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O infantil: das psicologias à psicanálise

Simone Kubric
Mestranda em Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da USP

Neste trabalho pretendemos apresentar sinteticamente dois entendimentos distintos do


termo infantil: um entendimento psicológico e um entendimento psicanalítico. Nosso objetivo é mostrar
que estas distintas compreensões podem ter diferentes efeitos na maneira pela qual os adultos lidam (ou
não) com as crianças.

O infantil das psicologias


Para explicitarmos o que consideramos como sendo o entendimento psicológico do termo infantil,
precisamos, em primeiro lugar, esclarecer a que nos referimos quando falamos de psicologias. Tratamos por
psicologias todas as teorias cujo objeto de estudo é a consciência e/ou o comportamento do homem, ou
melhor, do indivíduo.
São muitas e diversas as correntes psicológicas, bem como seus autores e obras. Porém, neste trabalho
não temos a intenção de nos deter particularmente em nenhum deles. Isso porque o que nos interessa é um
certo discurso de tom psicológico que atualmente está presente em grande parte das orientações feitas a
pais e professores e que versa sobre como se relacionar e como agir com as crianças para que elas se
desenvolvam adequadamente. Esse discurso consiste em um amálgama de diferentes fontes teóricas
raramente mencionadas, que tem sido proferido nos consultórios e nas escolas pelos mais diversos
especialistas (desde psicólogos, psicopedagogos, médicos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e assim por
diante), bem como veiculado pela mídia e até pelos documentos oficiais da educação em nosso país.
O discurso psicológico a que me refiro apresenta ao público o infantil na categoria de adjetivo, isto é,
como aquilo que caracteriza a criança e seus atributos. E quais seriam os atributos das crianças? Capacidades
humanas em potência, ou seja, capacidades que devem se desenvolver a fim de que as crianças se tornem
adultos. Em outras palavras, o discurso psicológico considera que as crianças são naturalmente dotadas de
capacidades, aptidões ou elementos que ao longo do tempo amadurecem, evoluem, se aperfeiçoam.
Dois exemplos podem ser apresentados para ilustrar a circulação deste entendimento psicológico do
termo infantil. O primeiro, consiste de um fragmento de um fascículo especial da revista Seu Filho e
Você que, apesar de não ter sido retirado da mais recente edição, é uma amostra importante do conteúdo
voltado para pais e mães que se pode encontrar atualmente nas bancas de jornal: "Em cada um dos seis
fascículos você aprenderá como estimular positivamente os elementos chaves do desenvolvimento infantil:
motricidade, coordenação olhos-mão, linguagem, aprendizado e vida social e afetiva de seu bebê. Ao
descobrir as aptidões de seu filho em cada fase de desenvolvimento dos primeiros 15 meses e incorporar as
sugestões de atividades que apresentamos ao dia-a-dia de seu bebê, você se tornará uma supermãe e um
superpai de uma criança criada para vencer" (2003, p. 6).
Um segundo exemplo também bastante significativo é a forma pela qual os Referenciais Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil definem o que significa educar: "educar significa propiciar situações de
cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o
desenvolvimento das capacidades infantis" (1998, p. 23). E, mais ainda, o documento diz que "neste
processo, a educação poderá auxiliar o desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento
das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na perspectiva de contribuir para a
formação de crianças felizes e saudáveis" (1998, p. 23).
O que os dois exemplos mencionados acima têm em comum é o fato de usarem o termo infantil – em
um tom que remete o leitor a teorias da psicologia genética – para qualificar as capacidades maturacionais
próprias das crianças. Além disso, colocam o adulto no lugar de colaborador do desenvolvimento infantil,
responsável por garantir que este processo aconteça sem percalços.
O emprego do termo infantil como um qualificativo circunscrito em uma lógica desenvolvimentista
revela que o discurso psicológico a que nos referimos entende o infantil como um "a menos" em uma escala
evolutiva. Isto implica que tudo aquilo que é caracterizado como infantil é considerado passível de
superação. Desta forma espera-se que a criança deixe de ser infantil para poder se tornar um adulto
plenamente desenvolvido, ou, se quisermos, adultos "felizes e saudáveis", "vencedores". Esse deve ser o
ponto de chegada do seu crescimento supostamente normal e natural. Esse é o destino almejado pelo
discurso psicológico para os pequenos. E, como vimos nos dois exemplos citados anteriormente, resta aos
adultos auxiliarem as crianças neste processo, ou seja, contribuir para que permaneçam na adequada rota
do desenvolvimento.

O infantil da psicanálise
Assim como iniciamos a primeira parte deste trabalho esclarecendo a que nos referíamos ao falar de
psicologias, iremos também pontuar nossa referência psicanalítica. Diferentemente das psicologias, a
psicanálise não tem como objeto de estudo o indivíduo, sua consciência e o seu comportamento. A teoria
psicanalítica, inventada por Sigmund Freud no início do século XX, versa sobre o inconsciente, sobre a
hipótese de um aparelho psíquico dividido em diferentes instâncias. Para Freud, inconsciente não é o simples
contrário da consciência, mas um sistema de representações (inscrições) dinâmicas, latentes e ativas que
determinam a própria vida psíquica. Ou seja, as noções centrais das teorias psicanalíticas são radicalmente
contrárias à ideia psicológica de um indivíduo humano senhor de sua consciência e de seu comportamento.
Além disso, nossa referência psicanalítica considera o importante "retorno à Freud" realizado por
Jaques Lacan. É a partir de uma leitura lacaniana da psicanálise que trabalhamos com o operador "sujeito do
desejo" e com a ideia de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
Nesta perspectiva, o infantil é entendido de um modo bastante diverso das psicologias. No início dos
escritos psicanalíticos, Freud também relacionou o termo infantil aos atributos das crianças e àquilo que
seria próprio da infância, mas no posterior desdobramento da teoria, distanciou-se de ideias possivelmente
desenvolvimentistas e passou a entender o infantil como sendo as inscrições que marcam o psiquismo desde
muito cedo (e não mais como um qualificativo relativo aos pequenos). Tais inscrições, ativas no "núcleo" do
inconsciente, insistiriam ao longo de toda a vida psíquica, sem serem jamais suplantadas por meio de
desenvolvimentos quaisquer.
A seguinte explanação de Joel Birman pode nos ajudar a precisar melhor o sentido que
o infantil adquire na psicanálise: "Assim, se ao longo dos escritos inaugurais de Freud, publicados na última
década do século XIX, a infância já era uma referência constante para dar conta das neuroses e das demais
perturbações psíquicas, foi sem dúvida com a publicação de A interpretação dos sonhos [1900] e dos Três
ensaios sobre a teoria sexual [1905] que a tese em pauta ganhou mais fôlego e consistência. Contudo é
preciso considerar que neste novo patamar teórico do discurso freudiano, que se identifica como a
constituição da psicanálise no sentido estrito, se enunciou um paradoxo. Este revela a oposição entre os
registros da infância e do infantil, assim como, o deslocamento de Freud de uma indagação do primeiro para
o segundo. [...]. Nesta perspectiva, a infância foi remanejada na sua significação, pois se deslocou do registro
genético e cronológico para o funcionamento psíquico. Foi aqui que se constituiu propriamente o conceito
de infantil, marcando sua diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim um infantil no
psiquismo que seria irredutível a qualquer dimensão cronológica e evolutiva. Vale dizer, foi pressuposta a
existência de um infantil que não se dissolveria na infância cronológica do sujeito" (1997).
De outra forma, mas apontando para a mesma problemática, Bernardo Tanis faz o seguinte
questionamento: "Como compreender o infantil em seu estatuto psicanalítico? Trata-se de uma
interiorização ponto por ponto da infância? Ou serão fases de desenvolvimento preestabelecidas que
obedecem a uma ordem cronológica que, se não satisfeita, desencadeia as patologias como falhas no
desenvolvimento? Ou, como dissemos anteriormente, seguindo um modelo freudiano, o infantil só poderá
ser compreendido se estudarmos os modos singulares de o sujeito se constituir em relação a uma memória
e uma temporalidade que obedecem a uma causalidade não-linear de composição?" (1995).
Concordando com a segunda alternativa apontada por Tanis, podemos dizer que a psicanálise não
entende o infantil como um germe do adulto, ou seja, como aquilo que se desenvolveria gradativa e
linearmente na direção de uma suposta forma ideal de homem, conforme a concepção veiculada pelo
discurso psicológico já mencionado. Para a psicanálise, o infantil é um conceito da classe dos substantivos,
e não dos adjetivos. O infantil psicanalítico tem presença constante na fantasmática e nos sintomas do
sujeito do desejo, seja ele pequeno ou grande, isto é, mais novo ou mais velho. Isso não significa dizer que a
passagem do tempo seja considerada sem efeitos, mas julgamos que estes efeitos estariam ligados,
sobretudo, à força das narrativas que se constroem ao longo do devir temporal. Ou seja, efeitos ligados à
história elaborada sobre si pelo sujeito do inconsciente. História, novela, tecida pelo sujeito na tentativa de
simbolizar, de apreender as inscrições psíquicas infantis que o marcam e às quais ele não tem acesso.

Implicações
Como vimos, uma vez entendido como adjetivo, o infantil psicológico é tudo aquilo que deve ser
superado em direção a um estágio mais desenvolvido. O ponto de chegada, ou seja, o estágio desenvolvido,
está definido a priori por muitos manuais de psicologia genética que se encontram à disposição dos
educadores e terapeutas, ou por versões menos acadêmicas e precisas, encontradas em revistas para pais
ou em diretrizes para a prática docente. Nestes veículos, o discurso de tom psicológico prevê o destino
desenvolvido dos pequenos, amarrando-os a determinadas rotas de crescimento.
Por outro lado, entendido como substantivo, o infantil psicanalítico é o núcleo do inconsciente. Não
há possibilidades de superação deste infantil, não há possibilidades de anulação ou controle dos seus efeitos.
Mas são justamente as inscrições que insistem no psiquismo do sujeito que permitem que ele engendre uma
narrativa particular e singular para sua vida.
Para explicitar melhor a tamanha distinção entre estes dois entendimentos do infantil e suas
implicações, utilizaremos aqui uma explicação feita por Marilena Chauí que problematiza as noções de
progresso e desenvolvimento de forma a mostrar que o que está por traz deste tipo de concepção é
justamente a tentativa de impedir o acontecimento da história, através da imposição escamoteada de um
destino.
Nas palavras de Chauí: "Talvez uma das formas mais extraordinárias pela qual a ideologia neutraliza o
perigo da história esteja em uma imagem que costumamos considerar como sendo a própria história ou a
essência da história: a noção de progresso. Contrariamente ao que poderíamos pensar, essa noção tem em
sua base o pressuposto de um desenvolvimento temporal de algo que já existira desde o início como germe
ou larva, de tal modo que a história não é transformação e criação, mas explicitação de algo idêntico que vai
apenas crescendo com o decorrer do tempo. Outra noção que visa escamotear a história sob a aparência de
assumi-la é a noção de desenvolvimento. Nesta, pressupõe-se um ponto fixo, idêntico e perfeito, que é o
ponto terminal de alguma realidade e ao qual ela deverá chegar normativamente. O progresso, colocando a
larva, e o desenvolvimento, colocando a "boa forma" final, retiram da história aquilo que a constitui como
história, isto é, o inédito e a criação necessária de seu próprio tempo e tê-los. Colocando algo antes do
processo (o germe) ou depois do processo (o desenvolvido), a ideologia tem sérios compromissos com os
autoritarismos, uma vez que a história de uma sociedade passa a ser regida por algo que ela deve realizar a
qualquer preço. Passa-se da história ao destino" (1980).
Fazendo uma analogia com o pensamento de Chauí sobre a sociedade, podemos dizer que a (psico)
lógica desenvolvimentista acaba estabelecendo um destino para as crianças (o de adulto plenamente
desenvolvido), na tentativa (escamoteada pela suposta naturalidade do desenvolvimento) de controlar e
prever seu crescimento de acordo com uma rota predefinida, afastando a possibilidade de que cada um
componha sua história singular. Ou seja, que cada sujeito viva as suas vicissitudes. E é precisamente aqui
que marcamos uma diferenciação da perspectiva psicológica com a psicanalítica.
A aplicação do entendimento do infantil psicológico à educação tem como consequência a instituição
e a padronização de etapas a serem vividas pelas crianças rumo a um destino ortopedicamente previsto.
Mais ainda, tem como consequência a determinação e a delimitação da ação do adulto em relação às
crianças: os grandes devem apenas colaborar para que as pequenos cumpram seus destinos supostamente
naturais. E o que acontece com aqueles que escapam, que desviam da rota? Certamente devem ser
reinseridos, ou, como se costuma dizer atualmente, devem ser incluídos, (muitas vezes a qualquer custo)
nas "classes regulares".
Por outro lado, sem pretender que suas teorias sejam aplicadas às práticas educativas, o que a
psicanálise pode apontar é que o infantil é da ordem da singularidade e não é passível de manejo, de
controle, fora da situação analítica. A psicanálise permite então que façamos um importante alerta ético a
educação: alerta contra as tentativas ideológicas da (psico) pedagogia de estabelecer rotas e destinos para
a vida dos jovens e pequenos seres humanos com os quais nos deparamos em nossos lares, nas escolas e
nos consultórios.
Referências bibliográficas:
BIRMAN, Joel. (1997). Além daquele beijo!? – Sobre o infantil e o originário em psicanálise. In: Santa
Roza, Elisa. Da análise na infância ao infantil na análise; prefácio de Joel Birman (pp. 7-37). Rio de Janeiro:
Contracapa Livraria, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de
Educação Fundamental, 1998. Volume 1: Introdução.
CHAUI. Marilena. (1980) Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. 10ª edição. São
Paulo: Cortez, 2003.
SEU FILHO E VOCÊ, Rio de Janeiro, K Editores, ano 2, nº 23, março de 2003.
TANIS, Bernardo. (1995) Memória e Temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo.

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