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O MÍSTICO

AUTOR - Ieso Nascimento


CATEGORIA: Romance histórico ocultista

SINOPSE
No início do século XX, um misterioso homem chega a São Peterburgo, Rússia, para iniciar um
jovem entusiasta nos mistérios de uma antiga Irmandade, num período conturbado daquele país.
Uma revolução ronda os ares, assim como um conflito a nível mundial. Em meio a tudo isso ele
encontra uma mulher com quem passa a se relacionar. No auge da guerra civil eles fogem para a
Alemanha, que não demora a viver momentos agitados com o nascimento do nazismo e todas as
consequências.
Em meio a um mundo em conflito, numa leitura clara e fascinante, mesclando história com
ficção, leva o leitor a paragens jamais imaginadas dentro do mundo do ocultismo; o neófito em
busca da Luz, as provas iniciáticas, as lições do mestre. A força, a determinação, tudo para alcançar
os mais elevados segredos que a antiga ordem mantém velado, digno somente ao ser intrépido e
determinado a alcançar a Luz.

NÁPOLES, ITÁLIA, INÍCIO DO SECULO XX


A beira de uma bela baía e suas belíssimas praias, com o mar de um azul que se mistura com a cor
do céu no horizonte, tem o Vesúvio, as ilhas de Capri, Ischia e Procida, e a frente Pompéia e Herculano,
sombreadas pela montanha que abriga o vulcão há muito adormecido, que no passado as destruiu,
deixando as mais belas ruínas da Itália. Não muito distante ha um pequeno povoado, local preferido pelos
turistas estrangeiros, pelo sossego do lugar, a hospitalidade, a comida e o bom vinho.
Ele regressava de uma excursão ao Vesúvio, se dirigindo a Nápoles em direção ao bairro mais
animado, pois a tarde era agradável e o lugar tinha a fama de servir boa comida, regada por excelentes
vinhos caseiros com uvas da região. Era o bairro mais napolitano, onde a vida moderna se assemelhava à
antiga, com feiras pelas ruas, a gritaria dos vendedores oferecendo os seus produtos. Convidativo para um
viajante que estivesse excursionando pela região, diferente do agitado centro da cidade repleta de turistas,
além dos nativos que aproveitavam aquele período quente do verão.
Escolheu uma cantina que estava com a maioria das mesas distribuídas ao longo do passeio,
ocupadas por gente alegre, homens elegantes, mulheres com seus vestidos em cores fortes da moda,
chapéus de diversos modelos, colorindo ainda mais o lugar. Contudo, não havia mesa disponível num
lugar de onde pudesse apreciar a movimentação daquela gente que transitava em duplas, casais de
namorados e algumas senhoras robustas carregando cestas de vime com frutas e legumes frescos.
Para não perder o freguês, o próprio dono da cantina, um homem de meia idade, com o avental
cobrindo sua avantajada barriga, sugeriu que ele compartilhasse uma mesa ocupada por um jovem na casa
dos vinte e poucos anos, elegante e com jeito de quem se podia manter uma boa conversa.
– Ele é russo, é russo, não fala patavina o idioma italiano, mio signore – disse em sua voz sonora o
proprietário bonachão em seu jeito alegre, balançando sua avantajada pança ao caminhar.
O estrangeiro aceitou sem questionar, pois achou providencial porque em breve iria à Rússia, onde
tinha uma propriedade. Além do mais, gostava daquele país, a Rússia com seus monumentais teatros de
óperas e balés, suas orquestras maravilhosas. Mesmo a despeito dos rumores de que uma revolução
rondava aquele país, estava disposto a empreender a viagem e por lá permanecer por um longo período.
Sem rodeios, se apresentou ao rapaz falando em russo, estendendo-lhe a mão e agradecendo por
permitir que ele compartilhasse a sua mesa.

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– Um compatriota nessas bandas? – disse surpreso o rapaz pensando em se tratar de um russo da
região do Cáucaso devido a pele morena do recém-chegado, que não era incomum na terra russa com seu
extenso território com dezenas de etnias diferentes.
– Não sou russo, mas conheço o idioma. Estive na Rússia em tempos remotos. Conheço a história
desse magnífico país, um passado recheado de glórias, grandes batalhas, grandes monarcas, e uma nação
de belas mulheres.
– Quanto as nossas mulheres, concordo plenamente, cavalheiro, mas o que disse sobre tempos
remotos, penso que não entendi, pois o senhor fala em tempos remotos como se tivesse sido ontem!
– Isso não tem importância. Mas presumo que muita coisa tenha mudado em seu país.
– Nem tanto. O que posso lhe dizer é que a Rússia é uma república monarquista, um lugar onde se
pode enriquecer...
– Mas pelo que me consta o povo está cansado do tzar. – disse o recém-chegado.
– Corre rumores de possível revolução, mas sabe o que penso? – disse o mais moço – tudo não passa
de barulho causado por estudantes que tem mania de querer mudar tudo, mas que não passa de entusiasmo
por estarem descobrindo o mundo. Eu mesmo, no início de meus estudos, me sentia um sábio que tinha
solução para todos os problemas da humanidade.
– Não concordo, meu jovem cavalheiro – interveio o outro – O mundo sofre transformações de
tempos em tempos. A França conviveu com a monarquia por muitos séculos, uma revolução popular
mudou o sistema monárquico pela República, e como todas as revoluções, a custa do sangue do povo. Mas
que assunto indigesto para dois cavalheiros que acabaram de se conhecerem. Ouvi dizer que os vinhos por
aqui são de excelente qualidade, assim como os queijos, a vitela e as massas, a pizza, uma especialidade
desta cidade. Tem alguma sugestão?
– Vejo que o senhor tem bom gosto, um paladar refinado – acrescentou o rapaz – Não me acho
digno de sugerir um cardápio. Melhor e deixar que o cheff recomende, podemos nos deliciar provando as
especiarias da casa. A propósito, o que o trouxe a Nápoles?
– O Vesúvio, as ruínas de Pompéia, o Tumulo de Virgílio, o clima e as belezas da Itália.
– Quanto às belezas da Itália, o Vesúvio e as ruínas de Pompéia estou de acordo, mas o túmulo de
Virgílio. Perdoe-me, cavalheiro, tenho minhas restrições sobre o tumulo de Virgílio. Falam coisas por aí...
– Ah, pelo visto acredita nas coisas absurdas que dizem a respeito desse grande poeta.
Foram interrompidos com chegada do garçom em seu jeito alegre e simpático. O jovem ficou
impressionado pela maneira como o outro falava com o garçom na linguagem da terra, os mesmos
trejeitos, a voz sonora como um autentico napolitano.
– Pelo visto, o cavalheiro é filho dessa terra? – perguntou o jovem. – Fala como autêntico
napolitano.
– Os idiomas da terra estão à disposição de quem deseja aprender. – respondeu – Mas volvamos ao
nosso tema. Falávamos de Virgílio. Sabe que ele é venerado aqui em Nápoles, não com os sentimentos
que deveriam honrar a memória do grande poeta, mas com o terror que inspira a figura de um mago. Os
napolitanos atribuem seus feitiços a cavidade daquela montanha onde foi erigido seu túmulo, e a tradição
ainda faz guardar o seu tumulo pelos espíritos que alguns supersticiosos evocam a fim de conseguirem
alguma coisa por meios místicos, porém sem que consigam, porque desconhecem qualquer coisa
relacionada ao verdadeiro misticismo. Esse povo se diz religioso, cada clam tem seu santo protetor, assim
como há aqueles que se prendem a crendices. A superstição é uma coisa ridícula, leva o crente a santificar
tudo o que não compreende. E atribuir tantas bobagens ao túmulo de um poeta como foi Virgílio? Por
acaso, esses supersticiosos alguma vez falaram das obras do poeta? Falaram da grandeza de Eneida, a sua
maior obra, incentivada a ser escrita pelo próprio Augusto, quando este retornava de uma campanha
militar? Virgílio era amigo de Horácio, que o apresentou a Mecenas que o apresentou Cesar Augusto. A
ideia primaria do Imperador Cesar Augusto era usá-lo como instrumento de propaganda. O imperador de
Roma escolheu Virgílio e o incentivou a escrever Eneida, para glorificar poeticamente o nascimento de
Roma.

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- Um poeta de poesia épica fez de Eneida a sua maior obra – prosseguiu sob o olhar atento do rapaz
– considerada o épico nacional da antiga Roma; a história de Enéias refugiado de Tróia que chegou às
margens da Itália. A obra de Virgílio foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia
pela afirmação histórica, saída de um período turbulento durante os quais as revoluções prevaleceram.
Virgílio teve uma influência ampla e profunda na literatura ocidental, mais notavelmente na Divina
Comedia de Dante, em que Virgílio aparece como guia de Dante pelo purgatório e inferno.
– Estou deveras encantado com sua narrativa. – interveio o jovem - Fala como um filósofo,
cavalheiro.
– Cada um de nós é uma expressão da natureza divina, como foi Virgílio e tantos outros. –
prosseguiu – Nosso objetivo é tornar manifesta a nossa divindade através da poesia, da arte ou do
misticismo, para desfrutar e obter o máximo da vida. E sobre o misticismo, um dos seus objetivos consiste
em trazer realização, saúde e felicidade aos que aspiram à espiritualidade. O universo inteiro é, em si
mesmo, de natureza divina. Não podemos mencionar coisa alguma da natureza que não seja divina e de
origem infinita. A divina consciência é constante, não muda com o fluxo e o refluxo da humana
compreensão. Na natureza divina não deve haver lugar para a superstição e crendices baratas.
– O senhor diz coisas que fogem a minha compreensão, embora exerça certo fascínio em mim,
desejando ouvir mais. – disse o jovem.
– O senhor é judeu, uma parcela pequena de rabinos conhece os segredos da cabala, uma tradição
esotérica muito antiga.
– Como sabe que sou judeu? Acaso me...
– Conheço de longe um judeu, um católico, um sabatista, espírita e aquele que tem no sangue o dom
para aprender a ciência secréta.
– Agora o senhor confundiu de vez minha pobre e ignorante cabeça. O senhor é um desses místicos
que dizem por aí que são possuidores de poderes vedados ao homem comum? Pode me esclarecer melhor
sobre esses assuntos relacionados ao misticismo?
- Tudo em seu devido tempo, pois assim como há uma estação para a flor e outra para o fruto,
igualmente, enquanto a flor da imaginação não começar a murchar, não amadurece o coração para
produzir as paixões que as flores precedem e predizem...
– O senhor é ainda um jovem, – prosseguiu o cavalheiro – mas acredito que tenha ouvido falar sobre
o seu bisavô materno.
O jovem teve um sobressalto ao ouvir aquele estranho falar de seu bisavô a quem ele apenas
conhecia através de retrato. Vieram a sua mente lembranças do que ouvia falar sobre seu bisavô que tinha
passado um tempo fora, na região da Ásia, em busca de conhecimento esotéricos e cabalístico. Tinha
permanecido cerca de trinta anos fora, desde que sua esposa morreu, retornando depois e, segundo soube,
sem ter envelhecido uma ruga sequer, ainda com mais vigor e esbanjando saúde.
– Por que me pergunta sobre meu bisavô? – inquiriu o jovem.
– Deve ter ouvido falar que ele, movido pelo nobre desejo de alcançar conhecimentos elevados,
procurou a maneira de obter a iniciação nos mistérios da ordem cabalística de Martinez de Pasquale.
– Quem é realmente o senhor, o que sabe sobre meu bisavô? – interveio surpreso o jovem.
– Conheci seu bisavô. – disse deixando o jovem ainda mais perplexo, pois como poderia um homem
como ele que não aparentava mais do que trinta e cinco anos, dizer que conheceu alguém que já morreu há
mais de sessenta anos?
– Seu bisavô teve como mestre um grande sábio que o ensinou...
– Por favor, pare! – disse o jovem fazendo menção de se levantar. – O senhor fala coisas que fogem
a minha compreensão, o que, aliás, culpo a minha ignorância por isso, mas dizer que conheceu o meu
bisavô... Ah, é possível que pertença àquela irmandade que tinha o Conde Alessandro Cagliosto como
mestre.
- O que sabe sobre Cagliosto? – interveio Zaram – ele nada mais foi do que alguém que se dizia
místico num período em que a Inquisição ainda tinha forças.

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- Quase nada sei sobre esse misterioso homem, como nada sei sobre assunto que versa sobre
misticismo. – disse o jovem.
- Pois saiba que existem muitos charlatões que se dizem místicos, engana os incautos, mas acabam
se perdendo em suas próprias mentiras.
- Cagliosto foi um desses? – perguntou o jovem, desta feita com grande interesse pelo assunto.
- Cagliosto foi considerado o maior místico do século XVIII, porém incompreendido e perseguido
até o seu desaparecimento misterioso de uma prisão do Vaticano, onde se encontrava preso. Era conhecido
pelo seu dom de cura, o que muitos atribuíam ser puro charlatanismo. Dentre seus feitos tentou resgatar a
maçonaria em decadência devido às perseguições sofridas pela inquisição, criando em Lyon, na França, o
Rito Egípcio em 1786. Era uma maçonaria aberta que aceitava mulheres como membro. Naquela época,
passo a passo a civilização se aproximava do momento em que seria alcançado o ideal da paz perpetua
entre todos os povos. Homens como Jean-Jaques Rouseau, Immanuel Kant, o Barão de Houbach e outros
humanistas, ao mesmo tempo em que Cagliosto e o Conde de Saunt-Germain também trabalhavam num
plano mais esotérico pela elevação da alma. Ele estava trabalhando pelo ideal humanitário quando foi
preso pela inquisição em dezembro de 1780. Naqueles dias a revolução francesa estava começando.
Cagliosto resistiu as torturas na prisão, e mesmo sem ter confessado crime algum foi condenado. Seus
livros foram queimados na Piazza della Minerva, em Roma, assim como todos os seus objetos maçônicos.
Desapareceu misteriosamente da prisão na torre de um castelo onde o acesso era feito através de um cesto
puxado por uma roldana. Esse era o Conde Alessandro de Cagliosto, a quem muitos diziam ser ele um
místico.
- Interessante essa história toda – disse o rapaz admirado com os conhecimentos daquele homem
diante de si - Mas tenho uma pergunta: se era ele um místico, não podia se safar das perseguições da
inquisição?
- Não disse que ele era um místico. – interveio. – Ser um místico é viver longe de confusões, não
ficar propagando publicamente suas ideias, fazendo curas em meio a grandes platéias e fazer seu nome
pelos lugares por onde passa. O verdadeiro místico só fala quem ele é àqueles em que ele vê que tem o
dom para a Arte da Sublime Ciência, visando despertar nele o interesse para trilhar o mesmo caminho que
o dele.
- O senhor está querendo dizer que – hesitou o jovem surpreso pelo que acabara de ouvir. – O
senhor, o senhor é um desses místicos que...
- Sou o que está pensando – interveio o cavalheiro – e vejo em você o dom para a Arte e Ciência do
Saber, tal qual seu bisavô. Esse nosso encontro não foi casual.
Foram interrompidos novamente, desta feita pela chegada de um pequeno grupo de rapazes que
foram se acomodando sem pedir licença. Eram amigos do jovem que havia permitido que o cavalheiro
compartilhasse a mesa.
– Vinho para este pobre sedento, não, para todos nós – disse um dos rapazes ao garçom que nada
compreendeu pelo fato de ele ter falado no idioma russo, o que foi traduzido prontamente pelo cavalheiro.
– Compreende nosso idioma, cavalheiro? – perguntou um dos rapazes.
– Fala tão bem o nosso idioma como também o italiano. – interveio o jovem ainda não refeito da
surpresa causada pelo que o cavalheiro havia falado – A propósito, quero que conheçam o senhor Zaram,
meu mais novo amigo, se o senhor permite me considerar como tal. – disse se voltando ao cavalheiro.
Depois ele mesmo se prontificou em falar sobre seus amigos e o porquê de estarem excursionando pela
Itália.
– Nos formamos em engenharia têxtil e essa excursão é nosso presente de formatura.
A conversa se estendeu até parte da noite, regada a vinho e a farta comida. Ainda antes de se retirar,
Zaram cochichou ao ouvido do jovem, que ainda se veriam mais algumas vezes antes que deixassem
Nápoles, porque tinha assuntos importantes a tratar com ele.
Zaram ainda permaneceu por um tempo em Nápoles, em visita a um velho amigo que habitava num
castelo em cima de uma colina. Encontrou-se com o jovem ainda por duas vezes, que se mostrou
interessado nos mistérios da Ordem.

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DOIS
Numa manha ensolarada de verão, um navio de pequeno porte aportou no porto de São Peterburgo
causando curiosidade entre o povo por se tratar de uma embarcação fora dos padrões dos demais barcos
fundeados naquele porto. Não era um barco que se pudesse considerar luxuoso, também não se tratava de
uma embarcação como as que transportavam passageiros ou cargas, tampouco um iate. Mas a curiosidade
era maior porque se tratava de um barco de bandeira francesa e que era esperado há alguns dias, porque o
dono daquela embarcação havia enviado, antecipadamente, um emissário para preparar a sua residência
que há muito tempo não estava habitada, também para arranjar um local na região central da cidade para
que ele pudesse instalar seu escritório comercial.
Corriam rumores sobre o casarão e seu proprietário, um nobre cavalheiro, um Conde, que pouco se
sabia da sua vida misteriosa, mas muitas coisas falavam a seu respeito, coisas que o povo criava, ou que
talvez fossem verdades, Diziam que a última vez em que a casa foi habitada pelo seu dono, fazia mais de
sessenta anos e que seu proprietário era um homem misterioso que viveu na casa por mais de cinqüenta
anos, e que tinha uma aparência jovem, que esse mesmo homem deixou São Peterburgo para viver na
França. Tudo não passava de boatos porque ninguém tinha certeza de nada, pois o personagem em questão
tinha uma vida discreta e raramente era visto andando pelas ruas, quando muito comparecia em banquetes
oferecidos pela nobreza.
Alguns diziam que era um feiticeiro, outros que ele tinha o poder de curar enfermos, que
transformava metal bruto em ouro, pedra comum em diamante, o que justificava a sua respeitável fortuna.
Os banqueiros diziam que era um grande investidor e possuidor de parreiras em território francês, além de
uma vinícola, e dono de negócios no setor de transportes marítimos.
Mas o que viram foi um homem comum, de feição jovem e discreta elegância, vestindo um terno de
cor clara, lenço colorido no pescoço, chapéu de palha e a bengala que acentuava sua discreta elegância.
Não era alto, estatura mediana, cerca de 1,74m, pele morena, quase cor de cobre e olhos ligeiramente
oblíquos. O que também despertou a curiosidade do povo foram os marinheiros, que não eram do tipo
comum como os que estavam acostumados a ver aportarem em navios vindos de outras partes do mundo.
Já tinham visto alguns marinheiros de pele negra em navios americanos ou ingleses. Mas aqueles
marinheiros eram diferentes. Eram homens de estatura alta, cor de cobre e olhos ligeiramente oblíquos.
Vestiam camisetas de algodão, que deixava a mostra suas musculaturas adquiridas com o trabalho pesado.
Também os seus criados que faziam parte da comitiva eram homens com características mongóis e
de poucas palavras, tipos estranhos. O estrangeiro também trazia um casal de franceses que falavam o
idioma russo, o homem para servir como mordomo e ela para as compras de produtos alimentícios, já que
os demais criados não falavam o idioma russo. Eram ao todo seis criados, como convinha a um filósofo
que precisava gastar seu tempo em estudos, reflexões e lazer.
Desceu do barco e caminhou em passos lentos e cadenciados em direção a uma carruagem que o
aguardava, enquanto os marinheiros descarregavam enormes caixotes com os seus pertences. Ele seguiu
em direção a sua nova residência, uma mansão digna a um nobre, situada um pouco retirada da região
central da cidade às margens do Rio Nevsky. Uma casa antiga com paredes grossas com camadas de
tijolos com cerca de quarenta centímetros, o que era comum em São Peterburgo, uma cidade que foi
erigida sobre um pântano por Pedro, O Grande. Ainda era possível notar o esplendor da época em que foi
construída. Uma casa monumental, com seis quartos, salão de festa uma enorme cozinha e no fundo mais
três quartos para a criadagem. Ainda tinha uma área verde de considerável tamanho, um verdadeiro
bosque com uma diversidade de plantas, uma das paixões do místico que gostava de passar boa parte do
seu tempo estudando as plantas. Ainda na mesma noite de sua chegada foi visitado por Ilya
Abraãomovitch Riabushinsk, o jovem que havia conhecido em Nápoles.
Ilya Abraãomovitch era o único filho de uma família de judeus cujos primeiros imigrantes chegaram
à Rússia no tempo em que Pedro, O Grande governava os países que compunham a Rússia. Fixaram-se em
São Peterburgo, na época com o nome de Petrogrado, em homenagem ao monarca. Era uma família
abastada no ramo da tecelagem. Seguindo os costumes judaicos em que a criança ainda adolescente

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começa a trabalhar para ajudar a família, com ele não foi diferente, começando a trabalhar ainda aos dez
anos de idade para num futuro assumir a direção da fábrica. Pela manhã ia à escola básica e à tarde
passava boa parte do tempo debaixo dos teares apanhando sobras de algodão que caíam no chão. Desde
cedo aprendeu que nada deve ser desperdiçado na vida. As tecelãs empurravam o tear e o menino
acompanhava agachado apanhando as sobras, tendo que retornar no mesmo tempo em que as moças
puxavam a esteira de volta. Um trabalho cansativo para uma criança, mas conforme a tradição do
judaísmo, depois dos 13 anos a criança tinha que ajudar a família. Em tempos remotos, trabalhavam na
terra, e nos dias atuais, apanhar as sobras debaixo dos teares era um trabalho de importância porque
evitava que tivessem prejuízos.
Ainda menino demonstrou ser religioso, aprendeu a recitar a passagem-chave da Tora ainda aos três
anos de idade, fez o Bar-Mitzuah aos treze anos. Ia regularmente à sinagoga, assim como seguia as datas
religiosas. Um judeu devoto que seu pai esperava que se tornasse rabino.
Ilya era adolescente quando seu pai o enviou a Londres para cursar o Instituto Têxtil e se formar
engenheiro, porque na atrasada Rússia não havia escola a altura das escolas de outros países da Europa.
Um bom investimento para a fábrica porque quando formado retornaria trazendo conhecimentos técnicos
e métodos modernos de um país adiantado. Com alguém de confiança para assumir o seu lugar na fábrica,
o velho Riabushinsk poderia se afastar das suas funções, ir com mais frequência à sua datcha*(*Casa de
campo) para cuidar de seus pomares.
A temporada em terras britânicas ensinou muitas coisas ao jovem, mas afastou-o da religião, devido
às múltiplas atividades como estudante e alguns momentos de lazer, num país com costumes e hábitos
diferente de sua terra natal. Numa das suas andanças pela cidade de Londres, na região do Convent
Garden se deparou com uma livraria que vendia livros antigos e fora de edição. Entrou e começou a
revirar as prateleiras e encontrou um livro que chamou a sua atenção. Versava sobre misticismo e as
sociedades secretas. Achou curioso o tema e o assunto contido. Comprou o livro, leu e por algum tempo o
assunto em questão povoou a sua mente. Falava sobre homens intrépidos que eram iniciados nas
sociedades secretas em busca do saber. Filósofos, cientistas, charlatões e alguns denominados místicos,
verdadeiros sábios e magos capaz de realizar coisas jamais imaginadas, porém, sempre a favor do bem.
Com o retorno a São Peterburgo a sua curiosidade pelo misticismo foi deixada de lado, pois tinha
uma nova vida pela frente. Ilya começou a trabalhar na fábrica introduzindo métodos modernos com
melhor aproveitamento dos fios de algodão. Trocou algumas máquinas antigas que constantemente
quebravam prejudicando a produção, além de pôr em risco a segurança das operárias. Não demorou em
que os bons resultados surgissem.
A continuidade das Indústrias Têxteis Riabushinsk estava assegurada. Ele poderia levar avante seu
sonho de abrir uma unidade em Moscou. O que o deixava inseguro era o mau governo do Tzar Nicolai
Romanov II que constituía um perigo para a estabilidade da Rússia. O povo estava faminto, o país estava
feito um caldeirão prestes a explodir, e o tzar não fazia caso. Não percebia o quanto isso era perigoso,
porque as reivindicações do povo não deixavam de serem justas. Se o tzar abrisse algumas concessões
poderia esfriar os movimentos reivindicatórios, mas o tzar estava cego pela sua vaidade de monarca.
Dentre os movimentos revolucionários que surgiam por todo território russo, havia um líder que
exercia grande influencia aos demais movimentos do país. Encontrava-se exilado por ordem do tzar. Seu
nome era Vladmir Ilitch Ulianov, de codinome Lênin. Ilya Abraãomovitch achava que com Lênin e outros
líderes soltos pela Rússia, em vez de mantê-los no exílio, não tardaria para que começassem a se
desentenderem pela liderança, querendo cada um que a sua ideia prevalecesse. Bastava dar-lhes corda,
permitir que parte deles exercessem cargos públicos para que o povo tivesse seus representantes na
Duma* (* Câmara dos Deputados).
Ilya Abraãomovitch tinha a visão de um experiente empresário, enxergava de longe, via soluções
que muitos empresários experientes nem imaginavam. Trouxe de Londres novas idéias visando beneficio
ao povo. Implantou a filosofia de trabalho em que o operário satisfeito produz mais. Os resultados foram
notórios. Nas Indústrias Riabushinsk não havia greve, tampouco era ponto de agitadores que ficavam do
lado de fora incitando os operários a pararem de trabalhar. Todos recebiam bons salários, pelo menos

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melhores do que em outras fábricas. Cumpriam uma carga horária dentro de limites toleráveis, como era
em Londres e em outras capitais europeias. Dispunha de serviço social com médicos e remédios gratuitos,
coisa rara na Rússia tzarista.
E ali estava o jovem Ilya Abraãomovitch Riabushinsk diante daquele que viera de longe para iniciá-
lo nos mistérios da Ordem que velava a sete chaves o conhecimento da Ciência do misticismo.

Ainda era verão, com seus dias longos, os parques floridos, distante daquela São Peterburgo fria e
úmida como ocorre do outono ao final do inverno. Era o verão com as ruas movimentadas, gente alegre,
moças elegantemente vestidas, rapazes em seus ternos da moda, chapéu de palha, o Rio Niva e o Rio
Nevsky coloridos pelos veleiros que deslizavam em suas águas calmas. Na pequena praia a beira do rio,
nas muralhas da fortaleza de Pedro e Paulo, alguns jovens se esticavam sobre a areia desfrutando do
prazer e o calor do sol da manha, não forte a ponto de escurecer a pele e nem causar queimaduras.
Nem mesmo o rumor de uma provável guerra contra o Japão abalava a alegria da juventude, porque
caso ocorresse não seria em território russo, tampouco seriam convocados para combater, cabendo esse
dever aos oficiais militares e aos soldados da classe pobre que eram obrigados a servir ao Exército
Imperial por vinte e cinco anos e pelo soldo que receberiam, podendo assim dar um pouco mais as suas
miseráveis famílias.
Em princípio ele achou deplorável e ficou abismado ao se deparar com a situação em que vivia o
povo e com o grande contraste social, muitos barracões nas imediações do centro da cidade, como também
gente ostentando riqueza elegantemente vestida, carruagens e alguns poucos automóveis de fabricação
estrangeira, um privilégio de poucos, e os bondes apinhados de gente nos finais de tarde, que, certamente,
regressavam a seus lares após um dia de trabalho árduo, porque não havia leis trabalhistas que protegesse
essa classe.
A economia do país não andava bem, além de num atraso cultural e tecnológico de mais de
cinquenta anos, se comparado aos demais países europeus. Mas não era problema para um recém-chegado
à cidade que rinha outras prioridades, e uma festa em sua propriedade era uma boa oportunidade para
conhecer a sociedade peterburguense, também visando negociar com os empresários russos. Como sempre
fazia quando chegava a uma nova cidade, dava um banquete onde era convidada a nobreza local, homens
que ostentavam títulos de nobreza com suas esposas e filhas, além de uma pequena orquestra para
abrilhantar a festa. Muitos aguardavam serem convidados, não tanto pelo banquete que fazia parte de suas
vidas privilegiadas, mas para conhecer o misterioso cavalheiro. Apesar do pouco tempo que se encontrava
na cidade, diziam de tudo a seu respeito, desde a sua benevolência, as suas maneiras elegantes e
divertidas, suas histórias, seu grande conhecimento sobre assuntos diversos e seu grande talento para os
negócios, o que fazia as jovens peterburguenses sonhar em serem desposadas por tão nobre figura.
Restava-lhe providenciar para que a festa fosse um sucesso. Sentia-se bem entre convidados,
gostava de conhecer pessoas. Era uma maneira de fugir da monotonia do dia a dia, desfrutar dos
benefícios que sua fortuna lhe propiciava. Contudo, não era egoísta, tampouco um esnobe que ostentava
riqueza para se sobressair entre outros afortunados, mesmo a despeito de seu título de Conde. Sua fortuna
remontava do longo tempo de existência e experiência em seus negócios, o que fazia por puro meio de
sobreviver e poder ser útil aos necessitados.
Tudo estava devidamente preparado para o banquete em que receberia a nata da sociedade
peterburguense, dentre os convidados o Tzar Nicolau II e sua esposa, a Grã Duquesa Alix.
Estava presente a flor da nobreza peterburguense, descendentes das mais nobres famílias, algumas
da Alemanha, Finlândia e Suíça, que há muito tempo habitavam em terra russa. O salão de festas era
grande. Do lado oposto das janelas tinha uma galeria ladeada de obras de arte com pinturas assinadas por
artistas renomados, algumas esculturas e objetos de arte. O salão era sustentado por colunas em mármores.
Mais a frente tinha uma saída para um pátio que levava a um jardim com plantas e flores. Entre as fontes e
estátuas em mármore alvíssimo, alguns bancos estrategicamente colocados que propiciava uma visão
privilegiada daquele espaço. Na parte interna, uma corrente de ar refrescava o salão através de tubos
invisíveis aos olhos dos convivas, em cada ângulo da sala, oferecendo o conforto. Uma festa esplendida,

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com o melhor da culinária francesa, regada de vinhos, champanhes, e de vodca, a bebida predileta dos
russos.
Os homens, em seus elegantes fraques tendo ao lado suas belíssimas e bem vestidas esposas, que
exibiam suas jóias preciosas. Os criados recepcionavam os convivas, enquanto garçons serviam aquela
gente elegante, Mas para a tristeza de muitos, que achavam que subornando um criado qualquer poderiam
obter informações sobre o recém-chegado à cidade, nenhum deles falava outro idioma a não ser o de suas
línguas natal.
De repente um discreto alvoroço tomou conta naquele elegante salão de festas. O Tzar Nicolau II e
sua esposa, a Grã Duquesa Alix, mais alguns de seus Ministros acompanhados de suas esposas, surgiram
no salão, sendo recepcionado pelo próprio Zaram. O tzar saudou a todos com gestos de cabeça ou discreto
aceno com a mão. Ele e a Grã-Duquesa formavam um casal bonito, ele com sua barba bem cuidada
trajando um jaquetão militar branco repleto de medalhas e comendas em seu peito, calças pretas com uma
listra carmesim ao lado da perna e a espada imperial que compunha seu traje. A Grã Duquesa, que além de
ser bela por natureza, trajava um bem cortado vestido e muitas jóias, que fazia com que destacasse entre as
mulheres.
Zaram convidou também o diretor de seu escritório de negócios com sede em Paris, porque era um
bom momento para travar conhecimento com os principais donos de empresas na Rússia, visando fazerem
negócios que seria vantajoso para ambos os lados. Zaram não se envolvia diretamente em seus negócios.
Preferia viver a vida e deixar que seus assessores cuidassem de tudo que lhe proporcionava uma discreta
fortuna. Contudo, não era o que se podia dizer que ele fosse apegado a bens materiais, o que faz o homem
um escravo da sua própria fortuna. Era de uma generosidade sem limites. Boa parte de seu dinheiro era
para manter instituições pelo mundo como hospitais, creches, orfanatos, financiava pesquisas, além da
ajuda ocasional por onde passava. Coisas que somente seus assessores mais próximos, os que na verdade
administravam seus bens, sabiam porque eram eles que faziam a distribuição destinada aos órgãos
favorecidos.
Como bom anfitrião dava atenção a todos os convidados, sempre com uma palavra alegre, uma
anedota, uma conversa curta, o suficiente para demonstrar a sua amabilidade. Deu uma atenção maior ao
monarca e sua belíssima esposa, sem, contudo, mostrar-se bajulador. Mesmo naquele clima festivo, ao
olhar no fundo dos olhos do monarca, uma tristeza profunda invadiu o seu ser, sem, contudo, deixar
transparecer os seus sentimentos. Era como se um futuro interrompido estivesse no caminho do casal. Um
assunto que dedicaria maiores atenções numa outra ocasião. Haviam outros convidados que também
mereciam a sua atenção, e além de tudo, era uma festa onde a alegria deveria imperar.
Tinha ainda as belíssimas damas da sociedade peterburguense que ansiavam por ter a honra de
dançar com ele. Zaram, por natureza, exercia grande fascíno sobre as mulheres, tanto pelo seu título e sua
fortuna, quanto pela sua simpatia e elegância. Agradava a qualquer pessoa, fossem homens, mulheres e
principalmente as jovens, que preferiam a ele com sua aparência pouco mais de trinta anos, aos jovens que
só sabiam fazer galanteios sem, contudo, manter uma conversa inteligente, além de se empanturrarem na
vodca e baterem no peito dizendo que eram russos e que a vodca não os derrubava. Dentre as encantadoras
damas, uma chamou-lhe a atenção. Tinha vinte e cinco anos, perdera o marido a pouco mais de um ano.
Despertou sua atenção pela maneira discreta, se comparada às demais moças com suas conversas,
risadinhas e seus jeitos alegre de serem. Ela se limitava a olhá-lo a distância em seu jeito acanhado. Estava
em companhia dos pais, um rico industrial no ramo da metalurgia, alem de terras onde cresciam trigais a
se perder de vista. Ludmila Simionovna Dkova era seu nome. Uma moça com esmerada educação,
formada em piano, falava francês, era religiosa, porém não muito devota, mas como era costume entre a
sociedade peterburguense ir assiduamente as missas, ela não era a exceção. Zaram também olhava para ela
discretamente, pois não seria elegante cortejar publicamente uma moça, principalmente quando se tratava
de uma viúva que ainda guardava luto.
Outro dos convidados ilustres era o Patriarca da Igreja Ortodoxa junto de sua elegante esposa.
Conversador, alegre, e boa parte do tempo em que estivera na festa, esteve sempre rodeado por moças que
vinham lhe pedia a sua benção.

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O dia estava preste a acontecer, quando os convidados começaram a deixar a festa. Foi uma noite tal
qual Zaram esperava. Causou boa impressão a sociedade peterburguenses, como compete a um nobre
recém-chegado a cidade. Seus convidados se foram, permanecendo apenas Ilya Abraãomovitch, pois
tinham assuntos a tratar.

TRÊS
SÃO PETERBURGO 1903
Vladimir Lênin, exilado em Bruxelas, havia convocado o Primeiro Congresso Pan-Russo, visando
formar um partido socialista de âmbito nacional com líderes regionais convergindo para uma única idéia: a
revolução do proletariado. Lênin almejava membros que se integrassem inteiramente nos objetivos do
partido a ser formado. Esperava que a maioria aprovasse as suas proposições sobre a forma de estrutura
partidária, uma unificação entre todos os movimentos esparramados por todas as repúblicas que
compunham a Rússia. Lênin era de família classe média alta. Seu pai, Ilya Ulianov, quando em vida,
havia sido um próspero diretor de uma escola para filhos da nobreza na cidade de Simbirski, na Rússia
Meridional. Era o terceiro filho homem de uma família numerosa, como era comum na classe privilegiada.
O filho mais velho de Ilya Ulianov tinha sido executado pela polícia Imperial, acusado de atentar contra a
vida do Tzar Alexandre III, pai de Nikolai Romanov II. Na ocasião da morte de seu irmão, Vladimir Lênin
ainda era um menino, e jurou que um dia vingaria a sua morte, invertendo o regime vigente, destronando o
tzar para dar lugar a um governo socialista com representantes do povo dirigindo a nação. Detentor de
uma inteligência privilegiada, formou-se em Direito mesmo sem ter freqüentado a universidade. Sua vida
subversiva havia lhe valido um banimento na longínqua Sibéria, na região do Rio Lena, o que acabou por
inspirar-lhe o codinome Lênin, e também como uma forma de marcar a sua carreira revolucionária.
Graças ao bom nome do seu pai ele conseguiu indulto da pena, porém com a proibição de residir em
qualquer lugar do território russo. Como sua família dispunha de meios, acabou indo viver na Europa
Ocidental, de onde coordenava o movimento na Rússia e articulava a revolução.
Quanto ao Congresso Pan-Russo, houve divergência, que resultou em uma cisão no partido com ele
de um lado e outro líder russo de nome Martov como líder da outra facção. Martov defendia a ala
moderada, que não acatava as limitações que Lênin impunha para a filiação de novos membros. Lênin não
queria simpatizante ou aventureiro temporário, porque achava que isso só enfraqueceria o partido. Queria
qualidade, enquanto Martov defendia números, pouco se importando se seriam membros freqüentes ou
não. Acabou sendo formados dois partidos, o de Lênin que passou a chamar Partido Bolchevique, e o de
Martov, Partido Menchevique.
Lênin saiu entristecido porque achava que somente um partido forte poderia realizar a revolução.
Ele tinha olhos nos partidos clandestinos espalhados pela Rússia, que poderiam ser de grande valia para os
seus propósitos. A adesão desses partidos clandestinos só fortaleceria o Partido Bolchevique. Poderia
convocar uma greve geral, paralisar o país para mostrar às autoridades a força da massa trabalhadora.
Por outro lado, o tzar não estava conseguindo conter os movimentos que despontavam no vasto
território russo e nas repúblicas que compunham o seu império. Sua fraqueza como governante era
notória, causando preocupação aos seus ministros que viviam insistindo para que ele cedesse em favor do
clamor do povo, como uma maneira de esfriar os movimentos reivindicatórios.
Ignorando o conselho dos seus ministros, achou que uma guerra seria bastante oportuna porque
resgataria no povo o senso patriótico, além de ele se firmar diante dos seus súditos como um monarca
forte, como haviam sido os seus ancestrais.
O Japão havia atacado a Base Naval russa em Port Arthur, na Manchúria. Um problema que poderia
ser resolvido por meios diplomáticos, mas o tzar não queria considerar, alegando não concordar com o
expansionismo japonês na China, área exclusiva de exploração russa.
Nikolai Romanov II acabou por enviar tropas ao Estreito de Tsushima onde se deu início a uma
feroz batalha, com grandes desvantagens para os russos devido aos seus armamentos antiquados e ao
despreparo das tropas.

9
Zaram ia a cada dia conhecendo a sociedade russa, seus hábitos que nada tinham a ver com os
outros países da Europa. Um povo singular com seus costumes seculares, suas danças e sua cultura. Um
contraste social gritante, a exploração aos menos favorecidos, péssimas moradias onde famílias se
amontoavam em quartos, casas de madeira, enquanto outros viviam em mansões, comiam do bom e do
melhor, diferente da Rússia de seis décadas passadas. A exploração do regime monárquico e a Igreja
Ortodoxa, o que ele com toda a sua sabedoria não conseguia entender. Quem tem por obrigação e votos
seguir o exemplo e os ensinamentos deixados pelo Grande Mestre, se aliava a um sistema que pouco
ligava para o pobre, a não ser explorar a sua vida. Não era de estranhar esse descontentamento popular,
essas manifestações e os movimentos que visam o beneficio do povo.
Tinha prometido ao jovem Ilya Abraãomovitch conduzí-lo nos primeiros passos que o levará as
portas do Umbral da Ciência e da Sabedoria Arcana de sua Augusta Ordem. Não era seu papel julgar
quem era e quem não era apto a receber os solenes ensinamentos, pois desde que houvesse interesse, era
seu dever orientar o postulante e ensinar-lhe os primeiros passos. Houve ocasiões, em tempos remotos,
que sentiu vontade de recusar o pedido do interessado porque via claramente que o infeliz não suportaria
as primeiras provas devido a falta de determinação, intrepidez caráter e a verdadeira vontade. Seu papel
consistia em ensinar a parte teórica e filosófica ao postulante, e alguns procedimentos básicos que eram
exercícios para aprender a meditar, se concentrar visando conseguir um dos princípios básicos para seguir
adiante, que era o domínio sobre si próprio, para não se tornar vítima de sentimentos mesquinhos como o
apego a coisas terrenas, a paixão, o desejo do poder, da ambição, da cegueira da superstição e o desapego
aos males que afetam a humanidade. Sem querer ser seu juiz, via muita coisa positiva no jovem que trazia
em seu sangue a herança do bisavô, e por todas essas coisas ele não podia deixar de satisfazer a sua
vontade.
Contudo, o jovem postulante tinha suas obrigações junto a fábrica de seu pai onde ele exercia
funções importantes para o bom andamento da Indústria Riabushinsk. Mas, ao menos no momento isso
não impedia que dedicasse algumas horas de seu dia aos estudos, exercícios e meditação, até que chegasse
ao ponto de ser iniciado nos graus elevados, passaria muito tempo e até lá o destino pode alterar a ordem
dos acontecimentos.
Era a hora de conduzir o rapaz àquilo que era o seu desejo, o ensinar sobre como deveria ser a sua
conduta e alertá-lo daquilo com o qual se defrontaria, caso desejasse prosseguir aos graus elevados, sem
infringir os princípios e tudo o que ainda não podia ser revelado ao neófito.

Quem pretende iniciar na ciência e na arte do misticismo e espera receber os primeiros


ensinamentos numa sala escura iluminada por velas ou tochas com suas luzes bruxulentas, crânios
humanos espalhados pelo local, vidros de ensaio contendo porções mágicas, comete um grande engano,
porque para atingir o alto grau de sabedoria se faz necessário muito estudo e exercícios para desenvolver o
poder da concentração, muita meditação e empenho. O iniciado não deve ser um mero espectador da vida,
um joguete na mão da sorte. Ele deve ser o autor, o construtor e o criador de sua vida e de seu destino.
Deve se dedicar nos estudos sobre os mistérios da natureza, buscando o aperfeiçoamento de si próprio e o
bem estar da humanidade, com força de trabalho e constância para atingir os graus elevados do
conhecimento, indubitavelmente, de energia incomparavelmente maior do que os homens comuns.
Ainda era verão com o céu azul, as árvores carregadas com suas folhagens. Um dia propício para
ensinar, falar sobre as plantas de onde se pode extrair a cura para muitas das doenças que assolam a
humanidade.
Zaram recebeu seu discípulo com alegria no coração, pois gostava de passar para verdadeiros
interessados os conhecimentos básicos que para o neófito já era uma grande coisa, pois estaria
desvendando segredos aparentemente simples, porém invisível ao homem comum. Quanto aos graus
elevados, teria que, primeiramente, passar pelos graus de principiante com muitos exercícios e
experimentos, de modo a poder ir à busca do aperfeiçoamento e do domínio sobre si próprio. No momento
ele apenas conduziria o candidato até o portal que separa o mundo físico do mundo espiritual.

10
– Seja bem vindo, caro amigo, a quem espero um dia chamar de irmão. – disse o místico ao neófito
– A manhã está, deveras, maravilhosa, e penso que seria um grande desperdício ficarmos trancados dentro
de casa, quando podemos iniciar seu aprendizado em meio à natureza, de onde, com o passar do tempo,
aprenderá a extrair das plantas tudo aquilo que vai precisar para seus experimentos.
O rapaz nada disse, se limitando a ouvir. Caminhou ao lado do místico pela propriedade, um
verdadeiro e rico bosque com uma diversidade de plantas, flores e árvores. A manhã era quente, uma brisa
suave soprava entre as árvores, propiciando um clima agradável e convidativo para caminhar sem que o
sol daquela manhã pudesse incomodar.
– Primeiramente devo dizer–lhe sobre o mal da fraqueza humana, a verdadeira culpada pelo
fracasso de muitos daqueles que buscam alcançar os altos segredos da Ordem. Muitas pessoas não
percebem que carregam a seu lado a fraqueza, a falta de coragem e a derrota, porque suas prepotências e
arrogâncias anuviam esses sentidos. Tudo isso é adquirido através das pessoas com quem convive, os
assuntos que nada acrescentam em suas vidas, tornando o mundo dessas pessoas um poço de problemas,
um mundo onde tudo é difícil, às vezes, impossível de conquistar devido as suas cegueiras. Com isso as
portas da enfermidade são abertas, tornando suas vidas ainda pior. De todas as fraquezas que são objetos
de burla por parte dos homens de escassa inteligência, nada pode ser por eles mais ridicularizada do que a
credulidade e de todos os sinais de um coração corrompido e de uma inteligência curta, a tendência a
incredulidade é o sinal mais seguro. A verdadeira filosofia prefere antes tentar resolver o problema a negá-
lo, compreendeu?
Ilya Abraãomovitch se manteve calado e pensativo, tentando entender o significado daquelas
palavras. Notava que, vez por outra, o místico parava diante de determinada planta e a observa com
admiração. Deixava a impressão de que conversava com ela e era correspondido, como deixava a
impressão de que eram velhos conhecidos. Depois continuava com suas explanações sem mencionar nada
sobre a planta.
– Enquanto ouvimos diariamente os pequenos pedantes que pretendem ser homens de ciência falar
dos absurdos da alquimia e do sonho da pedra filosofal, outros mais eruditos confessam que as maiores
descobertas cientificas se deve aos alquimistas, e que muitos segredos poderiam ser decifrados se
possuíssem a chave da mística fraseologia que os alquimistas se viram obrigados empregar. À alguns dos
mais notáveis químicos do nosso tempo contemporâneo, a pedra filosofal não pareceu ser uma ilusão
quimérica. É verdade que o homem não pode contrariar as leis da natureza, porém podemos dizer que
todas as leis da natureza já foram descobertas.
Mestre e discípulo iam caminhando pelo bosque ao sol daquela manha brilhando sob as copas das
árvores, naquela brisa fresca que temperava o calor daquela hora do dia. E na serenidade da atmosfera
havia algo que deliciava os sentidos. A alma ficava mais leve e mais pura.
– Quem pode negar a inteligência que é Deus? - prosseguiu o místico – Entre Deus e o gênio existe
um elo necessário, ao menos uma linguagem correspondente. Um bom intelecto é o corpo da Divindade,
Surpreendido e admirado desses sentimentos que não esperava existirem num homem a quem
chegou a atribuir aqueles poderes, que os supersticiosos atribuem aos que pactuam com o gênio do mal,
ele perguntou:
– Existe, pois, alguma relação entre a magia e a religião?
– Magia? – exclamou o místico – O que é magia? O vulgo não pode compreender que possa estar
legalmente em poder de outro o que está fora de seu próprio poder. Se por magia entende um perpétuo
estudo e pesquisa incansável de tudo que é mais latente e obscuro na natureza, responde-lhe que professo
essa magia, e aquele que faz o mesmo aproxima-se mais da fonte de toda a crença. Não sabe que
ensinavam magia nas escolas dos antigos? Não sabe que existe magia nas artes? Não sabe que a arte mais
sublime, seja a do poeta ou a do pintor, buscando somente o verdadeiro, aborrece o real, que deve tratar a
natureza como o seu Senhor e não como o seu escravo?
– Quem tenciona elevar-se a tão sublimes degraus, – prosseguiu o místico – deve, em primeiro
lugar, esforçar-se para abandonar afeições carnais, fraqueza dos sentidos, as paixões que pertencem a
matéria. Em segundo lugar, deve aprender por quais meios podemos subir as alturas do puro intelecto,

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unidos aos poderes superiores sem os quais nunca podemos obter a ciência das coisas secretas, nem das
forças mágicas que produzem verdadeiros milagres.
O discípulo recebeu aquelas palavras refletindo sobre o que acabara de ouvir. Havia profundidade
em tudo que seu mestre dizia, coisas simples, mas que nunca em sua vida havia parado para pensar,
refletir e concluir que viver era a coisa mais simples neste mundo, mas que nunca se apercebera. Zaram
tirava as palavras do acaso como se não tivesse uma programação, falando tudo o que ele necessitava
escutar, respondendo tudo o que poderia vir a questionar, mesmo sem que formulasse qualquer pergunta,
como se penetrasse em seus pensamentos para então esclarecer suas dúvidas, responder as suas questões.
– Todo homem que se dedica a algum estudo sobre os mistérios da natureza a procura do
aperfeiçoamento de si próprio e o bem estar da humanidade, com força de trabalho e constância, acaba por
adquirir um grau elevado de conhecimento, indubitavelmente, um fundo de energia, incomparavelmente
maior do que os homens comuns, e o torna senhor de seu destino.
– Há um poder para evitar a morte? – perguntou o discípulo.
Zaram franziu a testa numa expressão tristonha, como se aquela pergunta mexesse com alguma
coisa dentro de si.
– Ainda que houvesse tal poder seria uma sorte agradável sobreviver a outros que lhes são caros, e
renunciar a todos os laços que constituem a felicidade humana?
–Tenho lido sobre existência que duram muito mais tempo que o homem comum costuma viver –
interveio o jovem Ilya – e que alguns alquimistas possuem esse segredo. É mera fábula o que falam do
elixir de ouro, ou elixir da vida?
– Se não é, e se esses homens que descobriram morreram por não querer viver mais?
O jovem discípulo ficou calado.
– E sobre a importância da arte, – prosseguiu o místico querendo mudar o assunto para que o que
acabara de dizer penetrasse na mente do discípulo – todos os verdadeiros críticos de obras de arte, desde
Aristóteles a Fuseli, se esforçaram por convencer o pintor de que não deve copiar a natureza, e sim exaltá-
la, escolhendo as mais sublimes combinações. O grande pintor, da mesma forma que o grande autor,
incorpora o que é possível ao homem. É verdade, porém, que não é comum a humanidade. Há verdade em
Hamlet, em MacBeth e suas feiticeiras, em Desdemona, em Otelo e em Caliban. Há verdade nas obras de
Rafael, ha verdade no Apolo, no Antinous e no Laconte. Tudo proveio de um intenso estudo, porém esse
estudo ocupou-se do ideal que pôde ser dirigido do positivo e do existente de um elevado grau de
grandeza e beleza. Ainda menos do que o principio idealizador compreende-se o principio da
benevolência na condução do homem. A ciência e o ateísmo são incompatíveis. Conhecer a Natureza é
saber que há de existir um Deus. Mas para saber isto, será necessário examinar o método e a Arquitetura
da Criação.
Ilya Abraãomovitch ouviu tudo com muita atenção, embora não entendeu o porquê de Zaram falar
tanto em arte, mas como se seu mestre tivesse penetrado em seus pensamentos, este lhe disse o que ele
desejava ouvir:
– Saber entender o princípio da arte é fundamental para que possamos prosseguir em nosso estudo.
– disse o místico;
– Caro Ilya Abraãomovitch, - prosseguiu - fico feliz por ver nitidamente seu interesse, formulando
perguntas e mais perguntas. Assim deve ser por toda a sua eternidade, porque é assim que se aprende,
porque viver é um eterno ponto de interrogação.
E os ensinamentos continuaram noite adentro.

QUATRO
SÃO PETERBURGO 1905
São Peterburgo fervilhava com os acontecimentos, a guerra contra o Japão, às agitações das classes
oprimidas comandadas por Vladimir Lênin. Tudo indicava que a revolução seria uma questão de dias. O
tzar, temendo a força do povo, refugiou-se em Tzarskoy-Selo, sua residência de verão a 30 km da capital
russa. Alguns dias depois a revolução eclodia em todo o território russo

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Um padre de nome Gueorgui Gapon, agente secreto da Okharana, a policia secreta russa, a mando
de alguns ministros do tzar que estavam preocupados com a força que constituía o proletariado, encabeçou
uma passeata pelas ruas de São Peterburgo em direção ao Palácio de Inverno, residência oficial do tzar*
(*No local hoje é o Museu Hermitage), para interceder em favor do povo junto ao monarca. Era um
domingo, por sinal o primeiro domingo daquele ano de 1905. A multidão seguia o padre Gapon em
passeata, caminhando com dificuldade sobre a neve. Levavam ícones e retratos do tzar e uma petição
expondo tudo o que reivindicavam, esperando que o monarca se compadecesse do sofrimento em que
viviam seus súditos. Era uma manifestação pacífica. Queriam deixar claro que eram súditos leais. Mas
quando se aproximaram do Palácio de Inverno foram recebidos pelos temíveis cossacos da Guarda
Imperial, transformando aquela pacífica passeata numa carnificina sem precedentes; deixando um rastro
de sangue na neve.
Com a derrota para os japoneses a metade meridional das Ilhas Sacalinas e a linha meridional
chinesa Eastern Railway, acabaram sendo cedidas ao Japão, firmando Tratado de Paz.
Para um jovem contestador aquilo acabou despertando o senso de justiça em favor do povo e por um
fim definitivo a tirania. Lênin o encantava com seus periódicos escritos em Bruxelas e distribuído em São
Peterburgo por simpatizantes da revolução. Ainda não tinha se engajado em movimentos que surgiam pelo
país, mas não deixava de participar das reuniões e mesmo algumas passeatas.
Com Zaram aprendia a parte filosófica e conhecimentos científicos sobre plantas e anatomia
humana e algumas formas práticas de manter uma boa saúde, e exercícios de concentração. Ele estava
ciente de que quando estivesse pronto para graus mais elevados teria que se ausentar de todas as suas
atividades e se isolar num lugar longe de seu cotidiano, acompanhado por um mestre que o conduzirá até
os primeiros degraus da sabedoria, como também estava ciente que seu envolvimento com revolucionários
só atrapalharia o seu desenvolvimento. Mas assim como o misticismo, o espírito revolucionário fazia parte
de sua natureza, e dessa forma ia deixando que as coisas se desenrolassem naturalmente.

Ludmila Semionova costumava sentar-se sob a proteção de um toldo na parte da frente de sua casa,
de onde podia desfrutar de uma vista maravilhosa de frente para o Rio Nevsky com suas águas limpas e a
margem oposta do rio composta pelos suntuosos casarões e as árvores circundando toda a extensão do rio
até o mar. Com o livro sobre seus joelhos, no qual seus olhos se fixavam negligentemente de vez em
quando, ela olhava as folhas das árvores que pendiam cheias de vida, exibindo sua exuberante cor,
enquanto não chegava o outono com sua bruma cinzenta, amarelando as folhas fazendo com que se
desprendessem de seus galhos tornando o outono a estação mais feia. A cidade, por sua vez, respirava
sossego como se nunca o país tivesse entrado numa guerra e nem houvesse movimentos revolucionários.
Entregue em seus pensamentos, ela despertou ao ver distante a figura de um homem que se
aproximava, caminhando vagarosamente como quem não pretende chegar a lugar algum. O homem foi se
aproximando e quando chegou diante dela ele parou saudando-a cordialmente. Com a inesperada chegada
do estrangeiro ela deixou escapar involuntariamente um suspiro de emoção por se ver diante daquela
simpática e elegante figura que era o Conde Zaram, a quem ainda há poucas semanas tivera o prazer de
conhecer na festa em que ele tinha oferecido a sociedade peterburguense. Ele parou diante dela mudo e
contemplando sua beleza, num silêncio serio e tranquilo, longe de ser interpretado como um galanteio, até
que se manifestou:
– Como tem passado, mademosseli?
– Bem, meu senhor. – ela respondeu em tom vacilante, porém feliz por se ver diante dele, por quem
nutria certa admiração e encanto. O peito dela palpitava sob o fino corpete sob um casaco leve, diante da
inesperada visita.
– Preferiu a casa dos pais a viver num casarão cercada de criados? – perguntou o estrangeiro num
tom mais paterno do que alguém que quer especular a vida alheia.
– Oh, senhor. Sou muito feliz junto de meus pais. – respondeu a jovem, desta feita mais calma pela
presença dele, percebendo sinceridade em sua voz, como a de um verdadeiro amigo. – Às vezes me
questiono se era realmente feliz em meu casamento, um matrimônio que não escolhi, mas também não o

13
fiz contra a minha vontade. O que é o matrimônio, o que é o amor? Existe realmente esse sentimento
chamado amor? Pode dois seres se apaixonar?
O semblante do místico se cobriu de profunda melancólica sombra. Ele olhou no fundo dos olhos da
moça, sentiu o que ela mesma ainda não tinha consciência. Sentiu vontade de dizer a ela tudo aquilo que
sentia e a tendência do que poderia acontecer.
– Uma jovem singela não necessita de outro guia senão o seu coração. – ele disse brandamente a
jovem. – Perdoe-me, mas preciso seguir meu caminho. Amanha devo partir para a Itália onde tenho
assuntos a tratar.
Um impulso irresistível, uma espécie de ansiedade, um vago sentimento de esperança a impeliu a
perguntar:
– Tornarei a vê-lo, senhor?
– Sim, e em breve. – ele respondeu – Alguma coisa alheia a minha vontade me prende a esse lugar,
como se alguma coisa agradável me aguardasse, algo de que sempre fugi, mas que não conseguirei evitar.
Ao ouvir isso o coração da jovem palpitou mais forte e sentiu um leve tremor. Era como se o que
acabara de ouvir estivesse ligado a ela.
– Você conheceu cedo a dor da perda, embora não amasse seu marido, mas sentiu a dor aguda da
vida humana. – prosseguiu o místico – Observe aquela árvore, veja como cresce curvada e torcida. Algum
sopro de vento trouxe o germe do qual ela brotou. Em sua vida ela procura se esforçar criando o caule e os
ramos, por meio dos quais conseguiu elevar-se e se por em contato com a luz do céu. O que é que a tem
preservado e protegida contra todas as vantagens do seu nascimento e contra as circunstâncias adversas?
Por que são suas folhas tão verdes e tão formosas, como as das outras árvores que cresceram eretas? E por
que o instinto a impele a lutar, por que os esforços que tem feito para alcançar a luz a levaram, por fim, a
luz que tanto procurava? Assim, minha formosa jovem, com o coração imbuído de valentia, atravesse os
adversos acidentes e as mágoas, se dirigindo e olhando sempre para o sol, e lutando para alcançar o céu. É
essa a luz do saber dos fortes e a felicidade dos fracos. A natureza nos ensina. Lute, atravesse as trevas,
para conhecer a luz.
Zaram se despediu da jovem Ludmila e seguiu seu caminho que conduz aos palácios dos nobres
onde tinha a sua residência, deixando Ludmila em seu banco, pensando e refletindo sobre os últimos
acontecimentos em sua vida, e tentando entender as últimas palavras proferidas pelo cavalheiro.
Nunca pensei que pudesse alimentar um sentimento de amor. Estrangeiro, oh, estrangeiro! O que
sinto por você não é amor. Por que deveria eu amá-lo se mal acabo de conhecê-lo? Nunca ouvi da sua
boca uma palavra que mexesse com meus sentimentos íntimos. Só proferiu palavras para adverti-me e me
magoar. Como poderia eu amá-lo? Não é amor o que sinto. Se o amor é tal como pintam os poetas, como
Shakespeare fez em Romeo e Julieta, tal como tenho lido nos romances, como vejo nos teatros, não é
amor o que sinto. O que sinto é uma espécie de afeto respeitoso e cheio de temor, parece uma atração
sobrenatural que me impele em sua direção, associando com imagens que me encantam e me assustam ao
mesmo tempo. Oh, estrangeiro, às vezes desejo vê-lo e ouvi-lo. Advirta-me, me censure, torture o meu
coração. Somente não se apresente diante de mim como um pressagio de tristeza e de desgraça. Em meus
sonhos te vejo cheio de gloria e de luz em seus olhos radiantes e uma alegria celestial. Quem é você,
estrangeiro a quem sei apenas o nome?
Seus olhos estavam direcionados para onde ela o viu desaparecer naquela estrada que margeia o rio.
Barcos pesqueiros singravam as águas calmas do Rio Nevsky. Do lado oposto do rio, meio escondidos
atrás das ´´árvores que circundavam toda aquela extensão, tinha as riquíssimas mansões habitadas por
pessoas como ela e sua família. O calor daquela tarde tornava a sua face de cor rosada, dando uma
extraordinária languidez em seus olhos da cor do céu, que poderiam ser confundido com rubor por estar
com pensamentos voltados a um homem.
Sua governanta a despertou de seus devaneios, chamando-a para o chá da tarde.
– Vi que conversava com aquele distinto e misterioso cavalheiro – disse a governanta com certa
dose de cinismo. – Não posso deixar de admitir que ele é um homem interessante, atraente e rico, mas
falam coisas sobre ele, sua misteriosa existência.

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– Falam demais. – protestou a jovem – Tudo o que falam sobre o Conde Zaram não passa de meras
especulações. Acaso não conhece esse povo peterburguense?
– Meu bem, tenha certeza de que toda a sua formosura, sua juventude e sua fortuna são fruto de
bruxaria – disse a governanta tentando persuadir a jovem a esquecer aquele homem estranho.
– Acredita mesmo nessas superstições baratas? – indagou a jovem com ar de espanto.
– Que existe bruxaria? – respondeu prontamente – Creio em bruxaria como creio em São Jorge, no
Nosso Senhor Jesus Cristo e na nossa Santa Igreja. Esse homem realiza curas usando de porções mágicas.
E mais, minha eterna menina, como pode esse homem viver por mais de trezentos anos? Com acha que ele
fascina aos quais deposita o seu olhar e faz com que se submetam sua vontade?
– Ah, Deus do céu, será bruxaria? – murmurou empalidecida com as revelações da governanta a
quem sempre deu crédito desde a sua infância, porque foi ela quem a criou, a educou e cuidou dela em
todos os momentos de sua vida. Contudo, diante de seus sentimentos, sua inocência e ignorância acerca de
assuntos elevados, se acalmaram ao sentir o efeito de uma paixão original atribuindo esse sentimento ao
amor.
– Oh, minha querida ama, – interveio a jovem – desde que o conheci, desde que seus olhos negros
se depararam com os meus, sinto-me totalmente transformada, como se até então, tivesse vivendo num
regime de clausura, acatando ordens dos meus pais e fazendo tudo o que lhes era conveniente, vivendo
para satisfazer todos os seus desejos. Às vezes desejo fugir de mim mesma, desaparecer como os raios do
sol detrás do horizonte, Oh, minha ama querida, converta-me em alguma coisa que não seja desse mundo,
liberte-me dessas algemas que me prendem, que me mantém nesse mundo cruel que me escraviza,
impedindo que minha alma viaje pelo espaço em total liberdade. Às vezes, em meus sonhos, uma multidão
de fantasmas cruza diante dos meus olhos, enquanto sinto no coração uma agitação como se fossem asas
de uma ave, como se meu espírito aterrorizado quisesse fugir de uma paixão. Ah, minha amada ama, deixa
que eu assim acredite, não fale mais nada. Deixe-me, eu lhe peço, deixe-me seguir o meu coração. Deixe-
me sozinha, em volta aos meus pensamentos, deixe-me fugir de meu passado, deixe-me, ao menos desta
vez, ser livre para voar como um pássaro em busca de meus sonhos.
A ama nada mais disse a jovem. A mesa para o chá da tarde estava posta, sua mãe a aguardava.
Na manha do dia seguinte, o navio de Zaram zarpou rumo à Itália.

Ilya Abraãomovitch, a muito custo tentava conciliar a sua atividade, os estudos, a administração da
fábrica e algumas horas entre seus amigos. Desde a chegada de Zaram ele deixou de vez os cultos na
Sinagoga, mas na verdade, depois de adulto, nunca foi um religioso fervoroso. Até mesmo as suas
amizades eram fora do seu círculo religioso. Quando vivia sob a tutela dos pais, ia assiduamente aos
cultos, gostava de ver o Rabino cantar e dizia que queria ser rabino para cantar com um vozeirão que ia
deixar os crentes boquiabertos. Seus primeiros passos no aprendizado da música foram em casa com a
própria mãe. Fez algumas aulas de violino, mas logo descobriu que a música não era seu forte, e que,
também, não tinha o menor talento para o canto.
Seu pai achou por melhor o ensinar a trabalhar e cuidar do que era dele, pois dia ou outro acabaria
herdando as Indústrias Têxteis Riabushinsk, e assim o fez. Na Inglaterra se destacou entre seus colegas de
classe pelo seu empenho, dedicação e inteligência. Formou-se em Engenharia Têxtil com honraria.
Ele não via com bons olhos a situação em que vivia o povo russo. Para ele não era novidade ver a
pobreza e a miséria. Mesmo na Inglaterra, era comum se deparar com pedintes, e prostituição nas ruas
centrais, mas a situação na Rússia era deprimente. Quando adolescente chegava sonhar em se tornar um
governante para dar ao povo uma vida melhor. E agora, como adulto e Presidente de uma próspera
indústria, ao menos pagava seus operários dignamente, como também era o tratamento dispensado a eles.
Quando ficava sabendo que algum de seus empregados tinha problemas de saúde na sua família ele
comprava os medicamentos necessários para o restabelecimento do enfermo. Fazia tudo isso sem que o
beneficiado soubesse quem era o benfeitor.
Assim era Ilya Abraãomovitch, o pretendente aos graus elevados da ciência e da sabedoria. Mas não
deixava de ser o moço que, algumas vezes, se reunia com seus amigos, fosse em festas, excursionando em

15
algum lugar interessante, cortejando as moças ou uma bebedeira em alguma taberna, as vezes com judeus,
as vezes com não judeus.
Ilya Abraãomovitch deixou seu gabinete de trabalho além do horário habitual. Tinha dispensado a
secretária, pois achava que não era justo prender a mulher, uma senhora que trabalhava na empresa há
mais de trinta anos, tinha netos para cuidar, além dos afazeres domésticos.
Apesar de ser ainda oito horas da noite, havia sol para iluminar as ruas movimentadas da região
central da cidade. Uma temperatura agradável e convidativa para estar entre amigos. Pelas ruas algumas
moças desfilavam elegantemente com vestidos da moda, ele flertava com elas trocando discretos olhares.
Desde que havia começado os seus estudos com Zaram dedicava pelo menos dois dias da semana
para o aprendizado, sempre aos sábados e domingos para não atrapalhar suas atividades na fabrica. Sabia
que, caso desejasse dar o passo derradeiro, teria que se ausentar por longos meses das suas atividades
profissionais e do convívio social, se isolando e estudando com afinco para estar apto para a iniciação.
Não queria pensar em nada daquilo que estava estudando, e para se descontrair entrou numa cantina
disposto beber alguma coisa, mesmo sem uma companhia. Às vezes gostava de ficar só, deixar a mente
vagar, observar as pessoas ao redor, olhar as moças que passavam em pares de braços dados, flertar com
elas, ou mesmo não pensar em nada. Entrou naquela cantina ainda não cheia àquela hora. Escolheu uma
mesa próxima a janela de onde poderia olhar as pessoas que passavam. Mal havia sentado, foi abordado
por um amigo.
– Quem resolveu sair da toca. – disse o amigo o abraçando e batendo em suas costas - Espera
alguém, oh, espero que não porque você vai me acompanhar, vamos a outro lugar mais animado, por
favor.
Ilya Abraãomovitch achou providencial a inesperada aparição do amigo. Era judeu como ele,
amigos desde os tempos de meninos. Deixaram de se ver quando ele partiu para a Inglaterra. O recém-
chegado era filho de um rico banqueiro, e como ele, trabalhava na empresa da família.
– Mas o que tem de interessante para me oferecer – perguntou ao amigo mantendo um largo sorriso
nos lábios, não escondendo a felicidade do encontro entre eles.
– Tem uma cantina que serve comida italiana e um bom vinho – disse o amigo – Nada de vodca
hoje. Deixemos a vodca para os russos que gostam de se embebedarem.
– Mas também somos russos – interveio Ilya Abraãomovitch.
– Somos, acima de tudo judeu.– disse ao amigo - Mas me conta, por onde tem andado? Não o vejo
faz tempo, Ilya. Falam por aí que tem andado com aquele estrangeiro, sujeito estranho, como é o nome
dele? – formulou a pergunta a si mesmo, e depois prossegui – Conde Zaram, sim Zaram é seu nome...
– Sim, posso dizer que somos amigos. – afirmou.
– E o que pode um sujeito como ele acrescentar em sua vida, caro amigo? Falam coisas estranhas
sobre aquele homem...
– Tudo o que dizem não passa de pura especulação. – interveio Ilya Abraãomovitch – Sabe como é
o povo. O Conde Zaram é um distinto cavalheiro, um bem sucedido homem de negócios...
– Mas sua fortuna, – insistiu o rapaz – dizem que é fruto de magia...
– E a fortuna de nossos pais, de onde veio?
– Trabalho, muito trabalho, Ilya.
– Da mesma forma a fortuna do senhor Zaram.
– Mas tem coisas estranhas sim – disse o rapaz olhando ao redor como quem vai confidenciar um
grande segredo. – Conhece o Sr. Iakov da nossa Sinagoga? Pois bem, sabe que ele tem mais de oitenta
anos de vida, que os céus o mantenham sempre com boa saúde. Ele disse que conheceu esse senhor Zaram
há sessenta anos passados, quando ainda era moço, e esse homem, apesar de se apresentar com outro
nome, tinha as mesmas feições, a mesma juventude, a mesma disposição. Acredita nisso?
– Levi, – Ilya se dirigiu ao rapaz segurando - o pelo braço – tanto tempo que não nos vemos para
ficarmos especulando a vida de um nobre cavalheiro como o Conde Zaram. Prefiro que me fale sobre sua
vida, como andam os negócios de seu pai, seus amores.

16
– Ah, meu grande amigo Ilya, pra dizer a verdade, o que nos preocupa são esses boatos sobre uma
possível revolução do proletariado. Já imaginou se isso acontecer? – disse o rapaz.
– E por que o povo se revolta? – inquiriu Ilya - Esse contraste social em que vive o nosso país. Acha
isso correto? Já viu como vive a maioria da população?
– Ah, não pode ser. Não me diga que anda lendo as bobagens de Lênin, ou foi o misterioso Conde
Zaram que colocou essas ideias em sua cabaça?
– Ninguém colocou ideia alguma, tampouco foi algum escrito de Lênin que me faz pensar assim. –
retrucou Ilya demonstrando certa impaciência. – Será que não percebe como vive essa gente? Você nasceu
em berço de ouro, não tem olhos para esse sofrido povo. Pare e olhe para essa gente, tente sentir a dor da
fome, o frio e a falta de assistência médica e medicamentos, e a falta de perspectiva nesta vida.
– Mas não é minha culpa...
– É sim culpa de cada um de nós – retrucou Ilya, desta feita não escondendo sua irritação. – Nós os
exploramos, sugamos cada gota de sangue desse povo, seja explorando o seu trabalho, emprestando
dinheiro a juros altos, tomando as suas propriedades por não poderem pagar as hipotecas, e com nossa
indiferença. Quando olhou para essa gente, Levi?
– Mas se pensarmos assim...
– Basta! – disse asperamente – Não é desta vez que vamos jantar comida italiana. Vereemo-nos em
outra ocasião. Adeus.

CINCO
Em Nápoles, seguindo em direção ao Tumulo de Virgílio, se avista uma colina com frente para uma
baia com uma paisagem pitoresca. O mar azul se funde com o céu no horizonte. A visão daquele lugar
propicia uma paz incomum. Olhando mais a frente, e possível ver bem ao fundo a montanha imponente
onde dorme o Vesúvio, depois de fazer a tragédia em Pompéia e Herculano. No cimo da referida colina
tem um castelo do tempo da idade média. Ali mora um singular recluso. Ele não tem amigos e nem
companheiros. Seus amigos são os livros e os instrumentos científicos. Às vezes é visto caminhando pelas
verdejantes colinas, ou pelas ruas do lugarejo, não com ar negligente de quem está acima do cidadão
comum, mas com os olhos observadores e penetrantes de quem parece sondar os corações das pessoas.
Também, raras vezes se detém para conversar ou se refrescar com um tinto numa cantina, ou experimentar
alguns dos pratos oferecidos no lugar.
É um homem robusto e ereto como um moço, apesar de aparentar uma idade entre ser maduro e um
ancião. Segundo as aparências, ele vive para si, mas as aparências são enganadoras, pois a ciência, como
também a benevolência, vive para o universo.
Estava ali ao seu lado o único ser vivente a quem podia chamar de amigo. Pouco tempo tinha se
passado desde a última vez em que se viram, ao menos fisicamente. Mas são sábios, e se são sábios o
pensamento de um pode ir ao encontro do pensamento do outro, e o espírito daquele voa em busca do
espírito deste. Nada neste mundo é capaz de separar os sábios, e ali estavam presentes dois eruditos de
tempos remotos, dois amigos, dois irmãos.
Eles conversavam, falavam de suas aventuras, suas experiências nesses anos de vivência, falavam
do passado. No semblante de Zaram, apesar de sua calma habitual, as emoções apareciam e sumiam. O
mesmo não ocorria no semblante inexpressivo do outro, para quem o passado, o mesmo que o presente,
não era mais do que a natureza para o sábio, ou o livro para o estudante.
– Ah, caro amigo, nos fins do século XVIII o futuro parecia uma coisa tangível, e o tempo passou, –
dizia Zaram que tinha se ausentado de São Peterburgo para visitar o amigo e tratar de assuntos de interesse
– Vimos muita coisa acontecer, passamos por cima dos acontecimentos e nada nos aconteceu de ruim,
porque somos diferentes dos outros homens, driblamos as diversidades, a enfermidade e as vissitudes que
a vida impõe.
– O homem, o filho mais maduro do tempo, está como no leito de morte, olhando o novo horizonte
envolto entre nuvens e ensanguentados vapores. – dizia o mais velho. E enquanto falava podia se notar em
seus olhos a frieza e indiferença, enquanto nos olhos do outro se via a sublime e tocante tristeza que

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obscurece o imponente semblante. Enquanto um olha com indiferença a luta do homem e seu resultado, o
outro a contempla com horror e compaixão. A sabedoria contemplando o gênero humano, só conduz a
esses dois resultados: desdém ou a compaixão.
– Quem crê na existência de outros mundos – dizia o ancião – pode acostumar-se a considerar esse
mundo, assim como o naturalista considera as revoluções de um formigueiro ou a uma folha. O que é a
terra para o infinito? Que valor tem a sua duração para o eterno? Quantas vezes a alma de um homem é
mais importante e maior do que as vissitudes de todo o globo terrestre?
– Filho do Céu e herdeiro da imortalidade, – prosseguiu o ancião – como e quando, residindo numa
estrela olhará depois o formigueiro e as suas comoções? O espírito que sabe contemplar e que vive
somente no mundo intelectual pode subir à sua estrela, embora ainda viva nesse cemitério chamado Terra,
enquanto o sarcófago chamado Vida encerra em suas paredes de barro a Essência Eterna. Porém você,
Zaram, se recusa a viver somente no mundo intelectual não mortificou o coração. O seu pulso bate ainda
com a doce música da paixão dos mortais. A humanidade é para você ainda uma coisa mais atrativa do
que o abstrato. Você quer ver a revolução em seu berço que a tempestade embala, e quer ver o mundo
enquanto os seus elementos lutam para sair do caos.
- Sim, caro irmão – interveio Zaram – Não nego que as vaidades e os prazeres da humanidade me
atraem. Em meu modo de ver a vida, de que valeria essa minha ilimitada existência se não fosse para viver
o melhor que a vida me oferece?
Senmuth nada disse.
– Retornei a Rússia para respirar novos ares, e pelo visto muita coisa ruim paira no ar aguardando o
momento para cair sobre aquela nação. Mas também tem um jovem que é um forte candidato a se tornar
mais um dos nossos. Ele carrega em suas veias o sangue de seu bisavô, a quem você teve o privilégio de
conduzir aos primeiro degraus da nossa amada ordem.
– Num momento em que o país sofrerá mudanças a custo de sangue inocente, - interveio o ancião -
Justamente quando isso e outras coisas ruins estão prestes a acontecer?
– Conhece bem minha natureza, Senmuth, amigo de tanto tempo, que já me viu diante de situações
que nem mesmo eu achava que poderia me desvencilhar – dizia Zaram tocando no ombro do amigo. -
Sabe tanto quanto eu como para mim seria difícil ficar enclausurado num castelo contemplando,
estudando a natureza sem sequer desfrutar do que a vida nos oferece.
– Temos naturezas diferentes. Não censuro seu modo de viver, o compreendo perfeitamente, mas
não nego que sinto certo receio que um dia acabe se envolvendo nos problemas da humanidade, e que
venha sofrer seqüelas por isso. – dizia o ancião – E sabe o que espera este país, o que pode acontecer. E
sobre o jovem judeu, prepare-o, cuide dele, e quando achar o momento, traga-o ate mim que terei a maior
satisfação de conduzi-lo até o umbral que separa o mundo material da Ciência e da Sabedoria. E sobre sua
maneira de viver e sua paixão pela humanidade, só me resta dizer para que faça conforme a sua vontade,
já que é isso que deseja. Sabe que estarei sempre aqui para quando desejar conversar e mesmo para
receber um conselho. Vá, meu caro e venerável amigo. Segue o seu coração, e seja feliz.

VIENA, ÁUSTRIA 1910


Zaram partiu de Nápoles indo direto à Viena onde tinha negócios para tratar. Chegou a cidade em
meio a muita agitação de manifestantes descontentes pela situação do país, a que muitos classificavam
como puro descaso dos governantes. Naquele início da segunda década do século XX, Viena era uma
cidade em que era visível o desequilíbrio social; de um lado a brilhante riqueza ostentada por uma
minoria, do outro lado a degradante pobreza revezando-se em contrastes violentos. Uma verdadeira
babilônia, um Estado de várias nacionalidades podendo-se ouvir pelas ruas línguas estrangeiras,
destacando aquelas dos países do leste como a polonesa, tcheca, iugoslava, romena, e principalmente a
húngara, para quem a vida não parecia ruim. Tinham seus empregos, sabiam economizar e aos poucos iam
conseguindo um pequeno comércio, uma casa pela periferia da cidade, e assim iam prosperando.
A Côrte, no seu deslumbrante esplendor, agia como ímã para estrangeiros que viam na Áustria a
possibilidade de fazerem fortuna. Esses se espelhavam nos judeus, a maioria bem sucedidos em seus

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negócios, tornando-os homens influentes entre os políticos que compunham o Parlamento, como em quase
todos os setores da sociedade. A Monarquia dos Habsburgos não andava bem, portanto não fazia a menor
questão que gente oriunda dos países vizinhos tivesse os mesmos direitos dos cidadãos austríacos, mesmo
ocupando seus lugares nas fabricas, adquirindo comércios e enriquecendo, desde que engordassem seus
cofres, por sinal em baixa, e pagassem tributos ao Império. Muitos achavam que tudo seria diferente se
houvesse no povo o senso nacionalista e a união da Áustria com a Alemanha, como era antes. Falam a
mesma língua, nas veias dos alemães e dos austríacos corre o mesmo sangue. Os dois países se
fortaleceriam.
Culpavam os imigrantes das repúblicas do leste, achando que deveriam ser expulsos do território
germânico, classificando-os como usurpadores que só serviam para sugar o que a Áustria tem para
oferecer, além de estar ocupando o lugar do cidadão austríaco, o dono do lugar. A desordenada imigração
estrangeira permitida pela Monarquia dos Habsburgos e aquele Parlamento corrupto composto por
políticos desinteressados no bem estar do povo e da nação, enriquecem a custa da desgraça alheia.
Bastava dar um giro pela história da Áustria para entender algumas coisas. A Áustria era um Estado
de muitas nacionalidades. O cidadão do Império alemão não podia compreender a significação desse fato
na vida diária do individuo, em um Estado organizado como era a Áustria. Isso fazia com que cidadãos
alemães se sentissem satisfeitos pela unificação dessas duas grandes potências, mas a Monarquia dos
Habsburgos não via dessa maneira. Para eles, o que importava eram os tributos recolhidos, não
importando se eram dos tchecos, dos poloneses, iugoslavos ou mesmo dos judeus.
Havia um sentimento anti-judaico que predominava por toda a cidade. Livros e panfletos
antissemitas jorravam das gráficas acusando os judeus pela crise econômica do país. Muitos jovens não se
conformavam com a situação, achavam que melhor seria emigrar para a Alemanha, de onde,
provavelmente, seria mais fácil lutar pela unificação dos dois países.
Zaram se encontrava num café, sentado numa mesa na calçada, quando foi abordado por um desses
jovens idealistas. Era um rapaz baixo, cabelos pretos e com olhos azuis nada combinando com aquele
rosto feio e um nariz meio grande para aquele rosto, com um bigode longo e pontiagudo, como era a
moda. Era meio raquítico como quem não se alimentava direito. Chegou até ele e pediu algum dinheiro
para que pudesse ajuntar para viajar a Alemanha. Zaram o convidou para sentar a sua nessa e comesse
alguma coisa, porque era notório que o rapaz estava subnutrido. Mas, orgulhoso, não aceitou ao convite.
Nesse instante Zaram teve uma sensação estranha ao olhar nos olhos do rapaz. Uma sensação de que se
encontrariam num futuro quando a situação seria adversa, alem de ver naquele jovem idealista coisas
terríveis contra a humanidade, orquestrada por ele.
Aquele episodio o fez pensar sobre destino da Europa, que muita coisa ruim estava por vir. Uma
semana depois estava de volta a São Peterburgo.

SEIS
Um pequeno grupo de rapazes conversava descontraidamente numa cantina, sentados do lado de
fora, em mesas espalhadas pela calçada quase a beira do Canal Moyka. Aves marinhas sobrevoavam o
canal com olhos voltados para as águas, esperando que algum peixe subisse a tona em busca de ar. Os
rapazes estavam alheios ao que faziam as gaivotas, pois a conversa era animada e o tema em questão era a
revolução, filosofia, literatura e ciência. No tocante a revolução era o que se podia considerar
contraditório, pois eram homens distintos, nascidos em berços nobres, pais que ostentavam títulos de
nobreza, como também por seus princípios liberais. Falavam da igualdade numa sociedade sem classes,
onde o proletariado deixaria de ser aquele serviçal mal remunerado e morando em barracos, ou
aglomerados em apartamentos junto com outras famílias. Entre uma conversa e outra, cálices e mais
cálices de vodca eram ingeridos, contudo, sem que alguém demonstrasse embriagues. Celebravam uma
dessas festas denominadas petits soupers, que tornara famosa a capital de todos os prazeres
gastronômicos. Mudaram radicalmente o tema da conversa, desta feita deixando a revolução passando
para assunto literário, cientifico e filosofia.

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– Ninguém pode negar que Voltaire foi maior do que Homero. – disse um cavalheiro de porte
elegante, ostentando certa arrogância em suas maneiras refinadas.
– Também não podemos deixar de reconhecer a grandeza de Homero. – interveio outro.
– Prefiro nossos grandes mestres da literatura, o que temos de sobra. – um terceiro acrescentou. –
Temos bons autores, cada qual com seu estilo, sua maneira de criticar a podridão da sociedade da qual
fazemos parte.
– Refere – se a Gogol? – alguém perguntou.
– Por que não? – disse o rapaz – Inspetor Geral, Taras Bulba, e por que não falar de Dostoievski em
Irmãos Karamazov, Tolstoi em Guerra e Paz.
– Não podemos esquecer-nos do nosso meio negro Alexandre Puchkin. – alguém acrescentou.
– Certo, cavalheiros, mas vamos ficar falando sobre escritores e suas obras, quando tem uma
revolução batendo a nossa porta? – interveio outro rapaz.
– Concordo plenamente. – interveio outro – A meu ver somente uma revolução poderá colocar as
coisas em seus devidos lugares...
– E qual é o lugar certo – perguntou outro rapaz que parecia não ser a favor de mudança alguma, por
temer perder seu status de nobreza.
– Liberdade, igualdade e fraternidade – alguém respondeu.
– Maximiliano Robespierre dizia isso e acabou tendo o pescoço cortado na guilhotina que ele
próprio criou.
Interromperam a conversa com a chegada de Ilya Abraãomovitch, que sempre era bem vindo nessas
rodinhas, como em todas as festas das melhores famílias peterburguense.
– Bem vindo, Ilya Abraãomovitch. Estávamos debatendo sobre literatura, se Homero é maior do que
Voltaire, ou Dostoievski, Puchkin, ou sobre a revolução – disse um dos rapazes soltando uma gargalhada
de deboche.
– Mas mudamos o tema, estamos falando sobre a revolução.
– Alguém leu Karl Marx– perguntou Ilya Abraãomovitch. Todos se calaram como que aguardando
que ele dissesse alguma coisa a mais sobre esse alemão. E para divertimento de todos, ele acabou
confessando que também não lera nenhum escrito de Marx.
– O que sei sobre Marx é que escreveu o Manifesto Comunista – prosseguiu Ilya – Os movimentos
revolucionários emergentes falam em mudar o sistema político baseado nas teorias de Marx. Eu discordo
plenamente sobre qualquer revolução ou com o fim da monarquia. Países como a Suécia, Dinamarca,
Reino Unido, Alemanha, todos vivem sob o regime monárquico e vivem bem. Mas não nego que não
concordo com a maneira como vive o proletariado, essa desigualdade social.
– Mas vejam quem se aproxima, o próprio Conde Zaram, de quem se ouve falar tantas coisas. Ele
não estava fora? Já retornou. – disse um dos rapazes voltando-se para Ilya, dizendo em seguida:
– Ele é seu amigo, por que não o convida para compor a nossa mesa?
Não foi preciso porque o próprio Zaram se aproximou, ao ver que Ilya compunha aquele alegre
grupo. Gostava de estar entre pessoas, fossem jovens ou pessoas mais maduras, sempre era possível passar
umas horas agradáveis e participar de uma boa conversa.
– Cavalheiro, sente-se e participe da nossa conversa. O tema em questão é o que está em voga –
interveio um dos rapazes – Um assunto que divide opiniões; a provável revolução. O que tem a dizer sobre
esse assunto, senhor?
– O que poso dizer? Vi algumas revoluções, surgem da necessidade, da carência do povo menos
privilegiado, liderada por algum intelectual. Têm seus dois lados: favorece a alguns e não favorável a
outros, principalmente a classe abastada, a nobreza. E mais: pois até que os revolucionários atinjam seus
intentos, muitas vidas são ceifadas. – concluiu o místico.
– Perdoe-me cavalheiro, mas pelo que entendi acabou de dizer que viu algumas revoluções. Aonde,
meu senhor, se pelo que me consta, a última foi na França no século XVIII, a Guerra da Secessão nos
Estados Unidos? Não, aquilo foi guerra e não revolução.

20
– Muitas cabeças rolaram para o cesto da guilhotina, a morte é o preço para que uma revolução
tenha um vencedor. – prosseguiu o místico ignorando o que disse aquele rapaz.
– Não respondeu a minha pergunta, cavalheiro...
– E que diferença faz se fui testemunha ocular ou se falo baseado em meus conhecimentos de
história? O que quero que tenham em mente é sobre o preço que custa uma revolução, compreendem?
Mas desejam saber detalhes sobre o efeito que uma revolução produz na classe abastada? Pois vou
responder: toda revolução visa à mudança de sistema político e social, diminuir a diferença entre o mais
pobre e o mais rico. Um exemplo: Ivan, O Terrível, extinguiu a classe dos boiardos para que a Rússia
tivesse uma sociedade justa, tendo somente ele, como monarca, direitos e privilégios dignos somente a um
tzar. Isso foi uma revolução, a Rússia prosperou, se protegeu e afastou os inimigos estrangeiros que
ameaçavam constantemente a nação. E sobre que efeito a revolução produzirá sobre os mais abastados, eu
lhes digo que não é nada que possa agradá-los, senhores. Se esses revolucionários se basearem nas teorias
de Marx, é certo que não haverá mais diferenças de classes.
– Mas primeiramente terão que vencer a revolução...
– E vencerão – prosseguiu o místico.
– Diz isso com certa convicção, como se soubesse que...
– Respondi a pergunta que me foi feita – interveio o místico. – Talvez não seja a resposta que
desejariam ouvir. Mas lhes digo que haverá uma revolução neste país e os revolucionários vencerão.
Um clima tenso pairou no ar. Todos ficaram calados olhando para Zaram, aguardando que este
fizesse mais algumas revelações. A revolução era debatida tanto entre a nobreza como entre os
camponeses e o proletariado. Panfletos eram distribuídos nas portas de fábricas, nas ruas. Aos poucos ia
ganhando apoio entre a classe artística, estudantil. Uma vontade popular que vinha desde há muito tempo,
quando o pai do tzar Nicolau II era o tzar, que sofreu um atentado liderado pelo irmão de Vladmir Lênin
que encabeçava o principal movimento revolucionário.
Zaram fez menção de se retirar, mas foi impedido por Ilya Abraãomovitch que insistiu para que
prosseguisse com suas explanações.
Antes de prosseguir ele sorveu um gole de um tinto feito com uvas da Geórgia, oferecido pelo
próprio taberneiro, um velho georgiano que sentia orgulho dos produtos da sua terra, que não era
apreciado pelos russos que gostavam de se empanturrar na vodca até ficarem bêbados. Ao beber os
primeiros goles ele não pode deixar de elogiar o velho por tão saboroso vinho, o que o deixou feliz. Bebeu
outro gole mantendo aquela pequena porção entre a língua e o céu da boca, como compraz a um bom
conhecedor de vinhos. Depois, voltando–se aos rapazes que aguardavam calados, ele continuou:
– A Rússia entrará numa guerra sanguinária contra a Alemanha, o que não deixa de ser um bom
momento para os revolucionários agirem. Em consequência desses conflitos, a monarquia cairá e a
revolução será concretizada, o que mudará radicalmente a Rússia.
– Não posso acreditar – interveio um dos presentes – O povo da Rússia jamais permitirá que toquem
no tzar. Ele é o Paizinho do povo russo, tanto das classes privilegiadas como pela classe pobre. A mais, o
Rei George da Inglaterra é primo do tzar. Não permitirá que seja molestado por um bando de arruaceiro.
Ele dará apoio militar, se for necessário.
– Luís VI não acreditava que o povo lhe tomaria o poder, como Napoleão Bonaparte jamais
imaginou que sairia humilhado da Rússia e que seria derrotado pelos ingleses em Waterloo e que seu fim
seria num exílio. – disse o místico.
– O que é socialismo, é isso o que desejam esses revolucionários, meu caro cavalheiro? – alguém
perguntou.
- Para que compreendam é necessário que saibam um pouco sobre as teorias de Marx e Engels. –
prosseguiu o místico. – Segundo Marx a história evoluiria através de uma sucessão de lutas de classes,
pela qual as populações economicamente produtivas chegarão ao poder, arrancando das mãos dos que
vivem de explorar o trabalho alheio. Nessa linha de raciocínio Marx previa a luta final da qual emergiria a
sociedade sem classes, onde todos partilhariam, igualmente, dos frutos do trabalho coletivo. Ainda,
segundo Marx, a última dessas lutas, até aquele momento, ocorreria quando os capitalistas, a burguesia

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derrubarem os senhores feudais. A partir de então, o mundo estaria maduro para o confronto final entre a
burguesia e o proletariado. Claro que isso ele escreveu ha cinquenta anos atrás, e hoje a realidade é outra,
fazendo com que passem por cima de todas essas etapas, como disse Marx, e vão direto a tomada do poder
para então instituírem o novo regime. De tempos em tempos ocorrem mudanças na terra, sejam conquistas
territoriais pela guerra ou pela tomada do poder por revolucionários.
A pequena plateia permanecia atenciosa, encantada com a maneira como ele falava e seu
conhecimento acerca daquele assunto.
– O que pode salvar o mundo é a filosofia aliada à ciência, e a descrença a superstição. – continuou
– É absolutamente necessário que a superstição, o fanatismo e a crença cega imposta pela religião cedam
lugar a filosofia. Os reis perseguem as pessoas, os sacerdotes perseguem as opiniões. Quando não houver
mais reis os homens estarão seguros, quando não houver sacerdotes o pensamento será livre. Então não
haverá mais guerras e nem revoluções, porque ninguém precisará reivindicar mais nada. Não mais
tributarão honras a arte da guerra, que é a arte de assassinar. Darão grande importância a medicina, a
ciência e a filosofia, e todas as mentes privilegiadas se entregarão à busca dos descobrimentos que tende a
melhorar as causas que produzem as doenças e a morte. Não é possível eternizar a vida, mas creio que é
possível prorrogá-la. Assim como o mais insignificante animal lega o seu vigor à sua prole, da mesma
forma o homem transmitirá a seus filhos a sua aperfeiçoada organização mental e física. Essa é a
verdadeira revolução. Este século em que vivemos será o século das grandes mudanças, das grandes
conquistas da ciência, das grandes descobertas que fará com que a vida seja prolongada e, também, depois
de terríveis conflitos entre nações, o mundo vai respirar a paz, com exceção de algumas repúblicas que
vão querer ajustar situações com guerras. Mas serão casos paralelos. O mundo vai respirar a paz.
Dizendo isso ele pagou a sua conta e se despediu do grupo que permaneceu calado olhando um para
o outro, até que alguém reiniciou a conversa:
– Ele fala com certa convicção, como se pudesse prever o dia de amanha. Pode alguém prever o
futuro?
– Falam coisas estranhas sobre esse homem – interveio alguém. – Dizem que ele tem pacto com o
maligno, que lhe confere poderes que o homem comum não tem, além da sua fortuna.
– Que grande bobagem – interveio Ilya – Esse homem é um filósofo, um sábio conhecedor da
ciência. Ele pode sim prever o futuro, mas não com adivinhação como fazem os charlatões, mas por
conhecimento da ciência, da história. Ele conhece as fraquezas e as aspirações do ser humano, e é lógico
que baseado em tudo, na história, nas tendências, nas reivindicações do povo não atendidas, e calcula o
tempo em que as mudanças poderão ocorrer. Em momento algum ele nos disse a data desse ou de algum
outro acontecimento, compreenderam?
– Faz sentido, mas o distinto cavalheiro não deixa de ser estranho – disse um dos rapazes – Ouvi
dizer por aí que ele é um desses homens pertencentes a uma dessas sociedades secretas onde é possível
desenvolver poderes. Mas diga-nos Ilya Abraãomovitch, você que tem o privilégio de gozar da amizade
do cavalheiro, o que sabe sobre ele?
– Ele é um bom amigo, distinto, divertido, muito rico e goza das intenções das nossas melhores
damas. – disse rindo, e depois prosseguiu falando sobre o místico, desta feita com seriedade.
– Tive o privilégio de conhecê-lo em Nápoles logo após a minha formatura. Eu dividi com ele a
mesa de uma taberna sob a tarde ensolarada daquele lugar. Naquele dia ele me falou coisas que me
deixaram boquiaberto, pelo seu conhecimento na arte do misticismo, da ciência e da filosofia.
Ilya Abraãomovitch preferiu não dizer nada sobre sua participação como discípulo tendo Zaram
como seu mestre. Certamente, aquele pequeno grupo preocupado com festas, conversar em taberna regada
de vodca e que viam a revolução como algo de novo para se discutir, jamais compreenderia seu interesse
pelo oculto. Além do mais, com a formação religiosa da maioria da nobreza russa, veriam seu ato como
algo de abominável porque, mesmo não sendo eles assíduos frequentadores das missas, tinham a fé
ortodoxa russa como algo enraizado em suas mentes desde as suas infâncias.
– O senhor Zaram é quem considero um grande amigo, e ficaria ofendido se alguém aqui dissesse
coisas não condizentes e que venha ofender a dignidade desse distinto cavalheiro e meu distinto amigo.

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Ilya Abraãomovitch pagou a sua conta e partiu.

Grigori Yefimovitch Rasputin perambulava pelas ruas de São Peterburgo se apresentando nas igrejas
como monge curandeiro a serviço de Deus para cuidar dos enfermos. Oriundo da aldeia de Tobolks,
Sibéria, ex membro da seita Khrysty, uma seita mística onde desenvolveu o dom de magnetizar e
impressionar as pessoas, era um camponês rude e semianalfabeto que fazia suas preces numa língua
estranha e desconhecida, que ele dizia ser a língua dos anjos.
Aos poucos sua fama de curandeiro foi se espalhando caindo nos ouvidos da tzarina Alexandra
Fiodorevna Romanova. através de uma aia da Corte. A família imperial era pródiga em adivinhações,
superstições. ilusionismo e aos hipnotizadores, vindo a calhar num momento de turbulência com a guerra
contra o Japão e o prenúncio de uma revolução. A tzarina chamou o pretenso monge para rezar pelo
príncipe herdeiro, na tentativa de aliviar o menino que sofria de hemofilia, o que ele fez com sucesso,
caindo nas graças da tzarina. A partir de então passou a conviver no meio da família imperial fazendo
previsões e orientando o monarca em suas decisões.
Com o passar do tempo, sua influência na Corte era grande, a ponto de alguns ministros e militares
pedirem-lhe para que intercedesse junto ao tzar a seus favores, o que ele negava, ganhando assim
antipatia.
O Império russo passava por momentos críticos. O tzar tinha planos de modernizar a indústria
importando tecnologia, mas tudo não saia do papel, projetos e mais projetos sem, contudo, pôr qualquer
dos planos em prática. Com isso ele incentivava a rejeição contra si. Quanto ao povo, a maioria era a favor
da revolução, porque achavam que era hora da Rússia ser como os outros países, com o cidadão gozando
de direitos civis, moradias decentes sem ter que se amontoarem com outras famílias em apartamentos
apertados, melhores trabalhos, escolas para seus filhos e uma vida digna.
O tzar devotava a sua preocupação a seu filho, deixando a direção do país em segundo plano, além
dos problemas domésticos devido ao gênio forte de sua esposa alemã, que também era motivo de desgosto
por parte de seus súditos, acusando-o de querer germanizar a Rússia para agradar a esposa.
Os movimentos revolucionários tiravam proveito da instabilidade, com argumentos que justificavam
o fim da monarquia e da sujeição a Igreja Ortodoxa Russa aliada ao tzar, que mantinha o país num atraso
tecnológico e cultural e manter o povo no regime de semiescravidão.
O suposto monge caminhava pelas ruas escuras de São Peterburgo, quando um vulto saído das
sombras o segurou pelo braço. Instintivamente procurou se desvencilhar, mas antes mesmo que o fizesse o
agressor soltou seu braço fazendo sinal com o dedo em riste sobre seus lábios para que nada dissesse,
sinalizando para que o seguisse até um beco próximo.
– Não tenha medo. – disse o estranho, desta feita mostrando seu rosto iluminado pela luz de um
poste que penetrava naquele lugar. – Estou aqui para ajudar. Sua vida corre perigo.
– Quem é você? – interrompeu o monge com ar de indignação. – Não vejo nenhum perigo ao meu
redor. A mais, poderia facilmente me defender de agressores, caso fosse atacado.
De fato, ele era alto e forte, um mujique vindo dos confinas da Sibéria acostumado com o clima
gelado e ao trabalho pesado no corte de árvores, nas minas de carvão, portanto, um homem forte.
Achava-se um nobre, detentor de imunidade, desde que o Tzar Nikolai Romanov II o havia
admitido na corte devido a fama de ser um monge que se dizia profeta e que tinha o dom da cura. A Grã-
Duquesa Alix, também conhecida por Alessandra, convenceu o marido de que a presença daquele monge
entre eles livraria o menino das constantes crises, além de fazer previsões e de orientar o tzar em suas
decisões.
Por outro lado, a nobreza sentia-se ultrajada por ter que conviver com um mujique grosseiro, mal-
educado, mulherengo e beberrão, mas para a Grã-Duquesa, Gregori Yefimovitch Rasputin era um homem
santo. Várias vezes ele havia provado o seu poder de cura, mesmo a distância. Na visão da nobreza,
Rasputin não passava de um charlatão que se aproveitava das fraquezas da família imperial.
- Sou alguém que prevê sérios perigos em sua vida por causa da sua amizade com a família
imperial – disse o estranho – A nobreza russa não o vê com bons olhos, achando que não passa de um

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charlatão que quer se aproveitar da ingenuidade da Grã Duquesa e, visando preservar a Corte, decidiram
dar cabo da sua vida. Eles percebem que o tzar não passa de um incompetente e temem que sua presença
possa agravar ainda mais as decisões erradas do monarca. Eles estão cientes da vontade popular, querem
alertar o monarca dos perigos que rondam o Palácio Imperial, que o tzar caia na realidade e dê um pouco
de atenção ao povo, evitando que se rebelem em forma de revolução.
– E onde está o perigo que me ameaça se nada tenho a ver com política.
- Há uma trama armada contra você, encabeçada pelo Príncipe Felix Yussupov, que consiste em
envenená-lo. – prosseguiu o místico – A trama consiste em matá-lo pegando-o pelo seu lado mais fraco
que é o álcool, ministrando veneno letal no vinho que lhe será servido no banquete em que será convidado
pela própria Grã Duquesa. Mas nem todos na corte o vê como um charlatão. Você se tornou uma espécie
de mentor para as decisões importantes do tzar, a ponto da Grã-Duquesa não deixar que faça nada sem
antes ouvir a sua opinião. Não percebe que isso causa ciúme nas principais cabeças da corte? Ainda mais
se tratando de um camponês abrutalhado e com pouca instrução e sem a menor educação e boas maneiras,
convivendo entre eles.
– Mas o tzar jamais permitirá que...
– O tzar? - interrompeu o místico – O tzar não passa de um fraco que sempre foi dominado pelos
seus ministros, incapaz de dirigir sua própria vida. Além do mais, esse país caminha para uma desgraça
que bem poderia ser evitado se esse monarca tivesse força de comando.
- Como sabe dessas coisas todas, é um espião? – perguntou o mujique.
– Isso não importa – respondeu Zaram – Você deve seguir as minhas instruções. Na Corte ainda há
em quem se possa confiar, e essa pessoa o ajudará a se safar da morte. Tem gente compadecida com a Grã
Duquesa, e não deseja que você morra, porque tem feito algumas coisas em beneficio do menino, que é
tudo para o casal imperial.
– E como devo me proteger? – perguntou o mujique.
– Vou preparar um antídoto que impedirá que o veneno lhe faça mal, Entregarei a um homem de
confiança que lhe dará o antídoto algumas horas antes de ser envenenado com o vinho oferecido por
aqueles que o querem morto.
- Quem é esse homem? – perguntou o mujique - Como posso confiar em você se não sei quem é?
– Não tem que confiar, apenas siga as minhas ordens ou morrerá. Também serei convidado para
esse banquete, você não estará só diante daquela turba que quer vê-lo morto. Agora vá, e se tiver
oportunidade, diga ao tzar para ceder às aclamações do povo ou ele cairá tendo uma morte trágica. Agora
vá.
Dizendo isso, como num passe de mágica, desapareceu na escuridão da noite deixando o mujique
boquiaberto. Não podia conceber que um homem pudesse desaparecer daquela maneira em questão de
segundos. Aquilo o deixou impressionado. Em princípio ficou em dúvida sobre se deveria ou não acreditar
naquele estranho, mas diante do que acabara de ver não havia o menor motivo para não acreditar. Mesmo
que fosse um impostor, merecia créditos por tamanha habilidade de iludir feito um mágico.
Astuto, viu nessa trama uma boa oportunidade para se firmar diante de seus inimigos, demonstrando
o quanto era poderoso, além de poder impressionar ainda mais a Grã-Duquesa. Poderia rejeitar o convite,
mas estaria demonstrando medo e fraqueza perante seus inimigos, o que só fortaleceria a oposição. A
mais, aquele estranho o impressionou pela maneira como falava, com tamanha convicção e certa força
hipnótica capaz de convencer. Estava longe de parecer mais um desses charlatões metido a místico, cheio
de truques para impressionar, aliás, um dos métodos que ele próprio usava em sua aldeia para
impressionar aqueles mujiques ignorantes.
Lembrou-se das histórias que ouvia sobre homens que se filiavam nas sociedades secretas e
acabavam adquirindo poderes capaz de mover montanhas. Homens que conseguiram driblar a Santa
Inquisição com facilidade, realizavam milagres confeccionando remédios extraídos das plantas. Eram
ricos porque conheciam o segredo da pedra filosofal e transformavam metal em ouro. Diziam mais, que
esses homens viviam por séculos porque sua ciência permitia fazer antídotos contra as doenças, driblando
assim a morte, e que tinham o poder de prever acontecimentos. Outros que diziam que eles tinham pacto

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com o Diabo, a quem haviam vendido as suas almas em troca de sabedoria e poder. Seria o misterioso
cavalheiro um desses homens? E por que, entre tantas pessoas propensas a serem assassinados devido ao
que faziam, escolheu um pobre camponês vindo dos confins da Sibéria, para salvar do perigo que o
ameaçava?

Zaram chegou numa carruagem alugada. Estava trajado convenientemente para aquela ocasião, um
elegante e bem cortado fraque. Foi recebido por um criado do tzar que cuidou de apanhar sua bengala e a
cartola, enquanto outro criado o conduzia a sala de estar para os aperitivos. O tzar estava entre os convivas
liderando uma animada conversa. Trajava uma túnica branca e a faixa imperial transladado ombro direito
para o lado esquerdo e o peito cheio de insígnias. Calça escura com uma listra carmesim do lado da perna,
barba quase ruiva cuidadosamente aparada e cabelos cortados curtos. As mulheres vestiam roupas finas
incrustadas com pedras preciosas, além dos ricos brincos, colares e anéis de brilhante. Apesar de estar
ainda há pouco tempo no país, era tempo suficiente para notar o estado de pobreza e miséria do povo
russo, enquanto a classe nobre desfrutava de uma vida repleta de luxo e privilégios. Uma rica mesa de
petiscos, champanhe francês e vodca russa estavam à disposição dos convivas, o que o fazia compreender
a revolta popular e os movimentos revolucionários que emergiam liderados por jovens de classe média
que queriam mudar a situação em favor do proletariado.
Ele se encontrava no meio da animada conversa, quando viu chegar o suposto monge siberiano,
numa deselegância que chegava a ofender aqueles mais conservadores. Grigorio Rasputin estava vestido
com um surrado manto preto e o colarinho clerical branco meio encardido, com os cabelos compridos e
mal cuidados, além da barba escura que pendia do seu queixo. Um clima desagradável invadiu o luxuoso
salão imperial, sob os olhares de descontentamento dos convidados, com exceção do monarca que ficou
feliz ao ver o seu guru, aquele que alegrava a sua mulher e fazia curas milagrosas ao herdeiro do trono.
Cumprimentou Grigori Rasputin com ar sereno e confiante, o que tranqüilizou ainda mais o monge
santo. Sentia-se seguro porque o tzar estava do seu lado; E para ajudar, ainda antes de entrar no salão
imperial, tinha sido abordado por um dos criados do monarca que pediu para que fosse até a cozinha
porque tinha algo muito importante para lhe dizer. Ele seguiu o criado em meio aquela correria entre chefs
remexendo as suas panelas, auxiliares cortando temperos ou outros afazeres e garçons que lustravam com
guardanapos de tecido macio as taças de cristal onde seriam servidas as bebidas. Ele nem foi notado entre
aquele exército de serviçais, de modo que seu benfeitor pôde falar com ele sem que fossem notados.
– Um homem pediu-me para que lhe entregasse isso, – disse entregando-lhe um pequeno frasco
contendo um líquido escuro – Recomendou que bebesse antes de tomar qualquer bebida aqui nesta casa.
Por favor, beba logo e vá para junto dos outros convidados. Minha missão está cumprida.
O mujique obedeceu sem questionar.
Zaram sentou ao lado ao mujique, sem deixar de dar atenção aos que se encontravam ao redor, em
seu jeito animado nessas ocasiões, causando grande simpatia entre a nobreza russa ali representada. O
monge, contrastando com aquelas pessoas refinadas, em seu jeito grosseiro bebia tudo que lhe era
oferecido, contudo, sem afetar seu controvertido comportamento. Empanturrou-se de bebida diante de
uma plateia que não podia compreender o porquê de ele continuar vivo depois de ter ingerido grande
quantidade de vinho com veneno, capaz de fulminar um elefante. Fanfarrão, dizia aos convivas que sabia
que o vinho estava envenenado, mas que não faria mal algum a ele por ser um homem de Deus, e para a
sorte da família imperial e da Rússia, porque se for assassinado a família imperial cairá logo em seguida, e
será o fim da dinastia Romanov. A Rússia será governada durante três décadas pelo Tzar Vermelho que
fará da Rússia uma grande e rica nação à custa do sangue do povo. Cairá também a Igreja Ortodoxa e a
Rússia viverá sete décadas sem Deus.
Sentia forte vontade de provocar seus rivais e a revelar o que lhe vinha na cabeça. Não podia
compreender de onde vinham aquelas ideias, aquelas previsões funestas que envolvia toda a família
imperial, o sangue que deverá correr no país, guerras, epidemias e vitórias. Sentia seu corpo formigar
numa sensação agradável, suas ideais fluíam como de uma fonte que jorra abundantemente a água. Olhava
para aqueles homens, dentre eles alguns ministros e dizia previsões, tais quais que perderiam suas fortunas

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em breve e que muitos acabariam se suicidando por se verem diante daquela inusitada situação. Os que
conseguissem sobreviver acabariam nas prisões com trabalhos forçados.
Depois de dizer tudo isso ele próprio ficou abismado pela revelação que surgiu em sua mente, sem
compreender o porquê. Chegou a pensar que, talvez, fosse o antídoto para neutralizar o vinho envenenado,
só podia ser isso, porque nunca havia passado pela sua cabeça semelhantes ideias. Chegou a sentir o
desejo de travar a sua língua ferina, mas como se tudo estivesse sendo orquestrado, continuava a jorrar
impropérios e desafios àqueles homens que queriam vê-lo morto. Zaram mantinha seu olhar sobre o
monge como se ele estivesse por detrás de tudo aquilo, fazendo que saíssem da boca do monge as palavras
que ele próprio gostaria de proferir, mas que não cabia a ele tamanha descompostura se comportando
daquela maneira entre gente importante e do próprio tzar. E nem o tzar, tampouco sua esposa, fizeram o
menor sinal para que o monge se calasse, se limitando a ouvir tudo aquilo com certa admiração pelo
monge, confirmando assim todo o seu poder de fazer previsões, aumentando ainda mais a credibilidade
nele. Ninguém presente reagia àquela provocação, como se estivessem hipnotizados e dominados por uma
força que não podiam compreender de onde vinha.
Apesar de tudo o que ocorreu naquela noite, ninguém podia deixar de admitir que fora uma noitada
imemorável, regada de bom champanhe e vinho francês, e boa comida preparada por imemoráveis cheffs.
Um fato inesperado começava a mudar o destino da Rússia: o Arquiduque austríaco Franz
Ferdinand foi assassinado em Sarajevo fazendo com que a Alemanha declarasse guerra à Iugoslávia. O
tzar viu no acontecimento o momento oportuno para reconquistar a confiança de seus súditos, dando apoio
militar à Iugoslávia e declarando guerra à Alemanha. Achava que a entrada da Rússia na guerra traria de
volta o senso patriótico no povo, abafando as forças revolucionárias que estavam se tornando uma ameaça
ao seu governo.

Fazia dois anos que a Rússia estava em guerra contra a Alemanha, quando Gregori Rasputin
encontrou-se novamente com o místico, desta feita em plena luz do dia. Ele pode ver melhor o rosto do
misterioso cavalheiro que o tinha alertado sobre o atentado e salvado a sua vida. Tez escura de um
dourado nunca visto por ele, olhos ligeiramente puxados como dos orientais, cabelos pretos cor de
azeviche muito bem cuidado penteados para trás. Aparentava cerca de trinta e poucos anos de idade,
embora demonstrasse uma larga experiência de vida. De uma elegância impar sem, contudo, ostentar
arrogância como aqueles homens da côrte, olhar forte, penetrante. Encarou firmemente o monge, como
querendo penetrar através de seus olhos em sua mente.
– Como pode constatar, eu não estava blefando sobre o atentado contra a sua vida naquele jantar –
disse o místico. – Mas não parou por aí. Você ainda corre perigo de vida, e desta feita nada poderei fazer a
seu favor.
– Mais mistério – interveio o monge – por que não diz logo o que quer de mim? Você é espião?
– Incrédula criatura; – interveio o místico – Não nego que tenho certo interesse em você, apesar de
sua vida desregrada e propensa a fraude sobre a fé dos incautos. Vejo em você o dom da profecia e da arte
de manipular ervas, e em tudo mais a que tem forte tendência. Precisa ser devidamente apurado, lapidado.
E para que isso seja possível é necessário que passe longo período em estudos profundos e que tenha total
domínio sobre si mesmo, para então ser digno da sagrada iniciação e, posteriormente, os primeiros
ensinamentos na Augusta e Venerável ordem a qual eu pertenço.
– Acaso você é um daqueles maçons ou rosacruzes que...
– Rosacruzes? O que sabe você sobre essa Venerável Ordem que teve entre seus membros homens
como Paracelso, Francis Bacon, Isaac Newton e tantos outros que deixaram seus legados para a
humanidade? Essa fraternidade é tão antiga quanto a escrita. Posso dizer que é a porta para a ciência a
qual eu professo. Se você tivesse algum conhecimento e alguns segredos que guarda essa Ordem, eu diria
que estaria apto para receber os primeiros ensinamentos que tenho para lhe propor.
– Está insinuando que faz parte dessa antiga irmandade? – insistiu o monge.
– Cale-se e ouça-me, ingênua criatura. Pois bem, – prosseguiu – corre em suas veias o sangue
daqueles que nasceram para servir a humanidade, seja nos meios eclesiásticos ou na arte do misticismo,

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que para muita gente se trata de bruxaria e outros adjetivos alimentado pela ignorância e superstição. Eu
poderia iniciá-lo na senda dos mistérios que cerca a nossa ordem, caso assim o quisesse, mas para isso
teria que mudar radicalmente o seu modo de vida, a começar por abandonar aquele palácio onde a morte
campeia podendo até mesmo atingi-lo.
– Está querendo me chantagear, fazer com que eu aceite pelo medo?
– Melhor seria nunca tê-lo encontrado, pobre criatura. Vejo dois futuros para a sua vida onde você é
o senhor do seu destino...
– Sou homem de Deus...
– Não coloque e nem culpe Deus nas suas decisões erradas, suas aventuras desvairadas. Deus nos
deu talentos para que fizéssemos uso em prol da humanidade, e um livre arbítrio para decidirmos pelo
caminho que nos convier. Para uns Ele deu o talento da arte, outros o da ciência, da música e até mesmo
para servir como camponês. Mas não existe destino traçado como muitos acreditam. Nós traçamos o nosso
próprio destino.
Houve um silêncio entre os dois homens, como se o que o místico tinha acabado de dizer estivesse
penetrando na mente do mujique e lhe desse uma melhor compreensão. Rasputin permaneceu calado e
Zaram prosseguiu:
– Essa Ordem a qual gostaria de iniciá-lo, remonta há séculos, e teve como membro homens que
muito fizeram em prol da humanidade, cientistas, físicos, filósofos, homens especiais que traziam em seus
sangues o nobre dom para essa nobre arte. Você poderá se tornar mais um membro em nosso meio,
adquirir a sabedoria que remonta ha séculos tornando-se um místico a serviço da ciência e do bem, ou
poderá ser vitimado pela nobreza que cerca o tzar, mudando radicalmente o destino deste país.
– Está dizendo que o destino da Rússia está em minhas mãos?
– Se permanecer vivo o tzar não cairá porque ele acredita em você, poderá convencê-lo a ouvir o
clamor do povo, porque ele o ouvirá. Somente você poderá fazer isso. Se continuar frequentando aquela
casa, será assassinado, e dessa vez nada poderei fazer a seu favor.
- Se é capaz de prever o futuro da família imperial, porque não vai dizer essas coisas ao tzar?
- Porque essa tarefa não pertence a mim, tampouco posso interferir nos destinos da humanidade.
- Homem misterioso, fala coisas e se contradiz.
- Contradição? – interveio o místico – O que sabe sobre as leis da natureza, do papel do homem
dentro dessas leis? Já imaginou se cada sábio, ciente dos muitos acontecimentos prestes a acontecer pelo
mundo, fosse a cada um dos envolvidos e os alertassem, quando na verdade, muitos dos acontecimentos
fazem parte do karma que tem para pagar? E quanto a você, foi colocado naquela casa para cumprir
determinados papeis, mas nada faz além de algumas curas ao menino doente e alguns conselhos sem
importância. Não se questionou o porquê de eu ter cruzado o seu caminho. Acha que costumo andar por aí
interpelando pessoas para conduzi-lo ao caminho da Ciência do Saber? Será que agora me compreendeu?
– Preciso de um tempo para refletir sobre o assunto. – respondeu o mujique. – Tudo tem acontecido
tão repentinamente.
– Tem esse tempo, mas não mais do que três dias. O encontrarei neste mesmo lugar, nessa mesma
hora daqui a três dias. Três dias e nenhuma hora a mais.
– No dia e hora combinada estarei aqui. Caso eu não compareça, já sabe qual é a minha resposta.
No dia e hora marcada, Gregori Rasputin não compareceu ao encontro. Uma semana depois seu
corpo foi encontrado boiando nas águas do Rio Nevsky com ferimentos de faca.
Com a morte de Gregori Rasputin a Grã-Duquesa Alix entrou em desespero pela perda do seu
conselheiro espiritual e curandeiro de seu filho, também pelas previsões, porque acreditava em tudo o que
ele dizia. O tzar não fez caso das previsões de Rasputin. Continuou em sua postura covarde e indecisa que
nada trazia de benefício para o povo da Rússia, e mantendo a Rússia na guerra.

SETE
“... Caro amigo, esse país está caminhando rumo ao caos. O tzar não vai conseguir conter os
movimentos que despontam da classe operária em todo vasto território russo. Sua fraqueza como

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governante é notória, causando preocupação em seus ministros e nas repúblicas que compõem o seu
império. Seus ministros vivem insistindo para que ele ceda em favor ao clamor do povo, como uma
maneira de esfriar os movimentos reivindicatórios, mas seus ouvidos estão surdos. A revolução é
inevitável, posso sentir claramente. Indubitavelmente, marcha para seu auge a passo gigante, não tardará a
inflamar esse país. E me encontro com as mãos atadas por nada poder fazer... O tzar, ignorando o conselho
dos seus ministros, achou que a guerra era oportuna porque resgataria no povo o senso patriótico, além de
ele se firmar diante dos seus súditos como um monarca forte, como havia sido os seus ancestrais. E deu
em quê? Serviu para balançar ainda mais a economia do país, além de fazer aumentar a rejeição da parte
do povo... O Japão atacou a Base Naval russa em Port Arthur, na Manchúria. Um problema que poderia
ter sido resolvido por meios diplomáticos, mas o tzar não quis considerar, alegando não concordar com o
expansionismo japonês na China, área exclusiva de exploração russa. Enviou tropas ao Estreito de
Tsushima, desencadeando a feroz e sangrenta batalha com grandes desvantagens para os russos devido a
seus armamentos antiquados e ao despreparo das suas tropas. Um grande erro que quase culminou numa
bem sucedida revolução. Cometeu o mesmo erro levando novamente a Rússia à guerra. Apenas nove anos
se passaram desde a guerra fracassada contra o Japão, se encontra diante de outro grande conflito. Temo
pelas graves consequências de sua insanidade... Lênin ainda se encontra exilado na Bélgica, mas isso não
impede que mesmo a distância ele coordene toda a movimentação no território russo, pois o movimento
tem líderes fortes que podem muito bem conduzir todo o processo... A humanidade, com todos os seus
pesares, e com todas as suas alegrias, outra vez me conta o número dos que lhe pertencem. Eu vejo o mal,
a morte e a dor se arrastando ao lado do povo. Não vejo nada além de sangue, e junto disso tudo o nosso
inimigo, o horrível espectro que se alimenta de vidas humanas, na espreita aguardando o momento em que
cabeças rolarão em número assustador para que possa se alimentar... Tentei falar e orientar o neófito que
ainda nem se aproximou da primeira porta guardada pelo terrível inimigo da humanidade. Ele está por
demais envolvido com a revolução que não tarda... O tzar teme a força do povo, mas não o enfrenta, pelo
contrario, prefere se refugiar na sua residência de verão em Tzarskoy-Selo a 30 quilômetros da capital
russa. Não tardará o dia em que ele será destronado, seja abdicando ou que o derrubem de seu trono... Sei
que não me compete interferir no destino da humanidade, mas tem pessoas que me são caras, um forte
candidato a trilhar nosso caminho, mas que vê na revolução a solução para o sofrimento social. Isso me
preocupa. Aquele neófito que eu quero trazer ao nosso seio, em vão tento incutir em sua mente anuviada
pelas coisas terrenas que o afasta dos nossos princípios e da nobre ambição, se é que posso chamar assim,
de galgar degraus mais avançados da nossa Augusta Ordem. Eu ensinei a esse jovem as primeiras lições
visando prepará-lo para as primeiras provas. Ele é um estudante dedicado, mas ainda tem a vida
tumultuada pelo seu trabalho junto a sua fábrica de tecidos, o gozo pela vida mundana em meio às
mulheres, e agora essa sua idéia de apoiar a revolução. Ele fez tudo de conformidade com os
ensinamentos. Mas essa febre que assola este país o contaminou, despertou nele o espírito humanitário,
aderindo aos princípios revolucionários. Em vão tento dissuadi-lo desse mau que não nos diz respeito.
Mas ele está cego. Até compreendo sua atitude diante do que pude ver nesse país... Somos os únicos
representantes vivos nessa terra, será que não existem mais homens dignos de nos fazer companhia?
Temos neste ciclo milhares de iniciados nos primeiros graus terrenos espalhados pelo mundo filiados em
Lojas terrenas, longe dos segredos que somente a alma pura pode atingir, onde, dentro de algumas
décadas, dois ou três alcançarão esses sublimes graus onde se aprende a verdadeira ciência do misticismo,
onde poderá servir a humanidade sem que seja notado. Isso parece que ele não consegue compreender.
Quer resultados imediatos, tendo como exemplo a revolução, que acha que resolverá os problemas do
mundo com uma sociedade de igualdade... Descobri em meio a esse tumulto alguém que trazia consigo
tudo aquilo que poderia fazer dele um novo irmão, Um camponês simplório e ignorante que tinha no
sangue o dom da cura e da profecia, mas por demais agarrado às coisas mundanas. Observei seus passos
durante um tempo, aguardando o momento certo para abordá-lo, falar sobre a nossa Ordem e convidá-lo a
ser mais um membro. Mas falhei, não tive sucesso. Eu o alertei sobre todo o mal que o ameaçava, até
mesmo evitei um primeiro atentado contra a sua vida. Em vão tentei fazer com que interferisse no destino
da família imperial, mudando a ordem dos acontecimentos, mas sua ganância decidiu a sua sorte... Lênin

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achava que a entrada da Rússia na guerra ajudaria na sua luta, acreditando que os socialistas de toda a
Europa ficariam imunes ao mal do patriotismo. Lênin esperava que os socialistas russos não apoiassem a
guerra, e acertou. Os movimentos revolucionários crescem a cada dia e a guerra civil é inevitável trazendo
junto à carnificina. Vejo sangue jorrando pelas ruas de toda a Rússia, olho em cada rosto e vejo o triste
fim que os aguarda; morto em combate, ou o sofrimento nas prisões e no exílio nos confins gelados desse
país... O tirano está aguardando o momento certo para assumir o poder e deitar as suas garras afiadas
sobre esse povo. O que fazer se tenho as mãos atadas sem puder ajudar em nada? Posso advertir um
cidadão desviando seu encontro com o inimigo do homem que campeia pelas ruas a espreita do momento
de ceifar vidas. Vejo-os andarem cada vez mais longe e mais engolfados no mesmo oceano onde os nossos
barcos navegam eternamente, se dirigindo ao horizonte que foge diante de nós... A dura condição sob a
qual nos foram concedidos nossos mais nobres e divinos dons, anuvia a nossa vista quando nos dirigimos
para o futuro daqueles que nos tem inspirado as fraquezas humanas de zelo, ódio ou do amor. Sempre
gostei de me envolver com a humanidade. A boa música, a dança e as festas ainda me proporcionam
grande prazer, me atraem. E nesses ambientes estou sujeito a me envolver em paixões passageiras, como
vem ocorrendo em toda a minha existência. Mas desta vez é diferente. Uma formosa jovem, filha da
nobreza russa, tem me levado a loucura, embora ainda nem tenha tocado nela. É algo que vem de dentro.
Uma paixão, amor? Pensei em fugir covardemente, mas descartei essa idéia. A prova iniciáticas, onde tive
que enfrentar o espectro para alcançar o lado habitado por seres etéreos é brinquedo de criança, se
comparado ao temor que me assola só de pensar em enfrentar essa paixão. Não consigo fugir de seus
encantos, a atração que ela exerce sobre mim. Algo jamais experimentado em toda a minha existência.
Caro amigo, vejo nessa jovem a minha verdadeira felicidade. De que adianta esse tempo de existência se
não se conhece o amor? Viver somente para contemplar a vida, uma existência que com o tempo se torna
monótona porque não temos por quem fazer isso ou aquilo, e o sonho de ver um rebento nos chamando de
pai. A mais, caro amigo e irmão, com quem pude dividir muitos acontecimentos no decorrer dos séculos
de nossa existência, tudo deve ter seu fim. Ate quando deverá ser a nossa existência, até quando devemos
viver? Só quero aspirar a vida como um mortal comum, é só isso que desejo para a minha vida, tendo ao
lado a mulher amada e poder formar a minha família, não importa o quanto dure a minha existência na
terra...”

As tropas russas combatiam em território estrangeiro, enquanto a sociedade peterburguense,


ignorando os valorosos combatentes, prosseguia em sua vida recheada de privilégios, um dos quais um
espetáculo de bale. Dentre essa massa privilegiada se encontrava Zaram.
Ele olhava como que encantado pela leveza, perfeição e beleza daqueles movimentos sincronizados
com a música executada por aquela orquestra. Ela rodopiava em círculos por toda a extensão do palco.
Seu par, um jovem tão talentoso quanto ela, contracenava com seus movimentos, saltitando
vertiginosamente pelo palco, em seguida a erguendo num belíssimo pás de deux, a Bela Adormecida do
Bosque, com a música composta por Piotr Ilitch Tcheikovisky. A platéia aplaudiu como compraz diante
da beleza daquele bailado. O povo ovacionava como que querendo agradecer aquele grupo de bailarinos e
a orquestra pelo que propiciaram ao público. Ele aplaudia com maneiras discretas sem demonstrar
entusiasmo, embora tivesse se agradado com o que acabava de ver.
O balé era uma das suas paixões, desde a Renascença com seus bailados primitivos que ressurgiu
depois de um longo período proibido pelos papas da Idade Média, em que a dança, como qualquer
movimento artístico, sofreu um retrocesso por utilizar o corpo como expressão. Mas mesmo sendo
considerada profana, continuou sendo praticada pelos camponeses as escondidas das autoridades
religiosas. Ressurgiu com bailados inspirado em histórias de fadas, bruxas e feiticeiros, um bailado quase
infantil, mas caiu no gosto da nobreza, e recuperando a harmonia entre o homem e o mundo. A dança
passou do divertimento e do improviso, adquirindo um aspecto mais social, tornando-se mais complexa,
disciplinada, tendo estudos específicos com repertórios de movimento feito por pessoas e grupos
organizados, atrelando a dança a música orquestrada, passando a se chamar balé. O uso do termo balé
significava um conjunto de ritmos e passos. A partir do século XVII, quando já havia o drama-balé, os

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espetáculos eram apresentados nos palcos dos grandes teatros da Europa por grandes profissionais da
dança de ambos os sexos. A dança havia adquirido todo o seu esplendor com ricos e belos cenários e
figurinos, e os temas eram histórias com começo, meio e fim. Foi à época em que os bailarinos
começaram a usar a sapatilha.
Nos meados do século XIX, um italiano de nome Felipe Taglioni apresentou um balé considerado o
carro chefe do romantismo, tendo como primeira bailarina a sua filha Maria Taglioni, a primeira bailarina
a usar sapatilhas com pontas. Zaram assistiu a estréia da filha de Felipe, quando ela se apresentou em
Viena num bailado criado pelo seu pai. Depois tornou a vê-la no Teatro Imperial de São Peterburgo em
1848, onde ela dançou durante dois anos, até retornar a Ópera de Paris atuando como instrutora de dança.
Essas lembranças passaram pela mente de Zaram, admirado com a perfeição dos bailarinos que
evoluíram muito, se comparando aos primeiros bailarinos clássicos do período da Renascença.
Ainda antes de deixar o camarote que ocupava sozinho, olhou para o camarote vizinho e seu olhar
cruzou com o dela, que vinha ocupando os seus pensamentos. A última vez que a viu e conversaram foi
antes de sua partida a Nápoles, em que falou coisas não tão agradáveis para os ouvidos de uma moça que o
via com os olhos da paixão. Era bem educada, falava francês, tinha formação musical em piano e o bom
gosto pela música e dança. Aquela troca de olhar dizia muito. Na primeira vez que a viu sentiu que alguma
coisa mexia com seu interior. Gostava de se relacionar com moças jovens porque elas tinham a alegria e o
frescor da juventude que lhe fazia bem, mas nunca com intenções de ter um relacionamento afetivo. Não
era o que se podia chamar de assexuado, pois ele gostava do sexo feminino, e até acabava, em algumas
ocasiões, tendo um caso aqui, outro ali, sem, contudo, se envolver emocionalmente. Mas aquela mulher
era um caso especial que chegava a lhe causar certo temor. Sentia-se atraído por ela, ao mesmo tempo em
que desejava nunca tê-la visto, temendo acarretar em mudanças não desejadas em sua vida.
Tinha conquistado muitas amizades, era o primeiro a ser lembrado por ocasião das festas e
banquetes. Nas ocasiões em que ia a óperas, balés ou apresentação de orquestras, preferia ir só, pois
achava que alguém a seu lado acabaria por distraí-lo, e ele gostava de se entregar por inteiro a música ou
na dança.
Ela ainda povoava os seus pensamentos, quando deixou o teatro rumo ao seu escritório, onde era
aguardado. Seguiu caminhando pela noite calma e pouco movimentada. A noite não estava fria, apesar da
nevasca que havia caído enquanto ele se encontrava no interior do teatro, que deixou as ruas intransitáveis
devido a areia misturada com sal jogada sobre aquele amontoado de neve. Tanto os rios quanto os canais
que cruzavam a cidade estavam congelados, impedindo o transito de barcos. Ainda se via as luzes das
tabernas onde a intelectualidade e alguns boêmios se reuniam em conversas sobre os acontecimentos que
não tardariam a acontecer: a revolução, e o boicote das tropas russas na guerra contra a Alemanha, e sobre
o boato da mudança da capital para Moscou.
Eram dias de tensão, de sonhos, de ideais, de violência, desordem e fome entre a população pobre.
Gatunos, salteadores e ladrões, viviam de suas atividades criminosas num país em grande desordem.
Ficavam nas esquinas e nos escuros becos à espreita de alguém embriagado pelo álcool, velhos ou outro
descuidado, para roubar-lhes a carteira ou alguma outra coisa de valor. Os poucos cidadãos, que por um
motivo ou outro andavam apressadamente ansiando chegar aos seus lares, caminhavam amedrontados,
desconfiados da própria sombra, pois naqueles dias não se podia confiar em nada e em ninguém, porque o
país estava em guerra e vivia um período de incerteza.
Ele caminhava em passos lentos, cadenciados, seu jeito elegante, alheio aos perigos que rondavam
nas escuras ruas enlameadas de neve. Vestia um casaco escuro, comprido, abaixo dos joelhos. Chapéu de
feltro em vez do gorro de pele, e a bengala na mão direita. Naqueles tumultuados dias,a espionagem e a
delação campeavam em todos os setores da sociedade russa, mas pouco lhe preocupava se causava
suspeita de ser um agente da polícía tzarista, ou alguém que pusesse em risco a vida do cidadão, tampouco
de ser um revolucionário.
Alguns gatunos olhavam com segundas intenções, mas eram estranhamente desestimulados ao se
aproximarem, como se uma força invisível os impedisse, além de desencorajá-los. Mesmo algum agente

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da polícia, que tinha o hábito de parar qualquer cidadão nas ruas para averiguação de documentos,
também o ignoravam.
Deteve-se diante do edifício de apartamentos em estilo neo-germânico, onde tinha fixado seu
escritório. Notou do outro lado da rua um automóvel estacionado. Seu discípulo o aguardava, apesar de
ainda estar dentro do horário combinado. Subiu os cinco andares pelas escadas, em vez do velho elevador,
sempre em suas maneiras elegantes, com o tronco ereto, numa demonstração de esbanjar saúde e
disposição. Na porta de seu apartamento um dos seus funcionários que estava trabalhando fora do horário
habitual, se prontificou em pegar seu casaco, chapéu e a bengala, reverenciando-o polidamente, em
seguida avisando que sua visita o aguardava na biblioteca.
O apartamento era grande, três cômodos que serviam de escritório, sala de jantar e de visitas, que
usava para reuniões, e a biblioteca instalada num compartimento grande com centenas de volumes nas
prateleiras pelas quatro paredes, um lugar privativo. Os livros ali contidos não eram volumes comuns,
romances ou novelas. Salvo alguns livros dedicados a poemas de autoria de renomados escritores, a
maioria se tratava de assuntos poucos comuns ao leitor convencional. Versavam sobre filosofia, alquimia,
química, física, matemática, astronomia, botânica e tudo o que se relacionava a ciência. Tinha transferido
parte de sua biblioteca para aquele apartamento, pois apesar de sua residência não ser distante, ia com
frequência ao seu escritório, ora para reunir-se com seus diretores ou algum visitante estrangeiro que
vinha a negócio. Durante o dia tinha cerca de quase duas dúzias de colaboradores, dentre eles dois
franceses dois, alemães com conhecimento do idioma inglês, uma secretária e um ajudante para levar
correspondência e algum serviço bancário, além de dois criados que havia trazido consigo do exterior, que
ficavam ali exclusivamente para servi-lo. Os demais eram russos.
Ilya Abraãomovitch se encontrava entretido na leitura de um volume sobre filosofia. Levantou-se ao
se deparar com seu amigo e mestre, estendendo-lhe a mão de maneira cortês. Elegante, cabelos claros e
engomados, penteados para trás, olhos azulados, um rosto limpo, bem barbeado, modos refinados,
deixando claro ser ele um membro das classes privilegiadas, diferente do seu mestre que tinha um rosto
pouco mais maduro, tez bronzeada, aparentando trinta e poucos anos e uma discreta beleza.
Estavam ali os dois homens num encontro para tratarem de assuntos que só é discutido entre velhos
amigos. Ilya Abraãomovitch precisava de conselhos porque estava envolvido com os problemas da
humanidade, as ideologias modernas, quando deveria estar alheio as paixões e ganância do homem na sua
busca pelo poder disfarçado de filosofia humanitária, para então poder dar o passo seguinte na Ordem a
qual pretendia se aprofundar nos elevados graus.
– Perdoe-me por ter me antecipado ao horário marcado, – disse Ilya Abraãomovitch – Essas ruas,
mesmo dentro de um carro, não me sinto seguro, compreende? Se ao menos eu pudesse me defender de
qualquer agressor.
Zaram não expressou e nem disse nada a respeito. Mantinha um semblante de quem desaprovava
alguma coisa, o que foi percebido pelo jovem Ilya.
– Urge que alguma coisa aconteça, – prosseguiu Ilya Abraãomovitch falando sobre o que achava do
atual acontecimento no país – o galo não tardará a cantar, anunciando a aurora dos novos tempos.
– Acredita que a revolução poderá mudar a vida desse povo? – interveio Zaram.
– Os reis perseguem as pessoas, os sacerdotes perseguem opiniões e idéias. Quando não houver
mais reis e nem sacerdotes os homens que pensam estarão seguros, o pensamento será livre. Então
começará a idade da razão, igualdade de instrução, igualdade de instituições, igualdade de fortunas. –
disse o rapaz.
Zaram olhou para ele numa expressão de quem não estava concordando ou discordando do que
tinha acabado de ouvir. Havia testemunhado muitas coisas no decorrer de sua existência. Viu reis serem
coroados, revoltas populares em busca de melhoras, guerras, a revolução francesa, e o mundo continuava
sendo o mesmo, com as mesmas reivindicações, o proletariado sofrendo, as doenças, as epidemias, e
sempre recaindo sobre a população mais carente. Era a vida em seu curso, as leis criadas pelo Grande
Arquiteto do Universo. Culpa do homem, de ganância, o espírito conquistador, a sede pelo poder.

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– Acredita que uma revolução pode inverter tudo? – perguntou o místico numa tentativa de fazer
com que ele visse os acontecimentos por outro prisma e que não se envolvesse.
– Absolutamente. – respondeu o rapaz.
– Acredita que pode destronar o tzar, lutar contra seus exércitos e sua milícia, com homens
despreparados para luta contra soldados profissionais? – questionou Zaram. – O mentor dessa revolução se
encontra refugiado em outro país. Acredita que sem a sua presença pode pôr em prática seus intentos?
Criatura ingênua, vai sim dar inicio a uma carnificina sem fim, muitos inocentes morrerão, a fome e a
epidemia se arrastarão junto do povo. Existe outro caminho a ser percorrido, talvez não com resultados
imediatos, mas sem lutas, sem mortes, onde você poderá fazer muito pela humanidade.
- Não é um admirador da revolução. – Ilya Abraãomovitch disse ignorando os conselhos de Zaram.
– Suponho que entre todos os homens, não pode estar contra a doutrina que prega o melhoramento infinito
da espécie humana. Você não quer admitir a lei da desigualdade universal.
- Lei? Ainda que todo o mundo conspirasse para reforçar a mentira, não conseguiriam fazê-la lei. –
prosseguiu Zaram – Nivele todas as condições de hoje, e não fará mais do que preparar o caminho para a
tirania de amanha. Uma nação que aspirar a igualdade é incapaz de gozar liberdade. Em toda a criação,
desde o arcano até o verme, desde o Olimpo até o seixo, desde o radiante planeta perfeito até a nebulosa
que, através dos séculos de névoa e viscosidade se vai consolidando até tornar-se um mundo habitável, a
primeira lei da natureza é a desigualdade da vida.
- Desigualdade da vida física? Oh, espero que esta sim desapareça. – retrucou o rapaz.
- Mas desigualdades da vida intelectual e da vida moral, jamais. – disse o místico - Deixar o mundo
sem um mestre, sem um homem que seja mais sábio e melhor que os outros? Se isso não fosse uma coisa
impossível, que perspectiva desesperada seria para a humanidade. Não, meu caro. Enquanto existir o
mundo, o sol iluminará o cume da montanha sempre primeiro do que a planície. Difunda todos os
conhecimentos que contém a teoria entre a humanidade, em porções iguais para cada um deles, e amanha
já haverá homens que saberão algo mais do que o resto. E isso não é uma lei dura, mas é uma lei benéfica,
a verdadeira lei do progresso. Quanto mais sábios são os poucos numa geração, tanto mais sábia será a
multidão da geração vindoura. E esses homens, ao começarem sua era de melhoramentos e igualdade vão
querer negar uma Inteligência Suprema, negar a Deus.
– Prefiro crer que a revolução é o caminho para tornar o velho mundo o lugar onde o sol nasce igual
para todos. – continuou Ilya – Olhe como vive esse povo? A miséria, a semiescravidão, a submissão ao
tzar. De uma olhada aos países que compõem a Europa, ao resto do mundo. Quantos desfrutam de uma
vida digna sem a exploração da classe alta? Refiro-me não somente aqui, mas em todo o mundo. Ate
quando a humanidade vai ter que viver dessa maneira? Alguma coisa tem que ser feita e a hora é agora. A
França ainda estaria vivendo com a classe não privilegiada explorada pela classe alta e pelos patrões, se
alguém não tomasse a iniciativa de destronar o rei.
– Refere-se ao tirano do Robespierre com sua máquina de decepar cabeças? – disse Zaram –
Quantas vidas foram ceifadas em nome da revolução? Não que eu seja contra mudanças, principalmente
as que beneficiam o povo, mas sou contra a maneira como o processo é feito, porque sempre vai haver
alguém que ambiciona o poder, que usa o povo para atingir seu intento. Eles sempre começam por aliciar
o trabalhador ignorante porque é mais fácil de manipular. Ainda sou a favor do dialogo, da diplomacia.
– Você fala em diálogo? Como pode esperar que conversas e mais conversas façam com que reis
deixem de explorar o povo, ou que eles abdiquem em favor de um governo eleito pelo povo? – disse o
jovem.
Fez uma pausa e depois acrescentou:
– Não podemos interferir no destino da humanidade, fazendo com que tudo se resolva sem
derramamento de sangue? Afinal, para que servimos perante o mundo?
– Ainda não teve acesso aos graus mais elevados para compreender os princípios da existência, meu
jovem Ilya Abraãomovitch. O que posso lhe dizer nesse momento é que, infelizmente, como místico e
conhecedor das leis que regem a natureza, não podemos interferir no destino da humanidade, porque seria
como infringir as leis do Criador, e mesmo porque seria impossível. A roda gira independente de ser

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manipulada, ao mesmo tempo em que ninguém nesse mundo pode alterar o seu curso. Existem algumas
irmandades que tem como missão interferir na política e nos costumes, ir ao auxilio dos necessitados,
ajudar financeiramente instituições filantrópicas, asilos e muito mais, porém nada que mexa com as leis do
Universo, compreende?
- Há dois caminhos que conduzem ao céu e se afastam do inferno. – prosseguiu Zaram - Esses
caminhos são a arte e a ciência. Mas a arte é mais divina do que a ciência, porque a ciência só descobre, ao
passo que a arte cria. O astrônomo não pode apresentar um átomo ao universo. O poeta pode evocar um
mundo de um átomo. O químico que combina substância, pode curar com suas drogas as enfermidades do
corpo humano. O pintor ou escultor reveste de uma eterna juventude formas divinas que não serão
alteradas por doenças, nem desfiguradas pelos anos. Esse é o papel do homem superior ao seu semelhante,
essa é a interferência que nos é permitida.
– Acho difícil conviver em meio a essa situação pela qual passa o país, e ficar com os braços
cruzados esperando pelo desfecho final sendo que eu posso dar a minha contribuição. – disse o rapaz.
– Não falei que deve ficar de braços cruzados diante disso tudo. – interveio Zaram – Fazer da
maneira que estão fazendo só vai inflamar ainda mais a situação. Insisto que a única maneira de mudar a
situação é com a diplomacia, o dialogo, porque tomar algo a força nunca solucionou nada.
– E você, meu caro amigo, - prosseguiu - está deixando de lado a única coisa que poderia elevá-lo as
alturas, torná-lo um sábio que poderá dirigir com sabedoria mentes envenenadas por egoísmos humanos,
como os cabeças da revolução que, na verdade almejam nada mais do que o poder sobre o povo. Pois
espere para ver o resultado dessa revolução que está preste a acontecer. As principais cabeças irão se
matar na disputa pelo poder. É o homem de sempre, é a ganância, é a sede pelo poder.
Ilya Abraãomovitch ficou calado refletindo sobre o que acabara de ouvir, e depois perguntou:
– E quando será permitido avançar mais um grau em busca do saber?
– Quando conseguir se desvencilhar das paixões humanas. – respondeu o místico olhando fixamente
nos olhos do outro. – Quem tenciona elevar-se a tão sublimes degraus, deve, em primeiro lugar esforçar-se
para abandonar afeições carnais, as fraqueza dos sentidos, as paixões que pertencem a matéria; e deve
aprender por quais meios podemos subir as alturas do puro intelecto unidos aos poderes superiores sem os
quais nunca podemos obter a ciência das coisas secretas, nem das forças mágicas que produzem
verdadeiros milagres. O que lhe ensinei até agora são lições básicas, um preparatório para quem deseja
alcançar graus mais elevados. A verdadeira iniciação, e quem o conduzira, é outro que nenhum vínculo de
amizade tem com você, além de ele estar mais preparado.
– Então existe outro igual a você?
– Não somos iguais em nada – respondeu o místico. - Eu vivo entre a humanidade, gosto da boa
vida, das artes, da boa comida e das boas companhias. Ele vive de contemplação, sem se envolver
diretamente ao destino e os erros da humanidade. Ele vive para a ciência, para as novas descobertas.
Ilya Abraãomovitch recebeu essas palavras como se recebe um alimento, parando por alguns
instantes para ingerir o que acabara de ouvir, fixando em seu ser aquelas palavras que o tocaram
profundamente, ao mesmo tempo indignado pelo fato de pertencer a irmandade já há um tempo sem,
contudo, ter compreendido a simplicidade das coisas, e que o conhecimento sempre estivera ao seu
alcance.
– Quando olho para frente vejo a fome, a epidemia, a morte e o sofrimento, não somente neste país,
mas em boa parte do mundo. – prosseguiu o místico – O que está para acontecer foge do nosso controle,
mesmo que consigamos mexer com algum líder, desviando seus intentos ou manipulá-lo para evitar que
alguma coisa aconteça, mas nada que impeça a desgraça que está preste a cair sobre esse povo. O melhor
que podemos fazer é nos retirarmos desse lodaçal, para um lugar seguro, longe da desgraça, de modo que
não venha a nos afetar envolvendo-nos nessa sujeira. Não temo pela minha segurança, tampouco a polícia
secreta ou quem quer que queira atentar contra minha vida, porque basta um olhar meu para desarmá-los,
mas nada nos acrescentará testemunhar o que está para acontecer.
– Meu venerável amigo, se me permite chamá-lo assim, sinto que meu lugar é entre essa gente em
busca de seus direitos, pelo menos nesses preciosos momentos.

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– Cale-se e ouça – interveio Zaram – Você será mais útil fora do que está preste a acontecer. Está há
um passo de penetrar no mundo da ciência e da sabedoria, e prefere se aliara a esses revolucionários que
acham que sabem como fazer uma revolução? Esse é o século da ciência avançada, da cura das
enfermidades, da tecnologia, dos grandes inventos que mudarão radicalmente o rumo da vida neste
planeta. Veja essas máquinas chamadas de automóvel, veja como os trens se modernizam a cada dia. Os
bondes trocaram os cavalos pela eletricidade. Esses aeroplanos. Essa é a era do petróleo. O mundo muda a
cada dia e poderemos contribuir muito nesse processo de mudanças. Deixa essa revolução a esses loucos
que nada mais desejam do que ter em mãos o poder. Veja também esse georgiano que trabalha nos
bastidores do movimento revolucionário. Ele é o grande perigo que ronda essa população inocente. Ele
fará da Rússia a grande potência, mas sobre os cadáveres de inocentes, sobre a escravidão daqueles que
ele classificará como inimigos, tudo em nome do progresso desse país. Acha que ele está pensando no
bem estar desse povo? Ele quer o poder, quer pisar naqueles que o humilharam, é sua guerra pessoal,
compreende? Essa guerra é providencial para a revolução, para trazer o povo em seu apoio.
– Se refere a Stalin, ele é um funcionário interno...
– O lugar ideal para manipular lideres de todo canto da Rússia e articular a sua ascensão ao poder.
– Mas ainda estamos em guerra – disse o jovem – Ainda há muita luta pela frente.
– Essa guerra está próxima do seu fim – interveio o místico – Há fortes rumores de que a Alemanha
fará um trato com o tzar, uma rendição condicional por parte da Rússia. Essa guerra não está sendo
interessante a nenhum dos lados. E finda a guerra começará a carnificina da guerra civil. É hora de
batermos em retirada porque nada podemos fazer para evitar o conflito.
– A mais, caro amigo, – prosseguiu o místico – vai jogar fora todo esse tempo em que vem se
dedicando aos estudos da nossa Augusta Ordem nesse novo ciclo de existência? A falência de suas
fábricas te afetaram consideravelmente, e agora se volta contra o tzar como um ato de vingança porque o
monarca não cumpriu com o compromisso com você?
De fato, tudo que seus antepassados tinham construído estava ruindo. Mediante o bom andamento
da fábrica, quando começaram os rumores de uma guerra, Ilya Abraãomovitch decidiu abrir uma filial em
Moscou, mesmo a despeito da instabilidade do país, porque a Rússia sempre iria precisar de tecidos, e
investindo em uma nova unidade estaria contribuindo para diminuir o desemprego, além de assegurar a
estabilidade de seus negócios. Mas o principal motivo foi a possibilidade de vender tecidos para o
Exercito Imperial. Só não contava que o tzar não honraria com o compromisso. Ilya Abraãomovitch tinha
investido todos os seus recursos financeiros em algodão, lã e tudo que pudesse ser de uso do exército, e o
fato de não receber o levou a bancarrota, ficando somente com suas propriedades, causando-lhe mudança
na maneira de ver tudo. Isso o levou a aderir de vez o movimento revolucionário a que ele sempre nutriu
simpatia, deixando de lado os estudos preparatórios, para ser iniciado nos graus elevados da Ordem.

Com a minoria de socialistas que se mantinham fiéis às causas, Lênin passou a usar da guerra para
uma campanha derrotista que chamou de Guerra à guerra, que logo foi se espalhando por todos os cantos
do país, nas fábricas, no campo e no front, provocando deserções. Com a campanha os trabalhadores
começaram a nutrir ódio pelo o monarca, contra os patrões e contra as autoridades, pelos seus entes
queridos que morriam na guerra, tornado uma seria ameaça ao tzar.
Nas grandes cidades ocorriam distúrbios generalizados comandados pelos socialistas. O povo
invadia estabelecimentos comerciais em busca do escasso alimento. Os conflitos se intensificavam
transformando o país num verdadeiro pandemônio. O povo exigia que o nome da capital fosse trocado,
porque São Peterburgo soava por demais alemão. O tzar, temendo as pressões e numa tentativa de
satisfazer a vontade popular, acabou mudando o nome da capital para Petrogrado, em homenagem ao tzar
Pedro, o Grande, fundador da cidade e responsável por boa parte das conquistas e da expansão do
território russo.
Percebendo a fraqueza do monarca, Lênin sentiu que a hora tinha chagado. O descontentamento
estava em todas as esferas da sociedade. Nos quartéis os militares, aderindo às campanhas de Lênin,

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protestavam contra a guerra, soldados desobedeciam a seus comandos que ordenavam que eles atirassem
contra os soldados rebelados e contra manifestantes.
Mediante a confusão que imperava no país e cedendo à pressão do povo para que renunciasse,
Nikolai Romanov II acabou abdicando em favor do seu irmão Mikhail que ficou no trono apenas um dia,
entregando o poder a um governo provisório formado por membros de uma assembleia de deputados,
liderada por Alexandre Kerensky, que representava a facção contraria a de Lênin.
Foi criado um poder paralelo formado pelos trabalhadores que defendiam os interesses dos
operários, do campesinato, dos soldados e de todo o proletariado. Contudo, o governo provisório ainda
mantinha a Rússia na guerra, programando uma grande ofensiva, se esquecendo de que o exército russo
não dispunha de armamento e nem de soldados dispostos a lutar, já que aquela guerra não era uma guerra
patriótica.
Em 17 de abril daquele tumultuado ano de 1917, Lênin chegou a Petrogrado, após ter atravessado
todo o território da Alemanha num trem blindado. Teve garantias de segurança dada pelo governo alemão,
carregando consigo uma mala cheia de moedas de ouro, para que tomasse o poder das mãos do governo
provisório e retirasse a Rússia da guerra, aliviando parcialmente os exércitos do Kaiser Guilherme da
Alemanha, que ainda tinha pela frente a França e a Inglaterra.
Lênin tomou posse do poder, criou um Conselho tendo ele como Presidente e conferiu cargos
àqueles que tiveram papeis importante para que a revolução se realizasse; Leon Trotsky, como Comissário
do Povo para Assuntos Internacionais e Iossif Vissarionovitch Stalin, como Comissário do Povo para as
Nacionalidades Estrangeiras, cuja função consistia em solucionar as questões das diversas etnias e
nacionalidades que compunha a Rússia.
No dia 7 de novembro de 1917 aconteceu a transferência do poder sem que um tiro sequer fosse
disparado. Os bolcheviques ocuparam pontos estratégicos, prédios públicos, quartéis e o Palácio de
Inverno, sede do antigo Governo Imperial e do governo provisório. Tudo ocorreu sem encontrar
resistência e sem derramamento de sangue.
Lênin retirou as tropas russas da guerra, conforme havia prometido. Sabia quanto àqueles primeiros
dias de revolução eram importantes para que pudesse levar adiante o socialismo.
A França e a Inglaterra, inconformadas por Lênin ter abandonado a guerra, resolveram apoiar as
forças brancas lideradas por Kerensky, fornecendo armas e munição para que combatessem os comunistas
liderados por Lênin, dando inpicio a guerra civil com ferozes combates entre o povo da mesma nação.
Para Zaram era o momento de deixar a Rússia, porque não era seu desejo viver num país de pernas
para o alto, já que nada podia fazer para amenizar a situação. Começou a preparar sua viagem a outro país
onde pudesse desfrutar da paz e se voltar aos seus estudos, as pesquisas e experimentos. Chamou seu
amigo e discípulo para acompanhá-lo e fugir dos acontecimentos que estavam por vir, mas ele preferiu
permanecer junto de seus pais, na esperança de recuperar pelo menos a fábrica de Petrogrado.
Depois foi a casa de Ludmila e convidou a sua família a partir da Rússia junto dele, alertando que
acontecimentos funestos estavam para acontecer, e que nada de bom restava a eles. Mas recusaram o
convite do místico. Ludmila também recusou, dizendo que não iria sem seus pais que não queriam deixar
a fábrica e suas propriedades. Além do mais não tinha nenhum comprometimento com Zaram, que nunca
falou em casamento. Encontravam-se em festas, alguns passeios pelos jardins, jantares, mas nada mais
além disso. Em seu íntimo sentia um sentimento forte da parte do místico, o que a deixava confusa sobre
suas verdadeiras intenções. Podia até dizer que o amava, um sentimento profundo nunca sentido nem
mesmo pelo seu falecido esposo, pois seu casamento não passou de um negócio interessante para ambas as
famílias, um costume na sociedade russa que começava pelos tzares que sempre se casavam com filhas de
reis de outros países, visando a união de reinos, ganhar apoio bélico em caso de guerra.
Ludmila sabia que sua condição de viúva afastava bons partidos, como atraia aproveitadores que
apenas tencionavam um relacionamento sem qualquer compromisso. Por outro lado, tinha certeza de que
Zaram não fazia parte dessa classe de homens, e também reconhecia que sua estreita amizade com o
místico mantinha esses homens afastados.

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Seu sentimento por ele era mesclado de amor e medo, medo que nem mesmo podia entender,
porque um homem como ele não podia ser tudo aquilo que diziam. Não dava ouvido quando algumas de
suas amigas a aconselhavam a esquecer aquele homem, porque sabia que, mesmo as mais jovens, dariam
tudo para se atirar nos braços dele, principalmente por ser ele um homem rico, o que não era o que a
atraia, porque sua família era rica, de modo que ela jamais precisaria se sujeitar a um homem de boas
posses para ter uma boa sobrevivência.
Nada sabia sobre suas origens. Sempre em volta a mistérios, sábio, sereno e um controle sobre si
jamais visto num ser humano. Destemido, andava pelas perigosas ruas ignorando os perigos, os
salteadores, os assassinos, os revolucionários e a própria polícia tzarista que prendia sistematicamente
qualquer individuo.
Não havia mais leis e nem tzar. E esse convite para deixar a Rússia e viver num lugar distante como
sua concubina? Era viúva, mas não estava preocupada em ter um homem para dividir a sua vida. Mas
sobre ele, alguma coisa lhe dizia que não era como esses homens que só querem usufruir dos prazeres de
uma bela mulher, e poder gastar parte de sua fortuna. Zaram era diferente. Estava confusa, a situação do
país, os revolucionários. Com toda a sua educação, nunca foi o que se pudesse considerar uma mulher
culta e politizada. Leu os clássicos, como compete a uma dama da sociedade peterburguense, conhecia os
principais bailados, as óperas, sinfonias, mas como compete a uma mulher, não se envolvia em política, o
que a deixava confusa se deveria ou não deixar seus pais para se aventurar com um homem num país
distante. Os boatos de que será confiscada as propriedades, de que com o socialismo todos seriam iguais e
que não haveria mais classes sociais, tudo seria dividido entre os que nada têm. Esses boatos a deixavam
confusa. Quem pode predizer no que isso tudo vai dar? Ele fala demonstrando conhecimento sobre
política e as tendências sobre o que está acontecendo no país. Quem é ele para predizer todas essas
desgraças que anda apregoando?
Por outro lado estava claro que não haveria futuro nessa Rússia tomada pela febre da revolução.
Mas prefere acreditar que Deus não vai permitir que a Mãe Rússia caía em mãos de aventureiros. Às
vezes, se questionava se seria prudente deixar o país. Mas seus pais, a fábrica, sua casa, onde repousam as
lembranças de sua infância as amigas, as festas, os jantares. Seu piano e os recitais que apresentava aos
amigos. Iria perder o homem que ama. Faz parte da vida, perdeu o marido, e que diferença faz perder o
homem que, supostamente ama? Seria pelo amor que sentia pelo misterioso homem a quem não tinha
coragem de seguir seus passos, dúvida se estava nele a sua felicidade? Não conseguia raciocinar.

OITO
“...Vejo diante de ti o mal, a morte e a dor. Quer abandonar os brilhantes olhos das estrelas por
aqueles terríveis olhos do ceifador de vidas humanas? Quer ser vítima da larva que habita no umbral, esse
espectro que afugenta e aterroriza com seu olhar aqueles indignos a alcançar os mais elevados poderes da
nossa Augusta Ordem? Esqueceu-se o que o amor faz ao ser humano, que não é outra coisa senão uma
dependência psicológica e física que se desfaz com o tempo? Você se envolveu demais a vida na terra.
Aprecia a boa comida, o bom vinho, festas, teatro. Não que não deva desfrutar das coisas que o Criador
propicia, mas sem, contudo, se envolver a ponto de se tornar dependente. Não perca um só momento, vem
pessoalmente falar comigo. Passe uma temporada aqui nesse lugar caloroso, clima temperado, alheio aos
problemas do homem, o causador de seus próprios males. Deixe seus bens adquiridos no país onde está
vivendo, e vem apertar a mão desse seu amigo de tantos anos, podermos conversar sobre os velhos
tempos...”

Em poucos meses aconteceu uma grande reviravolta; a família Imperial foi cruelmente assassinada
por uma guarda letã em Ekaterimburgo, na região do Urais, intensificando os combates entre as forças
inimigas. A nação russa passou a viver os seus piores momentos. Os Bolcheviques, liderados por Lênin,
combatiam as forças Brancas por todo o território russo, enquanto nas cidades reinava a violência gratuita
entre ideologias rivais. As ruas se tornaram perigosas com salteadores que roubavam livremente porque
não havia polícia e nem lei. Comissões organizadas pelo Partido e lideradas por comissários invadiam

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deliberadamente as mansões dos ricos com decreto assinado por algum figurão revolucionário, dizendo
que ninguém mais era dono de nada, que tudo pertencia ao povo, obrigando o morador a permitir que
invadissem sua propriedade e se apropriassem dos seus bens, restando à família em questão apenas um dos
cômodos. Objetos de valor, tais quais ouro, joias, dinheiro, tudo era confiscado pelo Estado. A residência
de Zaram e seu escritório comercial ainda permaneciam intactos, mas tinha sido emitida uma notificação
que seria confiscada pelo Estado.
Em meio ao clima que aterrorizava aqueles não envolvidos com a revolução, Zaram e Ludmila
estavam à beira da praia, onde o Rio Nevsky desemboca no mar, contemplando o sol que mergulhava nas
águas, como que para fugir da violência que assolava a Rússia. O sol se punha lentamente formando faixas
carmesim, fazendo com que esquecessem que estavam em meio a uma guerra civil. A noite se
aproximava, e com a noite todo o horror da guerra civil.
- Eu insisto para que me siga. – dizia Zaram – Acaso acredita que tudo se resolverá, que esse povo
faminto deixará a sua casa? Ludmila, esse lugar vai se transformar num verdadeiro inferno. Nada mais nos
resta a fazer aqui ou em qualquer parte da Rússia.
- Ah, Zaram querido, será que não pode me compreender? – suplicou Ludmila olhando em direção
ao por do sol, que a essa altura já tinha se posto. - O sol se ocultou aos nossos olhos para aparecer aos
olhos dos outros em lugares opostos. E você propõe que eu desapareça desse lugar para viver em outro
mundo longe daqui? Meu querido, diga-me que apenas gracejou, que está brincando com minha
ingenuidade.
- Acha que estou usando de artifícios para convencê-la a me acompanhar? Ah, criatura pura ao
mesmo tempo ingênua, se pudesse ver o que vejo adiante não hesitaria em seguir-me. Vejo o mal, a
desgraça, o flagelo por todo esse país. Não há nada mais para fazer aqui senão deixar para trás tudo que
lhe pertence. Não percebe que toda a sua família perdeu tudo que lhes pertencia? Eu ofereço um lar, a
dignidade a você e a toda a sua família. Possuo uma propriedade na Alemanha que abrigará a todos nós. O
que vê em mim que te confunde, que faz duvidar de tudo que lhe proponho?
- Oh, meu querido, perdoe-me. Perdoe-me. - suplicou arrependida - Fui rude com minha resposta,
mas entenda, não concebo a idéia de que alguém possa usurpar dos bens de outros assim deliberadamente,
por isso a minha reação perante o que disse.
- Há perigo em toda parte – insistiu Zaram com semblante serio – O inimigo nos espreita, eu o sinto
nesse ar pesado, ouço-o em meio a esse silêncio, nesta aparente calma.
Zaram parou de falar permanecendo por alguns instantes em silêncio. Depois passou a murmurar
baixinho como se falasse com alguém invisível ou consigo mesmo, numa língua estrangeira
incompreensível, numa inquietação que ela jamais tinha visto nele. Ludmila sentiu um leve
pressentimento que não podia definir, mas pensou de relance em seus pais. Olhou para Zaram e ficou
surpreendida com sua expressão abstrata, inquieta e perturbada.
- Parto amanha pela manha. Ainda há tempo para arrumar as suas coisas, Ludmila. Venha e traga
sua família, pois a morte ronda a sua casa. Lembra aquela vez em que nos falamos antes de eu partir para a
Itália? Naquela ocasião eu bem que gostaria de dizer a você palavras doces, palavras que alegrariam o seu
coração, mas não pude fazer porque eu vi um futuro de tristeza em sua vida, mas nem mesmo podia
definir o que era e quando seria esse futuro. Mas agora está tudo diante de mim. Esse futuro é o presente, e
naquele dia também vi que sua vida estava entrelaçada a minha.
Zaram parou de falar, abaixando a cabeça pensativo, não conseguindo evitar que a tristeza tomasse
conta de seu ser.
Já estava começando a escurecer e as ruas se tornariam perigosas, o que não causava o menor temor
a Zaram e tampouco a sua acompanhante correria perigo estando a seu lado. Deixou-a em sua residência, a
essa altura, com um movimento de entra e sai de pessoas. Passou pela cabeça do místico abrigá-la e a sua
família em sua residência, mas sabia que seria por poucos dias, porque logo os revolucionários tomariam
posse de sua casa, porque ninguém era mais dono de nada na Rússia bolchevista.
Logo que chegou a sua casa, Ludmila entrou em seu quarto, que por sorte deixaram que ela
preservasse ao lado do quarto dos seus pais, que também foi permitido suas privacidades. Ludmila não era

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fervorosa em se tratando de religiosidade, mas naquele dia se dobrou diante do ícone de um santo que nem
mesmo sabia o nome, para pedir discernimento para encontrar a melhor solução, se deveriam ou não
seguir aquele homem que amava e que ao mesmo tempo lhe causava medo. Pôs-se a rezar. Nunca havia
passado pela sua cabeça que um dia teria que abandonar a sua casa, onde repousam todas as suas
recordações, sua infância feliz, sua adolescência e juventude cheia de sonhos, seu primeiro baile, as festas.
Desde o momento em que tinha ouvido tudo que Zaram lhe dissera, havia se decidido por partir com
ele, mesmo que seus pais não consentissem, porque amava aquele homem e não desejava perde-lo,
superando o medo que em seu íntimo sentia devido aos mistérios que o cercavam. Zaram havia dito que
pela manha passaria pela sua casa para saber sobre sua decisão, e ela, naquele momento de reflexão, já
tinha decidido, não tomaria nenhuma decisão antes de consultar o santo.
Mas durante a sua oração sentiu que uma voz interior falou para que não seguisse aquele homem,
porque seu lugar era ali em sua casa junto de seus pais;
Na manha do dia seguinte Zaram partiu sem ela.

Algumas semanas depois, os dois amigos conversavam caminhando no meio da mata, naquela noite
com temperatura agradável, fresca, aquela que apetece um passeio, principalmente quanto se trata de
velhos amigos.
– O seu amor por ela não pode ser mais do que uma ilusão, pois não pode amar como aquele a
quem a morte aguarda a sua hora – dizia Senmuth – Muito em breve a existência do objeto que idolatra
não será mais do que um punhado de pó. Os demais seres do mundo vulgar marcham juntos pelo caminho
de sua vida efêmera, e juntos tornam a subir de simples vermes a ciclos de existência. A você aguarda
nessa terra, séculos de existência, e a ela apenas horas. Por quantos graus e céus de existência terão
passado a alma dela quando você solitário vagabundo dos vapores da terra subir as portas da luz?
– Meu caro irmão e insensível Hierofante, – interveio Zaram – eu te procurei para ouvir seus
conselhos, e também para que me ajude a conduzir aquela por quem sou capaz de entregar todos os anos
de minha existência, para que você me auxilie em meus propósitos. Não lê em meus desejos o sonho de
elevar as condições de sua natureza a minha? Em vão busquei entre os da minha espécie, e por fim
encontrei uma companheira. As aves e os animais têm cada um o seu par, a humanidade vive em pares,
constituem família e são felizes. Para que viver centenas de séculos vendo amigos partirem e continuar a
jornada solitária nesse caminho sem fim? Por que não viver apenar mais algumas décadas e sentir a
felicidade que alimenta o ser humano? Meus poderes podem banir as larvas do caminho que conduzirá a
minha amada as alturas, até que o ar da eternidade prepare seu corpo para o elixir que defende contra a
morte, e é aí que repousa o grande perigo. Conseguirá um ser tão frágil e cheio de temores, passar pelo
habitante do umbral?
- Ela virá a seu encontro? –perguntou o ancião.
- Estou tão certo disso, pois sinto que nossos destinos estão ligados - disse Zaram.
- E pretende iniciá-la em nossa senda do saber. O que posso dizer-lhe? Estou certo de que não
ouvirá meu conselho.
- Que me oriente na melhor maneira de poder conduzi-la.
– O que quer que eu faça? – disse o ancião – Chega um momento em que tudo depende do
candidato, nada posso fazer. O que deseja, o meu conselho? Só posso dizer para que reflita, reflita muito.
Você sabe que seu verdadeiro inimigo habita no que se chama mundo real.
– Ah, Senmuth, amigo de tanto tempo, não sabe o quanto é bom poder ser um ser humano comum,
sentir o amor de uma mulher, a paixão, a ansiedade.
A fria face de Senmuth esboçou um leve sorriso.

NOVE
A economia da Rússia era baseada na agricultura. A indústria, além de representar uma minúscula
parcela, ainda vivia num atraso de quase um século. Enquanto os países da Europa adotavam tecnologia

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moderna, as fábricas russas mal conseguiam repor as peças que se desgastavam. Mesmo os proprietários
agrícolas sofriam com os resultados de suas produções abaixo do índice satisfatório, devido ao maquinário
antiquado e à falta de peças de reposição. Ainda aravam a terra com arado de madeira puxado por cavalo.
Desconheciam as técnicas modernas de plantio e de colheita, além de terem como agravante o curto
período entre a primavera e o outono, porque depois a terra russa era castigada pelo rigoroso inverno.
As consequências dos combates entre as forças brancas e vermelhas, um destruindo o território
dominado pelo outro, pouco se importando com a fome que assolava a nação, tinham dizimado quase todo
o campo. O terror e a morte campeavam por todos os cantos, atingindo ate mesmo as famílias outrora
abastadas. A mansão de Zaram, seu escritório, as propriedades dos pais de Ludmila e também dos pais de
Ilya foram expropriadas pelo governo e seus proprietários expulsos. Não havia mais em toda a Rússia a
propriedade privada.
Os pais de Ludmila acabaram morrendo de desgosto ao se verem destituídos de todos os seus bens,
e o mesmo fim teve os pais de Ilya. A governanta que cuidou de Ludmila desde o seu nascimento, acabou
sendo presa acusada injustamente de ser contra o novo regime. Restou a ela e Ilya um quarto na casa que
outrora tinha sido de seus pais. Dividiram o mesmo quarto separados por um cobertor, tendo os vizinhos
também separados por cobertores. Algo jamais concebível, destituídos de toda e qualquer dignidade, um
verdadeiro pesadelo.
O novo governo mudou o nome do país, passando a chamar União das Republicas Socialistas
Soviética. Não havia esperança de reverter a situação, tampouco perspectiva de melhoras, pois tudo havia
sido socializado. Inconformado e decepcionado com aquilo pelo qual apoiava e estava disposto a lutar,
acreditando que a revolução traria benefícios a todos, não restava alternativa senão ir ao encontro daquele
que sempre estivera disposto a conduzi-lo a senda do Saber.
Ludmila, então, pode compreender as palavras outrora proferidas por Zaram que deixava a entender
que um futuro sombrio a aguardava mais adiante. Percebeu o quanto ele era importante em sua vida, ela
uma mulher que sempre fora cercada de cuidados pela governanta, pela criadagem, de ora a outra se viu
sem nada, sem ter onde se apoiar. Não ia entregar a sua vida ao acaso, Era o momento de escrever a
Zaram dizendo que desejava acompanhá-lo por toda a sua vida.
Pouco mais de um mês, após ter recebido a carta de Ludmila, Zaram foi buscá-la em seu próprio
navio. Ilya Abraãomovitch foi com eles.

O navio de Zaram estava aportado no cais de Nápoles, tendo a bordo dois passageiros ilustres; Ilya
Abraãomovitch, que deixara a Rússia para sempre e para ser iniciado nos graus elevados dos mistérios que
cercavam seu amigo e mestre, e àquela a quem Zaram escolhera para viver junto dele, a jovem Ludmila
Semionova. Zaram deixou o navio, permanecendo a bordo a mulher e o jovem neófito. Seguiu
caminhando pela praia em direção ao tumulo de Virgílio. Antes de entregar o discípulo ao seu mestre,
queria conversar com o velho amigo, o que fazia de tempos em tempo, às vezes há décadas, porque o que
é uma década para quem vive séculos e mais séculos? Tinham muito que conversar e, além do mais,
Zaram queria ouvir os conselhos do velho amigo.
A noite estava em seu apogeu quando ele chegou até a colina onde ficava residência do místico, que
o esperava com um rico banquete regado de um bom tinto com uvas de sua propriedade. O banquete se
desenrolou noite adentro em meio a muita conversa.
Os primeiros raios de luz anunciavam o nascimento de mais um dia de verão, sem que as estrelas
houvessem deixado o firmamento. As aves ainda dormiam pousadas nos ramos das arvores. Tudo estava
quieto, tranquilo e silencioso. Na harmonia daquele silêncio se notava mil variações de leves ruídos
provocados por algum animalzinho que se preparava para começar um novo dia.
– Se esse afeto que sente por uma beleza perecedora poderá fazer com que participe de sua
duradoura essência, tudo pode ser como pretende. É possível que tenha a coragem de vê-la ameaçada
pelas enfermidades, exposta aos perigos, ver como os anos a alquebraram, como os seus olhos se
enegreceram, ver como a sua beleza se esvaneceu, enquanto o seu coração jovem ainda, não quer
desprender-se do seu?

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– Ah, o que é toda e qualquer outra sorte, comparada com a morte produzida pelo terror quando o
mais frio sábio, o mais ardente entusiasta, o mais ousado guerreiro com seus nervos de ferro, têm sido
encontrado morto em sua cama com os olhos desmesuradamente abertos e os cabelos eriçados, ao
primeiro passo que deu na senda? – disse Zaram com certa melancolia na voz – Pensa que essa fraca
mulher, cuja face empalideceria ao primeiro ruído que ouvisse numa janela, ao grito de uma coruja, pensa
que ela pode resistir ao espectro do umbral? Só de pensar que ela teria que se deparar com semelhantes
coisa, perco qualquer esperança de tê-la um dia junto de nós. Quantos bravos pereceram diante do
maligno, não conseguiram seguir adiante. Muitos, não resistindo, acabando por morrer?
– Contudo, caríssimo irmão, – interveio o ancião – está resolvido a levar adiante o que seu coração
pede, mesmo sabendo que poderá perder muito de sua arte de driblar as enfermidades e afastar para longe
de si todo e qualquer perigo?
– Será que a vida dos mortais comuns não tem seus atrativos. – tornou Zaram – Viver, sentir a
felicidade de ter ao lado a mulher amada, dormir e despertar com ela em seus braços, a emoção de ver seu
rebento nascer, cuidar dele, se preocupar, ver a criança crescer, será que essas emoções não têm seu
grande significado? Oh, meu caro amigo, do que vale toda essa existência vendo pessoas que nos são caras
perecer diante da enfermidade, da morte enquanto prosseguimos em nossa solitária jornada? O faça-se já
foi decretado pela linha do destino, caro amigo. Amanha meu barco estará singrando os mares de volta a
Alemanha junto dela, que nesse momento me aguarda em meu navio junto de seu novo discípulo. E então
o peso dos séculos cairá do meu coração.
– Tenho pena de ti, meu velho amigo e companheiro que um dia tive o prazer de conduzir a senda
dos mais nobres segredos da nossa Ordem. Se for assim que deseja, vá, vá em busca da sua felicidade.
Saiba que sempre estarei aqui para te ouvir, te amparar se preciso for. Vá e seja feliz.
Zaram retornou ao navio ainda na tarde daquele dia. Ilya Abraãomovitch o aguardava com
ansiedade para ser apresentado ao seu mestre. Jantou em companhia de Zaram e Ludmila. Após o jantar
deixou o navio e saiu em companhia de Zaram. Caminharam em silencio por boa parte do trajeto. Depois
foi informado de como chegar até o local onde era esperado. Zaram o abraçou e desejou-lhe boa sorte,
dizendo em seguida:
– Na próxima vez que nos encontrarmos, ou terá fracassado ou será um vencedor, e eu poderei
chamá-lo de irmão. Vá, meu jovem, Faça tudo que lhe for recomendado e se sairá vencedor. Adeus.
Ilya Abraãomovitch ficou parado naquela praia deserta, olhando o amigo que desaparecia na
escuridão da noite. Restava seguir adiante em busca daquilo que almejava. Partia para uma nova vida, a
um caminho que nada sabia como era e aonde ia dar. Virou as costas para a direção por onde Zaram havia
partido, e seguiu adiante.
A noite era calma e serena, as ondas do mar vinham morrer silenciosas na areia, quase a seus pés,
sob o esplendor do estrelado firmamento. Uma leve ansiedade tomou conta de seu ser, pois estava preste a
dar um passo importante em sua vida. Caminhou mais algumas centenas de metros e no local indicado ele
parou. Demorou alguns segundos ate notar uma figura estranha envolto num manto escuro, apoiado contra
o pilar das ruinas de uma construção antiga. Aproximou-se daquela estranha figura, e o homem se
levantou expondo seu rosto e sua estatura avantajada.
Ilya Abraãomovitch percebeu que se tratava de um estrangeiro de lugares em que ele não podia
definir, cujo semblante, ainda não tão jovem como o de Zaram, tinha o mesmo aspecto majestoso, ou ate
mais impressionável, tanto pela idade madura como por demonstrar uma inteligência livre de paixões, o
que se revelava em sua larga testa e em seus olhos profundos e impressionantes.
– Sou Senmuth, o homem a quem procura - disse numa voz grave e pausada – Saiba que este
homem diante de ti está ligado ao seu destino, e disposto a realizar o seu sonho.
– Devo ver no senhor um daqueles poucos seres poderosos, aos quais Zaram não é superior em
poder e nem em sabedoria? – perguntou o russo.
– Você vê diante de si alguém de quem Zaram aprendeu alguns dos seus mais altos segredos.
Muitos foram meus discípulos e muitos, depois de uma longa existência, deixaram essa vida por
desejarem o descanso eterno.

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– Pelo que diz – interveio o rapaz – entendo que vive nesse mundo há muito tempo, meu senhor?
– Eu tenho estado nessas praias desde os tempos em que homens que fizeram a história passavam
por aqui. Vi os fenícios, os gregos, os romanos, a todos eu vi. Essas folhas alegres e brilhantes sobre o
tronco da vida universal, dispersas em suas devidas estação e renovadas depois, ate que, na realidade a
mesma raça que deu ao mundo antigo a tua gloria, deu ao mundo novo uma segunda juventude.
Enigmas, mais enigmas. – disse o jovem a si mesmo.
– O império do homem que aspira ser mais do que um homem – prosseguiu o místico – não reside
no conhecimento das coisas exteriores, mas sim no aperfeiçoamento da alma que tem no seu interior.
– E quais são os livros que contém essa ciência, se assim posso chamar? – inquiriu o discípulo.
– A natureza fornece os materiais, e esses residem ao redor de si, e você o pisa a cada passo, está
nas ervas que o animal devora e que o químico desdenha de colher por ignorar suas ricas propriedades.
Está nos elementos de que se deduz a matéria nas suas formas mais diminutas e mais poderosas, e mais
poderosas no seio do espaço do ar, dos negros abismos da terra. Em toda parte podem os mortais encontrar
os recursos e a biblioteca da ciência mortal. Porém, como os mais simples problemas nos mais simples de
todos os estudos, são obscuros para quem não educa a sua mente para compreendê-los.
– Ainda que a terra estivesse cheia de gravuras e escritos do mais saber, – prosseguiu – os caracteres
seriam inúteis para quem não procura saber significado dessa linguagem e não medita sobre a verdade.
– Os homens desejam quatro coisas nessa vida; - disse o místico mudando radicalmente o tema da
conversa - Amor, riqueza, fama e poder. O primeiro não posso lhe conceder, mas, porém, as outras três
restantes estão a minha disposição. Escolha dessas três coisas a que lhe agrada.
– Esses não são os dons que cobiço, prefiro a ciência que você e Zaram possuem. – disse o
candidato aos mistérios de Zaram e daquele homem disposto a ser o seu mestre-guia.
– Posso satisfazer seu desejo, mas advirto que doravante seja prudente, dedicado, intrépido,
persistente, e receberá o que deseja.
– Gostaria de fazer-lhe uma pergunta – disse o aspirante. – Me responda: está no poder do homem
se comunicar com os seres do outro mundo, e está no poder do homem influir sobre os elementos e
preservar a sua vida contra a espada e contra as enfermidades?
– Tudo é possível. – respondeu o místico – Mas somente àquele que consegue alcançar esses
segredos.
– Outra pergunta – novamente o aspirante. Mas foi interrompido antes que prosseguisse.
– Basta de perguntas. – interrompeu o místico. – Pois quero saber se já se decidiu.
A resposta do rapaz foi afirmativa, e o místico prosseguiu:
– Pois bem. Recebo-o como discípulo. Doravante te conduzirei a porta de um mundo terrível, ao
mesmo tempo majestoso. Terrível porque, para seguir adiante terá que passar por provas onde somente um
coração puro e sincero pode superar.
– Por favor, senhor. Só mais esta pergunta: venho de um país onde a baderna impera, e que perdi
meus pais e bens materiais. Conseguirei...
– Meu jovem discípulo, – interveio o místico com uma voz cuja calma estava em perfeito acordo
com as frias palavras – O seu primeiro cuidado deve ser afastar de si todos os pensamentos, sentimentos e
simpatias e rancor. A base fundamental da ciência e fazer você mesmo o seu estudo, e esse estudo deve ser
agora somente o seu mundo. Todos os seus esforços devem se dirigir, de hoje em diante, a aperfeiçoar as
suas faculdades e concentrar em suas emoções. Deve, portanto, renunciar o amor, a compaixão, rejeitar as
riquezas, a fama e a vulgar pompa do poder. Não deve se importar com a humanidade, os problemas do
mundo com suas guerras e outros conflitos. Agindo conforme lhe proponho estará se preparando para
atingir seu objetivo, e ser feliz.
– Encontrarei então a felicidade? – perguntou o discípulo.
– Se ela existe deve se encontrar no seu Eu que é livre de paixões. Porém, a felicidade é o último
estado do ser, e você se encontra apenas no umbral do primeiro degrau da escada que para lá conduz.
– Então me aceita como discípulo?

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– Meu caro neófito, se a sua imaginação é viva, se o seu coração é ousado e a sua curiosidade
insaciável, eu o aceitarei por discípulo, mas advirto que as primeiras lições são duras e terríveis.
Ilya Abraãomovitch Riabushinsk exalou um suspiro e, em seguida, discípulo e mestre dirigiram seus
passos para a residência do místico, o antigo castelo no alto da colina, próximo ao tumulo de Virgílio.

No alto da colina, protegido por uma densa floresta e bem próximo do tumulo de Virgílio, situava o
Castelo da Colina. Era uma construção antiga que, segundo os moradores dos vilarejos espalhados pela
região, foi erigida por um bruxo há muitos séculos passados e, segundo muitos dos antigos moradores
afirmavam que esse mesmo homem ainda residia no castelo. Mas outros preferiam dizer que tudo não
passava de meras lendas, pois o habitante do castelo era um homem generoso que ajudava as pessoas
pobres das aldeias, além de dar emprego a alguns moradores do lugar, tanto no interior do castelo como na
lavoura, numa grande área de plantio que fazia parte dos domínios do castelo.
Raramente era visto pelas imediações, pois vivia enfiado em estudos e experiências cientificas
dentro de seu castelo. Raramente recebia visitas, a não ser um homem que algumas pessoas diziam que, às
vezes, o visitava, um tipo estranho quase como ele, e que esse mesmo homem que o visitava não
envelhecia, como também ocorria com o morador daquele castelo.
Alguns moradores viram que tinha chegado um homem ainda jovem naquele lugar e que,
provavelmente, viera para aprender as coisas estranhas que aquele homem sabia. Se era bruxaria, pelo
menos nunca ninguém sofreu mau algum da parte daquele homem, pelo contrario, muitos foram curados
pelas suas porções milagrosas preparadas por ele mesmo. Contudo, nunca alguém subiu até o castelo,
senão aqueles que lá trabalhavam, fosse por qualquer motivo, mesmo em busca de socorro para curar
alguma enfermidade. Parecia que ele adivinhava quando alguém estava doente ou mordido por alguma
cobra, porque nessas ocasiões ele aparecia.
Os aposentos destinados ao novo hospede e discípulo eram espaçosos, ostentando alguns restos do
antigo esplendor nas carcomidas tapeçarias que adornavam as paredes, proporcionando ao discípulo uma
lembrança de sua terra natal, onde as residências tem os aposentos forrados por tapetes pelas paredes. As
mesas eram de mármore ricamente esculpido, e armários em jacarandá maciço, lustres ainda alimentados
por lâmpadas de petróleo e em nenhum compartimento havia luz elétrica. Um banheiro enorme com uma
banheira funda, também em mármore. De seu quarto tinha comunicação com uma biblioteca onde havia
cerca de três mil volumes, a maioria em línguas estrangeiras as quais ele nem mesmo conseguia saber,
talvez, até fossem línguas mortas. Tudo isso dava um clima antigo como se não houvesse modernidade lá
fora. Ainda fazendo parte de seus aposentos, tinha uma espaçosa varanda, cuja vista era
incomparavelmente bela. Um lugar onde era possível passar longas horas em contemplação que a natureza
proporcionava. Todo esse retiro respirava uma tranquilidade sombria, muito agradável, conveniente para
os estudos a que era destinado.
Uma equipe de quatro criados fazia todo serviço da casa, desde a limpeza, manutenção, serviço de
quarto e as refeições. A rotina consistia em desjejum pela manha, estudo ate a proximidade do horário de
almoçar, sesta após o almoço e passeio pela floresta em companhia do místico, aprendendo sobre as
plantas com os benefícios que elas proporcionavam. Após o jantar o místico conversava com seu
discípulo, ensinando coisas básicas para que pudesse seguir adiante, destacando a grande necessidade de
concentração, a base para obter o domínio de si próprio para poder ter os primeiros contatos com o oculto,
onde é exigido um domínio total sobre si mesmo e sobre tudo mais.

Um novo ciclo iniciava em sua vida. Uma mulher, a mulher a quem ele se entregara totalmente,
desafiando uma lei que fazia parte de sua misteriosa existência. Mas uma opção que tinha decidido,
independentemente do que poderia ocorrer em seu futuro, pois para ele nada era mais caro do que o amor
daquela mulher. Escolheu a Alemanha para fixar sua residência num período tumultuado para uma Europa
que acabava de sair de uma guerra onde todos perderam. A Rússia passava por uma fase de reconstrução
com o fim da monarquia e morte do tzar e toda a família imperial, e com o novo regime implantado pelos

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revolucionários sob a liderança de Vladmir Lênin. E a Alemanha passava por um período em que a
monarquia sofria sérias ameaças, a beira de uma revolução em prol de uma República.
Não fazendo caso ao que poderia resultar disso tudo, decidiu por morar no Estado da Baviera, um
lugar onde ainda era possível encontrar antigas construções que se assemelhavam aos antigos castelos, e
onde possuía uma bela propriedade. Zaram tinha preferência por casarões com muitos cômodos e também
que fossem espaçosos, além de grande área verde com diversidade de plantas e espaço para fazer seu
pomar e sua horta. Deixou seu barco ancorado em Hamburgo aos cuidados de seus marinheiros e fixou
residência num casarão na cidade de Munique, um verdadeiro palácio.
Ele e Ludmila viviam um idílio como compraz a um casal feliz, o que fazia refletir sobre sua
existência, séculos e mais séculos distante do amor entre dois seres, alheio a paixão humana cheio de
emoções que torna a vida interessante. Tinha a seu lado a almejada companheira, um sonho que em toda a
sua existência nunca havia conquistado. Uma companheira para os eventos festivos em sua residência,
uma companheira para compartilhar os bons momentos que a vida propiciava.
Havia um clima de medo no ar, como se algo de tenebroso estivesse para acontecer. Como na
Rússia, por ocasião de sua chegada àquele país, o povo protestava pelas ruas exigindo que o
kaiser*(*Imperador) abdicasse para dar lugar a uma república democrática. A guerra havia empobrecido
a Alemanha, além de perder parte de seus territórios e alguns países sob seu domínio. Por outro lado, as
noites eram agitadas, as boates, os cafés, teatros que exibiam peças satirizando a atual situação do país.
Um mundo novo para aquela mulher recém-saída de uma sociedade conservadora onde a vida era regrada,
nada saia do convencional, exceto a nova ordem imposta pelos revolucionários. Esse novo mundo a
fascinava, um povo alegre e aparentemente feliz. Se era ou não feliz, isso não importava. O importante era
sentir toda aquela vibração, toda aquela energia. Uma nova moda na maneira de vestir era vista pelas ruas
de Munique. Os rapazes usavam suéter ou pulôver colorido, blazer em vez de terno completo, chapéu de
cor clara com a aba reta sem ser dobrada, camisas de cores fortes, gravara borboleta, sapatos de duas
cores. As mulheres deixaram os vestidos longos com a cintura afinada, por vestidos curtos e soltos sem
que marcasse o corpo, os cabelos cortados ao nível da orelha e uma franja que cobria as sobrancelhas,
chapéus menores, boina, maquiagens pesadas. A música da moda era o reggetime e o jaz americano. Tudo
isso dava um tom alegre que disfarçava a tensão daquele pós guerra e um futuro de incertezas.
Mas não afetava a vida do casal; iam a restaurantes, óperas e concertos sinfônicos. Em casa, quase
todas as tardes Ludmila tocava ao piano peças de Chopin, Mozart, Hendel, Schubert e outros mestres,
alguns ele teve o privilégio de conhecer. Às vezes reunia um pequeno grupo para sonatas com Ludmila ao
piano, um violino, violoncelo, ou algum instrumento de sopro, clarinete, oboé, fagote. E como sempre ele
dominava as rodinhas com assuntos diversos que encantava seus convidados. Mas, contudo, um assunto
inevitável era sobre o movimento social democrata que tinha como objetivo fazer mudanças na Alemanha.
Nessas reuniões sempre alguém falava sobre a necessidade e um partido que visasse os interesses do
povo alemão. Eram comerciantes, empresários que embora ostentassem seus status de nobreza, viam seus
negócios à beira do naufrágio porque a situação estava difícil, o que não ocorria com os judeus, que
dominavam as finanças. Isso causava certa antipatia por esse povo milenar, a ponto de começarem a
articular movimentos contra os judeus, acusando-os por seus negócios não andarem direito. Mas, no
fundo, o que acontecia era puramente um racismo mal disfarçado, porque nada diziam sobre os gastos de
guerra e outros prejuízos causados pelas sanções imposta por Versalhes. Zaram, embora visse tudo àquilo
com certa reserva, nada comentava para não gerar polemicas e possíveis inimizades.
– Vivemos tempos de ajustes. – dizia à mulher - Isso ocorre de tempos em tempos. Essa guerra não
foi benéfica a ninguém, causando prejuízos a todas as nações envolvidas Uma guerra que não teve um
final. É como se fosse uma trégua, pois amanhã irão continuar o que começaram, e será o caos, porque
lutarão com armas modernas e avassaladoras, poderá envolver as principais potências. É assim a vida.
– Isso me assusta – disse a temerosa mulher – logo agora que estamos começando a nossa vida...
– Não há o que temer, minha querida esposa – interveio o místico – Aconteça o que acontecer, nada
nos afetará, acredite.
– Fala com tamanha convicção...

43
– Se desejar poderemos nos mudar para outro país.
– Não quero deixar a Alemanha, gosto daqui – disse a mulher, pois estava vivenciando outra
realidade, mesmo com os problemas que a Alemanha enfrentava, pois isso tudo em nada afetava a sua
vida recheada de privilégios e a segurança que seu marido lhe dava. – Contudo, a situação do país não
andar bem, não se compara a Rússia com seu contraste social gritante. Pensa que não me sentia mal
vivendo no luxo enquanto pessoas passavam fome ou morriam de frio? Só temo que ocorra o mesmo por
aqui. A mais, temo por conflitos e uma nova guerra.
– Se tiver que acontecer não será agora. Os países ainda precisam se recompor e isso leva tempo. –
finalizou o místico.

DEZ
MUNIQUE, ALEMANHA
Convicto de seus ideais, de taverna em taberna, pelos cafés, cervejarias, nos albergues, nas filas de
sopa e entre a multidão que se aglomerava pelas portas das fábricas em busca de trabalho, aquele jovem
franzino vestindo roupas que já viram dias melhores, com um bigode curto e tão preto quanto os seus
cabelos, fazia seus discursos. Com seus gestos teatrais, sua voz estridente que penetrava no fundo da alma
de cada ouvinte, suas expressões comoventes quando falava do sofrimento do povo, ele ia se tornando
conhecido pelo Estado da Baviera. A sofrida população ouvia suas palavras esperançosas e o aclamava.
Ele saia pelas manhas cada dia em uma parte da cidade, fosse sobre a carroceria de um caminhão, em
palanque improvisado em cima de um caixote de madeira, se reunindo com mutilados de guerra. Suas
palavras eram acalanto, o balsamo da esperança àqueles homens angustiados. E nessas incursões pelo
mundo dos desesperados ele conheceu homens como ele, homens cheios de força de liderança e
organização, e comungavam as mesmas idéias.
Era necessário que se formasse um partido devidamente constituído e com um líder de peso à frente.
Esse líder teria que ser corajoso, alguém que falasse sem medo de atingir as feridas daqueles que tinham o
poder nas mãos. Alguém do seio do povo seria o líder ideal. Alguém do povo vestindo uniforme de
soldado. Não precisava ser inteligente, ou mesmo ter idéias próprias. Bastava que fosse um bom orador,
que soubesse transmitir ao povo tudo que o Partido propusesse, acatar tudo o que fosse ditado. Bastaria
que fosse um político, o que não exige grandes coisas, porque ser político não é nada de excepcional
porque político é a coisa mais imbecil do mundo. Qualquer mercadorzinho de Munique sabe tanto de
política quanto aqueles que estão no Reichstag. Também que fosse solteiro para assim conquistar o
eleitorado feminino.
Ele se encaixava bem no papel do líder proposto. Tinha muito do que o pretenso Partido
necessitava. Era oriundo das classes inferiores, perambulou pelo obscuro submundo da pobreza, conviveu
com os desesperados, pelos abrigos noturnos que o serviço social oferecia. Culto, porque nesses tempos de
vadiagem passou longas horas debruçado sobre livros, jornais e revistas informativas, e era possuidor de
um grande requisito que é o dom da oratória, pois quem falou de mesa em mesa pelas cervejarias, nas
portas das fábricas, poderá muito bem falar para multidões, falar sobre os problemas que assolam a nação
germânica, e apresentar soluções como faz qualquer político demagogo.
O antissemitismo era um bom gancho para conquistar a massa, pois pretextos é que não faltam para
atacar os judeus. Falar ao povo a grande necessidade que é expulsar os judeus da Alemanha, apresentar as
vantagens do país ser habitado somente pelo povo de origem germânica, e incorporar a idéia de ser o
Salvador da Pátria.
Zaram se deparou com aquele homem pela segunda vez. Ele estava discursando para um grupo de
operários em frente a uma fábrica pelas imediações da cidade de Munique. Falava com eloquência,
gesticulava, gesticulava, meneava a cabeça de um lado a outro, cruzava os braços sobre o peito em sinal
de apelo. Prometia trabalho, moradia, uma vida digna ao povo alemão, e falava da grande necessidade de
reunificar a Áustria e a retomada dos territórios perdidos pelo Tratado de Versalhes.
Zaram parou para ouvir aquele eloquente discurso. O que ele apregoava fazia sentido, se
considerando a situação em que se encontrava a Alemanha. O Kaiser Guilherme havia abdicado e a

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Alemanha se tornara República. Contudo, o país continuava passando por momentos difíceis com o
marco*(*Moeda alemã) super desvalorizado gerando uma inflação alta e descontrolada. Aquele bando de
operário desempregado aclamava o orador e depositavam sua confiança nele.
Havia também outro grupo, que pregava o comunismo como na União Soviética, prometendo
solução para os problemas que afligia o país. Zaram observava tudo com certa cautela, pois ele via a
desgraça que recairia sobre o povo, e a cada vez mais via a tirania em que ia se transformar tudo aquilo, e
via também o terrível Espectro do Umbral acocorado ao lado do líder nazista, com seu olhar sinistro e
cheio de maldade.
Nada mais tinha que fazer ali. Já tinha visto o bastante para aquele dia. Seguiu caminhando a passos
lentos, pois a tarde era agradável, tal como ele gostava.

ONZE
HENRICH HIMMLER.
Henrich Himmler se surpreendeu com a chegada daquele homem que se aproximou sem fazer o
menor ruído e tocou suavemente em seu ombro. Era um sujeito estranho, delicado e meigo, sem, contudo,
ser afeminado. Seu rosto era bonito para um homem. Pele alva, rosto bem barbeado e com um discreto
bigode cor de palha sobre seus lábios finos, da mesma cor de seus cabelos bem aparados. Ligeiramente
gordo, mas se movimentava com uma discreta e elegante leveza.
- Capitão Ernest Rohm – disse estendendo a sua mão macia e limpa, com as unhas cuidadosamente
aparadas, o uniforme impecável. – Sou seu instrutor de esgrima, Herr*(*Senhor em alemão) Himmler.
Henrich Himmler sorriu timidamente retribuindo a cordialidade daquele homem que ia satisfazer
um sonho, praticar esgrima, um esporte típico da nobreza. Também uma das poucas práticas esportivas à
altura da sua limitada capacidade física. Himmler era de estatura baixa, um físico desprovido de dotes
básicos para qualquer outra atividade esportiva. Além do mais, tinha uma miopia acentuada que o
obrigava a usar sobre o nariz um grosso pincenê.
- Ainda dispomos de tempo antes de iniciarmos sua primeira aula, Herr Himmler. A propósito, em
que frente serviu? - Rohm perguntou mais para quebrar o gelo daqueles primeiros momentos.
- No Décimo Primeiro Regimento de Infantaria Bávaro, como ajudante de ordens, lotado na
Intendência como arquivista.
- Já sabia de tudo, Herr Himmler. – disse com um sorriso insinuante. – Por favor, queira me
desculpar pela pergunta desnecessária. Li sua ficha e achei interessante o seu ponto de vista, sobretudo o
seu nacionalismo e seu antissemitismo.
Na verdade Rohm pouco ligava para a onda de antissemitismo que assolava a Alemanha. Seu
objetivo era recrutar jovens nacionalistas para integrar o Partido Nazista e a sua SA. E para ganhar a
confiança desses jovens ele procurava apoiar seus pontos de vista para depois conduzir a conversa de
acordo com seus interesses, que além de recrutá-los, também fazer do novato mais um de seus parceiros
sexuais.
Mas com Henrich Himmler foi diferente. De imediato demonstrou certo fanatismo nacionalista com
uma conversa entediada, um tipo ingênuo, porém fácil de ser manipulado, pronto para ser um testa de
ferro. Possuía boa experiência em serviços burocráticos se destacando em arquivo e na formação de
dossiês. Útil para os propósitos de Rohm que procurava alguém como ele para cuidar da parte burocrática
dos seus Camisas Pardas*(*Nome dado aos integrantes da SA). Himmler, com sua experiência em
formação de dossiês poderia ser de grande utilidade, não só para os propósitos da SA como também para o
Partido Nazista. Porém, o corpo de guardas que ele havia formado para proteger os lideres do Partido era
composto por rapazes truculentos, e Henrich Himmler estava longe de preencher os requisitos básicos no
tocante a parte física para integrar a corporação, mas a pessoa certa para a formação de dossiês e os
arquivos secretos.
A SA era uma tropa de assalto com função especifica de servir como guarda protetora dos lideres do
Partido durante os comícios e discursos propagando os ideais nazistas. Parte dos integrantes vinha dos
Freikorps, um grupo de voluntários armados, ex-combatentes do exército regular, que com a proibição de

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um exército de mais de cem mil homens, imposto por Versalhes, que a Alemanha se viu obrigada a formar
com os excedentes, mesmo contrariando o Tratado.
Himmler havia integrado os Freikorps logo que deu baixa no exército regular após a guerra. Devido
ao seu estado físico que impedia de estar entre os demais integrantes, continuou fazendo o que sabia e que
gostava de fazer, que era a formação de dossiês e o trabalho de arquivo, não participando das atividades
pesadas, que era a verdadeira função dos Freikorps.
Além dos ex-integrantes dos Freikorps, Rohm recrutava rapazes pelas academias, saunas e pelo
submundo de Munique. Eram ladrões, arrombadores de cofres, homens procurados pela policia que ao
ingressarem na SA ficavam livres da vida incerta que levavam, recebiam um salário, além do que
conseguiam extorquir dos comerciantes. Os chefes da corporação faziam vistas grossas temendo perde-
los, porque eram destemidos e valentões, acabando por garantir a segurança e a integridade física dos
lideres, principalmente Adolf Hitler.
Himmler foi informado sobre o tipo de homens que integravam a SA, e instruído a agir com cautela,
e que fizesse um dossiê completo sobre suas vidas pregressas para que no futuro pudesse usar contra eles,
caso tivesse que destituir alguém do cargo pelo motivo que fosse. Passou a trabalhar com afinco. O
trabalho o fazia sentir-se poderoso, porque tinha todas as informações sobre cada individuo, suas
fraquezas, seus problemas pessoais, suas implicações em casos sérios, as enrascadas nas quais haviam se
metido. Ele estudava minuciosamente cada caso e formava dossiês, como fazia na Intendência do Décimo
Primeiro Regimento de Infantaria Bávaro.
Seus pais estavam orgulhosos com seu trabalho, pois pensavam que Adolf Hitler tinha como
objetivo principal colocar o Príncipe Ruppercht no trono da Baviera, e Rohm, sabiamente usava desse
argumento para recrutar jovens ignorantes em assuntos políticos, como era o caso de Himmler que vivia
de fantasias baseadas em heróis lendários da Alemanha, associando-os a sociedade secreta que ele havia
criado, de nome Thule, que usava da prática de suposta magia Vrill,
Himmler ingressou no Partido Nazista sonhando em se tornar herói, achando que estava fazendo
parte da grandeza da herança nacionalista da Alemanha. Filho de Gebherd Himmler, um conceituado
professor na Universidade de Munique, que também podia considerar o protótipo do bom chefe de família
bávara. Católico fervoroso, criou seus cinco filhos dentro dos ditames da Madre Igreja, sempre os
alertando contra a presença nociva do judeu, que ele considerava os assassinos de Jesus Cristo, coisas que
Heinrich Himmler assimilou bem.
Nasceu no Estado da Baviera em 1900, as vésperas da virada do século, num clima de grande
expectativa, de esperanças renovadas, ao mesmo tempo de previsões catastróficas e de tudo aquilo que o
ser humano é capaz de inventar na virada do século. A indústria passava por uma fase de modernização
criando frentes de trabalho. Havia emprego e a Alemanha, como o resto do mundo, respirava a paz, o
povo só tinha como preocupação o progresso industrial e as boas safras nos férteis campos germânicos.
Cursou a escola básica com brilhantismo. Foi um aluno educado e cortês com as senhoras. Dedicado
a religiosidade, jamais deixou de ir às missas dominicais. Submisso a disciplina, gostava de viver sob
regras achando ser a única maneira de alcançar sucesso na vida. Amante da boa música, em vão se
entregou com afinco ao estudo de piano. Não possuía o menor talento para a música. Outro de seus
grandes sonhos era ingressar nas fileiras do exército regular, mesmo a despeito do excesso de exercícios
físicos a que teria que submeter-se. Ser soldado era o seu maior desejo, por isso odiava o seu físico
desavantajado, sua baixa estatura e sua miopia. Sua figura era quase uma caricatura, e ciente disso
projetava suas frustrações em seus heróis lendários como Siegfried e tantos outros que compunham a
história da Alemanha. Divagava em sonhos onde misturava com os heróis e juntos cometiam atos de
bravura e heroísmo. Quando despertava para a realidade caia em depressão, afetando seu estômago
causando-lhe constantes dores.
Tinha 14 anos de idade quando a guerra eclodiu na Europa. Era um adolescente, não tinha idade
para servir, mas consciente do quanto seus compatriotas padeciam nos campos de batalha, culpava os
russos pelos sofrimentos dos soldados alemães. Nutria um ódio ferrenho sobre eles. Também odiava os
bolcheviques que queriam implantar o comunismo pela Europa. Ainda adolescente participava de

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movimentos antissemita, simplesmente por odiar os judeus, sem qualquer sentimento patológico.
Considerava os judeus e os eslavos como sub-raças, incapazes ate mesmo de servirem como escravos.
Outro de seus adversários era a Maçonaria, que a imprensa antissemita chamava de A Infiltração
Insidiosa da Judiaria Mundial, que tem como objetivo apoderar-se do controle das finanças mundial, a fim
de empobrecer o mundo e tirar proveito da situação. Himmler acatava idéias alheias, desde que fossem
provenientes de alguém de peso e influente, que justificasse sua ideologia, mostrando um motivo que
visasse o bem da Alemanha, independentemente do caráter dessa ideologia.
O cargo de Chefe do Serviço Secreto da SA era o que de melhor podia ter acontecido em sua vida.
Vestia uma farda de soldado e estava entre as grandes cabeças do Partido, como Rudolf Hess, Dietrich
Eckar, Ernest Rohm, os irmãos Strasser e o próprio Adolf Hitler.

DOZE
Havia se passado cerca de seis meses, desde a sua chegada ao Castelo da Colina para se encontrar
com seu mestre. Senmuth tinha se ausentado e recomendou a ele que fizesse passeios pela região, que
observasse e estudasse as plantas, desde a mais bela, à erva daninha insignificante. Tinha se entregado
com afinco nos estudos ministrados pelo místico. Passava horas fazendo experimentos, meditando e
exercitando a sua mente, ou então enfiado nos livros sobre filosofia, misticismo, astronomia, nada de
assuntos corriqueiros, poesias ou romances. Tinha se desligado quase por completo do mundo exterior.
Nem se lembrava das festas, cantinas, bailes e tudo que o entretia em seu mundo. Não sabia e tampouco
importava quando seria a sua primeira prova. O que importava era estar em condições de fazer a iniciação
no momento certo e obter o desejado sucesso.
Na manha seguinte, após a partida do místico, decidiu sair para se distrair. Pediu ao criado que
preparasse um cavalo porque estava disposto a dar uma volta pela região, pelas belíssimas praias, o
povoado que não conhecia. Quando esteve em Nápoles, na ocasião em que conheceu Zaram, esteve onde
os turistas ficavam, com bons restaurantes, bares, os luxuosos hotéis. Agora se encontrava em meio a
povoados habitado por gente simples, os verdadeiros filhos da terra. Um passeio em meio a essa gente
faria bem.
O dia amanheceu belo e convidativo para um passeio. Montou no cavalo e saiu. Cavalgava num
trote lento como quem não pretende chegar a lugar algum, refletindo e meditando sobre o que aprendera
nesses seis meses. Seis meses enfiado em estudos, leituras sobre filosofia, as plantas, as ervas, se
concentrar em tudo que fazia, sentir cada coisa que era feita, que a seu ver não estavam levando a nada.
Longe do mundo, longe da vida, dos prazeres e das mulheres, o carinho, o afeto. Um pensamento que
assolou a sua mente, mas logo desviou esses pensamentos porque era o lado negativo que tentava anuviar
suas ideias e princípios recém-adquiridos.
Seguiu seu caminho, um caminho solitário entre aquela vegetação que pouco tinha percebido a
presença de um ser humano. Não podia conceber um caminho mais solitário do que aquele, onde as patas
do seu cavalo, ora pisando os fragmentos de rocha, ora pisando naquelas ervas, que ainda há poucos meses
atrás as ignorava achando-as insignificantes. O eco dos cascos do cavalo sobre aquele solo, ora rochoso e
também de terra misturada com vegetação rasteira, evocavam um triste e melancólico eco. Aquele lugar
desolado, onde, às vezes uma cabra silvestre berrava, talvez, chamando por uma cria desgarrada perdida
entre aquelas escarpadas rochas ou naquela vegetação, ou o grito de uma ave da rapina saindo assustada
de seu esconderijo buscando ganhar os céus onde se sentia devidamente protegida de qualquer agressor.
Eram os únicos sinais de vida que se percebia naquele caminho que levava, sabe Deus aonde. Diferente
das praias que há alguns anos passados conhecera, quando ainda era um jovem sonhador.
Imerso em seus pensamentos ardentes e profundos, ele prosseguiu em seu passeio ate que o calor
abrasador do sol do meio dia despertou em si o desejo de se refrescar com uma boa bebida, além de saciar
a fome que começava a despertar o desejo de comer alguma coisa. Uma brisa fresca vindo do mar não
muito distante, deu-lhe uma sensação de prazer, o fez sentir que ainda vivia. Foi então que avistou não
muito distante, num desses desolados e pacato vilarejo quase a beira da praia, o lugar ideal para descansar
e comer alguma coisa e beber um bom tinto.

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Ele desceu por um caminho estreito ladeado por uma vegetação quase rasteira. Ainda antes de
alcançar o povoado se deparou com uma capela aberta sobre cujo altar tinha uma imagem da Virgem com
cerca de quarenta centímetros, rodeada por flores ainda frescas, em sinal de que não fazia muito tempo
que algum devoto estivera ali. Ilya Abraãomovitch, não obstante tivera uma educação judaica que em sua
doutrina não acreditava em imagem, muito menos na Virgem Maria, olhou aquilo com certo respeito
porque entendia o povo que, por indução, superstição, falta de um esclarecimento melhor sobre doutrina
religiosa, ou fosse lá por qual motivo, a veneração por uma imagem confortava suas vidas, tendo a
imagem da Virgem como refúgio nas horas em que sentissem necessidade de algo onde se amparar.
Quando se encontrava próximo do povoado se deparou com um homem de meia idade, exibindo
vigor. Era notório que se tratava de um nativo, um tipo diferente com os que ele estava habituado, cabelos
negros, um vasto bigode, camisa branca de mangas compridas, calças folgadas e um par de botas, apesar
de o tempo ainda estar quente, e um boné acinzentado na cabeça. Deteve seu cavalo e fixou seu olhar
naquele homem que demonstrava ser de boa amizade. Ilya Abraãomovitch não falava tampouco
compreendia o idioma italiano, que o fez pensar que ia perder uma boa oportunidade de um bate papo,
saber sobre a vida daquela gente, relaxar a sua mente, ate então, ocupada com tudo o que o mestre
Senmuth falava. Também estava meio perdido, não conhecia a região e, desde que chegara era a primeira
vez que saia do castelo. Antes que dissesse qualquer coisa o homem lhe dirigiu a palavra falando em
inglês, um idioma que ele conhecia muito bem.
– Bom dia, cavalheiro – falou num arrastado sotaque, mas de modo que Ilya Abraãomovitch
pudesse compreender. – Perdido por essas bandas?
– Bom dia, senhor. – respondeu – Estou sim meio perdido, pois é a primeira vez que ando por aqui.
Pode me orientar para chegar até o Castelo da Colina?
O homem, antes de responder a pergunta formulada por Ilya, tirou o boné da cabeça numa atitude
respeitosa, aproximou-se e se deteve diante do animal passando a mão no pescoço do cavalo acariciando-
o, respondendo em seguida a pergunta do rapaz, falando em voz baixa como que não quisesse que alguém
mais ouvisse a conversa entre eles.
– Meu nome é Mário. Você é hóspede do nosso benfeitor, pois se é, seja bem vindo entre nossa
gente. Somos simples, mas recebemos bem qualquer forasteiro, e se for amigo do nosso benfeitor é ainda
mais benquisto entre nós.
- Estou perdido e tenho sede, meu bom homem. – disse o rapaz. – Há aqui no povoado um lugar
onde eu possa matar a sede com um bom tinto?
– Claro, meu rapaz. – retrucou o homem com um amável sorriso sob seu farto bigode. – O patrão
nos avisou que poderia vir por essas bandas, e que deveríamos servi-lo de tudo que necessitasse.
Ilya desmontou e seguiu caminhando ao lado do homem numa conversa informal. Sentiu uma
espécie de liberdade, como alguém que estivera aprisionado. Estava ali caminhando ao lado do simpático
aldeão, distante daquilo que ele vinha fazendo naquele castelo. Caminharam não mais de um quilômetro
até o vilarejo, que apesar de não ter uma população de mais de quinhentas pessoas, havia ali uma cantina,
a única do lugar, que era de propriedade do homem que o havia recepcionado. Ilya Abraãomovitch
resolveu fazer ali a sua refeição regada de um tinto caseiro feito pelo próprio signore Mario. O homem
sentou junto com o rapaz e agarrou numa conversa:
– Aqui temos o melhor vinho da região, como temos a melhor comida, melhor do que as servidas
nos restaurantes da cidade. Mas o patrão, pobre homem, não aprecia o que temos de melhor. Aliás, que
criatura mais enigmática, pouco fala, vive enclausurado naquele lugar onde se falam tantas coisas...
– Isso não me interessa – interveio o rapaz numa tentativa de calar o homem que começava a
aborrecê-lo com sua conversa. Ansiava por uma boa conversa, mas não demorou a perceber que com
aquele sujeito não ia conseguir uma conversa agradável. Tanto tempo naquele castelo tendo apenas
Senmuth como companheiro, Senmuth em seu jeito estranho, insensível, um mestre que tinha o discípulo
como se o mesmo fosse um simples objeto a quem ele tinha a incumbência de passar ensinamentos, pouco
interessado no sucesso do seu discípulo, dando a impressão que não tinha o menor interesse em fazer dele
um amigo, alguém com quem pudesse compartilhar as suas experiências nesses séculos de vida. O oposto

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de Zaram, a boa companhia, suas histórias, suas piadas. Melhor era ficar só, continuar em seus
pensamentos reflexivos, pois sua mente fervilhava com lembranças de tudo aquilo que tinha aprendido, e a
conversa daquele aldeão o aborrecia.
Sua mente, até então introspectiva, repentinamente despertou para o mundo real, quando uma bela
morena surgiu com uma bandeja trazendo uma garrafa de vinho e dois copos. Tanto tempo que não via
uma mulher, ainda mais tamanha beleza como aquela que se prostrava a sua frente com um sorriso que
exibia dentes alvos, lábios rosados e aqueles fartos e negros cabelos que exalavam o perfume da limpeza,
em vez do perfume químico feito em laboratórios, usado pelas damas da sociedade peterburguense. Sentiu
uma fisgada no coração ao olhar diretamente para aqueles olhos negros que penetraram nos seus.
Em princípio, deixou de lado tudo o que havia aprendido e os conselhos de seu mestre para que se
vigiasse e não cedesse as tentações mundanas para que não desviasse a sua mente de tudo que havia
aprendido. Mas foi invadido por um turbilhão de questões sobre o que estava ocorrendo em sua vida,
desde os infortúnios em seu país natal, a sua clausura naquele castelo para se entregar ao desconhecido do
qual ele não tinha garantia alguma de que tudo aquilo resultaria em alguma coisa que lhe trouxesse
beneficio. Ficou horas e mais horas, dias e mais dias num exercício de concentração para que pudesse dar
o passo seguinte, e até aquele momento nada havia acontecido. Era ainda relativamente jovem, estava
perdendo a melhor fase de sua vida, tudo por um sonho. O que o tinha levado a querer aquilo em sua vida?
Aquele Zaram com suas ideias, seus truques que o impressionavam, sua conversa sedutora que acabou por
interferir em sua vida, aquela história de seu bisavô.
Desperdício de vida. Como pôde viver adormecido achando que ia se tornar um sábio? E aquela
jovem encantadora que lhe podia proporcionar momentos inesquecíveis? E para deixá-lo ainda mais
confuso sobre a que lado se decidir, o homem sugeriu a ele para que não retornasse ao castelo porque a
noite haveria uma festa em homenagem a Virgem, a santa padroeira do lugar, com muita comida, vinho e
boa música, além de moças bonitas, alegres que pudessem adocicar a sua vida, depois de tanto tempo
recluso naquele castelo. E para tentá-lo ainda mais, a bela jovem se encontrava a sua frente exibindo seus
seios fartos cobertos por uma blusa colorida, seus ombros morenos, o frescor de seus lábios vermelhos,
dentição limpa e aqueles olhos pretos e tentadores. Quanto tempo que não sentia o prazer que uma bela
mulher podia proporcionar. Havia passado por momentos ruins, a morte dos pais, as suas fábricas tomadas
por aquele governo soviético. Mas outro pensamento tomava a sua mente, sobre o desejo de alcançar a
sabedoria permitida a poucos, um desejo que há muito almejava. Seu mestre, aquele homem enigmático se
encontrava ausente, de nada saberia sobre sua escapada para ficar e se divertir junto daquela gente alegre e
festiva. Seis meses haviam se passado, seis meses enfiado em estudos disso e daquilo, e ate aquele
momento não percebeu nada que pudesse classificar como evolução nos estudos. Jogar tudo para o alto e
recomeçar a sua vida, fosse na Itália ou mesmo na Alemanha, onde tem Zaram que, certamente o ajudaria.
É formado em engenharia, não lhe faltaria emprego.
– Então, meu jovem, – foi interrompido em seus pensamentos pelo homem da cantina – Fica aqui
conosco, minha filha fará companhia a você para que não se sinta só. Poderão se banhar no mar nessas
belíssimas praias da região. Vamos lá, meu jovem, viva a sua juventude, a melhor época de nossas vidas.
Mas, como que despertando de um pesadelo, ele se levantou e pediu ao homem para que lhe
trouxesse o seu cavalo, pois estava disposto a ir embora.
– Mas, meu jovem, fica aqui...
– Basta. – ordenou ao homem – Traga imediatamente o meu cavalo, pois preciso partir.
– Um copo de vinho, ao menos experimente o vinho da casa e almoce, temos pratos ...
– Meu cavalo – ele insistiu, e foi obedecido.

De volta ao castelo ele passou a tarde em meditação, releu alguma coisa que lhe fora recomendada.
Ao cair da noite foi servido seu jantar, e depois se recolheu em seus aposentos. Permaneceu sentado na
varanda, pois a noite estava fresca e aquele lugar era, deveras, agradável, o céu estava estrelado, uma lua
cheia brilhava em todo o seu esplendor. De repente sentiu como se todo o seu corpo formigasse, uma
sensação muito agradável a qual ele não tinha domínio e, na verdade nem queria ter, pois nunca em sua

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vida tivera sensação semelhante. Sentiu que sua alma estava deixando o seu corpo. Alma ou sua mente
que vagava, isso não tinha a menor importância, até mesmo se era a morte que tinha chegado, pois nada se
comparava àquele gozo, aquela sensação.
De repente estava vendo o seu corpo ali sentado, aparentemente sem vida, enquanto sua mente
vagava. Ia deixando o castelo para trás e vagava sobre aquela colina verdejante e sob a lua e o céu
estrelado. Viu o branco das ondas do mar lambendo a areia da praia, e passou a voar por toda a região,
sobre o vilarejo, viu aquela gente se divertindo, ouviu a música, as gargalhadas daquela gente feliz. Aquilo
em nada o afetava, seu desejo era voar, voar pelos campos verdejantes, pelas matas da colina. Sua alma,
ou sua mente, estava livre. Nada se podia comparar. Quis retornar a seu corpo, e assim o fez. Percebeu que
tinha domínio sobre aquela situação inusitada. Então se deu conta de que estava evoluindo, e que aquela
visita ao povoado tinha sido um teste.
Naquela noite dormiu como nunca fizera em toda a sua vida.
Na manha seguinte Senmuth havia retornado, não sabia se durante a madrugada, se pela manha ou
mesmo se realmente ele havia se ausentado. Mas isso não tinha a menor importância. Ele era outro
homem, não havia dúvida alguma sobre o que pretendia. O criado foi até seus aposentos, talvez para
acordá-lo, mas não foi preciso. Ele estava descasado, disposto e feliz como nunca em sua vida estivera.
Foi estar com Senmuth, que o aguardava na mesa do desjejum.
– No exterior tudo está preparado, - disse Senmuth - porém, no interior é necessário que a sua alma
se acostume ao lugar e que se empregue ao aspecto da natureza que a rodeia, pois a natureza é a fonte de
toda inspiração. Coma e depois vamos caminhar, sentir o efeito da natureza em nosso corpo.
E assim aconteceu.
Depois Senmuth passou a falar sobre assuntos mais fáceis de compreender e assimilar. Fazia com
que o discípulo o acompanhasse em longas excursões pelos arredores, e deixava a expressão de aprovação
e satisfação quando o discípulo dava passagem livre ao entusiasmo que a sombria beleza dos sítios teria
feito palpitar um coração menos impressionável do que o seu, e o mestre dava a seu discípulo lições de
uma ciência que parecia inexaurível e limitada.
É verdade que as suas descrições não encontravam nos livros. O mestre possuía o verdadeiro
encanto do narrador. E falava de todas as coisas com a animada confiança de uma testemunha pessoal.
Falava dos mais duráveis e elevados mistérios da natureza com uma eloquência e a pureza de linguagem,
que dominavam a sua conversação mais com as cores da poesia do que a da ciência.
O jovem discípulo se sentia lisonjeado pelas lições. Pouco a pouco foi se acalmando a febre dos
seus desejos. A sua mente foi se acostumando a divina tranquilidade da contemplação. E no silêncio de
seus sentidos parecia ouvir a voz de sua alma. A conversa de Zaram diferia muito a do seu mestre. Ainda
que Zaram o fascinasse menos do que seu mestre, que o impressionasse muito mais, Zaram manifestava
um profundo e geral interesse pela humanidade, e um sentimento que quase se confundia com entusiasmo
pelas artes e pela beleza.
– A minha é a vida que contempla, – interveio o mestre como se estivesse lendo tudo o que o
discípulo pensava – a de Zaram é a que goza. Quando colho uma flor penso em seu uso. Zaram se detém
para apreciar a sua beleza.
– Acha que a sua existência é melhor e mais elevada do que a dele?
– Não. – respondeu o sábio – A existência de Zaram é a juventude, e a minha é a idade madura.
Cultivamos faculdades diferentes. Cada um de nós possui poderes a que o outro não pode aspirar. Os dele
se associam a idéia de viver melhor, e o meu a idéia de saber mais.
– Suponho que o senhor e Zaram pertençam a essa antiga Ordem dos Rosacruzes? – perguntou ao
mestre.
– Pensa – respondeu o místico – que não existem outras uniões místicas e solenes de homens que
buscam os mesmos fins pelos mesmos meios, antes dos árabes de Damasco terem ensinado em 1378, a um
viajante alemão os segredos que fundaram a instituição dos rosacruzes? Há também outra fraternidade
Rosacruz que remonta de tempos muito mais antigo. Esses são ainda mais sábios do que os alquimistas.
– E onde estão esses membros e quantos ainda existem?

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– Um está diante de ti, o outro é Zaram.
– Somente vocês dois? – exclamou perplexo – E nega toda essa sabedoria milenar a humanidade?
– Você está aqui. Assim como você houve muitos outros. O seu bisavô alcançou esses segredos,
dentre eles o poder de escapar da morte. Ele deixou-se falecer porque preferiu morrer a sobreviver ao
único ser que amava. Na nossa Ordem não temos poder para afastar de nós a morte se ela for enviada pela
vontade do céu. Esses muros podem esmagar-me se caírem sobre mim. E ciente desse perigo mantenho-
me a uma distância prudente, compreende? Tudo o que declaramos que nos é possível fazer é o seguinte:
descobrir os segredos que se referem ao corpo humano, saber porque as células envelhecem e morrem,
porque algumas partes se ossificam, porque a circulação do sangue se paralisa, o porque das enfermidades
e como combatê-las, e saber aplicar contínuos preventivos aos efeitos do tempo. Essa é a magia, a arte da
medicina bem compreendida. Na nossa ordem consideramos como as mais nobres das ciências. A
primeira a que eleva o intelecto, a segunda a que conserva a saúde e a vida no corpo. Porém, a mesma arte
pela qual se fazem extratos dos sumos e das drogas que curam e restabelece a força animal e detém os
processos da restauração, ou esse segredo mais nobre, e que me limitarei a aludir somente pelo qual o
calor ou o calafrio, como chamam, sendo como Heráclito ensinou o principio primordial da vida, pode
erradicar-se como um perpétuo renovador, está também a faculdade de desarmar e iludir a ira dos homens,
desviar as espadas de nossos inimigos e dirigi-las umas contra as outras, e fazer-nos invisíveis aos alvos
dos demais, cobrindo-nos de névoas ou de escuridão.
– Se possui esses segredos, por que se mostra tão avarento, que não trata de difundi-lo? – perguntou
o discípulo – Pois não é verdade que o charlatanismo, ou a falsa ciência, difere da ciência verdadeira e que
esta comunica ao mundo os processos pelos quais obtém as suas descobertas, ao passo que aquela, a falsa,
se gaba de seus maravilhosos resultados, negando-se a explicar as causas?
– Disse bem, meu discípulo. – interveio o mestre com certa satisfação – Mas reflita um pouco,
suponha que generalizássemos indiscretamente os nossos conhecimentos entre os homens, não somente
aos viciosos como entre os virtuosos, seriamos os benfeitores da humanidade, ou seriamos o seu mais
terrível flagelo? Imagine o tirano, o sensualista, o homem mau e o corrompido, possuindo grandes
poderes? Seria como soltar o demônio sobre a terra. Admitamos que o mesmo privilégio fosse concedido
também aos bons, e em que estado iria parar a sociedade? Ia resultar numa luta titânica com os bons
sempre em defensiva contra os ataques dos maus. Na atual condição do mundo o mal é o principio mais
ativo do que o bem, e o mal prevaleceria. É por esta razão que estamos solenemente comprometidos a não
participar a nossa ciência senão aos que são incapazes de fazer dela mau uso e perverte-la, como também
baseamos as nossas provas iniciáticas em experiências que purificam as paixões e elevam os desejos. E
nisso a mesma natureza nos guia e ajuda, pois ela estabelece terríveis guardiões e insuperáveis barreiras
entre a ambição e o vício, e o céu da ciência superior, que somente um coração puro consegue transpassar.
A propósito, quero advertir que, quando chegar seu dia de fazer a grande prova, seu sucesso depende de
seu coração puro, incorruptível e coragem, porque vai se deparar pela senda com o inimigo do homem que
tentará apavorá-lo para impedir que prossiga em busca da luz. Por isso, caro discípulo, continue
meditando, se concentrando e dominando os seus sentidos, pois só assim conseguira transpassar o umbral
vigiado pelo terrível espectro que lá habita.
E se passaram dias, semanas e meses, e a mente de Ilya Abraãomovitch foi se acostumando a vida
de isolamento e meditação. Esqueceu, por fim, as aventuras, as vaidades e as quimeras do mundo exterior.

Uma noite Ilya Abraãomovitch havia feito um solitário e prolongado passeio pelas cercanias do
castelo contemplando as estrelas no firmamento, refletindo sobre o aprendizado e meditando. Nunca antes
havia sentido tão claramente o grande poder que o céu e a terra exercem sobre o ser humano, com que
solene influência a natureza desperta e agita os germes da existência intelectual do homem.
Como um paciente sobre o qual se há de fazer agir devagar e gradualmente, assim ele sentiu em seu
coração a força crescente desse vasto magnetismo universal, que é a vida da criação, e que liga o átomo ao
todo. Uma estranha e inefável consciência do poder de alguma coisa grande dentro de seu corpo de pó
terrestre despertava nele sentimentos obscuros e ao mesmo tempo grandiosos. Nesse instante sentiu que

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uma força irresistível o impelia a procurar o mestre e pedir a sua iniciação nos mundos em que entendem
além do nosso mundo. Sentia-se apto para respirar a atmosfera Divina. Entrou no castelo e atravessou a
galeria iluminada pela luz das estrelas, e dirigiu-se ao aposento do mestre.
– Existe uma força estática e arrebatadora, a qual uma vez instigada por um ardente desejo e por
fortíssima imaginação, é capaz de conduzir o espírito de um objeto mais externo até a um objeto ausente e
muito distante. – disse-lhe o mestre que já o aguardava.
– Sente-se suficiente maduro para dar tão importante passo? – prosseguiu o místico – Sabe do
quanto é perigoso buscar o saber antes de estar preparado para recebê-lo?
– Eu me sinto preparado para os primeiros passos – disse o neófito com seu indômito desejo
aguçado pelo ânimo e vigor – Venho diante de ti como na antiguidade o discípulo ao Hierofante, e peço-
lhe a iniciação.
O mestre pôs a mão sobre o peito do neófito e sentiu o seu coração batendo com força e ousadia.
Depois olhou profundamente nos olhos do discípulo e viu coragem, sinceridade e intrepidez.
– Finalmente encontrei o verdadeiro discípulo – murmurou baixinho quase que a si mesmo. Depois
falou ao neófito:
– A primeira iniciação é feita em estado de transe. É por meio de sonho que começa todo saber
humano. Em sonho sobe ao imenso espaço, na ponte entre este mundo e o mundo etéreo. Agora, fixe seu
olhar naquela estrela, e de liberdade a sua mente.
Ilya Abraãomovitch obedeceu, continuou fixando a estrela, que gradativamente parecia que ela e
que fixava em seu olhar. Em seguida, sentiu apoderar-se do seu ser uma languidez, e quando essa
languidez o dominou inteiramente, a luz prateada da estrela se tornava ainda mais reluzente, cuja luminosa
circunferência parecia dilatar-se. Naquela brilhante atmosfera prateada, sentiu que alguma coisa era
arrebatada de seu cérebro como se rompesse uma forte cadeia. Sentiu-se voando pelo espaço, não como
aquela vez em que sua mente se desprendeu do seu corpo. Era muito diferente, ele voava, estava livre de
seu corpo num movimento celestial de liberdade, a ponto de desejar viver daquela maneira para sempre,
como se nada mais o prendesse a terra, como se a alma tivesse abandonado a sua corpórea prisão. Depois
de um tempo que ele próprio não conseguia precisar, sua alma retornou a sua prisão. Por um momento ele
ficou paralisado como que em transe, e aos poucos voltou a realidade. Senmuth estava à sua frente
olhando fixamente no fundo de seus olhos.
– Houve pretendentes à solene ciência que lhe haviam mostrado aos ausentes e lhe falariam na sua
linguagem de energia elétrica e de fluído magnético, de cujas verdadeiras propriedades eles conheciam
apenas os germes e os elementos. – disse em sua voz branda de mestre – Conheci muitos dos que apenas
esbarraram na nobre ciência, que por haverem tropeçado no umbral da poderosa ciência, imaginaram ter
penetrado no interior do templo, mas o destino os condenou, porque não havia em suas almas a suficiente
fé, nem a audácia que se necessita para alcançar os altos destinos a que aspiravam. Conheci Hermes,
Alberto e Paracelso. Esse último era dotado de uma arrogância que voava mais alto do que toda a nossa
ciência. Ele pensou que podia formar uma raça de homens através da química, ele se arrogou o dom
divino da criação, o sopro da vida. Foi perseguido e difamado pela inquisição, muito atuante e poderosa
no século XV. Não posso negar alguns de seus feitos que muito contribuíram para a medicina e farmácia.
Naquela época a farmácia não era reconhecida na Europa, indiferente ao que acontecia na China, na
Grécia e no Egito. Seu pai foi seu primeiro mestre em medicina, latim, botânica, cirurgías e teosofia. Tudo
estava acontecendo naquela época, a nova era que estava sendo preparada. Era a Renascença em seu
esplendor. Vale lembrar que nesse período da Renascença nasceu Martinho Lutero que criou a nova
concepção religiosa, Nicolau Copérnico, o astrônomo que revolucionou a astronomia, as grandes
navegações, novas filosofias, novas ciências, uma revolução no mundo das artes, tudo acontecendo ao
mesmo tempo. Embriagado por todos esses acontecimentos, ele se achou acima dos demais homens. Ele
quis criar uma raça, e depois de tudo, confessou que não seriam mais do que pigmeus.
– A minha arte é fazer homens superiores à humanidade atual para servirem a humanidade, mas,
contudo, sem infringir a lei da criação, tudo dentro dos princípios naturais. Todos esses homens, que eram
grandes visionários como você deseja ser, foram meus amigos. Agora estão mortos. Eles falavam em

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espírito, mas temiam estar em outra companhia que não a dos homens. Contudo, com suas ciências
cumpriram bem seus papeis que era trazer luz a humanidade.
– Assim, meu caro neófito, seu desejo será satisfeito. Mas é necessário que antes de tudo seja
preparado e exercitada a sua mente para poder enfrentar e superar os obstáculos que aguardam no umbral
que divide o mundo material do mundo espiritual entre os seres etéreos. Vá a seu quarto e dorme, impõe-
se a austero jejum, não leia, mas medite, imagine e sonhe. Esqueça-se de si mesmo. Antes da meia noite
de amanha me procure.
Na noite seguinte, dentro do horário proposto pelo místico, Ilya Abraãomovitch Riabushinsk se
apresentou diante daquele que o conduziria a senda do saber.
– Quando iniciar a sua jornada não deve recuar, porque recuar será trazer para diante de si o mal que
habita no umbral da senda. Ele o perseguirá e fará de sua vida um tormento dirigindo para tudo aquilo que
é abominável pelo ser humano. Deve seguir em frente até se deparar com a luz, habitada por seres etéreos,
seres iluminados que te conduzirão aos Registros Acásicos, a fonte do saber. Deve concentrar-se na
estrela, libertar a sua alma desse invólucro grosseiro e deverá guiá-la pela senda do saber e da luz, e não
retroceda diante do mal. Siga adiante, meu neófito e encontrará a luz.

TREZE
TREZE ANOS DEPOIS
Na Alemanha, o Partido Nazista vinha tomando volume, com adesões em toda parte do país. Não se
restringia mais ao Estado da Baviera que se podia considerar o berço do nazismo, graças ao chefe da
propaganda Joseph Goebbels. Hitler já pensava em transferir-se para Berlim e ali concentrar todo
programa de incutir na cabeça do povo germânico as idéias nazistas. Nuremberg era outro ponto onde
tinha olhos voltados para fazer a sede nacional do partido. Berlim era mais conveniente devido a sua
posição geográfica. Berlim estava a caminho de se tornar o grande colégio eleitoral do Partido Nazista.
Escolheu Berlim para sediar um encontro entre delegados do partido de toda parte da Alemanha,
onde seriam discutidas as prioridades e as metas a serem seguidas para que o Partido Nazista se
transformasse num partido de âmbito nacional e único, mesmo que fosse preciso fazer uso de métodos
nada convencionais contra seus rivais.
Desde que havia deixado a prisão, devido a invasão ao Reichstag na tentativa de um golpe para
tomar o poder a força, Adolf Hitler vinha atacando com veemência a República de Weimar, culpando seus
responsáveis pela situação em que passava o país. Seguindo as instruções de Goebbels, passou a alertar a
população sobre o risco de uma catástrofe financeira causada pela ganância dos financistas judeus, não
somente na Alemanha como em todo mundo capitalista. E que isso fatalmente levaria a Alemanha à
bancarrota, beneficiando uma minoria e fortalecendo os comunistas que, certamente, se aproveitariam da
situação para angariar mais votos e consequentemente um maior número de cadeiras no Reichstag para
terem o domínio total e o controle sobre a política do país, entregando a nação em mãos dos bolcheviques
soviéticos.
O fechamento das fábricas era inevitável, principalmente àquelas que ingenuamente contraíram
empréstimos, hipotecaram suas propriedades achando que poderiam ampliar suas produções. Alertava a
população sobre aqueles que adquiriram títulos e ações para lucrar facilmente no mercado de capitais e
fazer fortuna da noite para o dia, o que contribuía para o crescente desemprego no país. Culpava os judeus
do mundo inteiro pela propagação da grande vantagem que era a compra de títulos, bônus e ações, que só
serviam para engordar seus cofres e enriquecer ainda mais suas empresas sem precisar produzir. Alertava
sobre o perigo que a Alemanha corria de ficar nas mãos de financistas estrangeiros judeus ao contrair
empréstimos para serem aplicados nas indústrias a juros altos, achando que dessa forma poderia recuperar
a economia do país.
Mas para a sorte dos nazistas a Bolsa de Valores de Nova Yorque sofreu uma espetacular quebra,
levando o mundo ao caos, como cumprimento de tudo aquilo que havia sido profetizado por aquele líder
que visava o beneficio do povo alemão, a salvação de toda a nação germânica e a restauração do Terceiro
Reich. A maioria das grandes empresas se viram à bancarrota porque tinham investido em ações e títulos

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bancários. Seus diretores e presidentes, não vendo solução imediata para os problemas decorrentes da
quebra da bolsa, encontravam no suicídio a solução. O marco desvalorizou de tal forma que para adquirir
qualquer produto básico era necessário carregar grandes quantidades de cédulas. A inflação disparou
assustadoramente levando o povo ao desespero. Para o Partido Nazista a catástrofe era providencial
porque estava sacramentando tudo aquilo previsto e proferido nos discursos preparados por Goebbels. Era
o momento adequado para impor uma política socialista que visasse a melhora do padrão de vida do povo,
a distribuição da terra entre camponeses e principalmente a exclusão dos exploradores judeus, os culpados
por toda catástrofe financeira mundial.
Algumas semanas antes da catástrofe financeira, Zaram havia vendido toadas as ações que possuía.

Henrich Himmler estava impressionado com as teorias de Darre e Rosenberg, que formavam a base
filosófica para transformar a SS na Herrvolk*(*Povo de Senhores). Também havia associado às ideias de
Darre a seita Thule, que usava da pratica de suposta magia Vrill, que segundo a lenda, remontava dos
astros celestes que serviam de moradias aos deuses nórdicos, e esses deuses criaram os arianos, que em
sua insanidade Himmler os considerava semideuses. Mas, segundo alguns historiadores tudo começou
com Edward B. Lyton, escritor inglês da era vitoriana no final do século dezenove, quando escreveu um
livro de ficção intitulado O Poder da Raça do Futuro. O livro descrevia o centro da terra habitada por
alienígenas que iriam se livrar da raça humana. E os nazistas adaptaram essa história a seus propósitos da
purificar a raça ariana.
Essas ideias foram cultivadas por Himmler, que se dizia membro fiel dessa seita e a essa doutrina
que, segundo ele, pregava sacrifícios de animais e de seres humanos.
Tudo tinha que ser rigorosamente obedecido, e, para tanto, leis tinham que serem criadas e postas
em prática, já que o Partido Nazista era a maioria no Reichstag. A começar pela lei que havia sido criada
em janeiro de 1931 e ainda não posta em prática por não ter sido aprovada, devido o Partido Nazista ainda
não ser a maioria na Câmara.
Todo integrante da SS que desejasse contrair matrimônio deveria obter o certificado de casamento
do Reschsfuher SS Heinrich Himmler. O novo decreto obrigava os membros da SS a obterem o livro do
C.L.A. e tirar um certificado de aprovação para qualquer moça que escolhessem para casar. Dessa forma
era possível manter o registro de reprodução para todo homem da SS, que tinha que provar que seu sangue
ariano não estava contaminado desde 1750 por algum possível parente judeu. Em janeiro de 1932 foi
criada: a Lei Matrimonial do Reschsfuher SS que rezava o seguinte:
A noiva, os pais dela e seus antepassados até 1750 estarão sujeitos às investigações do Escritório da
Raça e Colonização, e no caso de evidência de sangue eslavo ou judeu o ônus da prova em contrário
caberá ao acusado;
Apresentação obrigatória de comprovante de ausência de doença física ou mental e de capacidade
de ter filhos, e submeter-se a exames feitos por médicos credenciados pela SS;
O Escritório da Raça e Colonização manterá um livro do C.L.A. da SS em que serão feitos os
registros de todos os filhos do matrimônio;
As providências de encaminhamento e despacho das petições de casamento são tarefas do Escritório
da Raça e colonização;
Os membros da SS que, a despeito de não terem recebido o certificado de casamento, mesmo assim
se casarem será expulso da SS.
Dentre as novas leis e decretos, foi sancionada a Supressão dos Direitos Civis tirando todos os
direitos dos cidadãos e dando poder total a policia para prender sem qualquer justificativa quem ela
achasse que deveria ser preso. Depois Hermann Goring criou o Konzentrationslager*(*Campo de
concentração) destinado a presos políticos e a todos aqueles considerados inimigos do Reich. Para a
cerimônia de inauguração foram convidadas diversas autoridades, para que pudessem conhecer aquele
lugar que podia ser classificado como uma prisão-modelo. Aquele era um campo experimental onde os
sentenciados receberiam tratamento digno e se submeteriam ao trabalho de reeducação. No dia 22 de
março de 1933 o campo de Dachau foi inaugurado pelo próprio Reichsfüher SS Henrich Himmler.

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Para que pudesse encher o campo como desejava, era preciso que tivesse prisioneiros, algo difícil de
arranjar porque o povo, temeroso, procurava não dar motivo para ser preso. Mesmo os gatunos,
malandros, arrombadores de cofres e assaltantes decidiram dar uma pausa em suas atividades criminosas
porque sabiam o que os esperava, caso cometessem crimes. Mas não eram com gatunos, ladrões, vigaristas
e assassinos que Himmler pretendia encher o campo, mas com os inimigos do Reich, todo aquele que não
partilhava do nazismo, os comunistas, os social democratas, as Testemunhas de Jeová, os maçons, os
judeus, e todos que persistiam em não se sujeitar ao nazismo. E para agilizar as novas prisões Himmler
sancionou novas leis que pudessem ser aplicadas ao cidadão sem complicações, fáceis de serem
interpretadas, sem burocracia, parágrafos e incisos onde um hábil advogado conseguiria provar a
inocência do suspeito.
As prisões deveriam ser efetuadas baseadas no artigo primeiro do Decreto do Presidente do Reich,
que tornava legal a prisão do suspeito e poder mantê-lo sob a Custódia Protetora, no interesse da
segurança e da ordem pública. Lembrou os seus agentes da grande importância que era o uso da tortura
física e psicológica para que obtivesse bons resultados.
A grande caçada para encher o campo de Dachau teve início logo após sua inauguração. Reinhard
Heydrich, como assessor direto de Himmler, ficou encarregado de coordenar todo o processo para as
devidas prisões, o que ele passou a fazer com eficiência. Se entregava com afinco ao trabalho, chegando
ele próprio a efetuar a prisão dos suspeitos. Depois, para extravasar o ódio que carregava dentro de si,
torturava impiedosamente o suspeito de maneira horripilante, chegando a causar espanto em seus próprios
colegas que também faziam o uso da tortura para obterem confissões. Seu ódio e seus métodos cruéis
tornavam-se ainda maior quando interrogava pessoas judias. Ele descarregava todo ódio que sentia por ele
próprio trazer nas veias o sangue judeu. Em alguns casos ele torturava até a morte, e mesmo vendo o
corpo ensanguentado estendido no assoalho sujo, ainda o chutava sendo necessário que seus colegas
interferissem segurando-o pelos braços e o retirando do local.
Apesar de jamais participar de sessões de tortura por não conseguir presenciar o sofrimento
humano, Himmler gostava do desempenho e dos métodos do seu protegido, porque Heydrich, além de ter
o tipo físico que ele gostaria de ter, também fazia a parte suja do trabalho que ele não conseguia fazer.
Himmler, às vezes, tinha que pedir para que interrompessem a sessão de interrogatório, porque da sua sala
ele ouvia os gritos agonizantes do interrogado, e isso lhe causava grande mal-estar com fortes dores no
estomago e tonturas, levando-o quase a desmaiar.
A maldição dos grandes é ter que caminhar sobre cadáveres
O Partido Nazista vinha tomando volume com adesões por toda parte da Alemanha. Não se
restringia mais ao Estado da Baviera. O trabalho de Goebbels na região de Berlim, no Vale do Reno e na
Pomerânia acabou por arregimentar um grande número de adeptos. Hitler já pensava seriamente em se
transferir para Berlim e concentrar todo programa de incutir na cabeça do povo germânico as idéias
nazistas.
Escolheu Berlim para sediar um encontro entre delegados do partido de toda parte da Alemanha,
onde seriam discutidas as prioridades e as metas a serem seguidas para que o Partido Nazista se
transformasse num partido de âmbito nacional e único, mesmo que fosse preciso fazer uso de métodos
nada convencionais contra seus rivais. A propaganda era a base de tudo, e Joseph Goebbels, como Chefe
de Propaganda do Partido, era a figura mais importante naquele congresso
Além da colocação do rádio em todos os lares germânicos Goebbels também instituiu as audições
comunais de transmissões, que se tornou uma característica da vida na Alemanha. Muitas dessas audições
comunais eram feitas durante expediente de trabalho em todos os setores, o que interrompia o trabalho nas
fábricas, nos escritórios e no comércio. Goebbels dizia que o pronunciamento do Reich era mais
importante do que a produção, porque com a população consciente todos se empenhariam em suas tarefas,
compensando com isso as horas que permaneciam parados ouvindo o que o Füher tinha a dizer.
Nos restaurantes, nos cafés, nas cervejarias, todos tinham que possuir aparelho de rádio para essas
ocasiões públicas. Mas esses setores levavam certas vantagens porque muita gente preferia ouvir os
discursos sentados tomando cerveja e comendo salsichas, porque invariavelmente os pronunciamentos

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duravam de duas a três horas. E desse modo o Reich alcançava uma cobertura mais abrangente. Ninguém
escapava em ouvir os ditames do Partido Nazista porque os homens dessa rígida rede eram Guardiões
Radiofônicos do Partido Nazista, que tinham como dever vigiar o seu quarteirão, denunciar todo aquele
que deixasse de ouvir as transmissões ou que sintonizasse as transmissões do estrangeiro. As garantias
individuais consagradas pela constituição estavam suspensas por tempo indeterminado. Isso significava
que qualquer pessoa podia ser presa sem culpa formada e sem julgamento. Com isso os antissemitas se
sentiam mais à vontade para atacar deliberadamente os judeus e acusá-los por qualquer coisa que fosse.
No dia 5 de março foram realizadas eleições livres para o Reichstag, porém, o Partido Nazista não
conseguiu o número desejado de votos. Mas isso não constituía mais nenhum problema porque havia a Lei
da Autorização que dava plenos poderes a Adolf Hitler para governar por decreto de emergência.
O Estado de Polícia imperava por todos os estados da Alemanha. Todas as pessoas passaram a
serem consideradas suspeitas e tinham seus nomes registrados em dossiês, e dentre esses estava o nome de
Zaram, sua mulher e seus criados estrangeiros.
O cidadão germânico passou a conviver com o medo de ser acusado inocentemente por alguém com
quem um dia tivesse entrado em desacordo, uma discussão por motivo banal. O melhor a ser feito era
manter a boca fechada, evitar amigos, vizinhos e até mesmo parentes. Adular o novo regime era sensato.
Jamais reclamar da situação em que o país se encontrava e cumprir com os deveres de cidadão. Aos pais
cabia colocar os filhos para integrarem a Juventude Hitlerista, sempre tomando cuidado com o próprio
filho, porque este, doutrinado pela ideologia nazista que colocava o Estado em primeiro plano, não
hesitaria em denunciá-los para seus superiores. Ouvir no rádio o Serviço Nacional de Informação, não
falar com estrangeiros e desconfiar de estranhos, eram formas de se manter fora de complicações.
Se alguém conhecido fosse preso ou desaparecesse do convívio social, o melhor era ignorar que o
conhecera um dia e jamais fazer perguntas sobre ele. Ir aos comícios, aclamar Führer, tratar com grande
respeito os SS, suas esposas e seus filhos, assim como a todos os policiais, fosse civil ou militar. Maltratar
publicamente um judeu era sempre bem visto pelas autoridades. Isso significava estar em pleno acordo
com as medidas do Partido Nazista. Jamais e em hipótese alguma se relacionar com um judeu. Se no
passado teve amizade com pessoas de origem judaica, o melhor a ser feito era denunciá-lo por qualquer
motivo, mesmo o mais banal. Inventar uma mentira era a melhor coisa a ser feita porque as autoridades
jamais iriam perder tempo para verificar a veracidade da acusação. E assim fazendo ficava livre de ser
acusado de ter amigos judeus, além de estar contribuindo com a limpeza e a purificação na Alemanha.
Tudo deveria ser cuidadosamente observado porque a Alemanha vivia sob um Estado de Polícia.
No dia 15 de abril Goring transferiu a polícia política prussiana para a Prinz-Albrechtstrasse número
8 em Berlim. No mês seguinte a nova polícia política recebeu oficialmente o nome de
Geheimnestaatpolizei, abreviada por Gestapo, a polícia secreta do Estado.

QUATORZE
A casa em que Zaram residia era um verdadeiro palácio, digno de poucos privilegiados, num desses
lugares onde a natureza oferece vista magníficas e um clima agradável, tanto na estação quente do verão,
como no inverno com um frio não tão gelado e úmido como em São Peterburgo. Ali o ar circulava suave
exalando o cheiro das flores e das árvores que ornamentavam o lugar. Não podia haver em terras alemãs
um lugar mais agradável para fixar residência. As casas vizinhas obedeciam a uma discreta distância que
permitia certa privacidade. Para o misterioso saber de Zaram e para a inocência ignorância de Ludmila, o
bulício e a ostentação do mundo que se dizia civilizado não tinha nenhuma atração. Um céu amoroso e
uma terra amável são companheiros suficientes à sabedoria e a ignorância quando as duas se amam. Esses
privilégios ele tinha no lugar onde tinha propriedade, e que escolheu para morar.
Ainda que nada de particular oferecessem as visíveis ocupações de Zaram, que pudessem revelar
nele um praticante de ciências ocultas, os seus hábitos eram de um homem que meditava, rememorava e
refletia. Gostava de caminhar por longas horas pelas frescas manhas, ou a noite na claridade da lua, ou
andava ao acaso pelo mato olhando as plantas e ervas, que tocava com carinho, e sempre acabava

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colhendo flores e levando à sua mulher. Tudo isso era observado pela polícia nazista, mas nada levantava
suspeitas sobre ele, por tratar-se de um estrangeiro com título de conde.
Às vezes Ludmila acordava no meio da noite e ele não estava ao seu lado. Nessas ocasiões um
pressentimento ruim surgia em sua mente, e assustada, uma espécie de instinto ruim a advertia que ele não
estava ao seu lado, como se estar distante dele constituísse perigo. Já há algum tempo notava que ele
guardava certa reserva que concernia a seus hábitos secretos, e se, algumas vezes um mal pressagio, além
do terror que a assaltava, não se atrevia a perguntar-lhe o significado de semelhantes coisas, porque ele a
fazia feliz.
Faziam excursões pela região, e não raras vezes iam até Hamburgo quando o seu navio aportava
após viajar pelo mundo a negócios. Era mais fácil se deslocar de um lugar a outro na Alemanha do que em
São Peterburgo, porque a Alemanha era um país moderno com boas estradas de rodagem, trens modernos
e velozes. Tudo ficou mais fácil depois que ele adquiriu um automóvel Mercedes-Benz, que ele mesmo
dirigia, pois gostava de viajar pelas estradas da Alemanha.
Ludmila, na medida em que ia conhecendo seu esposo, sentia um fascínio que se aprofundava e que
havia sentido desde o primeiro dia que o vira. E o amor que ele lhe professava era tão tenro, tão vigilante,
e tinha aquele melhor e mais duradouro atributo que parecia antes ser grato pela felicidade de poder cuidar
dela. As maneiras habituais dele, homem singular, com todos com quem tinha que tratar, eram calmas,
polidas e quase apáticas. Nunca saia de seus lábios uma palavra colérica, como nunca brilhava a ira em
seus olhos.
Estavam sentados na enorme varanda com frente para a parte baixa, com uma visão privilegiada
daquela parte da cidade. Tomavam chá àquela hora da tarde com uma brisa fresca soprando, que só
tornava o momento ainda mais agradável. Os olhos dela se fixavam no dele, um olhar cheio de ternura, o
olhar da mulher apaixonada. Já estavam juntos há mais de dez anos, e se amavam como amavam desde os
primeiros dias que decidiram ficar juntos.
– Como é – dizia a mulher ao esposo – que você pode encontrar prazer em conversar com uma
mulher ignorante?
– Porque o coração nunca é ignorante, porque os mistérios dos sentimentos estão cheios de
maravilhas, tais quais os mistérios do intelecto. Se nem sempre pode compreender a linguagem dos meus
pensamentos, também, às vezes ouço doces enigmas na linguagem das suas emoções.
– Ah, não fale assim – retrucou com doçura, se levantando de sua cadeira enlaçando ternamente o
pescoço do marido e o beijando o na face. - Os enigmas não são mais do que a linguagem comum do
amor, e o amor os decifra. Nunca antes eu pude compreender como é forte e penetrante o laço que existe
entre a natureza e a alma humana.
– Minha doce mulher, nunca se canse de dizer que é feliz.
– Sim, sou feliz quando se sente feliz, mas há momentos em que te vejo meio triste e isso me
entristece.
– Isso acontece quando considero que a vida humana é tão curta e que, por fim, teremos que
separar-nos. Quando me lembro de que a lua continuará brilhando no céu, quando o rouxinol tiver deixado
de cantar debaixo de seu poético brilho prateado, às vezes me entristece. Dentro de alguns anos os seus
formosos olhos da cor do céu perderão os seus encantos, a sua beleza murchará, e esses lindos cabelos
dourados que agora acaricio com minhas mãos, perderão seu brilho e seu aspecto não será mais atraente.
– Como é cruel, meu amado – disse ela pateticamente – Acha que nunca verei em ti o passar dos
anos? Acaso, não envelheceremos ambos ao mesmo tempo? Os nossos olhos se acostumarão
insensivelmente a essa mudança de que o coração não participará.
– Ah, se assim fosse! – exclamou com certa tristeza – Não a excita a curiosidade de saber algo mais
a meu respeito?
– Não. – ela respondeu – Tudo o que desejo saber de um ser amado eu já sei; que ele me ama.
– Lembra que eu lhe disse certa vez que a minha vida diferente da vida dos demais homens? Não
gostaria de saber sobre isso e participar dessa vida?
– Já participo de sua vida, meu querido.

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– Porém, – insistiu ele – e se fosse possível conservarmos assim jovens e formosos para sempre?
– Seremos jovens e formosos quando deixarmos esse mundo.
– Não teme o futuro?
– Não penso nele. Ah, meu esposo, não brinque com as tolas credulidades de sua mulher que tanto o
ama. Quando eu tiver motivos para temer o futuro levantarei meus olhos ao céu e me lembrarei Daquele
que guia os nossos passos.
- Se eu lhe ensinasse a driblar a morte, se eu pudesse deter o curso do tempo em sua juventude? -
insistiu o místico.
Zaram percebeu que mediante a pergunta, os olhos dela revelavam medo e seu rosto cobria-se de
palidez.
- Não me fale sobre essas coisas, meu querido marido,
Depois ela levantou e se dirigiu a janela, ergueu os olhos para a abóboda celeste azulada naquela
tarde, como que buscando o Criador para agradecer por permitir que fosse tão feliz.
A conversa entre o casal foi interrompida por um criado que veio anunciar que tinha alguém, em
nome do partido Nazista, querendo falar com Zaram.
– Já esperava por essa visita indesejável, sabia que dia ou outro eles nos procurariam. – disse à
mulher. – Esses nazistas estão começando a pressionar. Nada de bom surgirá disso tudo, mas eu vou
atender.
Pediu ao criado para que os levasse a biblioteca, em seguida se dirigiu até lá. Ao entrar foi saudado
com a saudação nazista por cinco jovens truculentos numa postura arrogante.
– Pertencemos a S.A., ou Camisas Pardas, como somos conhecidos. – disse o líder daquele pequeno
grupo.
Não era necessário ser um especialista em avaliação do ser humano para concluir que aqueles
jovens não passavam de verdadeiros gigolôs subordinados a um chefe que os usava devido aos seus portes
físicos e por acatarem ordens sem questionar.
– Nós lutamos por uma Alemanha digna, pela recuperação de nosso status perante o mundo, a
recuperação da nossa moeda, nossos territórios tomados vergonhosamente por Versalhes, e a purificação
da nossa raça – disse o líder.
– Raça pura? O que é raça pura? Purificar raça? Do que está falando? – disse Zaram como que
jogando com eles para ver onde a conversa ia chegar. – Vá direto ao assunto, e diga o que querem de
mim?
– Sua contribuição para o Partido – disse o líder, um rapaz de estatura alta e com ar ameaçador.
– Desculpe-me, mas esse não é um problema que me toca, tampouco desejo me envolver em seus
propósitos, pelos quais não me simpatizo. Eu já pago meus tributos ao órgão competente.
– Herr Zaram, – insistiu o líder – sabemos tudo sobre o senhor, temos seu dossiê completo.
Sabemos que é um homem muito rico e...
– Nossa conversa está encerrada – interveio antes que o sujeito completasse o que tinha para dizer.
– Como se atreve a falar assim com um representante do Reich? – protestou o líder com ar
arrogante.
– Saiam espontaneamente, ou quer que chame meus criados para conduzi-los até a porta de saída?
Sem dizer uma só palavra os cinco rapazes deixaram a casa do místico como que empurrados por
uma força invisível.

“... Caro amigo a quem tive a honra de levar até o portal que da acesso a senda do saber, e entregar
ao Venerável e sábio Senmuth. Fico feliz em saber que triunfou diante do maligno espectro. Quando
decidimos por esse caminho, deixamos a nossa vida passada, nossos sonhos e aspirações mundanas,
vaidades, paixões e tudo que nos prende a humanidade e seus problemas, para que possamos alcançar a
verdadeira Ciência, que na verdade, é para servirmos a humanidade sem nos envolvermos. Não pense que
não me deparo no dia a dia com tudo o que vem acontecendo. Tenho Ludmila, a quem preciso
constantemente acalmar e dar segurança, porque disso tudo que acontece nesse país nada pode me afetar

58
como também a você, porque conhecemos segredos que pode nos livrar de qualquer mal ou ameaças que
partem do homem. Contudo, caro irmão, tenho que resolver coisas que não compete a minha ciência e
sabedoria, que é induzi-la a senda que leva ao saber. .. Por que não vem passar um tempo comigo. Anseio
por saber como foi sua entrada para esse nosso sagrado mundo, como também poder desabafar tudo aquilo
que me incomoda, pois, apesar de sermos diferentes do homem comum, ainda somos humanos e muita
coisa ainda me afeta, e tenho necessidade de conversar com meu semelhante. Minha casa está sendo
vigiada há algum tempo por eu não contribuir com esse Partido e seus propósitos criminosos, mas não
temo porque posso afastar cada um deles com um simples olhar, mas temo por ela a quem não posso
vigiar durante vinte e quatro horas por dia, e aqui o mal e o perigo estão a todo tempo espreitando o
incauto e inimigos desse regime imposto por homens maus que querem dominar o mundo. Mas,
felizmente posso garantir que seus reinados têm os dias contados, como também suas vidas. Mas até então
tenho que cuidar para que minha mulher não caia em mãos desses homens.
Venha, caro amigo e irmão. Venha apertar a minha mão, quero te abraçar e sentir que nesse mundo
não existe somente eu e Senmuth.”

Ilya Abraãomovitch desceu do trem na estação central de Berlim em meio a uma agitação, onde um
grupo uniformizado cantava canções com temas nazistas enquanto a outra parte da multidão vaiava
repudiando aqueles homens vestindo camisas pardas. Em principio não compreendeu o porquê daquilo
tudo, e seguiu em frente. Vinha de Milão, Itália, onde tinha permanecido por mais de três anos, fazendo
pesquisas, confinado num casarão situado longe de olhares curiosos.
Desde o seu confinamento no Castelo da Colina em Nápoles, vivendo e aprendendo com seu mestre
Senmuth, cortou relações com o mundo, ate que deixou o castelo indo a Milão. Ficou admirado com a
transformação do mundo nesse pouco mais de uma década. Um mundo modernizado, agitado, com as
pessoas correndo apressadamente como se tivessem que fazer o que quer que fosse, porque logo tudo
acabaria. Mas havia um fundo de verdade nisso tudo porque podia pressentir alguma coisa que estava
preste a acontecer.
Em Milão falavam desse novo líder alemão e o partido dos trabalhadores que ia mudar a situação da
Alemanha, e da perseguição aos judeus para que deixassem o país. Ele mesmo presenciou uma cena
desagradável ao passar pela imigração alemã. A sua frente, na fila que levava a cabine do oficial
alfandegário, um casal de judeus com seu filho pequeno foi barrado e ameaçado de ser espancado pelo
próprio oficial alfandegário. Instintivamente ele interferiu fazendo uso do que havia aprendido no Castelo
da Colina, um simples olhar em direção ao agressor. O oficial, repentinamente parou com os impropérios,
devolveu os documentos que havia retido e desejou boas vindas à família de judeus. Quando chegou a sua
vez o oficial mal olhou para os seus documentos onde constava como judeu e não cidadão russo, e ele
passou sem ser importunado.
Depois refletiu sobre o que acabara de fazer em favor àquela família, pois não estará presente na
próxima vez em que forem abordados por uma autoridade alemã. Sentia-se devidamente preparado para
conviver com essa realidade que assolava a Alemanha e que também ia se estendendo a outros países.
Contudo, olhava o mundo de maneira analítica, tentando compreender o que se passava nas cabeças
dos homens. Fugira de um país que havia implantado um novo regime dizendo que era para o bem do
povo, e expropriaram bens alheios, mataram e cometeram toda sorte de maldade. Escapou das garras do
tigre para cair nas garras do leão? E nesse país começava uma perseguição ao povo judeu. Um fascísmo
selvagem liderado por um sujeitinho estranho. Mesmo na Itália havia percebido que o fascismo estava a
cada dia se fortalecendo com Benito Mussolini no poder.
Ilya Abraãomovitch se saiu vitorioso diante do terrível espectro que habita no umbral que separava
o mundo físico do mundo da luz, motivo de alegria ao velho místico Senmuth, cansado de ver muitos
bravos sucumbirem diante daquela prova. Tinha sido a primeira de outras, talvez não tão difícil, mas
também que exigia do postulante muita coragem e pureza de coração. Ilya Abraãomovitch se saiu bem em
todas.

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Depois permaneceu por quase oito anos com o místico aprendendo idiomas, pesquisando e fazendo
experimentos, sempre buscando resultados que pudessem favorecer a vida no planeta, e com isso se
fortaleceu. Não era mais aquele jovem sonhador, o bom empresário de São Peterburgo que buscava o
saber. Era o próprio sábio, um homem amadurecido pelos seus conhecimentos, embora conservasse aquela
fisionomia do moço que fora em busca do saber há mais de dez anos passados.
Alugou um carro com motorista para levá-lo e a sua bagagem, se resumindo num baú com suas
coisas pessoais que consistia em alguns livros e algumas mudas de roupas. Instalou-se em um hotel barato
não tão distante da estação ferroviária, um quarto pequeno e com banheiro coletivo no final do corredor.
Ficaria ali até que encontrasse uma casa para morar, pois tinha intenção de permanecer no país por muito
tempo, mesmo a despeito do que estava acontecendo. Apesar do pouco tempo na irmandade, um longo
tempo, se comparar ao homem comum dentro das organizações mundanas, ele possuía grande
conhecimento e era detentor de altos segredos a ponto de ser autossuficiente para sobreviver a quaisquer
infortúnios, doenças e ameaças feitas pelo homem.
Uma semana depois encontrou uma casa, não muito grande, mas o suficiente para alguém sem
ambições que queria apenas um lugar onde tivesse privacidade para poder estudar e fazer seus
experimentos. Ao contrario de Zaram e seu mestre Senmuth, não quis criado em sua casa. Não que não
tivesse posses, pois trouxera consigo uma respeitável quantia em dinheiro e pedras preciosas que Senmuth
lhe dera até que começasse a ganhar para seu próprio sustento.
Apesar desse tempo de confinamento, não perdeu suas características, sua maneira de ver a vida e
os problemas da humanidade, querendo resolver os problemas do mundo de uma só vez. Escolheu a
Alemanha para fixar residência porque sabia que ali tinha muito que fazer por querer.. Estava ciente de
que não podia mudar o que já estava decretado, mas poderia salvar algumas vidas sem, contudo, interferir
nos acontecimentos.
Mas a hora ainda não havia chegado. No momento ansiava encontrar-se com Zaram. Não que nesse
tempo em que permaneceu no Castelo da Colina não tivesse tido contato com o místico. Reuniam-se no
espaço etéreo juntos de outras mentes evoluídas, um dos mais altos segredos da ordem da qual fazia parte,
mas ali não discutiam coisas terrenas. Bastavam alguns minutos fora do corpo terreno para que pudesse
estar entre seres etéreos, puros e sábios, onde aprendia tudo o que necessitava aprender, além de poder
consultar os Registros Acásicos, a fonte do saber, e o Elixir para a Alma, que preservava a vida material e
impedia o envelhecimento do corpo físico, como também desviava a morte.

Não demorou em que Ilya se deparasse com os problemas raciais que a cada dia aumentava por toda
a Alemanha. Estava caminhando numa tarde de outono pelas ruas de Berlim, quando do outro lado da rua
se deparou com um grupo de jovens alemães cometendo atos de violência contra um velho rabino,
arrastando o homem pela barba e chutando o seu corpo sem que alguém intercedesse. Ele parou e olhou
indignado pela agressão e desrespeito a um ancião. Não foram suas origens judaicas que mexeram com
seus sentimentos e o desejo de interferir diante daquela situação, tampouco o desejo de interferir em favor
ao injustiçado, mas o puro senso de justiça. Parou, se concentrou naquela cena dantesca, e para surpresa
do próprio rabino e as pessoas que observavam tudo aquilo numa total impotência, porque mesmo aqueles
que não aprovavam a atitude daqueles jovens agressores, temiam em serem classificados como infratores
das leis nazistas por defenderem um judeu, jamais poderiam imaginar o que aconteceu em seguida. Os
jovens agressores, cinco ao todo, como que atingidos por uma força invisível, caíram por terra e ficaram
ali desacordados, enquanto o rabino era socorrido por algumas pessoas, que desafiando as leis nazistas, se
prestaram em favor do homem. O jovem místico seguiu seu caminho.
Algumas semanas depois um visinho bateu a sua porta. Ele recebeu o visitante. Era um jovem judeu
pertencente a uma organização que tinha como objetivo lutar contra as leis nazistas. Ilya foi claro ao expor
seus pontos de vista sobre lutar contra quem quer que fosse, sugerindo que resolvessem a situação através
do voto, não elegendo candidatos nazistas.
Daquele dia em diante nasceu entre eles uma amizade, mas sem que Ilya se comprometesse com o
movimento que, em algumas ocasiões se reuniam em sua casa. Em seu íntimo uma preocupação porque os

60
objetivos do movimento antinazismo despertava nele uma simpatia, nada condizente com os princípios da
Ordem ao qual havia sido iniciado.

QUINZE
Há um principio da alma, superior a toda a natureza, por meio da qual somos capazes de elevar-nos
acima da ordem e dos sistemas do mundo. Quando a alma subir tanto a ponto de chegar junto a naturezas
melhores do que elas mesmas, então é inteiramente separada das naturezas subordinadas, troca esta vida
por outra e, escapando a ordem das coisas com que estava em relação, passa totalmente a outra ordem que
é a mais alta.
Ele entrou naquele quarto sem mobília, a não ser uma pequena mesa com dois castiçais onde duas
velas iluminavam com suas luzes fracas aquele compartimento. A mesa estava colocada próxima à janela,
de modo que dava para ver o céu estrelado. Ainda sobre a mesa, um incenso perfumava o ar, criando uma
atmosfera própria para quem desejava deixar que sua alma vagasse pelo espaço ao encontro de seres
puros. Do incenso emergia uma fumaça azulada pela luz das velas, formando uma espécie de nebulosa
espuma que parecia enviar ao estrelado firmamento, também espalhando um pálido e tremulo esplendor
sobre a face de Ilya Abraãomovitch.
– Filho da luz eterna, cuja sabedoria grau por grau, geração por geração, que na vasta planície dos
tempos de quem venho adquirindo a cada dia o inexprimível saber que só o eterno pode exaurir, e quem
tem sido congenial comigo, responda-me e me aconselhe. – disse invocando àquele com quem desejava
buscar respostas.
Mal acabou de pronunciar essas palavras, emergiu a sua frente uma figura maravilhosamente bela.
A sua face era como a de um homem em sua juventude, porém grave, revelando a consciência de sua
imortalidade e a tranquilidade de sua sabedoria, uma luz semelhante aos raios das estrelas. Com os braços
cruzados sobre o peito, a luminosa aparição murmurou em sua harmoniosa voz brandamente:
– Meus conselhos lhe são agradáveis? Sei que tua alma sente e se abriga sob minhas asas, através do
imperturbável esplendor do infinito. Vem filho, vem filho que ainda há pouco tempo pisou sobre a cabeça
do terrível espectro para alcançar a luz. Muito lhe foi insinuado sobre os mistérios que cobre a existência
desde os primórdios. Adquiriu poderes que jamais a sua mente de mortal comum podia conceber. Mas os
problemas da humanidade ainda ocupam seu coração benevolente, um dom que sempre fez parte de sua
natureza. Está ligado a terra pela compaixão, querendo combater as injustiças e a tirania. As atrações aos
laços terrenos são mais poderosas do que a simpatia que atrai seus encantos aos habitantes do ar e dos
astros.
– Ah, Adonai Filho da Luz – retrucou o jovem místico – Sei bem das condições que são
absolutamente necessárias observar, quando se quer gozar a felicidade de sua presença. Sei que a
sabedoria emana da indiferença pelas coisas mundanas, às quais se sobrepõem a ciência.
– Filho, o espelho da alma não pode refletir ao mesmo tempo o céu e a terra. Um desses desaparece
da sua superfície quando o outro nela se retrata.
– O chamei para me aconselhar e me orientar naquilo que desejo fazer. Sinto-me devidamente
fortalecido para enfrentar qualquer situação. Tenho poder e conhecimento para desviar a lança do inimigo,
como a qualquer outra ameaça, mas, como o mais humilde mortal, desejo ajudar no destino desse povo a
quem o Tirano persegue.
– A natureza em certas ocasiões age de maneira estranha para a compreensão do homem. No reino
animal há o predador que preda o menor, que por sua vez vive da caça a outro ainda mais inferior que ele,
que por sua vez se alimenta do outro ainda menor do que ele, e o predador maior foge do homem que o
caça por diversos motivos, assim como também é no reino marinho. Da mesma maneira, de quando em
quando, surgem os conflitos entre os homens que, de certa forma, mantém um equilíbrio na vida da
humanidade, como também, é nas guerras que a ciência se desenvolve, descobrem curas para as diversas
doenças a ciência se desenvolve tecnologicamente.
– É teu amor pela humanidade e o karma desse povo, jovem buscador do Saber. – prosseguiu -
Restam apenas três seres, cada um diferente do outro, mas cada um com sua missão no mundo dos

61
homens. Senmuth, o sábio e insensível Hierofante vive para a contemplação, à ciência, enquanto Zaram
vive para o gozo da vida, e você vive para a humanidade. Uma nobre missão, porém jamais conseguirá
mudar a roda do destino, mas poderá agir em alguns casos em favor de alguém, de um grupo de pessoas.
O mal campeia por todo aquele lugar onde escolheu para viver. Mas deve sempre lembrar para que não se
envolva demais e acabe se afastando da luz. Se vigie para que nada que fizer seja de caráter pessoal. Vá
em frente, filho. Essa é sua missão perante a humanidade, mas, contudo, esteja sempre em alerta para não
cair nas garras daquele que o quer em sua fileira, deixando se envolver por vis paixões, pois tenha em
mente que os problemas dos homens faz parte da vida e nunca acabarão, mas você poderá somente com
sabedoria ajudar e orientar, e também curar enfermidades.
Durante alguns minutos depois que ele se foi, aquele quarto permaneceu iluminado por uma luz
prateada e cheia de esplendor que não era desse mundo.

Zaram e esposa, como amantes da boa música, não podiam deixar de assistir àquele espetáculo no
Teatro Opera de Munique, onde um famoso pianista judeu austríaco estaria se apresentando. Hitler, com
suas leis raciais ainda não tinha promulgado alguma lei ou decreto que proibisse artistas judeus de se
exibirem em teatros alemães.
A nata da sociedade de Munique estava presente, dentre esses, judeus de boas posses que devido aos
seus status ainda não tinham sido incomodados pelos arruaceiros nazistas. Zaram achou que a ocasião era
oportuna para que sua esposa relaxasse um pouco devido as tensões que o clima antissemita causava.
O programa tinha tudo que sua mulher desejava assistir, Chopin para o primeiro ato, para o seguinte
ato estava programadas sonatas de Bethoven, para a terceira parte tinha Schumann, a quem ela se
identificava mais, desde os tempos em que fizera as primeiras aulas em sua cidade natal.
O teatro estava lotado, gente elegante, mulheres bem vestidas e ela não era exceção. O tempo fora
generoso com ela, pois mantinha a mesma beleza e juventude de há dez anos passados quando decidiu
morar com Zaram, graças a uma mistura de ervas preparada por ele que retardava o envelhecimento,
embora não prolongasse a vida.
Era um belo teatro, próprio para recitais com uma acústica que fazia com que o som não se
dispersasse e roubasse a beleza da música. Ocuparam seus lugares numa fileira não distante do palco, de
onde seria possível ver as expressões do pianista no decorrer do conserto.
A música teve inicio, para encanto daquela seleta plateia.
Fim do primeiro ato. A plateia estava extasiada, gritava em altos brados aquele merecido bravo. Um
gênio acabava de se apresentar. Parecia que a alma de Chopin se apoderara daquele homem relativamente
jovem, talentoso demais. Nele havia recantos que somente um ser privilegiado poderia possuir: a alma do
gênio. Chopin, certamente, se sentiria lisonjeado se pudesse ver que havia um mortal a altura de
interpretar suas criações. Como os demais presentes, Zaram não podia deixar de ovacionar aquele
fabuloso intérprete, um judeu que Darre em suas teorias raciais classificava como raça inferior. Ledo
engano, pois ele era dotado de um talento inigualável. Zaram aplaudia e ovacionava como uma forma
justa de agradecer àquele genial intérprete, como também fazia aquela platéia. Aplaudia até se cansar
porque era como se o próprio Chopin tivesse tocado naquele piano. Desmentia as teorias de Darre porque,
como que alguém de raça inferior poderia ser detentor de tamanho talento?
Os nazistas alegavam que, se eram bons músicos era porque não faziam outra coisa senão passar o
dia inteiro sentado em frente ao piano. Também alegavam que aprendiam puramente pelo processo de
adestramento, como ocorria com o negro americano, enquanto o bom cidadão germânico labutava para a
grandeza do Reich, que judeus eram inaptos para outras funções que requer o uso da inteligência. O ariano
puro é dotado de inteligência insuperável, além de forte e altamente capacitado para gerar filhos sadios e
perfeitos. Os negros norte-americanos são exímios músicos, tocam seus instrumentos como ninguém.
Adolf Hitler dizia que tudo não passava de fruto de um bom adestramento. Tcheikovisky, Rachimanini e
Stravinsky eram eslavos que, conforme as teorias racistas, tais quais os judeus ocupavam o último lugar na
teoria das raças, longe de serem comparados com a Herrvolks, como afirmava Himmler. No entanto eram
dignos de serem comparados a Ludwig van Bethoven, Wagner e tantos outros chamados de arianos.

62
Mas não estava ali para questionar essa ou aquela teoria. Sentia-se extasiado, isso era importante
naquele momento. Invejou o intérprete porque a música era o que mais gostava. Ludmila também se sentia
gratificada por aquele jovem interprete. Nem lembrava que vivia sobre um barril de pólvora patrocinado
pelos nazistas de Adolf Hitler.
Era o entreato. Ela aguardava com ansiedade. Para a parte seguinte estava programado sonatas de
Bethoven, e ela não tinha a menor dúvida de que aquele intérprete faria jus à tão venerável mestre como
era Ludwig van Bethoven. E para a terceira parte tinha Schumann.
Ia começar o segundo ato, o intérprete retornou em seus modos elegantes, sentando a frente do
piano enquanto a platéia se punha a aplaudir. Ele se ajeitava sobre a banqueta frente ao piano. Exercitava
as mãos e se concentrava para mergulhar no divino mundo da música. Estava pronto para começar quando
foi surpreendido por um grupo que iniciou uma verdadeira baderna gritando em coro:
Fora judeu explorador do povo alemão!
Depois começaram a atirar ovos e tomates em direção do músico, enquanto a platéia perplexa não
sabia que atitude tomar, se repreendia aqueles vândalos ou se deixava o recinto. Ainda tinha o fator medo
porque havia leis que punia quem defendesse judeus. O mais sensato era deixar o recinto evitando maiores
consequências, já que a Alemanha andava de pernas para cima. Mesmo porque ninguém vai conseguir
conter os baderneiros, que na certa vieram ao espetáculo unicamente para conturbar. Também era mais do
que certo de que o intérprete não daria continuidade ao espetáculo, porque dificilmente se sentiria seguro,
além de não ter mais clima para continuar.
Zaram pediu licença a esposa e se dirigiu aonde estavam os rapazes, parando na frente deles que,
como que hipnotizados, cessaram aquela agressão e deixaram o recinto silenciosamente, para espanto de
todos os presentes que não puderam compreender o que tinha havido entre o elegante cavalheiro e os
rapazes. Dentre aquela plateia tinha também alguns agentes da temível Gestapo que não deixou de
registrar aquela estranha cena. E como se nada tivesse acontecido, depois de uma rápida limpeza, o
interprete deu início ao segundo ato, assim como o ato seguinte, e encerrou a apresentação magistralmente
e o merecido louvor.
Depois do espetáculo o casal decidiu jantar em um dos bons restaurantes que Monique oferecia.
Munique era uma cidade cosmopolita com suas cervejarias com os animados grupos, belas mulheres, os
cabarés com seus shows, os teatros de revista com números satíricos, e os bons restaurantes. Seria bom
para Ludmila esquecer aquela balbúrdia toda, a febre de violência contra os judeus.
Escolheu uma mesa mais ao fundo, num lugar reservado de onde pudesse apreciar a boa música da
casa executada por um pequeno grupo de cordas. Ali ninguém falava em tom de voz alto tampouco faziam
brindes entre as canecas de cerveja, como ocorria nas cervejarias.
Olhando para aquela gente elegante, parecia que não havia crise econômica no país, como se o
emprego e os bons salários jorrassem do céu e que a Gestapo fosse uma polícia pacificadora, que Himmler
era um pastor de ovelhas, e Hitler um pai para o povo alemão. Numa analise mais profunda era possível
notar no semblante de cada um, do matre ao garçom, do cliente mais jovem ao mais velho, uma leve
expressão de medo, ansiedade e incerteza, como quem quer esconder o verdadeiro sentimento, como se
uma grande desgraça pairasse no ar, e num futuro próximo fosse cair sobre a Alemanha. Pelas cervejarias
o povo extravasava sua falsa alegria bebendo como se fosse à última vez. Os mais sentimentais choravam
sem motivo algum logo após os primeiros goles. Era a Alemanha hitlerista naquela metade da década de
trinta.
Ainda não haviam servido o jantar. O casal bebia um champanhe francês de uma boa safra tendo
como antepasto caviar russo, quando um grupo de rapazes em uniforme da SS, junto de outro grupo
formado por adolescentes integrantes da Juventude Hitlerista vestindo camisas pardas, entrou no
restaurante portando bandeiras nazistas, marchando em ordem unida ao som do rufar de tambores.
Colocaram-se à frente do palco onde estava a pequena orquestra de cordas, saudando a todos com a
saudação nazista. Com exceção de Zaram e a esposa, todos se puseram em pé respondendo em uníssono,
Heil Hitler. Depois os SS e os jovens adolescentes começaram a entoar a Canção de Horst Wessel. Todos
fizeram o mesmo.

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A bandeira ao alto! As fileiras cerradas!
As SA marcham em firme e corajoso passo.
Camaradas que a Frente Vermelha e os Reacionários fuzilaram,
Marchem em espírito nas nossas fileiras.
As ruas livres para os batalhões marrons.
As ruas livres para os homens das Sturmabteilung!
Milhões olham já para a suástica, cheios de esperança.
O dia da Liberdade e do Pão desponta!
A chamada foi feita pela última vez!
Estamos preparados para a luta!
Em breve a bandeira de Hitler flutuará sobre todas as ruas.
A nossa servidão não irá durar muito mais!
A bandeira ao alto! As fileiras cerradas!
As SA marcham em firme e corajoso passo.
Camaradas que a Frente Vermelha e os Reacionários fuzilaram,
Marchem em espírito nas nossas fileiras

- Meu Deus, isso me assusta. - exclamou abismada a esposa do místico, depois de ouvir aquela
canção, o segundo hino da Alemanha.
- É a canção feita de uma poesia de autoria de um fanático ativista assassinado por um cafetão do
submundo de Berlim, e Goebbels resolveu transformá-lo em herói, publicando em todos os jornais que ele
fora assassinado por um judeu.
Ludmila não pode esconder sua expressão de medo e espanto. Ainda estava ressentida com o que
vira no teatro, o ultraje àquele talento só porque era judeu, e agora essa canção assustadora. Nesse tempo
morando na Alemanha, conhecia a fama dos SS que trajavam roupas pretas, como também sabia da fama
dos meninos da Juventude Hitlerista com seu fanatismo cego. Eram diferentes dos Camisas Pardas, que
tinham como função a segurança dos lideres nazistas, salvo uma vez ou outra colher fundos pelo comercio
ou nas casas dos ricos, para o fundo do Partido. Já esses SS eram agressivos, autoritários, provocadores e
covardes, só atacam em grupo, assim mesmo somente pessoas indefesas, velhos, mulheres. Jamais um
grupo de rapazes fortes. Quando muito se limitam a provocá-los porque sabiam que não reagiriam. Mas
com os velhos eles cometem abusos, lhes tiram o chapéu, puxam as suas barbas, chamam as mulheres de
putas sifilíticas, chupadoras de pau, formam círculo ao seu redor, erguem suas saias e debocham de suas
partes íntimas. Só não as estupram porque o ato sexual entre alemães e judeus é crime. Mas abusam
porque sabem que nenhum judeu se atreverá a dar queixa a polícia, e que tampouco adiantava.
Terminada a canção cada integrante ganhou uma caneca de cerveja, brindou com o público e saiu
rumo a outro restaurante ou cervejaria. Zaram sentiu-se enojado ao mesmo tempo em que via tudo com
grande preocupação.
Ele e sua esposa se levantaram e saíram. Já tinha visto coisas demais naquela noite.

DEZESSEIS
Berlim estava se transformando na sede de todo o mal, onde eram sancionadas as leis mais absurdas
feitas pelo homem, leis que tiravam todos os direitos do povo judeu, como também leis que suprimiam os
direitos civis do cidadão alemão. Himmler era quem comandava toda a carnificina. Hitler, em seu delírio
expansionista pressionou o chanceler austríaco para que aceitasse a anexação de seu país a Alemanha, que
não foi aceito pelo chanceler. Mediante a recusa acabou sendo assassinado e a Áustria acabou sendo
anexada ao Reich alemão.
Em seguida Adolf Hitler ordenou a ocupação da Renania sob os olhos apreensivos de seu Estado-
Maior. Mas como havia sido previsto, não houve nenhuma reação da parte francesa fazendo da operação
um sucesso e calando seu Estado Maior que não concordava com as medidas de Hitler temendo uma
reação dos países invadidos e de seus aliados. Uma simples nota de desagravo por parte da França,

64
seguida de um ultimato, seria o suficiente para que o Estado-Maior alemão retirasse suas tropas e
destituísse Adolf Hitler de todos os seus cargos. Mas ele conseguiu provar seu grande poder de comando e
visão estratégica, sabendo usar da persuasão no momento certo, além de cumprir com parte do que tinha
prometido ao povo. Restava dar andamento ao processo de rearmamento do país, sem que nenhuma
potência interferisse.
A guerra era um espectro medonho que politicamente não podia sequer se cogitado. Contudo, foi
introduzido o alistamento militar compulsório visando aumentar o exército de cem mil homens permitido
pelo Tratado de Versalhes, para um número superior, dando ao povo alemão mais confiança e aumentando
as esperanças de a Alemanha voltar a ser a grande potência, longe da sujeição de Versalhes com suas
regras humilhantes. Os melhores economistas e técnicos em finanças se reuniram em busca de solução
rápidas para os quase seis milhões de desempregados em todo país.
Adolf Hitler extinguiu de vez todo sistema parlamentar da República de Weimar e todos os partidos
políticos, com exceção do Partido Nazista. A liberdade de expressão nas artes e na literatura deixou de vez
de existir. Foi introduzido o sistema de Fühererprinzip*(*Líder único) na cúpula, e outros líderes
menores para comandar a baixa hierarquia do poder. Todas as sociedades secretas, como qualquer seita,
foi proibida em todo território alemão, As igrejas protestantes foram proscritas restando apenas a Igreja
Católica Romana, que juntamente com a imprensa foi revolucionada, fazendo integramente as vontades do
Partido. A religião era tolerada desde que tivesse como objetivos únicos à doutrinação nazista e a
propagação do antissemitismo.
O Presidente Hindemburg morreu deixando seu cargo vago. Com isso, Adolf Hitler acabou se
proclamando Ditador do Reich. Na verdade ele já vinha exercendo esse cargo devido os plenos poderes a
ele concedidos pelo próprio Presidente Hindemburg.
Em Berlim, sob o comando do Reschsfuher SS Heinrich Himmler, a cúpula do nazismo se reunia
para uma operação que, uma vez consolidada, daria poder total a Adolf Hitler. Hitler confiava nos planos
de Himmler, na frieza como planejava e executava as ordens dadas.
Sentado ao lado de Himmler estava seu braço direito e seu alter-ego, o Capitão SS Reinhard
Heydrich, um homem tão frio e cruel como era o seu superior, destacando-se pela maldade e os requintes
de crueldades ao interrogar suspeitos, a ponto do próprio Himmler não suportar ver a agonia da vitima em
questão, na verdade uma de suas fraquezas. Um homem sínico e arrogante, que gostava de exibir sua
importância dentro do Reich, e desfilar vagarosamente em seu Mercedes-Benz preto, sentado ao lado de
seu motorista e com a capota do carro arriada. Hitler tinha admiração por ele, loiro, homem elegante em
seu uniforme preto que lhe caía como uma luva, o protótipo do homem ariano, mesmo a despeito de
alguns boatos de que ele tinha sangue judeu de avós distantes. Mas Hitler, em seu intimo, pouco se
importava com as teorias absurdas de Rosenberg e seu discípulo Darré, a Sociedade Secreta de Himmler, e
sobre o que ele próprio apregoava sobre os judeus e outras etnias. O que importava era a eficiência de
Heydrich, acima de tudo o que se podia esperar de um oficial nazista, ariano puro ou não.
O plano consistia em eliminar boa parte do oficialato e outros de quem Hitler suspeitava de estarem
tramando uma traição, e o Capitão dos Camisas Pardas Ernest Rohm e quem estivesse com ele em sua
cama, devido aos escândalos que vinham acontecendo com seus parceiros sexuais, o que ele achava que
não ficava bem para as forças paramilitares. Com Ernest Rohm fora das forças paramilitares ele
extinguiria de vez essa corporação, e ganharia apoio total do Comandante das Forças Armadas, General
von Blomberg, e com o tempo eliminaria esse também.
- Devo ausentar-me de Berlim neste final de semana. O Ministro de Propaganda do Reich, - disse
apontando para Goebbels. – arranjou-me essa festa de casamento em Essem. Eu havia recusado porque
meu desejo era acompanhar de perto toda operação. Somente depois que ele me explicou é que pude
entender a importância de estar ausente durante todo acontecimento. De minha parte só resta desejar a
todos o merecido sucesso. Partirei nessa quinta feira a noite. Quando regressar nos veremos numa
recepção nos jardins da chancelaria, onde comemoraremos mais uma vitória do Reich.
Em seguida se pôs em pé estendendo a mão direita em direção aos seus comandados que bateram os
calcanhares enquanto simultaneamente estendiam a mão direita gritando: Heil Hitler

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Na sexta feira pela madrugada teve inicio a chacina sob a batuta de Reinhard Heydrich. Além de
Rohm e seu amante, que foram fuzilados ainda na cama, o ex-presidente da Baviera, Gustav von Kahr,
que era um forte opositor ao nazismo, foi assassinado naquela manha em seu próprio gabinete de trabalho.
O ex-Chanceler, General Kurt von Schleicher foi assassinado por um soldado raso que servia junto ao seu
gabinete como estafeta. Na verdade o rapaz era um agente da Gestapo recrutado por Reinhard Heydrich
logo que o órgão foi criado. Gregor Strasser ignorava os acontecimentos que tinham começado pela
madrugada. Quando desceu do carro mal teve tempo para fechar a porta. Alguém saído das sombras da
noite tocou em seu ombro. Não teve tempo para esboçar qualquer reação àquele homem vestindo o
uniforme negro da SS. Três tiros à queima roupa acabaram com sua vida na porta de sua residência.
Milhares de casas foram invadidas durante a madrugada. Começava pelas batidas na porta fazendo
com que acordassem sobressaltados, e se apavoravam quando ouviam a palavra Gestapo, ou se deparavam
com os uniformes negros da SS. Eram pegos de surpresa em casa, no teatro, no restaurante. A Gestapo
prendia e os levava para interrogatório. A SS dava cabo do suspeito no próprio local onde eram
interpelados, com algumas exceções quando o suspeito era interpelado em local público. De certo modo as
vítimas da SS podiam ser consideradas privilegiadas porque não morriam na miséria de sofrimentos
infligidos pelos carrascos de Himmler com seus terríveis métodos de tortura.
No final da noite de sábado as longas facas haviam cintilado pelos obscuros cantos da polícia.
Cerca de 2.000 líderes foram assassinados e mais de 5.000 dos que ocupavam cargos de destaque dentro
da corporação dos Camisas Pardas foram presos e enviados para os campos de concentração.
No domingo a noite Adolf Hitler retornou de Essem. Na segunda-feira, conforme havia prometido,
recepcionou nos jardins da chancelaria as principais figuras de seu ministério e os principais oficiais da SS
envolvidos diretamente no massacre daquele final de semana. Estava satisfeito com a eficiência do seu
Reichsfüher SS que envergava orgulhosamente seu uniforme negro. Era alvo das atenções, e afetado de
modéstia, dividia os louros da vitória com seus comandados, principalmente Reinhard Heydrich, que
havia dado sua contribuição no planejamento.
Para Himmler foi a grande convicção da eficiência das suas polícias. Para Heydrich valeu a
promoção imediata proposta pelo próprio Adolf Hitler ao posto de Tenente-Coronel SS. Discursou durante
alguns minutos para aquela restrita plateia, enfatizando a grandeza de seu trabalho para o enaltecimento e
a continuidade do Reich.
- Todos agora devem saber que daqui para frente, se levantarem a mão para atingir o Estado e a
mim, por certo a morte será seu destino. – Hitler disse encerando seu discurso.

Ilya Abraãomovitch vivia uma rotina nada convencional a um místico. Seu dia era curto, mal
conseguia dar conta de tantos afazeres, que consistia a sua participação no movimento anti-hitlerista,
cuidando da logística, participando de reuniões, planejamentos para desviar supostas suspeitas de alguns
camaradas, além de proteger judeus perseguidos pela Gestapo. Também dedicava parte de seu tempo em
estudos, meditações e reuniões com Seres superiores, que exigia dele um total isolamento.
Como compraz a um jovem altruísta, queria salvar o mundo, fazer valer a justiça, mesmo tendo que
desafiar as autoridades. Tinha consciência de que sua atitude não era nada convencional, expondo-se a
sérios riscos os quais não convinha desafiar. Zaram, além de irmão, era um amigo, alguém com quem
podia contar, desabafar, falar de seus anseios. Não hesitou em roubar um pouco de seu tempo para se
aconselhar com o amigo, um assunto terreno que não convinha chamar o Filho da Luz.
- Pensei que a revolução russa fosse o que de pior pudesse ter acontecido, – Ilya Abraãomovitch
dizia com ar desolado ao amigo – Não que justifique todo mal que por la ocorreu. Havia por detrás de tudo
uma ideologia, o nascimento de uma nova era, a era da libertação de um povo, o fim de uma tirania,
embora apenas tenha sido trocada a liderança. Mas aqui, aqui, caro amigo, vejo o mal se arrastando ao
lado dos lideres nazistas. Não há ideologia, mas um fanatismo por uma louca ideia de fazer da Alemanha a
dona do mundo, um povo que se julga superior a qualquer outra etnia. Quando olho para frente só vejo a
morte, a desgraça, a sujeição de povos por esses verdadeiros facínoras. Esse Adolf Hitler é a encarnação
do mal, assim como seus comandados. Homens sem escrúpulos, cruéis. Sei que o que ocorre atualmente

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não é nada, se comparado com o que está por vir. Portanto, meu caro, é difícil conviver em meio a isso
tudo. Fico me questionando sobre as leis feitas pelo nosso Criador, leis que permite a exploração, sugestão
e flagelo de um homem para com o outro. Onde está a justiça? Parece que as leis só favorecem a uma das
partes, o lado tirano! Karma? O que fez esse povo judeu para ser perseguido dessa maneira, como
também os protestantes religiosos? Eu ate compreendo a perseguição aos comunistas, pois esses
representam a oposição, uma disputa pelo poder, mas os outros, o pacifico judeu, o homossexual, as
Testemunha de Jeová?
- Ah, meu caro irmão! Mal começou a trilhar a Senda e já está envolvido nos problemas mundanos.
– interveio Zaram – Fala da tirania como se fosse o único flagelo da humanidade. Há quanto milhões de
anos existem vida neste planeta? Há quantos milhões de anos o bem vive se confrontando com o mal? Há
quanto tempo são travadas grandes batalhas entre o bem e o mal? Há coisas que ainda fogem a sua
compreensão, essa é a verdade. Mas por outro lado, nada impede que você lute em favor do bem, mesmo
incorrendo os riscos inerentes de sua empreitada. O mundo passa por um período de transição e esses
acontecimentos fazem parte de todo processo.
- Então devemos permanecer de braços cruzados assistindo a esse espetáculo de horror? – interveio
o jovem místico.
- Já vi tanta coisa durante a minha existência neste mundo, a ponto de me tornar indiferente em
certas ocasiões. – interveio Zaram - Mas não estou neutro, por exemplo: não faço parte dessa politica
insana, não contribuo em nada. Ainda há pouco tempo fui procurado por uma dessas instituições nazistas
para que eu contribuísse com o partido. Recusei. Já intercedi em favor de injustiçados, contra agressões de
baderneiros nazistas. Era o que me competia sem infringir princípios.
- Eu trabalho numa organização que...
- Sei de seu envolvimento em grupos antinazista. – Zaram interrompeu o rapaz – É um nobre
trabalho, humanitário, mas que envolve perigos. O parabenizo por isso, mas não posso deixar de adverti-lo
dos riscos que corre, apesar de possuir meios para se safar de qualquer perigo. Mas não deixa de ser
perigoso. Deve lembrar-se de que não somos imortais, que somos vulneráveis ao fio da espada, embora
saibamos como desvia-la de nossos corpos. Deve estar ciente que a paixão e a emoção anuviam as nossas
mentes, levando-nos a distração, e nessa hora tudo pode acontecer. Esse é o maior dos perigos.
- Sou cauteloso, me mantenho longe do perigo. – disse o jovem.
- Mas esteja sempre atento. Continue em seu trabalho de proteger os perseguidos, mas não tente
impedir o curso da agua. É um karma pelo qual esses povos tem que passar, assim como tudo que
acontecerá neste país.
- E Ludmila, como ela está? Se adaptou a este país?
- Quanto a isso ela está ótima – respondeu Zaram com um fio de tristeza em seu semblante – Eu
venho tentando induzi-la a estudar as nossas primeiras lições, para futuramente inicia-la na nossa Senda.
Mas tenho encontrado dificuldade para fazê-la entender nossos princípios. Os princípios religiosos, como
toda superstição de suas crenças a impedem de pensar. Como posso conceber o futuro, ciente de que com
o passar do tempo ela irá se acabando até o seu fim, enquanto eu mantenho minha juventude sempre
caminhando em busca do futuro por inúmeros séculos? É o preço que tenho que pagar por deixar-me
envolver em paixões terrenas.
- Não pode persuadi-la através do sonho?
- Eu estaria infringindo princípios e não demoraria em que a lei da compensação caísse sobre mim,
porque a estaria forçando a situação. Qualquer passo tem que partir da vontade dela.
- Compreendo. - disse o jovem. – Acha que eu posso ajudar, caro amigo?
- É o que mais gostaria. Ela gosta de você, sente falta de sua amizade. Penso que uns dias em minha
casa faria bem para ela, além de você se afastar temporariamente de suas atividades antinazistas.
- Então conte comigo, irmão – disse com um sorriso estampado em seu rosto.

DEZESSETE
MUNIQUE 1935

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Naquela bela e ensolarada manha de verão, Reinhard Heydrich chegou cedo ao seu gabinete de
trabalho. Pediu a sua secretária para que preparasse um chá de ervas, e que não o interrompesse em
hipótese alguma. Himmler o havia enviado a Munique para organizar o serviço de espionagem local. Sua
agenda era cheia, mas conseguia dar conta de tudo e ainda arranjar algumas horas para o lazer. Dentre
seus compromissos tinha que preparar o novo decreto-lei para ser apresentado em Nuremberg no dia
seguinte.
Tinha o projeto Lebensborn*(*Fonte de vida), a Maternidade Racial que deverá ser transformada
em lei, onde os puros sangues deverão nascer e serem criados, propiciando às crianças um ambiente
confortável, onde no decorrer de suas formações serão doutrinados. Haverá incentivos e premiações
àqueles que, mesmo a despeito de não querer contrair matrimônio, e contribuam na fecundação das belas e
saudáveis jovens racialmente certas para a continuidade da raça germânica e do Reich. Tinha, também, a
questão dos judeus para ser resolvida. A eliminação dos judeus estava se tornando uma obsessão. Se
pudesse criaria leis que permitissem matar indiscriminadamente os judeus de toda a Alemanha, ou então
expulsá-los sumariamente. Mas isso levaria tempo porque não se pode de uma só vez propor uma solução
final. As opiniões são divididas, uns a favor outros contra, o que é compreensível. O mundo não veria
essas medidas com bons olhos, mesmo que em seu íntimo estejam de acordo.
Ainda tinha os jogos olímpicos em que a Alemanha terá que causar uma boa impressão aos
visitantes estrangeiros. Tudo por pura politicagem, por temer contrariar os países vizinhos podendo
prejudicar as relações comerciais, mesmo que odeiem os judeus. O clero romano não deverá ser empecilho
porque não estará mexendo com a comunidade católica. Eles não vão intervir nos problemas internos da
Alemanha, nas leis que tratam da cidadania. Suprimir os direitos do povo judeu é um direito que cabe a
Alemanha. A criação de leis que venham suprimir todo e qualquer direito do judeu, perseguí-los
implacavelmente sem que possam se amparar em qualquer direito legal e qualquer tipo de proteção. Poder
escorraçá-los a luz do dia, marginalizá-los, ridicularizá-los, tudo legalmente amparado por leis
devidamente aprovadas pelo Parlamento. Deixar o povo saquear seus comércios a torto e direito, incendiar
suas sinagogas, ridicularizar seus rabinos, incentivar a população a esses deveres patrióticos com
premiações às melhores caricaturas que ilustre essa gente, ensinar as criancinhas desde cedo a odiá-los, ter
o antissemitismo como matéria obrigatória em todos os graus.
Nenhum país estrangeiro poderá se intrometer nessas leis que competem somente à Alemanha. Os
incomodados, se quiserem deixar a Alemanha para sempre, que o façam, desde que paguem uma boa
quantia em dinheiro, ações ou jóias para os fundos do Partido Nazista. Que todos os seus bens sejam
confiscados legalmente retornando assim às mãos de seu dono que é o Estado de onde eles usurparam.
Excluí-los das profissões liberais, do serviço público, das Forças Armadas, dos esportes, das artes, da
música. Instruir a população a boicotar seus comércios, criar leis proibindo o cidadão germânico a
negociar com eles, vetar o acesso a certos lugares públicos, e por fim, obrigá-los a usar a estrela de Davi
sobre suas vestes para que sejam facilmente distinguidos. Urge livrar a Alemanha dessa praga.
Chamou por Klein, seu motorista. Pediu que arriasse a capota de seu Mercedes Benz porque queria
dar uma volta pela cidade. Gostava de circular vagarosamente apreciando a cidade com as casas em estilo
enxamel com flores pelas janelas coloridas, como era a bela Munique. Apreciando as belas jovens que
sorriam e acenavam para ele em seu uniforme negro da SS. Uma rotina corriqueira que alimentava seu
ego, a necessidade de se sentir notado.
Do outro lado da rua avistou uma mulher que chamou sua atenção. Cabelos dourados, uma postura
ereta feito uma bailarina, vestida com elegância e um modo todo peculiar de caminhar parando
ocasionalmente numa vitrina para apreciar os manequins. Percebeu que não se tratava dessas jovens de
cabeça oca que se dobravam a sua frente num estalar de dedos. Era mulher formada, madura, uma mulher
com quem terá que usar de toda a sua habilidade para conquistá-la, com quem não teria a menor graça
forçar a situação. Um novo desafio.
Pediu ao motorista para que virasse o carro mais adiante e retornasse, de modo a se deparar de
frente com ela, que olhava uma vitrine quando ele desceu do carro e a abordou:

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- Uma mulher tão encantadora. Haverá por essas bandas um renomado costureiro capaz de fazer
uma roupa a altura, - disse à ela que, surpresa, olhou espantada, tomando aquele elogio com um
atrevimento.
- Permita que me apresente? Tenente-Coronel SS Heydrich, bela dama. Reinhard Heydrich, - disse
batendo os calcanhares numa postura educada tirando a luva da mão direita e estendendo a ela, que olhou
com certa indiferença e em dúvida se deveria ou não estender-lhe a mão.
Mas antes que prosseguisse com seus galanteios, sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Surpreso por
tamanha ousadia a um Coronel SS, com a ponta dos dedos e olhando com desdém, tirou a mão que tocava
seu ombro, dizendo numa postura arrogante:
- Como ousa tocar num oficial do Reich?
- Como ousa interpelar e fazer galanteios à minha mulher a quem não conhece? - disse o outro.
Vendo que se iniciava uma discussão, o motorista de Heydrich desceu do carro e se postou a frente
de Zaram, mas antes que dissesse qualquer palavra o místico olhou para ele ordenando que retornasse ao
carro. Depois se voltou para Heydrich dizendo:
- Tenho coisas mais interessantes a fazer do que ficar discutindo com um oficial nazista. Tenha um
bom dia, Herr Coronel.
Heydrich permaneceu parado, pasmo pela ousadia daquele homem que, pelo que deduziu, longe
estava de ser um autentico ariano e nem mesmo um cidadão de segunda classe, como classificavam os
brancos que não eram judeus e nem alemães. Mas não esboçou nenhuma reação, o que não pode
compreender. Aquele estranho tinha um poder magnético que o neutralizou.
- Quero um dossiê completo sobre esse sujeito - disse aos gritos para seu motorista, alguns minutos
depois de se libertar daquela paralisação hipnótica. - Descubra quem é e aonde mora. Não posso
compreender como não o prendi de imediato.

Desde a Noite das Longas Facas, nenhum cidadão estava livre de suspeita, ou das maquinações da
SD comandada por Heydrich, nem mesmo Adolf Hitler e seu protetor Reichsfüher SS Heinrich Himmler,
nem o gênio da propaganda Joseph Goebbels. Heydrich tinha guardado a sete chaves um arquivo secreto
preparado, o qual o próprio Himmler desconhecia, com informações sigilosas sobre toda a hierarquia do
partido. Em seus arquivos secretos constava um dossiê sobre Adolf Hitler com provas concretas de que a
Cruz de Ferro ganha durante a guerra por ato de bravura não passava de armação de Ludendorf para que o
ex-cabo, na época agitador político, ganhasse crédito e respeito da população. Também toda a
documentação referente às inúmeras consultas e exames médicos em caráter confidencial, que o Führer
havia feito para se tratar de uma sífilis. Provas documentadas através de relatórios médicos sobre a
impotência sexual de Hermann Goring, assim como a sua dependência por drogas. O registro sobre a
debilidade mental de Kurt Daluege, o ex-diretor da antiga polícia política suplantada pela Gestapo, os
antecedentes criminais de Martin Bormann, o vice-líder do Partido Nazista. O caso amoroso entre Joseph
Goebbels e a atriz de cinema Lídia Barova de nacionalidade russa, portadora de sangue eslavo, além de ser
sexualmente pervertida por praticar coisas que nem mesmo a mais ralé das prostitutas se sujeitaria.
Também constava em seus arquivos provas de que Himmler ajudava e protegia um comerciante de gado,
um judeu chamado David Heymann, casado com a filha bastarda de um tio dele. Mas o que lhe
interessava naquele momento era o dossiê sobre o misterioso Conde Zaram e Ludmila:
Ela é russa, fugitiva da revolução bolchevique, filha de nobres que perderam a sua fortuna para os
revolucionários. Stalin ia gostar de recebê-la de volta. Mas ele? Esse não passa de um charlatão que
espalha boatos a seu respeito para se passar por alguém dotado de poderes. Diz ser de origem francesa
um empresário muito rico, o que de fato ele é. E esses boatos sobre terem visto ele ha muitas décadas
passadas em diversos lugares, com a mesma cara, a mesma juventude, e em seus documentos consta ter
nascido em 1878, sendo assim ele tem hoje 57 anos de idade, com aquela aparência, aquela juventude e
aquele vigor? Não é possível. Como se explica isso? Há pessoas que afirmam tê-lo visto realizar
verdadeiros milagres entre pessoas enfermas, como outros que se viram paralisados diante dele. Aquele
caso dos rapazes que foram pedir donativos em sua casa e deixaram o recinto como que impelidos por

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uma força alheia a suas vontades. Quem realmente é esse homem? Ainda há outro, um jovem que
freqüenta a sua casa, tão misterioso quanto ele, acima de tudo judeu. Como ainda não o tocaram? É hora
de pôr um basta nisso tudo, apanhar esse Conde Zaram e o jovem judeu, seu amigo. Depois que estiverem
em minhas mãos, quero ver se são realmente dotados de poderes.
Heydrich estava farto de trabalhar naquele dia. Uma ronda pela noite bavariense seria ideal para
relaxar das tensões que seu cargo causava. Wilhelm Canaris, o chefe da Abwehr, o serviço de espionagem,
se encontrava na cidade. Queria estreitar suas relações com ele visando obter informações de caráter
internacional, porque entregar Ludmila ao ditador russo fazia parte de seus planos.
Por sua vez, Wilhelm Canaris, homem bem informado, conhecia o mau caratismo de Heydrich,
tendo-o como um sujeito desprezível e perigoso. Às vezes tentava entender o ser humano, o porquê de
suas mudanças tão radicais, como era o caso de Heydrich com quem convivera um bom tempo, chegando
até mesmo a gostar dele, apesar da diferença de idade entre ambos. Mas desde que havia ingressado na SS
seu caráter mudou radicalmente. Sabia de seu passado judeu, mas isso não mudava em nada, porque não
era antissemita como a maioria no partido era.
Foi convidado por Heydrich a uma noitada. Acabou por aceitar o convite para ver onde podia
chegar. Ele sabia que Heydrich era um assíduo freqüentador das elegantes boates e bordeis, onde se
relaxava das tensões do dia a dia que seu cargo impunha. O álcool e o sexo eram para ele verdadeira
terapia. Canaris sabia disso tudo, por isso queria testemunhar todo seu comportamento entre as mulheres e
o efeito do álcool sobre seu caráter, para poder colher mais informações para o dossiê secreto que também
mantinha sobre gente importante do partido e das milícias do Reich.
Foram no carro oficial usado por Heydrich, dirigido pelo seu motorista, o Mercedes-Benz preto com
a capota arriada. Na região central da cidade eles pararam numa luxuosa boate. Ao entrarem ele causou
alvoroço entre as mulheres que disputavam a sua companhia correndo em sua direção procurando um
espaço onde pudessem dispensar um pouco de carinho àquele homem tão temido. Elas sabiam que
enquanto fossem do agrado do “anjo corrupto” jamais seriam molestadas pelos cafetões ou qualquer outro
tipo explorador de mulheres, e os clientes que faziam uso dos prazeres por elas proporcionados tratavam-
nas com respeito e dignidade, além de pagar sempre mais daquilo previamente combinado.
Canaris via tudo com satisfação, porque de certo modo Heydrich era um representante do Reich de
Adolf Hitler, quem ele não via com bons olhos. Hitler e a sua corja de fascistas vão acabar levando a
Alemanha de encontro a outras potências, num confronto perigoso que fatalmente acabará em guerra.
Sua esperança para o fim desse império fascista que Hitler estava construindo, era que Heydrich e outros
como ele, assim como Himmler e seus discípulos que aceitavam suas idéias absurdas, Goring com seus
entorpecentes, Goebbels com sua língua de serpente e tantos outros portadores de nítidos problemas
patológicos na cúpula do Partido Nazista e dos políticos que compunham o Reich, acabassem se
envenenando em suas próprias línguas matando uns aos outros na disputa para ver quem conseguia
agradar mais ao sagrado Führer.
Estão mais preocupados com suas megalomanias, em serem os construtores do Terceiro Reich para
que seus nomes sejam glorificados, na esperança de entrarem para os anais da História da Alemanha. Só
que não percebem que estão construindo um gigante com pés de barro.
Depois seguiram para outra boate onde Heydrich teve a mesma recepção e o mesmo tratamento.
Parecia que estava mais preocupado em exibir-se, mostrando o quanto era querido entre as mulheres e
temido pelos frequentadores que viviam enchendo a sua mesa com bebidas. Percorreram por diversas
boates e bares. Em todos os lugares que entravam Heydrich bebia um ou mais cálice de schnapps
tornando-se gradativamente embriagado. Aos poucos sua fala começava a se tornar arrastada, sua boca
retorcida e seus olhos, a essa altura menor, que iam se reduzindo a dois pontinhos, ficando quase que
totalmente cerrados. Mas por outro lado ele ia se mostrando relaxado, aparentando uma paz interior como
se tivesse se libertado de algum domínio malévolo restando-lhe apenas as manifestações visíveis de um
semblante torturado pela profissão que exercia, que o transformara no impiedoso carrasco do povo. Às
vezes dava a impressão de que se acalmaria de vez e refletiria, por fim, a calma induzida pelos schnapps.
Mas isso não acontecia. Era como se não houvesse mais libertação para ele. Canaris, sóbrio porque havia

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se limitado a algumas taças de champanhe, estava lúcido a ponto de poder avaliar a situação e poder
aprofundar-se no conturbado caráter de seu colega, classificando-o como uma pessoa demente, um louco
sádico com poderes para fazer o que bem entendesse, liderado por outro tão demente quanto ele.
Que Deus tenha piedade da Alemanha.
Ao chegarem ao prédio onde morava, Heydrich convidou Canaris para um último trago, agindo
como comandante da SD, intimando-o como se fosse uma ordem. Canaris aceitou porque desejava ver o
desfecho daquela noite. Heydrich mal conseguia parar em pé, mas orgulhoso como era, recusou a ajuda de
Canaris e do seu motorista que ofereceram seus braços para que se apoiasse. Cambaleando ele conseguiu
chegar até a porta, e após várias tentativas conseguiu enfiar a chave no buraco da fechadura e abrir a porta.
Ao acender a luz e ver sua imagem refletida no espelho grande logo a entrada do apartamento, mirou-se
bem, falando em sua voz arrastada pela embriaguez:
- Judeu imundo! – disse a si mesmo quase num sussurro.
Em seguida sacou sua Lugger e disparou três tiros no espelho. Lina, sua esposa, acordou com os
disparos, se levantou e correu para ver o que estava acontecendo, pensando no pior porque já estava
habituada com as constantes crises de personalidade do marido, mas nunca ele tinha disparado tiros dentro
de casa. Ao ver a esposa Heydrich começou a soluçar como se estivesse desabafando algo preso dentro de
si, ao mesmo tempo em que se desculpava por correr em suas veias o sangue judeu.
Canaris ajudou a despi-lo e colocá-lo na cama. Lina pediu para que ele ficasse um pouco mais, que
tomasse uma xícara de café, o que seria bem-vindo após aquela noitada. Ela queria falar, desabafar com
alguém com quem pudesse confiar. Mostrou-se uma mulher diferente daquela que ele conhecia das
recepções em sua residência, a mulher sofisticada, chic, culta, educada e de boas maneiras, afetada e
arrogante, que brilhava com sua presença chamando a atenção para si. Suas animadas conversas, a mulher
invejada por ter o marido que muitas gostariam de exibir. Aquela era outra Lina, era a mulher sofrida que
carregava um pesado fardo nas costas.
Ele é um poço de problemas. – disse ao atento Canaris. – A destruição do espelho é uma forma de
ele se liberar da presença atormentadora do seu eu conspurcado. Ele é seu próprio prisioneiro num mundo
em que as quimeras autorizadas o levam a fazer o uso de aplicações sádicas em outras pessoas, com a
justificativa de suas secretas exigências fanáticas de poder pessoal.
- O destino demonstrou notável perspicácia ao juntar Reinhard com Himmler. - prosseguiu ela. – A
mistura de energia e a dependência de Himmler fazem dele o despenseiro ideal para seus propósitos.
Reinhard lhe empresta as sinistras características, seu perfil prosaico e incolor, e cada qual considera o
outro como um instrumento para seu esforço pessoal para manterem-se no poder. Somente o ódio pode
resultar dessa independência. Ele odeia Himmler porque Himmler o humilha, obrigando-o a dirigir-se a
ele como Herr Reichsfüher Heinrich Himmler. Então ele descarrega todo ódio, agindo de modo
exagerado, porém dentro daquilo ordenado pelo seu superior.
Certamente, Herr Reichsfüher SS, se é isso que o Herr Reichsfüher deseja, providenciarei
imediatamente, Herr Reichsfüher. Mas odiarem-se faz parte de suas vidas, porque ambos vêem grandeza
um no outro. Ambos representam a personificação da mediocridade. Reinhard é o alter-ego de Himmler,
que por sua vez é a única pessoa que pode mantê-lo no poder ou mesmo promovê-lo. Ele não tem acesso
direto ao Füher. Depende exclusivamente de Himmler.
Canaris, discreto e inteligente nada dizia, limitando-se a consolá-la. Lina, justificando as atitudes do
seu marido pelo trabalho árduo que um oficial SS lotado na SD tinha que enfrentar. Canaris foi para sua
casa satisfeito por ter testemunhado tudo o que presenciou, que só confirmou o seu conceito sobre seu ex-
discípulo e amigo

Na estação central de Munique, numa manha fria de outono e sem sol, uma figura singular, estranha
para os padrões daquela estação em que as pessoas procuravam se agasalhar devido a umidade do ar
carregada de bactéria e toda sorte de doenças oportunistas aos desprevenidos e desagasalhados, desceu do
trem e caminhou em direção a rua a procura de um carro de aluguel. Aquele ancião, àquela hora da
manha, vestia apenas um paletó surrado, calça, camisa de algodão e chapéu sobre a cabeça, alheio a

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temperatura local. Carregava na mão uma maleta com seus pertences. Cor bronzeada, quase se
assemelhando aos habitantes da Índia, era notório que não era um nativo de lugar com temperaturas
baixas, o que fazia com que chamasse a atenção do indiferente povo alemão.
Dirigiu-se a um carro estacionado numa praça, e num alemão perfeito pediu ao motorista que o
levasse ao endereço que ele indicou. No clima que vivia Munique sua chegada foi notada, e ele foi
seguido pela Gestapo, pois não deixava de ser um tipo estranho, e suspeito de alguma coisa que nem os
agentes sabiam o quê.
Pagou o motorista, desceu do carro e se dirigiu àquela mansão. Antes de bater na porta para chamar
alguém que pudesse recebê-lo, se voltou para trás olhando diretamente para um Volkswagen com dois
homens dentro que o observavam.
Foi atendido por um tipo familiar, pois era notório que aquele criado pertencia a etnias asiáticas.
Ainda antes de entrar, se voltou novamente em direção àqueles que o observavam, e entrou para encontrar
com seu único amigo na face da terra.
Menos de uma hora depois, Reinhard Heydrich sabia da chegada de um tipo suspeito na mansão de
Zaram.
Horas depois, ainda pela manha, os dois amigos caminhavam lentamente pelo pequeno bosque que
era o quintal da residência. Um lugar agradável em meio aquela diversidade de plantas, flores, erva e
árvores. O silêncio do lugar era quebrado, além das vozes dos dois amigos, pelo pisar sobre aquele chão
de terra batida, sobre algumas folhas que desprendiam de seus galhos.
- Quando éramos neófitos e aspirantes pertencíamos a uma classe à qual o mundo atual desconhece.
Vivíamos num mundo de sábios e guerreiros. O jovem olhava para ambas as classes, e acabava se
decidindo para um caminho ou outro. Para nós a vida não tinha outro objetivo a não ser a ciência. Desde o
berço estávamos predestinados e educados para a sabedoria. Para nós eram os elementos comuns de uma
ciência, essas coisas que os sábios de hoje desdenha com uma quimera, ou que desesperam como de
impenetráveis mistérios. Ah, meu caro amigo, quão poucos chegavam ao primeiro círculo da Irmandade, e
quantos depois de terem entrado no gozo dos sublimes privilégios que haviam procurado, abandonaram
voluntariamente a luz do sol, e caíram sem esforço no túmulo, como peregrino num ínvio deserto,
subjugados pela calma de sua solidão, e espantados pela imensidade sem limites. E você, caro irmão, que
nada parece viver senão para o desejo de saber, você que indiferente a felicidade, a dor, se presta a ajudar
todos os que buscam a senda da misteriosa ciência é como um livro em forma humana, insensível aos
preceitos que anuncia, sempre tentou, e muitas vezes conseguiu aumentar o nosso número.
- A esses foram conseguidos apenas segredos parciais – disse Senmuth – A vaidade e as paixões os
tornaram indignos do resto do saber. E você, Zaram quer expor uma alma piedosa, inocente sem o menor
interesse em misticismo ou qualquer outra modalidade de ciência aos perigos da prova iniciativa? Acha
que alguém sem o caráter indagador sem a coragem absoluta e intrépida pode vencer, onde intrépidos
verdadeiramente austeros e com puras virtudes não puderam suportar as duras provas? Pensa também que
o gérmen da arte que jaz na mente do pintor, posto que compreenda em si o completo embrião do poder e
da beleza, pode exaurir-se ate que se desenvolva dele a sublime flor da Áurea da Ciência?
- Caríssimo irmão, - interveio Zaram – isso, para seu modo de pensar, a sua vida contemplativa, não
é mais do que um novo ensaio. Se for afável com seu neófito, e se sua natureza não for compatível, houver
um desengano nos primeiros degraus da senda, pode você restituí-lo ao mundo real, enquanto ainda é
tempo para que possa gozar a vida que reside nos sentidos e que conduz a tumba? Você vai rir, meu caro e
venerável irmão, quando ver que admoesto dessa maneira e falo com tão pouca esperança, eu que sempre
me neguei a iniciar outros em nossos mistérios, começo a compreender o porque. A grande lei que liga o
homem a sua espécie, mesmo quando procura apartá-lo mais da condição de que vivem os demais
homens, fez da sua vida impossível a ciência o elo o que une a sua raça, porque busca sempre convertidos
e discípulos, porque ao ver vida após vida apartar-se voluntariamente da nossa luminosa Ordem, ainda
aspira substituir os desaparecidos e a reparar as perdas, porque no meio de seus cálculos infatigáveis e
incessantes como as hordas da natureza te assusta a ideia de ver-se só. O mesmo se sucede a mim. Eu
também busco um igual, eu também temo me ver só. Amigo, está acontecendo em minha vida aquilo a

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que me advertiu em tempos remotos. O amor reduz todas as coisas a si mesmo, ou me verei obrigado a
descer a natureza da pessoa que amo, ou terei de levar a sua natureza à altura da minha?
- Como qualquer coisa que pertença à verdadeira arte, - prosseguiu Zaram - sempre necessariamente
teve atração para nós, cujo ser está no ideal de onde a arte descende. Assim, nessa bela criatura, descobri
enfim, o segredo que me une a ela, desde o momento em que a vi. Nela encontrei a voz da poesia. Essa
poesia deu colorido aos meus pensamentos, enchendo a minha alma.
- Desde que penetrei nos arcanos de nossa Ciência, - prosseguiu Zaram - nunca tentei empregar os
seus mistérios para objetivos indignos, ainda que a extensão da nossa existência nos prive de ter uma
família, uma pátria e um lar. Ainda que a lei que coloca toda a ciência e toda abstração das tumultuosas
paixões e a turbulência ambição da vida atual nos prive de influenciar no destino das nações, para que o
céu eleja agentes mais violentos. Sem embargos por onde eu tenha dirigido os meus passos sempre me
esforcei para socorrer os desvalidos e afastar o vício e os pecados da vida dessas pessoas. O meu poder
tem sido hostil somente aos malvados. E não obstante, apesar de toda a nossa ciência, só nos é permitido
sermos os instrumentos do poder do qual o nosso dimana. Como é reduzida a nossa sabedoria quase em
nada, comparada com Aquela que das convenientes virtudes à mais insignificante erva e povoar o mais
diminuto glóbulo com seus seres apropriado. E, ao passo que se nos permite exercer, às vezes, uma
influência sobre a felicidade dos outros, quão misteriosamente as sombras obscurecem o nosso próprio
destino. Não podemos profetizar o nosso próprio futuro. Com que trêmula esperança alimento a idéia de
que poderei conservar para a minha solidão a luz de um imperecedouro sorriso.
- Muitos bravos pereceram diante do espectro e no lugar onde ele habita. – interveio Senmuth - Sabe
muito bem que nada poderemos fazer para facilitar a jornada da pobre criatura, mesmo que tenha um
coração puro, pois essas pessoas caem mais facilmente mediante os horrores daquele lugar. E sabe muito
bem como será a vida dessa pessoa depois de ter fracassado na prova. Quantas mulheres se tornaram
nossas irmãs no decorrer desse tempo? Quantas, meu caro Zaram?
- Eu não a abandonarei em momento algum, caso ela falhe – falou Zaram - A mais, posso prepará-la
durante muito tempo a ponto de ela desejar a iniciação quando estiver devidamente preparada. Mesmo que
leve alguns anos, pois eu cuido dela para que tenha uma boa saúde, Tenho lhe ministrado uma porção para
retardar seu envelhecimento, mas não posso evitar que a natureza cumpra a sua parte levando-a ao tumulo
como uma pessoa qualquer.
Senmuth meneou a cabeça sem nada dizer. Caminharam por mais algum tempo em silêncio, até que
Senmuth se pronunciou:
- Aquele jovem me surpreendeu, saiu-se perfeito em todas as provas, mesmo na mais difícil que é a
da tentação. Quando passou por aquela prova com dignidade não tive a menor dúvida que saísse vencedor.
- Ele teve anos de preparo, meu velho amigo. – disse Zaram - A mais, não deixo de admitir que esse
sempre fora o seu desejo. Ilya esteve aqui por algumas semanas. Foi bom para Ludmila, ele falou a ela
sobre nossa irmandade de maneira que jamais eu conseguiria fazer pelo fato de ser o seu esposo. O que
quero dizer é que não terei dificuldade em despertar nela o desejo de querer conhecer esse caminho o qual
há muito tempo percorremos.
Já era hora de almoçar. Os dois místicos seguiram ruma a residência de Zaram. Mesmo àquela hora
do dia, o tempo continuava frio e úmido, e parecia que em nada afetava o mais velho.

Há tempo os homens da SD de Heydrich vinham observando cada movimento da mulher,


aguardando o momento certo para prendê-la. Heydrich era meticuloso. Não tinha pressa para pôr um plano
em prática, desde que não ameaçasse a segurança do Führer e do Reich, e o caso era estritamente pessoal.
Há seis meses vinha se remoendo pelo que tinha acontecido entre ele e Zaram, sem que tivesse feito
alguma coisa para punir a atitude ousada daquele homem que o humilhou, e daquele rosto belo que
despertou nele seu instinto de caçador da beleza do sexo feminino. Não havia motivo algum para prender
a mulher, mas nem precisava ter, porque ele era autoridade para fazer o que bem entendesse, com quem
quisesse, amparado pelas leis nazistas.

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- Que seja cumprido este mandado – ordenou Heydrich em seu jeito arrogante – Quero conhecer de
perto o poder daquele charlatão. Traga-a sem, contudo, molestá-la. Eu mesmo quero conquistá-la a minha
maneira. Encontre o momento certo para detê-la, jamais faça em sua residência e na presença daquele
individuo. Quero que ele venha ate aqui, compreenderam?
Mesmo sendo uma mulher moderna, ainda não tinha aprendido a dirigir automóveis. Talvez pela
comodidade de não ter que ficar concentrada à sua frente, principalmente, poder desfrutar do privilegio de
ter um motorista a sua disposição, pois não somente dirigia o automóvel como carregava as suas sacolas.
Isso a agradava, sentia-se filha da nobreza que a acompanhara desde a sua infância e Zaram propiciava
esse privilégio.
Saiu logo após o almoço, com a intenção de comprar algumas roupas para o amigo do marido,
criatura esquisita e que pouco se importava em vestir de maneira como faz qualquer outro homem. A
mais, dava-lhe arrepios de vê-lo vestido sem uma roupa que pudesse manter seu corpo aquecido.
Seu carro transitava vagarosamente enquanto ela olhava as vitrinas, quando foi fechado por um
carro militar que interpelou o seu carro, e dois homens armados desceram pedindo para que ela saísse e se
transferisse para o outro carro. Em seguida, um oficial apresentou um mandado.
- Ordem do Coronel Heydrich, madame. – disse um tenente de maneira cortês. – Por favor, entre no
carro. Nada de mal vai lhe acontecer.
Seu motorista, um homem alemão de meia idade, ficou paralisado e sem saber que atitude tomar.
Sua função era o de motorista sem qualquer responsabilidade sobre a segurança da patroa, se bem que de
nada adiantaria tentar defende-la ou protestar contra os interventores, pois se tratava de oficiais da SS e
ninguém em são juízo se voltaria contra eles por qualquer motivo que fosse.
Passado o susto da surpresa, Ludmila se recompôs e se manteve calma, sentada no banco traseiro ao
lado de seu motorista e o tenente SS que comandava a operação. Nem mesmo perguntou o porquê de a
estarem prendendo, pois sabia que aqueles homens cumpriam ordem e nada esclareceriam.
Os dois místicos tomavam chá, sentados na fria varanda da casa, que apesar da baixa temperatura da
estação, não deixava de ser um lugar agradável com uma vista privilegiada da cidade não muito distante e
o que ainda sobrava do verde das árvores, quando de repente Zaram teve uma estranha sensação, o que
não passou despercebido pelo seu amigo.
- Deixa que resolvo esse incidente – disse Senmuth como quem já sabia o que tinha ocorrido e que
levou Zaram a ter aquela sensação estranha.
- Melhor que não se envolva diretamente, - prosseguiu Senmuth - embora seja você quem ele
deseja. Ludmila foi apenas um pretexto para leva-lo a sua presença. Nada há o que temer. Vou lá e não
devo demorar.
Não havia passado uma hora desde o momento da abordagem à mulher quando aquele homem de
tez cor de cobre, vestindo apenas um terno meio surrado, parou diante de um soldado que fazia guarda na
frente da sede da SS, e perguntou por Heydrich. O soldado, tomado por uma força desconhecida que inibia
a sua vontade de reação, se limitou a mostrar o caminho, obedecendo automaticamente a ordem daquele
estranho. Senmuth, sem qualquer rodeio, foi invadindo a sala de Heydrich que se surpreendeu com a
inesperada chegada daquele homem estranho. Ludmila se encontrava sentada junto de seu motorista num
canto da sala, Se surpreendeu com a inesperada chegada de Senmuth. Em seguida, dois soldados entraram
na sala para interpelar o invasor que entrou sem mesmo ser autorizado. Mas pararam sem esboçar reação
alguma ao se depararem com aquele homem de estatura alta que apenas os olhou. Em seguida Senmuth se
dirigiu a Heydrich que estava em pé atrás de sua mesa ainda surpreso pela inesperada visita.
- Vim buscar a mulher, Herr Coronel, e não tenho tempo para dar e nem ouvir justificativas – disse
educadamente, mas com autoridade ao estupefato Heydrich.
- Quem é você, e onde está o marido dessa mulher, o Conde Zaram? – retrucou Heydrich.
- Sou alguém que veio resgatar a mulher. – prosseguiu o místico - Melhor que eu faça isso do que o
esposo dela, porque ao prendê-la você atraiu sobre si um grande perigo, porque correu o risco de Zaram
ter vindo buscá-la.

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- Outro charlatão que ousa vir aqui em meu gabinete me ameaçar? Guardas – gritou aos dois
soldados que ainda permaneciam na sala – prendam esse homem imediatamente.
Mas, novamente, como que hipnotizados, os dois soldados pararam às costas do místico e ali
permaneceram sem mexer um dedo sequer.
- Repito, me entregue espontaneamente essa mulher antes que o mal recaia sobre você e sua família.
Heydrich não contestou, permitindo que a mulher fosse liberta. Sentiu-se dominado por uma força
estranha que gelava a sua alma e o enchia de terror. Sentiu a sensação de medo, algo que jamais ocorreu
em seu destemido modo de viver. Por um momento chegou a se arrepender de ter se envolvido com aquela
gente estranha.
- E advirto-o que sua carreira de maldades terá um fim muito doloroso. Vai agonizar muito antes de
dar o último suspiro. É o karma contraído pela sua vida de crueldades sobre inocentes. Assim como cairá
esse reinado do mal e todos os seus lideres.
Senmuth, a mulher e o motorista saíram daquele lugar, deixando Heydrich e seus homens
estupefatos.
No dia seguinte Reinhard Heydrich pediu para ser transferida a Berlim.

DEZOITO
BERLIM, 1936
Zaram e Ludmila retornaram ao hotel na região central de Berlim, após terem assistido a final da
competição de atletismo no suntuoso estádio construído exclusivamente para essa finalidade. Gostava de
competições esportivas, estava admirado com a evolução dos atletas e maravilhado com o desempenho
dos quatro negros norte-americanos, ganhadores da medalha de ouro. Também não podia deixar de
admitir a excelente organização dos nazistas. Tudo transcorreu na mais perfeita ordem, como era tudo na
Alemanha. Seria o melhor país para viver, não fosse o sistema político, essa ditadura criminosa que
perseguia inocentes, e a segregação ao povo judeu sob a regência de Adolf Hitler, cercado por um bando
de facínoras.
Tinha pedido para que servisse o jantar em seus aposentos, uma luxuosa suíte digna de um monarca.
Uma das características de Zaram era o luxo que seu dinheiro podia pagar. Achava pura demagogia viver
feito um monge com voto de pobreza, quando podia pagar pela sua maneira de viver. Mal tinha se
acomodado, quando chegou um mensageiro vestindo uniforme negro da SS. Era um jovem de não mais do
que 22 anos, arrogante e empertigado como eram os SS. Fez a saudação nazista batendo os calcanhares.
- Herr Conde Zaram, - disse em voz firme e autoritária. – Tenho a honra de ter a incumbência de
entregar-lhe esse convite da parte do Führer.
Em seguida entregou o convite em mãos ao místico, fez novamente a saudação nazista, deu meia
volta e saiu. Zaram abriu o convite, leu e esboçou um sorriso de deboche, sob o olhar curioso de Ludmila.
- Um convite para jantar na casa do próprio Adolf Hitler – murmurou Zaram ainda com o sorriso de
deboche estampado em seu rosto.
- O que quer de nós, e como sabe que estamos aqui? – interveio receosa.
- Eles sabem da vida de todo mundo, minha querida. Mas se trata apenas de um convite para jantar,
não há o que temer, e mesmo que fosse uma notificação, também não tem a menor necessidade de sentir
medo.
- Vai aceitar o convite desse homem? – perguntou Ludmila.
- Perder a oportunidade de estar entre a cúpula do nazismo? – respondeu - Certamente estarão
presente Himmler, Goebbels e mais alguns ilustres nazistas.
- Dizem que sua mulher é muito simpática e divertida, e que nada tem a ver com os ditames do
nazismo. – falou Ludmila.
- Terá a oportunidade de saber se ela é o que dizem.
.
No dia marcado, Zaram e Ludmila foram ao jantar no apartamento do Führer do povo alemão. Era
um belo e luxuoso apartamento nas imediações de Berlim, um edifício em estilo neoclássico como os

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outros naquele requintado bairro. Desceu de seu carro com a esposa, sendo recepcionado por um porteiro
que o recebeu com os melhores modos que alguém pertencente a nobreza poderia ser recebido. Foram
conduzidos até um elevador e depois levados até o apartamento onde residia o homem mais importante da
Alemanha. Na entrada foram recepcionados por um mordomo que se incumbiu de levá-los ate a presença
do anfitrião junto de sua bela e jovem mulher. Depois foram apresentados aos demais convidados, altos
figurões do nazismo, dentre eles Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda, Joachim von Ribbentrop,
Ministro do Exterior, Rudolph Hess, secretario particular de Adolf Hitler, Hermann Goring, Ministro da
Aviação, Wilhelm Canaris, o chefe da espionagem alemã e algumas altas patentes militares. Um grupo
pequeno e seleto.
Eva Braum, mulher de Hitler, cuidou de apresentar Ludmila às demais damas, esposas dos figurões.
Formaram um grupo a parte num canto do elegante apartamento em suas conversas que não tinha assunto
militares como tema, tampouco política, ao passo que entre os homens o assunto em pauta era sobre as
tendências políticas nos países da Europa, a importância da diplomacia para que a paz fosse mantida, o
que começava a enojar Zaram porque via claramente a verdadeira intenção de Hitler com sua política de
expansionismo, apoiada pelos seus comandados. Hitler expunha suas ideias e ocasionalmente soltava uma
estridente gargalhada seguida pelos demais presentes, enquanto bebiam seus aperitivos. Hitler era
abstêmio, mas não se importava que seus convidados bebessem. Zaram notou que o Almirante Canaris
não se empolgava com aquela conversa enfadonha. Sentiu interesse em conhecer melhor aquele homem
que, em seu íntimo achou que não fazia parte daquela corja de criminosos;
- Se me permite, Senhor Almirante, - Zaram disse polidamente ao militar – pelo que me consta, suas
origens são gregas?
- Certamente, Senhor Zaram – respondeu Canaris numa clara demonstração de que já sabia a seu
respeito – Um pouco grego e um pouco alemão. Acaso, tem interesse em negociar com aquele país?
- Tenho uma propriedade em uma das ilhas onde, às vezes, faço do lugar a minha residência por
uma temporada. Mas diga-me, Senhor Almirante, - Zaram falou baixo de modo que ninguém ao redor
ouvisse a conversa – sei que não se simpatize com esse regime nazista, estou certo?
Canaris, homem frio acostumado as mais diversas situações, empalideceu mediante o que acabara
de ouvir, intrigado querendo saber de onde aquele homem havia obtido tal informação, se ele não
compartilhava com ninguém sua aversão ao nazismo e aos seus lideres. Uma idéia que somente a ele
pertencia, e mesmo com sua intrepidez temia compartilhar com quem quer que fosse ou mesmo procurar
alguém que pensasse como ele. Canaris era um homem calmo, aparência tranqüila, de estatura baixa a
quem jamais se podia imaginar que era portador de uma inteligência acima de outros homens. Frio, capaz
de matar quem quer que fosse para conseguir seu intento. Zaram sabia dos seus feitos passados, dos
homens que assassinou na America do Sul para fugir de uma prisão e poder retornar a Alemanha. Canaris
chegou a falsificar um passaporte, se passando por argentino, para conseguir um empréstimo em dinheiro
junto ao embaixador daquele país, alegando que precisava chegar à Holanda para receber uma herança. E
esse homem com essa ficha manchada de sangue despertou interesse em Zaram porque sentia que ele
poderia ser-lhe útil num futuro não distante.
- Mas não precisa responder nada agora, mesmo porque este não é o lugar adequado para falar sobre
este assunto. – prosseguiu o místico – Mas sei que a senhora Canaris é uma eximia violinista, e que
costuma reunir alguns talentos para duetos ou um quarteto de câmara, e dentre seus convidados o talentoso
Coronel Heydrich. Minha mulher é pianista, e gostaria de nos reunirmos numas dessas noites, enquanto
permaneço em Berlim.
- Será um imenso prazer, Senhor. Zaram – respondeu o Almirante – principalmente para
continuarmos a nossa conversa.
Foram chamados à mesa, o jantar começava a ser servido.
Zaram, apesar de ver o Ditador Nazista como o flagelo da humanidade, não podia deixar de admitir
que ele era um bom anfitrião. Curiosamente Adolf Hitler era vegetariano e abstêmio, o contrário de suas
principais cabeças. Os garçons começaram a servir aos convidados com as iguarias prepararas por
renomados chefs com o melhor da cozinha francesa em voga, iguarias raramente vistas em sofisticadas

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mesas, assim como o bom gosto pelos vinhos das melhores safras, e os champanhes. Os presentes se
comportavam feitos verdadeiros aristocratas em suas maneiras elegantes e corretas de se comportarem
naquela requintada mesa.
Findo o jantar todos passaram para outro ambiente, propício para o digestivo e troca de conversas.
Detentor de um bom nível cultural, apesar de não ter passado dos graus básicos nas escolas que
frequentou, Hitler era a atração da festa, além do magnetismo que exercia sobre os convidados.
Zaram se postou próximo a ele, e não demorou em que despertasse a atenção do líder nazista,
tornando-se o alvo das atenções pelo próprio Adolf Hitler, que tinha informações importantes sobre ele,
principalmente sua misteriosa vida e sua fortuna.
- Nos sentimos orgulhosos por ter o nobre Conde Zaram como nosso hóspede, principalmente num
período de ascensão da nação germânica. – disse o Ditador Nazista sob os olhares de seus comandados
dispostos a acatar tudo que fosse proferido da boca de seu líder.
- Permita-me, Herr Hitler, - interveio educadamente Zaram – primeiramente queria dizer que esta
não é a primeira vez que nos defrontamos. Tivemos nosso primeiro encontro em Viena, pode se lembrar?
Adolf Hitler ficou abismado com tamanha petulância. Lembrou-se de imediato daquele homem que
o fez sentir-se humilhado, num momento em que ele mendigava por uns trocados. Jamais poderia se
esquecer daqueles momentos difíceis, quando teve que mendigar para sobreviver, quando lutava pela
nação germânica. O homem não havia envelhecido um dia sequer, o mesmo rosto que irradiava vida e
juventude.
- Não me lembro do senhor, Conde Zaram – mentiu o ditador – não nego que antes de vir para a
Alemanha, fiz meu trabalho pela Áustria, e ate acredito que nos tenhamos deparado. Mas esse assunto não
leva a nada. Diga-me, cavalheiro, o que pretende em terras germânicas? Como pode perceber, vivemos um
período de ascensão, nossa economia está estabilizada, não há desemprego em solo germânico. Pretende
investir em nosso país?
- Sou um empresário no ramo de transporte marítimo. Tenho sim grande interesse em investir em
terras germânicas, Herr Hitler.
Enquanto conversavam, Zaram notou certa inquietação no líder nazista que apertava a mão sobre a
região do estomago e contorcendo ligeiramente a face. Para a surpresa do próprio Adolf Hitler, Zaram
tirou do bolso um pequeno frasco contendo um líquido escuro e pediu para que ele ingerisse. Em princípio
ele hesitou por questão de segurança, mas logo se sentiu ridículo por achar que poderia ser um atentado.
Concluiu que não havia motivo para isso porque estava fazendo muito pela Alemanha e o povo era grato a
ele.
- Isso vai aliviar esse incômodo, Herr Hitler. Eu mesmo preparei; - disse o místico.
Hitler esboçou um sorriso e pegou o frasco das mãos dele, pedindo a um criado que arranjasse um
copo com agua, e depois bebeu.
- Têm problemas gástricos, Herr Zaram? – Hitler perguntou ao místico.
- Não. Eu trouxe porque sabia que ia precisar. – respondeu para espanto de Hitler.
- Ah, o senhor prevê acontecimentos, faz porções milagrosas, tem poderes que o homem comum
não possui. – Darré disse com certa ironia.
A essa altura as atenções se voltavam para a conversa entre eles.
- Perdoe-me, senhor Zaram, - interveio um dos convidados – mas fale-nos sobre essa sociedade
secreta a qual o senhor pertence.
O próprio Adolf Hitler, aparentemente aliviado do incomodo se surpreendeu com a sugestão do
oficial, demonstrando certo interesse no que seria respondido pelo místico. Desde que havia chegado a
Munique Zaram era vigiado passo a passo, de modo que não era de se estranhar que soubessem que ele
tinha alguma coisa que diferenciava dos homens comuns, não obstante o que houve entre ele e Heydrich.
- Trata-se de uma Irmandade que remonta do antigo Egito. Uma Ordem voltada ao estudo da
natureza, visando o aprimoramento do homem sem interferir na política e sem interferir no andamento do
que ocorre entre nações.

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- Tem alguma ligação com a Maçonaria, aquela instituição formada por judeus e dominam a
economia mundial? – perguntou Hitler.
- Não tem. – respondeu Zaram olhando firmemente nos olhos do Führer do povo alemão, deixando
claro que não tinha recebido a sua pergunta de bom grado, a maneira que ele tinha se referido a tão
Augusta e respeitável Ordem. – A Maçonaria e uma Ordem pela qual devoto grande respeito pelo trabalho
altruísta a qual se dedica. Minha Irmandade, ao contrário da maçonaria, tem como objetivo pesquisar a
natureza, aprimorar o homem, buscar curas para os males que assola a humanidade e promover a paz entre
os homens.
- Aqui na Alemanha tem algum templo da sua sociedade, um lugar onde vocês se reúnem? –
perguntou Goebbels.
- Não. Não temos templos. Nesse mundo terreno somos apenas três membros. – respondeu
- Três? Como sobrevive uma irmandade com somente três membros? – ironizou um dos presentes,
sob o olhar atendo de Hitler.
- Nossa Ordem não é desse mundo – respondeu Zaram. Nós elevamos as nossas mentes a um plano,
um plano superior...
- E invocam espíritos? – interveio Darre, até aquele momento se prestando a ouvir as explanações
do místico. - A propósito, conhece a seita Thule?
- Sim. – respondeu Zaram – que segundo a lenda, remonta dos astros celestes que serviam de
moradias aos deuses nórdicos, e esses deuses criaram os arianos. Mas, na verdade, tudo começou de meras
suposições baseadas num romance escrito por Edward B. Lyton, escritor inglês no final do século XIX,
quando escreveu o livro O Poder da Raça do Futuro, um romance que fala de alienígenas habitando no
centro da terra que queriam se livrar da raça humana, e o senhor Darré adaptou essa história a seus
propósitos e escreveu seu livro sobre raça superior, estou certo, Herr Darré? – Zaram disse olhando
firmemente nos olhos de Darré postado ao lado de seu Führer.
Um clima de tensão pairou no ar, quebrado logo em seguida pelo próprio Adolf Hitler que queria
explorar mais sobre a Irmandade da qual Zaram fazia parte.
- Pelo que vejo o senhor é detentor de conhecimentos ignorados pelo homem comum, além de um
exímio farmacêutico, pois devo agradecê-lo pelo remédio. Estou me sentindo ótimo, Conde Zaram. Mas
nada sei sobre a Irmandade a qual pertence, mas percebo que propicia sabedoria e conhecimentos, além de
certos poderes, pelo menos é o que falam sobre o senhor. – disse Adolf Hitler.
- O povo fala aquilo que lhe convém, mesmo que seja para denegrir a imagem de alguém de quem
nada sabem a seu respeito. – interveio Zaram – Nem sempre se deve dar ouvido ao que dizem.
- Concordo plenamente, senhor Zaram. Mas, por favor, pode dizer mais acerca de seus mistérios,
sobre essa Ordem da qual é membro? – insistiu Hitler.
Zaram fez uma pausa para refletir sobre o que desejava saber o líder alemão. Não tinha dúvidas de
que ele, como qualquer dos seus homens, estava longe de ser digno aos primeiros graus da Ordem, ou
receber os ensinamentos básicos, porque nesse tempo em que morava na Alemanha já tinha percebido
quais eram as verdadeiras intenções do líder nazista nessa quase uma década que se encontrava no poder
da nação germânica, o desapego a humanidade, a sede de expansionismo territorial, sua megalomania e
seus instintos nitidamente psicóticos sobre seus semelhantes, e sua demência ideológica.
- A porta está aberta a qualquer ser humano que busca o verdadeiro Saber. – respondeu Zaram. –
Porém, somente aqueles imbuídos de verdadeiro altruísmo, amor pela humanidade, força de vontade e
intrepidez conseguem alcançar os altos graus. Não é um clube social ou uma reunião de homens que
comungam do mesmo ideal a fim de obter vantagem à si próprio.
- Caso eu deseje ser um membro, quer dizer que posso ser aceito, Conde Zaram? – perguntou Darré.
– Meu pedido deverá ser analisado por uma comissão de membros que analisarão meu...
- Já disse que somos apenas três membros nesse mundo. – interrompeu Zaram. – Mas não acredito
que consiga passar nas primeiras provas. É evidente que não posso impedir que obtenha os primeiros
conhecimentos, que eu mesmo poderia me encarregar de ministrá-los.
- Acaso está nos subjugando, Conde Zaram? – Interveio Hitler.

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- O senhor tem objetivos nada compatíveis com os princípios da ordem a qual pertenço, Herr Hitler.
Nossos objetivos são voltados para o bem e união da humanidade, e não a segregação.
- Quer melhor objetivo do que purificar uma raça que representa a imagem de Deus? – disse meio
impaciente Adolf Hitler.
- Saiba que não concordo com seus objetivos, senhor Hitler. –Zaram disse para espanto daquela
plateia e do próprio Adolf Hitler. - Não acho justo discriminar pessoas pela sua etnia ou religião. Isso vai
contra os meus princípios. Até me admiro em ser recebido entre esses homens que se dizem autênticos
arianos.
- Que atrevimento, senhor Zaram. – interveio o próprio Hitler – Como ousa falar assim e discordar
das meditas tomadas por mim para o beneficio da Alemanha?
- Pois saiba que sou um homem livre para dizer o que penso a quem quer que seja. – disse o místico
- Jamais faltaria com o respeito a qualquer cidadão, mas quero lembrá-lo que estamos numa conversa onde
todos têm o direito de falar o que pensa, seja concordando ou discordando. A mais, Senhor Hitler, não sou
cidadão deste país, e sei que me toleram porque tenho investimentos por aqui, pois longe estou de parecer
com esses que o senhor chama de raça pura.
- Quem é contra o Partido Nazista é contra o Führer do povo alemão. – disse Hitler esbravejando
histericamente, completamente transtornado falando de modo que demonstrava debilidade mental. Não era
mais aquele amável anfitrião ainda há pouco um bom ouvinte e falador.
- O senhor é deveras ousado, senhor Zaram. – interveio von Ribbentrop – Ainda não se deu conta de
que se encontra diante do homem mais poderoso da Alemanha?
- Perante os céus nenhum homem é superior ao outro, caro ministro.
E dizendo isso se voltou para onde se encontrava Ludmila e as outras mulheres, e a chamou para
que fossem embora.
- Desculpe Herr Hitler. Quero agradecê-lo pelo convite e pelo jantar, por sinal excelente, mas nada
mais tenho a fazer aqui. Tenho certeza que ainda nos encontraremos em outra circunstância, e até lá o
aconselho a não fazer o que tem em mente, nem o senhor e nem os seus comandados, pois caso contrário
acarretará para si coisas muito ruins que culminará com seu fim e do seu império.
E dizendo isso, pegou sua mulher e se retirou, para a surpresa e espanto de todos os presentes
boquiabertos pela ousadia e coragem do nobre Conde Zaram, capaz de enfrentar o Führer dentro de sua
própria casa, e seus ministros e comandantes das forças nazistas.
Mal tinha passado pela porta de saída do apartamento quando Hitler ordenou para que fossem atrás
dele e o trouxessem de volta, porque havia ofendido o Ditador alemão, e precisava ser punido por isso. Em
menos de três minutos os dois SS encarregado da segurança retornaram boquiabertos, dizendo que o casal
nem mesmo tinha usado os elevadores, como também não passaram pela portaria. Simplesmente
desapareceu.

Uma semana depois do ocorrido no apartamento de Adolf Hitler, ainda hospedado em Berlim,
Zaram recebeu um novo convite, desta feita para uma reunião na residência do Almirante Wilhelm
Canaris. Ludmila, temerosa, hesitou antes de aceitar o convite, mas mudou de ideia ao lembrar-se de Eva
Braum. Por ocasião do jantar na casa do ditador nazista, teve bons momentos ao lado de Eva Braum, que
lhe causou boa impressão; simpática, boa anfitriã. Havia conversado bastante, ela falou da sua vida junto
do homem mais importante na Alemanha, a sua luta por um ideal, que era restituir o status perdido pelo
desonroso Tratado de Versalhes. Ela percebeu certa ingenuidade na jovem Eva Braum, mas não
desmerecia a boa impressão que tivera. Falou dos problemas de saúde do marido, as crises gástricas, seu
temperamento, que ela compreendia porque ele tinha uma missão muito importante para a nação
germânica. Ate achava que ele não era um homem mau. Se às vezes tomava medidas drásticas era porque
se sentia pressionado pelos seus comandados.
- Ele é a encarnação do mau, o flagelo da humanidade. – Zaram alertou a mulher - Porque acha que
aceitei o convite para jantar em sua residência? Eu queria constatar tudo àquilo que já há algum tempo
havia previsto, desde o primeiro encontro que tive com ele em Viena. Percebi nele seu caráter maldoso,

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sua sede pelo poder, mesmo que tenha que passar por cima de cadáveres de gente inocente. E o pior disso
tudo é que nada posso fazer para detê-lo, um karma que tantos os judeus quanto ciganos, protestantes,
quem tem preferência por pessoas do mesmo sexo, sofrerão amargamente enquanto esse sujeito existir.
Mas também prevejo o fim de seu reinado ainda na metade da década seguinte.
- Querido, quando fala dessa maneira sobre o futuro, fico meio assustada. – interveio a mulher – De
onde tira essas coisas, esse seu mistério me intriga.
- Se apronte que nosso anfitrião está nos esperando. – respondeu Zaram indiferente ao que a mulher
acabara de dizer.
Quando chegaram à residência de Canaris, se depararam com Reinhard Heydrich e sua esposa Lina,
que ao ver Zaram e Ludmila os cumprimentou como se nada tivesse acontecido entre eles. Educadamente
Zaram fez o mesmo, mas Ludmila ficou apreensiva, até que Frau*(*Senhora) Canaris foi ao seu encontro
pegando-a pelo braço e a levando para junto de outras mulheres. Por ocasião do jantar na casa do ditador
alemão haviam conversado bastante. Falaram sobre música, os grandes mestres, seus autores prediletos.
Ludmila perguntou por Eva Braum, e Frau Canaris disse que ela não viria devido aos inúmeros
compromissos do marido, e ela não saia de casa sem ele.
O que se seguiu foi uma brilhante apresentação de três talentos da música erudita, com a Condessa
Ludmila ao piano e Frau Canaris no violino em dueto com o Tenente-Coronel SS Reinhard Heydrich.
Durante a apresentação do trio, Zaram e o Almirante Canaris conversaram num outro ambiente da
residência, falando sobre um assunto que somente a eles interessava.
- Sei que não se simpatiza com as ideias de Hitler, caro Almirante. – disse Zaram sem rodeios,
porque falar assim sobre o Führer do povo alemão era o mesmo que assinar sua sentença de morte. –
Muitas coisas ruins ainda virão partindo daquele homem. Ela vai acabar levando a Alemanha à guerra,
- Nunca acreditei nele – disse Canaris – Está rodeado de homens dementes, fanáticos que vêem nele
o salvador da Alemanha. Não nego que sua política econômica seja correta. Há poucos anos passados
vivíamos a beira da miséria e suas medidas econômicas salvaram a Alemanha da bancarrota. Mas ele tem
outras intenções, não somente recuperar os territórios perdidos por Versalhes, mas conquistar novos
territórios para o Reich, um verdadeiro delírio expansionista.
- Sou o Chefe do Serviço Secreto, - prosseguiu Canaris – sirvo ao meu país, mas com esse homem
no poder não consigo ver futuro nisso tudo.
- Mas, senhor Zaram, - continuou – na verdade gostaria que falasse sobre seu passado, pois em
minhas investigações a seu respeito me deparei com um passado nada convencional. Não quis falar sobre
isso naquele nosso primeiro encontro, mas despertou-me curiosidade ao conhecê-lo porque, segundo me
costa, sua idade é superior a 50 anos? Mas isso não é tudo, pois em conversa com um cidadão alemão com
82 anos de idade, disse-me tê-lo visto quando ele ainda era adolescente. Mas o que verdadeiramente quero
dizer é que a cúpula do nazismo pretende que o senhor revele esse segredo do prolongamento da vida,
para que os lideres possam desfrutar desse privilégio para dominar o mundo e criar uma super raça de
arianos. Esse é um dos motivos porque não lhe botaram a mão depois daquele jantar.
Zaram esboçou um sorrido e disse:
- Isso não me preocupa, caro Almirante. E sobre a irmandade da qual faço parte, jamais qualquer
um deles chegará sequer no inicio da trilha que leva aos grandes segredos, dentre esses a longevidade da
vida, tampouco temo esses nazistas.
- Fala com tamanha segurança e convicção que me surpreende, senhor Zaram. Fico imaginando
como seria o mundo se homens como Hitler e os que o cercam tivessem acesso a segredos que pudessem
lhes conferir poderes. Mesmo eu não me sinto digno de usufruir qualquer poder incomum aos homens.
Sou um espião, um tipo impiedoso que não mede consequências para conseguir seu intento, mesmo que
tenha que matar e torturar inocentes, compreende?
- Se não tivesse percebido alguma coisa boa em seu caráter não estaríamos aqui conversando, caro
Almirante. Tem que haver homens como o senhor porque o mundo necessita de espiões para fazer o
serviço sujo, como também de soldados para matar, jogar bombas nas cabeças de inocentes.

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Zaram interrompeu a fala por alguns instantes como que buscando alguma coisa mais adiante. Seu
semblante mudou completamente, demonstrando sabedoria e de quem consegue deixar temporariamente
este mundo. Canaris permaneceu olhando para seu rosto aguardando o que viria depois. Zaram, como se
tivesse retornado de um transe se manifestou:
- Haverá uma guerra que envolverá muitas nações, principalmente na Europa; Você será muito
importante para os desígnios da espionagem.
Calou-se novamente por um curto período de tempo, e depois prosseguiu:
- Caro Almirante, num futuro breve precisarei de um favor. Gostaria de poder contar com o senhor.
- Tem a minha palavra, Conde Zaram, que estarei sempre a sua disposição.
- Também quero adverti-lo para que jamais participe de qualquer atentado contra Adolf Hitler,
porque nenhum dará certo. Haverá outros atentados contra ele que também fracassarão, mas por outro lado
fará com que o povo desperte e comece a se voltar contra ele. Hitler morrerá no tempo certo sem que
possa desfrutar de qualquer vitória.
Ainda antes de deixar a residência do Almirante Canaris, Zaram teve tempo para assistir parte de
uma sinfonia executada pelo trio. Admirou o grande talento de Heydrich e lamentou que ele tivesse um
caráter tão malévolo e egoísta. Deixou a casa do Almirante sem que tivesse qualquer desavença com
Heydrich.

DEZENOVE
PARIS – 1937
Herchell Grynspan se encontrava em um café numa elegante rua de Paris, quando notou aquela
bela jovem que sentou numa mesa ao lado. Estava só e parecia angustiada. Grynspan, notando a situação
da garota, dirigiu-lhe a palavra oferecendo o seu apreço.
- Desculpe-me, mas está com algum problema? – perguntou polidamente.
- Não! Não! Está tudo bem. É a saudade dos meus familiares. – ela disse num francês carregado e
forçando um sorriso como quem deseja ocultar alguma coisa e parecer simpática.
- Você é francesa? –perguntou não somente para saber sua origem, mas para evitar que ela
começasse a falar de seus problemas e voltasse a se sentir mal.
- Polonesa.
- Que coincidência! – disse em sua língua natal. – Também sou polonês. O que faz uma garota
polonesa sozinha numa cidade como Paris?
- Não estou só. – disse esboçando um sorriso. – Moro com parentes, vim para estudar, meio a
contragosto de meus pais.
Herchell Grynspan, educadamente, se ofereceu para sentar a sua mesa. Ela não fez objeção. Dali em
diante houve novos encontros, passearam pelas margens do Rio Sena, falavam de suas terras, do medo que
sentiam do domínio nazista estender suas fronteiras até a Polônia. Foi numa dessas conversas que a moça
se derramou em prantos ao ser mencionado o seu país.
- O que você tem? – ele perguntou surpreso. – Alguma coisa com a Polônia?
- Na verdade, - respondeu ela. – não é a Polônia. É com a Alemanha. Meus pais viviam em Berlim
até que surgiu um decreto que expulsava sumariamente todos os judeus poloneses do país. Mas o pior de
tudo é que o governo polonês se recusou a aceitá-los de volta.
Herchell Grynspan parou atônito lembrando que seus pais viviam em Berlim. Até então o que sabia
era que, apesar das perseguições aos judeus, eles viviam bem porque tinham dinheiro, o que
provavelmente evitaria que fossem molestados por medidas arbitrárias. Mas a notícia o alarmou.
- Somos judeus! – disse a garota aparentando estar receosa como quem espera o pior da parte do
rapaz. – Isso tem nos prejudicado muito. Só espero que você não seja antissemita.
- Também sou judeu. - ele falou. – Também tenho família na Alemanha, em Berlim. Como soube
desses acontecimentos?

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- Através de amigos que se arriscaram escrevendo e relatando tudo. – disse soluçando. – Meu temor
é que possam ser enviados aos campos de concentração. Dizem que esses campos são desumanos,
horríveis, que eles fazem cada coisa…
Grynspan, mais que depressa procurou entrar em contato com seus pais. Não conseguindo procurou
falar com conhecidos que informaram que seus pais tinham sido deportados para a Polônia, e que
provavelmente estavam na Terra de Ninguém, o espaço entre os dois países. Também informaram que
havia em Paris um funcionário da Embaixada Alemã de nome Ernest von Rath, encarregado de relacionar
todos os poloneses judeus que vivem na França, visando extraditá-los para a Alemanha para serem
enviados as campos de concentração.
- Absurdo! – protestou Grynspan. – Temos que nos organizar para combater essas arbitrariedades.
- Já existem organizações judaicas destinadas a defenderem nossos interesses. – informou a garota.
- Mas onde estão?
- Grynspan, meu querido amigo, - disse num tom de voz que demonstrava força e determinação,
nem parecendo àquela garota frágil e sentimental que chorava pelos seus familiares. – sou membro de uma
organização judaica que tem como finalidade assassinar líderes nazistas pelos países estrangeiros.
Grynspan ficou estático com a declaração da moça. Depois, refeito da surpresa, se mostrou
interessado no assunto pedindo para que ela falasse mais a respeito.
- Mas sugiro que não se envolva, pois temos como missão assassinar pessoas.
- Querida, por que acha que estou aqui na França? Matei um maldito nazista na Alemanha, fiz
justiça com minhas próprias mãos porque sabia o que aquele porco nazista, apesar do que tinha feito,
ficaria impune porque fez contra um cidadão judeu. Não me importaria de matar mais nazistas por uma
boa causa. Por isso gostaria de fazer parte dessa organização.
A garota se manteve calada por alguns instantes, e depois perguntou:
- Posso confiar em você?
- Sou judeu e tenho família na Alemanha. É meu dever, como judeu, lutar pelo meu povo.
- Vou apresentá-lo ao movimento, quer?
- É o que mais desejo nesse momento.
- Então esqueça sua família, ao menos por enquanto. Só resta pedir a Deus para que tenha piedade
deles. Aquele demônio do Himmler e seu pupilo Heydrich, enquanto viverem o povo judeu não terá paz.
Temos planos para assassiná-los e também aquela língua ferina do Ministro da Propaganda e o louco
desvairado do Hitler. Tudo em seu devido tempo.
Herchell Grynspan foi à reunião. Era um pequeno grupo de pouco mais de uma dúzia de pessoas
dizendo-se judeus, e parte de uma organização com ramificações por toda a Europa destinada a acabar
com o nazismo. Antes da reunião ele passou por uma rigorosa entrevista feita por um homem gordo de
origem russa, que era um dos chefes da organização. Depois foi convidado a participar da reunião, onde
acabaram por decidir que Ernest von Rath deveria ser assassinado, e a garota amiga de Herchell Grynspan
foi escolhida para executá-lo.
Herchell achou pura precipitação. Conhecia a garota, mas não tinha certeza se ela era a pessoa
indicada para cometer um assassinato a sangue frio. Mesmo não se tratando de nenhuma grande
personalidade, atirar em alguém não era tão simples como eles achavam.
- Já atirou em alguém? – perguntou à moça demonstrando preocupação. – É diferente de plantar
uma bomba ou mesmo jogar uma granada. Você vê os olhos arregalados do inimigo te olhando apavorado
por ver-se diante da morte. Por isso é necessária uma frieza, poder de decisão e grande dose de coragem.
- Não! – ela respondeu depois de alguns segundos, como se estivesse pensando em como seria matar
alguém. – Fiz treinamento em alvos de madeira.
- Você não tem idéia do que é atirar numa pessoa. Matei porque tive meus motivos, mas atirar
friamente em alguém que nunca viu antes é diferente. Eu matei um desses arruaceiros que gostam de
humilhar judeus em público. Fui interferir e o sujeito avançou sobre mim. Não pensei duas vezes. Eu
portava uma pistola, saquei e atirei no sujeito que caiu na minha frente me olhando com os olhos

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arregalados. Não me arrependi. Um nazista a menos. Mas posso te garantir que não é tão simples como,
talvez, possa parecer. Você acha que será capaz de fazê-lo?
- O quê?
- Atirar em alguém a sangue frio.
- Tem que haver a primeira vez. – disse a garota.
- Deixe que eu o faça. Ninguém na organização precisa saber, desde que a missão seja cumprida.
Alguns dias depois Herchell Grynspan foi à Embaixada da Alemanha procurando por von Rath.
Havia decidido colocar em prática o atentado em plena embaixada para chamar a atenção do mundo,
mesmo correndo o risco de ser preso, na esperança de que em breve seria libertado.
Quando Ernest von Rath levantou para estender a mão e cumprimentar o visitante, recebeu uma
descarga de três tiros no peito caindo sobre sua mesa cheia de papeis. Herchell Grynspan não chegou nem
mesmo a deixar a sala da vítima. Foi detido e encaminhado à central de polícia francesa onde confessou o
crime e declarou ser integrante de uma organização judaica destinada a assassinar líderes nazistas visando
acabar com o fascismo e a perseguição ao povo judeu na Alemanha.
Algumas semanas depois ele foi extraditado para a Alemanha e encaminhado à sede da Gestapo.
Ninguém veio ao seu socorro. A suposta organização antinazista nunca existiu.

Os motivos para iniciar a nova onda de perseguição aos judeus estavam formados. Joseph Goebbels
procurou fazer o maior estardalhaço sobre a morte de von Rath, falando à imprensa mundial sobre a tal
organização voltada para assassinar lideres nazistas, justificando pelas perseguições aos judeus
criminosos. Heinrich Himmler despachou um telegrama a todos os postos de comando da Gestapo por
toda a Alemanha e Áustria.
Dentro de poucas horas deve começar a operação contra os judeus e contra as Sinagogas. Nada
deve interferir nessa investida. Arquivos e propriedades devem ser protegidos e mais tarde serão
examinadas e confiscadas pelo pessoal da SD. Devem-se iniciar imediatamente os preparativos para a
prisão de vinte a trinta mil judeus em todo Reich. Deverão ser escolhidos os judeus que possuem
propriedades. Outras ordens deverão ser transmitidas durante a noite.
Outro telegrama dava instruções para reunir judeus saudáveis do sexo masculino, frisando bem que
esses mesmos judeus deveriam ser presos até encher as cadeias locais e depois encaminhados aos novos
campos de concentração de Buchewald, perto de Weimar, Flossemburg, Mauthausen, perto de Linz e
Revensbruck e vários outros campos menores.
Durante aquela noite uma orgia de terror deu-se início contra comércios das principais cidades
alemãs e austríacas, e propriedades do povo judeu. Sinagogas foram incendiadas, vitrinas foram
quebradas, lojas saqueadas e milhares de livros queimados nas ruas. Os proprietários judeus, ao saírem
desesperados às ruas para fugir do fogo, eram agredidos pela multidão enlouquecida e presos pelas
autoridades. Nem os velhos eram respeitados, tampouco crianças que choravam desesperadas buscando
proteção em suas mães que eram jogadas para dentro dos camburões. Os SS observavam aquela balburdia
de longe sem fazer nada. Na verdade estavam apenas esperando reações mais significantes por parte dos
judeus.
Mais de oitocentas lojas foram destruídas por bombas e cerca de trezentos armazéns e casas
particulares foram incendiadas. No final, mais de vinte mil judeus foram presos e cerca de oitenta pessoas
foram mortas por resistirem à prisão.
A população judaica foi acusada pela destruição como protesto a prisão do jovem assassino de von
Rath. Foi aplicada uma multa coletiva de um bilhão de marcos aos judeus para que comerciantes
pudessem cobrir os prejuízos causados por eles. Em consequência todos os judeus foram expulsos das
escolas, de alunos a professores. O uso de transportes públicos e hospitais foram restringidos. Um novo
decreto obrigava todos os judeus a usar sobre suas vestes a estrela de Davi para serem facilmente
identificados, atraindo assim o ódio da população protegida por lei para agredir os judeus, mesmo sem
motivo algum, em qualquer lugar que fosse.

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Adolf Hitler, aproveitando a onda de ódio do povo aos judeus, e dando uma mostra oe que pretendia
para o futuro, proferiu um discurso em cadeia de rádio conscientizando o povo da necessidade de odiar os
judeus como um mandamento sagrado:
A Europa não terá paz até que tenha resolvido o problema judaico. Se os financistas judeus dentro
ou fora da Europa conseguir precipitar as nações numa guerra mundial, o resultado será a bolchevisação
da Europa e uma vitória para os judeus. Ou a Europa e o mundo se curvam aos meus desejos e mandam
todos os judeus para uma ilha deserta, ou tentem resistir. Nesse caso a raça maldita será aniquilada.
Vendo a disposição de Adolf Hitler para investir sobre os judeus, Himmler mais que depressa tratou
de solicitar a seu Führer para que lhe entregasse o comando de toda a operação, já que Goring estava por
demais atarefado com o fardo da Luftwaffe*(*Força Aérea) que vinha a cada dia aumentando seu efetivo.
E Himmler, como chefe das polícias e com a ajuda de Heydrich, poderia dar conta de tudo. Hitler achou
viável a proposta e acabou cedendo ao pedido obsequioso do seu Reichsführer SS. Embora não estivesse
de todo convencido das teorias raciais de Himmler, não podia deixar de reconhecer que a questão judaica
era um grande incomodo, e Himmler, com suas teorias absurdas acabou por desenvolver um ódio ferrenho
contra o povo judeu, o que só fazia com que se dedicasse com afinco ao problema, e era isso que a questão
judaica necessitava.
Hitler colocou a máquina da propaganda a disposição de Himmler, que como um cavaleiro do
apocalipse, lançou-se à frente da campanha conduzindo o carro da destruição. Mesmo assim ele se viu
impedido de acompanhar todo o processo devido a sua fraqueza psicológica exemplificada por certa
piedade às atividades brutais necessárias infligidas pelos seus comandados atuando pelas salas de tortura
da Gestapo ou pelos campos de concentração. Sua aversão ao sofrimento humano não permitia que
mergulhasse suas próprias mãos no sangue judeu. Mas podia contar com seu alter-ego Reinhard Heydrich,
que era exatamente o oposto dele em questão de fazer o uso dos maus tratos às pessoas.
Himmler o encarregou de ampliar o número de campos de concentração e supervisionar os métodos
de tratamento aos prisioneiros judeus, exigindo o máximo de crueldade, além dos já existentes. Ele não
poderia ter escolhido alguém melhor para deleitar-se mais sinistramente com as possibilidades permitidas
pela diretiva de Hitler:
Para completar a missão que lhe foi dada de resolver o problema dos judeus pela emigração da
maneira mais adequada e nas circunstâncias que levem a uma possível solução pouco importando o
método escolhido, eu o instruo por meio desta a fazer todos os preparativos necessários em termos de
organização prática e materiais para uma solução ampla da questão judaica dentro da área de influência
da Alemanha na Europa. No tocante às outras autoridades centrais a apresentar-me o mais depressa
possível um plano geral referente aos meios de organização, prática e materiais indisponíveis à execução
da desejada Endlosung*(*Solução Final) da questão judaica.
Reinhard Heydrich passou a planejar os detalhes dos métodos macabros de extermínio, começando
por novos campos a serem abertos, expondo os prisioneiros a maus-tratos, à fome e aos trabalhos forçados
como forma de pagar pela despesa de alimentação. Era mais do que certo que dia ou outro Adolf Hitler
iria querer de volta os territórios pertencentes à Alemanha, o que, certamente, não pararia por aí,
ocasionando uma guerra. E uma das primeiras medidas a serem tomadas era a eliminação do povo judeu
de toda a Europa, e também tinha como objetivo, incluir Zaram e sua mulher entre os prisioneiros, mesmo
que levasse mais algum tempo para concretizar o seu plano.

Ele entrou naquela parte da casa que só utilizava para fins de participar de convocações na
Fraternidade Branca, ou para se aconselhar com Adonai o Filho da Luz. Não podia aceitar o que vinha
ocorrendo no país, às atrocidades cometidas pelos nazistas, principalmente com as crianças. Meninos e
meninas ainda em idade infantil eram assassinados sistematicamente junto com seus pais, que sem motivo
algum eram presos e enviados aos campos de concentração, ou para o campo de extermínio.
Adolf Hitler tinha planos de levar a Alemanha à guerra, a fim de restituir mais alguns territórios
perdidos por Versalhes, além de conquistar novos territórios para a Alemanha, o que Napoleão não
conseguiu para a França. A tomada da Áustria, da Renania e da Tchecoslováquia havia sido bem sucedida,

84
sem que fosse preciso disparar um tiro sequer. Com a guerra teria que acelerar a produção de armamentos
e munição, e a mão de obra escrava era gratuita. Sua intenção era usar da mão de obra judia, explorando
ao máximo, alimentando mal o operário levando a morte, e substituir por outros que deveriam chegar de
toda parte do país, e dessa forma exterminar aos poucos os judeus da Alemanha e da Europa. E as crianças
deveriam ser eliminadas para que não viessem querer vingar seus pais quando crescessem. Ilya participava
de uma organização que tinha como objetivo salvar crianças das mãos dos nazistas, levando-as para
lugares seguros em países vizinhos. Estava envolvido demais com os problemas da humanidade, por isso
queria ouvir os conselhos de Adonai.
Sentou-se confortavelmente, respirou fundo e fez uma introspecção buscando o seu Eu interior para
conduzi-lo as Alturas ao encontro de Adonai.
- Filho da Luz Eterna, - invocou – Venha até mim para me aconselhar e orientar. Há maldade
demais nesse mundo em que vivo, e quero ajudar àqueles que se encontra a beira do cadafalso, salvar os
inocentes das garras do verdugo.
Mas em vez de Adonai ele viu surgir uma sombra escura que aos poucos foi dando forma a
horripilante figura do Espectro que habita entre o mundo material e as Alturas. Ilya olhou com desprezo
para aquela sombra que se arrastava no chão e o olhava com olhos de malícia, de maldade, exibindo
naquela fenda que não é digna de ser chamada de boca, exalando um hálito que empesteava o lugar.
- Aparta-te, criatura do mal e de passagem para que eu posso estar com o Filho Da Luz.
O Espectro deu uma gargalhada que encheu o ar, dizendo em seguida:
- Homem arrogante, pensa que pode salvar o mundo, acha-se tão poderoso a ponto de vencer o mal
que caiu sobre a terra? Vai conseguir salvar dezenas de pessoas, centenas, mesmo alguns milhares dentre
milhões de condenados? Migalhas, não passam de migalhas diante do que tenho para derramar em seu
mundo corrompido pela ganância dos homens.
- Aparta-te, eu ordeno. – proferiu com firmeza não caindo na provocação. A sombra foi minguando
dando lugar a uma luz prateada que encheu o recinto, e surgiu Adonai com todo o seu esplendor.
- Aqui estou para te ouvir e aconselhar. - Adonai foi dizendo antes mesmo que Ilya dissesse
qualquer palavra – Sei o que se passa dentro do seu coração. A nobreza em suas intenções é sua natureza.
Quer interceder nos problemas da humanidade, pois o faça. Mas tenha ciência dos perigos que o cerca,
não perigos que possam afetar a sua integridade física porque você bem sabe como criar um escudo para
se proteger, mas as consequências, o karma que pode trazer sobre você, caso infrinja as leis da natureza.
- Filho da Luz –interveio Ilya – conhece a minha natureza e bem sabe que sou incapaz de ferir um
inseto que seja...
- Jovem entusiasta – interveio Adonai – deve sim usar de todos os meios para salvar vidas sem,
contudo, mudar os caminhos do Acaso. Mas jamais deve tocar e ferir o mais cruel carrasco, porque não
tem esse direito e acarretaria um karma muito pesado em sua vida, além de não conseguir mais chegar até
minha presença. Use sua sabedoria para saber como agir. É uma nobre missão que lhe foi conferida por
questão de karma. Segue em frente, salve vidas para que a semente possa germinar no dia de amanha,
dando frutos que terão missões muito importantes para o destino da humanidade. Mas advirto: cuidado,
muito cuidado. Não se deixe levar pela emoção. Faça o que tiver que ser feito. Amanha a humanidade será
grata por aqueles que crescerão e farão a vida na terra melhor.
Num piscar de olhos o Ser Celestial desapareceu, deixando no quarto a Gloria da sua presença. Ilya
Abraãomovitch foi dormir porque no dia seguinte tinha uma viagem para fazer.

VINTE
Joachim von Ribbentrop, o Ministro das Relações Exteriores, hábil diplomata capaz de concretizar
acordos aparentemente impossíveis, era a pessoa indicada para discutir um acordo com a União Soviética.
Adolf Hitler, além de um acordo de não agressão mútua com a Rússia, pretendia firmar contrato para a
compra de matérias-primas e grãos, algumas das riquezas daquele país que a Alemanha não dispunha em
abundância. Pediu a von Ribbentrop para que entrasse em contato com o embaixador alemão em Moscou,
a fim de que agendasse um encontro entre os ministros dos dois países, e que chegassem a um acordo que

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satisfizesse as duas potências. Von Ribbentrop também deveria levar em sua mala um acordo secreto que
dividiria a Polônia e o Leste Europeu, mudando drasticamente a geografia da Europa.
Adolf Hitler tinha em mente a ocupação da metade da Polônia, a Iugoslávia, Hungria e Romênia,
deixando os países bálticos para a União Soviética, porque certamente Stalin iria querer ganhar uma
proteção em suas fronteiras. Ribbentrop deveria propor a União Soviética parte da Polônia e os três países
bálticos Letônia, Estônia e a Lituânia. A seu ver Stalin aceitaria a proposta e o acordo paralelo sobre as
transações comerciais pelas quais a Alemanha tinha interesse, porque com a Europa em guerra, ter o
território soviético protegido pelos países bálticos era o que de melhor poderia acontecer a um país
voltado para o desenvolvimento.
No mês de agosto a comitiva alemã desembarcou em Moscou. Von Ribbentrop fora informado de
que o Ministro do Exterior de Stalin era um judeu de nome Maxim Litivnov. Estava preparado para
negociar com ele, mesmo a despeito de ser um judeu. O que importava era que tudo transcorresse
conforme as vontades do Führer. Mas para sua surpresa, ao sentar-se à mesa de negociações viu-se diante
de outro homem, altamente capaz de negociar aquele delicado acordo, mas não o esperado judeu conforme
o serviço de inteligência alemão havia anunciado. Era Vietchaslav Mikhailovitch Molotov, ex-secretário
de Stalin, chamado de “O Arquivo Vivo do Kremlin”, devido sua capacidade de armazenar informações
em sua privilegiada memória. Agia com diplomacia como que para parecer que tudo não passava de uma
grande armação da parte de Stalin, para mostrar que eles não eram idiotas e se prestavam a qualquer
potência que se apresentava impondo sanções achando que aceitariam facilmente por medo de os
contrariarem.
Joachim von Ribbentrop se viu diante de uma Rússia que seus agentes não haviam informado. Os
russos eram bons anfitriões, como eram bons diplomatas e bons negociadores. A Rússia era modernizada,
aparentemente rica, o parceiro ideal para uma Alemanha que tinha planos de conquistar o mundo.
Não houve objeção da parte dos soviéticos quanto ao fornecimento de petróleo, grãos, níquel, tecido
e aço produzido nas siderúrgicas esparramadas por todo o território soviético. Assinaram um protocolo
secreto que dividia a Polônia. Ficou estabelecido que a metade leste da Polônia ficasse sob a ocupação
soviética, Stalin sabiamente fez rezar no acordo que a União Soviética não se via na obrigação de se aliar
à Alemanha num conflito armado de âmbito mundial, como também não se opunha a ela, caso se visse
diante de um conflito com outras nações. O que ficou claro era que Stalin sabia sobre as verdadeiras
intenções de Hitler, o que não dava garantia de paz entre eles.
Para a Alemanha nada poderia ter sido melhor, mesmo que temporariamente Adolf Hitler estava
livre para dar inicio a sua grande sede de conquista, sem que o seu mais provável opositor interferisse.
Quanto a França e Inglaterra tudo já estava preparado para que no momento certo pudessem apresentar as
devidas justificativas sobre a agressão armada a quem quer que interferisse nos seus planos. Com o
caminho livre restava a Alemanha ocupar a sua parte polonesa, porque tinha o aval da União Soviética,
que de certo modo era uma nação respeitada e também temida pela França e Inglaterra. Hitler desejava
fazer com que a Alemanha aparecesse como vítima, como se não tivesse alternativa a não ser partir para o
conflito armado.
A população judaica era numerosa, e Adolf Hitler tinha como meta expulsar o povo judeu da
Polônia, fazendo deles escravos nas fábricas alemãs anexas aos campos, para trabalhar ate a morte.

Ainda antes de iniciar o conflito entre nações, Zaram foi procurado por um médico com uniforme da
SS, o Rechsfuher SS Heinrich Himmler e mais duas altas patentes que, o contrário dos Camisas Pardas
que tinham batido a sua porta em busca de fundos para o Partido, eram educados e sem ostentar grandeza.
Era a primeira vez que defrontava com Himmler, um homem pequeno e sem atributos físicos, diferente da
maioria dos SS, detentores de bom porte físico e arrogância.
- Perdoe-nos por virmos sem avisar. – se antecipou Himmler polidamente. – Pode nos receber, ou
prefere que retornemos numa outra ocasião?
- Por favor, senhores – disse Zaram os convidando a entrar.

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Zaram já sabia o motivo daquela visita, mas recebeu aqueles homens para ouvir o que já sabia. Por
outro lado, desejava que eles soubessem que na Alemanha nazista havia alguém que não se intimidava
com os seus decretos.
Os recebeu numa sala apropriada para essa ocasião. Ao cumprimentar o médico Zaram notou que o
espectro do umbral estava pousado ao seu lado com um olhar triunfante. Himmler tomou a iniciativa da
conversa, primeiramente se apresentando como o Chefe da Gestapo e da SS.
- Estamos a serviço do Reich, Conde Zaram. - Himmler dizia em seu jeito educado e se pondo em
posição inferior, como era seu costume, como uma maneira de ocultar o mal que existia dentro de si.
– Quero que saiba – prosseguiu Himmler - que tomamos a liberdade de investigar a sua vida, suas
origens, seus negócios, sua vida particular e essa Irmandade que remonta do século XVI a qual o senhor é
membro, quando um viajante oriundo do Oriente Médio, passou seus conhecimentos a um alemão, dando
inicio a ordem dos Rosacruzes.
- Permita-me esclarecê-lo a despeito dessa respeitável irmandade a qual se refere, Herr Himmler? –
interveio Zaram olhando fixamente nos olhos de Himmler – Está se referindo a uma seita antiga, mas
posso garantir-lhe que não se trata da mesma irmandade da qual sou membro. Minha Irmandade remonta
do antigo Egito, do tempo dos faraós. Portanto, Herr Himmler, o senhor está equivocado.
Himmler, o médico e os dois oficiais se entreolharam sem esboçar reação alguma. Antes de partirem
para essa difícil missão, foram informados de que Zaram era um homem difícil, destemido e dono de suas
próprias ideias, além de ser um sábio que se safava com sucesso de qualquer questão, e que em momento
algum deveriam contrariá-lo, buscando com diplomacia arrancar-lhe o precioso segredo que o levaram até
a presença dele.
- Como já deve saber, Conde Zaram, - prosseguiu Himmler – o objetivo do nosso Partido é restituir
o Terceiro Reich propiciando ao povo germânico um viver digno, e para tanto é necessário que nosso
Führer e os principais lideres possam ter uma vida longa e saudável para poderem conduzir esse povo...
- E para isso se faz necessário eliminar outras etnias, quem professa outra religião que não o
nazismo? – interveio Zaram. – Expandir o território alemão invadindo países obrigando-os a se sujeitarem
ao Reich?
- Devia saber, senhor Himmler, que não concordo com sua política discriminatória e criminosa. –
prosseguiu Zaram – Seus superiores não lhes informaram da minha posição diante dos ditames do Partido
Nazista?
- Está invadindo o campo político, senhor Zaram, o que não lhe compete. – disse Himmler se
esforçado para manter o autocontrole, pois ninguém era suficiente ousado para falar daquela maneira com
uma alta patente do Reich.
Percebendo que não ia conseguir nada, passou a palavra ao médico que podia conversar com o
místico numa linguagem mais próxima para o assunto em questão, que era o segredo da longevidade,
presumindo que era um composto químico que atingia as células do corpo retardando o envelhecimento,
permitindo assim uma saúde inabalável.
- Senhor Zaram, – começou a falar o Dr. Mengele – sou especialista em experiências biológicas em
busca de conhecer as causas das enfermidades, buscando através delas a cura aos diversos males que
assola a humanidade. Ultimamente estou trabalhando para descobrir a formula para gerar gêmeos e estou
em fase final, como trabalho também em outros experimentos com seres humanos. Mas não posso negar
que tenho fracassado na pesquisa da longevidade, que para nós é de vital importância. Ciente de que o
senhor detém esse poder queremos propor-lhe que nos venda a fórmula pelo preço que lhe convier.
- Dr. Mengele, - interveio Zaram – O segredo da longevidade, assim como outros tantos segredos os
quais tenho o privilégio de conhecer não são deste mundo. O processo para tomar conhecimento é
complexo demais para ser explicado, de modo que sugiro que desistam de arrancar de mim esses
conhecimentos. Mesmo que eu quisesse cooperar, não existe maneira de passar esse segredo. Também,
caro Dr. Mengele, quero que saiba que jamais eu colaboraria com criminosos que matam pessoas
inocentes por puro ódio racial, e faz experiências cruéis com crianças e pessoas de origens judaicas.

87
Himmler se levantou fazendo ameaças ao místico por não querer cooperar. Zaram, ignorando as
ameaças, educadamente pediu a eles para que se retirassem, pois nada mais tinha para conversar.
- Tentei resolver essa questão diplomaticamente – interveio Himmler – mas vejo que o senhor não
quer cooperar, e ignora que está diante de um representante do Reich. Acaso acha que seu poder é maior
do que o poder do Parido Nazista? Vim de Berlim exclusivamente para tratar desse assunto, mas não paro
por aqui. Nossa próxima conversa será na PrinzAlbertstrasse. Lá dispomos de métodos convincentes para
fazê-lo falar.
- Saiam – ordenou Zaram.
Himmler e sua comitiva deixaram a casa do místico sem esboçar reação alguma.

Zaram se surpreendeu com a inesperada visita do Almirante Canaris. Em vez da sua costumeira
calma, estava apreensivo. Adentrou a casa do místico olhando para trás e para os lados, como quem não
queria que o vissem. De fato, estava ali unicamente para alertar Zaram do grande perigo que o ameaçava.
O místico não temia pela sua segurança pessoal, mas não podia garantir que Ludmila não fosse tocada.
- Hitler ficou furioso por você não cooperar. – disse o Almirante – Ele sabe que não poderá tocá-lo,
mas a condessa é vulnerável, e é nela que a Gestapo tem olhos. Um descuido seu será o suficiente para
prendê-la e exigir que você ceda. Himmler acha que torturá-la na sua frente fará com que passe a eles o
grande segredo da longevidade. Não acreditou no que você disse sobre os grandes segredos não serem
deste mundo.
- Criaturas ingênuas, - murmurou o místico quase que para si mesmo – Desconhecem o meu poder,
me subestimam. Não nego que possam raptá-la num momento de descuido da minha parte, mesmo
levarem-na a sede da Gestapo em Berlim, mas não conseguiriam tocar num fio de cabelo dela, porque
mesmo a distância posso protegê-la de qualquer agressor. Torturá-la então é impossível.
- Caro amigo, - novamente o Almirante – Vim aqui para alertá-lo e sugerir que deixe esse país,
porque uma guerra está na iminência de começar, tornando esse país um lugar perigoso porque não
demorará a chover obuses e toda sorte de bombas. Vá para um lugar seguro, a Grécia, leve consigo o
rapaz judeu, que só não está na mira da gestapo porque é jovem e eles acreditam que nada sabe dos altos
poderes.
- Pois que nem tentem chegar perto dele. Talvez eu saiba mais do que ele devido ao meu tempo de
vida nesta terra. Ele foi iniciado fazendo a mais dura prova e saiu-se vencedor, tornando-se digo dos mais
altos segredos. E sendo assim ele tem poderes suficientes para desviar qualquer perigo da sua direção,
como também não permitir que o inimigo faça-lhe qualquer mal. Mas, contudo, seguirei seu conselho e
deixarei este país.
- Aquele outro, o ancião que vive em Nápoles, - prosseguiu Canaris - a Gestapo tem olhos voltados
para ele, pois acreditam que uma leve pressão fará com que revele o que desejam saber.
Zaram não pode conter a gargalhada ao ouvir o que disse o Almirante.
- Tudo o que sei aprendi com ele. – disse ainda com um sorriso estampado nos lábios- Eles não
conseguiriam nem mesmo se aproximar do castelo onde ele vive, porque se tentarem tocar nele sofrerão
graves consequências. Aquele homem é um sábio, um mago, detentor de poderes jamais imaginado pelo
homem comum.
- Bom saber disso, mas mesmo assim seria prudente deixar Nápoles temporariamente, pelo menos
enquanto o mundo estiver em guerra. Mussolini é aliado de Hitler.
Zaram ficou sério e pensativo, e depois se manifestou.
- Concordo com você, caro Almirante. Vou providenciar transporte para minhas coisas, pois receio
deixá-las aqui sob ameaça de bombas que serão lançadas pelas forças contrarias.
- Posso providenciar-lhe um aeroplano que o levará junto de sua esposa e criados em sua ilha grega.
– disse o militar - É um hidroplano moderno, seguro, grande o suficiente para transportar vinte pessoas e
uma tonelada de bagagem.

88
- Fico-lhe grato, Almirante. Realmente, estar em meio de um conflito da magnitude de uma guerra,
não é o lugar ideal para se viver com a esposa. A mais, é impossível evitar que uma bomba caia sobre
minha cabeça – disse sorrindo.

A invasão a Polônia acabou por provocar a guerra contra a Inglaterra e França. Zaram ainda estava
tratando dos preparativos para a sua mudança. Um clima de grande tensão pairava no ar de todo o país,
porque era notório que a guerra se alastraria por toda a Europa. Ele tentava confortar Ludmila que estava
apavorada e ansiosa para deixar a Alemanha. A calma de Zaram e a certeza de que nada lhes aconteceria
enquanto estivessem naquela casa acabou por provocar nela aquelas dúvidas a respeito do marido sempre
envolto em mistérios. Para agravar ainda mais seus receios, ela havia estranhado Ilya Abraãomovitch. Não
era mais aquele jovem alegre e cheio de esperanças, elegante, bom para se conversar assuntos banais,
coisa comum entre jovens que se recusam a pensar em coisas mais sérias, mas viver a vida que passa
rápido, aproveitar o que o dinheiro tem de melhor para um bom viver. Ilya parecia um velho, gostava de
confabular com Zaram, falavam sobre assuntos que ela não podia compreender, além de estar, também,
envolto em mistérios.
- Há perigo de essa guerra chegar até aqui, meu esposo? – Ludmila perguntou amedrontada.
- É possível, mas não corremos perigo. – respondeu em sua calma habitual. – A capital da
Alemanha se mudou para Berlim, e nesse caso o adversário busca ganhar a capital, mas esse fato não
ocorrerá agora, pois a guerra ainda está começando. Nada nos acontecerá.
- Você não viveu no clima de guerra ou revolução, como vivi em São Peterburgo.
Zaram olhou para sua esposa com ar de tristeza e preocupação, tentando encontrar a maneira mais
segura de contar a ela sobre sua vida, convencê-la a seguir o mesmo caminho que o dele. E o momento era
oportuno.
- Meu amor, vi inúmeras guerras e sei bem o que é isso.
- Ah, meu esposo – interveio Ludmila – Você diz meias palavras, me deixa confusa, abusa da minha
ignorância. Como pode ter presenciado inúmeras guerras?
- Você sempre diz que nada sabe sobre minha existência, que guardo segredos e que gostaria de
saber a respeito dos mistérios que me cercam. – disse se aproximando dela e tocando delicadamente em
seu rosto num gesto carinhoso – Na verdade, querida, tenho medo de fazer certas revelações, temo que
não possa me compreender. Mas faço-lhe uma pergunta: continuaria me amando se o que eu disser possa
parecer absurdo e fantasioso?
- Como posso deixar de amar o causador de toda essa felicidade que sinto?
- Eu a compreenderei perfeitamente, caso venha a estranhar o que tenho a revelar.
- Se é sobre a Irmandade a qual você pertence, tenha certeza que nada tenho a estranhar. Na Rússia
meu amado pai era Maçom, e tanto eu como mamãe nada sabíamos sobre o que ele fazia.
- Não se trata dessa Augusta Ordem, mas de uma irmandade antiga que remonta do Egito antigo, do
tempo dos faraós. - prosseguiu o místico – Querida, antes de tudo quero que saiba que meu amor por você
é muito forte a ponto de eu correr riscos de perder muito do que tenho, só para tê-la a meu lado.
- Meu amor, mesmo que perca sua for...
- Não me refiro a bens materiais, mas anos de sabedoria e conhecimentos que me possibilitam ter
uma vida estável, saudável e driblar a morte, além de poder viver muito mais do que o homem comum.
- O que está me dizendo, querido? Não abuse da minha ignorância.
- Lembra-se – prosseguiu Zaram – que sempre lhe pergunto, mesmo que superficialmente, se
gostaria de poder viver além do ser humano comum, ter a formula de não envelhecer e driblar a morte?
Pois bem, eu possuo esse segredo.
Ludmila olhou estupefata para ele, boca entreaberta como se quisesse fazer alguma pergunta, mas a
voz sumiu. Permaneceu assim durante quase um minuto, e depois falou:
- Então é verdade tudo o que diziam sobre você? Ah, Deus! Perdoe-me..
- Pare, eu lhe peço, e me ouça, se realmente quer saber tudo a meu respeito – disse o místico
mantendo a serenidade, deixando Ludmila ainda mais confusa, porque lembrava que aquele homem a

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quem amava não faria mal a um insignificante inseto, de modo que não havia motivo algum para temê-lo.
Contudo, sua cabeça rodava em meio à tempestade de questões que passavam. Um homem bom, caridoso
como deve ser um cristão, se bem que não era religioso, educado, cortês, gentil, generoso e compreensivo
com as pessoas. Nunca o viu irado, erguer a voz, discutir. Tinha sim um humor raro, coisa difícil de ver
entre as pessoas, alegre e também, em algumas ocasiões, introspectivo. Mas outra questão veio-lhe a
mente: o conhecia há mais de vinte anos e ele não envelheceu um dia sequer. E nem ela, mas quanto a ela,
atribuía a sua beleza ao elixir de ervas que ele preparava. Nesse tempo em que estavam juntos, nunca
sequer apanhou um simples resfriado. E seu amigo que os havia visitado? Um ser enigmático, um sábio,
tão sereno como era Zaram, e mesmo Ilya, que fazia parte dessa misteriosa Irmandade também parou de
envelhecer.
- Sim, desejo saber sobre todo esse mistério que o cerca – falou com determinação, pois atribuía a
sua ignorância e ingenuidade ao receio de saber mais do que deveria, conforme foi educada, num tempo
em que a mulher não precisava saber mais do que o necessário, que tivesse sim uma boa escola, falar
francês, tocar piano e uma cultura moderada.
- Fale, meu esposo querido, - prosseguiu – fale-me tudo a seu respeito, sobre seus pais, sua infância
e suas origens. Prometo que ouvirei calada, por mais estranho que eu possa achar.
Zaram se sentou numa poltrona a frente dela. Por um instante permaneceu calado olhando fixamente
para a mulher, e depois começou a falar:
- Tive uma infância da qual até hoje não esqueço. Corria pelas ruas da Caldeia junto de outros
meninos...
-Um momento. – interveio abismada com o que acabara de ouvir. – Disse Caldeia, uma
civilização...
- Não me interrompa, por favor – interveio Zaram, desta vez com certa imposição na voz. – A
previno que o que tenho a contar é algo fora dos padrões. Portanto, peço-lhe que se limite a me ouvir, e
depois estarei aberto para responder tudo que quiser saber.
Ludmila concordou.
- Pois bem – prosseguiu o místico – Nasci durante o reinado de Nabucodonosor, o Rei da Babilônia.
Éramos um povo alegre, vivíamos ao sul da Mesopotâmia as margens do Rio Eufrates. Nos tempos
primitivos a cidade mais importante era Ur, onde nasceu Abraão, e de onde ele partiu para a Palestina. Na
medida em que a influência dos caldeus se estendeu para o norte, o território da Babilônia tornou-se
conhecido como a Terra dos Caldeus.
- Junto de outros meninos eu nadava na praia do rio Eufrates próximo de onde eu morava. –
prosseguiu - Como todo menino, fazia traquinagens, brincava, brigava dizendo que amanha seria um
valente soldado, uma profissão que enchia os olhos dos meninos que achavam que ser soldado era se
encher de glorias, alheio a dura vida de caserna, as sangrentas batalhas e o sofrimento de ter que dormir ao
relento, o calor escaldante dos dias quentes. Mas, era um tempo de ilusão e de sonhos. Posso dizer que tive
uma infância feliz. Filho de pais ricos, não conheci a dificuldade. Meu pai tinha uma pequena frota de
navios mercante. Levava-me sempre ao porto as margens do Rio Eufrates, um grande porto com seus
molhes de pedra onde embarcações desembarcavam seus carregamentos. Eu olhava com curiosidade e
compaixão para aqueles carregadores, homens fortes, pele queimada pelo sol, suados e cheirando mal.
Eram homens escravizados trazidos de outras terras distantes, algo que minha mente de menino não podia
compreender porque o homem escravizava seu semelhante. Nos labirintos das ruas estreitas se achavam as
tabernas frequentadas por marinheiros e mercadores. Também alguns bordeis que eram freqüentados por
ricos que chegavam em liteiras. Mulheres com roupas transparentes, os lábios e sobrancelhas pintadas,
rostos com pó que realçava suas belezas e cheirando a ungüentos finos, mostrando em seus olhos líquidos
uma expressão jamais vista em mulheres virtuosas. Sempre que eu arregalava os olhos para algumas delas
meu pai dizia gravemente: coloque-se em guarda diante de uma mulher dessas, pois seu coração é uma
armadilha. Meu pai era um homem correto que mantinha as boas tradições e os costumes veneráveis. Ele
venerava os deuses, que eu desde menino questionava. Às vezes minha mãe me levava ao mercado, e
junto ia um escravo sírio que vivia na nossa casa. Lembro-me com saudade o cheiro de peixe frito pelas

90
ruas da Babilônia, o ganso assado nos fornos, a barulheira dos mercadores para atrair o freguês. As ruas
tinham uma infinidade de cheiros desagradáveis devidos às sujeiras acumuladas e dejetos atirados pelas
janelas das casas. O vento trazia do porto o cheiro agudo das madeiras de cedro, de mirra, ou balsamo,
quando uma mulher rica passava em sua liteira com a metade do corpo para fora para ralhar com os
meninos que ficavam rodeando e aporrinhando os carregadores que não podiam reagir. Nossa casa era
grande, possuía um jardim com diversas plantas. Tinha uma sebe de acácias e uma cisterna abastecida por
uma fonte que jorrava de uma parede de pedra. Quando meu pai retornava do trabalho um escravo corria
para lavar os seus pés, e depois minha mãe servia o jantar. As festas em minha casa onde meninos não
podiam participar, mas não conseguiam impedir que espiássemos a festa dos adultos com músicas, danças
e a farta comilança.
Tive excelentes mestres que me alfabetizaram, me instruíram, me ensinaram a matemática e me
levaram a interessar pela arquitetura. As escolas com mestres severos que batiam nos alunos a bel prazer.
Formei-me em arquitetura, uma profissão que exigia grandes conhecimentos em matemática, devido aos
cálculos que tinha que fazer.
Zaram fez uma pausa olhando para o vazio numa expressão mesclada de melancolia e saudosismo.
Depois se voltou em direção da esposa e prosseguiu:
- Certo dia, caminhando pelas movimentadas ruas da região central da cidade, deparei-me com
aquele homem vindo das terras egípcias que me chamou atenção pelo seu jeito calmo e sereno. Via-se
nitidamente que se tratava de um filósofo, um sábio a quem valia a pena fazer amizade. E dessa forma
conheci o homem que me levou ao caminho do Saber, e a minha iniciação à irmandade da qual até os dias
de hoje faço parte.
Ludmila permanecia calada, atenta a tudo que seu esposo dizia, Ouvia como se estivesse ouvindo
uma história, uma fantasia. Não duvidava de que Zaram dizia a verdade, mas era difícil conceber tudo
aquilo com um relato pessoal de alguém com quem ela vivia há algum tempo. Ser descendente de um
povo histórico, melhor dizendo, ser um homem, um semita do sul da Mesopotâmia.
- A Babilônia com toda sua história, - prosseguiu o místico - o Rei Nabucodonosor reinou durante 42
anos, de 604 a 562 AC; Foi o período mais áureo da Babilônia com a construção das maravilhas
arquitetônicas, a segunda Torre de Babel e os Jardins Suspensos, obras fantásticas que eu conheci. Os
Jardins Suspensos eram seis montes artificiais com terraços arborizados apoiados em colunas de 25 a
100metros. Foi construído para agradar a sua esposa Amitis, que viera de um país vizinho e vivia com
saudade da sua terra com campos floridos e florestas, pois toda a Mesopotâmia era uma imensa planície.
Os jardins tinham escadas em mármores, os terraços eram um em cima do outro, e eram irrigados pelas
águas do Rio Eufrates. Nos terraços eram plantadas árvores e flores tropicais e alamedas com altas
palmeiras. Dos jardins se via toda a beleza da cidade, vista do alto. Uma obra maravilhosa.
Mas também foi impulsionado por violentas repressões contra os inimigos. Depois da morte do pai,
o Rei Nabopolassar, transformou Babilônia num centro cultural, comercial e financeiro. Cercou a cidade
com altas muralhas para se proteger dos invasores, e um canal de fuga entre os Rios Tigre e o Eufrates.
Era um rei cruel com seus inimigos, aniquilou os fenícios, derrotou os egípcios e obteve a hegemonia no
Oriente Médio. Estendeu o império babilônio até o Mediterrâneo, conquistou Jerusalém e fez a primeira
deportação dos judeus para a Mesopotâmia, conhecido como Cativeiro da Babilônia. Ate que em 539 a.C,
os persas, liderados por Ciro, o Grande, invadiu o território mesopotâmio e dominou completamente a
Babilônia, pondo um fim a hegemonia dos caldeus.
- E o que restou das maravilhas construídas por Nabucodonosor? – perguntou interessada no relato
do marido, esquecendo temporariamente de que achava fantasiosa toda aquela história.
- Por volta de 323 a.C, Alexandre o Grande conquistou a Mesopotâmia e destruiu tudo. Tinha idéia
de reconstruir alguns dos monumentos em outro lugar, mas morreu na cidade que havia conquistado.
- Eu tinha trinta anos, - prosseguiu Zaram - quando deixei a casa dos meus pais e fui para o Egito
com aquele ancião que você teve a honra de conhecer, e lá, num lugar isolado distante da civilização,
começou meus primeiros aprendizados na Ciência do Saber. Éramos treze neófitos, todos buscando os
mesmos ideais. Durou por volta de cinco anos o meu aprendizado preparatório para a iniciação. Naquele

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tempo era mais fácil ficar enclausurado por longo tempo, porque não tinha os atrativos do mundo moderno
que nos distrai e desvia o nosso foco.
- Meu Deus, - exclamou Ludmila - Então é possível driblar a morte? Mas isso não infringe a lei da
natureza, a lei de Deus?
- Onde você ouviu dizer que há um tempo determinado para viver? – interveio o místico – Tem
pessoas que se cuidam mais e outras que se cuidam menos, de modo que uma delas vai ter um viver
melhor e um tempo maior de vida. Onde está o erro nisso? Da mesma maneira, que mal há em viver por
muitos séculos, quando se tem o segredo da longevidade?
- Aquele elixir que tomo diariamente, vai me conservar jovem por muito tempo? - perguntou
Ludmila.
- Aquilo é apenas para que tenha um viver saudável e retardar o envelhecimento de seu corpo, mas
não por muito tempo, não chegando à idade madura com todo vigor de hoje. O segredo que conheço e de
onde usufruo certos benefícios não é desse mundo e sim do mundo etéreo que somente o iniciado e
vitorioso na prova mais dura pode alcançar.
Fez uma pausa, enquanto Ludmila o olhava com olhar cheio de curiosidade e questões. Não dava
para duvidar do que ouvia, tampouco achar que tudo não passava de fantasias do marido.
- Então, minha amada esposa, desde o primeiro momento que tive a certeza de que ficaríamos
juntos, não tenho outro pensamento senão de vê-la entre nós.
- Viver tanto tempo assim, não é cansativo, anos e anos, séculos nesse mundo cheio de problemas...
- Não – disse enfaticamente – Há aqueles que permanecem vivos por vinte, outros por quarenta,
sessenta e até mesmo alguns que chegam aos noventa anos de idade. Acha que não gostariam de viver por
mais anos? Assim é minha vida, quanto mais tempo poder viver melhor ainda. Jamais me canso de viver,
contemplar a beleza da vida, da natureza, ver a evolução do mundo, mesmo com os conflitos que surgem
de tempos em tempos. E compartilhar a minha existência junto de você é o que mais almejo.
Ludmila nada disse. Abaixou a cabeça e depois olhou nos olhos do esposo, um olhar quase vazio,
contemplativo. Não sabia o que dizer, pois fora pega de surpresa por tudo o que ele acabara de revelar.
Nada sabia da vida e seu conhecimento religioso não permitia aceitar o que acabara de ouvir, porque sua
religiosidade era baseada nos ensinamentos bíblicos que aprendera na igreja. Mas ele era seu marido.
Podia dizer que o conhecia bem, a ponto de acreditar e confiar nele. Não dispunha de nenhum padre e nem
de sua governanta para confidenciar, ouvir suas opiniões. Restava crer nele ou não.
- Se eu aceitasse o convite para iniciar na sua irmandade, o que teria que fazer? – perguntou ao
esposo.
- Eu me proponho a dar-lhe os primeiros ensinamentos. Depois a entregarei aos cuidados de
Senmuth, com quem deverá viver por alguns meses ou anos recebendo os ensinamentos preparatórios para
as provas iniciáticas.
- Alguns anos longe de você? Oh, meu amor, não sei se conseguiria...
- O que são alguns anos distantes um do outro, se como recompensa terá a vida inteira para estarmos
juntos? – disse o místico. – É necessário que desapegue a tudo o que te prende nesse mundo material para
alcançar o Saber, que são as vaidades, as paixões, a compaixão pela humanidade.
- Mas você, querido, é o primeiro a se preocupar com a humanidade...
- Me refiro ao tempo em que estará estudando e se preparando para as provas. É necessário que se
desprenda de tudo nessa terra. Depois, quando se sair vitoriosa, estará livre para aspirar ao que lhe
convier, desde que não interfira nos destinos do mundo.
- Há uma guerra, - prosseguiu o místico, - tempos difíceis pela frente. Penso que seria providencial
para nos ausentarmos desse clima terrível e dos acontecimentos funestos que estão por vir, mesmo porque
nada poderemos fazer para melhorar a situação.
- Irmos para onde? – perguntou a esposa.
- Grécia. Tenho uma propriedade em uma das inúmeras ilhas, e tenho como vizinho, em outra ilha
meu velho amigo Senmuth, que também deverá se dirigir para aquele lugar.
- Farei sua vontade, meu esposo. – disse a mulher com o coração ardente.

92
VINTEE UM
Mas voltando há algumas semanas atrás, ainda antes do final do mês de agosto, Heydrich havia
chamado Alfred Naujocks, um veterano da SS para que ele preparasse um ataque simulado à estação de
rádio de Gleiwitz, perto da fronteira com a Polônia.
- É necessário que se tenha provas irrefutáveis do ataque a ser apresentado à imprensa estrangeira e
alemã. Minhas instruções são para que a estação de rádio seja tomada por aparentes forças polonesas, e
que seja controlada o tempo suficiente para permitir que um alemão que fale polonês possa transmitir um
discurso contra o Führer naquele idioma.
Alfred Naujocks ouvia atentamente.
- Entretanto, - prosseguiu Heydrich. – um número de doze prisioneiros tirados de um campo
qualquer e envergando uniformes poloneses receberão injeções mortíferas ministradas por médicos de
minha confiança. Logo depois deverão ser levados até o local e deixados mortos no terreno próximo da
estação de rádio, logicamente, depois de terem sido fuzilados. Então entregaremos o resto do assunto ao
Ministro da Propaganda, que se encarregará de apresentar a nossa versão à imprensa estrangeira. Deverão
ser colocados mortos no local para que pareça que morreram em combate contra guardas alemães e
fotografados pela imprensa em geral como prova da agressão polonesa.
O plano foi posto em ação no dia 31 de agosto às doze horas e terminou às vinte horas do mesmo
dia. Goebbels tratou de esparramar a notícia previamente preparada para justificar o ataque à Polônia em
cadeia nacional e na imprensa escrita:
Uma tropa de insurretos poloneses invadiu na noite passada o prédio da Rádio Gleiwitz próxima a
fronteira com a Polônia. No momento eram poucos os funcionários de serviço. É evidente que os
agressores poloneses tinham perfeito conhecimento da estação. Agrediram o pessoal e invadiram o
estúdio atacando os funcionários com paus. Os incursores leram ao microfone um discurso de
propaganda preparado em polonês e alemão, declarando que a cidade e a estação de rádio estavam em
mãos polonesas, e concluíram com ignominiosa difamação a Adolf Hitler, que não temos a coragem de
repetir tamanha a sua maldade diante de um líder da altura do nosso Führer.
A notícia foi publicada em todos os jornais e distribuídos às agencias de notícias como uma nota de
desagravo do povo alemão diante do que ocorreu. Ainda pela manha do mesmo dia um grande contingente
do exército alemão marchou e se dispersou pela fronteira polonesa, para convergirem rumo a Varsóvia
pelo norte, sul e oeste, visando sitiar todos os pontos previamente delineados pelo acordo entre von
Ribbentrop e Molotov, que dividia a Polônia entre a Alemanha nazista e a União Soviética comunista.
Adolf Hitler, como uma forma de justificar-se perante o mundo, fez publicar em todos os jornais
germânicos sua grande surpresa pela atitude do país provocador que tomou uma estação de rádio de
propriedade do Reich, visando usar de seus microfones para impor suas vontades usurpadoras, além de
difamar seu governo.
A Polônia escolheu a guerra. À Alemanha resta contar com a compreensão da Grã-Bretanha e da
França para que não interpretem nossa atitude defensiva como provocação. O nosso problema é com os
poloneses, e com isso esperamos colocar um fim a esse incidente antes que tome proporções de um
conflito entre nações, que é o que não desejamos.
A guerra era mais do que certa porque não restava dúvida de que os aliados da Polônia reagiriam.
Com isso parte do Alto-Comando discordava das medidas tomadas por Adolf Hitler. Não via sentido em
estender uma guerra que poderia muito bem ser concluída com um compromisso entre aliados da Polônia,
que fatalmente comprariam sua briga com a Alemanha. Que tentassem ao menos resolver a questão por
meios diplomáticos, uma atitude sensata. A Alemanha não seria desmoralizada, pelo contrário, seria até
vista como um país que tem como princípio manter a paz entre nações.
- Além de não estarmos devidamente armados, Mein Führer, há a iminência do inverno que não
deixa de ser um transtorno para nossas tropas e um elemento de vantagem para eles do leste, habituados a
temperaturas baixas. – dizia um oficial do Estado-Maior à um Adolf Hitler aparentemente ofuscado pela
cegueira das conquistas. – As forças polonesas podem ser reequipadas e transferidas para o Ocidente. Nós

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ganhamos novos inimigos no decorrer dessas conquistas. Quem pode garantir que eles não se unirão para
lutar contra nós? A Grã-Bretanha e a França não vão tolerar nossas tropas sitiadas na Polônia.
- Chamberlain não está preparado para nos enfrentar. – reagiu Hitler.
- Mas não devemos esquecer de que Petain tem um dos mais bem equipados exército.
- Os franceses não querem a guerra.
- Ninguém de bom senso quer. – retrucou o oficial. – Também não devemos esquecer de que eles
possuem a Linha Marginot*(*A Linha Marginot era uma verdadeira fortaleza inexpugnável
idealizada pelo Ministro da Guerra francês André Marginot, construída para proteger o território
francês de um possível ataque alemão. Era protegida por cerca de vinte divisões e centenas de
canhões de longo alcance em toda a sua extensão, todos voltados para a Alemanha. Sua construção
iniciou em 1930, sendo concluída cinco anos depois)
- Um castelo com a base feita de areia. – retrucou Adolf Hitler rindo do que havia falado o seu
oficial. – Estudei muito a Linha Marginot a ponto de não me preocupar com ela. Quando os franceses
idealizaram a linha visando se protegerem de nós, cometeram o grande erro de construí-la da sua fronteira
com a Suíça até a divisa com a Bélgica, deixando a fronteira com a Holanda totalmente desguarnecida, o
que não impede que os ataquemos entrando por aquele setor.
Hitler falava com entusiasmo, confiante, colocando a certeza da vitória como algo corriqueiro sem
que fosse necessário empreender grandes esforços.
- Tenho ciência dos poderosos canhões apontados para nosso país, como também das suas divisões
muito bem protegidas dentro da linha. Também tenho plena consciência da grande inutilidade que é
aquela imensa fortaleza. Aquela muralha protetora não nos impedirá de ocuparmos a França, desde que
penetremos pela porta belga. André Marginot, quando idealizou aquele monumento à inutilidade esqueceu
que vivemos tempos que de nada adianta se esconder dentro de fortes ou cidadelas, como faziam há
muitos séculos. Hoje dispomos de canhões de longo alcance, da aviação com potentes bombardeiros,
aviões-caça. O próprio Napoleão Bonaparte já dizia: um axioma da arte da guerra que o lado que fica
dentro das suas fortificações é derrotado.
- Os franceses estão cegos e iludidos com a Linha Marginot. – prosseguiu. - É o que os levarão à
derrota. É por demais perigoso que a ideia de ter fortificações garantem a defesa do país. Tenham em
mente, meus oficiais, de que cabe ao general criar um espírito belicoso, pois de todas as forças na guerra
esta é a mais influente. Cabe também ao general tirar partido das armas assestadas contra ele.
- Nem por isso devemos subestimar o inimigo, Mein Führer. Não devemos esquecer que o inimigo
reage de acordo com as circunstâncias. A guerra é um jogo e vence sempre aquele que tiver o melhor
plano, que souber tirar proveito dos erros cometidos pelo inimigo.
- Segundo os informes de nossos agentes, a França possui 102 divisões, quarenta delas estendidas
do Canal da Mancha até a Linha Marginot com suas 26 divisões e mais 36 divisões alinhadas diante dos
alpes marítimos. – disse um oficial.
- Mas isso não constitui nenhum problema. Não devemos esquecer que em 1920 os franceses
estavam obcecados pela defesa, e ainda estão. Eles são como um coelho enfrentando um arminho, ficam
imóveis de medo, e assim farão quando dermos o primeiro tiro. – acrescentou Adolf Hitler.
Em contrapartida não restava dúvida de que os argumentos apresentados se baseavam em raciocínio
militar convencional. Mas também havia uma desconfiança subjacente na liderança de que uma guerra
seria nada mais do que um grande pretexto para Adolf Hitler extravasar toda a sua violência e
desumanidade. Assim, ignorando seus generais, no dia 1 de setembro ordenou um ataque contra a Polônia,
bombardeando impiedosamente a cidade de Varsóvia. Três dias depois a Grã-Bretanha declarou guerra a
Alemanha. Era o que Adolf Hitler esperava.
A Grã-Bretanha prefere a guerra, publicavam os jornais alemães em mais uma tentativa de mostrar
como uma nação que vivia sofrendo provocações se visse na obrigação de tomar uma atitude defensiva.
Estou decidido a agir agressivamente e sem muita demora, contra esses provocadores.
Dez dias depois a Polônia estava totalmente nas mãos dos alemães. Restava a Adolf Hitler dar
segmento ao seu ousado plano de conquistar a Europa, mesmo sem estar com um efetivo militar

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apropriado. Não podia mais parar porque o mundo acreditava na sua superioridade, e ele sabia que a
União Soviética não interferiria em seus planos, porque no tratado entre as duas potencias o Leste Europeu
seria dividido de acordo com a conveniência dos dois países. Mesmo sem confiar em Stalin sabia que,
pelo menos nos próximos dois ou três anos, a União Soviética não constituiria qualquer perigo.

Duas semanas depois Zaram e Ludmila seguiram de carro até Hamburgo, levando Ilya como
passageiro com a função de ficar com o automóvel durante a ausência de Zaram, que também havia
sugerido que ele ficasse morando em sua casa. Um hidroavião de dois motores com capacidade para
dezoito passageiros os aguardava. O avião tinha capacidade para transportar o casal e seus criados que
haviam viajado a Hamburgo de trem. Era uma aeronave nova com dois potentes motores e com autonomia
de vôo o suficiente para ir a Grécia e retornar sem que fosse preciso reabastecer.
Ludmila ficou assustada ao ver-se diante daquele avião enorme com cerca de trinta metros de
comprimento e três metros da água até o teto. Também espantados por ver uma aeronave pela primeira
vez, alguns criados murmuravam comentários em suas línguas diante daquele monstro alado. Zaram olhou
com curiosidade imaginado o processo que fazia com que saísse do chão, aquele equipamento mais
pesado do que o ar. Seus conhecimentos em física permitiam-lhe compreender todo o processo, a
aerodinâmica, a sustentação que as asas propiciavam, uma verdadeira maravilha da tecnologia moderna.
Ficou imaginando como seu povo veria uma maravilha dessas naquele tempo em que o transporte era feito
por liteira carregada por escravos. Participou de todo o processo de evolução, mas a partir da renascença o
mundo deu um grande salto, com conhecimentos que contribuíram muito para o desenvolvimento. Houve
um período em que ele se enclausurou por muitas décadas ao lado de Senmuth, pois o mundo vivia
envolto em trevas sob o domínio da igreja aversa a ciência. Anos de muitos estudos e experimentos.
Lembrou-se de um iniciado que viveu pouco nesse mundo, que preferiu morrer a ver sua genialidade cair
em mãos erradas. Sua genialidade é reconhecida até os dias atuais, suas obras Monalisa, A Virgem das
Rochas, A Ultima Ceia, O Homem Vitruviano, dentre outras obras, tem lugar de destaque nos mais
célebres museus. É assim que é conhecido, pelas suas pinturas e esculturas. Ignoram o sábio que foi, e
engenheiro, arquiteto, cientista, matemático, anatomista, o primeiro inventor a projetar o avião, uma
invenção muito avançada para a época, o tanque de guerra que só foi desenvolvido quinhentos anos
depois, assim como outros inventos. Também a teoria das placas tectônicas que explica os terremotos,
contrariando a igreja que atribuía o fenômeno a castigo de Deus pela iniqüidade dos homens. O próprio
Senmuth se encarregou de sua iniciação. Era um aluno disciplinado, desenvolvia teorias inconcebíveis
naquele Alto Renascimento. Cinco séculos se passaram desde que deixou este mundo. Como seria o
mundo de hoje com Leonardo da Vince vivo, e suas invenções?
Foi despertado de seus pensamentos pela chamada para embarque. Ele, esposa e seus criados
seguiram por uma ponte móvel até o hidroavião ancorado a cerca de quinze metros. Era uma bela
aeronave pintada de um azul claro que se misturava com a cor do céu. Em vez de rodas tinha duas
enormes pranchas e uma pequena asa a poucos centímetros do nível da água, para evitar que o avião se
inclinasse para ambos os lados. A cabine reservada para o casal não diferia muito da cabine de um navio,
com duas amplas poltronas que poderiam ser transformadas em camas, uma mesa para as refeições,
cortinas que os isolava de outras cabines de passageiros e cobertores. Ainda antes de decolar foi oferecido
bebidas de acordo com o gosto do passageiro. Tudo foi arranhado pelo Almirante Canaris que desejava
que seu amigo tivesse uma boa impressão de uma viagem pelo ar, como queria que tivesse uma boa
viagem.
O comissário fechou a porta, avisando que a duração do vôo seria aproximadamente de cinco horas
e que voariam numa altitude de três mil metros, que seria servido jantar e bebidas, Por ser um vôo fretado
os passageiros tinham liberdade de trocar de aposentos, caso assim quisessem. Pediu que afivelassem os
cintos porque a partir daquele momento iriam decolar, e que até que a aeronave subisse deveriam passar
por momentos de turbulência devido a ondulação da água.
A hélice na asa direita começou a girar fazendo um forte ruído. Um fiozinho de medo tomou conta
de Ludmila que apertou a mão do esposo a seu lado. Era possível sentir a vibração provocada pelo giro do

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motor. O segundo motor foi ligado, aumentando o ruído e a vibração. Ela olhou pela janela e viu na doca
flutuante um marinheiro soltando os cabos que segurava o hidroavião. O avião se moveu e o medo foi
aumentando. Não concebia a idéia de estar voando pelos céus dentro daquela aeronave. Com a outra mão
ela apertou fortemente o braço do marido. Zaram, percebendo a inquietação e o medo que ela sentia,
procurou acalmá-la, pois ele estava calmo e confiante e sugeriu que ela fizesse o mesmo. Logo estariam
ganhando os céus e a sensação ruim desapareceria.
O avião deslizou suavemente em direção ao meio do estuário se distanciando do cais, procurando a
posição do vento para poder decolar. Parou por um instante balançando suavemente sobre as águas
azuladas do mar. De repente ouviu-se um forte barulho feito um estrondo, como uma tempestade
desabando de forma repentina, enquanto os dois motores eram levados a potência máxima. Em seguida
arremeteu a frente causando forte pressão nas costas coladas no assento, deslizando a cada vez mais rápido
levantando espumas brancas nas janelas feito uma lancha enlouquecida. Aquilo parecia não ter mais fim, o
avião parecia ter se elevado alguns centímetros deslizando sobre as ondas, pulando de uma a outra, até que
sentiu que o bico estava levantado, inclinando um pouco para trás. Olhou pela janela e viu que estavam
voando, se distanciando gradativamente do mar.
Uma sensação de alivio fez com que o medo se afastasse. Ela pensou em como era bom viver, ainda
mais tendo Zaram a seu lado. Pensou se pudesse viver eternamente, ser feliz eternamente, ou se após a
morte havia uma vida sem os problemas do mundo. Passou por uma guerra entre nações, por uma guerra
civil em seu país, e agora essa guerra na Europa. Quando o mundo vai respirar a paz? Zaram havia dito
que para onde estavam indo era um lugar tranquilo e sem as agitações das grandes cidades, além de lá
poder estar longe do conflito que assola a Europa. Não necessita de nada, de festas, recepções, mesmo
espetáculos em teatros, principalmente nesses tempos modernos com a invenção da vitróla e do disco, o
rádio onde pode ouvir musicas, saber notícias do mundo inteiro. E com ele a seu lado não precisa de mais
nada. Ele é sua razão de viver.
O comissário veio com o menu para que ela escolhesse a refeição desejada. Eram saladas de frutos
do mar, saladas de legumes, caviar preto com ovos cozido, peixes frios, arengue a moda russa, lagosta e
uma carta dos melhores vinhos, além de champanhe para abrir o apetite. Tudo aquilo começava a tornar a
viagem agradável. Olhou pela janela e viu um azul sem fim em baixo e em cima. Tornou a pensar no
quanto era prazeroso viver, e tocou o marido carinhosamente beijando-o na face.
Cerca de cinco horas desde que haviam levantado vôo, ela tinha se acostumado com o ruído dos
motores, aquele som continuo, não tão alto a ponto de não ouvir a voz do marido quando este lhe dirigia a
palavra. De repente ficou mais silencioso causando uma espécie de vazio nos ouvidos. O comandante
desacelerava os motores para iniciar a descida e a aproximação.
Ficou deslumbrada com o que via, o mar, as praias, as ilhas. Zaram mostrou a ela uma ilha pequena,
se comparada com outra maior que mais parecia um continente.
- Nossa ilha, nosso refúgio, onde estaremos alheios a tudo que ocorre na Europa. – disse Zaram.
- Aquela outra ao lado da nossa pertence a Senmuth, a maior que parece um continente é Mikinos,
um lugar maravilhoso.
- Onde vamos pousar, querido? – perguntou ao marido.
- Em nossa ilha há uma pequena doca usada para barcos pequenos, e é lá que pousaremos.
Ainda antes de pousar o comandante deu uma volta pela ilha em voo rasante, verificando se não
havia sujeira, troncos de árvores ou qualquer outra coisa que pudesse comprometer a segurança da
aeronave.
Foi um pouso perfeito.

Passava da meia noite, quando bateram a sua porta. Ainda estava acordado, absorto em seus estudos
e experimentos num compartimento reservado de onde fazia suas meditações e contatos com os seres
etéreos. Trancou cuidadosamente a porta do quarto e foi atender o chamado. Era Helmut Miller um
alemão a quem conhecera e que fazia parte do Kindertransport*(*Transporte de crianças), que não

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concordando com a política nazista e as atrocidades que vinham cometendo, havia se aliado ao movimento
contra os nazistas.
Antes de entrar deu uma espiada ao redor para se certificar de que não era seguido. Cumprimentou
Ilya, ainda meio ofegante pela caminhada em passos rápidos a fim de despistar quaisquer possíveis
agentes da Gestapo.
- Ilya, meu camarada, bom te ver. – disse abraçando o amigo sem mesmo se aliviar do grosso casaco
e do gorro que usava. – temos assuntos a tratar. Urge que vá até a Polônia para buscar algumas crianças
antes que sejam enviadas à câmara de gás.
- Porque não se acalma e depois me conte tudo em detalhes? – interveio Ilya tranqüilizando o
visitante. – Aqui você está em segurança. Quer alguma coisa, um chá quente, um chocolate, ou um
conhaque?
- Obrigado, camarada. Não preciso de nada. Quero falar com você. Trata-se de uma missão perigosa
que requer um bom planejamento. – disse o outro. – Os nazistas estão promovendo genocídio em toda a
Polônia ocupada. Eles prendem judeus e enviam aos trabalhos forçados nos campos de concentração, onde
trabalham até morrer devido aos maus tratos infringidos pelos guardas ou por inanição, inclusive crianças.
Na verdade as crianças são exterminadas logo que chegam aos campos. São separadas dos pais e...
Helmut Miller interrompeu sua fala e começou a soluçar, enquanto Ilya se mantinha calado.
- Isso é só o começo. – disse Ilya rompendo o seu silêncio. - Muita coisa ainda está para acontecer.
Já há algum tempo os nazistas vinham prendendo judeus e os assassinando sumariamente de
maneira cruel. Nem mesmo as crianças escapavam, eram vulneráveis, fáceis de serem capturadas. Os
nazistas defendiam o assassinato de crianças por achar que eram perigosas, porque num futuro próximo,
ao se tornarem adultas, certamente, iriam se vingar. Como medida de segurança preventiva, ou como
retaliação aos ataques dos partizans, achavam por melhor eliminá-las ainda quando não ofereciam
qualquer perigo. Por outro lado, as chances de sobrevivência aos adolescentes entre 13 a 18 anos eram
maiores, porque podiam ser aproveitados no trabalho escravo. Muitas crianças, ao chegarem aos campos,
eram escolhidas para servirem de cobaias nas experiências medicas-cientificas com seres humanos, que
não suportando as experiências sem qualquer anestesia morriam agonizantes, ou morriam de inanição e
maus tratos.
Foi então que um pequeno grupo de judeus, misturados com partizans contrários ao nazismo,
formou os Kindertransport, o Transporte de Crianças, um movimento de resgate com o propósito de salvar
crianças da morte, levando-as para lugares seguros como a Grã Bretanha, França, Bélgica ou mesmo na
Alemanha. Ilya Abraãomovitch estava envolvido com os Kindertransport, e tinha facilidade de passar por
barreiras policiais com camionete cheia de crianças. Fazia uso de seus poderes e conhecimentos sem
qualquer receio porque era para uma causa justa, além de não molestar nenhum guarda.
- Essa guerra vai se alastrar por toda a Europa, meu caro Helmut. Então os problemas vão se
agravar. – Ilya disse com certa tristeza nos olhos.
- Fala com certa convicção. – disse Helmut – A Grã Bretanha, juntamente com a França, não vai
permitir, juntas ainda vão acabar detendo Hitler, acredite.
- Muito me admira seu otimismo. Acaso acha que Hitler começou tudo isso por mero prazer pela
aventura? – prosseguiu Ilya – Nesse tempo todo ele foi se preparando, se armando e criando soldados
corajosos capaz de dar sua vida por ele. São fanáticos e nisso mora o perigo, porque esses soldados lutam
sem pensar e nem medir consequências. Homens assim valem por dois, acredite.
- Você também é ousado, Ilya, ignora os perigos que o cercam. Não nego que me admiro, mas a
prudência...
- Se pensarmos antes de agirmos não faremos nada, e do jeito que as coisas caminham não temos
tempo a perder. Nosso objetivo é salvar essas crianças e enviá-las a países fora do conflito onde ficarão
em segurança, não é por isso que estamos aqui conversando?
- Sim, Ilya. – interveio o jovem alemão – O tempo urge. Você precisa ir à Polônia, pois no final de
semana um trem partirá de Varsóvia para Auschwitz com centenas de judeus e seus filhos. Devemos
salvar as crianças, e se possível, seus pais, o que não acredito que seja possível ainda antes de

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embarcarem. Estão todos confinados num campo de trânsito. Temos um grupo que resgatará as crianças
que terão que sair de lá o mais depressa possível.
- E como as trarei até aqui? – perguntou Ilya.
- Deverá seguir à Chanbon-sur-Lignon, uma cidade no interior da França em uma comunidade
protestante onde pessoas de boa vontade estão te esperando. O transporte deverá ser feito de caminhão
com a carroceria fechada, e você será o motorista. Já está tudo arranjado, uma enfermeira polonesa viajará
contigo para dar assistência a alguma criança que por ventura venha a adoecer, pois estão debilitados
devido aos maus tratos e a alimentação precária.
Ilya ficou pensativo, parecia estar fora desse mundo, distante, olhar perdido deixando Helmut
apreensivo sobre a resposta do amigo, até que Ilya se manifestou:
- Porque não deixar essas crianças aqui na Alemanha?
- Aqui? – disse surpreso o jovem alemão – Perigoso demais...
- Tenho um lugar onde posso deixar essas crianças em segurança. Talvez não aqui em Berlim, mas
em outro lugar- disse Ilya pensando na possibilidade de deixa as crianças na casa de Zaram. A casa tinha
um porão grande onde poderia abrigar dezenas de crianças e mesmo adultos. Somente não queria revelar
ao amigo para evitar quer caso fosse pego pela Gestapo, acabasse revelando onde estavam escondidos.
Quando partiu para a Grécia Zaram pediu ao amigo para que transferisse sua residência para a sua
casa, assim como também que ele ficasse com o automóvel, porque ia se ausentar por um período longo.
- Como achar melhor, Ilya, contanto que resgate aquelas crianças. Você receberá as instruções na
fronteira com a Polônia através de um de nossos homens que se dirigirá até você. Temos que agir assim
para evitar sermos descobertos.
- E você, estará bem? – perguntou Ilya.
- Tenho outras coisas a fazer, contatos e preparar sabotagem num trem que sairá de Berlim rumo ao
campo de Dachau. Vamos tentar salvar algumas vidas antes que a guerra se espalhe por tida a Europa.

Ilya saiu logo pela manha seguindo em direção Frankfurt Oder. Não era um trajeto longo. Poderia
percorrer até a divisa em pouco mais de quatro horas. Próximo ao Rio Oder, que separa a Alemanha e a
Polônia, parou num lugar indicado para comer um sanduíche que trouxera consigo. Encheu o tanque de
gasolina porque aquele posto ainda não estava racionando gasolina. Estava sentado no estribo do
caminhão quando foi abordado por um jovem que lhe pediu carona até Varsóvia, Ilya examinou
minuciosamente o rapaz, que deduziu não ter mais do que dezesseis anos de idade.
- Você precisa de uma enfermeira? Conheço uma em Varsóvia – disse o rapaz. Era a senha para se
certificar que era a pessoa com quem devia se encontrar.
A viagem transcorreu sem incidentes, apesar de terem se defrontado com diversas barreiras pelo
caminho. Ilya olhou com pesar para aquela cidade semidestruída pelas bombas alemãs por ocasião da
invasão. As ruas eram um verdadeiro amontoado de pedras, casas e prédios destruídos. Pessoas andavam
pelas ruas a procura de algum alimento em meio à destruição, carros incendiados, lojas comerciais com as
portas arrebentadas e as prateleiras vazias. Soldados alemães faziam patrulha pela cidade, mas em
momento algum foram incomodados. De certa forma reinava uma paz, pois não havia combate, os
poloneses haviam se rendido logo nos primeiros momentos da invasão alemã.
Pararam o caminhão em frente a uma igreja católica romana. Foram recebidos por um padre que
ofereceu comida e uma cama para que descansassem, pois dali a algumas horas Ilya estaria de volta à
estrada rumo à Alemanha.
Ilya dormia um sono profundo quando foi despertado pelo padre que o apresentou aquela que seria a
sua companheira de viajem, uma mulher na casa dos trinta, aparência jovem, corpo magro, baixa estatura,
não era bonita, mas irradiava simpatia.
- Zenobia Valnska – disse num alemão fluente e com um sorriso aberto – Espero que saiba dirigir
bem, pois temos uma longa viagem pela frente;
- E as crianças – perguntou.
- Estão no caminhão – respondeu o padre. –Bom se apressarem.

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- Mas como conseguiram resgatar essas crianças? - Ilya perguntou curioso.
- Esses alemães são estúpidos. Jamais entram no campo. Além do mais, temos gente lá dentro que
nos da apoio. Talvez deem por falta das crianças por ocasião do embarque nos trens, mas acho remota essa
possibilidade. Agora vão que a viagem de volta e longa e perigosa.
- Quantas crianças? – perguntou Ilya.
- Cinquenta e duas crianças de ambos os sexos e nove adultos.
- Muita gente espremida dentro daquele baú sem ventilação – disse Ilya – Mas farei com que a
viagem se torne tolerável. Temos comida para todos?
- Vocês serão reabastecidos em determinados pontos por equipes de apoio – o padre disse a eles. –
Agora vão e que Deus os protejam, meus filhos, estarei rezando por vocês.
Era noite quando deixaram a capital polonesa em meio aos escombros embranquecidos pela neve.
Contudo, a noite não era fria, e aqueles corpos um ao lado do outro se aqueciam. Ainda antes de deixarem
a igreja foram alimentados com sopa quente e pão. Ilya se impressionou com o estado de saúde das
crianças, magras, mal nutridas. Estavam agasalhadas graças às roupas dos prisioneiros que chegavam, e
que o padre havia conseguido para elas.
Viajaram madrugada adentro sem incidente. Ainda estavam em território polonês ocupado, quando
se depararam com uma patrulha alemã com cães. Ilya parou o caminhão. Um soldado portando uma
lanterna se dirigiu até a janela da cabina do caminhão. Ainda antes que dissesse qualquer coisa Ilya olhou
no fundo de seus olhos dizendo:
- Você não verá nada ali atrás.
- Inspeção de rotina – disse o soldado. Desça e abra a carroceria para que eu possa inspecionar.
Zenobia ficou abismada com a frieza e segurança do seu companheiro mediante uma situação como
aquela. Pensou que tudo estava a perder porque sabia o que aconteceria com eles caso fossem descobertos.
Nem dois minutos haviam se passado quando Ilya retornou e seguiram adiante. Ela ainda teve a
impressão que ouviu o guarda gritar a outro soldado: está vazio. Havia boatos de que alguns soldados,
penalizados com o que se passava com o povo judeu, faziam vista grossa, e com isso salvando muitas
vidas. Presumiu que foi o que ocorrera. Nada comentou com Ilya.
Ainda dentro do território polonês pararam para abastecer o veículo num lugar fora da estrada onde
um grupo os esperava com comida e gasolina estocada em tambores. Ali as crianças puderam descer do
caminhão para se exercitarem e comer, tomar chá quente. Ilya foi alertado sobre a patrulha que guardava a
fronteira, que melhor seria se esperassem até a noite seguinte para atravessar, pois os combates entre
alemães e os Aliados ingleses e franceses estavam se intensificando, levando a Alemanha a tomar medidas
cautelosas temendo a ação dos partizans em território alemão.
- Não tenho medo – disse Ilya – Vou seguir em frente conforme o programado. O perigo está em
todo lugar a qualquer momento. A mais, durante o dia o movimento de carros é maior, de modo que, com
um pouco de sorte poderemos passar para o outro lado sem problemas.
Minutos depois seguiram em frente. O dia estava amanhecendo quando chegaram à fronteira entre
os dois países separados pelo Rio Oder. Um soldado pediu para que ele e a enfermeira descessem porque
ia inspecionar o caminhão. Havia muitos soldados no lugar e alguns carros parados. Ilya desceu e
apresentou primeiramente os documentos do veículo, conforme foi exigido. Depois seus documentos onde
constava como judeu russo, e os documentos da enfermeira de nacionalidade polonesa. Antes mesmo que
o soldado examinasse os documentos, ouviu uma frase quase que num sussurro da boca de Ilya:
- Somos legais e no caminhão você não verá nada ali atrás.
O que se passou dali em diante é deveras curioso. O soldado examinou os documentos e depois
pediu para que Ilya abrisse a porta traseira da carroceria do caminhão, onde os refugiados estavam. O
soldado olhou e, segundo ele, não havia ninguém lá dentro. Deu ordens para que seguissem adiante.
Zenobia não acreditou no que acabava de presenciar, porque dentro daquele baú de metal estavam
cinquenta e duas crianças e nove adultos. Como podia um experiente soldado não ver em plena luz do dia
aquela gente amontoada dentro daquele abafado compartimento do caminhão? Contudo, ela estava feliz
por mais aquele episodio em que se saíram bem diante dos soldados alemães. Um verdadeiro milagre.

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Pensou no padre, só podia ser ele com suas orações. Mas em seguida pensou: quem permitia que os
alemães cometessem esses crimes contra pessoa inocentes? Deus? E esse mesmo Deus livrava alguns do
holocausto, permitindo que outros padecessem até a morte?
Contrariando as ordens de seguir para a França, Ilya seguiu em direção a Munique onde pretendia
abrigar aquela gente e cuidar da saúde deles com suas porções. Zenobia não contestou porque também
achava que eles não aguentariam uma viagem tão longa até a França. Ilya parecia ser um homem com
quem valeria a pena conversar sobre assuntos mais profundos, um judeu não praticante, alguém para falar
sobre tudo que vinha a sua mente, o padre, suas orações em favor deles, conseguir passar por duas
barreiras. Sorte ou a mão de Deus? E esse mesmo Deus permitia que os alemães fizessem todas as
atrocidades que vinha ocorrendo contra o povo judeu?
- Ilya, que Deus é esse que permite que uns morram e salva uma minoria? – disse quebrando o
silencio da viagem por estradas alemãs. Ilya era de pouca conversa, não deixava de ser estranha sua frieza
diante de situações em que exigiam nervos de aço, sua certeza e sua coragem. Coisas nada convencionais
ao homem comum. Resolveu quebrar aquele gelo, dizer tudo a ele, o que pensava sobre tudo o que vinha
acontecendo, os nazistas, Adolf Hitler, a SS, principalmente o que mais lhe intrigava: porque Deus salva
uns e deixa que outros morram na miséria imposta pelos nazistas?
- Deus não interfere nas nossas vidas, nas coisas erradas que fazemos, em nossas escolhas. Ele nos
deu o livre arbítrio. – disse Ilya – Ele não privilegia um e permite que o outro padeça. Essa guerra, essas
atrocidades que os alemães estão cometendo, acha que é vontade de Deus? Tudo fruto da ganância, do
egoísmo, a sede pelo poder, coisas do homem.
- Por duas vezes conseguimos passar ilesos por duas barreiras –interveio Zenobia – Sei que o padre
e muitos dos nossos estão fazendo orações para que possamos conseguir salvar essas crianças. Deus ouve
as preces daqueles que Nele crêem.
- A prece nos eleva, nos coloca num plano em que alcançamos a amplitude, a paz e reforça a nossa
fé, nos permite um otimismo e confiança propiciando-nos o sucesso daquilo que almejamos. – disse Ilya a
uma Zenobia atenta e tentando compreender aquele homem ao seu lado, com idéias nada convencionais, e
ela via coerência em que ele falava.
- Poucos homens conhecem os poderes que possui, - prosseguiu Ilya - e uma minoria sabe fazer uso
adequado dos seus poderes, seja de persuasão, poder de aliviar a dor daquele que sofre, poder de curar, de
salvar vidas. Tudo é possível ao homem. Veja o próprio Adolf Hitler, ele tem o poder de dominar a massa,
de comandar multidões, induzir pessoas a guerra sem que elas questionem. Acha que é Deus ou o Ser do
mal que está por detrás disso tudo? Nem um e nem outro, puramente o homem.
- Ilya, você fala como filósofo. De onde tira essas ideias?
- Tirar ideias? Tudo está a nossa disposição, a filosofia, a história, a química, a física, os livros. A
natureza é um verdadeiro laboratório, e pergunto: quantos se interessam em pesquisar a natureza? – disse
Ilya enquanto dirigia por aquela estrada que levava a Munique.
- Acho você estranho, Ilya. Fala pouco, tem ideias diferentes dos outros rapazes, e como partizan
nada diz sobre planejarmos atentados, não olha os soldados alemães com ódio e tampouco fala sobre eles.
O que tem em mente?
- Se pudesse interromperia esta guerra. – respondeu – E como não posso, procuro ajudar quem quer
que seja para amenizar seu sofrimento e salvar das mãos do verdugo.
- Acha seguro levar essa gente para sua casa? – indagou a moça.
- Eles precisam de cuidados médicos, boa alimentação, e em minha casa posso cuidar disso tudo.
Aliás, a casa é de um amigo que se refugiou na Grécia. É ampla, tem um pomar repleto de frutas e uma
grande horta de onde poderemos colher alimentos. Com esse racionamento fica difícil adquirir alimentos
para essa gente toda nos postos de abastecimento sem levantar suspeitas.
- Que Deus esteja sempre ao seu lado, Ilya Abraãomovitch.

VINTE E UM

100
Quando se vai à Grécia, ao chegar se depara com um lugar exuberante, com o Mediterrâneo de um
azul que se funde com a cor do céu, um museu a céu aberto repleto de monumentos que guardam séculos
de história. Há também cerca de seis mil ilhas, cada qual com sua história, seus encantos. Uma dessas
ilhas, Mikinos, a mais conhecida, que abriga há muitos séculos os antigos moinhos, que devido a posição
geográfica da ilha foram construídos centenas, para que fosse aproveitado a abundância de ventos, além de
estar na rota do comercio entre a Europa e a Ásia. A necessidade de refinar os grãos e compactá-lo para o
transporte fez de Mikinos a localização perfeita. Na parte ocidental se situa um bairro antigo, mais
conhecido por pequena Veneza, com seus edifícios construídos a beira d’água e entre alguns canais, com
casas com suas varandas sobre as águas azuladas do mar. Por volta dos séculos XVI e XVII a pirataria era
comum nessa região, utilizada para carga e descarga de mercadoria. Também tem os casarões que
remontam há séculos. E a pouco mais de duas milhas situa a ilha de Zaram, tendo ao norte dessa ilha outra
ilha quase com as mesmas dimensões. É a ilha de propriedade do místico e sábio Senmuth.
Aquele lugar era o que tinha de melhor para fugir daquele ambienta onde o mal era latente, o clima
de tensão propiciado pela guerra, pelas maldades dos nazistas contra aqueles considerados inimigos do
Reich. Além do mais o lugar dava um clima recheado de romantismo para quem e se entrega de corpo e
alma a pessoa amada. Mais ainda para quem deseja absorver tudo aquilo que lhe é ensinado para alcançar
o Saber, tornando tudo ainda melhor se é o próprio marido quem se presta a ensinar, ser o seu mestre.
Que ficasse a Alemanha com sua guerra, seu Adolf Hitler com seu racismo desenfreado e
incoerente, pois como pode alguém falar sobre raça pura, o homem perfeito segundo os seus conceitos
sobre a perfeição deixada pela natureza, quando os próprios lideres são homens com doenças crônicas,
defeitos físicos, como era o caso do Ministro da Propaganda, um homem como Heinrich Himmler, cheio
de complexos pela sua incapacidade física de não poder praticar esportes que tanto desejava, como
Hermann Goring, um obeso viciado em drogas para poder superar seus complexos, Reinhard Heydrich
que se embriaga no álcool para tentar apagar de sua mente as suas origens judaicas, e o próprio líder dessa
massa doente, o Führer do povo alemão, um homem com sérios problemas gástricos devido a uma sífilis
adquirida na sua juventude e a sua megalomania e seu delírio expansionista. Que fique tudo isso na
Alemanha nazista. Ela tem essa ilha maravilhosa, uma ilha de propriedade de seu marido. Suas praias
paradisíacas, a paz e o sossego que somente um lugar como este pode propiciar com clima temperado. A
alegria de viver distante das atrocidades promovida pela ganância do homem, e estar ao lado do marido,
quem se dispôs a conduzi-la a senda da Luz.
Ela caminhava descalça pela praia, feliz, sorridente feito uma adolescente. Não podia haver melhor
lugar no mundo para se refugiar de uma guerra. O sol, o calor moderado e, principalmente a paz.
A propriedade era uma construção antiga, não tão suntuosa como a casa de Munique, mas o
suficiente grande para um casal, com diversos cômodos, uma ampla sala para recepcionar as visitas e
promover banquetes como Zaram gostava. Uma área verde repleta de plantas e flores, árvores frutíferas e
toda sorte de legumes. Um mar azul, a diversidade de pescado e frutos do mar frescos que os pescadores
traziam pela manha. Além de tudo não se distanciava a mais de quinze minutos de barco até Mikinos,
onde se podia desfrutar de bons restaurantes, lojas com roupas da moda e toda sorte de mantimento, A paz
da pequena ilha era o lugar propício para quem desejava receber os primeiros ensinamentos, aprender e
iniciar nos mistérios da irmandade a qual pertencia Zaram.
À noite saíram sob aquele céu estrelado. O casal caminhava na noite iluminada pela luz das estrelas
num caminho formado pela passagem humana, uma trilha em meio à vegetação e a diversidade de plantas,
tudo aquilo que um místico apreciava, o seu mundo de onde extraia remédios para os diversos males, que
o químico profissional ignorava. Era nesse sítio que Ludmila Semionova ia começar seu aprendizado.
- O homem é arrogante à proporção de sua ignorância, e sua tendência natural é o egoísmo. – dizia o
esposo enquanto caminhavam de braços dados - Na infância do saber ele pensa que toda a criação foi feita
para ele. Por muitos séculos viu nos inimputáveis mundos que brilham no espaço, como as borbulhas de
um imenso oceano, apenas pequenas velas que a Providência se viu comprazida em acender com o único
fim de tornar para nós a noite mais agradável.

101
Ela ouvia com admiração o que seu marido explanava, um conhecimento raro aos homens comuns.
Desde que se decidira a se preparar para fazer parte da Irmandade, estava disposta a se dedicar com afinco
para ser digna de alcançar o segredo da longevidade. No inicio não era tão fácil assimilar o que lhe era
dito, porque o verdadeiro ensinamento estava nas entre linhas que aos poucos ela foi compreendendo.
- O viajor olha a arvore e imagina que os seus ramos foram formados para livrá-lo do ardor dos
raios solares do verão, ou para fornecer-lhe o combustível durante o frio do inverno. – prosseguiu o
místico - Mas em cada folha desses ramos o Criador fez um mundo que é povoado de inúmeras formas de
vida. Cada gota de água naquele rego é um orbe, mais cheio de seres do que de homens na terra. Em todas
as partes, nesse imenso plano de existência, a ciência descobre novas vidas. A vida é um principio que
atravessa tudo, e ate aquilo que parece morrer e apodrecer gera uma nova vida e da novas formas a
matéria. Não há uma folha nem uma gota de água que não seja como aquela estrela, um mundo habitável e
respirante. Ate o homem mesmo é um mundo para outras vidas e milhões, bilhões de seres habitam nos
corredores do seu sangue, vivendo no seu corpo, como o homem habita a terra, e o senso comum bastaria
para ensinar que o infinito circulante que chamam espaço é iluminado, impalpável que separa a terra das
estrelas, está cheio de sua correspondente e apropriada vida. Para penetrar nessa barreira é preciso que a
alma seja aguçada por um imenso entusiasmo e purificada de todos os desejos terrestres. Quando está
assim preparada, a ciência pode, depois, vir em seu auxilio, a vista se torna mais sutil, os nervos mais
agudos, o espírito mais vivo e penetrante, ate os elementos do ar, o espaço por meio de certos segredos da
química superior podem se tornar mais palpáveis e claros. Isso não é magia no sentido que esta palavra dá
os créditos. Se com esse termo se pensa numa ciência que viola a natureza, não existe. Ela é apenas a
ciência que as forças da natureza podem ser dirigidas, dominadas e aproveitadas. No espaço há milhares
de seres, não literalmente espirituais, mas que tem todos como os animálculos invisíveis ao olho nu, certas
formas de matérias, se bem que tão delicada e sutil que parece não ser mais do que uma película, uma
penugem que cobre o espírito.
A rotina de Ludmila era, ora com Zaram ensinando-lhe os princípios básicos aguçando seu intelecto
e o interesse, ora com ensinamentos mais filosóficos do que práticos, que exigia da mulher maior atenção
e reflexão. A cada dia tudo ficava mais interessante, um mundo novo se descortinava diante dela. Passava
horas a fio entregue aos estudos e experimentos. Surpreendia-se e ficava maravilhada com os resultados
dos experimentos e com seu poder de concentração.
Era prazeroso caminhar ao lado do esposo, às vezes uma saída para um passeio a ilha de Mikinos
com seus restaurantes, seus museus e sua história. Zaram ia lhe contando passagens interessantes que ele
próprio havia presenciado num passado remoto, quando piratas passavam pela ilha para recrutar
marinheiros, fazer seus negócios, de quando os moinhos funcionavam vinte e quatro horas ao dia.
Mas a guerra não dava tréguas. Benito Mussolini invadiu a Grécia, mas as tropas italianas foram
logo rechaçadas pelos heroicos soldados gregos ajudados por tropas inglesas. Contudo, não chegou a
afetar a ilha de Mikinos. Os italianos foram embora. Poucos meses depois, naquele mesmo ano de 1941,
as tropas nazistas invadiram a Grécia e muitas das suas ilhas, incluindo Mikinos, mas não incomodaram a
Ilha onde Zaram habitava com sua mulher. Ludmila não podia compreender como que ainda não tinham
chegado até onde eles moravam, e abismada por este fato, perguntou ao marido:
- Não se trata de magia, mas de conhecimento das leis da natureza, que nos possibilita uma maneira
segura de nos protegermos, como se tornássemos esta ilha invisível aos olhos deles. – dizia à mulher ainda
boquiaberta pelo que ouvia.
- Se dispõem desse conhecimento, por que não protege toda a ilha de Mikinos? – indagou a mulher.
- Protejo a minha propriedade, isso não é interferir nas leis da natureza. – respondeu. – Veja
Senmuth, deixou Nápoles antes que a cidade sofresse bombardeios. Você pode questionar o porquê de ele
não proteger a sua propriedade, e lhe respondo: seu castelo fica no meio de toda a terra de Nápoles, o que
é bem diferente de nossa ilha que é nossa propriedade. É impossível proteger uma casa de bombardeios
lançados a distância. Se os alemães resolverem lançar bombas sobre esse lugar nada poderei fazer para nos
proteger, mas se isso acontecer saberei antes e em tempo hábil para nos retirarmos em segurança. Ainda é
cedo para entender esse princípio. Saberá tudo isso em seu devido tempo.

102
- Não pode prever que esse lugar seja invadido pelos alemães? – indagou a mulher.
- Tanto eu, quanto Senmuth, sabia disso o tempo todo, como também sabíamos que não seriamos
afetados em nossa ilha, - respondeu o místico. – Como acha que há tantos séculos Senmuth e eu temos
escapado da morte? Para nós, ficar na Alemanha, estaríamos expostos a riscos, da mesma maneira que
Senmuth em seu castelo da colina. Não tardará para que a bela Nápoles, como grande parte da Itália, seja
bombardeada pelas tropas aliadas. Por isso ele se retirou.
- E Ilya, não sabe dos perigos que o cercam? - novamente a mulher.
- Ele sabe se safar. Além do mais, ele não vai permanecer enfiado dentro de casa. Tem muito que
fazer, viajando em seu nobre trabalho de salvar vidas, evitando que inocentes caiam nas mãos dos
nazistas.

Ilya Abraãomovitch foi acordado com fortes batidas a sua porta. Levantou em sua habitual calma e
foi atender. Era Helmut. David, um rapaz de descendência judaica, havia sido levado pela Gestapo e ele
temia pelo o que pudesse acontecer ao amigo, porque sabia como eram os métodos de tratamento aos
prisioneiros suspeitos de ser contra o regime. Se fosse preso como judeu seria enviado aos campos de
concentração. Mas o pior seria ter que confessar suas atividades antinazistas e ter que delatar seus
companheiros, o que fatalmente aconteceria.
- Ele suportará o interrogatório, caso seja suspeito de pertencer a alguma organização antinazista. –
disse Helmut – Ele é forte, resistirá.
- Ninguém resiste a um interrogatório, camarada. – interveio Ilya – os métodos nazistas são os mais
cruéis. Além do mais, depois de dizer tudo o que eles desejam saber eles acabam por assassinar o
interrogado. Mas o pior disso tudo é que se o prenderam é porque sabem de suas atividades, o que faz e
quem são seus companheiros, compreendeu?
- Isso quer dizer que estamos em perigo, certo? –disse Helmut.
- De certo modo sim. – respondeu Ilya em sua calma habitual como se nada estivesse acontecendo –
O melhor a fazer é nos retirarmos temporariamente até que as coisas esfriem, mas antes de tudo temos que
resgatar nosso amigo.
- Impossível- disse Helmut – Será que não entendeu o que eu disse? Ele foi levado para Berlin, na
sede da Gestapo na PrinzAlbertstrasse 8, sob a direção de Himmler.
- Não se preocupe, vamos preparar uma fuga para Munique, diretamente para esta casa. e deixe que
me encarregue de David. .
Ilya Abraãomovitch chegou a sede da Gestapo ainda antes do amanhecer. Dirigiu-se a recepção
onde um homem em trajes civil o recebeu. Perguntou por David e foi informado que não se encontrava
detido naquele local. Ali mesmo ele se concentrou buscando localizar o amigo. Tudo não passou de mais
de dois minutos para ter a resposta desejada. Saiu da sede da Gestapo indo diretamente a um campo de
transito onde uma multidão aguardava para embarcar num trem com destino a um campo de concentração
anexo a uma fábrica para o trabalho escravo. Dirigiu-se a administração procurando pelo amigo. Não teve
dificuldade para que localizassem o rapaz. David se encontrava preso num barracão imundo onde algumas
centenas de prisioneiros aguardavam o transporte para o campo de trabalhos. Vestia o uniforme de
prisioneiro, um pijama listrado com uma enorme estrela do lado esquerdo do peito. Barba por fazer, uma
aparência horrível. Sem qualquer formalidade o rapaz foi liberto. Arranjaram-lhe uma roupa qualquer e
David deixou aquele lugar sinistro na companhia de Ilya, sem compreender como ele havia conseguido
tamanha façanha. Depois levou Davi diretamente à estação de trem onde Helmut o aguardava, e partiram
rumo a Munique.
Naquela noite, Ilya se fechou em seu quanto em busca de conselhos. Chamou por Adonai, mas suas
súplicas não chegaram às alturas. Deparou-se com o Espectro do Umbral com toda a sua maldade.
- Para onde deseja ir, filho da terra? – disse ao místico com intuito de provocá-lo – Seu lugar é na
terra entre toda maldade que acontece, para que se prepare para o que ainda está por vir. Por que não se
junta a mim? Posso dar-lhe mais poderes do que...

103
- Cala-te, ser desprezível - Ilya interrompeu o espectro – Eu não lhe chamei. Esconjuro-te, ser do
mal. Saia da minha frente que tenho que seguir em busca da luz.
- Acha que ele o ouvirá? Você se envolveu demais com os problemas da humanidade, portanto não
vai mais conseguir elevar-se as alturas. Como pensa que conseguiu salvar aquele rapaz das garras dos
carrascos nazistas? Eu estava ao seu lado, eu protegi aquele rapaz das mãos dos interrogadores e retardei o
envio ao lugar destinado aos presos. Como acha que tem conseguido driblar...
- Chega, criatura horrenda – ordenou com fé e firmeza, com o pensamento no Filho da Luz, na
tentativa de alcançar as alturas. O espectro minguou mediante a força com que Ilya lhe dirigiu a palavra.
- Se aparte do meu caminho e deixe que me encontre com Adonai, pois suas mentiras não me
enganam.
De repente a luz prateada encheu o quarto fazendo com que o espectro minguasse ainda mais, dando
lugar ao Ser Celestial que veio para atender o chamado daquele a quem já há certo tempo havia vencido o
filho do mal.
- Quase não ouço o seu chamado, - disse-lhe Adonai – Quando lhe disse para que fizesse o que
achava que tinha que fazer em prol dos homens, te alertei para que não se desviasse forçando situações
porque isso poderia te afastar dos seres etéreos.
Enquanto Adonai falava o espectro permanecia acocorado num canto, minguado, mas com aquele
olhar malévolo observando Ilya, como que esperando que Adonai fosse embora para ele retornar.
- Você tem sabedoria suficiente para discernir sobre até onde pode agir fazendo uso dos
conhecimentos adquiridos. Nada impede que saja fazendo como faz qualquer ser humano, incorrendo a
riscos. No tempo em que era discípulo foi-lhe explicado o porquê de não ensinar esses segredos àqueles
que, apesar de serem pessoas dotadas de bons princípios, não tinham o devido preparo e autocontrole para
saber usar de poderes que podem até mudar o curso do rio, pois é o que está fazendo. Já nem sabe mais o
que é o medo, vive no meio dos lobos e chacais ignorando suas forças e a maldade que têm em seus
corações. Desafia a montanha que ameaça jogar-se sobre sua cabeça, abre destemidamente o peito para
canhões apontados na sua direção. Quem pensa que é? Acha que tem a sabedoria de Zaram e Senmuth
com seus séculos de existência? Ainda há séculos de aprendizado pela frente. Lute pela humanidade, salve
pessoas a beira do cadafalso, mas sem interferir na roda que determina quando deve parar de girar.
Ilya olhou no canto do quarto iluminado pelo esplendor pela presença de Adonai, e o espectro não
se encontrava mais ali.

A ilha de Zaram era quase que autossuficiente, pois dispunha de uma lavoura que supria as
necessidades básicas de sua casa, de seus criados e os agricultores quer viviam no lugar. Em sua
residência viviam oito criados, cozinheiros, copeiras, o serviço de limpeza. Tinha aqueles que cuidavam
da plantação, em número de trinta, dois pescadores e ainda o piloto da lancha que fazia o trajeto da ilha até
Mikinos. Esses tinham suas casas ao redor da residência de Zaram. Toda criadagem consumia uma
quantia considerável de alimentos, e Zaram jamais em sua vida permitiu que seus criados passassem por
privações, na maioria das vezes comendo o mesmo que ele comia.
De tempo em tempo alguém ia á Mikinos comprar mantimentos para um período de dois a três
meses. A cidade dispunha de um bom comércio com tudo que fosse necessário para manter uma casa
como a de Zaram, desde roupas, utensílios domésticos, alimentos, bebidas, implementos agrícolas e tudo
mais. Mesmo a despeito de ir de vez em quando à cidade, fosse para jantar com sua esposa nos excelentes
restaurantes que a cidade oferecia, ou simplesmente para um passeio, ele jamais se envolvia em compras
de produtos, passando esse encargo a um funcionário.
Certo dia, logo após a retirada das tropas italianas, seu criado incumbido de fazer as compras na
vizinha ilha de Mikinos, chegou apavorado na residência do místico procurando pelo patrão. A mando de
Zaram, tinha ido a Mikinos para fazer compras de tudo que necessitavam. Alguns alimentos, como frutas e
legumes, assim com pescados, eram adquiridos na própria ilha de Zaram, da horta própria e os peixes que
seus empregados pescavam. Mas muita coisa dependia da cidade, principalmente o trigo que era moído
nos moinhos de Mikinos.

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- Os alemães saquearam quase toda a ilha – dizia o criado – Os nazistas distribuíram cartões de
racionamento à população e disseram que temos que nos cadastrar se quisermos receber alimentos.
- Basta, meu fiel amigo. – interveio Zaram – Compreendo o seu desespero, mas também sabe que
aqui nada nos acontecerá. Irei pessoalmente e resolverei esse problema, e você irá comigo.
Algumas horas depois a lancha de Zaram aportava num cais destinado a pequenas embarcações.
Zaram se surpreendeu ao ver tantos soldados alemães ocupando a ilha. Os oficiais, ostentando arrogância,
se deliciavam com o vinho e o pescado da região, sentados em seus impecáveis uniformes azulados pelos
restaurantes com cadeiras espalhadas pelas calçadas com a bela visão que o mediterrâneo proporcionava,
como se não houvesse uma guerra para ser travada. Soldados e marinheiros se ocupavam do árduo
trabalho de encher os porões dos navios alemães ancorados no porto com o produto do saque, desde
alimentos, pescados, azeite, colheita agrícola, a materiais de toda espécie e ferramentas, e o farto trigo
guardados nos silos das centenas de moinhos.
Dirigiu-se a um oficial que bebia com seus companheiros uma taça do bom tinto da região. O oficial
olhou com desdém àquele estranho que teve a ousadia de interrompê-lo num momento de lazer.
- Quero falar com você, oficial. –Zaram disse sem qualquer reverência, que deveria fazer qualquer
pessoa de juízo ao se dirigir a um oficial alemão. Os demais oficiais olharam boquiabertos pela tamanha
ousadia daquele estranho de pele cor de cobre que falava num alemão perfeito.
- Como ousa...
- Ouça-me. –Zaram interrompeu o oficial que sem mesmo compreender o porquê de se sujeitar
àquele estranho, obedeceu ouvindo-o atentamente.
- Tenho uma ilha perto daqui, onde resido com minha família e meus criados, além de uma pequena
população de nativos. – prosseguiu Zaram – Sempre adquirimos produtos neste lugar, onde há muita
fartura. Sei que vocês estão soqueando para poder sustentar suas tropas por essa Europa, mas não
concordo com o que fazem com esse povo pacífico que habita esta ilha. Portanto, exijo que me de quanto
mantimento eu quiser e que deixem o suficiente para que esse povo não passe por privações. Não posso
compreender como uma nação que pretende dominar a Europa saqueia gente pacífica, feitos piratas?
O oficial olhou impotente aos seus companheiros como que buscando suas aprovações para o que
estava impelido a fazer, movido por uma vontade que não era a sua, e obedeceu sem questionar, com a
aprovação de seus camaradas.
Os próprios soldados alemães carregaram a lancha de Zaram, num trabalho que durou algumas
horas. Zaram pagou aos devidos comerciantes que o agradeceram, porque grande parte do que os alemães
haviam saqueado foi devolvido aos respectivos donos e o que ficou nos navios alemães foi devidamente
pagos aos devidos fornecedores.

Por muito tempo Ludmila esteve entregue a um árduo trabalho que requeria a mais vigilante atenção
e um cálculo sutil e minucioso. Teve o aprendizado básico ministrado pelo próprio marido, que fez com
que, aos poucos, fosse se interessando pelo que aprendia, a cada dia descortinando um novo mundo que
lhe propiciava uma nova visão e compreensão da natureza, ao mesmo tempo em que descobria o quanto
tudo era simples, como a natureza se dispunha àqueles interessados em utilizar de seus princípios, que
Deus, em Sua Suprema grandeza deixou esse imenso laboratório para que o homem explorasse todos os
seus benefícios para que fizesse com que a humanidade tivesse uma vida melhor.
Esses princípios encantavam a neófita. Contudo, havia ainda um caminho a percorrer, lugares por
onde tinha que passar, e o terrível inimigo com quem teria que vencer para alcançar a Luz. Era a hora de
deixar a vida ao lado do esposo, a casa onde residia com todo conforto e requinte, um modo de vida que
poucos dispunham. Era a hora de deixar seu esposo para se isolar junto de seu novo mestre na ilha vizinha.
Hora de muito empenho, muito estudo, muita meditação, muitos experimentos, tudo o que fosse preciso
para seguir adiante.
Despediu-se do esposo e seguiu à ilha vizinha. Não sabia por quanto tempo teria que permanecer
naquele lugar e longe dele, se desvencilhar de tudo o que era terreno, inclusive o seu amor por Zaram.

105
Chegou à ilha ao cair da tarde. Do mar era possível ver a beleza do lugar com uma vegetação nativa
que se elevava por um morro, tendo ao cume uma construção que mesmo de longe, notava ser antiga.
Reinava majestosamente no cume daquela pequena elevação como que dominando o mar à sua frente. Era
a sua nova residência onde vai habitar pelo tempo que for necessário, até se sair vencedora daquilo que
ousou desafiar. Tudo puramente por amor, pelo desejo de driblar a morte para viver ao lado do esposo
pelo tempo que lhe convier, ser dona de seu próprio destino.
Senmuth a aguardava sentado sobre uma pedra à beira do ancoradouro. Estendeu a mão para ajudá-
la a sair do barco. Não ara adepto a formalidades, foi direto ao assunto que ele achava ser o correto.
- Resultados surpreendentes e variado premiam o trabalho e estimula o interesse do fiel postulante.
– disse à mulher sem mesmo perguntar qualquer coisa e como se antes nunca a tivesse visto, como se ela
não fosse a mulher do seu único amigo e irmão - Pensa que eu te faria discípula se cujas qualidade não
estivessem ainda provadas? Os últimos segredos se confiam somente àqueles de cuja virtude eu esteja
convencido. Para estar a altura de prosseguir nessa senda, o trabalho é o grande purificador da mente, e os
segredos serão revelados pouco a pouco por si mesmo a sua mente, fazendo com que vá se transformando
e se tornado mais apta para recebê-lo.
- Então, quando estarei apta a fazer a prova que me levará a Ciência do Saber? – indagou a mulher.
- Quando o discípulo estiver devidamente pronto o mestre aparecerá e o conduzirá a Iniciação. –
respondeu Senmuth.
- Apesar da curta distância física que nos separa de Zaram, não o verá durante o tempo em que
estiver recebendo ensinamentos. – prosseguiu o místico - É preciso que se desvencilhe totalmente dele, de
suas paixões, de suas emoções, para que possa enfrentar e dominar o inimigo que quer impedir que
alcance o devido sucesso. Sabe que nem Zaram e nem eu poderá interceder a seu favor na derradeira
prova. Minha função será conduzi-la até o portal que separa os dois mundos. Dali em diante tudo
dependerá unicamente de você, e se tiver assimilado e aprendido tudo que lhe foi ensinado, se tiver total
domínio sobre si, se tiver um coração puro, intrépido, verdadeiro e determinação, sairá vendedora. Caso
contrário libertará o mais terrível inimigo do homem que fará da sua vida um verdadeiro inferno, que nem
eu e nem Zaram poderá expulsar de sua vida, cabendo somente a você, a sua coragem e sua determinação.
Ainda é tempo para desistir. Tem dois destinos que lhe aguardam: o fracasso provocado pela incerteza,
pela falta de objetivo, pelo apego a paixão humana e pelo medo, ou o sucesso que a levará a desfrutar um
mundo novo, do Saber, de poder estar em contato com os Seres Etéreos, a Sabedoria dos Mestres e com o
Filho da Luz.
Ludmila não era mais aquela mulher recatada, limitada na maneira de pensar e de ver a vida. Teve
uma educação religiosa que não lhe permitiu pensar livremente, se limitando a uma mulher com esmera
educação. Então veio a revolução, a mudança de hábitos no tocante a religiosidade, o comportamento da
mulher que passou a se prestar a luta pelos direitos e tudo mais que a revolução trouxe e que ela não
aderiu. Ela não era mais a mulher em que cedo perdeu o marido com quem casara puramente porque era
um bom partido, que casou contra a sua vontade, mas que também não contestou porque era essa a função
da mulher, ate que Zaram apareceu em sua vida.
La fora uma guerra cruel devastava a Europa, estava próxima a sua casa na ilha de Mikinos a poucas
milhas de onde vivia com seu esposo e do lugar onde se encontrava confinada aos estudos ministrados por
Senmuth. Ela não era mais aquela mulher que não podia conceber o que atualmente tinha conhecimento,
fazia coisas que não fazia ainda há pouco tempo atrás, quando era dominada pelo medo,e pelo terror.
Mesmo a guerra e os nazistas que a apavorava, mesmo a despeito de seu esposo com seus mistérios a
tranquilizar, porque nenhum mal afetaria a sua propriedade, porque ele tinha o conhecimento que lhe dava
poder para evitar que o inimigo alemão tocasse em seus domicílios. Aquela mulher outrora fragilizada por
qualquer coisa não existe mais, mas uma Ludmila Semionova disposta a prova final que poderá lhe dar
acesso a um mundo novo, inconcebido pela a maioria dos seres humanos.
Com o passar do tempo o insensível e indiferente Senmuth ficava satisfeito com o desenvolvimento
da sua discípula, nem tanto por ser ela a mulher de seu único amigo, mas por se tratar de uma mulher
quem nunca sequer se aproximou do Portal da Ordem. Muitos dos segredos ele já tinha dado a ela por

106
puro merecimento. Fazia viagem astral, tinha total domínio sobre seu corpo físico, sua vontade e suas
emoções. Contudo, ainda não tivera contato com os seres etéreos, porque para isso teria que ser iniciada.
Senmuth permitiu que ela ficasse temporariamente só por um curto período, para que fizesse muita
reflexão, que jejuasse, meditasse e se preparasse para a prova definitiva, Estaria totalmente a sós, sem a
visita do marido e até mesmo sem qualquer contato com os criados. Deveria se alimentar puramente de
ervas, frutas e legumes que ela própria deveria colher. E quando o ser interior sentir que é chegado a hora
Ele se manifestará e fará com que ela procure o mestre para ser iniciada, porque dali em diante toda
vontade, todo desejo partirá de seu Eu interior, cabendo a ela o desejo e a vontade de seguir adiante, além
da coragem e intrepidez para quem quer ser vencedor.
Sentiu a falta do marido. Há quase um ano enclausurada naquele casarão junto de um homem sério
que nem mesmo um esboço de sorriso se via em seu rosto taciturno, sem demonstrar a menor afeição a
vida. Lembrou-se da vez em que ele fora visitar o seu marido, ela mesma fez questão de servir o chá e ele,
e com suas feições duras agradeceu de uma maneira tão fria e indiferente que melhor seria se não tivesse
agradecido. Mas esse mesmo homem a livrou das garras daquele nazista demonstrando uma força de
espírito que a impressionou, seguro de si e extremamente destemido diante daqueles homens que eram a
encarnação do demônio na terra. Não era quem se podia classificar como um homem rude, porque, por
outro lado, tinha certo afeto por ela, mas que ao mesmo tempo não demonstrava, como também não era
antipático com ninguém. Sua frieza era como se ele não estivesse neste mundo.
Ludmila saiu caminhando pela ilha, absorta em pensamentos, reflexões. Então se deu conta de que
estava farta de tudo aquilo, de Senmuth com sua frieza, as enfadonhas lições que, certamente, não
levariam a nada. Lembrou a casa onde morava, imaginou o que poderia estar se passando; Zaram,
provavelmente, estaria lendo, a criadagem descansando em seus aposentos. Se quisesse poderia estar lá em
espírito, como faz em suas viagens astrais, uma arte que dominava bem, tinha domínio sobre suas
vontades, controle de seus instintos, mas não podia entender aonde levaria isso tudo.
Retornou à casa do místico. Olhou em direção a Mikinos representada por um clarão, que eram as
luzes das casas, das ruas. Não havia blecaute porque era mais do que certo de que as tropas aliadas não
chegariam até aquele lugar.
Pensamentos mundanos invadiram a sua mente. Casa, marido, alemães, Mikinos com sua bela e
antiga arquitetura, os museus, as belas praias, as lojas com suas belas e elegantes roupas, a vida, o lazer.
Questionou-se do por que de se interessar por esse caminho que nem mesmo sabe aonde ia dar. Zaram e
seus mistérios tanto fez que a convenceu a estudar para obter conhecimentos esotéricos. Meu Deus, o que
se passa? Por que esses pensamentos? Uma força fora de meu controle me joga para fora de tudo que
pretendo em minha vida, viver por séculos ao lado do marido!
Correu aos seus aposentos. Logo que entrou esses pensamentos perturbadores cessaram. Caiu em si e
admitiu que fazia tudo aquilo por livre e espontânea vontade. Seguindo as determinações de Senmuth ela
se entregou aos estudos e experimentos. Concentrou-se numa introspecção e aos poucos foi saindo desse
mundo terreno, dando vazão ao seu espírito ou alma, ou mesmo a sua mente. Libertou aquele ser
aprisionado dentro do seu invólucro grosseiro, foi deixando aquela casa e voando pelo espaço, pela ilha
naquela noite estrelada. Não valia a pena voar sobre Mikinos com a invasão nazista, explorando os
habitantes locais, a arrogância dos soldados alemães. Jamais passou pela sua mente poder se libertar
daquela maneira. Era verdade tudo que seu esposo falava, tudo que tinha experimentado até aquele
momento.
Retornou à realidade, ao seu corpo físico. Não sabia precisar por quanto tempo estivera fora. Estava
ali consciente de tudo que ocorria, estava no caminho certo. Não havia nada de sobrenatural em tudo o que
acontecia. Se o mestre Senmuth estivesse presente ela pediria a iniciação. Naquele momento se encontrava
em estado de graça, devidamente fortalecida para começar a prova e seguir adiante. Zaram em nada
influenciava em suas decisões, era ela, puramente ela, disposta a seguir em frente.
Foi despertada de seus pensamentos com chegada de Senmuth.

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Vista de uma de suas verdes colinas, a ilha de Zaram parecia um delicioso bosque. As laranjeiras
brilhavam em meio aquele verdadeiro jardim de limoeiros em suas cores amarelas, vinhas e oliveiras.
Tudo isso enchia aquela parte da ilha, trepando pelas ladeiras das pitorescas colinas, a beleza ali se
mostrava tão prodiga, confirmando tudo o que se dizia das ilhas gregas, algumas que num passado remoto
era a ilha de reis mitológicos das histórias da antiga Grécia. Nessas ilhas o pescador se entrega às suas
danças, as moças ainda adornam suas sedosas tranças com fios prateados, preservam costumes antigos.
Nesses lugares a sabedoria e a liberdade são indispensáveis à felicidade humana na terra onde Afrodite
surgiu quando as quatro estações de mãos dadas se uniram para saudá-la.
A ilha onde Zaram escolheu para fazer a sua residência era uma das mais encantadoras naquele mar
azul. Num lugar, não mais de duzentos metros da praia, estava ancorado o barco de Zaram com sua
imponência e beleza, compondo aquela bela paisagem no mediterrâneo. Era possível ver aqueles homens
vestindo roupas estranhas para o padrão europeu, os seus fieis e zelosos criados vindos de terras distantes
que o serviam há muito tempo. Não podia haver lugar mais belo e nem um retiro mais solitário.
Para o misterioso saber de Zaram e para a inocência ignorância de Ludmila, o bulício e as
ostentações do mundo civilizado não tinha a menor atração. Um céu amoroso e uma terra amável são
companheiros suficientes à sabedoria e a ignorância, quando elas se amam.
Ele gostava de passear em companhia da esposa, enquanto lhe falava sobre tudo o que ela deveria
aprender. Quando o mar estava tranquilo como um lago, gostava de remar ao redor da ilha, tendo ela a sua
frente com seu jeitinho encantador que o fascinava ou ia ate a bela ilha de Mikinos passear por aquelas
ruas estreitas com seus casarões antigos pintados em cores fortes tornando o lugar ainda mais alegre.
Todos os lugares do solo grego, essa pitoresca terra de fábulas e com uma rica história, lhe eram familiar,
e quando falava do passado a sua esposa, falava de tal maneira que levava Ludmila a amar a raça que
legara a sabedoria que possui o mundo. Não podia haver melhor lugar para preparar a mulher amada para
entrar no mundo da Sabedoria. Fazia pouco mais de um ano desde que ela partiu em busca do Saber sob a
regência de Senmuth. Mas o que era um ano e um pouco mais?
Zaram, porém, tinha outras paragens aonde ia sozinho e sem que ninguém, nem a esposa e nem
criado algum o tivesse visto em algumas das suas incursões àquele lugar, e o fazia sempre a noite.
Somente a lua e as estrelas do firmamento eram testemunhas daquele homem misterioso emergir dentre os
mistos e cistos que cobriam a colina.
Quase no topo da colina havia uma caverna, e na solitária caverna, de onde em outros tempos
haviam saído os oráculos de um pagão, emergia das sombras das rochas que formavam um túnel, uma
luminosa e gigantesca coluna de vapor. A luz da lua iluminando as rochas e os arcos da caverna espalhava
um pálido e tremulo esplendor sobre as feições de Zaram.
- Adonai, Adonai, apareça, Filho da Luz. – suplicava Zaram.
Não se passou mais do que um minuto, quando a caverna se encheu da familiar luz prateada com a
presença do Ser invocado.
- O chamei porque preciso da tua ajuda – disse Zaram àquele ser etéreo que resplandecia de glória
aquela caverna. - Amo e esse amor faz com que eu viva a vida de outra pessoa. Passei a ela os
ensinamentos básicos da nossa Augusta Irmandade e a entreguei nas mãos de Senmuth para que ela se
aprofundasse e obtivesse conhecimentos que a deixassem preparada para o grande passo que é cruzar o
umbral. E aí repousa todo o meu temor, porque sei o quanto o espectro é terrível e as conseqüências
daqueles que não conseguem superá-lo. Uma idéia que não se aparta da minha mente, de tê-la entre nós.
Invoquei-te para que me auxilie em meus propósitos, a elevar a sua natureza à minha. Tu, Adonai,
banhado de alegria celeste, tu não pode imaginar o que eu, filho dos mortais sinto, privado dos objetos da
tremenda e sublime ambição que ao principio elevou as asas dos meus desejos acima da matéria terrestre,
quando me vejo obrigado a vagar só, neste baixo mundo.
- E tu começaste a iniciá-la e não obtiveste o resultado que esperava, se vendo obrigado a recorrer a
Senmuth na tentativa de obter melhores resultados? – interveio o Filho da Luz – Conjuraste em teus
sonhos as belas visões, invocaste os mais amáveis filhos da luz para que murmurassem a sua música
durante o transe dela. Mas a alma dela não fez caso dessas aparições e das melodias e se evadem de sua

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consciência quando volta a terra. Filho dos mais remotos tempos, cego pela paixão, não sabes o porquê?
Porque em sua alma tudo é amor. Não existe nela nenhuma paixão intermediaria com que possa ter
associação e afinidade às coisas com que deseja impressioná-la. A atração dessas coisas não age senão
sobre o desejo do intelecto. O que tem ela que ver com a paixão que é puramente da terra, e com a
esperança que vai diretamente ao céu?
- Mas não pode haver um atalho, um só elo que uma as nossas almas, assim como são unidos os
nossos corações, e pelo qual a minha alma possa guiar e proteger a sua quando estiver diante do espectro?
– perguntou o místico.
- Não me pergunte porque não me compreenderás. – disse Adonai.
- Eu vos suplico, Filho da Luz.
- Acaso não sabes que a iniciação é individual, que ao penetrar no mundo etéreo a alma segue
sozinha? – disse o Filho da Luz.
- Sim, Adonai, conheço muito bem esse principio, mas...
- Então por que me faz tal pedido, se sabe que nada pode ser feito para facilitar a caminhada do
postulante? Vive há muito tempo no mundo dos homens onde há corrupção, meios de facilitar um desejo
desde que se possa comprar aquele favor, independentemente se o favorecido em questão merece ou não
aquela graça. Por que o Criador iria favorecê-lo ajudando a sua esposa a passar na mais terrível prova,
aquela em que o postulante mostra seu verdadeiro caráter e aptidão para receber os maiores segredos, que
em mãos erradas seria o flagelo da humanidade? A mais, conheces muito bem a natureza dos seres etéreos
que se regozijam quando uma nova alma consegue vencer a terrível prova, mas que por outro lado não
dispõem de sentimentos e preferências por esse ou aquele, que vê tudo com indiferença. Se atendermos ao
chamado do ser mortal é porque estes conseguem chegar até nós, portanto, merecedor na nossa presença,
mas não ficamos o tempo todo vigiando e protegendo humanos só porque somos filhos da luz, mesmo
porque sabes perfeitamente se proteger de todo e qualquer perigo porque é detentor dos grandes segredos.
- Eu vos compreendo – exclamou Zaram, e seu rosto era iluminado por aquela luz prateada dando
um aspecto de felicidade.
- Se meu destino, que tão obscuro se apresenta, permitir que uma alma recém-saída do céu para o
ventre de minha mulher, há possibilidade de eu poder guiá-lo desde os primeiros momentos em que tocar
a terra, cujas asas poderei exercitar para me seguir no voo por entre as grandezas e gloria da Criação, e por
meio do qual a mãe também poderá se libertar do poder da morte.
- Pensa em adiar a iniciação daquela ingênua criatura? Acha que um filho vai fortalecê-la a
enchendo de coragem para a prova? – perguntou Adonai.
- Um maior tempo de preparo, talvez. – respondeu o místico.
- Tenha cuidado, reflita muito, tenha em mente que seu maior inimigo habita no que se chama
mundo real. Os teus desejos te levam a cada dia mais para perto da humanidade.
- Ah, Adonai – Zaram exclamou com certa doçura – Ser humano é tão doce, tão divino.
Enquanto ele dizia, na Gloriosa face de Adonai cintilou um leve sorriso.

Ludmila fez tudo de conformidade com as determinações de Senmuth, jejuou, meditou e fez alguns
exercícios de concentração e autodomínio. Estava se preparando para dormir quando sentiu uma
inquietação em seu ser, como que sua alma quisesse sair de sua prisão e voar pelo mundo etéreo. Vestiu
um manto e se dirigiu aos aposentos de Senmuth. Quando ia bater em sua porta Senmuth se antecipou
como quem já a esperava.
- É chegado o momento – disse-lhe com sua voz branda e ao mesmo tempo indiferente aos desejos
dela. – Acha que está devidamente preparada?
- Fiz tudo como me recomendou. – disse com firmeza.
- Advirto que uma vez iniciada a prova não terá como interromper. Minha função é prepará-la para
seu transe para que entre em outra dimensão. Seguirá sozinha por obscuros caminhos, se defrontará com
seres etéreos e outros obstáculos que tentarão persuadi-la e te confundir. Mas o pior de todos é o terrível

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espectro que habita no umbral que divide os dois mundos. Não deve temê-lo tampouco dar-lhe ouvidos.
Vença esse inimigo da humanidade e siga em frente até que encontre o mundo da Luz.
- Sinto-me preparada, meu mestre, por isso venho diante de ti pedir a minha Iniciação.
- Se é o que deseja, vamos em frente. Tenha em mente que nada poderei fazer em seu favor, e que
seu sucesso depende unicamente de sua força de desejo e sua coragem. O ser humano deseja quatro coisas
nessa vida; amor, riqueza, fama e poder. O primeiro não posso lhe conceder, mas, as outras três restantes
estão a minha disposição. Escolha dessas três coisas a que lhe agrada.
– Esses não são os dons que cobiço. O que desejo é poder estar ao lado do meu esposo na mesma
condição de vida que ele.
Posso satisfazer seu desejo, mas advirto que doravante seja prudente, dedicada, intrépida e
persistente para receber o que deseja. Caso contrário fracassará.
A noite era profunda. Tudo no velho casarão repousava num silêncio sepulcral, e no firmamento o
brilho melancólico das estrelas. Senmuth com sua sabedoria austera, Senmuth, o inimigo do amor, cujos
olhos leem em seu coração, e se fosse por sua vontade negaria os segredos prometidos, porque o frio
semblante perpétuo em sua mente lê o seu pensamento, sabe que não conseguirá se desvencilhar dos
pensamentos no marido, sabe que não alcançará o desejado sucesso. Mas não é juiz, é o mestre, o
condutor. É despojado de emoções, é indiferente ao sucesso ou seu fracasso. Não tem apego a nada na
terra, vive para a contemplação, somente isso. Esse é o homem incumbido de guiar os seus passos.
Ele pediu para que ela fixasse o seu olhar num ponto fixo e luminoso, e ela obedeceu. Não demorou
mais do que trinta segundos para que sua consciência se libertasse do seu corpo. Era diferente das viagens
astral que fazia quando podia observar tudo ao redor, o mar, a floresta, as estrelas e até mesmo seu próprio
corpo estendido na cama ou sentado na cadeira. Desta vez estava deixando esse mundo e penetrando em
outra dimensão. Senmuth não a acompanhou, estava sozinha naquele mundo estranho, nem escuro e nem
iluminado. Não havia estrelas e nem firmamento. Era como um sonho, sem luz, sem cores e sem trevas.
Caminhou por aquele mundo estranho e encontrou duas lâmpadas iluminando aquela espécie de quarto
com uma chama fraca. As luzes das lâmpadas deixavam uma atmosfera mística e sombria. Exalava um
cheiro agradável, mas que não conseguia definir do que era. Não era ervas tampouco flores, apenas um
cheiro agradável.
Uma fumaça ligeiramente azulada saia das lâmpadas e subia enchendo o recinto. Aos poucos aquela
fumaça ia formando imagens indistintas, uma espécie de sombras que foi enchendo o lugar, voando
lentamente indo de um lado a outro. Um leve som semelhante a música ecoava muito baixo, mas o
suficiente audível para que ela percebesse. O lugar ficou envolto por uma névoa proveniente da fumaça
das lâmpadas, e aquela nevoa começou a formar imagens mais distintas. Aquelas sombras começavam a
terem formas humanas, movendo-se lentamente e com reguláveis evoluções no meio daquela nevoa. Eram
sombras ou corpos transparentes. Ora se contraiam, ora se dilatavam como o movimento de uma serpente
quando se moviam vagarosamente. Ela ouvia o som daquela música a cada vez mais audível, como se
fosse de uma voz humana, como um eco. Lembrou-se de Senmuth, olhou ao redor e ele não estava.
Lembrou que não se tratava de um mundo real, era outra dimensão. Era como num sonho, uma sensação
surreal. Aqueles sêres continuavam pelo recinto, ora rastejando feito um réptil, ora voando num vôo que
começava a se tornar fantasmagórico, em fila, uma sombra atrás da outra desaparecendo diante da luz das
lâmpadas, retornando em outro ponto e repetindo aquele ritual que começava a causar-lhe uma sensação
nada agradável. Ao mesmo tempo em que sentia a sensação de horror, sentia o prazer de estar vivenciando
aquela espécie de sonho, algo nunca sentido. Se era a prova que dizia ser difícil, não havia nada que a
atemorizasse a tal ponto de fazer com que retrocedesse.
Lembrou-se de Zaram, que há tempo se encontrava ausente dele. O que é um ano, alguns meses
para depois viver junto por muitos séculos, poder participar da evolução, viajar pelo mundo ao lado do
homem amado, driblar a enfermidade e a morte? Qualquer sacrifício vale a recompensa.
Mas ainda não tinha terminado a sua prova, ainda se encontrava naquele lugar junto das sombras,
que foram se ajuntando formando uma só figura. Aos olhos dela pareceu ver uma cabeça que se formava
com as formas humanas de um tamanho descomunal, coberta por um manto escuro do qual se via dois

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olhos reluzentes que a fitavam com um brilho demoníaco, dois olhos que gelaram o sangue em suas veias,
tamanha a maldade que transmitiam. Nada mais se via além daqueles olhos insuportáveis de se olhar. O
terror que lhe causava ia aumentando mil vezes de maldade e terror na medida em que ela se apavorava.
Aquela coisa foi crescendo à sua frente, e na medida em que ia crescendo e se aproximava as
lâmpadas empalideciam e tremeluziam inquietamente como que tocadas por um fantasma. Aquela coisa
envolta num manto escuro não tinha formas definidas, não se movia como as outras aparições, mas
arrastava feito um réptil. Parou diante dela fixando-a com seus olhos cheios de maldade. O tênue pincel
que o mais grotesco dos monges pintores medievais ao retratar o demônio, não seria capaz de dar o
aspecto da malignidade tão terrível como se via naqueles olhos aterrorizantes. O corpo dentro daquele
manto escuro parecia uma larva e exalava um odor pestilento. Aquele olhar ardente, tão tenso, tão lívido,
não obstante tão vivo, tinha algo que era quase humano em sua máxima expressão de ódio e escárnio por
ela. Algo que revelava que a horripilante aparição não era um mero espírito, mas que tinha bastante
matéria para ao menos se apresentar mais terrível e ameaçador, como inimigo dos seres humanos.
Estarrecida e apavorada diante da terrível aparição, seus cabelos se eriçaram e a aparição parecia
crescer ainda mais, e em seguida falou em sua voz engasgada:
- Ah, entrou na região imemorável. Eu sou o Espectro do Umbral. O que quer de mim? Não
responde? Tem medo de mim? Sou quem você ama, sou seu passado, seu futuro, tudo aquilo que deseja.
Não sacrificou por mim os prazeres e paixões da sua raça? Quer ser sábia como aquele arrogante que se
diz seu esposo, e que nunca contraiu matrimonio como manda em seu mundo? Sou quem você procura, eu
possuo toda a sabedoria dos séculos inumeráveis. Venha, se aproxime, beije-me, minha querida mortal.
Esqueça aquele velho tão arrogante quanto seu Zaram, que tomou alguns meses de sua vida, e para quê?
Aquele velho mente, te engana. Acha que ele está preocupado com seu sucesso? Pouco lhe importa no que
resultará dessa sua prova. Ele vai continuar sua existência egoísta, indiferente aos problemas da
humanidade. Venha mulher, eu te restituo a vida, o prazer e até mesmo a vida eterna que tanto deseja.
Venha, me beije e se torne poderosa, esqueça aqueles dois imbecis que pensam ser os mais poderosos da
terra,
O espectro falava, arrastava-se a frente dela num balé que demonstrava ser de outro mundo, se
aproximando como se fosse engoli-la. Colou em sua face a ponto de ela sentir aquele corpo frio e
gosmento e o hálito pestilento que exalava.
Ela soltou um grito e caiu desfalecida.

VINTE E TRÊS
PRAGA, TCHECOSLOVAQUIA
A resistência tcheca achou que era o momento de colocar em prática os planos para assassinar
Heydrich. Dois partizans tchecos, Jan Kubis e Josef Gabcik haviam se apresentado como voluntários para
assassinar Heydrich, que vinha aterrorizando a indefesa população tcheca. Mesmo cientes das represálias
que adviriam indiscriminadamente, ainda assim era preferível seguir em frente desde que Heydrich
deixasse para sempre esse mundo, porque nada poderia ser pior do que a vida que levava o povo, as
humilhações, as prisões sem qualquer motivo aparente, as torturas, o medo de hora para outra ser enviado
aos campos de concentração. Toda essa sorte de infortúnios tinha começado desde a invasão nazista em
toda a Tchecoslováquia e piorou consideravelmente depois da chegada de Reinhard Heydrich.
Os dois partizans tinham sido enviados secretamente à Inglaterra para serem treinados e preparados
porque, em se tratando de alguém do peso de Reinhard Heydrich, não bastava somente a coragem e um
motivo ideológico. A frieza era um dos quesitos principais porque iriam matar um alto-oficial da SS
servindo na SD. Um homem detentor de uma personalidade forte, capaz de deixar seu agressor paralisado,
caso se enfrentassem olho no olho. A paciência era outro grande quesito, um bom planejamento, tudo feito
com frieza e sem se deixar levar pelo ódio aos alemães, a emoção e que a sede de vingança influenciasse
na decisão. Tanto que, quando resolveram elaborar o plano tinham pensado em contratar um ou dois
profissionais. Mas o mundo estava em guerra, e em tempo de guerra não se pode ir assim a torto e direito
depositando confiança em qualquer um, principalmente estrangeiros, porque bons agentes, sejam eles

111
espiões ou mesmo assassinos profissionais, são pessoas bem pagas e muito requisitadas em tempos de
guerra. Não eram confiáveis.
O melhor a ser feito era treinar dois bons voluntários, gente da própria Resistência. Apenas dois,
para um dar cobertura um ao outro, caso surgisse algum imprevisto, um problema emocional na hora de
puxar o gatilho, a arma falhar ou mesmo ser alvejado por algum possível segurança misturado entre a
multidão. Não mais do que dois porque implicaria em muita gente envolvida, além do desperdício de bons
combatentes. Já não bastava ter que perder os dois voluntários com quem não mais se poderia contar?
Jan Kubis e Josef Gabcik tinham saltado de pára-quedas na aldeia de Lídice, não muito distante de
Praga. Saltaram a noite, de um avião britânico de uma altitude acima do convencional, porque tudo tinha
que ser feito sem que os alemães que sitiavam Praga descobrissem e todos os planos viessem por água
abaixo. Depois os dois se separaram e só tornaram a se ver poucos dias antes do atentado. O dia e o local
seriam determinados pelo próprio comando da Resistência, que por medida de precaução, permitiu que
somente pouco mais de meia dúzia de pessoas estivessem a par de tudo o que deveria ocorrer e que
também trabalhariam no caso, que consistia em encontrar o local e o momento mais adequado para
assassinar Reinhard Heydrich.
Reinhard Heydrich não tinha seguranças porque não acreditava que o tcheco fosse capaz de esboçar
qualquer atitude de revolta contra um representante do Reich, ou colaborar com qualquer comando
estrangeiro. Desde que havia assumido o protetorado em Praga ele conseguiu implantar um regime de
terror ainda pior do que o já existente. A população passou a temê-lo, sua crueldade não tinha limites a
ponto de vez por outra cometer atos bárbaros com crianças e mulheres inocentes como uma forma de
lembrá-los que quem comandava aquela nação era ele. E desde então os atos de terrorismo diminuíram.
Ele desprezava os tchecos como desprezava os judeus. Os classificava como meros parasitas incapazes de
defender até mesmo suas próprias casas, de fomentar uma revolta qualquer desde que fossem dominados
por um governo forte, autoritário e cruel como era o seu. Sentia-se como um domador de animais, diante
daquele povo. Ele era a mente forte e dominadora, a mente superior sobre a ralé da humanidade. Os via
como animais em cativeiro sustentados e tratados pelos seus dominadores.
Josef Gabcik examinou minuciosamente sua Stein, uma submetralhadora de fabricação tcheca, uma
arma eficiente para acertar um alvo móvel de cinco a dez metros de distância, e em suas mãos hábeis seria
ainda mais infalível. Já estava habituado com aquele tipo de arma, treinara bastante durante o tempo em
que estivera em solo britânico.
Jan Kubis chegou ao lugar marcado onde pelo terceiro dia estava de plantão à espera da ordem.
Carregava no bolso duas granadas de mão, para uma eventual emergência, uma falha de seu companheiro,
ou se fosse alvejado e mesmo para facilitar a fuga. Tudo estava devidamente preparado para que não
houvesse falhas. A única coisa que não poderia prever era o dia e a hora em que Reinhard Heydrich
passaria pelo local esperado. Por isso estava ali. Ficaria o tempo que fosse necessário porque hora ou outra
o sinal seria dado e então ele e seu companheiro colocariam um fim à vida de Heydrich. Depois era só
empreender a fuga. O lugar era bastante movimentado, seria fácil se misturar à multidão, ainda mais
depois da confusão que tudo aquilo causaria.
Reinhard Heydrich acordou cedo, como sempre fazia nas ocasiões em que viajava para Berlim.
Uma lembrança indesejada veio-lhe a mente, a figura daquele homem misterioso que fora resgatar a bela
russa. Em sua mente a face e o olhar daquele homem eram cheio de mistérios. Mas achou por melhor
ignorar aquela lembrança. Tinha uma viagem a fazer a Berlim, ver sua família.
Ainda de pijama olhou através da janela que dava para o parque naquela parte da propriedade
confiscada que servia como sua residência. Sorriu satisfeito ao deparar-se com a vegetação verde, os
jardins floridos. Abriu a janela e aspirou fundo aquele ar matinal-primaveril. Tudo era mais belo e a
cidade de Praga sabia bem explorar essa estação. E aquela lembrança indesejável...
Sua governanta bateu na porta e ele mandou que entrasse. Antes de se dirigir ao banheiro pediu a ela
para que arrumasse suas roupas porque iria a Berlim. Aquilo era tudo o que sua governanta, uma partizan
infiltrada, precisava ouvir. Assim que ele saiu ela correu para a outra janela e fez tudo conforme o
combinado. Após o banho Reinhard Heydrich vestiu-se e pediu para que fosse servido o desjejum em seu

112
próprio quarto. Depois de comer pediu para que ela colocasse em sua maleta de mão uma garrafa de
conhaque para ele tomar durante o voo, como uma maneira de aliviar a tensão provocada pelas
sacolejantes turbulências. Não que temesse um ataque inimigo; sentia-se seguro no ar, mas as turbulências
o incomodavam e o irritavam. Quanto aos inimigos, ele tinha certeza de que ninguém seria
suficientemente ousado para penetrar naquele espaço aéreo dominado pela Luftwaffe. Por terra menos
ainda. Nem mesmo o que restava da Resistência tcheca seria ousado o bastante para atentar contra a sua
vida.
Ainda na mesa do café ele telefonou para a esposa em Berlim:
- Espere-me para o almoço e mantenha um bom champanhe gelando.
Disse mais algumas palavras e desligou. Foi até um espelho e se examinou da cabeça aos pés.
Estava impecável como sempre. Ajeitou a sua túnica negra puxando ligeiramente para baixo com ambas
as mãos. Endireitou o seu quepe, apalpou sua Lugger dentro do coldre, sorriu satisfeito e saiu. Pediu para
que seu motorista arriasse a capota do carro. O céu estava limpo, com uma cor azul que deixava um
colorido especial àquela manha. Ele desejava sentir o frescor daquela estação e exibir-se, mostrar àquela
gentalha sua grande importância diante da ralé, os subumanos como classificava o povo tcheco.
A agente ainda deu uma espiada pelo canto da cortina e viu quando ele abriu a porta do lado direito
do carro e entrou. Sentou em seu jeito arrogante ao lado do seu motorista. Ela ainda viu o automóvel
passar pelo portão de ferro onde duas empertigadas sentinelas se puseram em posição de sentido e
apresentaram armas. Sorriu de satisfação porque tinha certeza de que a vida daquela criatura abominável
estava com os minutos contados.
O Mercedes-Benz negro seguiu pelas ruas de Praga. Algumas pessoas ainda se dirigiam para seus
trabalhos, patrulhas alemãs andavam em dupla, descontraídos com aquele clima de aparente calmaria, as
mãos cruzadas nas costas como se não houvesse guerra alguma, como se a população tcheca não estivesse
sofrendo nas mãos dos ocupantes. Os bondes circulavam lentamente apinhados de gente. Heydrich olhou
displicentemente aquele cenário que a cidade oferecia. Pensou em Lina e os seus filhos, mas a lembrança
foi ofuscada pela nova aparição do místico Senmuth junto de Zaram. Sentiu ódio e jurou que, em outra
ocasião, daria cabo de ambos. Sabia que viviam na Grécia dominada pelas forças alemãs.
Reinhard Heydrich pediu a seu motorista para que parasse o carro ao passar em frente a um parque
com um jardim repleto de flores. Desceu do carro e apanhou algumas flores para levar a esposa que,
certamente, ficaria feliz. Voltou ao carro e sentou ao lado de Klein, ordenando para que seguisse em
velocidade lenta, porque desejava apreciar aquela bela manha de primavera, sentir a brisa fresca
acariciando seu rosto branco e bem barbeado. O seu avião esperaria o tempo que fosse necessário.
Kubis e Gabcik viram quando o inconfundível Mercedes-Benz preto apontou no alto da colina,
descendo a uma velocidade moderada, como quem não tem pressa, como quem vai a lugar algum. De uma
distância prudente eles sinalizaram discretamente um ao outro, confirmando que a hora era chegada.
Posicionaram-se estrategicamente naquela parte da rua onde devido à curva fechada o carro teria que
diminuir consideravelmente a velocidade para virar e poder seguir em direção à ponte sobre o Rio Vltava.
O movimento de automóveis e de bondes não era intenso àquela hora da manha. Mesmo o número de
pessoas que passavam pelo local não era além do esperado quando o plano foi traçado, de maneira que não
havia nada que impedisse de seguirem em frente. Nenhuma patrulha alemã pelas imediações, nenhum
guarda de trânsito. Não havia batedores com ele, tampouco guarda-costas, apenas o seu fiel
Oberschafuhrer Klein.
Os dois partizans não tinham dúvidas de que cada um deles trazia na cintura suas respectivas
Lugger. Mas não consistia nenhum problema porque eles teriam a seu favor o elemento surpresa. Teria
que ser um assalto rápido, sem que Heydrich e seu motorista tivessem tempo para reagir, sacando suas
armas. Gabcik, com sua metralhadora oculta sob a capa de chuva, num movimento cuidadoso para não
chamar atenção, destravou a arma. Estava calmo, frio e sem qualquer sentimento que pudesse acabar
pondo os planos por água abaixo, por uma inesperada ansiedade ou ódio pelo opressor.
Kubis se colocou na sua posição um pouco mais à frente de Gabcik para uma eventual falha do
companheiro e para cobrir a fuga. As duas granadas estavam em seu bolso. Ele as tocou com as pontas dos

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dedos. Sentiu os pinos. Bastava puxá-los, lançar as granadas, e pronto, a confusão estaria formada, o efeito
da explosão acaba causando pânico nas pessoas. Nem mesmo saberão quem a teria lançado. Isso lhes
propiciaria tempo suficiente para empreenderam fuga, sem que alguém pudesse notar.
Quando o carro se aproximou da curva diminuiu a velocidade, já estava a poucos metros de onde se
encontrava Gabcik, que num gesto rápido deixou cair a capa de chuva levando a submetralhadora à altura
de seus olhos para que pudesse mirar o alvo com precisão. Aquele movimento brusco da parte de Gabcik
acabou por chamar a atenção de Heydrich que se encontrava com a cabeça abaixada, provavelmente
examinando um relatório. Inconscientemente olhou para ele com desprezo, como que não acreditando que
estava preste a ser alvejado por um insignificante cidadão tcheco. Gritou ao seu motorista para que parasse
o carro, enquanto punha-se em pé com a mão esquerda segurando no pára-brisa para que pudesse
equilibrar-se, enquanto a outra mão desabotoava o coldre e sacava sua Lugger.
Ele já estava sob a mira de Gabcik, que sem hesitar acionou o gatilho da sua Stein. A arma falhou.
Tentou uma segunda vez e falhou novamente. Nesse ínterim Heydrich abriu a porta do carro já com a
arma empunhada mirando em Gabcik, gritando para que ele depusesse a arma e se entregasse. Naquela
fração de segundo Gabcik se arrependeu amargamente por não ter trazido uma pistola, o que considerou
uma grande falha de planejamento. Mas Heydrich ainda não tinha colocado o pé no chão quando Kubis,
ao ver que a arma de seu companheiro falhara, jogou uma granada que caiu na parte de trás do Mercedes-
Benz explodindo logo que tocou no assoalho do veículo provocando um clarão enorme junto com o
barulho da explosão, atingindo Heydrich da cintura para cima.
Por alguns segundos, não admitindo ceder à humilhação de ter sido vitimado por um ralé qualquer,
manteve-se ereto ainda apoiando a mão esquerda no pára-brisa do carro, até que não resistindo ao impacto
da explosão e suas consequências, desabou na calcada enquanto Kubis e Gabcik fugiram entre bondes e
automóveis em meios ao trânsito confuso pelo que tinha acabado de acontecer.
O elegante uniforme negro da SS que ele trajava estava em boa parte manchado de vermelho pelo
sangue. A multidão ia se formando ao redor de seu corpo estendido na calcada, porque logo deduziram
que se tratava de algum alto figurão do nazismo, por causa do Mercedes-Benz preto que estava bem
danificado no lado direito da parte traseira. Havia sinal de vida, seu corpo se contorcia numa manifestação
de agonia. Às vezes ele conseguia abrir seus olhos miúdos, olhando para a multidão numa expressão de
quem implorava por ajuda. Mas ninguém a sua volta esboçava o menor sentimento de compaixão porque
mesmo estendido sobre aquela poça de sangue que havia se formado, reconheceram aquela figura
arrogante tão temida e odiada pelo povo da Tchecoslováquia. Alguns não conseguiam disfarçar a
satisfação pelo que presenciava, numa vingança silenciosa torcendo para que aquela agonia se prolongasse
por toda a eternidade, porque ele tinha que pagar caro pelas atrocidades que fazia com o povo. Antes de
perder os sentidos, as figuras de Zaram e Senmuth surgiram a sua frente numa expressão de vitória.
Mais de quinze minutos tinham se passado quando Klein, refeito da explosão que não lhe causara
ferimentos sérios, se deu conta de que seu chefe precisava ser socorrido. O carro não tinha condições de
ser usado porque estava bastante danificado na parte traseira. Da porta dianteira até o porta-malas estava
destrocado, além de o pneu traseiro ter estourado com a explosão. Os carros que passavam apenas se
limitavam a diminuir a velocidade na tentativa de ver quem era a pessoa estendida ali na calcada, pouco se
importando se estava viva ou não, porque também deduziam que se tratava de um oficial nazista. Klein,
como fiel escudeiro, mesmo atordoado colocou-se à frente do primeiro veículo que tivesse condições de
transportar o ferido. O único carro disponível naquele momento era um furgão de padeiro. Reinhard
Heydrich, como que por ironia do destino, foi colocado no assoalho da parte traseira do furgão em meio a
sacos de farinha, estendido como um mortal qualquer sem as pompas com as quais sempre convivera. Se
pudesse se aperceber de onde se encontrava, certamente se sentiria ultrajado por ser o lugar indigno a um
oficial de sua patente e cargo que exercia.
Chegou ainda com vida no hospital Bulovka, destinado a atender altas patentes alemãs. Morreu uma
semana depois em meio a fortes dores e agonizando. Os dois partizans foram descobertos na torre de uma
igreja e fuzilados em plena rua. LÍdice foi sistematicamente dizimada e seus moradores assassinados.

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Quando ela despertou a primeira coisa que viu a sua frente foi o rosto do esposo que a olhava com
ternura, ao mesmo tempo com um semblante meio entristecido. Estava sentado ao seu lado acariciando
seus cabelos e segurando uma de suas mãos. Nada lhe disse, apenas continuou olhando para seu rosto. O
quarto era iluminado pela luz do sol, que naquela manha brilhava em todo seu esplendor. Ela sentou na
cama e olhou ao redor, e reconheceu o seu quarto. A última lembrança que tinha de antes de adormecer
era de ter estado num lugar bem diferente da casa onde residia com o marido, achou que tinha tido um
pesadelo. Senmuth, aquela casa estranha e tétrica, e aos poucos começavam a surgir algumas lembranças
daquela noite horrorosa, ou então do pesadelo que tivera. Foi tudo um pesadelo, ela concluiu, um terrível
pesadelo. Tudo se passava rapidamente pela sua mente, aquele lugar escuro, os seres etéreos que voavam
lentamente ao seu redor, e aquela coisa horrível tentando persuadi-la.
Ao lembrar-se da terrível cena daquela noite, ela lançou um grito apavorante, cobrindo o rosto com
as mãos, em seguida se atirando aos braços do marido para estar protegida. A voz calma e serena de
Zaram afugentou de sua mente o fantasma que ainda estava em seus pensamentos. Na medida em que foi
recobrando a consciência ela lembrou que tinha ido em busca da ciência do saber, que esteve ausente de
sua casa e da presença do marido por alguns meses, confinada naquele horrível casarão tento o insensível
e frio Senmuth como mestre.
Zaram sentou a seu lado na cama e beijou-lhe carinhosamente a sua face. Não conseguia ocultar sua
tristeza, como se tivesse perdido algo de valioso. Tinha a esposa de volta, mas não como gostaria que
tivessem transcorrido os acontecimentos, como também sabia dos problemas que teria que enfrentar junto
dela, e que ele em nada poderia ajudar invertendo a situação. Tinha as mãos atadas, insuficiente para
salva-la do mal que ela evocara.
Ela ainda estava em seus braços, quando ele a chamou a realidade. Tirou do bolso uma carta escrita
por Senmuth e entregou a ela.
- Leia, querida. Leia, reflita e comece a sua nova vida - disse com ternura – Estarei sempre a seu
lado.
Ludmila abriu aquele papel cuidadosamente dobrado, viu a sua frente um texto longo escrito com
uma caligrafia clara, letras bonitas, quase desenhadas. Ainda sentada em sua cama começou a ler:
“Caríssima:”
“Quando a recebi por discípula, prometi a Zaram que não a abandonaria à sua ruína e infelicidade,
caso fracassasse na prova derradeira, mas que a restituiria ao mundo. Mas antes quero esclarecer algumas
coisas importantes para a sua vida:
A sua prova iniciáticas foi a mais fácil que se possa apresentar a um neófito. Não lhe exigi nada
mais do que abstinência em relação a seu marido, a dependência física de sua presença, o que cumpriu
com louvor. Contudo, lamento dizer que não possui qualidades dignas de aspirar aos mesmos
conhecimentos que eu, seu esposo e o mais novo membro da nossa Irmandade, o russo Ilya
Abraãomovitch. Você viu o primeiro inimigo que ameaça a quem se deixa dominar e escravizar pelos
sentidos. De minha parte procurei usar de métodos modernos para que assimilasse bem as lições, assim
como para por em prática tudo o que aprendera. Essas coisas estavam ao meu alcance. Mas, infelizmente
não assimilou aquilo que sempre tentei despertar em si, que era o verdadeiro desejo de alcançar o saber, e
você, contudo, não se desvencilhou da vaidade, do egoísmo de ter para si aquilo que satisfaria o seu ego.
Fecho as portas para você, filha de um dia. Compreende agora que, para passar pelo umbral que separa os
dois mundos e desafiar o inimigo que ali habita, é necessário ter uma alma temperada e purificada que se
exalte, não por encantamentos externos, mas por sua própria sublimidade e por seu próprio valor. Toda a
minha ciência é inútil para o temerário, para o ser sensual, apaixonado, para aquele que deseja possuir os
nossos segredos apenas para auxiliá-lo, beneficiá-lo, seja qual for o seu propósito, prazeres grosseiros e
egoístas. No decorrer dos tempos, num passado remoto, pereceram os impostores e feiticeiros, por
quererem penetrar nos mistérios que exigem purificação e não tolera depravações. Jactavam-se de
possuírem a Pedra Filosofal e morreram miseravelmente tentado buscar o elixir da imortalidade, e
acabaram baixando no sepulcro, envelhecidos prematuramente. Na verdade os inimigos os fizeram em
pedaços. Sim, os inimigos que eram seus desejos impuros e também seus próprios criminosos. Você

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cobiçou o mesmo que eles cobiçaram, sem a chama do verdadeiro e puro desejo, mas para beneficio
próprio, que nada mais era do que se imortalizar e poder estar ao lado do homem amado pelos séculos
vindouros.”
Ludmila parou de ler, e por alguns instantes refletiu sobre os motivos que a levaram a desejar a
imortalidade. Lembrou que Zaram a induziu, mas que também ela havia desejado, depois de ver que a
irmandade era composta por homens puros, incapazes de cometer o menor mal que fosse, altruístas, cada
qual a sua maneira, todos buscando melhorar a vida da humanidade na terra. E ela? Alguma vez passou
pela sua cabeça coisas dessa natureza? Uma mulher dotada de um bom coração que nada fazia para
prejudicar o próximo, mas o que mais? Não tinha a menor propensão para o ocultismo. Estar ao lado do
marido era tudo que almejava.
E prosseguiu a leitura da carta deixada por Senmuth:
“Ainda que tivesse as asas de um serafim não poderia elevar-se ao lodaçal de sua mortalidade. Seu
anseio do saber não era mais do que uma petulante presunção. A sua sede de felicidade somente lhe
inspirava a beber as imundas águas do seu egoísmo e o descaso para o altruísmo. Queria ser um dos
nossos, uma Irmã na nossa Augusta Ordem, uma aspirante as estrelas que brilham a Shemaia da ciência
que remonta do antigo Egito. A águia não pode levantar ao sol senão seu próprio filho. Porém devo
adverti-la que ao levantar a cortina que separa os dois mundos, libertou para si o cruel e incansável
inimigo, que somente você, ninguém mais do que você poderá exorcizá-lo, esse fantasma que você mesma
evocou. Sofrerá esse castigo que somente com muito esforço poderá recuperar a calma e a alegria da sua
vida anterior. Quem, como você provou uma quantidade, por menor que seja, da volátil e vital energia que
levam aos sumos etéreos, despertou e desenvolveu em si faculdades que com paciência, humildade, com
fé sã e com coragem não corporal como é a sua, mas de mente resoluta e virtuosa poderá atingir ao saber
que governa as esferas superiores, ao menos à alta perfeição na carreira dos homens. Sentirá a influência
da experiência do outro lado em tudo que empreender. No meio da alegrias vulgares almejará coisas mais
santas, e então ele surgira para atormentar com seu silêncio tenebroso que lhe tirará a paz. Não existe ser
mais hostil ao homem do que o Espectro do Umbral, e você levantou o véu que cobre a sua vista, e nem eu
e nem Zaram podemos colocá-lo ali novamente. Os mais altos sábios que em sábia verdade tem passado
além do umbral, dentre esses eu e Zaram, tivemos como a primeira tarefa, dominar e subjugar o terrível
guarda que ali habita. Você poderá se libertar daqueles olhos lívidos. Quando ele surgir a sua frente tenha
em mente que não poderá fazer-lhe mal algum. Para tanto, basta resistir aos pensamentos e tentações
impostas pela horrível figura. Quero que tenha em mente que tudo o que passou não foi provocada por
mim, mas por si mesma. Seria inútil eu querer desfazer o que aconteceu, apagando tudo de sua memória,
restituindo-lhe a alegre cegueira de sua juventude. É necessário que sofra a influência da experiência. Não
lhe resta alternativa senão lutar contra o espectro que evocou.
Eu a abandono em seu crepúsculo.
Senmuth”.
Finda a leitura da carta, Ludmila permaneceu sentada com a carta na mão refletindo sobre o que
acabara de ler e nem com a mente vaga. As consequências do que havia dito o místico ela sentiria depois.

Depois de tudo pelo qual tinha passado, Ludmila não era a mesma mulher. Via o esposo com outros
olhos, o culpava pelos infortúnios pelos quais tinha passado na mansão de Senmuth. Mesmo sua fuga de
São Peterburgo, culpava o marido por induzi-la a dar as costas a sua terra natal sem mesmo ter lutado
pelos seus direitos. Mas o que mais a afetava era ter acreditado no marido, suas histórias absurdas sobre
ser descendente dos caldeus e todas as suas histórias sobre célebres personagens que fizeram a história,
dizendo tê-los conhecidos. Tinha sérias dúvidas se era realmente amor o que sentia por ele, ou se ele foi a
maneira segura de fugir dos problemas que vivia em seu país.
O comportamento de Ludmila começava a causar sérios transtornos na vida do casal. Em vão Zaram
tentava explicar a ela tudo o que tinha acontecido, a prova, o espectro. Em vão Zaram tentava alcançar as
alturas para receber conselhos de Adonai, porque sua paixão o prendia a terra, dificultando a se elevar as
alturas. Nem mesmo seu velho amigo Senmuth podia ajuda-lo, porque já havia feito a sua parte. Portanto,

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restava ao próprio Zaram resolver o problema, compreendendo a mulher, acompanhando os seus passos e
a orientando para que pudesse retornar a vida normal como sempre foi ao lado dele.
Zaram tinha ciência sobre quem comandava os passos de sua esposa, como também competia a ela
exorcizar aquele mal que havia se instalado a seu lado, induzindo-a a uma vida difícil a ponto de, num
futuro próximo, levá-la a cometer atos jamais concebidos por ela própria.
Ludmila passou a ser a patroa exigente fora dos padrões normais, sempre ralhando com a
criadagem, humilhando-os, tratando-os com se fossem escravos. A mansão de Zaram, que era visto por ela
própria como o paraíso na terra, passou a ser um verdadeiro inferno devido aos problemas que ela
causava.
Um dia ela se dirigiu a Zaram e disse que queria retornar a Munique. Não agüentava mais viver
naquele isolamento, naquele lugar que só lhe trazia lembranças de coisas que desejava esquecer.
Zaram tentava trazê-la a realidade, pois sabia que estava sob o domínio do mal que ela própria havia
libertado de suas correntes. Nada podia fazer além de estar ao seu lado, a apoiando e aconselhando,
tentando trazê-la de volta a pacata e maravilhosa vida em que viviam. Estava incapacitado de fazer
qualquer coisa, usando de seus poderes, para livrá-la daquele verdadeiro pesadelo. Nem mesmo podia
contar com Senmuth porque era uma paixão terrena, ele havia se envolvido na vida dos humanos comuns,
se apaixonara como um ser humano qualquer. Nem mesmo podia impedi-la de seguir para onde bem
entendesse porque estaria infringindo em uma das leis que regia os seus princípios. Ir com ela a Munique
não seria o correto, porque ela tinha que se libertar sozinha, trancar o inimigo em seu devido lugar, e
somente ela podia fazer isso. Por outro lado, a Europa ainda estava em guerra, não havia segurança nem
por terra e nem por mar e nem pelo alto. Expor assim a mulher amada? Persuadi-la a ficar, instruí-la a
melhor maneira de se livrar daquilo que estava atrapalhando a sua vida?
Mas, curiosamente, as crises cessavam dando lugar a mulher meiga e carinhosa como sempre fora.
Num desses dias Ludmila acordou de bom humor e disposta a apreciar aquele dia que surgia. A manha era
clara e ensolarada, um calor agradável que não incomodava. Era possível enxergar Mikinos ainda envolta
com a ocupação alemã.
Estavam descalços, deixavam a marca de seus pés na areia quente da praia. As gaivotas estavam
famintas àquela hora da manha e voavam em voos rasantes em busca de seus alimentos. Era a natureza em
sua suprema perfeição, mantendo o equilíbrio ecológico, caça e caçador.
Aquela visão, por algum momento, lhe devolveu o dom de enxergar a vida, segundo os princípios
do Criador. Sentiu o esposo a seu lado, que ainda o amava e que tinha sido uma tola por pensar e agir
como estava agindo. Se fracassou na tentativa de alcançar a Sabedoria, não podia se culpar tampouco ao
marido. Foi uma tentativa em que poderia vencer ou perder. Perdeu, mais ainda tinha o seu amor a seu
lado.
Zaram achou a ocasião oportuna para dizer a ela tudo que achava que precisava ouvir, mostrar-lhe o
caminho, a maneira de se livrar daquele ser horripilante, o inimigo do bem e do amor.
- Querida, seja humilde e não permita que nada a desvie da verdade, do verdadeiro amor, que ideias
absurdas tomem a sua mente, te afaste de teu dever para com a Divina Providência. Quanto mais teu
conhecimento for ampliado por tua ciência, mais deve enaltecer o poder e a sabedoria do Onipotente Deus
e esforça-se para conservá-lo em Sua graça. Lembra-se que quanto mais te aproxima de Deus em teus
deveres espirituais, mais puras devem sempre ser as afirmações que faz, e nesses sagrados momentos ele
aparecerá a sua frente para desviá-la do caminho do bem, atrapalhar a sua vida e atormentá-la visando
levá-la a loucura. Essa é a hora de enfrentá-lo, lutar com todas as suas forças, esconjurá-lo e mandá-lo de
volta ao buraco pestilento de onde saiu.
Ela ouvia o marido, e suas palavras a fortaleciam, davam-lhe esperanças, vontade de viver.
Caminhavam abraçados, um casal apaixonado que há algum tempo não tinha um momento com aquele,
desde quando ela se isolara naquela casa junto do místico Senmuth. Zaram sabia que aqueles doces
momentos não durariam por muito tempo, que haveria outros momentos como aquele, mas que com o
tempo poderiam superar todo o mal que a mulher havia atraído sobre si.

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O sol brilhava, nenhuma nuvem no céu, o mar calmo de um azul pouco visto em outros lugares.
Parecia que nada poderia quebrar aqueles momentos, até que Ludmila soltou um grito horripilante. A seu
lado estava o Espectro do Umbral quase se encostando nela, com seu odor nauseante, aqueles olhos que
ainda há poucos dias a apavoraram devido a maldade que transmitia, desta feita ainda mais cheio de
maldade causando a ela um pavor jamais experimentado.
Ludmila caiu sobre a areia quente da praia e desfaleceu.

Munique havia sofrido diversos bombardeios, deixando metade da cidade destruída. Munique, ate
então uma das mais belas cidades do Estado da Baviera, ao sul da Alemanha, estava em ruínas, em boa
parte do centro comercial, como a zona industrial, formando um amontoado de escombros. Contudo, a
outra parte da cidade onde Zaram tinha sua propriedade não foi molestada, permanecendo intacta. De
certo modo o evento acabou por facilitar o trabalho que Ilya vinha fazendo para salvar crianças judias da
morte nos campos de extermínio. No ano que se passara os Aliados haviam feito um desembarque maciço
na costa francesa com intuito de por um fim definitivo a guerra.
A França, assim como boa parte da Europa, se encontrava sob domínio alemão desde os primeiros
dias da guerra, tornando a vida de seus cidadãos um verdadeiro martírio e, quem mais sofria eram os
judeus, escravizados para trabalhar nos campos de concentração até a morte, como uma maneira de usar a
mão de obra barata e exterminá-los. Aqueles que não serviam para o trabalho eram sistematicamente
mortos nas câmaras de gás nos próprios campos. E prevendo a derrota os alemães passaram a intensificar
a eliminação dos judeus, homossexuais, ciganos e todos que eram considerados inimigos do Reich, o que
fazia com que os movimentos de resistência atuassem com pressa para evitar mais mortes.
Ilya Abraãomovitch continuava na sua incessante luta para salvar vidas, levando crianças judias a
lugares onde pudesse escondê-las dos nazistas. Tinha feito inúmeras viagens a Bélgica, França e Espanha,
onde pessoas se arriscavam para esconder esses refugiados. Na mansão de Zaram, onde estava residindo,
havia mais de uma centena de crianças escondidas no porão. Eram refugiados em trânsito, porque não
suportariam uma longa viagem até outro país qualquer devido ao estado de saúde e a fraqueza pela má
alimentação e as inúmeras doenças adquiridas. Muitas crianças eram resgatadas dos esgotos na mais
precária falta de higiene e o convívio com insetos pestilentos e ratos.
Ilya preparava porções feitas de ervas e ministrava às crianças, assim como preparava refeições
ricas em vitaminas e tudo mais que aqueles refugiados necessitavam para se recompor e seguir viagem a
lugares mais seguros. Um sério problema que tinha de fazer milagre para contornar, era a aquisição de
produtos alimentícios e de higiene, porque a comida como qualquer outro produto era racionado, e
precisava alimentar quase duzentas crianças e mais alguns adultos. Havia dentro da propriedade uma vasta
área de plantio, mas nem todos refugiados tinham condição de fazer qualquer serviço, salvo não mais de
uma dezena, aqueles que tinham uma recuperação melhor. O risco de serem vistos por soldados nazistas
não era descartado. Por isso trabalhavam a noite em turnos curtos para não estressar seus organismos em
recuperação. Zenobia e Helmut haviam se mudado para junto dele para ajudar a cuidar das crianças. Com
isso podiam ajuntar o que adquiriam legalmente dentro de suas cotas, mais alguma coisa que conseguiam
no mercado negro.
Certo dia, durante uma bem sucedida operação de resgate de crianças, Helmut ficou intrigado com o
constante sucesso e a maneira como Ilya se safava das patrulhas pelas estradas e por nunca terem sido
importunados naquela casa. Não era sorte, porque sorte uma vez ou outra era compreensível, mas sempre?
Também o comportamento de Ilya era estranho. Jamais se abalava em qualquer situação, sempre calmo,
sereno e um nítido autodomínio de suas emoções e de si próprio. Também notou que Ilya se isolava de vez
em quando em seu quarto e ali permanecia por longo tempo, e quando saia de lá parecia mais vigoroso e
sábio nas decisões. Zenobia, quem sempre acompanhava Ilya nas viagens, passou junto dele por situações,
aparentemente, impossível de desvencilhar, principalmente quando o conflito intensificou e andar pelas
estradas era um risco serio, não somente por causa das patrulhas como por ser alvo de ataques aéreo. E
Ilya se comportava como se nada estivesse acontecendo, numa frieza impressionante. Às vezes dava a
impressão de que tudo estava arranhado entre ele e os soldados. Mas o mais estranho disso tudo era que

118
ele era judeu e russo, e nunca foi interpelado pelos nazistas que perseguiam judeus feitos cães
enraivecidos, e Ilya nunca foi incomodado.
Numa noite Helmut apareceu com uma garrafa de conhaque, uma raridade naqueles dias difíceis. A
guerra estava com os dias contados, as forças soviéticas já se encontravam dentro do território alemão,
restando dias para tomarem Berlim, e consequentemente a paz ser assinada. Portanto, o momento era ideal
para relaxar e beber umas boas doses, como uma comemoração antecipada.
Sentaram em volta da mesa e Helmut achou o momento propicio para fazer algumas perguntas a
Ilya, numa tentativa de não somente desvendar o mistério que cercava seu companheiro, e saber o que
havia por detrás daquilo tudo. Zenobia foi cuidar das crianças, pois dentre elas algumas requeriam
cuidados devido suas saúdes e outros precisavam de apoio psicológico pela falta dos pais, por terem
presenciado cenas de violências. Também deixar os dois a sós para conversarem assuntos de homens,
bebericarem, relaxarem um pouco.
Ilya achou proposital falar com o amigo sobre esse assunto, pois o mesmo tinha alguns quesitos que
ele achava que poderia colocá-lo a par de algumas particularidades de sua vida misteriosa. Nesses anos de
convivência em prol do mesmo objetivo aproximou tanto o rapaz quanto a mulher, num laço fraternal. Há
tempo Ilya vinha pensando numa maneira de revelar o seu lado místico ao rapaz, visando aproximá-lo da
Irmandade e fazer dele um novo membro. Mas nesse clima da guerra não era nada propício para assuntos
que requer muita paz e tempo para se dedicar aos estudos.
Achou por melhor não entrar diretamente no assunto relacionado a Ordem por achar complexo
demais correndo o risco de confundi-los. Mais adiante poderia esclarecer sobre do que se tratava a Ordem
e seus ensinamentos. Deixou que o rapaz tomasse a iniciativa formulando perguntas.
- Faço uso do hipnotismo. É dessa maneira que me safo dos soldados da patrulha. – respondeu ao
rapaz – Existem varias maneiras de se usar o poder da nossa mente em nosso beneficio e de terceiros.
Com exercícios é possível adquirir autodomínio.
- Perdoe-me, camarada – interveio Helmut não satisfeito com as explicações do amigo. – Acredito
no que diz e acho compreensível, mas há algo mais além de mero hipnotismo e autocontrole. Sabemos que
existem sociedades secretas onde é possível fazer contato com os espíritos, e que esses ajudam o
invocador, tanto para o bem como para o mal. Como sociedades que abrigam pessoas bem intencionadas
que buscam auxiliar os necessitados com ajuda do além, e dentre as mais conhecidas está a Maçonaria.
Ah, meu caro amigo – interveio Ilya – Assim como existem as inúmeras denominações religiosas,
da mesma maneira existem sociedades secretas, todas com a mesma finalidade, que é buscar através do
misticismo, do ocultismo, do esoterismo e espiritismo a paz interior, o autodomínio, o conhecimento e
saber fazer uso de todo que a Natureza nos dispõe. Qualquer ser humano pode se associar a essas
entidades, embora cada uma possui seus estatutos e critérios para a admissão de novos membros. Mas há
uma que não pertence a este mundo e que para ser admitido compete somente ao próprio postulante o seu
sucesso e admissão. Esta irmandade não possui templos terrenos, não interfere nas coisas dos homens,
senão para ir ao seu auxilio, como temos feito com essas crianças judias.
- Perdoe-me pela ignorância acerca desse assunto – disse o rapaz – mas acaso quis dizer que existe
uma fraternidade que não é desse mundo? Pois de que maneira o membro dessa fraternidade recebe os
ensinamentos?
- É um tanto complexo para explicar assim numa primeira conversa. – respondeu Ilya – Tudo
começa com um mestre terreno que passa a ministrar ensinamentos para que o neófito vá se
familiarizando com certos princípios que sem os quais não é possível seguir adiante. Depois vêm os
exercícios, meditação e experimentos para que o neófito adquira autocontrole para poder receber outros
ensinamentos mais elevados, porque mesmo muitos dos segredos que se aprende com um mestre terreno,
em mãos de pessoas despreparadas pode ser uma arma letal.
- Há magia nisso tudo? Como pode um homem ser detentor de poderes sobrenaturais? – perguntou o
rapaz.
- Não há nada de magia, bruxaria, como nada é sobrenatural. São segredos que o homem comum
desconhece. – respondeu Ilya – Nós vamos à busca de conhecimentos que se referem ao corpo humano,

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conhecer o funcionamento de cada órgão, células, sua relação com a natureza, da física, da química a
nossa relação com o Criador.
- Então é aqui na terra que ...
- Não concluí minha explanação – Ilya interrompeu.
- Saber por que as células envelhecem e como prolongar sua vida útil, como combater os males que
atacam o organismo humano. Essa é a magia, a arte da medicina bem compreendida, que consideramos
como as mais nobres das ciências. Mas sempre tendo em mente que, primeiramente, é necessário se elevar
para que possa assimilar todo esse aprendizado.
- Mas isso é possível aprender na faculdade de medicina – indagou o jovem.
- Não é sobre essa medicina que me refiro, é sobre a medicina para a alma, compreende? Cuidar da
alma de modo que ela possa ver-se livre para sair dessa prisão terrena e retornar quando lhe convier. É
nessas ocasiões que ela vai buscar conhecimentos que universidade alguma nesta terra sequer faz ideia. E
o mais importante disso tudo, é viver em perfeita harmonia com a alma, receber e assimilar seus
conhecimentos.
Helmut ficou pensativo tentando compreender as palavras do amigo. Nada daquilo que Ilya havia
dito infringia qualquer ensinamento que não pudesse ser dito a alguém que não fizesse parte da
fraternidade. Na verdade, nada era proibido falar a quem bem entendesse. Muito dos mais altos segredos
era velado devido a certeza de que o ouvinte em questão não poderia compreender, expondo com isso os
elevados segredos ao ridículo, dando motivos a especulações e difamação. Tanto que não havia estatutos,
juramentos e obrigações para o iniciado.
- Mas – prosseguiu Ilya - para o devido merecimento o postulante tem que se submeter a duras
provas onde terá que provar seu bom caráter, sua honestidade perante aos seus semelhantes, coragem para
enfrentar quaisquer perigos, força e determinação e a verdadeira vontade de penetrar nos Arcanos. Muitos
não passam das primeiras provas. Posso até dizer que poucos conseguem se elevar.
- Há muitos membros nessa fraternidade?
- Dois sábios e eu. – respondeu ao rapaz deixando-o ainda mais confuso.
- Somente vocês? – disse incrédulo – Como pode uma fraternidade existir com apenas três
membros? E sábios? Por que os classifica assim?
- Porque eles possuem a sabedoria dos séculos.
O rapaz ouviu aquilo e decidiu não prolongar o assunto porque a conversa estava ficando por
demais enigmática. Limitou-se a pergunta que lhe veio a mente, como que impelido por uma força
involuntária:
- Se eu quiser fazer parte dessa irmandade?
Ilya fixou seu olhar no fundo dos olhos de Helmut sem nada dizer.

VINTE E QUATRO
A poucos minutos da investida final, sentado em sua banqueta, o General soviético Jukov repassava
cuidadosamente todos os planos. Preferia lutar em campo aberto porque Berlim era uma cidade moderna
repleta de edifícios onde o inimigo pode instalar ninhos de metralhadoras antiaéreas, dificultar o trânsito
de tanques e de veículos blindados. As ruas estreitas com prédios e casarões não eram propícias para o
trânsito de tanques, porque poderiam ser facilmente atacados pelos lados sem que pudessem perceber. Do
mesmo modo poderiam jogar granadas sobre as escotilhas dos tanques e bombas por debaixo. Havia os
túneis, as estações dos trens subterrâneos que não deixavam de constituir verdadeiras armadilhas que
poderiam colocar o inimigo em vantagem. O cuidado deve ser redobrado.
Pouco antes das três horas da madrugada Jukov reuniu seus principais comandantes e repassou
todos os planos. O grande momento havia chegado. Em poucos minutos o palco deverá ser iluminado
pelos potentes holofotes dos 140 aviões encarregados de fazer o reconhecimento da área. Jukov vestiu sua
túnica e saiu do bunker. Foi para seu posto de observação cuidadosamente construído por hábeis oficiais
do Grupo de Engenharia. Feito um regente de orquestra, daquele ponto comandará o espetáculo. Dali ele
tem uma visão ampla que permitirá acompanhar todo o desenrolar da batalha.

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Um forte clarão iluminou a área inimiga. Simultaneamente começou a chuva de morteiros e de
obuses numa barulheira infernal e ensurdecedora. Ainda tinha o roncar dos aviões que despejavam suas
cargas mortíferas. Mais pelos flancos o céu enchia-se de riscos multicoloridos provenientes dos infalíveis
Katusha*(*Lança foguetes russo). Jukov gritava através do telefone de campanha, dava ordens, não
havia tempo para o medo. A ordem era avançar. Era preciso ganhar cada metro, cada centímetro. Avançar,
avançar. Precisava alcançar as colinas, conquistar aquele importante ponto chamado Colinas de Seelow.
Jukov pedia que as tropas de retaguarda avançassem para dar apoio.
Na madrugada seguinte, antes mesmo do tempo previsto, as tropas de Jukov fizeram uma brecha
nos dispositivos defensivos da artilharia inimiga. Pela manhã conquistou toda a área correspondente a
Seelow. Os alemães não opunham mais resistência e Jukov avançava num ritmo acelerado em direção a
Berlim. Ao amanhecer era possível avistar a olho nu grande parte da cidade. Na tarde do mesmo dia as
unidades de tanques já se encontravam pela periferia de Berlim.
Em vão os alemães tentavam defender a cidade sitiada pelas tropas soviéticas por um anel que vinha
se fechando. Para o fim da guerra restava somente a tomada do Reichstag. As tropas soviéticas cercaram o
edifício do Reichstag, enquanto soldados penetravam no seu interior através de buracos feitos pelas
bombas. Poucas horas depois os soldados soviéticos saíam vitoriosos de dentro do Reichstag, conduzindo
mais de dois mil soldados alemães como prisioneiros. Outro grupo içava a bandeira vermelha da União
Soviética sobre o topo do edifício que simbolizava o poder do Terceiro Reich.
Enquanto os soldados soviéticos comemoravam a tomada da cidade a 69ª Divisão Norte-Americana
de Infantaria avançava nas proximidades do Rio Elba, quando avistaram um soldado russo do outro lado
da ponte semidestruída. Das duas extremidades da ponte, russos e americanos acenavam. Depois os dois
saíram correndo em direção um ao outro com os braços abertos encontrando-se no meio da ponte.
Abraçaram-se, pularam de alegria numa demonstração de que ambas as nações seriam amigas,
independentemente de seus sistemas políticos e ideológicos.
Adolf Hitler, vendo tudo perdido, em seu bunker secreto debaixo da Chancelaria, reuniu seu
ministério, fez seu testamento e pediu que fosse celebrado seu casamento com Eva Braun. Depois
comemorou as bodas junto aos mais chegados, como se nada estivesse acontecendo do lado de fora.
Almoçou, agradeceu e dispensou seu ministério, permanecendo a seu lado sua esposa e Josef Goebbels,
seu Ministro da Propaganda, junto com sua família. Depois atirou em sua cadela e em seguida suicidou-se,
seguido pela sua esposa que se matou bebendo veneno. Joseph Goebbels suicidou-se em seguida junto
com a esposa e com os cinco filhos.
Helmut e Zenobia ouviam com alegria as notícias no radio sobre a vitória dos Aliados sobre a
Alemanha nazista, enquanto Ilya permanecia calado como se o fim da guerra nada significasse para ele.
Na verdade, o que o incomodava era Zaram e sua esposa. Havia recebido carta da Grécia onde Zaram
falava do fracasso de Ludmila, que tencionava passar por Munique para depois retornar a Rússia.
Estava exausto e a notícia o preocupou. Mais de seis anos empenhado em salvar vidas, viajando por
cidades e países da Europa transportando crianças, passando por barreiras e, de certa forma correndo
riscos, era o momento de descansar, sair de cena, ir para um refúgio para se entregar aos estudos,
enriquecer seus conhecimentos, participar de convocações em meio a mentes iluminadas, os seres etéreos,
consultar os Registros Acásicos. Nem mesmo Adonai respondia mais aos seus chamados devido a ele
estar por demais envolvido nos problemas terreno. As crianças que ainda estavam na casa de Zaram foram
entregues a Cruz Vermelha, um peso a menos em sua vida. Às vezes chegava a pensar se estava passando
em mais uma prova para poder seguir adiante.
Com o fim da guerra não constituía mais perigo viajar de um país a outro, mas reinava grande
confusão num país tomado por forças estrangeiras com os refugiados, prisioneiros de guerra,
sobreviventes dos campos de concentração, a maioria trazida dos países do Leste. Muitas famílias foram
separadas e agora querem se reencontrar e retornarem aos seus lares, cidades e país de origem. Duas
semanas depois, em meio a essa confusão, Ludmila chegou a Munique.

121
Ela se sentiu revigorada ao chegar a sua residência onde tinha boas lembranças, que ajudaram a
clarear sua mente confusa. Ilya havia preservado parte da casa, como o quarto do casal, a biblioteca e o
quarto onde Zaram se isolava. A casa estava intacta. Ludmila queria descasar, refletir sobre sua vida, seu
futuro. Lembrou-se dos bons momentos ao lado do esposo, como também os temores que a atormentaram,
o medo dos nazistas, Heydrich, que a Providencia Divina livrou o mundo de suas maldades.
Mais algumas semanas e poderia pensar em retornar a Leningrado, sua cidade, sua casa seu país.
Mesmo a despeito de rumores que circulavam, dizendo que Stalin não aceitava aqueles que retornavam
depois do grande conflito. Pura bobagem, boatos daqueles que não concordavam com a política e os
métodos do grande líder que restituiu o país, exterminou com a classe dos exploradores do povo, dando
pela primeira vez em toda história da Rússia moradia digna ao povo, escolas, cursos universitários, saúde.
Irá se deparar com uma nova Rússia, quem sabe, recuperar as propriedades de seus pais. Que ficasse
Zaram com seu charlatanismo que chamava de magia. Zaram que teve a coragem de expor sua mulher
aquilo tudo pelo qual havia passado. Senmuth, velho embusteiro que a prendeu durante aqueles longos
meses com sua conversa que poderia alcançaria os grandes Segredos, que a transformaria numa sábia.
Nessas ocasiões ela não percebia a presença do terrível espectro.
Por sua vez, na Grécia, Zaram passava por momentos de perturbações, a ausência de Ludmila
causava-lhe sofrimento, algo que nunca em sua vida secular chegou a sentir. Temia por ela que nunca em
sua vida fez alguma coisa sem alguém a seu lado para orientá-la, protegê-la, os perigos em que estaria
exposta, mesmo a despeito da guerra ter acabado. A loucura do pós-guerra, gente sem rumo, perdida e
desesperada constituía grande perigo a uma mulher indefesa.
Não podia impedi-la de procurar aquilo que melhor seria para a sua vida, já que estava
impossibilitado de livrá-la do terrível mal que a assolava. Com tudo que vinha acontecendo, a cada vez
mais se prendia as coisas mundanas e seus poderes se afastavam. Em vão tentou subir as alturas em busca
do conforto e os conselhos de Adonai. Ludmila ocupava os seus pensamentos. Aquela frágil criatura a
quem ele ambicionou elevar a seu mundo de mistérios. Em vão tentava se comunicar em espírito com o
espírito dela para guiá-la e dar forças para vencer o mal que a acompanhava e punha a sua mente em
confusão. A paixão impedia o contato a distância, mesmo com Ilya ou Senmuth. Nunca em sua vida havia
se sentido tão desamparado, sem forças e poder para influenciar na vida da mulher amada, mesmo que
incorresse no risco de estar infringindo as leis. Não era sua maneira de pensar ou ver a vida. Jamais se
arrependia pelos seus fracassos. Era uma experiência a mais, um exemplo daquilo que não deveria jamais
repetir. Uma dor, uma ferida que o tempo vai cicatrizar. O que são algumas semanas quando se tem
séculos e mais séculos de existência pela frente?
Ilya se surpreendeu ao se deparar com Ludmila. Mais ainda pela sua aparência cansada, sem o
brilho que sempre ostentara. Havia dor em seu semblante outrora resplandecente, aquela beleza ímpar.
Antes havia brilho, e agora um misto de tristeza com dor e aflição. Voltava a sua casa onde antes vivia
com seu esposo. Era nítido que carregava uma dor que mídico algum podia aplacar. Lembrou-se da vez
em que se defrontou com o Espectro do Umbral, quando um medo terrível havia tomado conta de seu ser.
Chegou a titubear querendo retroceder, mas reuniu tudo o que tinha de forças e encarou o inimigo de
frente ordenando que lhe desse passagem. O fantasma foi minguando dando lugar a uma luz prateada.
Pode imaginar pelo que aquela pobre e fraca mulher passou.
Naquela primeira noite em seu quarto ela dormiu como há tempo não fazia. Nem teve tempo para
sentir a falta do marido. Já há algum tempo não era atormentada com a horripilante presença do inimigo,
desde que o seu relacionamento com Zaram começou a passar por um período de turbulência, como
também começou a tratar a criadagem com ofensas e maus tratos. A volta a Munique era providencial, um
tempo para decidir sua vida, se ficava com Zaram ou tomava outro rumo. Mas o retorno a sua pátria era o
que mais pensava. Mas essa e outras coisas ela resolveria depois. Estava de volta a Munique, e isso que
lhe importava naquele momento.

Ludmila viajou de trem de Berlim a Moscou. Por onde passou só viu destruição causada pelas
tropas alemãs. Varsóvia, Biela Rússia, Smolensk e outras cidades menores eram um amontoado de

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entulho. O campo estava devastado com toda a lavoura queimada. Se a linhas férreas ainda estavam em
condições de uso era porque eram usadas para o transporte de tropas e de prisioneiros que eram enviados
aos campos de concentração, principalmente os judeus. Olhou tudo aquilo com tristeza, tudo causado pelo
desrespeito e a ganância do ser humano. Lembrou que estivera com o marido num jantar na casa do
causador de toda essa desgraça. Um ódio tomou conta dela. Odiou e esconjurou i líder nazista. Ao mesmo
tempo em que permitia o ódio em seu coração, sentia pena das pessoas que padeceram em mãos dos
carrascos nazistas, e seu ódio aumentava. Percebeu seu desequilíbrio emocional e se sentiu perdida sem
ninguém a seu lado, sem marido e sem amigos.
Dividia a cabine com mais sete pessoas, algo jamais concebido em sua vida de condessa ou daquela
moça filha da nobreza russa. Um amontoado de pessoas, fumaça de cigarros, mau cheiro devido a falta de
higienização nos vagões e da falta de banho das pessoas. O trem estava repleto de soldados e alguns
poucos civis que retornavam a pátria-mãe. Falava-se muito sobre a União Soviética e sobre tudo que
Stalin havia feito para a grandeza da nação, transformando todos os quinze países que compunham a
União Soviética num país moderno com largas avenidas, trens subterrâneos, carros de fabricação
soviética, tratores e implementos agrícolas. O povo tinha moradia, estudavam nas universidades, médicos,
escolas para as crianças, creches. A guerra tinha interrompido o andamento do progresso, quase tudo
destruído. As fábricas teriam que serem reconstruídas para que a Locomotiva pudesse puxar novamente o
progresso, de modo que não deveria faltar trabalho. Um bom momento para retornar a Pátria-Mãe.
Ludmila estava disposta a fazer parte desse grande momento do país. Com a guerra a nação tinha
interrompido o progresso e se voltado para a confecção de materiais bélicos, tanques, aviões, navios e
submarinos. Era a União Soviética de Stalin, o Paizinho do povo que derrotou o fascismo nazista.
Estava ansiosa esperando o momento de pisar em solo russo. Ficaria em Moscou o tempo suficiente
para descansar e depois seguiria a Leningrado. Com sorte reencontraria algumas amizades antigas ou
parentes. Pensava em voltar para a sua casa, mas foi informada que em toda a Rússia não havia mais
propriedade privada. Mas isso não tinha importância, queria viver como vivia o cidadão comum, numa
Rússia sem miséria, sem pobreza, um povo feliz.
Lembrou-se de Zaram. Se resolver permanecer em seu país talvez o chame, pois afinal era seu
companheiro. Poderiam se casar formalmente, já que não era sua esposa de papel passado. Não se
importava mais com títulos, luxo, vida de aristocrata. Era outra mulher, uma Ludmila que muito aprendeu
desde o fracasso no Castelo da Colina. Mas ao mesmo tempo descartava essas hipóteses, numa clara
demonstração de confusão. Então o culpava por todo infortúnio, pelo que a fez passar naquele lugar
horrível junto daquele homem estranho. Sentia pena de Ilya que se deixou envolver pelas idéias de Zaram.
Tornou-se um homem frio, apático, infeliz. Tudo depois que se envolveu nessa Irmandade diabólica de
Zaram e aquele velho estranho. E o espectro ficava invisível a seus olhos.
Três dias depois desembarcou em Moscou numa estação grande e moderna apinhada de gente que
chegava de outros lugares. Entrou numa fila onde deveria apresentar documentos. Quando chegou a sua
vez um soldado ainda jovem, que examinava os documentos, deu uma rápida olhada em seus papeis e
pediu para que ela fosse a uma sala junto de outros civis. Compreendia que deveria haver certo rigor na
verificação de documentos, principalmente àqueles que estavam fora do país.
Quase duas horas depois foi encaminhada a uma sala onde um oficial estava a sua espera por detrás
de uma escrivaninha examinando uns papeis. Sem erguer a cabeça ele indicou uma cadeira à sua frente
para que ela sentasse.
Ludmila ficou surpresa. O comissário, um oficial de polícia com galões no ombro, não passava de
um frangote arrogante. Quem teria dado um cargo de grande responsabilidade a alguém que ainda
cheirava a leite? E ela, uma filha da nobreza russa, com estirpe, uma família tradicional, e ainda a união
com um nobre conde, sendo tratada daquela maneira por um oficialzinho qualquer e se fazendo de
autoridade.
O oficial olhava com interesse para os papéis sobre sua mesa. Usava óculos sem aro, rosto limpo,
bochechas rosadas, cabelos loiros engomados e penteados para trás do tipo Borsalino. Vestia o uniforme

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do NKVD de cor amarronzada com desenhos carmesins na gola. Era um jovem bonito, mas jeito de idiota,
daquele que se deixava levar por um superior para crescer dentro da corporação.
- Nome, sobrenome e patronímico. - disse o oficial ainda com a cabeça abaixada, olhos sobre a
folha.
Ela respondeu de conformidade com a pergunta do oficial.
- Data de nascimento, endereço e profissão. - perguntou mecanicamente o oficial como que
cumprindo um questionário preestabelecido que fazia o que havia aprendido na escola para comissários.
Seu dever era fazer perguntas e anotar as respostas sem se envolver.
- Sabe por que está aqui? - perguntou se jogando no encosto da cadeira, e finalmente olhando para o
rosto de Ludmila;
- Não sei senhor Comissário. – respondeu – Sou cidadã russa retornando ao país.
Ludmila percebeu que aquele rapazola estava procurando um bode expiatório, pouco se importando
quem fosse. Era mais do que notório que aquele oficialzinho estava começando a sua carreira e precisava
solucionar algum caso importante.
- Há algum tempo casei-me com um estrangeiro e mudei-me para a Alemanha.
- Continue, continue. - o comissário falou olhando com seriedade e interesse.
- O que posso dizer? Surgiu a revolução, e ele, como estrangeiro, achou por melhor ir embora, e eu,
como sua mulher, o segui.
- Continue, continue. – disse o jovem comissário.
Ela hesitou sem saber o que deveria falar, porque percebeu que aquele comissário estava a fim de
encontrar um bode expiatório para qualquer coisa que fosse.
- Fui embora, segui meu marido antes que a revolução se concretizasse. - disse ao oficial.
- Fugia do dever? – disse o oficial em tom ameaçador.
- Em hipótese alguma, senhor Comissário.
- Então porque foi?
- Paixão, amor...
- Explique-se melhor, camarada.
- Como posso explicar melhor? Disse tudo o que aconteceu, o amor que sentia por ele.
- Compreendo. - disse o comissário mexendo na pasta.
- Camarada - prosseguiu o comissário – Você deixou nosso país no momento em que precisávamos
de seus préstimos, de modo que nos leva a concluir que, nos traiu ou nos deixou por antipatriotíssimo se
excluindo do dever patriótico de servir a nação.
- Minha família tinha propriedades em São Peterburgo, foi expropriada pelo Estado.
- Hmmm – exclamou o oficial com desdém.- E achou uma injustiça, camarada?
Ludmila ficou calada. Um medo se apoderou dela, pois estava a cada momento se afundando num
poço de lama. O rapazola não estava para brincadeira;
- Mas, diga-me camarada, para onde vai?
- Voltei para recomeçar a minha vida. – respondeu Ludmila. –pretendo voltar a São Peterburgo,
tentar reaver minha casa.
- Camarada, em que mundo você vivia? – interveio o oficial, desta feita se mostrando irritado - Não
sabe que na Rússia socialista não existe mais a propriedade privada, e que São Peterburgo não existe mais,
que agora é Leningrado?
- Perdoe-me, senhor comissário, saí do país há mais de vinte e cinco anos, Estive num país com um
regime fascista onde não se tinha informações do resto do mundo, sem nada saber sobre o meu país.
- Camarada, todo cidadão que viveu fora da nossa pátria-mãe é um traidor, e você não é exceção. -
disse o oficial a uma Ludmila que começava a perceber que estava retornando a um país onde ela era
considerada inimiga.
- Posso chamar meu marido?
O oficial olhou numa indiferença como se não tivesse ouvido a pergunta dela.
Uma hora depois ela deu entrada na prisão de transito na Praça Dzersjinsk, conhecida por Lubianka.

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- Não acha que é hora de deixar tudo isso de lado, esquecer de vez a grande besteira que fez ao se
envolver com essa moça – dizia Senmuth enquanto caminhavam pela praia calma da ilha do ancião. -
Será que esses séculos de existência não lhe ensinaram nada sobre a vida?
- O amor é um sentimento que não depende da nossa vontade. – dizia Zaram em seu jeito
apaixonado de ver a vida – Ah, Senmuth, não faz idéia do que é ter alguém a quem amar, vivenciar o seu
dia a dia, tocar em sua face, beijá-la, amá-la, despertar com ela a seu lado, planejar um futuro, ao contrário
da maneira como vivemos sem temor algum por nada, seguro de nossos passos, sem medo da
enfermidade, da morte, sem esperar coisa alguma do amanha, pela certeza que ele virá.
- E sua longa existência? Poder acompanhar e fazer parte da evolução na terra, ser testemunha da
história, fazer pesquisas para melhorar a vida do planeta. Vale trocar tudo isso por uma paixão passageira?
Veja só o que o amor por essa mulher fez com você, não consegue se elevar as alturas porque está preso a
essa paixão. Ah, Zaram, meu velho amigo. O prazer que o amor que sente por essa mulher lhe propicia é
maior do que a presença de Adonai? O que lhe deu essa mulher? Amor, carinho, prazer? Se o amava, por
que o deixou para se aventurar num país que ela nem mesmo sabe o que vai encontrar por lá?
- Ela se encontra sob a influência do inimigo...
- Não posso acreditar que esteja dizendo isso. Você, Zaram, você com toda a sua sabedoria fala feito
um ignorante neófito? O que o faz pensar assim, o que anuvia a sua mente? Será que não vê que ela é uma
criatura volúvel, que vivia num clima seguro com a sua proteção, seu status de nobre e sua fortuna, porque
se ficasse naquele país, certamente, iria para onde foram todos aqueles que compunham a nobreza russa.
Não nego que você exerceu certo encanto sobre ela a pondo de ela te seguir, mas não era amor.
- Zaram, meu caro, quando eu a levei para a iniciação, tinha certeza de que ela não seguiria adiante,
porque seu desejo era puramente carnal e egoísta, driblar a morte para estar ao seu lado, e você bem sabe
que jamais alguém conseguiu passar pelo inimigo do umbral com esses objetivos. Você mais do que
ninguém sabe bem que ela nada mais fez do que trazer a sua consciência seu passado, seus defeitos, erros,
o karma por tudo o que fez, e que para termos sucesso e nos tornarmos sábios é necessário eliminar essas
coisas que impedem a nossa evolução. Eu bem poderia impedir que ela fizesse a prova mais dura, mas não
o fiz porque estaria intercedendo numa prova pelo qual ela teria que passar, porque chamou para si seus
erros passados e futuros para se purificar, mesmo que não seguisse adiante. Sei dos percalços que ela está
passando, mas dei-lhe a chave para se livrar daquilo que lhe persegue. Resta a ela se desvencilhar do
inimigo para então retornar a vida e desfrutar e pôr em prática tudo o que aprendeu como neófita, que é
uma sabedoria superior a média das pessoas. E você, Zaram, trate de esquecê-la e volte a trilhar o nosso
caminho, ou acha que vale a pena deixar séculos e mais séculos vindouros de existência por uma paixão
de décadas? A mais, por quanto tempo acha que conseguirá mantê-la bela e saudável?
- Senmuth, ela voltou ao seu país onde o tirano pune com a morte ou com o trabalho forçado nas
regiões inóspitas. Ainda mais ela que deixou o país num momento crítico.
- Ela escolheu o seu destino, pois ela que se safe dessa situação que ela mesma se envolveu. – disse
o frio e indiferente Senmuth – E sabe que está impossibilitado de protegê-la a distância. Você tem duas
opções na vida, meu caro irmão. Volte a trilhar a nossa senda, ou morra junto dela, porque esse é o destino
que o aguarda, caso deseje ir em busca dela. Você tem a casa em sua ilha, distante das maldades desse
mundo e ao mesmo tempo próximo à vida que gosta, bons restaurantes, espetáculos musicais, tudo ao seu
alcance quando assim desejar. Poder desfrutar dos prazeres que a vida oferece. Volte a sua case e se
entregue aos estudos e experimentos, pois bem sabe que a sabedoria não tem limites, sempre haverá coisas
novas para descobrir. Medite, reflita, deixe de vez em quando esse invólucro grosseiro e vá buscar a
companhia dos seres etéreos. Permaneça longe daquilo que vem anuviando a sua mente. Lembre-se que é
um sábio e de que a humanidade necessita de seus conhecimentos. Volte a sua casa, ou se desejar
podemos retornar a Nápoles, já que a guerra terminou.
Naquela mesma noite, em sua ilha, Zaram subiu a colina até a caverna onde era o seu oráculo, e ali
invocou o Filho da Luz.

125
Depois de ser fichada deram-lhe o uniforme de prisioneira, uma saia e uma blusa cinza, um par de
tamancos com um solado de borracha para evitar o barulho ao caminhar. Foi encaminhada a uma cela no
porão junto de outra prisioneira. Era uma cela pequena e apertada com dois catres que durante o dia
permaneciam encostados na parede, e a privada no canto. Para as necessidades fisiológicas era preciso se
agachar. Como se tivesse em estado de choque não deu importância àquele lugar, como se ela fosse
obrigada a passar por tudo aquilo como uma maneira de pagar por ter deixado seu marido e seu lar seguro
na Grécia.
A cela era limpa, embora tivesse um pouco de bolor pela falta de sol. O teto era alto, havia uma
pequena janela gradeada há cerca de dois metros do chão. Não era fria, pois no corredor havia calefação,
de modos que aquecia também as celas. Era final de outono, uma época do ano em que os dias vão
tornando mais curto, chegando a ter não mais do que cinco horas de luz do sol. Apresentou-se a sua
companheira de cela que se encontrava ali há algumas semanas. Era uma mulher na casa dos quarenta
anos de idade. Nem mesmo ela sabia o motivo da sua prisão. Algumas prisioneiras haviam dito durante o
banho diário de sol, que Béria, o diretor da NKVD, mesmo sem o consentimento de Stalin, prendia
pessoas inocentes para povoar os longínquos campos na Sibéria, para os trabalhos forçados porque
precisava reconstruir o país devastado pela Alemanha nazista. Ludmila se limitava a ouvir ainda não
refeita do choque pela radical mudança em sua vida.
Entre as prisioneiras tinha mulheres que haviam servido na guerra como enfermeiras, telefonistas e
no próprio front. Não compreendiam o porquê de terem servido a pátria, serem jogadas numa prisão sem
qualquer acusação e sem terem feito nada que merecesse tal punição. O que elas ignoravam era que Stalin,
em sua paranoia, achava que todos aqueles que deixaram o país, mesmo para combater o inimigo, eram
pretensos traidores porque tinham contado ao inimigo, fosse por livre e espontânea vontade ou sob tortura,
segredos do país, ou então que por verem como vivem os estrangeiros, tivessem ficado vislumbrados pela
maneira com eles viviam, e que esses poderiam contar maravilhas ao povo soviético, podendo ameaçar
seus programas de reconstrução da nação e seu desenvolvimento.
Aquelas que haviam servido no front eram as que mais facilmente se adaptavam àquela vida, por
estarem habituadas a dura rotina em barracas, correndo constantemente o risco de serem atingidas por
bombas ou ataque surpresa. Grande parte das prisioneiras eram mulheres que nada haviam feito, que nem
mesmo sabiam o porquê de estarem ali.
Ao perder a liberdade toda criatura se transforma, quando os tormentos cotidianos incluem o medo
permanente da morte. O detento sente um choque tão violento que as suas reações não podem mais ser
caracterizadas como normais. Alguns manifestam uma agressividade sem limites, a fim de defender a
própria vida, outros se tornam propensos a todas as traições, outros inda se resignam e mergulhar num
desespero mudo, deixando de se defender contra a doença e ate mesmo contra a morte. No decorrer de sua
experiência de detenção, todo prisioneiro tem que atravessar diferentes estágios. Se não consegue superar
o choque que sente ao chegar à prisão, sua vida está ameaçada. Para sobreviver deve adaptar-se, de um
modo ou de outro, àquela situação extrema que encontram um sentido para a nova vida.
Ela encontrou sua energia espiritual, seu interesse pelos destinos de outras pessoas. Era outra
mulher, se transformara radicalmente. Aquelas mulheres carentes, sofridas, indignadas pelo que vinha
ocorrendo em suas vidas, deram-lhe forças, ela que em toda sua vida foi cercada de privilégios boa
educação, luxo e tudo aquilo que poucas mulheres na Rússia tzarista puderam ter, e que essas mulheres
prisioneiras são incapazes de conceber porque nasceram na era soviética onde não havia mais diferença de
classe social. Outras que nem mesmo conheceram esse regime, e outras que acreditaram na revolução, em
Stalin, achando que viveriam num país com direitos iguais, que lutar na guerra era o dever de todo cidadão
soviético porque a guerra era uma guerra patriótica.
Foi transferida para uma prisão de trânsito que abrigava prisioneiras que tinham a Sibéria como
destino. Ao contrario da Lubianka, ali tinham mais liberdade para se comunicarem. Ficavam soltas no
pátio da prisão o dia inteiro e as celas abrigavam cerca de vinte mulheres, e ali se defrontou com os
problemas humanos. Feito um padre católico passou a ouvi cada uma delas, aconselhando e confortando,

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dando-lhes esperança de que tudo poderia ser solucionado, e também procurando dar a elas forças para
suportarem todo o infortúnio.
E foi numa dessas ocasiões que o Espectro do Umbral se manifestou. Horripilante, com mais
maldade em seus olhos debochados e tentador. Chegou para resgatar a sua presa que tinha se dedicado a
ajudar aquelas pessoas desesperadas pelo destino que lhes foram imposto. Ludmila mal tinha acabado de
deitar. Estava cansada, teve um dia cheio percorrendo a maioria das celas levando seu apreço àquelas que
precisavam desabar seus sofrimentos por se encontrar naquele lugar, oferecendo seu ombro amigo, uma
palavra.
Ele empesteou o lugar com a sua presença malévola. Ludmila não gritou de pavor e tampouco
desmaiou. Lembrou-se da carta que Senmuth havia deixado para ela, que falava de como ela poderia
exorcizar o fantasma. O encarou de frente olhando para aqueles olhos cheios de maldade. O fantasma fez
menção de recuar e parou a frente dela.
- Aparta-te da minha presença, eu ordeno – Ludmila disse com firmeza olhando firmemente para
aqueles olhos que outrora lhe causava temor. Não temo o seu olhar tampouco a sua indesejável presença.
- Criatura imbecil- interveio o fantasma com ódio no olhar – Saiba que somente eu posso libertá-la
desse cativeiro, e sabe o que te aguarda lá na frente? A escravidão, o trabalho escravo e os maus tratos
num lugar gelado. Onde está seu maridinho e aquele velho arrogante? Por que não aparecem para te
libertar?
- Nada tenho para conversar, tampouco me importa com o que diz. Eu te esconjuro, criatura do mal.
Saia, eu ordeno.
O fantasma minguou ao mesmo tempo em que uma luz prateada iluminava o recinto. Ludmila
pareceu despertar de um transe, como se tudo não passara de um pesadelo. Aos poucos foi se dando conta
de que havia estado com o seu pior inimigo e que o tinha vencido. Pensou em Zaram, Senmuth e Ilya.
Agora ela os compreendia, compreendia o seu marido.

Ludmila aguardava a sua transferência sem se preocupar com o lugar para onde seria enviada.
Segundo diziam, não era ao todo ruim para quem não tem família, filhos e parentes que ficariam para trás.
Sua família era aquelas sofridas mulheres, e para ela, poder ajudá-las era tudo o que desejava, como uma
maneira de pagar pelo que nunca havia feito em favor de alguém, vivendo uma vida invejável sem nunca
ter pensado na dor daqueles que padeciam naquela Rússia imperial. Depois sua vida com Zaram, algo que
mesmo para ela acostumada ao luxo que sua classe propiciava, passara a viver como uma verdadeira
aristocrata, no luxo, na riqueza e tendo como companheiro Zaram, um homem inigualável que não teve a
capacidade de manter devido as suas fraquezas. Ela aceitava o que o destino lhe impusera. Não importa
por quanto tempo ficará no exílio, pois enquanto lá estiver viverá para servir.
Ela se encontrava no pátio externo junto das demais detentas. Aguardavam o momento em que
embarcariam no trem que as levaria aos lugares de degredo. A manha era fria, embora ainda não tivesse
nevado. Um céu limpo, num azul sem nuvem, um sol fraco que não esquentava, mas mesmo assim elas
procuravam ficar exposta esperando que lhes desse um mínimo de calor. Era um dia bonito que, por
ironia, iria marcar a vida daquelas mulheres angustiadas que perderam seus lares, suas famílias, o sonho
de participar do progresso do país, para seguir rumo ao degredo na gelada Sibéria.
Um guarda entrou no pátio em meio àquelas mulheres e chamou pelo seu nome. Ela se apresentou e
ele pediu para que o seguisse, pois alguém procurava por ela. Quão grande foi a sua surpresa ao chegar ao
portão e se deparar com aquele ancião de olhar frio, estatura alta e pele dourada que contrastava com o
biótipo daqueles guardas. Parou diante dele e não pode conter as lágrimas por se ver diante daquele que
outrora a havia guiado na senda do saber.

VINTE E CINCO
DEZ ANOS DEPOIS
Ela caminhava pela praia quase deserta que ficava próximo ao morro onde situava o Castelo da
Colina. Caminhava descalça pisando na areia quente. Às vezes deixava que as ondas que vinham morrer

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na areia lambessem seus pés, uma sensação agradável àquela hora da manha. Caminhava, meditava e
refletia sobre seu passado, os percalços pelos quais havia passado, mas que acabou por fortalecê-la,
transformando aquela frágil criatura numa mulher de fibra, cheia de coragem, que lutou pelos seus
objetivos e venceu.
Desde a sua saída da prisão na Rússia em mais uma ousada interferência de Senmuth, ela seguiu
com o místico rumo a Nápoles. Deparou-se com uma cidade em ruínas, devastada. Nápoles que ainda há
pouco tempo era banhada por um sol esplendoroso, dividia o mar verdejante e o Vesúvio, uma imagem
funesta para quem conheceu a cidade antes que a guerra tomasse vulto. Na última vez em que esteve na
cidade com Zaram para depois seguirem rumo à Alemanha, conheceu uma bela cidade com suas praias
paradisíacas, as construções antigas incrustadas nos morros, a visão do Vesúvio adormecido. Uma Itália
que transferiu para os aliados a responsabilidade pela libertação do fascismo. Contudo, mesmo com os
bombardeios sofrido, o Castelo da Colina permaneceu intacto, e Senmuth havia retornado ao lugar, pois
de suas propriedades espalhadas por diversas cidades e diversos países, aquela era a sua residência
predileta, onde habitava há muitos séculos.
Ali ela ficou como hóspede de Senmuth porque não quis voltar para a Grécia junto de Zaram.
Queria recomeçar a sua vida, sentir-se como participante deste mundo do qual ela só conhecia a maldade
do homem, o egoísmo, a sede de conquista que culminou com todos os acontecimentos funestos os quais
tinha vivenciado. Sentia-se pequena demais para estar ao lado de um homem como Zaram. Estava
próxima dos sessenta anos, mas mantinha a aparência jovem como era nos tempos em que vivia na Grécia
em companhia de Zaram, mesma disposição, a mesma juventude.
Ela andava pela cidade, pelos vilarejos e onde quer que necessitem de apoio. Havia muitos
enfermos, mutilados pela guerra, crianças órfãs e todas as heranças de guerra legadas ao povo. Tornava-se
a cada vez mais uma mulher madura que conhecia a vida, longe daquela peterburguense criada na
nobreza. Na casa de Senmuth vivia uma vida simples, como se vivesse num monastério.
Em plena metade do século XX, quando o mundo vivia em tempos modernos, tecnologia avançada,
no Castelo da Colina não dispunham de qualquer privilegio da vida moderna, sem rádio, sem aparelhos
eletrodoméstico e sem luz elétrica. Havia a criadagem em número pequeno para os serviços essenciais.
Nada do mundo moderno fazia falta. E esse modo de vida, seu contato com a natureza podendo estudar as
plantas, despertou nela o interesse pelo que há algum tempo tinha estudado. Passou a meditar, fazer
introspecção, até que chegou a Senmuth e pediu para que retornasse com os ensinamentos.
Um ano depois ela fez o mesmo caminho percorrido a mais de uma década e saiu-se vencedora.
Zaram havia deixado a ilha grega para fixar residência na Escócia, num antigo castelo na região de
Perth, outra das suas propriedades onde costumava viver por algumas décadas. Ali ele se entregou com
afinco aos estudos buscando mais conhecimentos, contatos com os seres etéreos e reuniões com as mentes
iluminadas visando pôr na mente dos homens mais tolerância, compreensão e amor pela humanidade, a
paz que o mundo necessitava. Muitos conflitos haviam acontecido no século atual, e com os avanços da
tecnologia o mundo corria o risco de ser destruído pelas mãos do próprio homem, e essa era uma das
maneiras para se tentar evitar. O que havia acontecido nas duas cidades japonesas era uma amostra do que
poderia acontecer, caso as duas maiores potências entrassem em conflito.
No passado muitos dos iniciados se tornaram verdadeiros cérebros que deixaram seus legados a
humanidade com importantes descobertas no campo da medicina, da ciência e da tecnologia. Se foram
deste mundo por cansarem de viver. Nos dias atuais a paz é mais importante porque a ciência aprendera a
andar sozinha, poderia ser adquirida nas universidades, mas a paz compete ao bom senso do homem e
somente mentes iluminadas poderiam meditar pela paz. Quatro membros, apenas quatro, Senmuth, Zaram,
Ilya e Ludmila. Quatro membros que lutavam para incutir na cabeça dos lideres o bom senso para que o
mundo fosse melhor a todas as nações. Passaram a fazer mentalizações nas principais mentes responsáveis
pela manutenção da paz uma rotina, pois um novo conflito era iminente entre as duas principais nações.
Dois dirigentes poderosos brigavam por causa de um desentendimento. A vida no planeta estava por um
fio, a Terceira Guerra Mundial estava preste a eclodir com lançamentos de mísseis entre as duas potências
John Fritgerard Kennedy versos Nikita Sergueivitch Krutchov.

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Os quatro místicos se reuniam no Castelo da Colina. Elevaram-se as alturas junto das mentes puras,
se concentraram na mente dos grandes poderosos da terra. Não sabem por quanto tempo ali permaneceram
com seus pensamentos voltados para a paz.
Quando retornaram a seus corpos os jornais noticiavam que John Fritgerard Kennedy e Nikita
Sergueivitch Krutchov entraram num acordo e a paz do mundo estava garantida.
Na tarde daquele mesmo dia, um casal caminhava pelas praias de Nápoles. Caminhavam de mãos
dadas, leves porque um grande peso havia sido tirado das costas de ambos. Amavam-se, mas sem paixão,
sem sonhos e sem ilusão. Simplesmente se amavam como se nunca tivesse havido um passado. Um
terceiro ser estava entre eles, ainda em desenvolvimento. Mas o que são alguns meses de espera para quem
tem os séculos pela frente?

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Gratidão!

Caixa Econômica Federal – Conta poupança


2934 013 - 00000274 – 2
Ieso Nascimento

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