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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

Tales Moreira de Carvalho

ANA CRISTINA CESAR

AUTOFICÇÃO

SILÊNCIO E NÃO DITO & NÃO SENSO

BELO HORIZONTE

2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

Tales Moreira de Carvalho

ANA CRISTINA CESAR

AUTOFICÇÃO

SILÊNCIO E NÃO DITO & NÃO SENSO

Monografia apresentada como requisito


parcial para obtenção de título.

Orientadora: Profa. Dra. Constancia Lima


Duarte.

BELO HORIZONTE

2015
Dedicatória:
Para você, Ana, temerosa, rosa, azul-celeste.
Agradecimentos:

Primeiramente agradeço a Deus, pois sem Ele, não teria chegado aqui. Em seguida a
meus pais, pela compreensão e apoio, imprescindíveis. Agradeço também à minha
orientadora, Constância Lima Duarte, pela ajuda e confiança, e principalmente,
amizade. Por fim, agradeço a todos que me incentivaram e ajudaram de alguma forma.
Inclusive, aos que se silenciaram, porque o silêncio é uma forma de produção de
sentidos, e às vezes, uma maneira de implosão. Não posso deixar de agradecer ao
espírito de Ana Cristina Cesar, que sei, guiou esta Monografia até o fim. Tudo o mais
são “lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de
um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia” (CESAR.
2013. P?).
Epígrafe:
Para iniciar um trabalho e entrar no clima, nada melhor que um poema que explora tudo
o que a monografia abrange:

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma


informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das asas batendo
freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor
de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
Não, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu que admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três barcos
colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.
Resumo:
Esta monografia busca refletir acerca da produção literária de Ana Cristina Cesar, tendo
em vista os conceitos de autoficção, silêncio e não dito, e não senso. Possuo como
hipótese que a literatura produzida por Ana Cristina parte da autoficção, dando origem a
dois ramos: silêncio e não dito e o não senso. Silêncio e não dito são entendidos aqui
como um único conceito, já que o não dizer geraria o silêncio.Dada a impossibilidade de
se comprovar a hipótese mencionada, pois Ana já faleceu, busca-se somente expor essa
hipótese sob forma triangular. A autoficção no vértice, dando origem aos dois ramos:
silêncio e não dito, e não senso.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 10
1.2 Justificativa ....................................................................................... Erro! Indicador não definido.
1.3 Objetivos .......................................................................................... Erro! Indicador não definido.
2 REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................ Erro! Indicador não definido.
3 METODOLOGIA................................................................................................................................... 15
4 PLANO DE ORGANIZAÇÃO ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
5 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO ................................................................ Erro! Indicador não definido.
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 25
ANEXO ........................................................................................................ Erro! Indicador não definido.
1 INTRODUÇÃO

“Frente a frente, derramando enfim todas as


palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio
que não é mudez.” Ana Cristina Cesar.

Posso derrubar ou erguer o mito


a esmo.( CESAR, 2013 P.165)

Talvez quando escreveu esses dois versos, aos dezessete anos, não possuísse
consciência de seu poder de verdade. Insegura e tímida, não obstante dotada de extrema
inteligência e da sede do saber, Ana Cristina Cesar nascera para brilhar. Antes mesmo
de aprender a escrever, brincava fazendo o gesto da escrita, como se estivesse
escrevendo de fato. A caneta imaginária em mãos. Gesto que nunca abandonou, mesmo
após a alfabetização, como disse seu amigo e também poeta em diversas entrevistas,
Armando Freitas Filho.
É possível que nesses dois momentos, o da infância e da adolescência, já estivesse
refletindo futuros poemas. Sua mãe relata que na época em que ainda era menininha,
como ainda não sabia escrever, ditava seus poemas. Relação paradoxal na infância:
primeiramente fingia escrever com a caneta imaginária, momento de silêncio; em
seguida, ou pouco tempo depois ditava os poemas para a mãe, que transcrevia para o
papel. Paradoxal porque é incomum uma criança se amparar no silêncio e na reflexão.
A infância geralmente é época de muito barulho; não que ela não o fizesse, mas desde
sempre fora discreta, desse modo sua melhor relação fora com a palavra. Isso de modo
algum já sinalizaria uma patologia clínica na menina; como se pudéssemos explicar a
partir desse ponto um caráter voltado ao trágico. Não, ela apenas era mais quieta; não
obstante se desenvolveu como qualquer pessoa. Claro que sua inteligência era a cima da
média, assim como sua sensibilidade; de modo que se aprofundou na vida intelectual e
poética.
Tão logo adquiriu habilidades de leitura e escrita, Ana Cristina se tornou uma leitora
ávida; descortinando o mundo nos livros, e em volta de si. Por essa época começou a
escrita de diário e poesia simultaneamente; não obstante os separasse. Ela conta em
entrevista que primeiramente escrevia os dois gêneros em separado; porém, eles foram
se aproximando, e acabaram semisturando.
Ana Cristina Cesar (Doravante Ana C.) foi professora, poeta, escritora e tradutora.
Nasceu em 2 de junho de 1952 e ergueu o mito do poeta romântico em torno de si,
suicidando-se em 29 de outubro de 1983. Desse modo, juntou-se ao grande filão de
poetas/escritores que deixaram esta vida pelas próprias mãos; somente para citar alguns:
Vladimir Mayakovsky, Sylvia Plath (inclusive essa foi uma das escritoras que Ana
Cristina traduziu intensamente), Florbela Espanca, Virginia Woolf, dentre muitos
outros. É considerada por Ítalo Moriconi, Flora Sussekind, Maria Lúcia de Barros
Camargo, entre outros, como a melhor poeta da geração mimeógrafo.
A seguir apresento aqui uma breve síntese biográfica da pessoa por trás do mito,
segundo o livro póstumo Crítica e tradução.

Ana Cristina Cruz Cesar nasceu [...] no Rio de Janeiro, filha de Waldo
Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar. Sua estréia literária ocorreu
muito cedo: em 1959 tinha as primeiras poesias publicadas no
“Suplemento Literário” do jornal carioca Tribuna da Imprensa.
Licenciada em Letras pela [...] (PUC) do Rio de Janeiro. [...] mestre
em comunicação[...] exerceu intensa atividade jornalística, editorial e
como tradutora de importantes autores estrangeiros, entre os quais a
poeta Sylvia Plath. Escreveu para diversos jornais e revistas, integrou
a antologia 26 poetas hoje, de 1976, publicou Luvas de pelica, Cenas
de abril e Correspondência Completa, em edições independentes, e
Literatura não é documento, pesquisa sobre a literatura no cinema, em
1980. Em 1982 lançou A teus pés. Após sua morte em 29 de outubro
de 1983, a reunião de seus escritos inéditos deu origem a três obras,
organizadas por Armando Freitas Filho: Inéditos e dispersos (prosa e
poesia), de 1985, Escritos da Inglaterra (ensaios sobre tradução e
literatura), de 1988 e Escritos no Rio (artigos, textos acadêmicos e
depoimentos), de 1993. Em 1998 a Editora Ática iniciou o
relançamento de suas obras completas com A teus pés. (CESAR,
1999, p.462)

Segundo a citação acima, ela exerceu intensa atividade crítica e ensaística. Porém, é
objetivo desta monografia focalizar sua poesia-prosa, pois ambos estão atrelados, já que,
como diria Caio Fernando Abreu na contra-capa de A teus pés:

Fascinada por cartas, diários íntimos ou o que ela chama de “cadernos


terapêuticos”, Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio
proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura.
Intimidade às vezes atrevida, mas sempre elegantíssima. Intimidade
dentro de um espaço particular, onde não há diferença entre poesia e
prosa, entre dramático e irônico, culto e emocional, cerebral e
sensível. (CESAR, 1982)
Logo após a sua morte houve uma grande comoção. No entanto, parece que nos anos
seguintes a mídia foi abafando a obra dessa autora magnífica. Talvez por causa do seu
suicídio que pôs fim a uma carreira que seria, como foi no curto espaço de tempo em
que esteve presente, no mínimo, brilhante, ela foi elidida do ensino fundamental e
médio. Não a vemos nos livros de Literatura de escolas. É estranho e injusto, mas
necessário admitir: nosso país ainda é extremamente machista. Quase não se tem
notícias de escritoras mulheres antes de Cecília Meireles. Atualmente é que se está
resgatando-as. Contudo, escritoras brasileiras suicidas parece ainda ser tabu nesse país,
já que no meio acadêmico há dezenas, senão centenas de Monografias, Dissertações e
Teses sobre Ana C.. Se há tantos trabalhos assim na academia, porquê a autora não
figura nos livros das escolas?
Até os livros sobre Ana C. eram difíceis de serem encontrados pela via comercial, e
muitos estavam esgotados. Inclusive sua obra toda estava esgotada há dois anos
aproximadamente. Somente uns poucos eram comercializados em sebos, e na Estante
Virtual, via online.
Mas no ano passado a situação finalmente mudou. Sua obra saiu do Limbo em que
estivera por tantos anos; aproximadamente 30 e foi reeditada pela COMPANHIA DAS
LETRAS que lhe deu um tratamento especial com a colaboração de Armando Freitas
Filho, seu curador, nomeado pela própria Ana em carta.
Em novembro sai Poética (CESAR, 2013), que reúne toda obra publicada da autora,
incluindo Inéditos e dispersos (1985) e parte de Antigos e Soltos: poemas e prosas da
pasta rosa (2008).
Inéditos e dispersos, como diz o próprio título, é uma coletânea de escritos da poeta,
selecionados por Armando Freitas Filho, pelo seu caráter de conclusão, tendo em vistas
abranger toda época de produção de Ana. Já Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta
rosa, foi originado realmente de uma pasta rosa, em que a escritora dividiu por sessões:
prontos mas rejeitados; inacabados; inacabados; rascunhos/primeiras versões; cópias;
“O Livro”; antigos e soltos. Essa ordem foi respeitada. O livro é praticamente a
transposição da pasta para livro. Há, inclusive, fac-símile dos originais: rascunhos à
mão, datiloscrito, etc. É possível acompanhar seu processo criativo, pois o mesmo
poema/prosa às vezes possui vários rascunhos.
À época da produção da escritora, surgiu um grupo não muito coeso de poetas e
escritores/artistas, em geral,denominado posteriormente de geração Mimeógrafo.Esse
nome foi cunhado pelo modo com que esses artistas publicavam seus livros. Eles
usavam o mimeógrafo para os imprimirem em edições independentes e em pequenas
tiragens, que vendiam por conta própria.
Esse tipo de máquina somente conseguia imprimir pequenas tiragens, e era o meio mais
barato. O único que esses poetas conseguiam custear, porque estavam excluídos do
processo editorial. De modo que outra denominação para essa geração foi o de poesia
marginal. Apesar desse nome “marginal”, os poetas acoplados em torno dessa poesia
geralmente não eram marginais, como sugere a acepção do termo. Essa geração teve
seu apogeu nos anos 70/80; seus principais representantes foram Chacal; Cacaso; Paulo
Leminski; Francisco Alvim; Ana Cristina Cesar; entre outros.
Há uma polêmica em torno de um pertencimento da poeta ou não a esse grupo, visto
que a poesia marginal realizava uma poética autobiográfica que no geral utilizava uma
linguagem coloquial, sem grandes preocupações artísticas. “Não importa a elaboração
artística, composição é jogo rápido, pulo, flagra, take, mas sempre a serviço de uma
expressividade neo-romântica, “sincera” e coloquial, desse ego que escreve e que “se
escreve” todo tempo” (SUSSEKIND, Flora. 2004.P117). Ana C. de fato pertencia a essa
geração, entretanto, dela se diferenciava em vários aspectos. Apesar de a autora
supramencionada ter adotado o caráter autobiográfico dos diários e das cartas, há nela
uma ambivalência entre o real e o literário; aspectos da vida privada inseridos na obra,
como que em um jogo, tentam confundir fatos ficcionais e biográficos. Em suma, há
uma tensão constante entre ficcionalização e confissão. Ana C. possuía consciência
dessa poética autobiográfica dos anos 70 e brinca com isso, operando em seus escritos
uma desmontagem do diário e da carta. A despeito desses aspectos, ela estaria inserida
nessa geração, segundo Heloísa Buarque de Hollanda, por uma questão geracional.

Nesta monografia pretendo refletir sobre a poesia/prosa de Ana Cristina Cesar, a partir
dos conceitos da autoficção, silêncio e não dito, e não senso.
Tendo em vista principalmente objetivos didáticos, a fim de melhor expor a
poesia/prosa de Ana C., já que muitos ainda não conhecem, ou não captaram ao menos a
“chave” para fruírem uma leitura tanto quanto mais agradável, tentarei apresentá-la em
forma de triângulo, cuja ponta será a Autoficção, e os vértices o Silêncio e não dito e
Não senso, como representado na capa deste Projeto. O Silêncio e não dito e o Não
senso estão nessa relação de vértices do mesmo triângulo porque tenho como hipótese
que um causa o outro na literatura de Ana. Por isso eles se representam em linha reta; é
uma linha que vai e volta. Ou seja, o Silêncio e não dito causa um vazio, uma ausência
de sentido e por isso, Não senso. Já o Não senso assusta, causa estranhamento, e assim,
provoca silêncio.

O Corpus é exclusivamente retirado de Poética (2013), que reúne quase toda obra
poética da poeta, exceto Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta rosa (2008); devido
à sua grande extensão, apenas uma pequena parte de Antigos e Soltos foi incluída em
Poética. Começo o Corpus citando o tema e três poemas para cada tópico; no caso
particular da autoficção escolhoutilizar o livro Luvas de pelica (1980), desse modo
começo o desenho do triângulo, como demonstrado na capa do Projeto. Assim, inicio
pela ponta. A seguir, passoaos vértices. Primeiramente, o tema do silêncio e não dito, e
concluindo com o não senso. Terminado o triângulo como já mencionado
anteriormente, apresento dois poemas cuja análise será dos três assuntos trabalhados
concomitantemente. Assim, será analisado um livro e oito poemas.

AUTOFICÇÃO:
Esse tema será um caso à parte, como já referido, em que prefiro utilizar um de seus
livros lançados em edição independente a escolher três poemas. A saber, o livro é Luvas
de pelica (1980). É o exemplo máximo, a meu ver, para exemplificar esse tópico.
Poderia utilizá-lo para os três, tornando-o como objeto de minha pesquisa, mas o
interesse aqui não é abordar um livro específico, e sim focalizar a obra da poeta como
um todo.

SILÊNCIO & NÃO DITO:


Sumário P90- Fisionomia P230- Objeto encontrado I P254

NÃO SENSO:
Recuperação da adolescência P17- Casablanca P20- Final de uma ode P21

O TRIÂNGULO EM ANÁLISE:
Três cartas a Navarro P316- P77
Embora o objetivo seja focalizar sua poesia/prosa, recorri quando necessário à sua
crítica, bem como à Correspondência Incompleta (1999). Esse livro se constitui em
uma seleção de cartas da autora que compreende o período de 1976 a 1980. Além da
introdução, das notas, do epílogo e da cronologia, Correspondência Incompleta é
dividido em quatro sessões, de acordo com as interlocutoras a quem Ana C. se dirige,
conforme a seguinte ordem: Clara de Andrade Alvim; Heloisa Buarque de Hollanda;
Maria Cecilia Londres Fonseca; Ana Candida Perez. As três primeiras foram suas
professoras, e Ana Candida, sua amiga desde os tempos da faculdade.
Segundo Armando Freitas filho, um dos organizadores desse livro, comentando na
introdução sobre o caráter dessas cartas assinadas pela escritora: “Ela se confessa, sim,
mas faz (fala de) literatura o tempo todo. Em muitos e extensos momentos dessa
correspondência, ouvimos trechos de sua dicção poética de teor tão peculiar.
Verdadeiros exercícios prévios do que mais tarde ela iria transportar para os seus textos
literários” (FILHO, in CESAR, 1999, P9).
Desse modo podemos perceber que além da própria intimidade, há também discussões a
respeito de literatura concomitantemente a certo fingimento. Ela até mesmo sugere a
Ana Candida que publicassem um dia a correspondência trocada como ficção. Ou seja,
possuía consciência de que as cartas não eram inocentes.

A Obra em vida
A poeta questiona a Literatura desde seu primeiro livro. Embaixo do título, Cenas de
Abril (1979), aparecea palavra “poesia”. Isso somente merece destaque porque esse
livro contêm diversos textos em prosa: páginas de diário; um verbete; poemas em prosa;
um conto, e até mesmo textos inclassificáveis, como “Guia semanal de ideias”. Dessa
forma, evidencia-se a problematização diante de uma classificação de gêneros na
modernidade. Esse assunto não é explorado em minha pesquisa, embora tenha sido
pensado pela escritora em questão. Tanto que ela joga com esse signo, já em seu
primeiro livro, problematizando propositadamente as definições acerca da Arte. Pode-se
pensar em Marcel Duchamp, com sua “Fonte”, de 1917, que revolucionou os meios
artísticos, criando o readymade. A “Fonte”, ou seja, um mictório sem qualquer trabalho
artístico transposto para um salão e sendo exposto como arte. Embora a princípio tenha
sido uma brincadeira, após a morte de seu criador, estabeleceu-se o conceito e a partir
desse momento qualquer objeto que o autor/artista rotule com um nome passa a figurar
com o nome dado. Isso gerou certa problemática que Ana C. pontua, como referido.
Esse livro foi lançado em edição independente. Na verdade, todos dessa autora
publicados em vida o foram, exceto o último, A teus pés (1982), que reúne os anteriores,
mais uma seção de inéditos, e foi lançado pela BRASILIENSE. Após Cenas de Abril
(1979), veio Correspondência Completa (1979). Aspecto intrigante foi em seu
lançamento constar segunda edição; em vez de primeira. Esse título, Correspondência
Completa, é uma ironia porque esse livro se trata de uma única correspondência,
endereçada a mydear. Nessa carta é interessante a narradora se colocar como escritora e
dramatizar a dificuldade de fazer literatura, quando pensa nos leitores. Para isso usa de
dois arquétipos: Gil que a lê para desvendar segredos e não perdoa o hermetismo; no
outro polo, Mary, que a lê como literatura pura e não entende as referências mais óbvias
(CESAR. 2013. P.50). Fica claro, no entanto não é explicitado, que uma leitura melhor
estaria no meio de ambas.
Luvas de pelica (1980), o último de seus livros em edição independente, foi lançado na
Inglaterra. É como se fosse um diário, contudo não há menção há datas específicas, a
não ser “Dia seguinte”; “cinco dias”; menção a tempo transcorrido. Luvas de pelica,
composto por vários blocos separados, como se fossem estrofes, misturam em si prosa e
verso. Há menção à escrita de cartas, como se alguns dos blocos que seguissem fossem
cartas, mas permanece suspenso no ar, é um vazio. É curioso seu conteúdo; se em
Correspondência Completa a carta termina assinada por Júlia, fechando vestígios de
identificação entre autor e narrador, embora a voz narrante seja mulher; em Luvas de
pelica,além do sujeito do texto ser feminino, há diversas correspondências. Não é
objetivo de estamonografia enumerá-las, nem acrescentaria muito para a Literatura um
estudo como esse: averiguar até que ponto a vida influenciou a arte neste ou naquele
poeta. O que importa aqui, é que independente da vida que levou, a artista, no caso, Ana
Cristina, soube muito bem realizar a escrita de si.
O conjunto de inéditos de A teus pés (1982) a alçou definitivamente à fama. O projeto
estético que vinha desenvolvendo há anos atingira seu apogeu. A forma com que
misturava poesia e vida, encenando o segredo, sem o revelar e brincando com o desejo,
certa maneira de brincar com o erotismo a torna como que musa sex simbol daquela
época. Deixava/deixa os leitores estupefatos, pois além do conteúdo, sua sintaxe
contribui para esse efeito, posto que fragmentada; repleta de cortes abruptos; colagem
de vozes, que retomam outros textos, quer seja da tradição, ou até mesmo de conversas
que escutou. Não há limites para essa retomada; vale tudo, desde marchinhas de
carnaval à textos da tradição em outra língua, por exemplo, o francês. Essas práticas
todas podem ocorrer em um único poema; isso causa estranhamento.

2.DESENVOLVIMENTO
“Parece que há uma saída exatamente aqui
onde eu pensava que todos os caminhos
terminavam.” Ana Cristina Cesar.

A autoficção e Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar trabalha com gêneros da intimidade, como cartas, confissões, relato
de viagens, biografia, diários, que segundo Bakhtin, enquadram-se em um grupo
especial de gênero. Mais precisamente, a poeta opera a desconstrução desses gêneros,
posto que sua obra é de certo modo inclassificável.
Começo o desenho do referido triângulo pela ponta, analisando o livro Luvas de pelica
(1980), entendido aqui como Autoficção e narrativa da pós-modernidade.
É sabido que a partir de sua morte trágica, buscou-se intensivamente ler nas linhas que
deixou sua vida,como se a poeta transcrevesse fielmente sua existência em sua obra. Na
verdade, ela ficcionaliza bastante, embora tenha semeado traços de sua história; o que
definitivamente desconcerta seu leitor. Isso repercute nos gêneros escolhidos, pois não
se sabe ao certo onde começa um gênero e termina outro. Assim, tanto a vida e o
ficcional quanto a poesia e a prosa; os próprios gêneros mencionados são mixados e
fragmentados. Esse traço é característico do pós-modernismo.
Nota-se que Ana C. considerava esse livro um romance, pois afirmou em carta a Maria
Cecilia Londres Fonseca, que seu novo romance se chamava Luvas de pelica
(CESAR.1999.P.192). Se aceitarmos que a partir do momento em que Marcel Duchamp
exibiu um mictório, A fonte, como obra de arte; tudo o que um artista definir como obra
atinge simultaneamente seu status; assim, já que Ana C. definiu Luvas de pelica como
romance, a obra em questão se torna efetivamente uma das variantes do gênero.
O romance enquanto gênero possui uma história que por si só daria um “romance”. De
filho bastardo da cultura elevou-se à condição de filho primogênito, ocupando o centro
das atenções. Não é objetivo abranger essa peripécia, nem tampouco focalizá-lo
enquanto gênero. Apenas assinalar que seu formato é híbrido e compreende inclusive a
versificação. Há romances em forma de cartas, diário, versos, como já fora citado,
inclusive mistura desses formatos. O romance é o gênero da inovação, assim como a
autoficção, como se verá adiante.

AUTOFICÇÃO
O termo teórico autoficção foi cunhado por Serge Doubrovsky, em 1977, na quarta capa
de seu romance Fils (1977). Segundo o autor, esse termo designaria práticas ficcionais
de fatos reais da vida do próprio autor. Doubrovsky criou o neologismo, pois se sentiu
desafiado por Philippe Lejeune, que em O pacto autobiográfico (2008) questiona-se se
seria possível um romance, em que o narrador-personagem assumisse o nome próprio
do autor.
A partir da criação do termo teórico, apareceu um surto de teorização em torno desse
vocábulo. Principalmente na França, onde o termo surgiu; ao que tudo indica por causa
do grande problema, como bem apontou Antoine Compagnon, do demônio da Teoria,
em seu livro de título homônimo. A despeito disso, esses teóricos concordam ao menos
no aspecto de que a autoficção têm como características serem narrativas descentradas,
fragmentadas e com sujeitos instáveis.
O segundo teórico de importância a tratar da autoficção seria VicentColonna, que
defendeu em 1989 uma tese sobre autoficção, distinguindo tipologias dentro dessa
prática: autoficção fantástica, biográfica, especular, intrusiva. Têm em comum apenas
coincidir o nome do autor, narrador e personagem. Essa tese foi publicada somente 15
anos após a criação do termo, quando os debates já se encontravam acirrados.
É intrigante que apesar do vocábulo já constar dos dicionários franceses, ainda não haja
um consenso acerca de seu significado. A definição que consta no dicionário Robert
Culturel: “Ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais. (2014.P120)”. Como
bem aponta Doubrovsky, essa definição não pode coincidir com aquelas formuladas por
Colonna, posto que para esse a coincidência nominal entre autor-narrador-personagem é
imprescindível.
Ainda conforme o criador do termo teórico, somente esse nome teórico seria novo. No
entanto, designaria uma prática antiga. Para exemplificar isso, Serge aponta obras de
grandes autores, como O nascimento do dia; De castelo em castelo; Diário de um
ladrão; Nadja; de Colette; Céline; Genet; Breton, respectivamente.
A autoficção enquanto gênero; inclusive seu criador não sabe ao certo se essa prática
seria um gênero, gravita em torno de um problema. Ainda que um escritor decidisse
escrever suas memórias, contar sua história, ele enfrenta um grave problema para o qual
não há solução eficaz: a falibilidade da memória, na qual entraria tanto rememoração,
quanto fabulação. A própria Ana C. reconhece isso, em uma entrevista: “A intimidade...
não é comunicável literariamente(1999.P259)”. Assim vemos que há algo que sempre
escapa.
No ensaio “A decadência da ilusão ou a morte da biografia”, de Marcio Markendorf
(2010) é apresentada uma ideia interessante e plausível. Após a morte do autor, nada
mais natural que se seguisse a morte da biografia. Compreendendo que “a vida vê-se
completamente ágrafa” (MARKENDORF, 2010, p. 24-25), podemos afirmar que
mesmo as partes de cunho autobiográficas podem ser entendidos somente como
ficção.“A narrativa biográfica é um artifício mínimo contra a falta de sentido máxima
do mundo” (MARKENDORF, 2010, p. 19-20). Ou seja, “qualquer biografia a respeito
de um sujeito só pode ser compreendida como ficção” (MARKENDORF, 2010, p. 24).
Desse modo, até mesmo as Confissões, de Jean-Jacques Rousseau, poderiam ser
encaradas como autoficção. O que não invalida a criação do termo, embora possa se
assemelhar à autobiografia, muitas vezes sendo considerada um sinônimo. O que
distinguiria uma da outra seria, portanto, a intenção. Quando se pretende contar a
história de sua vida, sem fabulação, seria autobiografia. Já quando se pretende contar
sua vida, sem se ater a fidelidade, autoficção.
Outra distinção importante refere-se ao movimento realizado. Enquanto na autoficção se
parte do texto para a vida, naautobiografiase daria o movimento inverso, da vida para o
texto. A autobiografia procederia assim, pois seria um artifício das grandes
personalidades. Famosos no geral, como cantores, políticos, etc (MARTINS). Ainda, a
autobiografia, no geral, pretende abarcar a vida da pessoa e possui certa linearidade;
bem como busca se ater ao vivido. Em suma, um relato retrospectivo de uma vida.
Já a autoficção, seria uma escrita do presente. Esse presente marca as fraturas absolutas
do eu; engaja o leitor em suas obsessões históricas; assim, o passado é geralmente
presentificado. Desse modo, o texto é semeado de biografemas e o procedimento da
escrita aparece em primeiro plano.
LUVAS DE PELICA
O “romance” pode se enquadrar no grupo de narrativas, que segundo Serge, são práticas
de autoficção, posto que em seu conteúdo ocorre a ficcionalização de fatos estritamente
reais. Somente para citar algumas referências diretas, tendo como exemplo passagens de
Luvas de pelica: é possível observar que a maior parte do relato se passa na Inglaterra,
onde a autora estava fazendo um mestrado em tradução literária, então.
Eu só enjôo quando olho o mar, me disse a
comissária do sea-jet.
Estou partindo com um suspiro de alívio. A paixão,
Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente.
Esquece a paixão, meu bem; nesses campos
ingleses, nesse lago com patos, [...]

Para além da alusão ao local, seria plausível imaginar que o partir “com um suspiro de
alívio” se trata de uma menção à ditadura no Brasil, que vigorava naquela época,
embora também possa se referir a situações de relacionamentos problemáticos. Isso não
se trataria de uma entrelinha, o que a própria Ana C afirmou não existir, mas do
procedimento de leitura que consiste em “puxar o significante”. Ou seja, de um signo,
extrair outros, que remetessem a outros. Essa prática de leitura foi explicitada em seu
depoimento no curso de LITERATURA DE MULHERES NO BRASIL, em 1983
Tem esse jogo... porque é um livro que tem várias...
Como é que eu podia dizer?... Eu não sei porque falei
muito de pato. [...] Acho que pode pegar esse significante
e puxar por vários lados... Pato é uma porção de coisas, é
pathos, é um certo drama que você vive... [...] Pato é uma
coisa meio ridícula, não é? É um bicho meio ridículo. [...]
Ele não afunda na água. Às vazes quando você lê um
texto você pode cair que nem um patinho. [...] Sabe, tem
aquela música do João Gilberto também, o pato
(cantando), sabe? Pato, por acaso é um significante que
puxa muitos outros. Acho que agente pode puxar. Quanto
mais puxar, melhor, não é? Ele migra...
Público: Não estaria caindo na entrelinha?
Ana C: Não, não é entrelinha isso. Acho que isso é puxar
o significante, é diferente. A entrelinha quer dizer: tem
aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor
está insinuando uma terceira. Não tem insinuação
nenhuma, não. Fala em pato, você puxa as associações
que você quiser com aquilo. Eu posso lembrar de várias,
mas não vou chegar nunca na verdade de meu texto. Não
vou dizer nunca para você, que para mim, o símbolo pato
significa... Dá pra você puxar. Então, [...]
(CESAR.1999.P.263,264)
A referência à palavra pato seria porque em seu livro aparece esse signo seis vezes
somente nas primeiras páginas. Mas o importante aqui é a prática de leitura, instigada
pela escritora. Ela gostaria que sua escrita fosse lida desse modo.
Assim, é necessário explicitar que Luvas de pelica, em particular, e toda sua obra em
geral, é muitas vezes considerada hermética, devido ao intenso trabalho com a
linguagem. À primeira vista parece que as palavras foram colocadas ao acaso, à maneira
surrealística. Certos críticos interpretam como se as palavras fossem escolhidas
aleatoriamente; outros buscam significados ocultos, as entrelinhas, que como já
mencionado, a própria Ana C. argumentou em diversas entrevistas, não existem. O que
de fato existe em sua poesia são os silêncios e os não ditos, como veremos na próxima
parte desta monografia.
Ao estudar esse livro percebo que Ana C. faz uma autoficção na medida em que encena
o segredo e a impossibilidade de dizê-lo:“Não consigo contar a história completa”. Ela
busca aguçar o desejo do leitor semeando pequenos fragmentos de sua vida, apenas para
enganá-lo, para que ele tente buscar correspondência entre vida e texto. Mas como ela
mesma disse em seu Depoimento: “A intimidade... não é comunicável literariamente”
(CESAR. 1999. P259).
No que desrespeito às referências diretas, há referência a algumas pessoas de seu
convívio. Há que se notar que no período de gestação desse livro, a publicação era
independente e circulava majoritariamente entre amigos. Assim, através dos nomes, as
pessoas poderiam se reconhecer. Reinaldo, que aparece logo na abertura, é um deles.
Inclusive Mick e Shirley, namorado e amiga, respectivamente; entre outros.
Outro referência direta importante em sua autoficção remete ao que estava fazendo na
Inglaterra: um mestrado em tradução literária do conto Bliss, de Katherine Mansfield. É
muito interessante e uma característica do pós-modernismo: após uma “suspenção
didática”, porque a narradora não estava lidando bem com uma situação, é inserido um
subtítulo “Primeira tradução”, em que a narradora comenta o que teria acontecido após a
morte de Katherine Mansfield, identificada pelas iniciais KM. Figura até sua
companheira IvonaMišterová, também enfermeira em alguns momentos, identificada
pelas iniciais L.M, como era conhecida na realidade empírica: “KM acaba de morrer.
LM partiu imediatamente. [...]Na manhã seguinte LM e Jack foram à capela. Havia
diversas pessoas circulando. LM ficou ali ao lado dela por um tempo mas acabou indo
buscar a manta espanhola e a cobriu.” Depois de esse fragmento narrar o que teria
acontecido após a morte de Katherine Mansfield, a narradora, singular e anônima,
dirige-se a uma “Querida”, mencionando correspondências sem resposta. O que, aliás, é
um dos tópicos preferidos de Ana C.
Ela, autora empírica, passa por um dilema quanto às cartas, porque enquanto estava na
Inglaterra sua missiva se tornou muito intensa. Isso é transposto no romance: “Estou há
vários dias pensando que rumo dar a correspondência. Em vez de rasgos de Verdade
embarcar no olhar estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz
azul)”. Verdade é grafado assim mesmo com V maiúsculo, sinalizando uma questão
capital em sua obra, posto que essa se escreve no limite tenso entre a confissão e a
ficção. Por isso foi propostoa ótica da autoficção para iniciar o desenho do triângulo,
configurando a sua ponta. É como se essa ponta desse origem aos dois vértices. Até
mesmo em seus poemas há uma dicção intimista, como se a voz que falasse no poema
estivesse se confessando; tom próximo do gênero diarístico. Inclusive, essa técnica faz
parte da construção hermética de seu trabalho, como veremos a seguir.
Através desse tom intimista, a narradora se dirige a um interlocutor, questionando
práticas que ela mesma utiliza; é como se estivesse falando com seu duplo: “Estou
jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve alusões,
elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual o filme, onde foi, com
quem foi”. Essa prática irônica chega a extremos: “É quase indecente essa tarefa de
elisão, ainda mais para mim, para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você
precisava de uma injeção de neorrealismo, na veia”. Chega a ser cômico o modo como
fala de si, falando de um outro. É possível observar isso como uma ironia às pessoas
que julgam o outro, apontando no outro os defeitos que elas mesmas possuem. É como
se a autora estivesse representandouma espécie de recalque. Ainda mais porque
fragmentos antes afirma: “Me dei ao luxo de ser meio tipo hermética”.
Como referido na explicação teórica, a autoficção seria a escrita do presente, tendo
como foco o texto. Em Luvas este procedimento é seguido à risca, salvo algumas partes
no que se refere ao tempo da ação. “Estou partindo com um suspiro de alívio”, diz a
narradora logo no início do relato. O presente predomina. “Não escrevo mais. Estou
desenhando numa vila que não me pertence”. Somente em algumas ocasiões a voz se
coloca no pretérito: “Tentei traduzir e não pude muito com aquilo”.
Como foi dito na sessão a respeito da autoficção, o texto é geralmente semeado de
biografemas: “Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência. Em vez
de rasgos de verdade, embarcar no olhar estetizante”. Assim, percebe-se uma de suas
obsessões biográficas, posto que esse era um procedimento importante para a autora.
Ana C foi uma missivista intensa; e parte dessa correspondência, como já dito, foi
reunida após sua morte em Correspondência incompleta (1999). Lendo essas cartas
pode-se notarque de fato optou pelo olhar estetizante, já que se forem retirados os
nomes dos interlocutores, algumas dessas cartas parecem parte de sua obra literária.
Na narrativa constantemente aparece referência às cartas, como já citado. E mais ainda,
uma suposta relação com o mundo epistolográfico. “Tenho correspondentes em quatro
capitais do mundo. Eles pensam em mim intensamente e nós trocamos postais e
novidades. Quando não chega carta planejo arrancar o calendário da parede, na sessão
de dor”; a chegada de cartas: “Chegou outra carta no último quarto de hora. “Escreve
devagar e conta a vidinha tipo dia a dia e os projetos de volta”; ainda, no fragmento
anterior: “Chega uma carta do Brasil que diz: “Tudo! Tudo menos a verdade”. Outra
possível referência à situação do país, ou então, uma ironia à prática da literatura-
verdade, que se fazia na época. No meio dessas referências a cartas, há inclusive “uma
anticarta, antídoto do phatos”. Seria a ainticarta a cura da paixão? Permanece em aberto,
como sua obra.
É tematizada a relação com o carteiro: “A próxima canção que vou cantar é MeMyself
I(aplausos fortes breves e longos) que neste verão quero dedicar a você que não me
escreve mais e é diretamente responsável pelo meu flerte com o homem dos correios”.
A canção pode ser uma referencia à música de Billie Holiday, Me myselfand I, bem
como uma crítica à escrita do eu, praticada pelos seus colegas de geração, que buscavam
uma suposta sinceridade neo-romântica. Há outras menções ao mundo epistolográfico.
Contudo, já foi possível demonstrar que essa é uma das obsessões da autora Ana C.
Último tópico a ser abordado na construção da ponta do triângulo, e particularidade da
obra de Ana C, no geral, e da autoficção, em particular, refere-se à condição da escrita
como fragmento. Atualmente não é mais possível narrativas conclusas, dando conta de
grandes histórias, de modo que abarque um começo, um meio e um fim. O ser está
cindido por excelência; e assim como a autoficção, Ana Cristina lida com esse
paradigma. Assim sendo, o próprio conceito de história se encontra em xeque. Em
Luvas de pelica, por exemplo, há mais inações do que acontecimentos propriamente
ditos. O olhar, e principalmente, a espera, são a força matriz da narrativa. A voz,
inclusive comenta isso no início do relato, que bem poderia ser um quase relato: “Não
consigo contar a história completa”.
Quando há ações; elas são bruscamente interrompidas, como quando encontra com um
interlocutor que “entra inesperadamente no salão.” O sujeito configurado pela voz diz,
então: “sinto um choque terrível, empalideço, mas ainda estou vermelha de dez dias de
verão meio vestida nos gramados (...) de batom inabalável tudo me passa na cabeça,
todos os possíveis escândalos de pernas bambas”. A cena continua não acontecendo; até
mesmo a locutora percebe isso: “Estou pensando duro e a cena não ousa prosseguir”.
Depois de mudar de assunto, retoma o incidente: “preciso de mais uns dias para o
trabalho impiedoso e suave da leveza antes da parada cardíaca do nosso encontro no
salão”.
Contudo, o assunto não é retomado. Encontra-se aí um vazio, constituinte da autoficção,
e de sua obra, no geral. Ao término desse “quase relato”, a narradora se propõe contar
como é um desmaio, e em seguida, se dirige a um interlocutor falando-lhe que
“pode sentar de novo na PlacedesVosges, que é perfeita, cartão-postal
mágico voador. Parece que você vê e pega, ou fica completamente
dentro. (...) Até a travessia do canal, ou a primeira vez que alguém te
cobriu de beijos, o nervoso de perder o trem por dois minutos. É um
cinema hipnótico, sem pernas. Não é vago.”

Isso serve para exemplificar a própria narrativa, e sua obra, em geral, repleta de
imagens. Inclusive, Carlos Eduardo Siqueira Ferreira de Souza, em sua dissertação de
mestrado, estudou a obra de Ana Cistina Cesar pelo viés do cinema. Ele defende a ideia
de que sua obra é composta por uma seleção de montagens, à moda cinematográfica.
A partir dessa característica, a autoficção na autora daria origem aos dois vértices do
triângulo, o silêncio e não dito, e o não senso. Primeiramente o vértice do silêncio e não
dito será estudado, e em seguida, o do não senso. Essa escolha é arbitrária, sendo apenas
a autoficção eleita para estar em primeiro plano, pois seria a origem dos outros dois
assuntos na poeta.

SILÊNCIO E NÃO DITO


REFERÊNCIAS

“Acordei com coceira no hímen. No bidê


com espelhinho examinei o local. Não
surpreendiindícios de moléstia. Meus olhos
leigos
na certa não percebem que um rouge
a mais tem significado a mais.”
Ana Cristina Cesar.

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