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MELANCOLIA (OU TRAÇOS): DIZERES NUBLADOS

BALDINI, L. J. S.1
ROMÃO, L. M. S.2

Não vejo nada, tudo é morto e vago…


E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
‘Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d’alma na luz de todo o mundo


E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

Cegueira bendita, Florbela Espanca

Melancolia (ou traços), Paula Rego, 1995

Até que chegássemos a Freud, muito já se havia sido dito sobre a melancolia.
800 séculos antes de Cristo, Homero descrevia os sofrimentos do herói Belerofonte,
condenado a vaguear solitário, em desespero e solidão. Alguns séculos mais tarde, a

1
Professor do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.
2
Professora da FFCLRP/USP (CNPq).
teoria dos quatro humores de Hipócrates torna-se a explicação mais difundida do caráter
melancólico, pelo menos no mundo helênico. No entanto, a melancolia não era vista na
Grécia apenas como uma disposição da alma, e Aristóteles não hesitou em formular
uma relação entre a melancolia e a genialidade, como descreve em sua obra “O homem
de gênio e a melancolia”, em 350 antes de Cristo, aproximadamente. Tempos depois, já
no século X, na Escola de Salerno ainda predomina a teoria dos humores e os árabes
irão associar a melancolia a uma influência maléfica de Saturno, abrindo a vertente
astrológica. No século XV, Marsilius Ficinus procura reunir as tradições de pensamento
anteriores: a hipocrática, a astrológica e a aristotélica. Mais tarde, no século XVII,
Thomas Willis relaciona mania e melancolia e define o ciclo maníaco-depressivo. É no
mesmo período que Robert Burton publica “Anatomia da Melancolia” (1621), em que
divide a melancolia como disposição e como hábito.
Podemos dizer, assim, que se há um dizer sobre a melancolia desde tempos
imemoriais, é porque há, por conseguinte, um dizer melancólico, este também
imemorial, dizer recorrente que produz efeitos na arte e na vida. Este dizer, embora
considerado, sob muitos pontos de vista, como da ordem de uma patologia, deve
guardar em si algo de muito verdadeiro, e a sedução que ele exerce sobre nós é prova
incontestável de que, em seu paroxismo, esteja expressa uma verdade fundamental da
qual não estamos alheios. Dessa maneira, a relação entre melancolia e o próprio do
humano se modula pelo próprio modo como se constituiu um dizer sobre ela: “por um
lado, um humor natural e não necessariamente patogênico e, por outro lado, uma
doença mental produzida por um excesso ou um desequilíbrio dos humores”3. O que é
importante ressaltar aqui é que a melancolia, ao mesmo tempo fascinante e
aterrorizante, coloca-nos em um lugar de perplexidade ao mobilizar bordas e limites: “a
verdade é que a melancolia lança um desafio sobre a fronteira entre o somático e o
psíquico, o estrutural e o atual, a neurose a psicose, acenando, mais propriamente,
para o nosso não saber que para o nosso saber”4.
Marie-Claude Lambotte, em sua monumental obra “O discurso melancólico”
(1997), analisa exaustivamente o dizer de seus pacientes melancólicos, para a partir daí
extrair certas regularidades que nos interessam: uma fala sem vitalidade, monocórdia,
em tom de resignação, ao mesmo tempo, de uma lógica férrea, sem espaço para a
interlocução e a crítica, um dizer sem saída (nem entrada), que lembra, por seu caráter

3
Peres, Depressão e melancolia, pg. 15.
4
Idem, pg. 10.
formalmente irretocável, a paranoia. No entanto, onde o paranoico vê um mundo que
lhe persegue, o melancólico encontra a si mesmo como causa de sua desgraça. E, em
sendo a si mesmo a origem, entrega-se a um horizonte sem possibilidade de outro
enquadre, sem outra força que não a inércia de ver-se entregue ao que lhe causa a
própria entrega. Desertado do mundo, o dizer melancólico só pode se apoiar numa
lógica onde nada falha e, assim, onde nada pode dar lugar ao desejo. O sujeito se vê
diante da totalidade do nada, escamoteando a falta de algo que poderia produzir
movimentos deslocantes em direção de busca. Nesse sentido, o discurso melancólico
tropeça numa falha bastante característica:

[...] pensamento vazio, perda de sentido, monotonia ao falar, impressão de um domínio


da sonoridade das palavras às expensas de sua significação, como se algo faltasse para
dar consistência à palavra. A melancolia nos falaria, então, de uma fragilidade, ou
insuficiência constitutiva, estrutural. 5

É nesse panorama que o quadro de Paula Rego nos coloca: um corpo em preto e
branco, um rosto caído e dobrado entre as conchas das duas mãos que se apoiam na
cadeira vazia. Os pés descalços, as pernas tombadas e os olhos petrificados no nada não
alcançam nem captam as borboletas que voam ao redor. Nem mesmo a abertura para um
campo do horizonte convence, convoca e coloca em movimento algo que possa retirar o
corpo da inércia: o fundo sombrio e escuro ocupa a maior parte da obra.
Se consideramos a teorização de Lacan a esse respeito, é preciso que algo falte
para que o sujeito possa desejar; a procura sempre incompleta e inconclusa move-se
justamente em torno de um furo/buraco primevo. Às voltas, e em giros, o sujeito segue
bordando um em torno espiralado na cadência da falta (e do desejo). Tal buraco
irremediável faz falar uma condição estrutural do falante, isto é, o batimento da falta
que reclama fala na mesma medida em que inscreve o vazio. Dito de outro modo, o
sujeito pode inventar-se com tal ausência e, ao fazê-lo com as palavras, dá borda ao que
fica oco no centro, de não se poder ser suturado. Na melancolia, a falta é suprimida e o
sujeito insere aí a supremacia da falha, tomando a si mesmo como início e fim marcados
por ela. O circuito fecha-se com tal totalidade e inteireza que não se abre fresta para que
outro dizer se produza, ou possa ser (bem)dito. E a falha torna-se um ponto desviante e
sabotador da falta, e também da possibilidade de criação.

5
Idem, pg. 32.
De fato, a obra de Paula Rego retoma elementos essenciais de uma estética
melancolia: o mundo exterior como destituído de interesse, as mãos segurando o
queixo, ou no colo, numa postura de desalento, o olhar perdido num ensimesmamento
opaco, a falta de um outro personagem na cena, sobretudo. Um outro, como diria
Lambotte (2001), desertado. Tais recorrências nos dão pistas de algo com o qual Freud
irá se deparar ao longo de suas formulações e que iremos tatear aqui em dois textos
escritos em momentos muito próximos: 1915 e 1917.
O primeiro deles intitula-se “Sobre a transitoriedade” (1915), no qual Freud
conta ter empreendido “num dia de verão, uma caminhada através de campos
sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso”6.
Cada qual tece suas considerações sobre a beleza do cenário à volta e chama a atenção
especialmente o dizer do poeta de que “não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-
o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que
desapareceria quando sobrevivesse o inverno, como toda beleza humana e toda beleza
e esplendor que os homens criaram ou poderão criar”7. Em torno disso, Freud
apresenta considerações não apenas sobre a transitoriedade da beleza da paisagem, mas
sobre a arte e a vida, destacando que o valor necessário a ser atribuído ao belo é maior
se o tomarmos dentro um tempo cortado e limitado pela certeza do fim. A duração
temporal absoluta não existe, o corte na eternidade agiganta a beleza, a condição do
evanescente aumenta ainda mais o valor misterioso do que acaba. Mas os argumentos de
Freud não convenceram o poeta, ele insiste em dizer da sua dor nublada de ver que, dia
seguinte, nada daquilo estará mais presente, restando como falha incontornável na
própria natureza que não se sustenta como perene em sua expressão de beleza. Lógica
inabalável do melancólico, que não admite contrafações.
Por essa insistência, Freud escuta no dizer desse poeta algo do luto que lhe
atravessa o olhar e o impede de produzir outro gesto de leitura a respeito da
transitoriedade da beleza: “a ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a
esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza;
e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua
fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade”8. O luto é
entendido como “a perda de algo que amamos ou admiramos”, o que para muitos da

6
Freud, Sobre a transitoriedade, pg. 345.
7
Idem, ibidem.
8
Idem, pg. 346.
época sinalizava “um grande enigma, um dos fenômenos que por si sós não podem ser
explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades”9.
O que nos cabe indagar aqui é justamente por que diante de algo que deveria
produzir o prazer de/do olhar, a satisfação com o objeto visto e um reconhecimento da
beleza presentificada na natureza, algo nubla e turva toda a possibilidade de dizer,
inserindo a falha onde poderia ancorar-se a falta, desejosa da próxima primavera? De
que se trata esse véu acinzentado que cai sobre os olhos do poeta e derrama-se em tudo
o que vê e diz ver? E, mais, que impede que outras lentes possam estar ali justamente
onde apenas uma delas ganha corpo, entregue à inércia? Que operação se produz no luto
e na melancolia com tal insistência, que algo do desejo de amar fenece, quebra-se junto
com o objeto perdido, impedindo que o sujeito possa escutar de/em si outros enquadres
para a beleza e o passageiro nela? Freud (op. cit.) nos ajuda, sobretudo, com a incerteza:

Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o
amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por
outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece como mistério para
nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um
processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para
explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles
que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto. 10

Vemos que Freud tateia o que é da ordem do seu espanto e da sua


incompreensão, pois percebe que o “processo penoso” é penoso demais. Reconhece que
há algo aí na palavra dele que não alcança a dor do poeta, algo sobre o qual não adianta
simbolizar. Há aí um limite e a palavra não basta nem para explicar, nem para
convencer, nem para aliviar a dor. A questão do luto e da melancolia, inicialmente
tateadas aqui, dão-nos pistas de algo com intensa proporção – profundezas do sujeito
que teimam em dizer do nada, que Freud irá retomar em outro trabalho denominado
“Luto e melancolia” (1917). Ocorre-nos, por agora, que a intensidade e a noturnidade
desses temas sejam tão fortes que, talvez por isso, tantos e tantos poetas e artistas
representaram algo disso que consome qualquer possibilidade de ver para além do
fenecimento da beleza,e tantos teóricos tentaram definir, como vimos na melancolia.

Psicanalistas e poetas nos falam e respondem sobre a dor de existir. Uma perda eterna,
atemporal em seu acontecer, em que o limite entre passado e futuro torna-se indistinto
pela presença constante de uma falta, sinalizando a particular relação da melancolia com

9
Idem, ibidem.
10
Idem, pg. 347.
o tempo, tempo que faz pacto com a morte. [...] Pátria eterna, seio maternal e uma
suspiração pelo que foi sem nunca ter sido: a insistente completude, o encontro com a
verdade enganosa da existência. A felicidade não se encontra no plano da criação, é
necessário inventá-la.11

E falar de luto e melancolia toca algo dos ombros caídos do personagem pintado
por Munch, os ombros que se curvam diante do rosto da ausência ou perda do objeto
precioso de amar. Sobre isso, Freud procura teorizar as semelhanças e distinções entre o
luto e a melancolia. Falemos primeiro do luto como processo que encerra o efeito de o
sujeito ter sido arrancado do seu lugar. Há um solavanco de perda que grita e o objeto
do amor deixa de existir, foi embora e não voltará mais. A trombada com o real da
morte (aqui mobilizamos o conceito de Lacan de real como impossível) dilata-se no
tempo, quer permanecer no sem-fim da dor e esse efeito toma o enlutado que resta em
solidão e com a libido recolhida.

Em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da
seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e
agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso
se levanta uma compreensível oposição; em geral se observa que o homem não
abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se
lhe acena.12

A sentença é essa: o objeto amado não existe mais e inexiste a contemplação e o


consolo de um retorno. É interessante perceber como a perda do gosto de viver é
materializada por exemplo na narrativa de Rosa, quando Miguilim olha para o mutum e
não o encontra mais tão verde de encantos como antes. Diante da morte do irmão, resta
uma tristeza transbordada e investida em tudo ao redor; resta o que ainda não é saudade,
pois não virou ainda a falta que fará mutum virar desejo de reencontro. Apenas
agiganta-se o “tempo de doer”:

Todos os dias que depois vieram eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de
uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando chegava o poder de chorar, era
até bom – enquanto estava chorando parecia até que a alma toda se sacudia, misturando
ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas. Mas, no mais das horas,
ele estava cansado. Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era mais ele
mesmo.13

11
Peres, Depressão e melancolia, pg. 49.
12
Freud, Luto e melancolia, pg. 49.
13
Rosa, Manuelzão e Miguilim, pg. 499.
No luto, o objeto amado e morto produz esse efeito de abatimento como se a
rasgadura da morte tomasse o sujeito por completo, mas ele sabe reconhecer que o que
está perdido é o objeto. Freud nos diz isso nos seguintes termos: “o luto leva o ego a
renunciar ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer
vivo”14; e essa separação entre o sujeito vivo e seu objeto amado morto é limite
importante, pois inscreve uma abertura para que outros objetos possam vir a receber
investimento libidinal assim que o tempo do luto se concluir. Enquanto não se encerra,
“o luto normal também supera a perda do objeto e enquanto dura ele absorve
igualmente todas as energias do ego”15.
Freud sabe que está tateando às cegas temas bastante recorrentes na medicina,
literatura e na ordem da vida (tão imemoriais quanto o próprio homem), e o faz cheio de
incertezas, reconhecendo os limites de sua própria teorização, indagando-se, por
exemplo, em que o luto se diferencia da melancolia e, sobretudo, o porquê de esse
processo ser muito mais complexo na melancolia. Como ele mesmo diz, “a melancolia
ainda nos põe diante de perguntas, cuja resposta em parte nos escapa”.16
Além disso, Freud mal consegue ainda formular, no interior de seu quadro
teórico-analítico, qual seria o lugar específico do funcionamento da melancolia: “nesse
caminho defrontamo-nos de entrada com uma incerteza. Até agora mal consideramos o
ponto de vista tópico no caso da melancolia e não nos perguntamos em e entre quais
sistemas psíquicos se processa o trabalho da melancolia”.17
Está posta a dificuldade de Freud diante do tema, definido por ele mesmo com
uma quadro sintomático que vai de “desânimo profundamente doloroso, uma suspensão
do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda
atividade e um rebaixamento do sentimento de auto-estima que se expressa em
autorecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição”.18
Freud percebe que, na melancolia, o objeto substituto inexiste, não acena tampouco
sorri para o melancólico. A libido investida no objeto amado e perdido, ao invés de
buscar novo abrigo, retorna ao próprio sujeito e reveste-se dele e fica nele colada, sem
que frestas de dizer sobre o desejo sejam possíveis.

14
Freud, Luto e melancolia, pg. 83.
15
Idem, pg. 77.
16
Idem, pg. 71.
17
Idem, pg. 79.
18
Idem, pg. 47.
O resultado não foi o normal, uma retirada da libido desse objeto e o seu deslocamento
para um novo, mas foi outro, que parece requerer várias contradições para sua
consecução. O investimento do objeto provou ser pouco resistente, foi suspenso, mas a
libido livre não se deslocou para um outro objeto, e sim se retirou para o ego, Lá,
contudo, ela não encontrou um uso qualquer, mas serviu para produzir uma
identificação do ego com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto caiu
sobre o ego. (...) Assim, a perda do objeto se transformou em perda do ego (...)” 19

Nesses termos, o sujeito perde-se a si mesmo e nada o faz demover de uma


captura em que ele mesmo comparece como roto, efeito de rasgamento ao modo de seu
objeto perdido. Em que espelho ficou perdida a minha face?, pergunta o melancólico,
sem esperar pela resposta. Muito embora, no comum das vezes, o verso citado possa ser
interpretado como metáfora do envelhecimento, o tomamos aqui como registro de uma
perda do sujeito em si mesmo, em sua face perdida e em pedaços, que será repetida e
marcada pelo efeito da depreciação de/em si mesmo. “O melancólico nos mostra ainda
algo que falta no luto: um rebaixamento extraordinário do seu sentimento de
autoestima, um enorme empobrecimento do ego [...] ele se recrimina, se insulta e
espera ser rejeitado e castigado”.20. Enfim, ele abre mão da pulsão “que compele todo
ser vivo a se apegar à vida”21. Kehl (2011)22 anota também traços capazes de contornar
as características do melancólico: “ambivalência, sadismo do superego”, além de
afirmar que os “melancólicos parecem sentir necessidade de alardear suas baixezas e
sua indignidade. Debatem-se em autoacusações delirantes sem saber que os insultos
furiosos voltados contra si próprios em verdade correspondem às características de
alguma outra pessoa [...] Se ‘a sombra do objeto’ encobre o ego, isso indica a base
narcísica do investimento (forte fixação, baixa resistência) e a identificação precoce do
ego com o objeto perdido”.
Ora, todos sabemos do poder da linguagem, ao mesmo tempo remédio e veneno
para o ser e o estar humanos. Benveniste já havia insistido nesse modo de funcionar da
linguagem que nos abre horizontes, ao enunciar que “o homem sentiu sempre – e os
poetas frequentemente cantaram – o poder fundador da linguagem, que instaura uma
realidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe, traz de
volta o que desapareceu”23.

19
Idem, pg. 61.
20
Idem, pg. 53.
21
Idem, ibidem.
22
Kehl, Melancolia e criação, pg. 20-21.
23
Benveniste, Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística, pg. 27.
No caso do dizer melancólico, é justamente este “trazer de volta” que se
encontra comprometido. Na maior parte das vezes, em vez de trazer de volta, ou
(re)criar um lugar desfeito por uma perda irreparável, a linguagem funciona como uma
ladainha tediosa da qual o melancólico não exclui a ironia e a agressividade, sobretudo
contra si mesmo. Esse processo materializa-se com tal totalidade que não se abre outra
possibilidade de compreender tal perda, dizer sobre ela, equivocá-la fazendo-a faltar do
modo como está.
Nesse momento, retomamos Pêcheux (1982), em um texto sobre a relação entre
as revoluções e a linguagem. Se é verdade, como diz o autor, que “a existência do
invisível e da ausência está estruturalmente inscrita nas formas linguísticas da
negação, do hipotético, das diferentes modalidades que expressam um ‘desejo’, etc., no
jogo variável das formas que permutam o presente com o passado e o futuro [...]24,
parece-nos possível dizer que é justamente essa indistinção entre passado e futuro que
marca o dizer melancólico, preso numa catástrofe que se repete cotidianamente e a qual
ele repete em naquilo de sua fala que é (des)dita. Como sabemos, “através das
estruturas que lhes são próprias, toda língua está necessariamente em relação com o
‘não está’, o ‘não está mais’, o ‘ainda não está’ e o ‘nunca estará’ da percepção
imediata [...]25, e é justamente esse o jogo que permite à língua significar para além do
imediato, configurando um mundo perdido, um mundo presente, um mundo a ser, em
poucas palavras: passado, presente e devir. Ora, o dizer melancólico parece encontrar aí
seu limite, recusando as formas linguísticas da hesitação, da hipótese, da incerteza, da
projeção, do pré e do pós, imerso num “entre” mortificante e, sabem todos os que o
ouvem, mortifica-dor.
Trata-se de um discurso, portanto, “frequentemente, destituído de seu estatuto,
mas se mantém com uma lógica completamente válida, e constatamos, nesse discurso, a
importância das conjunções de coordenação, de pontos que sustentam o raciocínio”26.
Dessa maneira, evitando errar, nos vários sentidos da palavra, o melancólico só pode
retornar ao mesmo lugar, o lugar de uma perda da qual ele não cansa de descrever os
contornos sem que isso lhe dê ensejo de operar uma substituição de objeto. E
reavivando sempre a falha como pontos de partida e chegada de si mesmo, no atoleiro
pantanoso de uma morte lenta e monótona que se estende no tempo e faz perdurar o

24
Pêcheux, Delimitações, inversões, deslocamentos, pg. 8.
25
Idem, ibidem.
26
Lambotte, A deserção do Outro, pg. 87.
marasmo de si. A cadência monocórdia dessa cantilena opacifica a voz do sujeito,
produzindo uma distenção do nada em tudo. De tudo, atravessado pelo nada que o
sujeito atribui a si mesmo, a tudo quanto e como é; o que absolutizado resta não permite
que o sujeito coloque à prova de si mesmo, tampouco que ele faça furo em seu próprio
dizer: o que “não está mais”, o que “ainda não está” não contam para o melancólico,
pois as certezas em suas formulações funcionam de modo a petrificar outros sentidos,
alguma e qualquer saída.
Em um poema adorável, Manuel Bandeira sintetiza uma cena melancólica nos
seguintes termos: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?- O
que eu vejo é o beco”27. A mirada do beco, apenas dele, impede que outros efeitos sejam
postos em xeque, questionados em sua (in)existência e seu valor, amplificados em suas
possibilidades de trânsito e movimento. A linha do horizonte perde seu alumbramento,
não conta como miragem que faz convite para navegador sempre continuar adiante. Em
direção a uma outra margem que sempre estará adiante ou aquém do esperado, nunca
certeira, fixa no falhante nada do melancólico.
Em uma série de quadros sobre o tema melancolia, Munch dá forma artística
exatamente ao que estamos sustentando aqui. O corpo de costas ou de lado para
qualquer linha de horizonte no impossível de desejar outra cena que não o chão, o beco,
o limite, o que marca um modo de o melancólico produzir efeitos de ressecamento em si
mesmo, morto pela impossibilidade lamuriosa de alcançar outros movimentos de
invenção ou descolamento.

27
Bandeira, Poesia completa e prosa, pg. 228.
Edward Munch, Melancolia, 1892-1893

Marcamos que o ponto de fuga instável e movediço que só o horizonte encobre é


o vazio mais do necessário para que exista a falta, falta de terra à vista e excesso de mar
aberto... Falta que promove movimentos de dizeres desejantes, deslocados em direções
de expressão e busca. A instância do desejo advém dessa combinação que lança o
sujeito rumo a uma ilha desconhecida, sem nome e sem a certeza das cartografias
documentadas. Ilha que Saramago28 assim define:

Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava
a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-
as para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com paciência a
pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei
de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade,
na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o
homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na
sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria
bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já
não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas
desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que
ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não
seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A
ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é
impossível que não exista uma ilha desconhecida,

Para nós, ilha que o melancólico não reconhece como possível de dizer a si
mesmo. Lacan nos oferece uma interessante articulação quanto a este ponto em seu
seminário sobre a angústia. Para ele, a menos que seja estabelecida uma distinção entre
28
Saramago, J. A ilha desconhecida. Conto disponível no endereço
http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp. Acesso em outubro de 2012.
o objeto causa-de-desejo, o objeto a, e a imagem especular, i(a), não se poderá
compreender aquilo que distingue o luto da melancolia. Segundo o psicanalista, o
esforço freudiano em explicar o normal (luto) pelo patológico (melancolia) nos permite
traçar distinções importantes. O trabalho do luto, na verdade, é o de perder pela segunda
vez o objeto:

Freud nos observa que o sujeito do luto lida com uma tarefa que consistiria em
consumar pela segunda vez a perda do objeto amado, provocada pelo acidente do
destino. E Deus sabe o quanto ele insiste, justificadamente, no aspecto detalhado,
minucioso, da rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o objeto amado. 29

Mas por que pela segunda vez? Ora, sabemos que, na teorização lacaniana, o
objeto a, o objeto que causa nosso desejo, possui um funcionamento paradoxal: “a
gravitação de nosso inconsciente diz respeito a um objeto perdido, que jamais é senão
reencontrado, isto é, jamais realmente reencontrado”30. Na melancolia, no entanto, é
como se o sujeito estivesse justamente em falha naquilo que se refere a esse reencontro.
Nostálgico de uma perda insubstituível, nele não funciona o reencontro que lançaria luz
sobre a perda, mas sim a escuridão de uma perda que impossibilita a apreensão de um
achado, perdido para sempre com a entrada do sujeito na linguagem.

Tal e a definição fundamental do objeto, para Freud, em sua função diretriz, da qual já
mostrei o paradoxo, pois, esse objeto, não nos é dito que ele tenha sido realmente
perdido. O objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido
perdido é a consequência disso - mas só-depois. E, portanto, ele é reencontrado, sendo
que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses
reachados.31

Mas a que se recusa o melancólico, senão a esse funcionamento paradoxal? Que


o objeto tenha sido perdido é condição para o desejo, e que ele seja reencontrado é
condição para que sua perda opere como fundamento de nosso ser. Evidentemente, não
se trata aqui de um objeto empírico, nem mesmo descritível a não ser pelo furo que faz
em nosso psiquismo, organizando as fantasias de completude que marcam a busca pela
substituição do que nunca é passível de achamento. Ou seja, o sujeito, ao se deparar
com o seu grito não compreendido e com o impossível retorno à experiência de
satisfação, experimenta o exílio de si mesmo, o desencontro originário ao qual a letra a
nos remete. O lugar da não-resposta, a ausência absoluta de retorno, o contorno de uma

29
Lacan, A angústia, pg. 363.
30
Lacan, A transferência, pg. 240.
31
Lacan, A ética da psicanálise, pg. 145.
beira que faz falar o desamparo do impossível, a não coincidência entre a pergunta
insistente do sujeito e o vazio de todo sentido que possa explicá-lo: eis a letra fundante
de Lacan, a letra é que nomeia o desencontro.

O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto, não é de modo
algum apreendido, transmissível, cambiável. Ele está no horizonte daquilo em tomo do
que gravitam nossas fantasias. E, no entanto, é com isso que devemos fazer objetos que,
por seu lado, sejam cambiáveis.32

Como enfatiza Lacan, não é essa intercambialidade que caracteriza a melancolia,


e sim o “triunfo do objeto”33, e é por isso que se pode dizer, com Freud, que a sombra
do objeto caiu sobre o eu. É no nível do a, portanto, e não do i(a), que encontraremos a
pista que nos insere no domínio do funcionamento melancólico:

Reparem que não se trata nunca da imagem especular. O me1ancólico não diz a vocês
que ele tem má aparência, ou uma cara feia, ou que é corcunda, mas sim que é o último
dos últimos, que acarreta catástrofes para toda a sua parentela, etc. Em suas auto-
acusações, ele está inteiramente no domínio do simbólico. Acrescentem aí o ter: ele está
arruinado. Isso não é capaz de lhes dar uma pista? 34

Na melancolia, o objeto que causa desejo, denominado objeto a por Lacan, se


constituiu, mas de algum modo deixou de vigorar. É por essa vicissitude que o
psicanalista falará, no domínio da melancolia, de um “suicídio do objeto”35. Tendo
partido o objeto, o desejo que ele causaria também se exila no limbo. Assim, o discurso
melancólico perde-se num presente inexorável onde pouco ou nada se move, à espera de
uma catástrofe – que já aconteceu, em si mesma e dentro dele mesmo. É por isso que no
filme Melancolia, de Lars Von Trier, a melancólica, desvestida de noiva e tecida pela
falta de tantas coordenadas dadas pela convenção social, é a única capaz de oferecer um
mínimo de conforto a sua irmã e seu sobrinho, nos momentos finais do filme. Aquilo
que acontecerá, para ela já aconteceu. Uma sabedoria da desgraça, um rondó de fazê-la,
tanto quanto possível, um pouco menos pesada.

32
Lacan, A transferência, pg. 240.
33
Cf. a lição XXIV do seminário sobre a angústia.
34
Lacan, A transferência, pg. 380.
35
Idem, ibidem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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