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Flannery O Connor Um Diario de Preces PDF
Flannery O Connor Um Diario de Preces PDF
Georgia, em 1925.
Católica devota, viveu a maior parte da sua vida
numa quinta em Milledgeville, onde fazia criação
de pavões e escrevia.
Foi autora de dois romances, Sangue Sábio e
O Céu É dos Violentos, e trinta e um contos, além de
inúmeras críticas e ensaios.
�ando morreu, aos 39 anos, a América perdeu
uma das suas maiores escritoras, no auge da sua
capacidade criativa.
Os seus contos completos, publicados postuma
mente em 1971, foram galardoados com o
National Book Award de ficção.
Últimos Títulos Nesta Coleção:
ISBN 978-989-641-433-7
Um Diário de Preces
Prefácio de
Pedro Mexia
Tradução de
Paulo Faria
Um Diário de Preces 15
Fac-Sírnile 51
Preces Atendidas
10
ção imediatamente visível e significativa da sociedade. Aquilo
que o escritor católico não deve fazer é separar a natureza da
Graça, o facto evidente do seu significado enigmático. Os confli
tos que os romances e contos testemunham e reconstituem, tanto
os internos como os exteriores, são metafísicas mesmo quando
parecem naturalistas ou grotescos. A conhecida categoria a que
se chamou «grotesco sulista» agastava O'Connor,porque parecia
supor que só as vidas sulistas eram bizarras, talvez por causa do
ambiente religioso; ora o «grotesco»,isto é,o paradoxo, o humor
negro, a distorção, cumpriam na literatura uma fanção realista:
identificavam o mal, o fracasso, a falta, o pecado, se quisermos
dizer assim. E faziam-no de uma forma intensa, «exagerada»,
quase revoltante, e por isso insusceptível de indiferença, esse de
feito teologal. O «grotesco» deixava nítido que o «dogma» cris
tão é uma hipótese possível sobre o «mistério» da humanidade.
De modo que quanto mais dogmático mais enigmático, ou seja,
mais verdadeiro.
É extraordinário que o juvenil Um Diário de Preces dê conta
destes debates,bem como de algumas dúvidas,com uma determi
nação precoce. Quando tinha 20 anos e estudava na Universida
de de Iowa, onde frequentava o prestigiado Iowa Writer's
Workshop,O'Connor manteve um diário (Janeiro de 1946-Setembro
de 1947), umas dezenas defolhas manuscritas num austero cader
no pautado. O texto integral fac-similado só viu a luz em 2013,
exumado dos papéis da escritora. Trata-se de um monólogo em
diálogo, um diário em forma de oração, oração em forma de diá
rio,forma hzôrida e em interrogação constante.
O'Connor sentia que as orações tradicionais não lhe serviam,
talvez porque não eram diálogos. «Quem me saiba ensinar a
rezar», escreve ela, enquanto se dirige a Deus com exigências
temperamentais: «make me a mystic, immediatelr>* . É certo que
não há experiências sobrenaturais em Um Diário de Preces, mas
nota-se a conhecida impaciência dos místicos: a diarista queixa
-se de que não sabe amar e de que não conhece a vontade de
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Deus; não aceita uma crença de fundo sentimental; não quer
uma divindade à sua imagem e semelhança; diz que às vezes
mantém a fé apenas por preguiça; declara a sua própria medio
cridade e indignidade; vacila entre a desesperança e a presun
ção; acusa-se de pensamentos eróticos e de ser tão «estúpida»
como as pessoas que ridiculariza; pede que Deus a ajude a ser
uma escritora a sério, e além do mais «santa de um modo inteli
gente»; rasga páginas do diário, que aliás termina com um zan
gado «nada mais resta dizer acerca de mim». É quase o tempe
ramento de uma Teresa de Ávila.
Bernanos e Bloy são dois dos autores católicos citados,católi
cos exigentes, ferozes, de terra queimada. Foi esse catolicismo
que Flannery O'Connor praticou no seu Sul hostil aos papistas,
e sabemos que na altura em que mantinha este diário já estava a
escrever o romance Sangue Sábio (1952). É justamente uma no
ção romanesca como a «suspensão da descrença» que aproxima
a oração da.ficção. Isso e uma «visão do mundo»,a qual depende
sempre de um «conceito de amor». Um amor que em O'Connor é
agreste e contraditório: basta ver como a pós-adolescente, que
nunca terá uma vida amorosa,se refere ao desejo como uma von
tade ou um tormento, e à ausência de desejo como paz, e ao «ac
to sexual» como acto religioso, que, na sua forma agnóstica, é
grotesco.
Aos vintes, esta tão invulgar rapariga procura aquela «con
fiança» que, assegura, é a base de uma vida espiritual. Coisa
difícil,a confiança,sendo a vida «traiçoeira» e «decepcionante».
As orações de Flannery O'Connor estão, como ela explica, entre
a metafísica e a terapêutica. Exprimem adoração, contrição, ac
ção de graças, súplica, mas também testam verdades que hão-de
alimentar a.ficção ainda por escrever: a ideia de que o inferno é
um conceito mais compreensível do que o céu, de que a Graça é
sem porquê, ou de que o pecado é bom porque orienta para a
salvação: «Concede-me a graça de ver a aridez e a indigência
dos lugares onde Tu não és adorado, mas profanado.»
O'Connor imagina-se a dada altura septuagenária e ainda
com dúvidas; mas só viveria até aos 39. Quando regressou à
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Georgia, onde iria escrever livros e cuidar de pavões, teve o pri
meiro ataque de lúpus, doença fatal que, em certos momentos,
quase nos parece uma prece atendida.
Pedro Mexia
13
Um Diário de Preces
[ENTRADAS SEM DATA]
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Meu bo m Deus, fico abismada ante a po rção de co isas pelas
quais devo sentir gratidão , em termo s materiais; e, em termo s
espirituais, tenho a o po rtunidade de ser ainda mais feliz. Po rém,
parece-me evidente que não esto u a traduzir esta o po rtunidade em
facto s palpáveis. Tu dizes, meu bo m Deus, para pedirmo s a graça,
po is no s será dada. Eu peço -a. Co mpreendo que não me basta
pedi-la, que tenho de agir co mo quem a deseja. «Nem to do s o s
que dizem: Senho r, Senho r, mas sim aqueles que fazem a vo ntade
de Meu Pai. » Po r favor, ajuda-me a co nhecer a vo ntade do meu
Pai - não quero um nervosismo escrupulo so , nem sequer co nje
turas negligentes, antes um co nhecimento lúcido , sensato ; e, de
po is disto , dá-me uma vo ntade forte, para ser capaz de a vergar à
vo ntade do Pai.
Po r favor, deixa que o s princípio s cristão s impregnem a minha
escrita, e, po r favo r, faz que haja texto s suficientes da minha lavra
(dado s à estampa) para que o s princípio s cristão s os po ssam im
pregnar. Temo , o h, Senho r, perder a minha fé. A minha mente não
é forte. Deixa-se seduzir po r to do o género de charlatanice inte
lectual. Não quero que seja o medo a fazer-me ir à igreja. Não
quero agir co mo uma co barde, ficando junto de Ti só po rque te
nho medo do Inferno . Devia pensar que, se temo o Inferno , então
po derei estar certa da existência do seu auto r. Os erudito s, po rém,
co nseguem dissecar em meu benefício o s mo tivo s que me levam
a temer o Inferno , e daí extraem a co nclusão de que o Inferno não
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existe. Mas eu acredito no Inferno. Para a minha fraca mente, o
Inferno parece muito mais exequível do que o Céu. Sem dúvida
porque o Inferno é uma coisa de aparência mais terrena. Consigo
imaginar os tormentos dos danados, mas não consigo imaginar as
almas desencamadas suspensas num cristal para toda a eternida
de, a entoar louvores a Deus. É natural que eu não consiga imagi
'
nar isto. Se conseguíssemos cartografar o Céu com rigor, alguns
dos nossos cientistas pro missores começariam logo a traçar pla
nos para o aperfeiçoar, e os burgueses venderiam roteiros, a dez
cêntimos cada exemplar, a todas as pessoas acima dos sessenta e
cinco anos. Mas não pretendo ser espirituo sa, embora, pensando
melhor, pretenda mesmo ser espirituo sa e goste de ser espirituo sa
e queira que me considerem tal. Mas o que mais importa aqui é
que não quero ter medo da exclusão, quero amar a pertença; não
quero acreditar no Inferno , mas sim no Céu. Afirmar isto não me
traz benefício algum. O que importa é o do m da graça. Ajuda-me
a sentir que irei renunciar a tudo o que é terreno para a alcançar.
Não me refiro a to mar-me freira.
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Meu bom Deus, somos tão estúpidos até Tu nos dares qualquer
coisa. Mesmo ao orarmos, és Tu que tens de orar em nós. Gostava
de escrever uma prece bonita, mas falta-me a matéria-prima. Há
em volta de mim um vasto mundo sensível que eu deveria ser
capaz de usar como instrumento em Teu louvor; mas não consigo.
Todavia, num qualquer momento insípido em que eu talvez esteja
a pensar em cera para o soalho ou em ovos de pombo, as primei
ras palavras de uma prece bonita poderão emergir-me do subcons
ciente, levando-me a escrever um texto inflamado. Não sou filó
sofa, caso contrário conseguiria entender estas coisas.
Se eu me conhecesse plenamente, meu bom Deus, se conse
guisse descobrir em mim própria todos os traços pedantes e ego
cêntricos, falhos de sinceridade, o que seria eu, afinal? Mas que
faria eu em relação a estes sentimentos que ora são medo, ora
alegria, que se encontram demasiado fundo para que o meu enten
dimento os alcance? Tenho medo das mãos insidiosas, oh, Senhor,
que buscam às apalpadelas nas trevas da minha alma. Por favor,
sê a minha sentinela contra elas. Por favor, sê a barreira no alto do
desfiladeiro. Será que conservo a minha fé somente por preguiça,
meu bom Deus? Esta, porém, é uma ideia que agradaria a alguém
racional até à medula.
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. Meu bom Deus, não quero que isto seja um exercício metafí
sico, mas sim uma manifestação de louvor a Deus. Provavel
mente, arrisca-se a ser mais terapêutico do que metafísico, com
o elemento do eu subjacente a todos estes pensamentos. As
preces devem ser compostas, parece-me, de adoração, contri
ção, agradecimento e súplica, e eu gostava de perceber o que
consigo fazer com cada um destes elementos sem escrever uma
exegese. É a adoração por Ti, meu bom Deus, que mais me as
susta. Não consigo entender plenamente a glorificação que Te é
devida. Do ponto de vista intelectual, concordo: adoremos a
Deus. Mas poderemos fazê-lo sem sentimentos? Para sentir,
temos de conhecer. E para isto, uma vez que nos é praticamente
impossível alcançar sozinhos esse conhecimento, não plena
mente, é claro, apenas a parcela a que temos acesso, estamos
dependentes de Deus. Estamos dependentes de Deus para a
adoração que Lhe dedicamos, adoração, entenda-se, no sentido
mais profundo do termo. Concede-me a graça, meu bom Deus,
de Te adorar, pois nem sequer isto eu consigo fazer sozinha.
Concede-me a graça de Te adorar com o entusiasmo dos antigos
sacerdotes quando Te sacrificavam um cordeiro. Concede-me a
graça de Te adorar com o assombro que enche os Teus sacerdo
tes quando sacrificam o Cordeiro nos nossos altares. Concede
-me a graça de aguardar com impaciência o momento em que Te
verei cara a cara e de não precisar de outro estímulo senão esse
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para Te adorar. Concede-me a graça, meu bom Deus, de ver a
aridez e a indigência dos lugares onde Tu não és adorado, mas
sim profanado.
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Meu bom Deus, sinto-me tão desanimada em relação à minha
obra. Isto é, há em mim um sentimento de desânimo. Compreendo
que não sei o que compreendo. Por favor, ajuda-me, meu bom
Deus, a ser uma boa escritora e a conseguir que me aceitem mais
textos para publicação. Este desejo está tão distante do que eu
mereço, é claro, que a desfaçatez com que o formulo me deixa
naturalmente estupefacta. Em mim, a contrição é, em grande me
dida, imperfeita. Não sei se alguma vez me arrependi de um pe
cado por, ao cometê-lo, Te ter ofendido. Este género de contrição
é melhor do que nenhuma, mas é egoísta. Para aceder ao outro
género de contrição, é necessário possuir sabedoria, uma fé ex
traordinária. No fim de contas, tudo se reduz à graça, parece-me.
Trata-se de pedir a Deus que nos ajude a arrependermo-nos de O
ter ofendido, repito. Tenho medo da dor, e deduzo que tenhamos
de a sofrer para alcançar a graça. Dá-me coragem para suportar a
dor e assim alcançar a graça, oh, Senhor. Ajuda-me a viver esta
vida que parece tão traiçoeira, tão dececionante.
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Meu bom Deus, esta noite não foi dececionante porque me
deste uma história. Não me deixes alguma vez pensar, meu bom
Deus, que eu fui mais do que o mero instrumento da Tua história
- assim como a máquina de escrever foi o meu. Por favor, meu
bom Deus, permite que o sentido da história, ao cabo das suces
sivas revisões, fique tão claro que não dê azo a quaisquer leituras
falaciosas e vis, porque com esta obra não pretendo denegrir a fé
religiosa seja de quem for, embora, enquanto a ia escrevendo,
não soubesse ao certo o que pretendia alcançar nem o que as
palavras iriam significar. Não sei se possui coerência. Por favor,
não me obrigues a deitá-la fora por, no fim de contas, conter mais
defeitos do que virtudes - ou quaisquer defeitos. Quero trans
mitir com esta história que a bondade humana por vezes transpa
rece através do seu mercantilismo, embora isso não seja culpa do
mercantilismo.
Talvez a ideia seja que o bem consegue transparecer, mesmo
através das coisas reles. Não sei ao certo, mas, meu bom Deus,
quem me dera que tomasses em mãos torná-la uma história sóli
da, porque eu não sei como, do mesmo modo que não sabia como
escrevê-la, mas ela surgiu. Enfim, tudo isto me conduz ao agra
decimento, o terceiro elemento que devemos incluir na oração.
Quando penso em todas as coisas pelas quais devo estar grata,
pergunto a mim mesma porque é que não me matas aqui mesmo,
pois já fizeste tanto por mim e eu não me tenho mostrado espe-
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cialmente agradecida. O meu agradecimento nunca toma a forma
de sacrifício - umas quantas orações que aprendi de cor e desfio
à pressa, sem grande atenção, isso sim. Tudo isto me enche de
asco de mim mesma, mas não me inspira o sentimento pungente
que eu deveria experimentar para Te adorar, para me arrepender
ou para Te agradecer. Talvez o sentimento que não me canso de
implorar seja algo, uma vez mais, egoísta - algo para me ajudar
a sentir que nada há de errado em mim. No entanto, parece-me a
coisa mais natural do mundo, mas talvez esta naturalidade seja
afinal egoísmo. A minha mente é muito insegura, não posso con
fiar nela. Incute-me escrúpulos num momento e, logo a seguir,
deixa-me descuidada. Se me cabe conhecer todas estas coisas
através da mente, oh, Senhor, peço-Te, fortalece-ma. Obrigada,
meu bom Deus, creio que me sinto verdadeiramente grata por
tudo o que fizeste por mim. Quero sentir-me grata. Quero mes
mo. E agradece à minha boa Mãe, que tanto amo, Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro.
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Meu bom Deus, Súplica. Eis o único dos quatro em que sou
exímia. Não é necessária qualquer graça sobrenatural para pedir
mos o que desejamos, e eu pedi-Te sem freio, oh, Senhor. Creio
que está certo pedir-Te e pedir também à nossa Mãe que Te peça,
mas não quero dar demasiada importância a esta vertente das mi
nhas preces. Ajuda-me a pedir-Te, oh, Senhor, aquilo que é me
lhor para mim, aquilo que posso ter e que, tendo, me irá ajudar a
servir-Te melhor.
Tenho andado a ler Kafka, e apercebo-me da dificuldade dele
em alcançar a graça. Mas parece-me que não tem de ser assim
para o católico que possa comungar todos os dias. Monsenhor
disse hoje que era obra da razão, não da emoção - o amor a
Deus. A emoção serviria de auxílio. Dei-me conta, da última vez,
de que seria um auxílio egoísta. Oh, meu bom Deus, a razão é
muito árida. Creio que a minha é também preguiçosa. Mas quero
aproximar-me de Ti. No entanto, parece quase um pecado sugerir
sequer tal coisa. Talvez a comunhão não proporcione a proximi
dade a que me refiro. A proximidade a que me refiro virá depois
da morte, talvez. É aquilo que buscamos a custo, e, se eu a alcan
çasse, ou estaria morta ou tê-la-ia visto durante um breve segun
do, e a vida ser-me-ia insuportável. Nada sei acerca disto, nem do
que quer que seja. Parece pueril da minha parte dizer uma coisa
tão óbvia.
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Meu bom Deus, para não perder o rumo, vou refletir acerca da
Fé, da Esperança e da Caridade. Comecemos pela Fé. Das três, é
a que me causa mais sofrimento mental. Em todas as fases deste
processo educativo, dizem-nos que é uma coisa ridícula, e os ar
gumentos soam tão credíveis que é difícil não lhes cedermos. Os
argumentos talvez não soassem tão credíveis a alguém com uma
mente mais profícua; mas os meus mecanismos mentais são o que
são, e estou sempre no limiar da anuência - é quase uma anuên
cia subconsciente. Pois bem, como hei de eu conservar a minha fé
sem cobardia quando estas condições me influenciam assim? Não
consigo decifrar as profundezas particulares da minha pessoa que
fazem luz sobre isto. Há qualquer coisa no mais recôndito de mim
- é mais fundo do que a anuência subconsciente - que nutre um
determinado sentimento a este respeito. Talvez seja isso o que me
refreia. Meu bom Deus, por favor, faz que seja isso em vez da tal
cobardia que os psicólogos examinariam com tanta avidez e ex
plicariam com tanto desembaraço. E, por favor, não permitas que
seja aquilo a que, tão alegremente, eles chamam compartimentos
estanques. Oh, Senhor, peço-Te, concede às pessoas como eu, que
não têm a inteligência necessária para lidar com isto, peço-Te,
concede-nos uma qualquer arma, não para nos defendermos deles,
mas para nos defendermos de nós próprios depois de eles nos te
rem examinado de fio a pavio. Meu bom Deus, não quero desco
brir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Não
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quero ter criado Deus à minha própria imagem, como tanto se diz
por aí. Por favor, concede-me a graça necessária, oh, Senhor, e faz
que não seja tão difícil de alcançar como Kafka dá a entender.
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Meu bom Deus, no que respeita à esperança, sinto-me um pou
co perdida. É tão fácil dizer que tenho esperança - a língua es
correga por cima destas palavras. Acho que talvez só possamos
compreender a esperança se a pusermos em contraste com a de
sesperança. E eu sou demasiado preguiçosa para desesperar. Por
favor, não me inflijas essa pena, Senhor, eu ficaria tristíssima. A
esperança, porém, é certamente uma coisa diferente da fé. Sem
dar por isso, incluo-a no departamento da fé. Deve ser uma coisa
positiva que eu nunca senti. Deve ser uma força positiva, caso
contrário porquê a distinção entre esperança e fé? Gostava de or
denar as coisas, para me poder sentir espiritualmente coesa. Acho
que não sou capaz de ordenar as coisas. Mas todos os meus pedi
dos parecem liquefazer-se e mesclar-se num pedido de graça -
essa graça sobrenatural que exerce o seu efeito, seja lá qual for. O
meu espírito está dentro de uma caixinha, meu bom Deus, no
fundo de outras caixas dentro de outras caixas e de outras e de
outras. Há muito pouco ar dentro da minha caixa. Meu bom Deus,
por favor, dá-me tanto ar quanto eu possa pedir sem que pareça
presunção da minha parte. Por favor, deixa que alguma luz emane
de todas as coisas que me rodeiam, para que me possa sentir coe
sa. Este pedido, em última análise, é egoísta. Não haverá maneira
de contornar isto, meu bom Deus? Não haverá como fugir a nós
mesmos? E mergulhar numa coisa mais vasta? Oh, meu bom
Deus, quero escrever um romance, um bom romance. Quero fazer
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isto para satisfazer um bom sentimento e também um mau senti
mento. O mau sentimento é o mais relevante. Os psicólogos di
zem que é este o sentimento natural. Deixa-me afastar-me, meu
bom Deus, de todas as coisas assim «naturais». Ajuda-me a incor
porar na minha obra aquilo que é mais do que natural - ajuda-me
a amar a minha obra e a mostrar-me indulgente com ela por este
motivo. Se tiver de trabalhar arduamente para a criar, meu bom
Deus, pois que seja como se eu estivesse ao Teu serviço. Gostava
de ser santa de um modo inteligente. Sou uma palerma presumida,
mas talvez a coisa vaga em mim que me acalenta seja a esperança.
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Meu bom Deus, em certa medida fui bem castigada pela minha
falta de caridade para com Mr. Rothburg*, no ano passado. Ele
hoje ripostou, fustigando-me que nem um vendaval, o que, embo
ra não me tenha magoado muito, me estragou a pose. Tudo isto a
propósito da caridade. Oh, Senhor, por favor, toma a minha men
te atenta a este respeito. Todos os dias faço muitos, muitos, dema
siados comentários cruéis acerca das pessoas. Faço-os porque me
dão um ar espirituoso. Por favor, ajuda-me a compreender na
prática como isto é reles. Ainda nada tenho de que me possa or
gulhar. Sou estúpida, tão estúpida como as pessoas que ridiculari
zo. Por favor, ajuda-me a deixar de ser assim egoísta, porque Te
amo, meu bom Deus. Não quero passar a vida a desculpar-me,
porém. Pouco valho. Por favor, ajuda-me a cumprir a Tua Palavra,
oh, Senhor.
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4/11 [1946]
Concluí que isto não vale muito como meio direto de oração.
A oração não é sequer tão premeditada como estes meus escritos
- é um impulso do momento, e isto é demasiado vagaroso para o
momento. Iniciei uma nova fase da minha vida espiritual - tenho
confiança. A par desta confiança, prescindi de certas rotinas de
adolescente e de certas rotinas mentais. Não é preciso muito para
nos fazer entender os palermas que somos, mas esse pouco demo
ra a fazer-se sentir. Aos poucos, apercebo-me do ridículo da minha
pessoa. Uma coisa de que me apercebi esta semana - tem sido
uma semana bizarra - é que me vejo constantemente como aqui
lo que desejo ser. Não a concretização do que desejo ser, mas o
estilo certo, o embrião correto no animal correto. A consequência
deste delicioso estado de coma será, naturalmente, o eterno em
brião - e eterno no sentido mais genuíno da palavra. Preciso de
crescer. Tenho direito, creio, a demonstrar este interesse por mim
própria, desde que este meu interesse se centre na minha alma
imortal e no que a mantém pura. «Salvo aos puros, na mais pura
hora», escreveu Coleridge - o dom da imaginação funcionava
apenas nesse momento, apenas para esses. Vou começar pela alma,
e talvez os dons temporais que desejo exercer tenham a sua opor
tunidade; e, mesmo que isto não suceda, terei já nas mãos a melhor
coisa, a única realmente necessária. Deus tem de estar em toda a
minha obra. Tenho andado a ler Bernanos. É absolutamente mara
vilhoso. Será que alguma vez saberei seja o que for?
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Como é que posso viver - como é que hei de viver. Obviamen
te, a única maneira de viver retamente é abdicar de tudo. Mas não
tenho vocação, e talvez esse caminho esteja errado, seja como for.
Mas como eliminar esta minha maneira exigente e cata-espinhas
de fazer as coisas - quero tanto amar a Deus sem peias. Ao mes
mo tempo, quero todas as coisas que parecem opostas a esse amor
- quero ser uma excelente escritora. Todo e qualquer êxito terá
tendência a subir-me à cabeça - inconscientemente, até. Se algu
ma vez conseguir tomar-me uma excelente escritora, não será
porque sou uma excelente escritora, mas sim porque Deus me
deixou arrecadar os louros de algumas das coisas que Ele carido
samente escreveu para mim. No momento atual, não parece ser
esta a postura d'Ele. Não consigo escrever uma linha que seja.
Mas vou continuar a tentar - eis o que importa. E, em cada fase
estéril, irei recordar-me de Quem está a criar a obra quando esta
fica pronta e de Quem não a está a criar naquele momento. Nos
dias que correm, pergunto a mim mesma se Deus alguma vez
tomará a escrever alguma coisa para mim. Ele prometeu-me a Sua
graça; não estou tão certa de que me conceda a outra. Talvez eu
não me tenha mostrado suficientemente grata pelas dádivas rece
bidas.
Os desejos da carne - excluindo os do estômago - foram-me
subtraídos. Não sei por quanto tempo, mas espero que seja para
sempre. Dá-me muita paz, ver-me livre deles.
Não haverá quem me saiba ensinar a rezar?
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ratos tomou-se popular crer em Deus. Há nesta fé qualquer coisa
chocante. Os católicos, no entanto, precisam de alimentar certe
zas, tanto quanto lhes é possível, ou talvez somente tanto quanto
desejam. Eu. Eu preciso de as alimentar, mas ao escrever estarei
a tentar chocar as pessoas com Deus? Estarei a tentar encaixá-Lo
à força na minha escrita, às três pancadas? Talvez não haja pro
blema. Talvez, sendo eu a fazê-lo, não haja problema. Talvez eu
seja medíocre. Preferia ser menos que medíocre. Preferia ser
nada. Uma imbecil. No entanto, não devo pensar assim. A medio
cridade, se é esse o meu castigo, é algo a que terei de me subme
ter. Se é esse o meu castigo. Se alguma vez descobrir que é, terá
chegado a altura de me submeter. Terei de ouvir muitas opiniões.
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fé, incapaz de elevar o seu desejo de Deus a um desejo conscien
te, afunda-se na postura de ver o amor físico como um fim em si
mesmo. Assim, romantiza-o, espoja-se nele, depois aborda-o com
cinismo. Ou, no caso do artista como Proust, afunda-se na postu
ra de compreender que é a única coisa que vale a pena ser vivida,
mas vê este amor sem propósito, fortuito, frustrante, uma vez
satisfeito o desejo. O conceito de Proust do desejo só podia ser
este, uma vez que ele faz dele o ponto supremo da existência -
que efetivamente é - , mas sem nada de sobrenatural para o cul
minar. Este desejo afunda-se cada vez mais no inconsciente, até
ao respetivo âmago, que é o Inferno. Sem dúvida que o Inferno se
situa no inconsciente, tal como o desejo de Deus. O desejo de
Deus talvez esteja numa superconsciência que é inconsciente.
Satã caiu na sua líbido ou no seu id, consoante o termo freudiano
mais completo.
A perversão é o resultado final de negarmos ou nos revoltarmos
contra o amor sobrenatural, descendo da superconsciência incons
ciente para o id. Nos casos em que a perversão é uma doença ou
o resultado de uma doença, isto não se aplica, porquanto o livre
-arbítrio não opera. O ato sexual é um ato religioso e, quando
ocorre sem Deus, é um ato postiço, ou, no melhor dos casos, um
ato vazio. Proust tem razão ao afirmar que somente um amor que
não satisfaz pode continuar a existir. Duas pessoas só podem con
tinuar «apaixonadas» - um termo que o romantismo fétido tor
nou quase imprestável - se o seu desejo comum uma pela outra
as unir num desejo mais vasto de Deus, ou seja, ao invés de fica
rem saciadas, sentem um desejo partilhado e acrescido do amor
sobrenatural em união com Deus. Meu Deus, sara estes furúncu
los e pústulas e verrugas de. romantismo doentio [ . . ]*
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2219 e Bloy novamente. Deveria ser um grande acicate da hu
mildade em mim, o facto de eu ser tão inerte ao ponto de precisar
sempre de Bloy para me mergulhar em reflexões sérias - e mes
mo então estas não se prolongam durante muito tempo. O verão
foi muito árido em termos espirituais e, aqui em Iowa City, ter
começado a ir à missa novamente todos os dias não me tocou -
pensamentos horrendos na sua mesquinhez e no seu egoísmo
vêm-me à cabeça, mesmo com a hóstia na língua. Talvez o Senhor
se tenha apiedado de mim e me tenha posto a deambular pelo
meio das estantes para pegar no livro de Pfleger acerca de Bloy e
de Péguy e de alguns outros. É horrível pensar na minha incons
ciência quando, na realidade, sei tudo. Demasiado débil para pedir
sofrimento a Deus nas minhas preces[,] demasiado débil até para
entoar uma prece seja para que fim for, excetuando ninharias. Não
quero estar condenada à mediocridade nos meus sentimentos em
relação a Cristo. Quero sentir. Quero amar. Acolhe-me, meu Se
nhor, e encaminha-me na direção que deverei tomar. Minha Se
nhora do Perpétuo Socorro, ora por mim.
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Fac-Símile
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