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ARTIGO ARTICLE
consumo, ação política e sustentabilidade
Fátima Portilho 1
Marcelo Castañeda 1
Inês Rugani Ribeiro de Castro 2
uso do consumo como uma arena de tomada de Assim, o relativo crescimento da liberdade de
decisão carregada de potenciais conflitos de va- escolha dos consumidores é conectado a uma
lores e desejos, de capacidade política e de restri- busca pela emancipação, identidade pessoal e
ções socioeconômicas8,13,14. Essa visão difere das autonomia na esfera privada, apontando para
visões convencionais sobre o fenômeno do con- novas formas de ação política. Com base nesses
sumo, que tendem a vê-lo ou como mera com- fenômenos, novas preocupações se juntariam às
pra e aquisição de bens e serviços no mercado políticas emancipatórias tradicionais, dando ori-
com base em decisões sobre preço e qualidade gem às políticas de vida, que apontam para um
ou como gastos desmedidos e supérfluos20. Inte- padrão de engajamento relacionado às lutas so-
ressa destacar que o enfoque do consumo políti- bre como queremos viver, como indivíduos e
co não aborda apenas consumidores engajados como humanidade, num mundo que era deter-
em movimentos sociais institucionalizados, mas minado pela tradição e pela natureza e que agora
enfatiza também, e principalmente, aqueles ato- se encontra, cada vez mais, submetido às deci-
res sociais “não organizados” e difusamente po- sões humanas.
litizados que se situam entre o anonimato e a Beck10,16 enfatiza que, em contraposição à des-
vontade de exercer um papel político, entre as crença nas instituições políticas tradicionais, ocor-
preocupações cotidianas da esfera privada e a re um renascimento não institucional do político,
vontade de participar de uma esfera pública mais em que distintas áreas sociais passam a se consti-
ampla14,15,21. tuir como uma nova cultura política. Assim, se na
No estudo do processo de politização do con- modernidade clássica o conceito de política signi-
sumo, Halkier e Holm15 e Stolle et al.6 enfatizam ficava deixar a esfera privada para se dedicar à
o engajamento dos consumidores em dois con- pública, com a atual invasão do político na esfera
juntos de práticas de consumo político: boicotes privada as experiências que eram consideradas
e buycotts. Tais práticas se relacionam, no pri- declínio ou morte da política podem ser pensadas
meiro caso, à negação do consumo de produtos como reposicionamento do político. Na moder-
e serviços por considerações sociais e/ou ambi- nização reflexiva, esse autor observa uma ampli-
entais e, no segundo, à opção intencional por ação do conceito de política na medida em que a
produtos e serviços percebidos como social e/ou redução da participação pública nas esferas tra-
ambientalmente amigos. Cabe citar, ainda, um dicionais reflete um processo de transição em que
terceiro conjunto de práticas: as de uso racional as velhas políticas dão lugar às novas políticas,
de bens e serviços na esfera doméstica e cotidiana concentradas na vida privada.
(como água, energia e transportes) e separação Esse renascimento não institucional do polí-
de resíduos para reciclagem19,22. tico pode ser explicado por meio do conceito de
Essas práticas que ocupam novos espaços subpolítica, uma política à margem e além das
fora do campo político tradicional podem ser instituições políticas dos Estados-Nação; uma
analisadas através de propostas analíticas desen- política direta que envolve a participação indivi-
volvidas por autores como Jeffrey Alexander7, dual nas decisões. Para Beck16, na sociedade de
Anthony Giddens9,23 e Ülrich Beck10,16, que não risco global, a privacidade – como a menor unida-
desmerecem a vida privada como espaço de luta de concebível do político – contém dentro de si a
pela emancipação14,22. Assim, o consumo políti- sociedade mundial. Esta nova qualidade do polí-
co pode ser compreendido como consequência tico se fortalece justamente com a expansão da
de fatores que têm transformado práticas locais preocupação ecológica e com os riscos associa-
e experiências sociais nas últimas décadas, como dos ao desenvolvimento tecnológico.
a globalização, a destradicionalização e a reflexi- A teoria neomoderna proposta por Alexan-
vidade social. der7 ajuda a compreender a transição no padrão
Giddens9 ressalta que, em uma ordem social de engajamento político das sociedades contem-
pós-tradicional, perderíamos as referências da- porâneas, das ações radicais-coletivistas, predo-
das pelas tradições, tendo que decidir e escolher, minantes no período de antimodernização dos
por nós mesmos, na condição de indivíduos e hu- anos 1960 e 1970, para as ações romântico-indi-
manidade coletiva, o que é a natureza e como deve- vidualistas, típicas do período de neomoderni-
mos organizar nossas vidas em relação a ela. Com zação, a partir dos anos 1990. Essas formas emer-
isso, os indivíduos precisam se acostumar a refle- gentes de ação política seriam mais realistas e
tir e a filtrar as informações sobre todos os aspec- pragmáticas por enfatizarem a ação de indivídu-
tos rotineiros da vida cotidiana, tomando deci- os reais e não de sujeitos históricos coletivos, como
sões com base nessas reflexões e conhecimentos. as categorias “nação”, “classe social” ou “movi-
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local e um reencaixe global, com um impacto cada mas envolve uma questão individual cada vez
vez maior de eventos locais em contextos distan- mais importante, bem como, ultimamente, uma
tes de uma ordem globalizada. Assim, certos in- questão de moralidade, materializada nas esco-
divíduos passaram a se autoatribuir responsa- lhas dos consumidores. Com isso, as reflexões
bilidades27 ante consequências distantes, comple- cotidianas passaram a incluir aspectos como a
xas e abstratas de suas escolhas e hábitos, inse- globalização, a responsabilidade individual, o
rindo a vida cotidiana no campo político. Por julgamento científico e as pressões socioeconô-
sua vez, os consumidores globais ficam vulnerá- micas. Os riscos, que à primeira vista pareciam
veis a práticas, regulações e rotinas originadas somente uma tragédia humana e ambiental, pas-
em regiões distantes e desconhecidas. Com isso, saram a abrir janelas de oportunidades políticas
as negligências, fraudes e adulterações do com- no campo da alimentação.
plexo agroalimentar industrial hegemônico pas- Na era da alimentação globalizada, as fron-
sam a representar riscos para todos os consumi- teiras entre os contextos locais e global apresen-
dores de alimentos. tam-se cada vez mais diluídas. Desta maneira, a
Importante destacar que não é somente o fato alimentação constitui um fenômeno político úni-
de a comida se tornar globalizada que faz da ali- co, pois o alimento, mais do que qualquer outro
mentação um campo político, nem mesmo a produto, é profundamente absorvido por com-
ampliação dos interesses, relações e instrumen- plexas relações. E isso se dá, segundo Lien2, em
tos regulatórios envolvidos na trajetória do ali- três sentidos. Primeiramente, em relação às im-
mento da produção ao consumo. Um potencial plicações biológicas da alimentação, ou seja, a
maior de interesses divergentes e conflitantes tor- necessidade humana fisiológica de se alimentar
na as relações políticas do alimento e da comida diariamente. Historicamente, os sistemas agroa-
mais significativas, pois cada alimento passa a limentares foram desenvolvidos para assegurar,
ser reconhecido como um produto que possui de diversas formas, o suprimento estável de ali-
uma história e implicações mais complexas e pro- mentos: domesticação, exploração, reciprocida-
fundas do que se pensara até então. de e comércio. Esta relativa estabilidade tornou
O espaço entre “o que sabemos” e “o que po- os seres humanos vulneráveis, fracos e fáceis de
deríamos saber” confere à segurança e à trans- controlar, o que torna o campo da alimentação
parência um caráter fundamental nas análises parte de estruturas de subordinação, governan-
sobre a alimentação contemporânea2. Por isso, ça e dominação.
uma abordagem política do campo da alimenta- Em segundo lugar, a alimentação caracteriza
ção é, ao mesmo tempo, silenciosa e expositiva uma rotina cotidiana, um meio conveniente de
na medida em que envolve o poder de controlar expressar distinções sociais e cerimoniais que
o que será declarado e a definição do foco de naturaliza relações comunitárias ou hierárqui-
debate público, assim como o que deixará de ser cas. O significado simbólico da comida em um
declarado. As relações abstratas entre produto- contexto social pode ser visto como sedimenta-
res e consumidores, o enfraquecimento da auto- ção de estruturas históricas de poder e desigual-
ridade especialista e a divulgação frequente dos dade que operam ao longo de gerações2,17. Desta
escândalos alimentares na mídia são aspectos que forma, a alimentação se torna uma força estru-
fazem com que os consumidores sintam mais tural e estruturante.
fortemente a impossibilidade de ser e estar bem Em terceiro lugar, o campo da alimentação
informados2. passa a ser entendido como “ciência nutricional”,
Desta forma, a politização do campo da ali- uma vez que a nutrição se tornou um dos mais
mentação parece ir além de um processo seletivo significativos campos da medicina preventiva e
de escolha por um alimento específico dentro de um agente estruturante das escolhas alimentares
uma miríade de possibilidades. A questão sobre contemporâneas. A nutrição contraria, ao mes-
qual item deve ser politizado por si só se tornou mo tempo, os interesses agrícolas, da indústria
um instrumento político em razão dos dilemas e alimentar, da comida nacional e das políticas
ambiguidades envolvidos nas escolhas cotidia- nutricionais2. Desta forma, as conexões entre o
nas dos consumidores. alimento e o corpo podem evidenciar conflitos
Nerlich3 entende que a escolha dos riscos que entre diferentes interesses: políticos, de negócios
mais nos preocupam está associada a formas e da ciência.
sociais específicas, pois são simultâneas às esco- Esta abordagem política do campo da alimen-
lhas dos estilos de vida. O risco não é construído tação passa ao largo das instituições estatais for-
apenas de uma forma científica, social e cultural, mais, especialmente pela crise de legitimidade que
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Colaboradores
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