dizer que a sociedade disciplinar seja uma
sociedade generalizada de confinamento; ao contrário, sua difusão,
longe de cindir ou compartimentar, homogeneíza o espaço social. O
importante na idéia de sociedade disciplinar é a própria idéia de
sociedade: as disciplinas fazem a sociedade, criam uma linguagem
comum entre as instituições. A prisão pretende reeducar o criminoso e
encontrar o seu fim na socialização do delinqüente.

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Saly da Silva Wellausen
Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

O tema das práticas disciplinares sugere, tradicionalmente, a


imagem da esterilização da vida. Os procedimentos de dominação
interditam, bloqueiam as iniciativas e as forças do corpo. Foucault
retoma essa tese e a inverte, mostrando que as disciplinas não são
negativas, mas “positivas”: o corpo não é passivo, ao contrário, é ativo.
É preciso dimensionar a criação “disciplinar” de potências corporais e de
atitudes, para isso, torna-se necessário que as práticas disciplinares,
para serem eficazes, sejam invisíveis. Uma figura que parece simbolizar
a encenação do corpo, em Vigiar e punir, é a de uma árvore amarrada a
uma estaca por uma pesada corda. Essa imagem ocupa o centro da
gravura número 30, denominada “A Ortopedia ou a Arte de Prevenir e
Corrigir, nas Crianças, as Deformidades do Corpo”. Um nó ajustado para
delinear e configurar o crescimento retilíneo da árvore, corrigir direções
não desejadas ou erros possíveis de crescimento, impõe a regra. Desde
1749, essa figura-símbolo tem uma função: alertar quando o corpo é
forçado a suportar penas físicas, para aceder às normas e obedecer às
exigências de um poder onipresente, penetrante e difuso. A série de
gravuras colocadas no início do livro confirma a imagem: reclusões,
filas, revistas militares, máquinas a vapor para a rápida correção de
meninos e meninas impõem a direção e a forma dos movimentos
(Vigarello, 1992: 196). O corpo normalizado é um corpo corrigido. A
mão invisível do poder guia todo deslocamento, corrige todo gesto,
como a corda que direciona o crescimento da árvore. Os entraves, para
essa ortopedia corporal, são feitos de materiais resistentes, obstáculos
físicos, dispositivos solidificados: muros, tabiques, aparelhos que
esquadrinham o espaço, empecilhos que bloqueiam a espontaneidade. O
corpo, nesse contexto, é passivo, suportando a orientação que o
modela. A disciplina fabrica corpos submissos, dando uma regularidade

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ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
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e homogeneidade comum no detalhe e nas minúcias. A imagem-símbolo


da árvore “corrigida” desempenha um papel condensado, porque tem a
força de produzir a docilidade. A disciplina não pode ser exercida sem
uma cumplicidade com o ativo, o orgânico. O corpo, preparado para a
docilidade, opõe-se ao poder e mostra as condições de funcionamento
próprias a um organismo. A docilidade só poderá ser obtida, se for dada
uma atenção especial às forças e às operações específicas do corpo; não
se pode circunscrever o adestramento dócil apenas a um dispositivo
mecânico e passivo.
Mais uma vez, Foucault inverte a ótica que analisa negativamente o
poder; é preciso abandonar o uso de expressões que indiquem exclusão
- “reprimir”, “recalcar”, “censurar”, “ocultar”; é preciso inverter as
tonalidades, passar do mecânico ao orgânico, do negativo ao positivo. O
corpo dócil torna-se hábil, eficaz, rentável, porque constrói, realiza. Uma
potência do corpo existe nessa “economia positiva”, onde coação não é
mais sujeição.
Poder-se-ia esperar desse corpo uma autonomia? A disciplina -
sublinhando e instalando uma individualidade corporal - dar-lhe-ia
forças independentes? Engendrar-se-ia um corpo mais eficaz,
aumentando seu dinamismo? Uma apropriação pessoal de vigores,
habilidades, densidades sensíveis brotaria de coações interiorizadas?
Para responder a essas questões, certos termos, do texto Vigiar e punir,
poderiam sugerir a existência de um corpo que, escapando das
disciplinas, voltar-se-ia contra elas. Poder-se-ia pensar no caso da
indisciplina, da ilegalidade delinqüente, como “liberdade nata e
imediata”, como jogo de forças, tensão entre relações de forças que se
opõem, defrontando-se reciprocamente - na revolta (voltar outra vez)

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Saly da Silva Wellausen
Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

daquele que foi oprimido, na força “selvagem” que entra em luta com as
forças “civilizadoras” (Foucault, 1987: 255). São estratégias que se
atualizam nos discursos, nas táticas. É preciso lembrar, mais uma vez
que, para Foucault, não existe uma natureza humana da qual o
indivíduo delinqüente tivesse se separado; a delinqüência não seria um
desvio a ser resgatado pelas leis e pela ortopedia punitiva dos aparelhos
disciplinares. Essa liberdade, manifestante de uma indisciplina ou
delinqüência e pertencente a uma individualidade corporal, é ainda de
ordem política - liberdade como autonomia e “resistência” a um poder
dominador - e que mais se poderia chamar de “liberação”.
Vigiar e punir é o relato das formas que produziram o indivíduo,
tornado normalizado por um poder maior que ele. Ainda estamos no
espaço da violência, do jogo de forças, das estratégias, no qual o poder,
disseminado nas múltiplas formas institucionais, afirma-se através de
dispositivos disciplinares, produzindo sujeitos “sujeitados” na história da
modernidade. É preciso esperar o aparecimento da tríade História de
sexualidade e os cursos do Collège de France para ver resplandecer a
liberdade, não mais como fenômeno de resistência a um poder
modelador e produtor de individualidades, mas “liberdade”, como
coragem no ato mesmo do dizer verdadeiro, do sujeito ético ligado à
sua própria identidade pelo “cuidado de si”. As referências ao sujeito
“resistente” em Vigiar apresentam-se como oposição à sujeição, à lei, à
sociedade, à linguagem, à ordem, à família, à educação. Aqui, a
liberdade - definida como desenvolvimento selvagem, natural e
instintivo, brutal e limitado - guarda todas as características que a
separam dos atributos das forças da civilização. Permanece, portanto, a
dicotomia civilização/selvagem, marcando a separação e a exclusão
dessa liberdade anti-social que precisa ser normalizada, para ser

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enquadrada, dominada em seus impulsos mais instintivos e


destruidores. A liberdade, como forma de reação, rebeldia, indisciplina e
luta, é ainda resistência aos aparelhos de poder, permanecendo na
esfera das táticas e estratégias do poder político. A história do presente
e de nossa identidade foi formulada como relação saber-poder na
sociedade ocidental, produzindo o sujeito objetivado, ainda dentro da
esfera das relações políticas, no eixo do poder.
A questão da resistência, transgressão e revolta não é objeto de
Vigiar e punir; sua finalidade não é avaliar as possibilidades de revolta
ou de autonomia, nem procurar nenhuma força interior oculta na
vertente mais pessoal do corpo. O que importa é mostrar a onipresença
“invisível” das práticas disciplinares. A tática disciplinar age sobre o
corpo, para estabelecer com ele uma ligação coatora, entre uma aptidão
desenvolvida e uma dominação aumentada, provocando uma imediata
contrapartida: a servidão. As práticas disciplinares não tocam o corpo,
como a corda e a estaca que sustentam a árvore da imagem-símbolo;
elas se distanciam, mais do que se aproximam; distinguem-se, mais do
que se misturam. A tática disciplinar do “panóptico” é a repartição, a
homogeneização dos corpos, acompanhados pela constante
permanência do “olhar”. O poder, tornando-se “incorporal”, é o mais
violento, porque suas figuras orientam sem tocar e sem entrar em
contato direto com o corpo; seu procedimento coloca em prática a
“interiorização” de suas normas e regras. O “incorporal” está no centro
dos procedimentos disciplinares, como exigência e fim. A vigilância e a
punição não pretendem outra coisa que uma “realidade sem corpo”, que
é uma história da alma moderna (Vigarello, 1992: 200).

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Saly da Silva Wellausen
Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”

Vigiar e punir desmistificou a filosofia das Luzes, opondo, ao


pensamento reformador do século XVIII e à humanização aparente dos
castigos, uma economia do poder de punir e o jogo complexo e múltiplo
dos poderes; deixando também, na franja de um questionamento
político sobre a prisão, a preocupação atual do grande avanço dos
dispositivos de normalização com toda a extensão dos efeitos de poder,
na produção de novas objetividades. A grande rede carcerária foi o
modelo para a difusão do normativo para a sociedade inteira. O
processo de individualização é produto do adestramento, da
universalidade da norma, da observação vigilante do panoptismo.
Saber-poder são as duas faces de um mesmo processo que produz o
sujeito normalizado, não só na rede carcerária, como na arte de educar
ou curar, na empresa, fábrica, exército, onde a técnica do “exame”
molda o indivíduo que se torna “objeto” de um conhecimento possível,
ocorrendo intensificação de dispositivos de normalização e necessidade
de novas regras estratégicas:

Nessa humanidade de complexas relações de poder, corpos e forças


submetidos por múltiplos dispositivos de ‘encarceramento’, objetos
para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia,
temos que ouvir o ronco surdo da batalha (Foucault, 1987: 269).

Bibliografia

DELEUZE, G. Foucault. 1986. Paris, Minuit.


EWALD, F. Michel Foucault et la norme. In: Michel Foucault. Lire
L’oeuvre. 1992. Grenoble, Jérôme Millon.
FARGE, A. Un récit violent. In: Michel Foucault. Lire L’oeuvre. 1992.
Grenoble, Jérôme Millon.

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Dossiê Foucault
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FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 1987. Petrópolis,


Vozes.
FOUCAULT, M. 1982. L’âge d’or des lettres de cachet. In: L’EXPRESS. nº
1638, 26 novembre – 3 décembre.
FOUCAULT, M. Entretien avec André Berten. 1981. Université Catholique
de Louvain.
VIGARELLO, G. Mécanique, corps, incorporel. In: Michel Foucault. Lire
L’oeuvre. 1992. Grenoble, Jérôme Millon.
WELLAUSEN, S. S. 1993. A liberdade no pensamento de Michel Foucault.
Tese de Doutorado em Filosofia, FFLCH –USP, São Paulo.

Recebido em dezembro/2006.
Aprovado em fevereiro/2007.

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