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Maquiavel interpretando Savonarola: a ativação política do povo e a

descoberta do imaginário religioso*

José Luiz Ames


Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Savonarola é mencionado seis vezes explicitamente nas obras de Maquiavel,


além de outras duas alusões indiretas. Qual é a ideia de Savonarola que emerge destas
menções de Maquiavel ao frade dominicano? Trata-se de uma imagem positiva ou crítico-
negativa? Esta é uma pergunta que não permite uma resposta simples. Reconduzir à
unidade as contrastantes imagens de Savonarola que emergem das páginas das diferentes
obras de Maquiavel se revela uma tarefa praticamente impossível. Maquiavel decompõe a
personalidade de Savonarola em seus múltiplos elementos constitutivos de modo que ele
aparece, a cada vez, sob uma feição diferente, e muitas vezes contraditória.
Assim, por vezes aparece como o orador fascinante que desperta nos florentinos
um temor saudável de Deus, mas ao mesmo tempo como o demagogo que tenta subjugar
seu público com “com razões que, para aqueles que não as discutem, eram muito
convincentes”, como nos sermões que Maquiavel resume a Ricciardo Becchi em 1498.
Outras vezes é retratado como o fanático pregador que divide os florentinos e os distrai da
ação difundindo falsas esperanças com suas profecias, como na primeira Decennale. Outras
ainda é comparado ao profeta Moisés e, em seguida, apresentado como o exemplo moderno
do “profeta desarmado”, bem ao contrário de Moisés ao qual fora comparado, do inovador
incapaz de "fazer crer pela força", como em O Principe capítulo VI. Outras vezes ainda é
retratado como um profeta capaz de persuadir os florentinos de suas visões de Deus para
levá-los a realizar seu objetivo de reformar as instituições políticas de Florença, como em
Discursos I,11. Em outras vezes é o teólogo cujos escritos mostram sabedoria doutrinária,
prudência e virtude e, ao mesmo tempo, o pregador tendencioso que, depois de ter
contribuído para a reconstrução política de Florença, se deixa levar por sua ambição, como
em Discursos I,45. Finalmente, em outras vezes Savonarola é o político ciente dos meios

* O presente trabalho integra projeto de pesquisa financiado pelo CNPq com a concessão de bolsa em
produtividade e, de setembro de 2017 a agosto de 2018, com bolsa de pós-doutorado na Universidade de
Urbino, Itália.
necessários de colocar em prática para a aniquilação dos adversários em vista da
preservação dos ordenamentos da liberdade, mas, na impossibilidade de fazê-lo
pessoalmente, está fadado a uma derrota certa, como em Discursos III,30.
Maquiavel não se preocupa em oferecer um nexo unificador para estas diferentes
representações de Savonarola propostas em seus textos. Limita-se a cada vez a avaliar a
eficácia da representação escolhida para o propósito a que uma política digna desse nome
deve tender. Onde residiriam as razões para Maquiavel oferecer imagens tão contrastantes
de Savonarola em suas obras? Para o objetivo a que nos propomos neste trabalho, o exame
desta questão não nos parece determinante1. No entanto, sem a pretensão de ser um “nexo
unificador”, tentaremos mostrar que a ligação entre religião e política pensada por
Savonarola foi determinante para a formulação da convicção de Maquiavel acerca da
importância da imaginação e das paixões na vida política. Nosso propósito será mostrar que
a ideia segundo a qual religião e política são campos práticos intrinsecamente relacionados
é uma observação nascida diretamente da experiência savonaroliana à qual Maquiavel irá
(em O Príncipe e em Discursos) atribuir grande importância2. O povo, em especial aquela
parcela excluída da participação política que poderíamos denominar com Frosini
“populacho”, ou “plebe”, como Maquiavel a designará em História de Florença, é tornada
ator político por Savonarola ao despertar nela as paixões inerentes às imagens religiosas.
Esta percepção será apropriada por Maquiavel e aparecerá em seus escritos políticos
posteriores. Assim, Em O Príncipe dará um destaque particular ao papel das imagens e
paixões como instrumentos para a obtenção do assentimento dos súditos ao governo do
príncipe. Em Discursos mostrará que a ativação do potencial político do “populacho”,
daquela parte da população tradicionalmente excluída da atuação política, encontrará no
imaginário religioso, particularmente nas paixões do medo e da esperança, um recurso
inestimável. Para a explicitação destas ideias partiremos de um breve exame das passagens

1
Para Giorgio Cadoni (2001, p.264), “a contradição existe, mas não está na „alma‟ do frade: está na
resistência que as coisas do mundo opõem à intenção de realizar o perfeito estado cristão, na
incompatibilidade entre as duras „leis‟ da política e o espírito do Evangelho. E, como era inevitável, considera
seu dever esforçar-se para manter unidos esses dois extremos irreconciliáveis”.
2
Segundo Brown (1988, p.65), os sermões de Savonarola impressionaram “claramente Maquiavel como um
dos primeiros escritores a discutir o poder político da opinião popular ou da „imaginação‟”.
dos textos nos quais Maquiavel faz menção explícita a Savonarola3.
Maquiavel fala pela primeira vez de Savonarola na carta enviada a Ricciardo
Becchi, embaixador de Florença junto à corte papal, em 9 de março de 1498, na qual
resume dois dos sermões do frade sobre o Livro do Êxodo, proferidos na Catedral de San
Marco nos dias 2 e 3 de março, respectivamente. Nestes sermões, escreve Maquiavel,
Savonarola

começou aterrorizando (cominciò con spaventi grandi) com razões que, para aqueles que não as
discutem, eram muito eficazes [con ragione a chi non le discorre efficacissime], mostrando que
os seguidores dele eram os melhores homens e os seus adversários os mais ímpios, usando todas
as expressões [termini] para enfraquecer o partido adverso e fortalecer o seu próprio. [...] Ele
começou a falar abertamente (cominciò a squadernare) e a tratar vossos livros e padres de modo
que não os teriam comido os cães; [...] e disse que Deus lhe havia dito que existia alguém em
Florença que tentava tornar-se tirano e seguia práticas e maneiras de modo a consegui-lo, e
querer expulsar (cacciare) o frade, excomungar o frade, perseguir o frade, não queria dizer outra
coisa, senão tornar-se um tirano; e que se observassem as leis4.

A análise dos sermões feita por Maquiavel está baseada em uma imagem precisa do
equilíbrio de poder e dos movimentos dos atores políticos, dentro e fora das instituições
florentinas, decorrentes da mudança na composição da nova Signoria que havia entrado em
funcionamento, a qual era, no entendimento de Savonarola, composta “mais de dois terços
de inimigos” e, por isso, temia que “o prejudicassem irrefletidamente”.
Maquiavel acentua o caráter político das intervenções de Savonarola: “[...] fez
dois bandos (stiere), um que militava sob Deus, que era o dele e de seus seguidores, e o
outro sob o demônio, que eram os adversários [...]. E assim, conforme meu julgamento,
vem secundando os tempos e as suas mentiras colorindo”5. Maquiavel nota o valor da
estratégia argumentativa de Savonarola quando expressa suas “mentiras” com razões

3
Além destas passagens, Cadoni identifica outras duas nas quais, segundo ele, Maquiavel aludiria, ainda que
implicitamente, de modo claro a Savonarola. Uma ocorre em Príncipe, XII. Criticando o uso de forças
mercenárias pelos príncipes italianos, escreve: “por isso para Carlos, rei da França, foi lícito riscar a Itália
com giz; e quem dizia que a causa disso eram os nossos pecados dizia a verdade; mas não eram aqueles que
acreditava, mas destes que narrei”. A outra passagem na qual Cadoni identifica uma alusão implícita a
Savonarola são estes versos de Asino: “É verdade que se acredita que é coisa mortal / para reinos, e seria sua
destruição, / a usura, ou algum pecado carnal; / e razão de sua grandeza, / que altos e poderosos os mantém, /
seriam jejuns, esmolas e orações” [Vero è ch’un crede sia cosa mortale / pe’ regni, e sia la lor distruzione /
l’usura, o qualche peccato carnale; / e de la lor grandezza cagione, / e che alti e potenti gli mantiene, / sian
digiuni, limosine, orazione] (L‟asino, V, vv. 106-111, in Tutte le opere a cura di M. Martelli, p. 967).

4 Niccolò Machiavelli. Lettere. In: Tutte le Opere. A cura de Mario Martelli. Lettere nº 3, p.1010-1011.
efficacissime “secundando os tempos”, como aponta Mario Martelli (1998, p. 67-78). Para
o comentador, a avaliação de Maquiavel sobre o frade como político foi positiva. Segundo
ele, seria difícil fazer um julgamento negativo sobre as habilidades políticas do versuto
dominicano, pois este revelaria a capacidade de ajustar sua ação segundo la qualità de
'tempi, mostrando possuir a habilidade incomum de adaptar prontamente suas palavras e
sua ação segundo as mudanças das circunstâncias. Claro, continua Martelli (1998, p.73),

nem mesmo Savonarola é capaz de mudar seu caráter, e nos dois momentos seguintes, continua
sendo o pregador impetuoso e violento que é; mas esta violência e este ímpeto, no entanto, ele
sabe como direcioná-los para um ou outro objetivo, e ele sabe imediatamente entender quem, a
cada vez, deve acariciar e a quem extinguir6.

Maquiavel não parece considerar desabonador o fato de Savonarola servir-se de “mentiras”


para ajustar sua ação às circunstâncias. “Colorir” as interpretações que extrai das Escrituras
para ajustá-las aos objetivos políticos não desfaz em Maquiavel a impressão do valor
político inerente à ação desenvolvida. A religião, como mostra John Najemy (1999, p.674-
680), deve sempre ser interpretada, porque não é um sistema de idéias independentes; antes,
depende sempre da função política que exerce.
Quando, na primeira Decennale, Maquiavel cita Savonarola ecoa claramente a
divisão entre os dois “bandos” mencionados na carta a R. Becchi, deixando claro que a
situação era tal que deveria terminar com a eliminação de uma das partes em luta:

Mas o que para muitos não agradava/ E a fez desunir, foi aquela escola / Sob cujo signo vossa
cidade jaz: / digo daquele grande Savonarola / o qual, inspirado pela virtude divina / a mantém
envolvida com a sua palavra. / Mas porque muitos temem ver a ruína / de sua pátria, pouco a
pouco / sob a sua profética doutrina, / não acreditava para reunir-se encontrar lugar / se não
crescesse ou se não extinguisse / sua luz divina com maior fogo7.

5
Niccolò Machiavelli. Lettere. In: Tutte le Opere. A cura de Mario Martelli. Lettere nº 3, p.1011.
6
Giorgio Cadoni (2001, p.242) manifesta seu absoluto desacordo em relação à interpretação de Martelli: “No
dominicano, que tanto abalara a consciência moral e civil dos florentinos, Maquiavel via apenas um homem
político medíocre, reduzido a mentir sem modéstia, mas de maneira tão evidente a ponto de tornar
inteiramente inútil aquela extrema tentativa”.
7
“Ma quel a molti molto più non piacque / E vi fe‟ disunir, fu quella scuola / Sotto il cui segno vostra città
giacque: / io dico di quel gran Savonarola / el qual, afflato da virtù divina, / vi tenne involti con la sua parola.
/ Ma perché molti temean la ruína / veder della lor patria, a poco a poco, / sotto la sua profetica dottrina, / non
si trovava a riunirvi loco / se non cresceva o se non era spento / el suo lume divin con maggior foco” (Niccolò
Machiavelli. Prima Deccenale. In: Tutte le Opere. A cura de Mario Martelli, p.942-3).
O que Maquiavel pretende indicar com o adjetivo “grande” atribuído a Savonarola?
Certamente, não se trata de ironia. Maquiavel não poderia esquecer a participação que o
frade tivera na instituição do Grande Conselho, símbolo e instrumento da recém recuperada
"liberdade". Assim, com “grande” Maquiavel talvez quisesse indicar uma grandeza que,
apesar de não equivalente a dos grandes fundadores como Moisés, merece ser reconhecida
pela obra em defesa da liberdade republicana de Florença.
Apesar do reconhecimento político a Savonarola pela instituição do Grande
Conselho de ampla participação popular, Maquiavel não deixa de dirigir-lhe críticas em
seus versos por “desunir” a cidade. Certamente, não se trata da “desunião” entre grandes e
povo resultante da criação do Grande Conselho que conferiu papel político ao povo. Antes,
o que Maquiavel critica na retórica savonaroliana é sua reiterada pregação sectária, de
contrapor seus seguidores e adversários como duas facções, das quais uma combate por
Deus e a outra pelo demônio. Uma luta moral entre bem e mal. Isso, porém, não faz com
que Maquiavel deixe de reconhecer de Savonarola a capacidade de “manter envolvidos” os
florentinos contando unicamente com o poder “de sua palavra”. Savonarola lhe aparece
como alguém que conhece a força que as imagens, especialmente as de medo, terror e
esperança, despertam na mente dos homens e as utiliza com eficiência para “manter
envolvidos” os florentinos em seu projeto de reforma política de Florença8.
Em O Príncipe capítulo VI, quando Maquiavel trata dos “inovadores” – dos
fundadores de “principados inteiramente novos” –, introduz uma distinção opondo
“profetas armados” a “profetas desarmados” e apresenta Savonarola como exemplo
moderno dos últimos, isto é, do inovador que não foi capaz de “fazer crer pela força”:

Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam podido fazer observar sua constituição longamente
caso estivessem desarmados; como no nosso tempo sucedeu com o frei Jerônimo Savonarola, o
qual arruinou os seus ordenamentos novos quando a multidão começou a não acreditar nele, e ele
não tinha modos para manter firmes aqueles que haviam acreditado nele, nem para fazer crer os
descrentes.

Por maior que tenha sido o carisma de Savonarola, e por mais poderosa que fosse a
manipulação da imaginação popular da qual fez uso, Maquiavel tem claro que o introdutor

8
Para Cadoni (2000, p.268), ao invés disso, o “gran Savonarola” aparece, na primeira Decennale, “como um
chefe ambicioso e inescrupuloso, dotado de um poderoso carisma que, para perseguir seu objetivo, não receia
em dividir a cidade, pondo em risco sua independência”.
de ordenamentos novos precisa contar com a força para “fazer crer” por meio dela quando a
palavra perde sua eficácia por si mesma.
Certamente, Savonarola "arruinou suas ordens novas"; mas as "arruinou" por ter
se envolvido na mais alta e difícil tentativa que um político pode tentar: introduzir
ordenamentos novos numa cidade9. A causa de sua derrota foi haver ignorado a regra que
em todos os tempos sempre fez com que "todos os profetas armados vencessem e os
desarmados se arruinassem" (Príncipe, VI). Possivelmente não foi por vontade própria que
Savonarola se encontrava "desarmado": na condição de pregador religioso, não estava em
suas mãos o poder de prover de armas próprias a cidade; a iniciativa teria cabido aos chefes
do governo de Florença que, no entanto, não o fizeram. A responsabilidade de Savonarola,
neste caso, estava em não haver se empenhado no sentido de fazer com que estes
providenciassem a milícia própria. A crítica de Maquiavel ao frade parece dirigida a esta
omissão. Para Maquiavel não cabe desculpas por esta omissão em nome da fé, pois ele
tinha como saber que Moisés “não teria podido fazer observar sua constituição longamente
caso estivesse desarmado” (Príncipe, VI). Certamente era do conhecimento de Savonarola,
como pregador religioso, a epopéia mosaica. Faltou a Savonarola empenhar-se no sentido
de que seus seguidores na Signoria provessem Florença de uma força militar própria. Por
faltar esta provisão, quando a palavra perdeu seu poder de “envolver” e a “multidão
começou a não acreditar nele", seus sermões também não lhe permitiram evitar o trágico
destino que o levou à morte.
Nos Discursos Maquiavel se remete por três vezes a Savonarola. A primeira vez
é no capítulo XI do Livro I:

O povo de Florença não parece ser ignorante nem rude; no entanto, o frei Jerônimo Savonarola o
persuadiu de que falava com Deus. Não quero julgar se era verdade ou não, pois que de tal
homem se deve falar com reverência; mas digo, sim, que um número infinito de florentinos
acreditava sem ter visto nada de extraordinário que os levasse a crer; porque sua vida, sua
doutrina e o assunto de que falava eram suficientes para que lhe dessem fé. E que ninguém tema
não poder conseguir o que foi conseguido por outro; pois os homens – como dissemos em nosso

9
Como Maquiavel recorda em O Príncipe VI: “Deve-se considerar que não há coisa mais difícil de realizar,
nem mais duvidosa de alcançar, nem mais perigosa de controlar, do que fazer-se chefe para introduzir novos
ordenamentos” (grifos nossos).
Prefácio – nasceram, viveram e morreram sempre segundo uma mesma ordenação 10.

O capítulo em questão está inserido na teoria mais geral acerca dos profetas-
legisladores – como Numa – os quais, servindo-se da irrefletida confiança popular em seu
mandato divino, conseguiam fundar uma nova lei civil. Portanto, Savonarola é colocado
aqui por Maquiavel no mesmo nível que Numa Pompilio, bem como em outros lugares
(Principe VI e Discursos III,30) é comparado a Moisés.
Como Savonarola foi capaz de persuadir um povo “acostumado a viver na
cidade” e, portanto, não inclinado a crer facilmente de que “falava com Deus”? Como foi
capaz de “envolvê-lo com sua palavra” sem ao menos haver algo “de extraordinário para
fazê-lo crer”?11. Chama a atenção a indiferença de Maquiavel em relação ao mérito da
questão – se Savonarola falava ou não com Deus – como se não contassem, em última
análise, a veracidade ou falsidade das conversas místicas do frade frente ao sucesso que
obteve em convencer o povo disso. Maquiavel se recusa a entrar na discussão acerca da
verdade ou não da profecia savonaroliana; o que lhe interessa são tão somente os efeitos

10 Fabio Frosini chama a atenção à última frase desta citação. Segundo o comentador, “é aqui que Maquiavel
identifica a possibilidade de inverter a história. A ação de Savonarola é o único exemplo moderno registrado e
o exemplo de Florença é, portanto, o único caso pertinente à última observação ("E que ninguém tema não
poder conseguir o que foi conseguido por outro [...]"), que remete ao Prefácio. O que aconteceu em Florença
demonstra que é possível superar a crença de que a imitação é impossível. A figura de Savonarola é
importante precisamente por esse motivo. Seu movimento popular se expressou como uma rejeição da
religião corrompida de Alexandre VI, mas este foi apenas um ponto de partida. A mensagem profética de
Savonarola [...] foi gradualmente identificada com a fortuna de Florença, colocando esta cidade no centro de
um destino excepcional, constituído de poder, glória e riquezas mundanas”. No entendimento de Frosini, “ter
um „conhecimento verdadeiro das histórias‟ implica em não ter medo de imitar os antigos, portanto significa
acreditar que é possível agir politicamente. É isso o que Savonarola fez em Florença - superando a corrupção
e lutando por uma interpretação da religião contra o „modo dos homens poderosos‟. O verdadeiro
conhecimento das histórias pode, portanto, também se originar graças a uma profecia que consegue interpretar
a religião „de acordo com a necessidade‟, isto é, exaltando o papel do povo contra o dos grandes. A política
democrática de Savonarola era, aos olhos de Maquiavel, um exemplo para se aprender política: Savonarola
introduziu no mundo moderno a antiga união de virtude-necessidade e religião-educação, não como resíduo
de uma época passada [...], mas como um elemento pertencente à nova ordem. Essa forma de política [...]
incluiu o „populacho‟ na política ativa pela primeira vez, quebrando as limitações estritas do „povo‟ entendido
como a totalidade dos „cidadãos‟".

11 É Maquiavel irônico ao escrever que de Savonarola “se deve falar com reverência”, apesar de confessar
que “falava com Deus”? Para Michele Lodone (2011, p.294-295) é difícil “eliminar da passagem qualquer
ironia. A ironia está lá e é dirigida àqueles que - como os florentinos – „presumem não ser rudes‟, e ainda
assim não resistem ao apelo da religião e a um profeta como Savonarola que (como o próprio Maquiavel
havia escrito na carta a R. Becchi) em seus sermões apela „a grandes terrores‟ e a „razões que, para aqueles
que não as discutem, eram muito eficazes‟: isto é, razões válidas apenas para aqueles que não as examinam
cuidadosamente, deixando-se seduzir e levar irracionalmente pela palavra carismática do pregador”.
políticos da intervenção do frade na vida da cidade12. Seja qual for a posição de Maquiavel
em relação ao cristianismo, ele concentra sua atenção naquilo que torna exemplar a ação de
Savonarola: servir-se do imaginário religioso como instrumento para governar a cidade. É
isto que faz com que “a vida, a doutrina e o assunto de que falava” mereça “reverência”,
pois foram instrumentos adequados a que fosse prestada fé no frade de modo a promover a
introdução de “novos ordenamentos” no governo de Florença. Nesse sentido sua ação é
comparável a de Numa: assim como este, também Savonarola apela ao imaginário popular
para alcançar seu assentimento às reformas políticas e aos novos mecanismos institucionais
da cidade.
A “reverência” da qual Savonarola é merecedor não torna infalível sua prática
política. Antes ao contrário. Em Discursos I,45 Maquiavel faz menção a um erro fatal, na
sua avaliação, cometido pelo frade em 1497 quando, após haver se empenhado fortemente
para aprovar a lei que permitia aos condenados por motivos políticos o direito de apelar ao
Conselho Maior, tolerou que fosse negado o recurso aos cinco cidadãos acusados de
cumplicidade com Piero de‟ Medici.
Na análise deste acontecimento, Maquiavel começa lembrando que “não existe
pior exemplo numa república do que fazer uma lei e não a observar; sobretudo quando não
é observada por quem a fez” (Discursos I,45). A seguir ilustra esta “regra geral” com o
sucedido em Florença:

O governo de Florença foi reordenado depois de 94 com a ajuda do frei Jerônimo Savonarola,
cujos escritos mostram a doutrina, a prudência e a virtù de seu ânimo; entre outras constituições
que tinham em vista a garantia dos cidadãos, criou-se uma lei que possibilitava recurso ao povo
das sentenças proferidas pelos Oito e pela Senhoria em delitos políticos, lei sobre a qual
Savonarola pregou por muito tempo e que obteve com grande dificuldade; ocorre que, pouco
depois de sua aprovação, cinco cidadãos foram condenados à morte pela Senhoria, por delitos
políticos; aqueles queriam recorrer, o que não lhes foi permitido, deixando-se de observar a lei.
Isso prejudicou mais a reputação daquele frade do que qualquer outro acontecimento, porque, se
aquele recurso era útil, ele deveria fazer com que fosse observado; se não era útil, não devia tê-lo
feito aprovar. E mais digno de nota foi esse acontecimento porque o frade, em tantas pregações

12 Massimo Cacciari (1998, p.233), em artigo publicado por ocasião da celebração dos quinhentos anos da
morte de Savonarola, defendeu a tese de que, considerando o capítulo XI do Livro I dos Discursos, “o
fundamento da grandeza das repúblicas” deveria ser colocado “na fé na origem divina da autoridade”. Giorgio
Cadoni (1999, p.494) chama a atenção de que o referido capítulo de Discursos “não desenvolve esta tese, mas
ilustra o papel da religião como insubstituível conectivo social (sacralidade do juramento) e eficaz
instrumentum regni capaz de fazer aceitar medidas que a autoridade dos governantes não teria sido suficiente
para impor. „A razão para a grandeza das repúblicas‟ não é a „fé na origem divina da autoridade‟, e sim da
„observância do culto divino‟, que é, naturalmente, bem outra coisa”, conclui o comentador.
que fez depois da transgressão dessa lei, nunca condenou quem a transgredira nem o escusou,
como se fosse algo que não queria condenar, porque lhe parecia oportuno, mas também não podia
escusar. E isso, pondo à mostra seu ânimo ambicioso e partidário, destruiu-lhe a reputação e
causou-lhe grande má fama (Discursos I,45).

Como conciliar um erro tão grave com a afirmação de que seus escritos mostram
“doutrina, prudência e virtù”? Não parece pertinente pensar que, da parte de Maquiavel, se
trate de ironia. Antes podemos dizer que ele contrasta o “conselheiro” e o “homem de
ação”; doutrina e prática. No plano doutrinário, Savonarola mostra “a prudência e a virtù de
seu ânimo”; no plano prático, revela “seu ânimo ambicioso e partidário”. No plano
doutrinário tem clareza dos ordenamentos que uma república necessita; no plano prático o
chefe político não alcança avaliar todas as consequências de seus atos. No retrato
maquiaveliano de Savonarola este aparece como incapaz de encontrar um critério de ação
válido para quem precisa confrontar-se com a dura realidade do campo político: a
“prudência” que o induz a observar um inadequado silêncio, antes do que sabedoria, é
expressão de perigosa irresolução. O preço dela foi o de “destruir-lhe a reputação”. Isso,
porém, não pode fazer esquecer que “o governo de Florença foi reordenado depois de 94
com a ajuda do frei Jerônimo Savonarola” e o foi na direção que também Maquiavel
compreende necessário: com estruturas institucionais de empoderamento popular. Não
parece pertinente supor que Savonarola, depois de haver colaborado com sucesso na
reforma do sistema jurídico constitucional até o final do gonfalonierato de Francesco
Valori, tenha posteriormente embarcado em um caminho ruinoso para si e cheio de perigos
para a cidade.
Finalmente, no capítulo XXX do Livro III de Discursos, somos defrontados com
a última menção a Savonarola. Aqui Maquiavel defende a ideia de que o ator político deve
“eliminar a inveja”, pois “a inveja é, muitas vezes, a razão pela qual os homens não
conseguem agir bem por não permitir que tenham a autoridade necessária nas coisas de
importância”. A inveja, afirma Maquiavel, pode ser eliminada de dois modos. Em certas
circunstâncias ela se extingue por si mesma, “quando todos, vendo-se em perigo, deixam de
lado a ambição e correm voluntariamente a obedecer àquele que, com sua virtù, acreditam
que possa livrá-los”. Semelhante situação, porém, só sobrevém quando a cidade não está
corrompida, como era o caso na Roma republicana. Quando, porém, a cidade está
corrompida e, por isso, o bem comum não prevalece, “para vencer esta inveja não existe
outro remédio, senão a morte daqueles que a nutrem”. Para ilustrar esta situação, Maquiavel
compara o exemplo positivo de Moisés e os negativos de Savonarola e Piero Soderini:

E quem lê a Bíblia sensatamente verá Moisés, para que suas leis e ordenações tivessem
progressos, ser forçado a matar infinitos homens, os quais não movidos por outra coisa, senão
pela inveja, se opunham aos seus desígnios. Esta necessidade a conhecia muito bem o frei
Jerônimo Savonarola; a conhecia ainda Piero Soderini, gonfaloneiro de Florença .

Piero Soderini, “acreditava que, com tempo, com bondade, fortuna e benefícios
extinguiria essa inveja. [...] Não sabia que o tempo não se deixa esperar, a bondade não
basta, a fortuna muda e a maldade não se aplaca com benefícios”. Savonarola, ao contrário,
sabia o que era necessário fazer, mas não pode fazê-lo

[...] por não ter autoridade para tanto e por não ser bem entendido por aqueles que o seguiam e
teriam essa autoridade. Nem por isso deixou de fazer o que podia, e suas pregações são cheias de
acusações contra os sábios do mundo e de invectivas contra eles, porque era assim que chamava
esses invejosos e aqueles que se opunham às suas ordenações.

Enfim, Savonarola, por ser um pregador religioso, não detinha a autoridade política para
agir pessoalmente, e aos seus seguidores, que a detinham, faltava a virtù necessária para
extinguir a inveja preferindo anular-se diante dos seus opositores em lugar de combatê-los.
Entre os exemplos de Soderini e Savonarola, Maquiavel não parece haver dúvidas: Soderini
é o anti-exemplo. Ele detinha os meios legais de “extinguir a inveja” dos conspiradores da
república, mas preferiu o caminho equivocado, apesar de conhecer a via imposta pela
“necessidade”. Savonarola, por não ser homem de estado, não dispunha dos meios legais de
agir “segundo a necessidade”. Mesmo assim, reconhece Maquiavel, “não deixou de fazer o
que podia, e suas pregações são cheias de acusações contra os sábios do mundo e de
invectivas contra eles”.
Mesmo renunciando à ideia de pretender identificar um “nexo unificador” destas
contrastantes representações de Savonarola produzidas por Maquiavel, pensamos que no
conjunto elas tratam de um tema que se mostra essencial ao pensamento maquiaveliano: a
ligação entre religião e política. Maquiavel elabora esta relação, como sabemos,
especialmente nos Discursos. Ainda que neste livro a referência maior seja a obra de Tito
Livio, já muitos anos antes Maquiavel conheceu de perto os eventos que envolveram a
reforma da república de Florença patrocinada por Savonarola. Como mostramos nas
páginas anteriores, esta experiência foi tão marcante para o pensamento maquiaveliano a
ponto de fazer seis registros explícitos em suas obras sobre o pensamento e a prática
políticas do frade. Savonarola impressionou Maquiavel pelo modo como este soube servir-
se da religião para operar as reformas políticas na república de Florença. Esta influência
aparecerá posteriormente nos escritos de Maquiavel, especialmente em Discursos13.
Nesta obra Maquiavel introduz o tema da religião na perspectiva do ordinatore,
isto é, daquele que, se não irá propriamente “inventar” a religião tem, contudo, por tarefa
estruturá-la e estabelecê-la em preceitos visíveis. É o que coube a Numa, sucessor de
Rômulo (Discursos I,11): Numa compreendeu que a força não era suficiente para levar o
povo à obediência. A religião, em compensação, poderia produzir uma obediência quase
incondicional à autoridade política. Em razão de quais artes ela seria capaz desse feito?
Para Maquiavel porque a religião é timore di Dio: “onde falta o timore di Dio é preciso que
o reino se arruíne ou que seja mantido pelo temor a um príncipe que supra a falta da
religião” (Discursos I,11). Como os príncipes têm vida curta, o reino tende a desaparecer
com a morte do príncipe, algo que não acontece com o temor infundido pela religião, por
ser mais permanente, de sorte que é mais útil para a segurança e liberdade da cidade temer
uma divindade do que temer a um príncipe. Embora o medo de uma divindade, ou dos
preceitos derivados dela, não possa produzir por si mesmo comportamentos adequados à
vida política, pode dar-lhes origem por meio da intervenção de um mediador que saiba
alimentar, orientar e, sobretudo, organizar em instituições estáveis essa paixão humana
tornando-a capaz de suscitar coesão política e obediência civil. Foi o papel exercido em
Roma por Numa; foi também o que chamou a atenção de Maquiavel em Savonarola em
relação à reorganização da república de Florença.

13
Frosini chama a atenção para uma mudança na interpretação maquiaveliana da relação entre religião e
política dos escritos iniciais em relação àquilo que Maquiavel dirá em Discursos: “que a religião
inevitavelmente tem a ver com política, quando a política envolve as massas, é uma observação nascida
diretamente da experiência savonaroliana [...]. Não foi a existência dessa relação que foi posta em questão,
mas sim sua avaliação; e isso mudou de acordo com o tipo de perspectiva política em jogo. [...] O que muda
nos Discursos é a avaliação que Maquiavel faz do laço entre religião e política ou, para ser mais preciso, a
relação entre religião e política de massas”. Essa mudança teria sido possível, pensa Frosini, em virtude da
introdução de dois conceitos-chave, que não seriam encontrados em Maquiavel antes dos Discursos:
“educação” como sinônimo de religião e “necessidade” como sinônimo de virtude. Assim, pondera o
comentador, Maquiavel, falando dos romanos, interpreta a religião acordo com a necessidade política do
momento. Isso levanta, obviamente, a pergunta, diz Frosini: “o que é exatamente necessidade?” Nos
Discursos, defende Frosini, “necessidade é sinônimo de uma situação na qual o desejo coincide perfeitamente
com a ação, porque as pessoas não lutam em função da realização de algo que desejam (e que,
inevitavelmente, deixaria o desejo insatisfeito), mas, em vez disso, desejam aquilo pelo qual estão
constrangidos a lutar”. Por isso, conclui o comentador, “a necessidade, segundo a qual a religião é
interpretada é aquela que limita o desejo, e isso só é possível se a religião „não fala no modo dos poderosos‟,
Para Maquiavel o problema fundamental não é a questão teológica da
comunicação da vontade divina aos homens. A possibilidade de uma revelação divina é
uma questão pela qual Maquiavel não manifesta interesse. Na ótica maquiaveliana, trata-se
sempre da interpretação de sinais considerados pelo povo manifestações da vontade divina.
A expressão da vontade divina aparece por meio de uma linguagem cifrada e requer, por
isso, a mediação de um intérprete. Graças à profecia o intérprete consegue fazer falar a
religião "de acordo com a necessidade", isto é, exaltando o papel do povo contra o dos
grandes. Foi o que Maquiavel destacou no exemplo romano14, mas também da experiência
florentina sob Savonarola15. Maquiavel mostra que a interpretação precisa ser convincente:
uma interpretação cujo efeito é manifestamente favorável aos grandes, ou ao próprio
intérprete da mensagem, tem por consequência o descrédito. Essa perda da fé na mensagem
produz a desordem e com ela a ruína da vida política16.
Maquiavel afirma implicitamente, em relação ao cristianismo, que somente sua
versão profética, e em particular a milenar-mundana, é capaz de obter a força de mobilizar
a virtude que pertencia à religião dos romanos. Foi exatamente isso que Savonarola

como Maquiavel especifica em Discursos I,12, mas, em vez disso, incorpora na estratégia política dos
governantes também as reivindicações dos governados”.
14
Numa, explica Maquiavel, sentiu que sua autoridade seria insuficiente para “introduzir instituições novas e
inusitadas naquela cidade [Roma]”. Compreendendo, porém, a importância e a necessidade de tal
empreendimento, “simulou ter familiaridade com uma Ninfa, de quem recebia conselhos para serem
transmitidos ao povo” (Discursos I, 11). O povo avaliou a veracidade pelo resultado e este não poderia ser
melhor: “Maravilhando-se, pois, o povo romano da bondade e prudência de Numa cedia ante todas as suas
argumentações” (Discursos I, 11). Não é diferente no caso de Camilo: tendo os soldados romanos saqueado a
cidade de Veios, entraram no templo de Juno “sem tumultos, devotos e cheios de reverência” (Discursos I,
12), e perguntaram à deusa se queria ir com eles para Roma. Como havia quem pensasse ter escutado ela dizer
“sim”, “lhes parecia ouvir aquela resposta que pressupunham para sua pergunta, opinião e credulidade que foi
inteiramente favorecida e acrescentada por Camilo e por outros homens importantes da cidade” (Discursos I,
12).
15
Como mostramos na análise das referências de Maquiavel a Savonarola, “o povo de Florença não parece ser
ignorante nem rude; no entanto, o frei Jerônimo Savonarola o persuadiu de que falava com Deus” (Discursos
I,11). Maquiavel lê o exemplo romano à luz do exemplo contemporâneo de Savonarola em Florença
conhecido pessoalmente por ele.
16
Na Roma antiga, quando os oráculos “começaram a falar como os poderosos (a parlare a modo de’
potenti), e essa falsidade foi descoberta pelo povo, os homens se tornaram incrédulos e apropriados para
perturbar qualquer ordem boa” (Discursos I, 12). É o que Maquiavel também denuncia no comportamento de
Savonarola: seu silêncio diante da rejeição do recurso ao Conselho Maior formulado pelos acusados de
cumplicidade com Piero de‟ Medici “prejudicou mais a reputação daquele frade do que qualquer outro
acontecimento. [...] Isso mostra seu ânimo ambicioso e partidário, destruiu-lhe a reputação e causou-lhe
grande má fama” (Discursos I,45).
alcançou ao vincular o destino de sua pregação à cidade de Florença e à sua fortuna
política. A figura do frade dominicano torna-se de fato ainda mais importante, na
interpretação de Maquiavel, porque une as características normalmente atribuídas a
oráculos, adivinhos e augúrios entre os romanos com as dos legisladores. É por isso que seu
único verdadeiro ponto de comparação é Moisés, como Maquiavel destaca no capítulo VI
de O Príncipe.
Os textos nos quais Maquiavel se pronuncia sobre Savonarola deixam claro,
pois, que a ligação estreita entre religião e política destacada por ele em suas obras nasce da
experiência savonaroliana de reforma da república florentina, da qual foi testemunha
ocular. Desta ligação entre religião e política chama a atenção de Maquiavel a emergência
do povo como ator político graças à ativação da imaginação religiosa das massas.
Savonarola introduziu a profecia religiosa no governo da cidade; e, ao fazê-lo, expandiu
enormemente o significado e a importância políticas do povo. A experiência savonaroliana
ensinou a Maquiavel que a linguagem religiosa é capaz de ativar politicamente multidões
da população nunca antes alcançada, aquela tradicionalmente excluída dos processos
políticos da cidade. A multidão (o “populacho”, como a designa Frosini) emerge com
Savonarola como ator político essencial da nova organização política republicana de
Florença. Como resultado, as paixões, a imaginação - e com elas a própria religião -
tornaram-se um tema diretamente político, real e concreto.
Em um escrito de 1503 – “Os povos rebelados do Vale de Chiana” – Maquiavel
identifica o substrato psicológico coletivo que permite fundar – ou refundar, como era o
caso naquele escrito – a ligação de subordinação: a esperança, “para purgar os ânimos
daqueles povos”, e o medo:

Mas tenho a dizer-vos somente isso: que é firmíssimo aquele império que tem seus súditos fiéis e
afeiçoados ao seu príncipe (i sudditi fedeli e al suo principe affezionati). Mas o que se deve
decidir é preciso que se decida logo, tendo vós tantos povos suspensos entre a esperança e o
medo (tanti popoli sospesi tra la speranza e la paura), é preciso retirá-los dessa ambiguidade e
preocupá-los com as penas ou os prêmios17.

O que Maquiavel descreve é uma condição comum tanto à experiência política quanto à

17
Niccolò Machiavelli. In: Tutte le Opere. A cura de Mario Martelli, p14 (grifos nossos).
religiosa. Com efeito, Maquiavel sabe que o terror é conatural aos homens18. Sociedade e
religião têm origens comuns no medo. Neste sentido, o ato de submissão se configura
propriamente como um ato de fé, no qual esperança e medo, interagindo, produzem um
sentimento de devoção (Maquiavel fala em “affezione”) em relação à autoridade. Não é
coincidência que o termo "fé" (“fede”) - usado para definir a relação que os súditos
estabelecem com a cidade dominante - implique uma dimensão religiosa. A partir da
posição que ocupa no aparato governamental, Maquiavel parece convencer-se de que o
estado - em particular o estado composto por Florença - pode "ganhar a fé" dos súditos
apenas sob a condição de administrar com perspicácia seu imaginário, tão sensível em
tempos normais e, especialmente em tempos de crise, às vozes e imagens capazes de
provocar medo e devoção.
Estas duas paixões políticas – esperança e medo -, se de um lado exprimem o
caráter originário da desunião entre os homens e a impossibilidade da eliminação dos
conflitos, de outro, todavia, indicam também uma potência positiva a ser ativada. Nesse
sentido, estas paixões não constituem unicamente o elemento desagregador que a política
deve saber reprimir e neutralizar, mas também o motor de toda possível transformação. É,
pois, a partir da esperança e do medo, e não contra elas, que se abre a possibilidade da
instauração de uma vida política livre.
Savonarola, manipulando as paixões de medo e esperança por meio do
imaginário religioso, constitui um novo ator político na figura das massas. Será apoiado
nelas que lhe será possível a criação de estruturas políticas mais inclusivas na república
florentina. Um Grande Conselho, amplo e empoderado, torna a participação popular uma
realidade efetiva pela primeira vez em Florença19. Maquiavel reconhece a dívida de

18
Stefano Visentin, em curso ministrado durante o XXI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da
Unioeste em 2016, defendeu que o famoso ditado latino “terret vulgus nisi metuat” (o vulgo provoca terror, se
não for por sua vez aterrorizado), utilizado por séculos por aqueles que consideravam que o terror seria o
único instrumento útil para governar o povo, será assumido por Maquiavel com um significado novo, porque
não se trata mais de neutralizar um medo com um medo maior, mas antes de “fazer dialogar” os dois medos
entre si, de modo que esta dialética modula os comportamentos do príncipe de um lado e do povo de outro.
19
Maquiavel recorda em História de Florença (Livro III, 15-22) outro “momento republicano popular”
decorrente da revolta Ciompi, quando Michele di Lando se torna Gonfaloneiro da cidade e a plebe alcança
reconhecimento político com a criação de Corporações de Ofício próprias e assentos na Senhoria. No entanto,
Florença para com o frade. Foi graças à percepção política dele que a cidade viveu durante
20 anos um republicanismo de base popular, para o desagrado das elites florentinas.
Quando em 1512, por inabilidade de Piero Soderini, a oposição mediciana venceu, quem
perdeu foram as massas populares, de agora em diante definitivamente excluídas como
força política sob o domínio Medici.

Referências

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and C. Elam. London: Committee for Medieval Studies (Westfield College), 1988, p.57-72.

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1998, n. 4, p. 225-238.

CADONI, Giorgio. Il ”profeta disarmato”. Intorno al giudizio di Machiavelli su Girolamo


Savonarola. La Cultura, Fascicolo 2, agosto 2001, p.239-265.

CADONI, Giorgio. Qualche osservazione su Machiavelli e Savonarola. La Cultura,


Fascicolo 2, agosto 2000, p.263-278.

CADONI, Giorgio. Savonarola, Machiavelli, Guicciardini in una recente ipotesi


interpretativa. La Cultura, Fascicolo 3, dicembre 1999, p.493-496.

FROSINI, Fabio. Prophecy, Education and Necessity: Girolamo Savonarola Between


Politics and Religion. In:
https://www.academia.edu/4449425/Prophecy_Education_and_Necessity_Girolamo_Savon
arola_Between_Politics_and_Religion?auto=download. Acesso: 23/05/2018.
LODONE, Michele. Savonarola e Machiavelli: Una nota su Discorsi, I, 11, Interpres,
XXX, 2011, p. 284-98.

MACHIAVELLI, Niccolò. Tutte le opere. A cura di Mario Martelli. Firenze: Sansoni


Editore, 1971.

MARTELLI, Mario. Machiavelli e Savonarola. In: AA.VV. Savonarola: Democrazia,


tirannide, profezia. A cura di G.C. Garfagnini. Firenze: SISMEL edizioni del Galluzzo,
1998.

NAJEMY, John M. Papirius and the Chickens, or Machiavelli on the Necessity of


Interpreting Religion. Journal of the History of Ideas, LX (1999), p. 659-668.

a implantação de uma república popular foi fugaz: após poucas semanas ela ruiu, paradoxalmente pelas
mesmas mãos de quem liderou sua criação, Michele di Lando.

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