Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CESAR GORDON
I. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Simpósio "Arte.lmagem.Memoria: horizontes
de uma antropologia da imagem e da cognição", realizado no Museu Nacional em junho 2007 e
organizado por Carlo Severi (LAS-EHESS) e Carlos Fausto (MN). Uma segunda versão, um pouco
reduzida, foi apresentado nos Seminários do DAN na Universidade de Brasília em outubro de 2007
e posteriormente publicada em Série Antropologia, 424 (2009). Agradeço a Carlos Fausto, Car lo
Severi, Alcida Ramos, Marceia Coelho de-Souza e José Antonio V. Pimenta pelo convite e pelos
comentários nessas duas ocasiões.
2°7
Vidal e, portanto, com a antropologia. Alguns ha- dos brancos (isto é, de nós brasileiros, ou como nos k
viam sido confeccionados por personagens impor- denominam: kuben). Afinal, ali estava armazenada c
tantes da recente trajetória xikrin, muitos dos quais enorme quantidade e variedade, não somente de e
já falecidos, como o velho chefe Bep-karoti, como objetos feitos pelos Xikrin, mas também - eles ob-
seu filho Bemoti, como Bep-kretõjx. É precisamen- servavam conforme Ihes íamos mostrando o resto ç
te este valor - etnográfico e histórico - que torna dos armários do acervo - de diversos outros gru- a
tais objetos dignos de serem preservados no museu. pos indígenas. Por fim, apreciaram alguns objetos, c
Porém, os Xikrin não atribuíram ou reconhece- considerando-os "bons" ou "belos" (mejx). a
ram grande valor aos objetos da coleção. Visitando O objetivo deste capítulo é esboçar uma refle- s.
a reserva técnica do MAE-USP, diante das gavetas re- xão sobre ideias xikrin a respeito do valor e da be- Ir
pletas de artefatos, sua primeira reação, um tanto leza, partindo de uma investigação sobre os obje- s:
provocativa como de costume, foi de menoscabo. tos que compõem a coleção, e em particular sobre t;
Aquelas peças apareceram aos Xikrin apenas como aqueles objetos de uso cerimonial, tais como ador- d
coisas velhas irnõja tum), fabricadas e utilizadas nos corporais, plumários, etc. O eixo da argumen- g
por pessoas já mortas. Poderíamos jogar fora tudo tação gira em torno de uma noção (ou categoria) s(
aquilo, disseram. No entanto, as plumas interessa- importante e já razoavelmente conhecida na lite- u
rarn-lhes. Era melhor salvar somente as plumas, ratura sobre os Mebêngôkre: a noção de "beleza", ai
mandá-Ias de volta à aldeia para que eles pudessem tradução corrente da palavra mebêngôkre mejx', tt
refazer tudo, fabricar objetos novos e bonitos (ajte Uma primeira observação a fazer é que as concep- a
ny nhipêjx kam mejx). ções xikrin contidas na palavra mejx não se restrin- P
Com efeito, a presença de tantos objetos velhos gem à esfera material. A palavra qualifica tanto te
e fúnebres nas gavetas parecia revelar a eles certa coisas físicas (objetos e corpos) como imateriais s~
morbidez de nossa parte. Entre os Mebêngôkre, as (nomes e pessoas), por exemplo. Mejx também não e
posses materiais de um indivíduo são geralmente exprime somente valores estéticos, senão, igual- p'
sepultadas junto com ele por ocasião de sua morte. mente, valores morais ou éticos. O campo semân- Sf
Isto é feito, entre outras razões, porque os objetos tico da palavra cobre uma série de atributos que 01
de uso pessoal, incluindo os adornos, incorporam- poderíamos glosar como "bom, bem, belo, bonito, p
se às pessoas, impregnam-se de sua subjetividade, correto, perfeito, ótimo". Além disso, mejx pode r;
e passam, de algum modo, a compor uma parte ser contraposto, dependendo do contexto de eriun- cc
do corpo da pessoa. Ao mesmo tempo, de modo ciação, aos seguintes termos antonímicos: punure C<
complementar, é como se o espírito da pessoa ha- ("ruim, feio, mau, errado"); e kajkrit ("comum, se
bitasse suas posses e objetos. Assim, os objetos de ordinário, vulgar, trivial"), ou simplesmente mejx ai
um morto carregam um pouco de sua agência. E, d.
como se sabe, no mundo indígena as agências ou 2. Por razões de espaço, apenas, evitei deliberadamente referências
e remissões a trabalhos de outros antropólogos que estudaram
subjetividades espirituais (mekarõ) podem ser ele- ri
os grupos Mebêngôkre (Xikrin ou Kayapó). Mas é importante
mentos patogênicos e letais. observar que os dados e análises aqui apresentados são uma com- a
Porém, os Xikrin também demonstraram al- posição de minha própria ctnografia junto aos Xikrin do Cateté ql
com os materiais de autores como T. Turner, G. Verswijvcr, V.
gum interesse em tudo aquilo, como se, apesar de sã
Lea (para os Kayapó), e L. Vidal, B. Fisher e I. Giannini (para os
já acostumados, fosse impossível deixar completa- Xik rin), entre outros, que podem ser consultados na Bibliografia fil
mente de se admirar com as estranhezas e proezas ao final deste volume. cc
ia com- a beleza nas coisas e nas pessoas. Quero sustentar vamente produzidos pelos Xikrin. Nada mais pro-
,Cateté que a concepção do belo, para além de sua dimen- fícuo, para tal fim, do que aproveitar a curadoria e
jver, V.
são estética e moral, possui alcance sociológico e o estudo da coleção Xikrin do MAE-USP.
para os
ografia filosófico mais amplos. Sugiro, ainda, que há uma
continuidade ontológica entre coisas e pessoas no
E M N O M E D O B E L O: O V A L O R DAS C O I S A S X I K R I N . M E B t N G li K R E 209
Beleza dos objetos I: aspecto formal e material riência sensível, mas que decorre do que podemos
chamar de determinadas condições sociológicas:
De uma maneira geral, chama a atenção de isto é, ele estará presente se satisfeitas determina-
qualquer etnógrafo que os conheça a grande pre- das condições relacionais do qual falarei adiante.
ocupação que os Xikrin demonstram com a beleza Este se manifesta, por exemplo, no valor dos itens
e a correção daquilo que os cerca. O juízo sobre a exclusivos e dos itens confirmados ritual mente. A
natureza mejx ou punure (ou kajgo) das coisas, das relação entre esses dois aspectos decorre do fato de
pessoas, dos atos, e dos fatos é pregnante e constante que a beleza material aparece como um signo ou
no cotidiano. Talvez isso seja particularmente sen- expressão de uma beleza (ou correção, ou perfei-
sível ao antropólogo, que está lá precisamente para ção) mais abstrata.
apreender valores e visões de mundo, mas o fato é Dentre os critérios imediatos para a aprecia-
que a preocupação com o belo, com o modo certo ção xikrin dos objetos belos, podemos anotar, em
de fazer ou de se apresentar é perceptível após um primeiro lugar, a adequação a um determinado
período de convivência com os Xikrin. Mas come- padrão ou forma, própria a cada objeto, cultural-
cemos pelos objetos. mente estabelecido, bem como a adequação aos
Em qualquer contexto ou atividade, os Xikrin sentidos de harmonia, proporção e simetria. Os
mostram-se sempre atentos à excelência daquilo elementos que formam um determinado objeto
que é fabricado e utilizado. Qualquer coisa deve (ou conjunto) precisam obedecer a uma disposição
ser ideal mente bela, bem executada, correta, isto é, ideal e preconcebida, de tal modo que o resultado
mõja mejx (onde mõja '" "coisa", "algo", "um quê") seja um sistema harmoniosamente composto de
conforme a expressão em língua mebêngôkre. Os alinhamentos e separações, aproximações e afasta-
artesãos costumam ser diligentes e, na maioria das mentos dos elementos uns em relação aos outros.
vezes, perfeccionistas na confecção dos mais dife- Tanto o padrão quanto o conhecimento necessário
rentes tipos de objeto: cestaria, armas, adornos e para reproduzi-lo de maneira adequada e corre-
enfeites cerimoniais (nêkrêjx). Coisas malfeitas tor- ta são chamados kukràdjà (termo fundamental do
nam-se objeto de humor e muitas vezes pilhéria. Os qual falarei mais abaixo).
bons artesãos na confecção de determinados itens Alguns exemplos nos auxiliam a compreen-
são reconhecidos e valorizados na comunidade. der melhor tais critérios. Tomemos um adorno
Não há, a bem dizer, especialização (exceto aquela de cabeça característico e muito valorizado pelos
relativa a sexo e idade), mas algumas pessoas são Xikrin: a testeira ou diadema rígido denominado
reconhecidamente boas fazedoras de certos obje- kruapu, fabricado com bambu recoberto de algo-
tos (nhipêjx mejx). Então podem ser requisitados, dão (PRANCHA 23). Ele é utilizado em importantes
mediante pagamento, inclusive em outras aldeias cerimônias de nominação, como Bep, Tàkàk-Nhàk
mebêngôkre. (ver Giannini neste volume), entre outras. Ele se-
Inicialmente, há um componente do belo que gue um padrão simétrico, composto de retrizes de
pode ser apreendido imediatamente pela sensi- arara, uma em cada extremidade, além de três no
bilidade visual dos Xikrin. Tal componente, me centro, acompanhando o eixo divisório (de cordão
parece, é dado diretamente na própria material i- em algodão tingido de negro), entre as quais vai um
dade do objeto. Há também um componente mais renque de penas de congo mais curtas, de cor ama-
abstrato, não imediatamente capturado pela expe- rela. Este objeto específico, visualizado na prancha
todo, sua concepção, isto é, sua forma abstrata (ou difere de um tipo mais simples do mesmo adorno
seu design), ou ainda o material de que é composto, (Catálogo registro 102, ou 3) em virtude da fileira
aquilo que se considera kukràdjà. É o caso de um de penas de gavião àkdjukanhêre (gavião-pedrês,
adorno de cabeça trançado em tucum e em pluma- Buteo nitidus), que são de uso particular de algumas
do com penas de arara-vermelha (PRANCHA 100) de- pessoas. O direito de ostentar tais plumas em um
nominado krã nhôjre (talvez representando o colar cocar de tipo krôkrôktire é, portanto, dito kukràdjà.
vermelho do pássaro tico-tico, Zonotrichia capensis) Ver FIGURA 50 na página seguinte.
ou alternativamente chamado de meàkàkre. Esse Além das prerrogativas e conhecimentos indi-
adorno é considerado um distintivo de uma de- viduais, há, como dissemos antes, aqueles kukràdjà
terminada família. Mas aqui também há subdis- que diferenciam por sexo (masculino/feminino) e
tinções internas marcadas pelo detalhe. Note-se a por idade. O arapê jabu (PRANCHA 57) é um enfeite a
diferença para a peça vista na PRANCHA 101. Um tipo tiracolo de uso eminentemente feminino. No en-
diferente de pena colocada no topo do cocar indica tanto, alguns homens detêm o privilégio de usá-Ia
um kukràdjà distinto. ritualmente e de transmiti-Ia a seus netos e sobri-
Nota-se também alguns kukràdjà que se ex- nhos. No caso das braçadeiras, que é um outro bom
pressam como traços de estilo ou marcas de um exemplo, temos a seguinte divisão básica: padjê krã
determinado artesão. É um conhecimento ou uma (PRANCHA 54) é masculino, e padjê abu (PRANCHA 55)
habilidade que se manifesta visualmente no pró- é feminino. Ocorre também que alguns homens
prio objeto. Tomemos como exemplo, a bolsa de adquirem o direito de usar a braçadeira feminina
tucum denominada mokà. Esse tipo de bolsa pode como uma prerrogativa ritual (kukràdjà). Igual-
apresentar um trançado em alto-relevo chamado mente, o uso simultâneo e combinado dos dois ti-
kumo pri kajby (PRANCHA 81), que é reconhecido
ã pos é uma prerrogativa ritual. Atualmente usa-se
como kukràdjà de dois velhos artesãos já falecidos pouco o padjê krã, substituído mais correntemente
(Bepkaroti e Bepkretõjx). Um relevo semelhante, pelas braçadeiras de miçanga (ver seção abaixo). Os
simbolizando o caminho deixado por um animal Xikrin disseram que, recentemente, a combinação
(no caso, o veado) pode ser visto em uma bolsa mokà do padjê krã com o padjê abu veio vulgarizando-se,
de buriti (mokà nhiadjy pry), ilustrada na PRANCHA 76. isto é, tornando-se de uso mais comum, sem que
Neste caso, o "caminho do veado" trançado em al- houvesse reclamação por parte dos proprietários
to-relevo é considerado kukràdjà e poderá ser trans- originais dokukràdjà. Ao se tornarem mais comuns
mitido, como direito e savoirfaire, a certos parentes ("kukràdjà de todo mundo" ou me kunin kukràd-
da geração mais nova. jà, como dizem os índios), alguns adornos podem
Igualmente, há marcas de kukràdjà na esteira de eventualmente cair em desuso, como parece ter
buriti denominada prodjà ngrôa'ô (PRANCHA 48) e na sido o caso do padjê krã.
pingente (jabu), como se o padjê krã tivesse incor- CHA 72); trançado com entrecasca - pin kà kam yry
porado o padjê abu à sua própria forma, fundin- (PRANCHA 7); trançado com envira - kam yry kam
222 X I K R I N: UMA C O L E ç Ã O ET N O G R Á F I C A
to valioso, que se manifesta nos diversos objetos nhecimento que os "objetos xikrin" são dinâmicos
que fabricam industrialmente, cuja beleza deleita e estão, de algum modo, vivos. Eles são o testemu-
os Xikrin. A fabricação industrial é vista por eles nho da história dos Xikrin em processo, que Eles
como um processo que produz objetos bem-acaba- variam e se transformam porque essa história é
dos, perfeitos, esteticamente agradáveis (além de aberta e nunca se completa .. Uma coleção de obje-
úteis, como armas, ferramentas entre outros). tos belos dos Xikrin deverá sempre expressar esse
Não será de se estranhar, portanto, que uma caráter dinâmico, em que a inovação é constante.
futura coleção etnográfica de objetos xikrin venha Pois a inovação está a serviço do princípio de dife-
a ostentar uma série de itens tomados de emprés- renciação, e este é a base da reprodução e da conti-
timo à nossa própria civilização. Isso será o reco- nuidade da sociedade.