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Em nome do belo: o valor das coisas xíkrln-rnebênqôkre

CESAR GORDON

N o final do ano de 2004, a nosso convite, os índios Kengore Xikrin e


Tamakware Xikrin estiveram no MAE-USP para participar de algumas
atividades de pesquisa da curadoria da coleção Xikrin. Ao trazê-los
tínhamos mais de um objetivo. O primeiro era obter, com o auxílio direto dos
índios, um conjunto de informações detalhadas sobre os objetos da coleção.
Além disso, desejávamos dar os primeiros passos na direção de um diálogo
com os índios a respeito das potencialidades dos museus e das coleções etno-
gráficas para projetos de interesse da comunidade xikrin, sobretudo aqueles
voltados para os temas do resgate cultural, do patrimônio e da revalorização
dos conhecimentos ditos tradicionais. Em outras palavras, queríamos come-
çar a discutir de que maneira, e com que finalidade, uma coleção etnográfica
poderia ser reapropriada simbólica e culturalmente pelos índios.
Assim, uma de nossas tarefas era averiguar, inicialmente, qual a reação
dos Xikrin diante de seus objetos, então transformados em acervo de museu.
Para nós - antropólogos, arqueólogos e museólogos -, os objetos da coleção
estão impregnados de valor histórico e etnográfico. Eles são o testemunho de
uma parte da vida dos Xikrin, o que inclui a história de sua relação com Lux

I. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Simpósio "Arte.lmagem.Memoria: horizontes
de uma antropologia da imagem e da cognição", realizado no Museu Nacional em junho 2007 e
organizado por Carlo Severi (LAS-EHESS) e Carlos Fausto (MN). Uma segunda versão, um pouco
reduzida, foi apresentado nos Seminários do DAN na Universidade de Brasília em outubro de 2007
e posteriormente publicada em Série Antropologia, 424 (2009). Agradeço a Carlos Fausto, Car lo
Severi, Alcida Ramos, Marceia Coelho de-Souza e José Antonio V. Pimenta pelo convite e pelos
comentários nessas duas ocasiões.

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Vidal e, portanto, com a antropologia. Alguns ha- dos brancos (isto é, de nós brasileiros, ou como nos k
viam sido confeccionados por personagens impor- denominam: kuben). Afinal, ali estava armazenada c
tantes da recente trajetória xikrin, muitos dos quais enorme quantidade e variedade, não somente de e
já falecidos, como o velho chefe Bep-karoti, como objetos feitos pelos Xikrin, mas também - eles ob-
seu filho Bemoti, como Bep-kretõjx. É precisamen- servavam conforme Ihes íamos mostrando o resto ç
te este valor - etnográfico e histórico - que torna dos armários do acervo - de diversos outros gru- a
tais objetos dignos de serem preservados no museu. pos indígenas. Por fim, apreciaram alguns objetos, c
Porém, os Xikrin não atribuíram ou reconhece- considerando-os "bons" ou "belos" (mejx). a
ram grande valor aos objetos da coleção. Visitando O objetivo deste capítulo é esboçar uma refle- s.
a reserva técnica do MAE-USP, diante das gavetas re- xão sobre ideias xikrin a respeito do valor e da be- Ir
pletas de artefatos, sua primeira reação, um tanto leza, partindo de uma investigação sobre os obje- s:
provocativa como de costume, foi de menoscabo. tos que compõem a coleção, e em particular sobre t;

Aquelas peças apareceram aos Xikrin apenas como aqueles objetos de uso cerimonial, tais como ador- d
coisas velhas irnõja tum), fabricadas e utilizadas nos corporais, plumários, etc. O eixo da argumen- g
por pessoas já mortas. Poderíamos jogar fora tudo tação gira em torno de uma noção (ou categoria) s(
aquilo, disseram. No entanto, as plumas interessa- importante e já razoavelmente conhecida na lite- u
rarn-lhes. Era melhor salvar somente as plumas, ratura sobre os Mebêngôkre: a noção de "beleza", ai
mandá-Ias de volta à aldeia para que eles pudessem tradução corrente da palavra mebêngôkre mejx', tt
refazer tudo, fabricar objetos novos e bonitos (ajte Uma primeira observação a fazer é que as concep- a
ny nhipêjx kam mejx). ções xikrin contidas na palavra mejx não se restrin- P
Com efeito, a presença de tantos objetos velhos gem à esfera material. A palavra qualifica tanto te
e fúnebres nas gavetas parecia revelar a eles certa coisas físicas (objetos e corpos) como imateriais s~
morbidez de nossa parte. Entre os Mebêngôkre, as (nomes e pessoas), por exemplo. Mejx também não e
posses materiais de um indivíduo são geralmente exprime somente valores estéticos, senão, igual- p'
sepultadas junto com ele por ocasião de sua morte. mente, valores morais ou éticos. O campo semân- Sf
Isto é feito, entre outras razões, porque os objetos tico da palavra cobre uma série de atributos que 01

de uso pessoal, incluindo os adornos, incorporam- poderíamos glosar como "bom, bem, belo, bonito, p
se às pessoas, impregnam-se de sua subjetividade, correto, perfeito, ótimo". Além disso, mejx pode r;

e passam, de algum modo, a compor uma parte ser contraposto, dependendo do contexto de eriun- cc
do corpo da pessoa. Ao mesmo tempo, de modo ciação, aos seguintes termos antonímicos: punure C<
complementar, é como se o espírito da pessoa ha- ("ruim, feio, mau, errado"); e kajkrit ("comum, se
bitasse suas posses e objetos. Assim, os objetos de ordinário, vulgar, trivial"), ou simplesmente mejx ai
um morto carregam um pouco de sua agência. E, d.
como se sabe, no mundo indígena as agências ou 2. Por razões de espaço, apenas, evitei deliberadamente referências
e remissões a trabalhos de outros antropólogos que estudaram
subjetividades espirituais (mekarõ) podem ser ele- ri
os grupos Mebêngôkre (Xikrin ou Kayapó). Mas é importante
mentos patogênicos e letais. observar que os dados e análises aqui apresentados são uma com- a
Porém, os Xikrin também demonstraram al- posição de minha própria ctnografia junto aos Xikrin do Cateté ql
com os materiais de autores como T. Turner, G. Verswijvcr, V.
gum interesse em tudo aquilo, como se, apesar de sã
Lea (para os Kayapó), e L. Vidal, B. Fisher e I. Giannini (para os
já acostumados, fosse impossível deixar completa- Xik rin), entre outros, que podem ser consultados na Bibliografia fil
mente de se admirar com as estranhezas e proezas ao final deste volume. cc

208 X I KR I N: UMA C O LEÇÃO ET N O G RAFI CA


o nos kêt (onde kêt '" partícula de negação), e ainda em mundo xikrin, passível de análise, precisamente,
.nada certos contextos a kajgo ("fajutas", "falsas", "sem por meio de uma investigação sobre os processos so-
rte de efeito", "gratuitas"). ciais e rituais de assunção e extração da beleza. Ob-
es ob- De todo modo, mejx (o belo, o bom, a perfei- servo a recursividade desses processos, pois coisas
resto ção) designa um conjunto de valores essenciais belas são elementos necessários para constituição de
, gru- aos Xikrin. Produzir ou obter coisas, pessoas e pessoas belas e vice-versa. Proponho, enfim, que a
'jetos, comunidades (enfim, a sociedade) mejx parece ser importância do belo está presente em todo e qual-
a finalidade última da ação xikrin no mundo, que quer processo produtivo no universo xikrin, visto
refle- se revela tanto no plano individual como no co- que o belo é percebido como o produto final de um
la be- letivo. As qualidades e potências do belo atraves- longo e complexo encadeamento de relações sociais,
obje- sam diferentes planos da vida social, enfeixando que incluem as relações entre os próprios Xikrin
sobre tanto objetos como sujeitos. Das coisas às pessoas, (parentes, afins, amigos formais, nominadores) e
ador- de formas e padrões concretos da natureza aos dos Xikrin com seus outros (animais, seres sobre-
men- grandes nomes rituais (cuja origem projeta-se na naturais do universo mítico e xarnânico, inimigos),
;oria) sobrenatureza mitica): a beleza é o resultado de por meio de coisas (materiais e imateriais). A bele-
1 li te- um encadeamento complexo de relações, que se za, assim, poderia ser vista como a ponta de uma
leza", articulam essencialmente em torno do sistema ri- trama em que se tece uma estética, uma ética e uma
nejx', tual xikrin. Além disso, não basta dizer que toda ontologia indígenas.
r=r- a produção xikrin visa ao belo: objetos, corpos, De maneira evidente, o tema abrange muito
strin- pessoas e nomes. É preciso considerar, ao mesmo mais do que será possível tratar neste ensaio. Aqui,
tanto tempo, que os limites entre objetos e sujeitos não trata-se inicialmente de compreender o conteúdo
errais são imediatamente determinados no pensamento do valor estético xikrin. O que é o belo? Como ele é
n não e nas concepções xikrin. Objetos incorporam-se a materializado? Que critérios o definem? Como se o
gual- pessoas, tornando-se parte delas; mas os objetos produz? Que relações sociais e imagens conceituais
rnân- são eles mesmos partes objetificadas de sujeitos ele revela? O texto deve ser entendido como pon-
s que ou agências vitais. Tais agências, em certos casos, to de partida para uma tentativa de síntese poste-
mito, precisam ser objetificadas para que sua incorpo- rior que possa incorporar a discussão que procurei
pode ração por uma pessoa (por meio da ingestão ou do desenvolver em outra ocasião sobre os objetos no
.nun- contágio, por exemplo) não seja letal; em outros universo xikrin (Gordon, 2006). Ali, investiguei a
mure casos, ao contrário, partes objetificadas precisam questão a partir da relação dos Xikrin com os ob-
num, ser constantemente ressubjetivadas, por meio do jetos produzidos pelos não indígenas, mais parti-
meJx aparato ritual, para transferir agência e capacida- cularmente pelos "brancos", a saber: mercadorias,
des de maneira controlada e benéfica. bens industrializados e dinheiro. Agora trata-se
rências A análise parte de uma investigação dos crité- de fechar o círculo pela outra ponta, e conduzir a
idararn
rios pelos quais os Xikrin atribuem ou reconhecem pesquisa sobre os objetos ditos "tradicionais", efeti-
ortante

ia com- a beleza nas coisas e nas pessoas. Quero sustentar vamente produzidos pelos Xikrin. Nada mais pro-
,Cateté que a concepção do belo, para além de sua dimen- fícuo, para tal fim, do que aproveitar a curadoria e
jver, V.
são estética e moral, possui alcance sociológico e o estudo da coleção Xikrin do MAE-USP.
para os
ografia filosófico mais amplos. Sugiro, ainda, que há uma
continuidade ontológica entre coisas e pessoas no

E M N O M E D O B E L O: O V A L O R DAS C O I S A S X I K R I N . M E B t N G li K R E 209
Beleza dos objetos I: aspecto formal e material riência sensível, mas que decorre do que podemos
chamar de determinadas condições sociológicas:
De uma maneira geral, chama a atenção de isto é, ele estará presente se satisfeitas determina-
qualquer etnógrafo que os conheça a grande pre- das condições relacionais do qual falarei adiante.
ocupação que os Xikrin demonstram com a beleza Este se manifesta, por exemplo, no valor dos itens
e a correção daquilo que os cerca. O juízo sobre a exclusivos e dos itens confirmados ritual mente. A
natureza mejx ou punure (ou kajgo) das coisas, das relação entre esses dois aspectos decorre do fato de
pessoas, dos atos, e dos fatos é pregnante e constante que a beleza material aparece como um signo ou
no cotidiano. Talvez isso seja particularmente sen- expressão de uma beleza (ou correção, ou perfei-
sível ao antropólogo, que está lá precisamente para ção) mais abstrata.
apreender valores e visões de mundo, mas o fato é Dentre os critérios imediatos para a aprecia-
que a preocupação com o belo, com o modo certo ção xikrin dos objetos belos, podemos anotar, em
de fazer ou de se apresentar é perceptível após um primeiro lugar, a adequação a um determinado
período de convivência com os Xikrin. Mas come- padrão ou forma, própria a cada objeto, cultural-
cemos pelos objetos. mente estabelecido, bem como a adequação aos
Em qualquer contexto ou atividade, os Xikrin sentidos de harmonia, proporção e simetria. Os
mostram-se sempre atentos à excelência daquilo elementos que formam um determinado objeto
que é fabricado e utilizado. Qualquer coisa deve (ou conjunto) precisam obedecer a uma disposição
ser ideal mente bela, bem executada, correta, isto é, ideal e preconcebida, de tal modo que o resultado
mõja mejx (onde mõja '" "coisa", "algo", "um quê") seja um sistema harmoniosamente composto de
conforme a expressão em língua mebêngôkre. Os alinhamentos e separações, aproximações e afasta-
artesãos costumam ser diligentes e, na maioria das mentos dos elementos uns em relação aos outros.
vezes, perfeccionistas na confecção dos mais dife- Tanto o padrão quanto o conhecimento necessário
rentes tipos de objeto: cestaria, armas, adornos e para reproduzi-lo de maneira adequada e corre-
enfeites cerimoniais (nêkrêjx). Coisas malfeitas tor- ta são chamados kukràdjà (termo fundamental do
nam-se objeto de humor e muitas vezes pilhéria. Os qual falarei mais abaixo).
bons artesãos na confecção de determinados itens Alguns exemplos nos auxiliam a compreen-
são reconhecidos e valorizados na comunidade. der melhor tais critérios. Tomemos um adorno
Não há, a bem dizer, especialização (exceto aquela de cabeça característico e muito valorizado pelos
relativa a sexo e idade), mas algumas pessoas são Xikrin: a testeira ou diadema rígido denominado
reconhecidamente boas fazedoras de certos obje- kruapu, fabricado com bambu recoberto de algo-
tos (nhipêjx mejx). Então podem ser requisitados, dão (PRANCHA 23). Ele é utilizado em importantes
mediante pagamento, inclusive em outras aldeias cerimônias de nominação, como Bep, Tàkàk-Nhàk
mebêngôkre. (ver Giannini neste volume), entre outras. Ele se-
Inicialmente, há um componente do belo que gue um padrão simétrico, composto de retrizes de
pode ser apreendido imediatamente pela sensi- arara, uma em cada extremidade, além de três no
bilidade visual dos Xikrin. Tal componente, me centro, acompanhando o eixo divisório (de cordão
parece, é dado diretamente na própria material i- em algodão tingido de negro), entre as quais vai um
dade do objeto. Há também um componente mais renque de penas de congo mais curtas, de cor ama-
abstrato, não imediatamente capturado pela expe- rela. Este objeto específico, visualizado na prancha

2IO XIKRIN: UMA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA


acima mencionada, foi considerado belo pelos as- tos, o objeto segue o padrão correto: duas fileiras
sistentes indígenas de pesquisa. Agora, compare-se de penas, uma mais curta, outras de penas longas
com um adorno do mesmo tipo (PRANCHA 83), mas por trás, formando uma base, da qual se desta-
considerado feio (kruapu punurei, pelo fato de fu- cam as retrizes dispostas a intervalos regulares,
gir à forma padrão, apresentando-se incompleto, e delineando eixos cardinais. Segundo os Xikrin, o
cuja autoria provável foi atribuída pelos Xikrin a krôkrôktire possui frente e verso, facilmente distin-
outros Mebêngôkre, provavelmente Kayapó-Go- guíveis pela coloração das penas. Igualmente boni-
rotire. Ou compare-se ainda com o kruapu ilustra- tos foram considerados os krôkrôktire visualizados
do na PRANCHA 84, considerado também feio, e dito nas PRANCHAS 19, 85 (cortou as penas para dar mais
kruapu kajgo (falso, fajuto), em virtude da mistura uniformidade e harmonia).
multicolorida das penas menores (em substituição Compare-se agora os exemplos de krôkrôtire
às penas de congo das quais o artesão não dispunha) vistos até aqui, e considerados belos, com os objetos
e da má proporção da fileira de bambuzinho cober- ilustrados nas PRANCHAS 86, 87, 88, 89. O cocar que
to de algodão, considerada excessivamente curta. se vê na PRANCHA 87 é um krôkrôktire que foi consi-
Tomemos agora, como segundo exemplo, o derado "falso" (kajgo) pelos assistentes de pesquisa
grande cocar krôkrôktire (PRANCHA 19), utilizado indígenas. Ele apresenta-se fora de padrão, pois
também em diversas cerimônias de nominação, há apenas uma fileira de penas, e o arranjo pare-
conforme a descrição de Giannini neste volume-o ceu desarmonioso aos Xikrin porque houve uma
Sua estrutura básica compreende uma fileira de concentração excessiva de penas na parte central
penas de arara atrás; uma segunda fileira de penas da peça. Além disso, é desproporcional o compri-
de arara na frente (kuno kà), sobreposta à anterior; mento dessas penas centrais em relação às mais
destacando-se, eventualmente, retrizes mais longas curtas, resultando em um objeto considerado feio
de arara-vermelha (màt jamy), dispostas a inter- ipunure). De acordo com os Xikrin, este cocar deve
valos regulares como se constituíssem eixos car- ter sido confeccionado apenas com objetivo de ser
dinais. Por fim, há o arremate nas pontas, nêkrêjx vendido para o kuben (isto é, para os brancos), e não
djô, com pequenas penas de gavião (djô é a palavra para ser utilizado pelos próprios índios durante as
para frutas que pendem nas árvores, ou penca), cerimônias, pois a isso não se prestava em virtude
Vejamos alguns exemplares. Apesar de antigo, o da incorreção e falta de beleza.
krôkrôktire visto na PRANCHA 2 foi considerado bo- Os kl'ôkrôktire ilustrados nas PRANCHAS 88, 89,
nito pelos Xikrin. Ele apresenta um traço de estilo para um olhar leigo como o nosso, poderiam ser
de certos artesãos, o que se verifica pela poda da considerados bonitos. Mas, segundo os xikrin, es-
ponta das penas. Tal corte foi realizado para solu- tão, na verdade, fora dos padrões e foram feitos,
cionar um problema formal contingencial: a falta provavelmente, para venda ou troca. No primeiro,
de uniformidade das penas de arara que o artesão as penas dispostas no renque de trás, estariam ina-
tinha à disposição. Fazendo a poda, ele conseguiu dequadas, por serem de gavião e não de arara. No
harmonizar as penas, conferindo uniformidade de segundo, além das penas do renque de trás serem
tamanho e forma. Com isso, foi possível dar desta- impróprias, as penas da fileira frontal apresentam-
que às retrizes mais longas, dispostas a intervalos se misturadas e intercaladas com penas de gavião,
regulares em grupos de três, e arrematadas com o provavelmente porque faltaram penas de arara no
nêkrêjx djô nas pontas. No tocante aos outros aspec- estoque do artesão. A mistura de diferentes varie-

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEBtNG6KRE 2II


dades de pluma causou a sensação desarmônica que respeito do cocar exibido na PRANCHA 92. Essa peça,
torna a peça "feia" (punure) aos olhos dos Xikrin. considerada bela, foi, segundo eles, utilizada mui-
Já o krôkrôktire que se observa na PRANCHA 86 tam- tas vezes pelos índios. Observaram, todavia, que
bém foi considerado "falso" pelos índios, em razão faltava uma pena no topo para compor a tríade de
de ter sido feito com apenas uma fileira, composta, retrizes de arara, mas que a ausência conjuntural
aliás, de penas de gavião. não afetava a beleza e correção da peça. Outro ob-
O cocar ilustrado na PRANCHA 20 apresenta estru- jeto que causou bom impacto visual aos índios foi o
tura formal correta, mas também teria sido pro- grande cocar àkpari djê (PRANCHA 1), usado somente
duzido apenas para venda. Ele foi considerado na cerimônia denominada meeutop (ver Gianni-
"fajuto" (kajgo) em virtude, mais uma vez, da in- ni neste volume, sobre o simbolismo do mekutop).
correção das plumas: a fileira de trás foi feita com Apesar de apresentar uma certa irregularidade no
rêmiges de gavião, quando o correto deveria ser de formato das penas, ele foi considerado muito boni-
arara. Além disso, há um outro detalhe, perceptível to. Os índios disseram que que nos dias hoje prati-
somente ao olhar mais treinado: o fio da amarração é camente não mais se confecciona o àkpari djê.
muito fino. Por isso, disseram os Xikrin, este não Antes de encerrar esta seção, vejamos somente
é um objeto próprio para uso, a menos que não se alguns outros exemplos de objetos belos, do ponto
consiga outro mais adequado, fato que acarreta- de vista xikrin, para dar mais consistência à nossa
ria prejuízo à beleza da pessoa com ele adornada, discussão sobre os critérios da beleza. Tomemos
comprometendo, de alguma forma, sua participa- o adorno a tiracolo arapê jabu mejx (PRANCHA 93).
ção na cerimônia. Já o objeto que vemos na PRANCHA Foi considerado bem feito, dentro do padrão, a
90 foi atribuído aos Kayapó-Gorotire. Para a apre- despeito de uma única miçanga azul (onde deve-
ciação xikrin, ele encontra-se fora do padrão: traz ria ser preta) e da descoloração do algodão, que
somente uma fileira de penas, e as retrizes nas extre- usualmente é tingido de vermelho com sumo de
midades não são adequadas. A amarração também urucum. Os Xikrin disseram que bastaria tingir a
é diferente do esperado, pois a amarração xikrin é linha com urucum para que a peça fosse conside-
feita sempre para receber duas fileiras de penas. rada muito bonita (mejx kumrenx). Compare-se o
Mesmo quando o cocar só leva uma fileira, é possí- mesmo tipo de adorno (arapêjabu), agora em uma
vel perceber que o nó é próprio para duas. Por isso versão considerada kajgo ou "falsa" (PRANCHA 94),
é reconhecível aos olhos dos Xikrin. confeccionada com vistas à comercialização ou à
Por outro lado, o cocar visto na PRANCHA 91 é troca com brancos. Aqui o artesão introduziu uma
considerado um belo exemplar, feito com penas da novidade que descaracterizou o modelo - sementes
cauda de papagaio (kruo krôjjamy). Trata-se de um de uma fruta da família das sapotáceas, denomina-
nêkrêxj ma no kadjàt3 e é uma propriedade cerimo- da kamôkti (provavelmente bapeba) -, talvez por
nial de certas pessoas de uma família (kukràdjà), não saber que o objeto não seria utilizado por nenhum
podendo, assim, ser utilizado indiscriminadamente índio durante as cerimônias.
por qualquer um. O mesmo disseram os Xikrin a Há ainda umas distinções formais sutis para os
Xikrin, à primeira vista imperceptíveis aos olhos
dos forasteiros (incluindo o etnógrafo), como, por
3. Ou kadjà (ou kadjàra); não consegui identificar exatamente a
palavra. Kadjàt ~ "algodão";kadjà ~ podre;kadjàra ~ tirar, extrair, exemplo, a que diz respeito à braçadeira masculina
arrancar, por ex., penas. (padjê krã). A armação de três anéis (PRANCHA 95) é

212 XIKRIN UMA COLEÇÃO ETNOGRAFICA


considerada melhor e mais correta (mejx kumrenx) cas, conhecimentos, saberes, modo de vida. Assim,
do que a de dois anéis (PRANCHA 96). mebéngôkr« kukràdjà foi traduzido (por índios e
Assim, retomando o que disse acima, perce- antropólogos) como "a cultura, os conhecimentos
be-se que os adornos seguem um determinado pa- e tudo que faz parte do modo de existência xikrin".
drão, composto de formas básicas e complemen- Como já demonstrei alhures (Gordon 2006,
tos. A adequação do objeto concreto a esta forma capo !O) não é tão simples e imediato aproximar o
ideal presente na mente dos índios fornece um cri- conceito de kukràdjà ao conceito antropológico de
tério básico para a definição da beleza. Dentre os cultura (que aliás, já é suficientemente elástico e
tipos de complemento, temos os pingentes (jabu). impreciso). De qualquer modo, parece-me que um
Observe-se um adorno simples de cintura kraj djê elemento central para se compreender a ideia de
(PRANCHA 21), e sua versão com pingente kraj djêjabu kukràdjà é o fato de que ela indica, de algum modo,
(PRANCHA 97). Note-se, de passagem, que os nomes um componente imaterial ou não corpóreo dos fenô-
dos objetos e adornos xikrin são quase sempre menos. Isso é consistente, aliás, com uma possível
descritivos. Assim, kraj djê significa literalmente etimologia da palavra, salvaguardando que é sem-
"amarrado na cintura" (onde kraj '" cintura; djê '" pre arriscado basear análises em etimologias espe-
amarra); pa djê, "amarrado no braço", krã djê, culativas. "Algo que permanece no tempo", "algo
"amarrado na cabeça" e assim por diante. que perdura, fica ou demora" (transcendendo o
corpo físico, que se decompõe), parece uma tradu-
Beleza dos objetos 11:condições sociocosmológicas ção bem próxima ao sentido literal ou etimológi-
co do termo, uma vez que kukrà é um verbo com
Além da beleza material e da correção na con- sentido de "demorar, deixar-se ficar"; e djà é uma
fecção, há outros fatores que concorrem para atri- "partícula" que nominaliza instrumento, tempo ou
buir valor aos objetos. Há objetos que são invulga- lugar. Isso explica também a associação que os Xi-
res ou extraordinários, também considerados mejx, krin fazem entre kukràdjà e os ossos, uma vez que
não necessariamente por causa de seus atributos esses últimos são considerados a parte perene do
formais e materiais, mas por sua condição socio- organismo e também relacionada à alma ou espírito
lógica, por assim dizer. Para entender isso preci- (ver Turner, 1981; 1995). Ao contrário do corpo e
samos nos deter um pouco em outro conceito já da matéria que se dissipam, kukràdjà são as ideias
conhecido na literatura e que é importante para e as formas que permanecem, são os conhecimen-
compreender a economia valorativa no universo tos necessários para recriar, no curso do tempo, os
xikrin: kukràdjà. corpos e os objetos.
As capacidades ou conhecimentos necessários No entanto, há um ponto importante a obser-
à ação xikrin são denominados kukràdjà e vistos var. Kukràdjà não se refere apenas a conhecimen-
como condição para a produção de coisas boas ou tos igualmente repartidos ou compartilhados por
belas. Todo conhecimento de qualquer tipo, desde todos. O termo indica desde aquilo que é comum
cantos cerimoniais até instruções para dar parti- ou compartilhado no nível mais abrangente de
da em motor de popa pode ser dito kukràdjà. Em segmentação social - me kuni kukràdjà <kukràdjà
algum momento da história pós-contato, os Me- de todos), passando pelo que se restringe a uma
bêngôkre utilizaram a palavra para se referir ge- determinada categoria de idade (menõrõny kukràd-
nericamente à "cultura": tradição, hábitos, práti- jà, de "jovens", metumre kukràdjà , "dos antigos"),

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEB~NGÓKRE 213


ou pelo que é genericamente dividido entre os - que são transmitidos de geração a geração por
sexos (memy kukràdjà, i.é, dos homens; e meni meio de uma regra fixa, enfeixando determinados
kukràdjà, das mulheres), chegando até o nível me- parentes cruzados. Tais direitos são incorporados
nos inclusivo e estritamente pessoal - por exem- à pessoa (são parte da pessoa, assim como nomes)
plo, i-kukràdjà ("o meu kukràdjà"), me kukràdjà ô e funcionam como atributos distintivos ou diacrí-
(o kukràdjà de alguém). ticos. Eles estabelecem diferenças internas entre
Sendo um conjunto de partes de um todo não pessoas e famílias>,
finito, kukràdjà pode ser entendido como um fluxo Se voltarmos agora aos objetos da coleção,
de conhecimentos, saberes e atribuições que po- podemos ver alguns exemplos de peças que são
voam o cosmo e podem ser adquiridos e apropria- kukràdjà e que expressam distinção. Muitas vezes, a
dos em diversos níveis, do indivíduo a uma coletivi- distinção está nos pequenos detalhes, considerados
dade. Pode, portanto, receber sucessivos apartes (ou propriedade ou prerrogativa de determinadas pes-
perdas), isto é, novas partes, novos conhecimentos soas ou famílias. O objeto apresentado na PRANCHA
ou atribuições, que passam a compor, então, uma 98, denominado kêjkru jabu, é um suporte de cocar,
nova parte de alguém (do apropriador: xamã, guer- feito com algodão e raque de palmeira. Apesar de
reiro, chefe, por exemplo) e, eventualmente, uma o suporte ser um adorno de uso geral entre os Xi-
nova parte de todos os Mebêngôkre. O que se pre- krin, o pingentejabu que consta nesta peça - feito
cisa compreender melhor são os mecanismos sociais com penas de arara é dito kukràdjà, não podendo,
pelos quais esse fluxo indiferenciado de conheci- ao menos idealmente, ser usado indiscriminada-
mentos e ideias se estabiliza em um conhecimento mente por qualquer pessoa na aldeia, visto que é
específico (diferenciado), passível de ser atribuído e direito restrito a alguns membros de uma deter-
reconhecido pela coletividade como marcador de minada família.
identidades individuais e grupais. Há um grau de detalhismo notável nas conside-
Porém há uma parte desse universo de kukràd- rações xikrin acerca dos kukràdjà. Repare-se, neste
jà pensada e tratada de maneira específica. É que adorno, que a semente de coco de inajá cortada
kukràdjà também designa certos direitos, privilégios que encapsula a pena do pingente, denominada
e prerrogativas cerimoniais - papéis ou funções ri- mrõjrekà, não é considerada um distintivo e faz
tuais, usufruto de determinados adornos, objetos parte de todos os pingentes; somente as pequenas
ou materiais (matérias-primas, tipos de pluma, plumas de arara (e eventualmente as contas de cor
peles e partes de animais, como dentes, ossos etc.)!

quanto o primeiro denota algo mais concreto e material. Assim,


4. Entre os Kayapó, segundo Vanessa Lea (1993, p. 267), O termo todo nêk"êjx é considerado kukràdjà, mas nem todo kukràdjà é
nêkrêjx funciona de maneira equivalente e inclui tanto adornos considerado nêkrêjx. Neste capítulo não poderei retomar a im-
quanto prerrogativas. Para os Xik rin, l1êkrêjx parece restringir- portância central do simbolismo das aves e, consequentemente,
se aos adornos corporais e aos enfeites plumários (aquilo que da plumária no universo cultural xikrin e kayapó. Quanto a
se apõe ao corpo, com exceção da pintura). Há, certamente, isso, veja-se Turner (1980,[98r, 2002), Giannini (199[ e neste
uma associação estreita do termo nekrêjx com a plurnária, que volume), Verswijver (1992b), Gordon (2006).
parece ser o sentido originário (o uso do termo para adornos não 5. Não irei abordar, nos limites deste texto, a discussão sobre que
plumários e mercadorias, parece ser uma extensão semântica unidades sociais (grupo de descendência, Casa ou a pessoa) po-
mais recente). Kukràdjà é um termo mais inclusivo, U013 vez dem ser vistas corno "donas" de tais direitos. Veja-se Gordon
que os nêkrêjx também são ditos kukràdjà, mas de um certo (zooó.xaps. 2 e [o) e, para uma discussão mais detida, veja-se
tipo. Este último tem um caráter mais abstrato ou imaterlal, en- Coelho de Souza (2002).

214 XIKRIN: UMA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA


azul) o são. Neste segundo suporte kêJkru (PRANCHA tipoia de buriti, que apresenta o trançado da cobra
99) há um outro distintivo: o direito de enfeitá-Ia -a'inh ngrôa'ô kangã ni koko (PRANCHA 47).
com sementes vermelhas, denominadas pyrãnh'y No que diz respeito a matérias-primas consi-
(provavelmente da família das euforbiáceas). Tais deradas como elementos distintivos temos um caso
sementes constituem uma prerrogativa, sendo seu ilustrativo. O cocar Krôkrôktire, visto no Catálogo
uso idealmente restrito aos donos do kukràdjà .. (ao final do volume) sob registro I03 (ou ainda na
Às vezes não é apenas um detalhe, mas o objeto PRANCHA 18, embora desfalcado de algumas penas)

todo, sua concepção, isto é, sua forma abstrata (ou difere de um tipo mais simples do mesmo adorno
seu design), ou ainda o material de que é composto, (Catálogo registro 102, ou 3) em virtude da fileira
aquilo que se considera kukràdjà. É o caso de um de penas de gavião àkdjukanhêre (gavião-pedrês,
adorno de cabeça trançado em tucum e em pluma- Buteo nitidus), que são de uso particular de algumas
do com penas de arara-vermelha (PRANCHA 100) de- pessoas. O direito de ostentar tais plumas em um
nominado krã nhôjre (talvez representando o colar cocar de tipo krôkrôktire é, portanto, dito kukràdjà.
vermelho do pássaro tico-tico, Zonotrichia capensis) Ver FIGURA 50 na página seguinte.
ou alternativamente chamado de meàkàkre. Esse Além das prerrogativas e conhecimentos indi-
adorno é considerado um distintivo de uma de- viduais, há, como dissemos antes, aqueles kukràdjà
terminada família. Mas aqui também há subdis- que diferenciam por sexo (masculino/feminino) e
tinções internas marcadas pelo detalhe. Note-se a por idade. O arapê jabu (PRANCHA 57) é um enfeite a
diferença para a peça vista na PRANCHA 101. Um tipo tiracolo de uso eminentemente feminino. No en-
diferente de pena colocada no topo do cocar indica tanto, alguns homens detêm o privilégio de usá-Ia
um kukràdjà distinto. ritualmente e de transmiti-Ia a seus netos e sobri-
Nota-se também alguns kukràdjà que se ex- nhos. No caso das braçadeiras, que é um outro bom
pressam como traços de estilo ou marcas de um exemplo, temos a seguinte divisão básica: padjê krã
determinado artesão. É um conhecimento ou uma (PRANCHA 54) é masculino, e padjê abu (PRANCHA 55)

habilidade que se manifesta visualmente no pró- é feminino. Ocorre também que alguns homens
prio objeto. Tomemos como exemplo, a bolsa de adquirem o direito de usar a braçadeira feminina
tucum denominada mokà. Esse tipo de bolsa pode como uma prerrogativa ritual (kukràdjà). Igual-
apresentar um trançado em alto-relevo chamado mente, o uso simultâneo e combinado dos dois ti-
kumo pri kajby (PRANCHA 81), que é reconhecido
ã pos é uma prerrogativa ritual. Atualmente usa-se
como kukràdjà de dois velhos artesãos já falecidos pouco o padjê krã, substituído mais correntemente
(Bepkaroti e Bepkretõjx). Um relevo semelhante, pelas braçadeiras de miçanga (ver seção abaixo). Os
simbolizando o caminho deixado por um animal Xikrin disseram que, recentemente, a combinação
(no caso, o veado) pode ser visto em uma bolsa mokà do padjê krã com o padjê abu veio vulgarizando-se,
de buriti (mokà nhiadjy pry), ilustrada na PRANCHA 76. isto é, tornando-se de uso mais comum, sem que
Neste caso, o "caminho do veado" trançado em al- houvesse reclamação por parte dos proprietários
to-relevo é considerado kukràdjà e poderá ser trans- originais dokukràdjà. Ao se tornarem mais comuns
mitido, como direito e savoirfaire, a certos parentes ("kukràdjà de todo mundo" ou me kunin kukràd-
da geração mais nova. jà, como dizem os índios), alguns adornos podem
Igualmente, há marcas de kukràdjà na esteira de eventualmente cair em desuso, como parece ter
buriti denominada prodjà ngrôa'ô (PRANCHA 48) e na sido o caso do padjê krã.

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEBtNGÔKRE 215


FIGURA 50 Menina Bekw6j (Acervo Cesar Gordon).

Um objeto interessante, também considerado ração (linha de algodão ou trançado de palha),


uma prerrogativa exclusiva de determinadas pes- bem como ao próprio padrão do trançado: zi-
soas, é a braçadeira padjê krã jabu (PRANCHA 102), gue-zague ou caminho da cutia - kam kukênh
que possui um complemento a mais em forma de (PRANCHA 27); pintura de cobra - kangati ôk (PRAN-

pingente (jabu), como se o padjê krã tivesse incor- CHA 72); trançado com entrecasca - pin kà kam yry

porado o padjê abu à sua própria forma, fundin- (PRANCHA 7); trançado com envira - kam yry kam

do-se com ele. anhõro (PRANCHA 26). Todos os últimos exemplos,


Diferentemente do padjê krã, o padkê tykti bem como o padjê kajêti kadjàt yry (PRANCHA 103) -
(PRANCHA 24), confeccionado com pena de arara, que apresenta uma malha estreita, trançada em
e o padkê kajêti (PRANCHA 25), feito com pena de algodão -, são considerados prerrogativas exclu-
congo, são braçadeiras de uso dos homens mais sivas de alguns indivíduos, que assim possuem o
velhos, com vários filhos ou netos. Mas para cada direito de transmiti-Ias a seus parentes cruzados
um dos três tipos básicos de padjê masculino (krã, das gerações mais jovens.
tykti e kajêti), existem muitas variedades, referen- Por fim, para encerrar esses exemplos, que
tes principalmente ao material usado na amar- poderiam se multiplicar, menciono aqui alguns

216 XIKRIN: UMA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA


outros objetos considerados kukràdjà: os batoques nito. Daí a proliferação de formas e a multiplica-
labiais akàkaô akàjabudà (PRANCHA 104); e (akà kam ção de pequenas distinções na cultura material,
kamery, utilizado em uma cerimônia denominada que são indicativas do caráter diacrítico de certos
Mebiôk (PRANCHA 105). objetos rituais.
Apesar de boa parte desses privilégios ser de
conhecimento geral, os rituais fornecem o contexto Incorporações de kukràdjà: a beleza que vem de fora
para que eles sejam visualizados, para que apare-
çam (oamirin) diante da comunidade. É principal- A exclusividade ou raridade de certos itens
mente durante as cerimônias que os kukràdjà são como critério que confere beleza e distintividade
ensinados pelos adultos aos seus tàbdjioo (netos ou resulta em uma dinâmica de valorização e des-
sobrinhos mais jovens, usufrutuários ou detentores valorização inerente à econômica político-ritual
do direito). As performances rituais, elas mesmas, e ao próprio sistema de transmissão de kukràdjà e
podem ser vistas como um ordenamento temporal prerrogativas. No processo de transmissão verti-
e espacial de diferentes kukràdjà. De fato, a corre- cal de uma geração para outra, há algumas coisas
ta distribuição dos kukràdjà durante a festa - seu que se vulgarizam e tornam-se de uso mais geral;
aparecimento no meio do pátio da aldeia em se- e outras coisas que são mais particulares e de uso
quência correta, e na correta disposição ou posi- restrito. Tal dinâmica está na base, em certa me-
cionamento - indica harmonia, simetria e beleza. dida, da "política" de apropriações e de relações
Em certo sentido, é isso que faz a festa ser bonita exteriores entretidas pelos Xikrin, em certos casos
(metóro mejx kumrenx). belicosamente, com os inimigos e estrangeiros em
Portanto, temos aqui um paralelismo estético. geral (kuben). Os Xikrin sempre mantiveram al-
Replicados em outro plano, notamos a presença dos gum tipo de contato com estrangeiros, em busca
mesmos princípios ou critérios de reconhecimento de novos conhecimentos e de aquisições de novos
da beleza dos objetos materiais. Assim como um elementos culturais. As expedições guerreiras, por
belo objeto, uma bela festa também é o resultado exemplo, sempre tinham por objetivo o butim e a
harmônico de alinhamentos e separações, aproxi- captura de mulheres, menos para fins matrimoniais
mações e afastamentos dos elementos - neste caso do que para a obtenção de cantos e cerimônias, de
os kukl'àdjà - uns em relação aos outros. maneira a renovar o repertório de prerrogativas e
Mas o valor dos kukràdjà obedece ainda a um objetos de diferenciação e distinção interna". Por
outro critério: a exclusividade. Por uma série de tudo isso, compreende-se que a cultura material
motivos que não terei espaço para abordar nes- xikrin sofre constantes aportes, acréscimos (e even-
te capítulo, o aparecimento ritual confere valor tualmente perdas). A própria riqueza e diversifi-
à prerrogativa ritual, porém é sua exclusivida- cação da plumária tem relação com essa dinâmica
de ou raridade no conjunto da comunidade, que de incorporações.
lhe confere um sobrevalor e uma verdadeira bele- Na busca por distinção, portanto, ao longo da
za (ver Gordon, 2006: 380). Ao contrário do que história xikrin muitos itens culturais foram toma-
ocorre com os nomes (ver mais abaixo), não basta
passar pelo ritual (ou seja, ser ressubjetivado ri-
6. Veja-se Verswijver ('992a) para uma descrição mais detalhada
tualmente); é importante que o objeto seja único das modalidades de guerra dos grupos Kayapó e o motivo do
(pydji), ou exclusivo, para ser verdadeiramente bo- butim. Ver também Gordon (2006).

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEBtNGOKRE 217


dos de empréstimo a estrangeiros. Dentre os obje-
tos que foram agregados ou incorporados recente-
mente encontra-se o toucado amarelo meàkà pêjôti
jamy (PRANCHA' 106), característico dos Kayapó-Go-
rotire e Mekrãnoti, e hoje usado pelos Xikrin (re-
meto o leitor ao depoimento de Lux Vidal neste
volume, a respeito das diferenças de cultura mate-
rial internas aos grupos Mebêngãkre). Outras in-
corporações são mais antigas e passaram há muito
a compor o conjunto de conhecimentos xikrin (me-
bêngôkre kukràdjà), sendo agora vistas como coisas
"tradicionais". Exemplo: o adorno de pescoço feito
com miçangas de sementes e placas de nácar, ngàp
õnkredjê ("amarra de pescoço com nácar" - PRAN-
CHA 28). Os Xikrin atribuem a origem deste ador-

no a um grupo estrangeiro (provavelmente Tupi),


de quem seus antepassados se apropriaram. Mas
compare-se o último com a recente versão "novida-
deira" (PRANCHA 1 07), onde as sementes são substituí-
das por miçangas plásticas. Atualmente, inclusive,
muitos artesãos substituem as placas de concha por
pedacinhos de latão. FIGURA 51 No início da década de 1970, chefe Bemoti ostenta o labre-
Objetos e materiais que podem conferir beleza te labial com pingente de couro de cabeça de mutum, kukràdjà denomi-
também podem ser perigosos, precisamente por nado "Akàkakô àk krã kà jabu djà" (Acervo Lux Vidal).
isto: eles encarnam certas subjetividades, agências
ou potências espirituais alheias, que tanto podem Entre os enfeites (kukràdjà) poderosos, mas pe-
engrandecer e regenerar os Xikrin - se usados com rigosos, temos, por exemplo, o peitoral (ou colar)
os devidos cuidados, de forma ritual mente con- denominadoàk krã kàjabu djà (PRANCHA 108). Trata-
trolada, e por pessoas adequadas -, como também se de um pingente feito com o couro escalpelado
podem causar doenças e matar, por uma espécie de da cabeça de uma ave, no caso específico, o mu-
contrapredação. A propósito, a substituição de ma- tum. O contato com o corpo da ave morta pode
teriais perigosos ou "carregados" (fortes -tojx - no trazer doença por meio do contágio e da contami-
sentido de portarem subjetividades animais pato- nação com elementos não dessubjetivados (espíri-
gênicas) por materiais mais "neutros" (por exem- tos ou mekaron) ainda presentes na parte do corpo
plo, placas de nácar por placas de latão) é também animal. Assim, tal item era usado exclusivamente
um modo de permitir a vulgarização e ampliação por homens, e mais particularmente, por homens
do acesso, por outras palavras, é um modo de "co- considerados duros e fortes (tojx). Mesmo assim, o
munizar" alguns objetos que, por outro lado, em usuário deveria guardar uma série de restrições ali-
decorrência disso, perde um pouco de seu valor mentares. Igualmente perigoso, forte e belo, pelas
distintivo e de sua beleza. mesmas razões, é o batoque labial com pingente de

218 XIKRIN: UMA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA


couro da cabeça de mutum -akàkakô àk krã kà[abu cem muito claramente a beleza física das pessoas,
djà (PRANCHA 109, FIGURA 51). preocupam-se e agradam-se com ela. Pessoas bo-
nitas fisicamente são ditas me õ mejxtire (onde ti
A novidade vem de fora, mas também vai para fora " aumentativo; re " diminutivo, nominalizador).
Aqui também os critérios da harmonia, simetria e
A criatividade está sempre relacionada com o proporção estão presentes. Preza-se a distribuição
outro. A invenção, no pensamento xikrin, é me- harmoniosa dos órgãos pelo corpo: membros su-
nos o efeito de uma centelha criativa individual, e periores e inferiores não podem ser excessivamen-
muito mais o efeito de uma relação. Por essa razão, te curtos, tampouco longos demais. Observam-se
os acréscimos culturais são geralmente vistos mais atentamente as proporções corporais e até mesmo
como descoberta. Mesmo os casos que poderíamos um jeito de caminhar ou mover-se pode ser consi-
classificar como "surtos de criatividade" são impul- derado bonito ou feio, correto ou impróprio (mejx
sionados pela relação com o outro. Há certas modas ou punure). Não é necessário entrar aqui em con-
ou "ondas", em que novos estilos são criados por siderações sobre as diferenças de padrões estéticos
causa de uma relação com o exterior: seja porque os entre os sexos, mas cabe uma observaçãoen passant,
Xikrin aprendem novos artefatos, seja porque per- a título de curiosidade interétnica: os homens xi-
cebem que os estrangeiros querem deles novos ar- krin acham as mulheres do Alto-Xingu o supras-
tefatos. Na coleção temos exemplos de um desses sumo da beleza feminina (menire mejxtire).
momentos, quando vários homens xikrin começa- A beleza física depende de uma série de pro-
ram a fabricar itens diversificados, principalmente cessos de "fabricação" corporal a cargo dos pais e
colares, que eram peças exclusivas para vender aos parentes próximos de uma criança, desde seu nas-
brancos. Veja-se especialmente as PRANCHAS 110-117. cimento até a puberdade. Porém, ao mesmo tempo
Igualmente, a braçadeira padjê abu vista na PRANCHA em que se constitui o corpo, são necessários tam-
118 foi confeccionada apenas para venda aos bran- bém determinados procedimentos para prover o
cos, sendo considerada kajgo (falsa). Trata-se de estatuto moral da pessoa: a furação das orelhas para
uma versão kitsch (note-se a amarração totalmente garantir o bom entendimento; a furação dos lábios,
fora dos padrões) de um objeto original considera- no caso dos meninos, para.garantir uma boa capa-
do belo e de uso das mulheres xikrin. Compare-se cidade oratória, e assim por diante (veja-se a esse
com a versão ilustrada na PRANCHA 119, considera- respeito, entre outros, Turner, 1980 e Cohn nes-
da apropriada e fabricada com miçangas de vidro te volume). Não se pode esquecer a importância
vermelha em vez de sementes. central da pintura corporal, composta de padrões
geométricos, que já foi objeto de extensas análises
Beleza e valor das pessoas (Vidal, 1978, 1982 e Turner, 1980, por exemplo). O
cuidado dos parentes e a ativação de relações sociais
Viemos até aqui discorrendo sobre os objetos, adequadas, tudo isso concorre para garantir a cor-
incluindo-se adornos que são itens destinados a em- reção, a perfeição e a beleza (mejx) de uma pessoa.
beleza r e valorizar as pessoas. Para concluir, resta A boa aparência corporal é um índice de uma cor-
abordar abordar o tema da beleza das pessoas. reção sociológica, ética e moral. A bele~a, portanto,
De imediato, há uma dimensão estética perce- não é inata. Ela é o resultado de um encadeamento
bida pela sensibilidade visual. Os Xikrin reconhe- de procedimentos sociais.

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEBtNGOKRE 219


E há uma outra dimensão - uma outra cama- aqui rememorá-Io rapidamente. Meninos recebem
da, que complementa e arremata, por assim di- nomes e nêkrêjx de um ou mais parentes masculi-
zer, o processo de constituição da pessoa, e que nos da categoria ngêt (MB, MF, FF etc.), Meninas
decorre, corno disse anteriormente, de condições recebem nomes e nêkrêjx de uma ou mais parentes
de ordem sociocosmológica. Tal dimensão está in- do sexo feminino, da categoria kwatyj (FZ, MM, FM
timamente associada à assunção de determinadas etc.). Em relação a esses parentes, o ego de ambos
qualidades belas por meio, mais uma vez, da expe- os sexos (isto é, o indivíduo que recebe) está na ca-
riência ritual (e das transformações operadas pelo tegoria tàbdjtoõ.
ritual). Estou falando evidentemente de um tema As crianças homenageadas ou honradas duran-
clássico da etnografia mebêngôkre: a atribuição de te os rituais denominam-se mereremejx: termo que
nomes pessoais, que são chamados justamente no- exprime um sentido próximo a "aqueles a quem
mes belos (idji mejx), ou grandes nomes (idji kati)- se dá/outorga a beleza", "aqueles que sairão belos
e que conferem a seus portadores a característi- (da cerimônia)", "aqueles que alcançam a beleza",
cas de serem pessoas belas (me mejx), em oposição "aqueles que se exibem lindamente". Os pais dos
a pessoas sem nomes cerimoniais, ditas me kajkrit celebrados são ditos mckrareremcjx, "aqueles cujos
(comuns, ou vulgares). filhos sairão bonitos". Portanto, o sentido do ritual
Os nomes bonitos são aqueles associados a de- parece ser o de gerar um efeito amplo de atribuição
terminadas cerimônias específicas e compostos por da qualidade da beleza a seus participantes.
prefixos ou "classificadores": Bep, Tàkàk e Katàp A importância da vinculação cerimonial para
(masculinos); Be-k wõj (isto é "Bep-ferninino"), a obtenção dessa qualidade parece bastante clara:
Nhàk, Ire, Pãjnh, Kôkô e Ngre, todos femininos. nomes bonitos são ditos kajgo (idji mexj kajgo), ou
Esses grandes nomes cerimoniais carregam uma seja, inutilmente bonitos, falsamente bonitos -
enorme potencialidade distintiva. Eles são perigo- sem um verdadeiro efeito de valoração ou beleza-,
sos e considerados àkrê (idji djàkrê), e não podem se não passarem pela confirmação cerimonial.
ser transmitidos para uma criança muito nova. Não é suficiente que una pessoa tenha recebido
Seu poder e beleza provêm de sua origem mítica os nomes belos de determinados parentes cruza-
e sobrenatural. O surgimento ou a descoberta dos dos. Para garantir o verdadeiro valor da beleza,
nomes bonitos são atribuídos a heróis culturais o ritual é necessário.
de tempos remotos com capacidades xamânicas e Como procurei mostrar anteriormente (Gor-
transformativas extraordinárias, que adquiriram don, 2006), o ritual é um momento em que os no-
esses nomes por meio de relações sociais com seres mes, bem como as prerrogativas, são ressubjetiva-
animais ou sobrenaturais. dos e reconectados a sua origem externa e sobre-
O objetivo dos grandes rituais mebêngôkre é natural. O ritual tem, portanto, um caráter "sacr i-
conferir ou atribuir, publica e coletivamente, os ficial". Com ele, abre-se um canal para reconexão,
nomes bonitos (idji mejx) e as prerrogativas cerimo- para a relação com o universo "sagrado" (e xamâ-
niais (kukràdjà) transmitidos às crianças pelos seus nico), por assim dizer, do tempo-espaço mítico.
"norninadores" das categorias ngêt e kwatyj. Os no- Mas, para fazer os rituais é necessário ser capaz
mes e prerrogativas rituais (kukràdjà e nekrêjx) são de criar as condições materiais - basicamente, o
transmitidos pela mesma regra. Tal mecanismo de alimento ritual (denominado àkjêre) - que permi-
circulação vertical é bem documentado, bastando tirão a realização da própria cerimônia, sem a qual

220 XIKRIN: UMA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA


não se faz verdadeiramente belo. Os rituais me- tes paralelos, parentes cruzados, "norninadores",
bêngôkre precisam ser patrocinados pelos mckra- amigos formais, afins, além de seres da natureza
reremejx, quer dizer, por aqueles que pretendem e da sobrenatureza, como animais e espíritos, por
tornar seus filhos belos. É essencial que os pais dos meio do ritual.
celebrados sejam capazes de produzir víveres para Novamente aqui, em um plano ontológico mais
alimentar a aldeia durante todo o período cerimo- abstrato, temos um certo paralelismo nos princí-
nial. Caso isso não ocorra, a festa é considerada ile- pios de constituição dos valores estéticos e éticos:
gítima (kajgo), resultando, em consequência, nomes a necessidade de alinhamentos e afastamentos -
falsamente bonitos (idji mejx kajgo). não mais de elementos materiais no conjunto de
O problema é que nem todos sempre conse- um artefato, não mais dos kukràdjà no conjunto
guiam fazê-lo. Nem todas as crianças passavam de uma cerimônia - mas das próprias relações so-
pela festa de nominação, uma vez que nem todos ciais que compõem o universo mebêngôkre. Talvez
os pais tinham "a energia necessária ou as cone- pudéssemos dizer que temos um único e mesmo
xões de parentesco extenso suficientes para mobili- processo de constituição da beleza, que se replica
zar o trabalho e a produção de alimento, cuja pro- fractalmente em diferentes planos: dos objetos à
visão é de responsabilidade dos pais como patro- sociedade, passando pelas pessoas e pelos rituais.
cinadores das cerimônias de nominação" (Turner,
J966: 173)' Assim, o sistema cerimonial cria uma Considerações finais
divisão interna às comunidades mebêngôk re, ex-
pressa explicitamente no discurso dos índios: uma Uma das características da sociedade mebên-
diferença entre pessoas bonitas (me mejx) e pessoas gôkre é o que podemos chamar do seu caráter vi-
comuns (me kakrit), ou ainda, entre pessoas ver- sual. Desde o display arquitetônico das aldeias até a
dadeiramente bonitas e aquelas que eram bonitas importância do aparecimento (amirin) dos adornos,
mas de maneira apenas estéril (kajgo). Conforme enfeites e papéis cerimoniais nas festas e danças
amplamente descrito na literatura sobre os Me- no pátio - isto é, o desvelamento ritual de nomes
bêngôkre, o campo social é recortado por uma e kukràdjà - há um componente visual na objeti-
distinção que se expressa justamente pela oposi- ficação do valor e a da beleza. Isto não é à toa. É
ção me mejx vs. me kajkrit (pessoas belas vs. pessoas precisamente no ritual que a beleza se objetifica e
comuns ou vulgares). se mostra em sua máxima extensão sociológica e
A verdadeira beleza de uma pessoa é obtida na cosmológica. E o ritual é precisamente o contexto
articulação de um conjunto de relações sociais "para em que os Xikrin se mostram e se fazem belos (por
dentro" e "para fora", por assim dizer. A consti- isso também, por exemplo, é que eles preferem
tuição da beleza - e o desenvolvimento afetivo- sempre ser fotografados em trajes rituais, pois é
corporal de uma pessoa, do nascimento à morte- quando se sentem apropriadamente apresentáveis).
pode ser visto como um processo constituído por Não é por outros motivos também que os períodos
uma série de transformações de várias ordens (cor- cerimoniais são momentos de grande excitação eró-
poral, sociológica, psíquica, metafísica), mediadas, tica, em que jovens rapazes e moças flertam inten-
nas diversas etapas de seu ciclo de desenvolvimen- samente e combinam encontros amorosos. O ritual
to, por diferentes relações sociais - que incluem é, portanto, o clímax da produção (ou extração, ou
relações com seus pais ou genitores, com paren- atribuição) da beleza. Na verdade, é o contexto em

EM NOME 00 BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN·MEBtNGOKRE 221


que toda a beleza que os Mebêngôkre puderam ainda um aspecto mágico para os Xikrin (como
apreender ou se apropriar do cosmo se objetifica. para muitos de nós), na medida em que, embora
Os rituais são momentos em que a própria socie- muitos tenham familiaridade com a vida na cidade,
dade mebêngôk re mostra-se como deve ser: bela, a grande maioria nunca teve contato direto com o
correta, boa. Mebêngôkre kukràdjà mejx kumrenx. processo de produção industrial, não visitaram fá-
bricas, enfim, não sabem concretamente como os
As coisas belas dos brancos: dinheiro e mercadorias brancos conseguem criar tantas coisas, modificar
em tamanha escala e magnitude o meio ambiente,
Cabe ainda falar rapidamente da relação dos alterar rapidamente diversos aspectos da vida. Os
Xikrin com os objetos dos brancos. Dispondo de Xikrin sabem perfeitamente que existem diversos
pouco espaço após um texto que já vai longo, gos- mecanismos de conversão de objetos e coisas em di-
taria de chamar a atenção para alguns aspectos ape- nheiro, além de diferentes redes mercantis, e expe-
nas. Em primeiro lugar, é importante frisar, mais rimentaram, historicamente, um sistema de trocas
uma vez, que existe uma dinâmica de valoração e de matérias-primas por bens industrializados, no
desvalorização (dos objetos e das pessoas) na so- período da borracha, depois com a castanha-do-pa-
ciedade xikrin, que se articula diretamente com a rá, a madeira e, finalmente, na relação com a Com-
questão da alteridade e consequentemente com o panha Vale do Rio Doce? Esta última não negocia
sistema ritual (transmissão e confirmação de ele- diretamente com os índios, mas eles sabem que
mentos de "beleza"). Há um caráter de instabilida- é com a venda do minério extraído das minas de
de no sistema, que pode provocar paulatinamente a Carajás que a companhia obtém seu monumental
desvalorização de alguns itens outrora capazes de dinheiro: piôkaprin rajx. No entanto, a manufatura
expressar claramente o extraordinário e o belo. As- industrial propriamente dita e até mesmo a emis-
sim, o sistema apresenta uma dimensão dinâmica, são do dinheiro como moeda (papel) continuam
de abertura, em que é sempre preciso buscar novos um mistério e são motivos de muita especulação
itens de diferenciação, novas coisas belas, novas ca- entre os Xikrin.
pacidades distintivas e agentivas. Há um componente estético no interesse pelos
Nesse processo, inerente à socialidade xikrin, objetos industrializados. Os Xikrin dizem que as
o advento do encontro com a sociedade brasileira coisas produzidas pelos brancos nas fábricas tmõja
configurou-se como nova possibilidade de desco- nhipêjx djà)8 são bem feitas, bem-acabadas (nhi-
bertas. Os brancos tornaram-se um importante fa- pêjx mejx). Sempre destacam a engenhosidade dos
tor de renovação do estoque de diferença, em vir- brancos e sua extrema capacidade de produzir os
tude justamente de uma característica particular de mais diversos objetos: "kuben faz tudo, môja kunin
nossa civilização: a espantosa capacidade de fabri- nhipêjx". Dessa maneira, eles reconhecem que os
car objetos dos mais diferentes tipos e propósitos. brancos, genericamente, detêm um conhecimen-
De maneira geral, os Xikrin atribuem aos bran-
cos uma impressionante capacidade produtiva e 7. Desde 1989 a Vale mantém com os Xikr in um convênio de
transformativa, que evoca o poder de seres mitoló- assistência a título de indenização pelos impactos de suas ope-
rações minerárias na Floresta Nacional de Carajás, unidade de
gicos e dos heróis culturais xamânicos. Em um cer-
conservação que faz limite com a terra indígena.
to sentido, a capacidade transformativa dos brancos 8. Onde nhipêjx ~ verbo trans. "fazer", "fabricar", "construir"; tdjà
(ou do kuben, para usar o termo indígena) guarda :::::
nominalizador de instrumento ou lugar.

222 X I K R I N: UMA C O L E ç Ã O ET N O G R Á F I C A
to valioso, que se manifesta nos diversos objetos nhecimento que os "objetos xikrin" são dinâmicos
que fabricam industrialmente, cuja beleza deleita e estão, de algum modo, vivos. Eles são o testemu-
os Xikrin. A fabricação industrial é vista por eles nho da história dos Xikrin em processo, que Eles
como um processo que produz objetos bem-acaba- variam e se transformam porque essa história é
dos, perfeitos, esteticamente agradáveis (além de aberta e nunca se completa .. Uma coleção de obje-
úteis, como armas, ferramentas entre outros). tos belos dos Xikrin deverá sempre expressar esse
Não será de se estranhar, portanto, que uma caráter dinâmico, em que a inovação é constante.
futura coleção etnográfica de objetos xikrin venha Pois a inovação está a serviço do princípio de dife-
a ostentar uma série de itens tomados de emprés- renciação, e este é a base da reprodução e da conti-
timo à nossa própria civilização. Isso será o reco- nuidade da sociedade.

EM NOME DO BELO: O VALOR DAS COISAS XIKRIN-MEBtNGOKRE 223

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