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Ex Corde 1

No último período de carnaval, durante um retiro promovido por nossa igreja, contamos
com a participação de dois preletores. Um deles foi o jovem colega Pr. Juan de Paula, que
nos trouxe uma mensagem sobre “O Sofrimento em John Bunyan”. Entendendo que aquela
mensagem poderia ser de interesse para mais pessoas, solicitei do pregador a autorização
para publicá-la aqui. Adaptou-se o conteúdo da mensagem ao formato de um artigo, e, com
ligeiras revisões, apresento-o com satisfação ao leitor.

Gilson Santos
Março/2007

O SOFRIMENTO EM JOHN BUNYAN

Juan de Paula

“Contudo, já em nós mesmos, tivemos a sentença de morte, para que não confiemos em nós
e sim no Deus que ressuscita os mortos” (2 Co 1.9).

Para que não confiemos em nós e sim em Deus. O entendimento do versículo acima foi
fundamental e encorajador para John Bunyan (1628-1688) em sua peregrinação e
sofrimento. E o sofrimento em Bunyan é o tema deste artigo,
o qual será dividido em cinco partes, sendo elas:
1 – Introdução ao tema e contexto histórico
2 – Uma breve biografia de John Bunyan
3 – Um breve apanhado do pensamento de Bunyan
4 – O sofrimento em John Bunyan
5 – Aplicações do sofrimento de Bunyan para nossa
peregrinação cristã, como indivíduos crentes em Cristo Jesus
e como igreja e comunidade cristã
Em maior ou menor grau, o sofrimento por causa de seguir e
testemunhar de Cristo tem atingido a vida dos discípulos de
Cristo em todas as épocas e em todos os lugares. O
sofrimento é algo que faz parte da vida e é compatível com o
Novo Testamento. Livros como os de Jó e do profeta
Habacuque mostram como o povo da aliança deve se portar
diante do sofrimento. Na história da igreja também não foi diferente. Mártires e servos de

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Ex Corde 2

Deus deixaram um exemplo e legado sobre como enfrentar e encarar o sofrimento de forma
que o nome de Deus seja glorificado. Não numa perspectiva de auto-piedade diante do
sofrimento, mas entendendo-o como um mecanismo para que Deus seja glorificado em
nossas vidas, em nossas lutas, aflições e dores. Assim foi com John Bunyan, latoeiro de
origem humilde e pregador puritano de uma igreja batista no século XVII, conhecido pelo
livro de sua autoria, O Peregrino. Não sei se alguém dentre os leitores já foi preso por pregar
o evangelho, já teve alguma filha nascida cega, já foi ameaçado de morte por causa da
pregação. Provavelmente alguns já perderam um ente querido, sofreram acidentes ou algum
outro acontecimento que tenha causado dor e aflição em sua vida. Minha oração é que Deus
abençoe você, sustentando-o(a) e encorajando-o(a), através do legado que foi deixado por
Bunyan.

John Bunyan

Era um período turbulento na Inglaterra do século XVII. Eclodiram controvérsias em torno da


monarquia e da liturgia da Igreja estatal, em questões de cerimônias e trajes clericais,
resquícios da Igreja Católica. Elizabeth, Tiago I e Carlos I (este coroado rei em 1625) sempre
foram avessos aos Puritanos. De 1645 a 1649 houve a guerra civil e a cavalaria puritana
estava sob a liderança de Oliver Cromwell, e vencida a guerra com a morte de Carlos I, o
parlamento e a república são instalados. Dois anos depois da morte de Cromwell, Carlos II
ascende ao trono em 1660 e a monarquia é restaurada. Em 1662 mais de dois mil pastores
puritanos foram desligados de suas igrejas e quem não fosse anglicano não poderia colar
grau nas melhores universidades.
Dentro dessa confusão nasce John Bunyan, em novembro de 1628, em Elstow, Bedford,
Inglaterra. Ele era filho de um latoeiro pobre, que pôde oferecer apenas a educação primária
e básica ao seu filho. Quando jovem, Bunyan levou um estilo de vida promíscuo, mundano e
blasfemador. Entre 1644 e 1647 serviu no exército parlamentar liderado por Oliver
Cromwell, na guerra contra Carlos I. Casou-se em 1649. Sua esposa teve pais piedosos, e
através dela Bunyan começou a ter contato com o evangelho. Após vários anos, ele
encontrou três ou quatro senhoras sentadas ao sol numa tarde, conversando sobre o novo
nascimento. Estas senhoras o apresentaram ao Pastor John Gifford e à sua congregação. Ao
que tudo indica, ali Bunyan encontrou a paz que excede a todo entendimento. Esse pastor
havia sido médico charlatão no exército, mas experimentara uma conversão dramática.
Após sua regeneração e maravilhosas experiências com a paz de Deus, Bunyan escreveu em
sua autobiografia, “Graça abundante ao principal dos pecadores”, ainda não publicada em
português:
Um dia, quando passava pelo campo (...), essa sentença caiu sobre a minha alma: Tua
justiça está no céu. E parece-me, com isso, que eu via com os olhos da minha alma a
Jesus Cristo à direita de Deus; ali, afirmo, estava a minha justiça; assim, onde quer
que estivesse e o que estivesse fazendo, Deus não podia dizer de mim, “falta-lhe a
minha justiça”, pois esta estava bem em frente dEle. Também vi, além disso, que não
era a boa disposição do meu coração que tornava a minha justiça melhor, nem ainda
a sua má disposição que a tornava pior, pois a minha justiça era o próprio Jesus

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Ex Corde 3

Cristo. (...) Agora as minhas cadeias realmente caíram de minhas pernas. Fui liberto
das minhas aflições e correntes (...). Agora pude, também, ir para casa, regozijando-
me pela graça e o amor de Deus.1
De sua primeira união conjugal nasceram quatro filhos, sendo Mary, a primogênita, cega de
nascimento. Sua esposa faleceu em 1655 e alguns anos depois, em 1659, Bunyan casou-se
pela segunda vez com Elizabeth, que cuidou de seus quatro filhos.
Resolvidos os conflitos de sua alma, Bunyan começou a exortar a igreja em 1655, e foi
levantado como um grande pregador em Bedford. Sua popularidade como pregador leigo foi
muito grande. Em 1660 foi preso por não ser licenciado para pregar pela Igreja da Inglaterra
e por não se adequar aos padrões da liturgia anglicana. Essa prisão causou grande opressão
em sua família e houve um interrogatório com sua esposa. Ela disse que o marido jamais
deixaria de pregar. O próprio Bunyan confirmou isso quando lhe foi oferecida a liberdade em
troca da renúncia à pregação. Disse ele: “Se eu for solto hoje, pregarei amanhã”. Essa sua
determinação custou-lhe doze anos de prisão. Por bondade do carcereiro, Bunyan podia
visitar sua família, porém viveu esse tempo sob tensão de ser penalizado com a morte a
qualquer momento. Nessas visitas, ele mantinha contato com amigos em Londres e
participava das reuniões regulares da igreja em Bedford, sendo eleito seu co-pastor. Porém
quando suas saídas foram descobertas, Bunyan, por iniciativa própria, diminuiu o ritmo de
suas visitas para não prejudicar o trabalho do carcereiro.
Após os doze anos de prisão, ele foi solto por um decreto de Indulgência Religiosa. Logo
depois foi licenciado para pregar como pastor da igreja em Bedford. Um celeiro virou edifício
religioso e ali Bunyan pregou até sua morte. Entre 1675 e 1677 Bunyan foi novamente
encarcerado. Seus biógrafos sugerem que nesse período foi escrito O Peregrino.
Bunyan deixou suas posses para a família, para esta não ser prejudicada. Em agosto de 1688,
ele viajou oitenta quilômetros a cavalo para pregar em Londres, debaixo de forte chuva. Ali
contraiu febre e viajou para a pátria celestial aos sessenta anos de idade. Seu último sermão
fora em 19 de agosto, baseado em João 1.13, e suas últimas palavras em púlpito foram:
“Vivam como filhos de Deus, para que possam olhar a seu Pai no rosto, com segurança, mais
um dia”.

RECORTES DO PENSAMENTO E DA TEOLOGIA DE JOHN BUNYAN

Três obras exerceram grande influência sobre o pensamento de John Bunyan. A primeira foi
o comentário de Martinho Lutero à Epístola aos Gálatas; os outros dois livros foram O
caminho do céu para o homem simples e a Prática da piedade.
Além de pastor de ovelhas e fervoroso pregador, Bunyan foi um profícuo escritor. Antes da
primeira prisão já havia escrito dois livros. Durante seu aprisionamento escreveu algumas
obras, sendo elas: Oração no Espírito, A Ressurreição da Cidade Santa, Graça Abundante ao
Principal dos Pecadores (autobiografia), O Peregrino, Defesa da doutrina da justificação, e
Contra o Bispo Fowler. Além desses, também são conhecidos: A Peregrina e A Guerra Santa.
Segundo alguns biógrafos e estudiosos, Bunyan foi influente na formação da Confissão de Fé

1
BUNYAN, John. Grace Abounding to the Chief of Sinners. Cf online:
http://www3.calvarychapel.com/library/Bunyan-John/GraceAbounding/0.htm

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Ex Corde 4

Batista de 1677, que resultou de influência e aprimoração da Confissão de Fé de


Westminster, e que se tornou conhecida como a Confissão de Fé de 1689, visto que nessa
ocasião foi subscrita por representantes de mais de cem igrejas batistas.2
Segundo D. Martin Lloyd-Jones, o principal interesse de Bunyan eram as almas, e este
interesse era a mola propulsora de toda a sua atividade.3 Devido as suas experiências de
tormento interno, tornou-se um pastor devoto e interessado nas almas de seus fiéis. Além
disso, tinha ele um conceito de fé e crença não somente cognitivo, numa apreensão
intelectual apenas, mas que também aquecesse o coração com poder causando mudança de
vida.
Bunyan tinha um interesse enorme pela doutrina da justificação, influenciado talvez pela
leitura do Comentário da Epístola aos Gálatas, pelo reformador Martinho Lutero. Podemos
ouvir a voz do interesse de Bunyan nessa doutrina quando lemos o que a Confissão de 1689
diz sobre ela, em seu capítulo 11, seção 1:
Aqueles a quem Deus chama eficazmente, Ele também os justifica, gratuitamente;
não por infundir-lhes justiça, mas perdoando-lhes os pecados, considerando-os e
aceitando-os como pessoas justas; não por coisa alguma realizada neles ou por eles
mesmos feita, mas unicamente por consideração a Cristo; não por imputar-lhes como
justiça a fé, o ato de crer, ou qualquer outra obediência evangélica, mas por imputar-
lhes a obediência ativa de Cristo (a toda a lei) e sua obediência passiva (na morte),
como total e única justiça deles, que recebem a Cristo e nEle descansam, pela fé. E
esta fé, não a tem de si mesmos, é Dom de Deus.4
Bunyan se envolveu também em controvérsias. Uma delas foi em relação aos batistas
particulares restritos. Esse grupo era reformado em sua soteriologia (doutrina da salvação),
negando, porém, a comunhão a outras denominações. Bunyan também era ligado a uma
igreja batista particular, sendo, portanto, calvinista – prova disso foi um folheto publicado
em 1674 chamado Reprovação Assegurada.5 Porém, ele era “aberto” quanto a comunhão
com presbiterianos, anglicanos e congregacionais, assim como com todo que cresse na
doutrina da justificação da maneira ensinada nas Escrituras. Ele cria no batismo conforme os
distintivos batistas, mas não via nisso um impedimento para comunhão com outras
denominações. Sua luta era pela fé cristã em sua essência, assim como Richard Baxter que
uma vez disse: “Nas coisas essenciais, unidade; nas não essenciais, liberdade; e em todas as
coisas, caridade”. Esse também era o espírito da batalha de Bunyan.
Bunyan também militou contra os Quacres, grupo que acreditava no cristianismo apenas
como uma luz interior, tendendo para o misticismo. Ele argumentava que as certezas
históricas são essenciais à fé cristã. Não é fé verdadeira aquela que não puder descansar
nessas verdades essenciais.

2
Cf. online: http://www.crbb.org.br/confissao_sem_transcricao_textos_prova.pdf. Para uma
consideração histórica do tema, cf: SANTOS, Gilson. A Confissão de Fé Batista de 1689. Online:
http://www.crbb.org.br/gilson4.pdf
3
LLOYD-JONES, D. M. Os Puritanos; suas origens e sucessores. São Paulo: Publicações Evangélicas
Selecionadas, 1993, pp. 395-425.
4
FÉ PARA HOJE; Confissão de Fé Batista de 1689. São José dos Campos (SP): Editora Fiel,1991,
64p.
5
Cf. BUNYAN, John. Reprobation Asserted. Online:
http://www.reformed.org/master/index.html?mainframe=/books/bunyan/reprobation/

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Ex Corde 5

Alguns heróis na fé expressaram honra a Bunyan:


• John Burton, que prefaciou a primeira obra Bunyan em 1656, disse em sua defesa:
“Este homem não foi escolhido de uma universidade secular, mas de uma
universidade celestial, a Igreja de Cristo”.
• John Owen, um dos maiores teólogos da época, congregacional, ao ser indagado pelo
Rei Carlos II sobre o fato de um latoeiro inculto pregar, respondeu: “Pudesse eu
possuir as habilidades do latoeiro para pregar, e, se apraz a sua majestade,
alegremente renunciaria a todo meu estudo”.
• George Whitefield, grande pregador puritano, disse sobre a obra O Peregrino: “Tem
cheiro de prisão”. E prossegue: “Foi escrito quando o autor estava confinado na
cadeia de Bedford. E os ministros nunca pregam ou escrevem tão bem como quando
estão debaixo da Cruz: o Espírito de Cristo e da Glória repousa sobre eles.”
• Charles Haddon Spurgeon, o batista “príncipe dos pregadores”, que lia O Peregrino
uma vez por ano, disse acerca de Bunyan: “Fure-o em qualquer parte; e você verá
que o sangue dele é biblino, a própria essência da Bíblia flui dele. Ele não consegue
falar sem citar um texto, pois sua alma está cheia da Palavra de Deus.”

O SOFRIMENTO EM JOHN BUNYAN

Aqui chegamos ao ponto principal deste artigo, isto é, o efeito do sofrimento na vida e
peregrinação de John Bunyan.
Como dissemos anteriormente na parte biográfica, Bunyan foi preso durante doze anos por
pregar o evangelho sem ser licenciado pela Igreja da Inglaterra. Além se ser um latoeiro
pobre e sem muita instrução formal, sua primeira filha Mary era cega de nascença. Ainda
que na prisão desfrutasse de certa liberdade de congregar e visitar sua família, Bunyan vivia
sob tensão de condenação à morte todo o tempo. Ele às vezes ficava atormentado por uma
dúvida de ter tomado a decisão certa e deixado sua família em fortes dificuldades
econômicas e passando necessidades.
O pastor batista norte-americano John Piper ilustra cinco efeitos do sofrimento na vida de
John Bunyan e pediremos ajuda a ele neste momento:6
Em primeiro lugar, o sofrimento de Bunyan confirmou o seu chamado como escritor para a
igreja aflita.
Como prisioneiro, assim como o apóstolo Paulo escreveu algumas epístolas nessa condição,
Bunyan dedicou seu tempo no cárcere aos escritos. Livros foram o seu maior legado a Igreja
e ao mundo. Os escritos de Bunyan eram uma extensão, um braço de seu ministério
pastoral, dirigido principalmente as ovelhas de Bedford, que viviam em constante perigo de
assédio e prisão.
Podemos ouvir e sentir o sofrimento de Bunyan quando lemos trechos d´O Peregrino.7 No

6
PIPER, John. O Sorriso Escondido de Deus. São Paulo: Shedd Publicações & Edições Vida Nova,
2002, 192p.
7
BUNYAN, John. O Peregrino; com notas de estudo e ilustrações. São José dos Campos (SP):
Editora Fiel, 2005, 263p.

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Ex Corde 6

capítulo 9, Cristão sobe ao Monte da Dificuldade que representava as circunstâncias que


exigem renúncia e esforço especial. Depois de beber um pouco de água na fonte, Cristão
começou a subir dizendo:
Este monte, embora alto, anelo subir,
A dificuldade não me ofenderá,
Percebo que este é o caminho certo à vida.
Anima-te meu coração,
Não desanimemos nem temamos.
Embora difícil, é melhor o caminho certo seguir
Do que o caminho errado, embora fácil,
Cujo fim é a maldição.
No capítulo 12, Cristão vence a travessia do Vale da Sombra da Morte, que tinha o propósito
de descrever uma passagem por aflições íntimas. Depois do diálogo com dois homens,
Cristão prosseguia com a espada desembainhada temendo assalto. Assim, Bunyan narra o
sonho: “Também, nesse mesmo vale o caminho era muitíssimo estreito; por isso, o bom
Cristão sentiu-se desafiado ainda mais. Pois, ao procurar no escuro evitar a vala, à direita,
estava sujeito a se desequilibrar e cair no lamaçal, à esquerda. E, quando procurava com
muito cuidado escapar do lamaçal, estava prestes a cair na vala. Assim, prosseguiu”.
Em segundo lugar, o sofrimento de Bunyan aumentou o seu amor pelo rebanho e deu ao
seu trabalho pastoral percepções da eternidade.
Ele pregava como quem sentia dores de parto pelos seus filhos espirituais. Isso é muito claro
n´O Peregrino, com a trajetória de Cristão rumo à Cidade Celestial. Assim como o sofrimento
o fazia perceber que era um peregrino na terra, Bunyan buscava transmitir isso ao seu
rebanho em Bedford. Debaixo de sua pregação, várias congregações foram fundadas e sua
igreja tinha, talvez, cento e vinte membros. Ele amava o que fazia e amava intensamente o
seu trabalho. Isso fazia com que ele passasse o gosto da eternidade para seu rebanho.
Em terceiro lugar, o sofrimento de Bunyan o fez entender que seguir a Jesus Cristo significa
ir contra o vento e remar contra a maré.
Em vários de seus sermões e escritos ele sempre deixou isso claro. No capítulo 15 d´O
Peregrino, Cristão encontra o personagem Sr. Interesse-Próprio e em um diálogo conflitante,
Cristão expõe a Interesse-Próprio o preço do discipulado: “Se quiser ir conosco, terá de se
posicionar contra o vento e contra a maré, todavia, percebo que isto é contrário à sua
opinião. Também deve confessar a religião, tanto em seus trapos quanto em sapato de
prata; e defendê-la, quer esteja ela presa em algemas, quer esteja caminhando nas ruas com
aplausos”.
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi um teólogo e pastor luterano que resistiu ao nazismo na
Segunda Guerra Mundial. Ele teve cassado seu direito de pregar e ensinar, sendo preso em
1945, e depois morto uma semana antes da guerra acabar. Ainda que sob uma teologia às
vezes controvertida, Bonhoeffer escreve um livro, Discipulado, na pele de quem viveu
seguindo contra o vento e a maré. Acerca do preço de ser discípulo de Cristo, ele diz o
seguinte:
O discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza

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Ex Corde 7

completa (i.é, na verdade para a absoluta segurança e proteção da comunhão com


Jesus); de uma situação previsível e calculável (i.é, de uma situação totalmente
imprevisível) para dentro do imprevisível e fortuito (na verdade, para dentro do que
é unicamente necessário e previsível); do domínio das possibilidades finitas (i.é, na
realidade, as possibilidades infinitas) para o domínio das possibilidades infinitas (i.é,
para a única realidade libertadora). (...) A chamada ao discipulado é, no entanto,
comprometimento exclusivo com a pessoa de Jesus Cristo.8
Antes de sua morte, perguntaram a Bonhoeffer se era o fim, e ele respondeu: “Não é o fim,
é apenas o começo”. Isso ilustra que nossa confissão de fé deve ser acompanhada de nossa
prática de vida, custe o que custar, assim como foi com Bonhoeffer e com Bunyan.
Em quarto lugar, o sofrimento de Bunyan fortaleceu a sua certeza de que Deus é soberano
sobre todas as aflições dos seus, e lhes dá a certeza da segurança.
Aqui John Piper escreve:
Sempre houve, como há hoje, pessoas que tentam resolver o problema do
sofrimento, negando a soberania de Deus – isto é, o governo providencial de Deus
sobre Satanás, a natureza e o coração do homem. Porém, é notável que muitos dos
que defendem a doutrina da soberania de Deus sobre o sofrimento têm sido os que
mais sofreram, e os que mais encontraram nesta doutrina o maior conforto e ajuda.9
Neste ponto, recorrendo à experiência de Bunyan, Piper contesta a heresia do chamado
“Teísmo Aberto” ou “Teísmo relacional”. Este ensinamento, de um modo geral, defende que
Deus abriu mão da sua soberania por amor, a fim de se relacionar com seres humanos,
sendo então incapaz de prevenir desastres sociais e pessoais, como, por exemplo, os
Tsunamis no sudeste da Ásia. Esses ensinamentos têm sido divulgados por teólogos como
John Sanders e Clark Pinnock (um ex-calvinista) nos Estados Unidos, e aqui no Brasil os
expoentes dessa doutrina são os pastores Ricardo Gondim e Ed René Kivitz, ambos da capital
paulista. Esses ensinamentos têm sido veementemente combatidos por pastores e teólogos
conservadores. Em meu blog também expus uma breve crítica a esses ensinamentos de um
ponto de vista prático:
Ao final de sua vida, o famoso pregador batista reformado Charles Spurgeon, lidando
com os adeptos do método histórico-crítico que abriram mão da inerrância das
Escrituras, disse que a teologia deles nada tem a dizer a uma pessoa no leito de
morte, visto que os expoentes de tal teologia não crêem no ato sobrenatural de Deus
revelado na Bíblia. Digo o mesmo do teísmo aberto. Negar a soberania de Deus é
atribuir os fatos ao acaso, e tornar Deus um espectador. Crendo na Bíblia como
revelação não dá. Escrevendo pastoralmente, não dá para aconselhar abrindo mão
da soberania de Deus. Creio que, tanto na visitação como no aconselhamento
pastoral, a crença na soberania de Deus é extremamente confortadora e
consoladora, seja qual for a dor experimentada pelo indivíduo. O sofrimento é
conseqüência do pecado original, assim como a morte o é. Porém, a graça de Deus
revelada em Cristo mostra o amor dEle por nós. E através dessa graça, quem está
sofrendo encontra acolhimento nos braços do Pai. Deus tem seus propósitos no

8
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo (RS): Editora Sinodal, 1984, 196p.
9
PIPER, op. cit.

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Ex Corde 8

sofrimento! É só ler o livro de Jó (que creio ser um acontecimento espaço-temporal);


é só ler a Bíblia, crendo com a mente e com o coração, em oração. O acaso não tem a
última palavra! Deus tem a ver com o sofrimento e tem um propósito para ele.
Não estou escrevendo isso da torre de marfim, mas escrevo como quem já enfrentou
pesados abismos no sofrimento com perda dos pais quando criança. E como
encontrei paz e alegria em Cristo ao saber que não merecia nada, e que fui agraciado
em haver sido Cristo revelado a mim pelo Pai (Jo 6.44-45); em saber que, em tudo,
Deus guiou minha vida, controlou, protegeu e livrou. A crença na providência de Deus
se torna a cada dia mais forte e mais firme quando passamos experiências com o
sofrimento. A pergunta não seria “porque” mas “para que” isso aconteceu”?”10
Em quinto e último lugar, o sofrimento de Bunyan aprofundou nele a confiança na Bíblia
como Palavra de Deus, para sua perseverança.
Na prisão, Bunyan percebeu como a Palavra de Deus lhe transmitia conforto e consolo. Ela é
a chave da nossa perseverança!
Em nossos dias as Escrituras são reputadas como insuficientes em diversas áreas. Em
academias teológicas elas têm sido consideradas apenas relatos mitológicos, ou, como ouvi
de uma professora de Antigo Testamento, “um panfleto javista”. No aconselhamento cristão
e pastoral, têm sido substituídas pela psicologia humanista e por pressupostos freudianos,
num modelo integracionista. Porém, isso causa desastres no aconselhamento! Bunyan nunca
andaria de mãos dadas com Freud! A Escritura é suficiente no aconselhamento cristão. No
neopentecostalismo a Escritura tem sido substituída pelo misticismo de várias espécies,
como a religiosidade afro-brasileira com linguagem cristã, êxtases e outras experiências, e
por uma teologia da prosperidade, que abomina o tipo de sofrimento que estamos expondo
aqui, ou uma linguagem da moda e um estilo de culto como “show” para atrair pessoas.
Uma vida cristã perseverante frente às dificuldades existentes só é possível mediante a graça
de Deus através das Escrituras, como chave da perseverança.

APLICAÇÕES E CONCLUSÃO

Para terminar, algumas aplicações do sofrimento de Bunyan, para nossas vidas e nossas
igrejas, e a conclusão final.
Devemos aprender com o sofrimento de Bunyan a amar o céu!
A esperança cristã, como enfatizada na Primeira Epístola de Pedro, nos ajudará junto ao
sofrimento, com dor sim, mas suportando e dando graças a Deus pela perseverança.
Amados, amemos o céu, amemos a eternidade! Tudo isso aqui é passageiro, e a vida é
apenas um hall de espera. Deus tem algo muito maior preparado para nós.
Devemos aprender com o sofrimento de Bunyan a resistir com firmeza no sofrimento.
O apóstolo Pedro nos diz: “Resisti-lhe firme na fé, certos de que sofrimentos iguais aos
vossos estão-se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo. Ora, o Deus de toda
graça, que em Cristo vos chamou à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco,

10
Blog Sola Scriptura: http://juandepaula.blogspot.com/

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Ex Corde 9

ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar. A Ele seja o domínio pelos
séculos dos séculos. Amém” (1 Pd 5. 9-11). Tiago igualmente nos exorta quanto a provação:
“Meus irmãos, tende por motivo de grande gozo o passardes por várias provações, sabendo
que a aprovação da vossa fé produz a perseverança; e a perseverança tenha a sua obra
perfeita, para que sejais perfeitos e completos, não faltando em coisa alguma” (Tg 1.2-4).
Irmãos e irmãs, sejam quais forem os seus sofrimentos, lembrem-se que vocês são crentes
em Cristo Jesus! Fiquem firmes com Deus!
Devemos aprender com o sofrimento de Bunyan a meditar mais em nossa liberdade.
O Brasil é um país livre em relação à crença religiosa. Podemos cultuar, adorar a Deus
livremente, e professar nossa fé em qualquer lugar. Às vezes essa liberdade pode causar um
relaxamento em nossa adoração e peregrinação cristã. Devemos agradecer a Deus pela
liberdade, mas também sermos vigilantes em relação a ela. Uma implicância aqui e acolá em
nosso lar, local de trabalho, faculdade, escola ou qualquer outro ambiente em convivência
com não-crentes, não se compara ao que Bunyan e outros passaram na prisão. Também não
devemos dar lugar ao pecado em nossa vida por causa dessa liberdade. A prisão fez de
Bunyan um homem santo! “Porque eu sou o SENHOR vosso Deus; portanto santificai-vos, e
sede santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44a). Seja qual for o pecado contra o qual você
estiver lutando, prossiga lutando com Deus para abandoná-lo.
Para concluir, peço licença para compartilhar uma experiência pessoal. Quando infante perdi
meus pais e outros entes queridos próximos, o que gerou dificuldades várias em minha vida,
sejam de ordem emocional, física ou econômica. Na adolescência sempre achei que isso era
motivo justificado para atos de delinqüência juvenil e promiscuidade, numa espécie de auto-
piedade e auto-justificação. Aos vinte anos, quando encontrei paz em Cristo, após um ano e
meio de tormentos, e lendo o livro de Jó, parei de perguntar o porquê, e passei a entender
para que tudo aquilo aconteceu. É certo que em minha peregrinação cristã enfrentei vários
tipos de desordem também. Encontrei em Bunyan alguém que entendeu o propósito do
sofrimento e pagou o preço por isso. Assim, seja qual for a sua luta, que esse estudo
abençoe sua vida assim como abençoou a minha. Essa foi a minha oração! Que Deus o(a)
sustente, encoraje, e faça-o(a) perseverar. Que Ele lhe conceda a segurança de Cristo, frente
a qualquer sofrimento que você passou, está passando ou ainda irá passar. Que o Senhor
abençoe sua vida!

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