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A alimentação no contexto contemporâneo:

ARTIGO ARTICLE
consumo, ação política e sustentabilidade

Food in the contemporary context:


consumption, political action and sustainability

Fátima Portilho 1
Marcelo Castañeda 1
Inês Rugani Ribeiro de Castro 2

Abstract The interdisciplinary field of reflections Resumo O campo interdisciplinar de reflexões


on food as politics goes through a process of expan- sobre a alimentação como campo político passa
sion and overflow to the private sphere, and rou- por um processo de expansão e transbordamento
tine daily food consumption. This process seems to para a esfera privada, cotidiana e rotineira do
be a reflection of transformations in the global agri- consumo alimentar. Tal processo parece ser refle-
food markets, the wide publicity and awareness of xo de transformações nos mercados agroalimen-
food hazards and the politicization of consump- tares globais, da ampla percepção e publicização
tion. To the extent that individuals are to assume dos riscos alimentares e da politização do consu-
responsibility for the environmental and social mo. Uma vez que os indivíduos assumem respon-
consequences of their everyday choices, the speci- sabilidades sobre as consequências ambientais e
ficity of political power in contemporary societies sociais de suas escolhas cotidianas, a especificida-
goes beyond the institutional level (food security de política da alimentação nas sociedades con-
and nutrition, social inequalities in access to food, temporâneas extrapola a esfera institucional (se-
agricultural policies and regulations advertising gurança alimentar e nutricional, desigualdades
of food) to meet the private sphere. This paper sociais no acesso à alimentação, políticas agríco-
shows, initially, some of the recent debates about las e regulamentação da publicidade de alimen-
the process of politicization of consumption and tos) para atingir a esfera privada. O artigo abor-
then explores a theoretical reflection on the ethi- da alguns dos recentes debates sobre o processo de
cal, political and ideological habits that relate to politização do consumo e faz uma reflexão teórica
food consumption, including the locations and ways sobre as dimensões ética, política e ideológica que
1
Programa de of acquiring and food preparation, the values of relacionam hábitos de consumo alimentar, inclu-
Pós-Graduação de Ciências environmental preservation, solidarity with local indo locais e formas de aquisição e preparo dos
Sociais em
producers and reflexive caution against food risks. alimentos, valores de preservação ambiental, so-
Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade, Finally, points to a research agenda capable of cap- lidariedade com pequenos produtores locais e pre-
Universidade Federal Rural turing the processes of politicization of food and caução reflexiva ante os riscos alimentares. Aponta
do Rio de Janeiro. Av.
consumer practices in the field of political power. ainda uma agenda de pesquisa capaz de captar
Presidente Vargas 417, 9º
andar, Centro. 20071-003 Key words Food consumption, Political action, processos de politização da comida e práticas de
Rio de Janeiro RJ. Sustentability, Risks, Politicization of consump- consumo político no campo da alimentação.
faportilho@uol.com.br
2
Instituto de Nutrição,
tion Palavras-chave Consumo alimentar, Ação polí-
Universidade do Estado do tica, Sustentabilidade, Riscos, Politização do con-
Rio de Janeiro. sumo
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Portilho F et al.

Introdução: Daí surge a questão que pretendemos abordar:


a alimentação como campo político como a comida tem se transformado em um
objeto político por excelência?
As reflexões sobre alimentação e nutrição como Como caso paradigmático para a politização
campo político costumam enfatizar um conjunto da alimentação, tem sido apontado o escândalo
de questões tradicionalmente relacionadas à are- da doença “encefalopatia bovina espongiforme”
na do Estado, tais como segurança alimentar e (Bovine Spongiform Encephalopathy – BSE), po-
nutricional, direitos humanos, desigualdades so- pularmente designada como “doença da vaca lou-
ciais no acesso à comida, políticas nutricionais e ca”, ocorrido na Inglaterra em 1996 devido à reci-
agrícolas, bem como a regulamentação da publi- clagem, sem controle, de carne, ossos, sangue e
cidade de alimentos. Ao considerar o sistema agro- vísceras usados na fabricação de ração animal.
alimentar global, as análises se voltam mais para Tal escândalo provocou reações em cadeia em
as regras do comércio internacional de commodi- todo o mundo e fez emergir uma forte consciên-
ties, a dominação das corporações multinacio- cia do risco, abalando a confiança pública nas
nais, a expansão do setor supermercadista, a des- instituições políticas e científicas e desencadeando
regulamentação e globalização dos mercados um amplo debate sobre as consequências da pro-
agroalimentares e a valorização de qualidades es- dução de “comida barata” na esfera pública ingle-
pecíficas e de origem. Em uma arena micropolíti- sa2,3. Com a eclosão de outros escândalos alimen-
ca, tais reflexões costumam enfocar aspectos como tares – como a febre aftosa, a salmonela e a “gripe
a organização social do trabalho e o papel dos suína” – e o advento dos organismos genetica-
gêneros na produção doméstica da comida1,2. mente modificados, a partir da década de 90, a
Tais reflexões utilizam tradicionalmente uma alimentação deixou de ser uma questão debatida
abordagem estadocêntrica, considerando a co- apenas nos círculos restritos que definiam as po-
mida como um conjunto de nutrientes e a políti- líticas de segurança alimentar e nutricional para
ca como aquilo que as instituições fazem ou dei- ganhar a grande mídia, o debate público e a esfera
xam de fazer. No entanto, aspectos como a crise das decisões cotidianas de uma nova “agenda da
de legitimidade que caracteriza a vida política mesa da cozinha”4, em especial no contexto euro-
contemporânea e a desregulação e liberalização peu. Com isso, a alimentação começa a ser politi-
que passam a afetar a produção agroalimentar a zada tanto em suas formas de produção, distri-
partir da década de 1990 contribuem para tornar buição e comercialização quanto em suas formas
estreito o foco exclusivo em políticas institucio- e locais de aquisição e preparo dos alimentos.
nais, burocracias ou representantes políticos. Ao Barbosa5 assinala uma transição do ato de co-
considerar que a política, assim como a comida, mer como a passagem de uma atividade corriquei-
encontra-se enraizada em práticas sociais, dis- ra, prazerosa, privada e familiar para uma prática
cursos, controvérsias e convenções que nem sem- altamente consciente, regulada e política. Neste con-
pre são rotuladas como “políticas”, Lien2 entende texto, indica as origens múltiplas da complexidade
que uma abordagem puramente institucional da atual do campo da alimentação: o conhecimento
alimentação como campo político não é mais científico sobre a nutrição humana e a medicina; o
capaz de capturar o vasto leque de conexões exis- movimento ecológico, que pauta as implicações
tentes entre a produção, a distribuição e o consu- ambientais decorrentes do tipo de alimentação que
mo de alimentos. as sociedades ocidentais contemporâneas adotam;
Neste artigo, nos propomos a destacar e re- os movimentos sociais em defesa de populações
fletir sobre um novo aspecto político e politiza- que vivem de métodos tradicionais de produção e
dor da alimentação. Isso não quer dizer, eviden- se encontram ameaçadas pelas transformações
temente, que a abordagem institucional não seja ocorridas no campo; os movimentos em defesa
relevante nem que questões como a segurança dos animais; o processo de globalização; e o desen-
alimentar e nutricional não sejam menos impor- volvimento das ciências sociais que vêm abordan-
tantes hoje do que sempre foram. A dimensão do os fenômenos de forma mais processual e rela-
política da alimentação tem sido expandida em cional, por meio da análise de redes.
novas direções. Certos fatos, como os escânda- Assim, se o campo da alimentação é politiza-
los alimentares, as controvérsias científicas, a do através das políticas de produção agrícola e
percepção e a publicização de riscos, as ideologi- das políticas distributivas e nutricionais, cabe
as alimentares e os discursos e práticas de consu- destacar que este processo de politização tam-
mo consciente, colocam o tema da alimentação, bém se dá a partir da percepção dos riscos e da
cada vez mais, no centro dos debates políticos. possibilidade de uso político das escolhas de con-
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sumo. Neste sentido, a comida permanece um e, ao mesmo tempo, uma reestruturação dos vín-
meio de reciprocidade que, ao constituir relações culos entre consumo e cidadania: a expansão das
significantes em diferentes níveis e de diferentes comunicações e do consumo geram associações de
tipos, se transforma em um novo objeto político consumidores e lutas sociais, ainda marginais, mas
contemporâneo, já que muitas relações consti- melhor informados sobre as condições nacionais e
tuídas por e através da sua mediação são tam- internacionais.
bém relações de poder, devendo ser analisadas Entendemos como consumo político a per-
como tal2. Afinal, ações que contestam as rela- cepção e o uso das práticas e escolhas de consu-
ções de poder existentes podem tomar diferentes mo como uma forma de participação na esfera
formas 2. Ao prestarmos atenção nas formas pública4,6,11-15. Trata-se de uma tentativa de dar
menos óbvias em que o campo da alimentação é concretude à adesão a valores em prol de melho-
politizado, buscamos contribuir para um me- rias sociais e ambientais, materializando-os e tor-
lhor entendimento tanto da política quanto da nando-os públicos. Neste contexto, as ações e esco-
alimentação contemporânea. lhas mais triviais e cotidianas são percebidas como
Para uma abordagem política da alimenta- podendo influenciar rumos globais, ao mesmo
ção, propomos, inicialmente, considerar o pro- tempo que se tornam globalmente determinadas9.
cesso de ambientalização e politização do consu- Desta forma, a vida privada torna-se o lócus de
mo, ou seja, a percepção e o uso do consumo um novo tipo de ação política em que o aspecto
como uma forma de ação política, materializan- politizador se constitui no fato de que o micro-
do e tornando públicos valores e comprometi- cosmo das condutas pessoais se inter-relaciona
mentos ambientais e sociais. Em seguida, descre- com o macrocosmo dos problemas globais16.
veremos as transições do campo da alimentação Ao considerar essas transformações, os pró-
como campo político2,3 e, como conclusão, apre- prios conceitos de consumo e de sociedade de con-
sentaremos uma necessária agenda de pesquisa sumo são repensados pelas ciências sociais, uma
capaz de captar os processos de politização da vez que categorias tradicionalmente atribuídas a
comida e as práticas de consumo político no cam- eles, como individualismo, insaciabilidade, super-
po da alimentação. ficialidade, anomia e alienação, são contrapostas
à observação empírica de processos que associ-
am as práticas de consumo a valores como soli-
A politização e a ambientalização dariedade, responsabilidade, participação social e
do consumo e da vida cotidiana cidadania. Com isso, o consumo deixa de ser ape-
nas uma forma de reprodução das estruturas
A nova abordagem da alimentação como campo sociais reinantes17 para se tornar também, e cada
político pode ser compreendida dentro do qua- vez mais, um instrumento e uma estratégia de
dro mais amplo de análise dos processos de am- ação política que incorpora valores como solida-
bientalização e politização da vida privada e coti- riedade e responsabilidade socioambiental.
diana, traduzidos, em especial, na percepção e no A relação entre consumo e política pode ser
uso do consumo como prática política, o que observada ao prestarmos atenção nas novas ide-
tem sido chamado de consumo político6. ologias, discursos e movimentos sociais que pro-
Autores como Alexander7, Canclini8, Giddens9 põem, como solução para o enfrentamento de
e Beck10, entre outros, têm destacado mudanças problemas sociais e ambientais, práticas de con-
nas formas de participação na esfera pública e no sumo responsável, consciente, ético ou sustentá-
repertório de ação política das sociedades con- vel. Tal fenômeno pode ser considerado sob o
temporâneas. Nesse sentido, apontam para uma rótulo mais amplo de consumo político. Cabe
mudança das formas convencionais de participa- destacar que pesquisas empíricas que analisam
ção política via instituições e ação coletiva – como como e por que (ou por que não) os cidadãos
sindicatos, partidos políticos e movimentos soci- individuais percebem suas responsabilidades e
ais institucionalizados – para formas considera- seu papel nas atividades cotidianas de consu-
das mais autônomas, menos hierárquicas e não mo4,13-15,18,19 observam tensões, dilemas, incor-
institucionalizadas de participação, incluindo boi- poração, negociação e negação desses ideais. Afi-
cotes, compras responsáveis e petições on-line. nal, o campo do consumo envolve uma encruzi-
Ao considerar essas transformações nas for- lhada de valores e práticas em disputa (consump-
mas de engajamento político, Canclini8 aponta tion junction, na expressão de Stolle et al.6).
uma redução da participação, do interesse e da Dessa forma, o termo consumo político, ou
confiança nas instituições políticas tradicionais politizado, tem sido utilizado para se referir ao
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uso do consumo como uma arena de tomada de Assim, o relativo crescimento da liberdade de
decisão carregada de potenciais conflitos de va- escolha dos consumidores é conectado a uma
lores e desejos, de capacidade política e de restri- busca pela emancipação, identidade pessoal e
ções socioeconômicas8,13,14. Essa visão difere das autonomia na esfera privada, apontando para
visões convencionais sobre o fenômeno do con- novas formas de ação política. Com base nesses
sumo, que tendem a vê-lo ou como mera com- fenômenos, novas preocupações se juntariam às
pra e aquisição de bens e serviços no mercado políticas emancipatórias tradicionais, dando ori-
com base em decisões sobre preço e qualidade gem às políticas de vida, que apontam para um
ou como gastos desmedidos e supérfluos20. Inte- padrão de engajamento relacionado às lutas so-
ressa destacar que o enfoque do consumo políti- bre como queremos viver, como indivíduos e
co não aborda apenas consumidores engajados como humanidade, num mundo que era deter-
em movimentos sociais institucionalizados, mas minado pela tradição e pela natureza e que agora
enfatiza também, e principalmente, aqueles ato- se encontra, cada vez mais, submetido às deci-
res sociais “não organizados” e difusamente po- sões humanas.
litizados que se situam entre o anonimato e a Beck10,16 enfatiza que, em contraposição à des-
vontade de exercer um papel político, entre as crença nas instituições políticas tradicionais, ocor-
preocupações cotidianas da esfera privada e a re um renascimento não institucional do político,
vontade de participar de uma esfera pública mais em que distintas áreas sociais passam a se consti-
ampla14,15,21. tuir como uma nova cultura política. Assim, se na
No estudo do processo de politização do con- modernidade clássica o conceito de política signi-
sumo, Halkier e Holm15 e Stolle et al.6 enfatizam ficava deixar a esfera privada para se dedicar à
o engajamento dos consumidores em dois con- pública, com a atual invasão do político na esfera
juntos de práticas de consumo político: boicotes privada as experiências que eram consideradas
e buycotts. Tais práticas se relacionam, no pri- declínio ou morte da política podem ser pensadas
meiro caso, à negação do consumo de produtos como reposicionamento do político. Na moder-
e serviços por considerações sociais e/ou ambi- nização reflexiva, esse autor observa uma ampli-
entais e, no segundo, à opção intencional por ação do conceito de política na medida em que a
produtos e serviços percebidos como social e/ou redução da participação pública nas esferas tra-
ambientalmente amigos. Cabe citar, ainda, um dicionais reflete um processo de transição em que
terceiro conjunto de práticas: as de uso racional as velhas políticas dão lugar às novas políticas,
de bens e serviços na esfera doméstica e cotidiana concentradas na vida privada.
(como água, energia e transportes) e separação Esse renascimento não institucional do polí-
de resíduos para reciclagem19,22. tico pode ser explicado por meio do conceito de
Essas práticas que ocupam novos espaços subpolítica, uma política à margem e além das
fora do campo político tradicional podem ser instituições políticas dos Estados-Nação; uma
analisadas através de propostas analíticas desen- política direta que envolve a participação indivi-
volvidas por autores como Jeffrey Alexander7, dual nas decisões. Para Beck16, na sociedade de
Anthony Giddens9,23 e Ülrich Beck10,16, que não risco global, a privacidade – como a menor unida-
desmerecem a vida privada como espaço de luta de concebível do político – contém dentro de si a
pela emancipação14,22. Assim, o consumo políti- sociedade mundial. Esta nova qualidade do polí-
co pode ser compreendido como consequência tico se fortalece justamente com a expansão da
de fatores que têm transformado práticas locais preocupação ecológica e com os riscos associa-
e experiências sociais nas últimas décadas, como dos ao desenvolvimento tecnológico.
a globalização, a destradicionalização e a reflexi- A teoria neomoderna proposta por Alexan-
vidade social. der7 ajuda a compreender a transição no padrão
Giddens9 ressalta que, em uma ordem social de engajamento político das sociedades contem-
pós-tradicional, perderíamos as referências da- porâneas, das ações radicais-coletivistas, predo-
das pelas tradições, tendo que decidir e escolher, minantes no período de antimodernização dos
por nós mesmos, na condição de indivíduos e hu- anos 1960 e 1970, para as ações romântico-indi-
manidade coletiva, o que é a natureza e como deve- vidualistas, típicas do período de neomoderni-
mos organizar nossas vidas em relação a ela. Com zação, a partir dos anos 1990. Essas formas emer-
isso, os indivíduos precisam se acostumar a refle- gentes de ação política seriam mais realistas e
tir e a filtrar as informações sobre todos os aspec- pragmáticas por enfatizarem a ação de indivídu-
tos rotineiros da vida cotidiana, tomando deci- os reais e não de sujeitos históricos coletivos, como
sões com base nessas reflexões e conhecimentos. as categorias “nação”, “classe social” ou “movi-
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mentos sociais”. As narrativas e formas de ação mo alimentar, às responsabilidades derivadas
política atuais – emancipatórias, individualistas desta consciência, às implicações da globalização
e românticas, mas igualmente heroicas – pare- e ao teor político e ideológico destas questões26.
cem conectadas a uma ampla variedade de ações Assim, e para além de práticas relacionadas com
na esfera do mercado. a satisfação de necessidades nutricionais, mode-
Assim, e por meio do que denomina de “re- ladas pela cultura e imprescindíveis para a vida e
convergência neomoderna”, Alexander7 enfatiza a sobrevivência humanas1, o “comer” torna-se
o (res)surgimento de uma narrativa emancipa- também um ato político e ideológico.
tória do mercado em que este passa a ser visto Lien2 aponta a governamentalidade, o pro-
como uma relação social e interativa, e não mais blema dos riscos e a dimensão de natureza da
apenas um mercado capitalista explorador, na comida como algumas das principais facetas
medida em que a narrativa heroica reaparece por politizadoras presentes nos estudos contempo-
meio de movimentos sociais com uma ampla râneos sobre alimentação.
variedade de motivações para construir novos Na perspectiva da alimentação como gover-
direitos e formas de ação. namentalidade, a comida surge como mediado-
Todos esses processos podem, ainda, contri- ra das relações entre o Estado, as corporações e
buir para aumentar o sentimento de pertenci- os indivíduos e, ainda, entre a nação e seu corpo
mento na sociedade, uma vez que os consumi- humano, envolvendo, assim, a socialização dos
dores podem perceber o significado de suas pró- membros da família como bons pais, boas cri-
prias ações em relação aos seus efeitos no meio anças e bons cidadãos, bem como a construção
ambiente e em outros grupos sociais, conectan- de sujeitos éticos e de probidade moral. Em rela-
do as esferas local e global23. Isso poderia produ- ção à crescente percepção dos riscos na alimen-
zir sentimentos de cidadania mais fortes, uma tação, destacam-se estudos sobre reflexividade
vez que os consumidores podem passar a ver institucional, incerteza e confiança. Se o que é
suas próprias práticas como pertencendo a uma considerado perigoso na comida escapa aos sen-
comunidade política mais ampla4,8. tidos, a confiança em relação à comida passa a
O ato de selecionar e adquirir mercadorias, ser abstrata, envolvendo “políticas discursivas” e
portanto, não pode ser compreendido como um formas de construir e organizar o debate públi-
ato individual e individualizante. Ao contrário, o co, publicizando ou silenciando sobre os riscos.
consumo se relaciona a duas formas de alterida- Finalmente, a dimensão da comida como natu-
de24: uma relação entre quem compra e para reza envolve uma imagem idealizada desta últi-
quem se compra, em geral a família, e uma rela- ma, oposta à cultura e tecnologia, que captura
ção cosmológica que transcende qualquer utili- nossa imaginação do que é bom, saudável, ver-
dade imediata, pois assume a forma não de sujei- dadeiro e autêntico.
to ou objeto, mas dos valores aos quais as pessoas Para além dessas facetas, Lien2 aponta a capa-
desejariam se dedicar. A seleção de mercadorias cidade de efetuar conexões como a característica
está, portanto, relacionada às relações sociais e que confere especificidade política às práticas ali-
aos valores mais importantes para a pessoa res- mentares nas sociedades contemporâneas. Neste
ponsável por esta tarefa. Assim, a ideia de res- sentido, as conexões marcam politicamente o
ponsabilidade pode ser ampliada para outros campo da alimentação, indicando possibilidades
grupos sociais e para uma ideia abstrata de “mun- de dissolver muitas distinções preconcebidas entre
do”, “natureza” e “planeta”25. natureza e cultura, produção e consumo, moral e
mercado, família e sociedade, individual e coletivo,
corpo e mente2. Desta forma, o campo da alimen-
O aspecto político e politizador da comida: tação se torna político na medida em que muitas
transformações no campo da alimentação relações de poder se constituem nele e por meio
dele. A alimentação passa a configurar um cam-
Os anos 1990 representaram uma virada histó- po de disputas específicas que conectam o corpo
rica na configuração da alimentação como cam- individual a comunidades abstratas, ao meio
po político. Com isso, cada garfada passa a arti- ambiente, a inovações tecnocientíficas e a concei-
cular experiências locais, particulares e subjetivas tos morais, evidenciando dilemas acerca dos ris-
do ato de comer a eventos que ocorrem no cená- cos e do controle que caracterizam a produção de
rio global. Este novo papel da alimentação nas alimentos nas sociedades contemporâneas.
sociedades contemporâneas se relaciona à maior Lien2 compreende, assim, um movimento
consciência das questões envolvidas no consu- duplo de mudança, que envolve um desencaixe
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local e um reencaixe global, com um impacto cada mas envolve uma questão individual cada vez
vez maior de eventos locais em contextos distan- mais importante, bem como, ultimamente, uma
tes de uma ordem globalizada. Assim, certos in- questão de moralidade, materializada nas esco-
divíduos passaram a se autoatribuir responsa- lhas dos consumidores. Com isso, as reflexões
bilidades27 ante consequências distantes, comple- cotidianas passaram a incluir aspectos como a
xas e abstratas de suas escolhas e hábitos, inse- globalização, a responsabilidade individual, o
rindo a vida cotidiana no campo político. Por julgamento científico e as pressões socioeconô-
sua vez, os consumidores globais ficam vulnerá- micas. Os riscos, que à primeira vista pareciam
veis a práticas, regulações e rotinas originadas somente uma tragédia humana e ambiental, pas-
em regiões distantes e desconhecidas. Com isso, saram a abrir janelas de oportunidades políticas
as negligências, fraudes e adulterações do com- no campo da alimentação.
plexo agroalimentar industrial hegemônico pas- Na era da alimentação globalizada, as fron-
sam a representar riscos para todos os consumi- teiras entre os contextos locais e global apresen-
dores de alimentos. tam-se cada vez mais diluídas. Desta maneira, a
Importante destacar que não é somente o fato alimentação constitui um fenômeno político úni-
de a comida se tornar globalizada que faz da ali- co, pois o alimento, mais do que qualquer outro
mentação um campo político, nem mesmo a produto, é profundamente absorvido por com-
ampliação dos interesses, relações e instrumen- plexas relações. E isso se dá, segundo Lien2, em
tos regulatórios envolvidos na trajetória do ali- três sentidos. Primeiramente, em relação às im-
mento da produção ao consumo. Um potencial plicações biológicas da alimentação, ou seja, a
maior de interesses divergentes e conflitantes tor- necessidade humana fisiológica de se alimentar
na as relações políticas do alimento e da comida diariamente. Historicamente, os sistemas agroa-
mais significativas, pois cada alimento passa a limentares foram desenvolvidos para assegurar,
ser reconhecido como um produto que possui de diversas formas, o suprimento estável de ali-
uma história e implicações mais complexas e pro- mentos: domesticação, exploração, reciprocida-
fundas do que se pensara até então. de e comércio. Esta relativa estabilidade tornou
O espaço entre “o que sabemos” e “o que po- os seres humanos vulneráveis, fracos e fáceis de
deríamos saber” confere à segurança e à trans- controlar, o que torna o campo da alimentação
parência um caráter fundamental nas análises parte de estruturas de subordinação, governan-
sobre a alimentação contemporânea2. Por isso, ça e dominação.
uma abordagem política do campo da alimenta- Em segundo lugar, a alimentação caracteriza
ção é, ao mesmo tempo, silenciosa e expositiva uma rotina cotidiana, um meio conveniente de
na medida em que envolve o poder de controlar expressar distinções sociais e cerimoniais que
o que será declarado e a definição do foco de naturaliza relações comunitárias ou hierárqui-
debate público, assim como o que deixará de ser cas. O significado simbólico da comida em um
declarado. As relações abstratas entre produto- contexto social pode ser visto como sedimenta-
res e consumidores, o enfraquecimento da auto- ção de estruturas históricas de poder e desigual-
ridade especialista e a divulgação frequente dos dade que operam ao longo de gerações2,17. Desta
escândalos alimentares na mídia são aspectos que forma, a alimentação se torna uma força estru-
fazem com que os consumidores sintam mais tural e estruturante.
fortemente a impossibilidade de ser e estar bem Em terceiro lugar, o campo da alimentação
informados2. passa a ser entendido como “ciência nutricional”,
Desta forma, a politização do campo da ali- uma vez que a nutrição se tornou um dos mais
mentação parece ir além de um processo seletivo significativos campos da medicina preventiva e
de escolha por um alimento específico dentro de um agente estruturante das escolhas alimentares
uma miríade de possibilidades. A questão sobre contemporâneas. A nutrição contraria, ao mes-
qual item deve ser politizado por si só se tornou mo tempo, os interesses agrícolas, da indústria
um instrumento político em razão dos dilemas e alimentar, da comida nacional e das políticas
ambiguidades envolvidos nas escolhas cotidia- nutricionais2. Desta forma, as conexões entre o
nas dos consumidores. alimento e o corpo podem evidenciar conflitos
Nerlich3 entende que a escolha dos riscos que entre diferentes interesses: políticos, de negócios
mais nos preocupam está associada a formas e da ciência.
sociais específicas, pois são simultâneas às esco- Esta abordagem política do campo da alimen-
lhas dos estilos de vida. O risco não é construído tação passa ao largo das instituições estatais for-
apenas de uma forma científica, social e cultural, mais, especialmente pela crise de legitimidade que
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as atinge, em geral, bem como pela desregulamen- solução concreta em relação aos riscos que per-
tação e liberalização que afetam o campo da ali- cebem18. Quando os consumidores negociam as
mentação, em particular. Neste sentido, a contes- normas sociais das práticas de consumo alimen-
tação das relações de poder existentes pode assu- tar, eles estão negociando o controle de suas pró-
mir diversas formas, muitas vezes pelos caminhos prias práticas de consumo.
menos óbvios, como os da vida cotidiana. Lien2
destaca quatro conexões nas relações de poder do
campo da alimentação: (1) entre os sentidos e as Conclusão:
experiências, uma vez que a alimentação evoca e uma necessária agenda de pesquisa
estimula a memória; (2) o conceito de governa-
mentalidade, definido por Michel Foucault; (3) a Conforme exposto, os debates sobre a alimenta-
reflexividade institucional23, sociedade de risco10 ou ção como campo político deixaram a exclusivi-
termos como “dúvida radical”, “incerteza” e “falta dade da esfera política institucional para atingir
de confiança”, que se referem ao conjunto de dile- também as atividades privadas, cotidianas e ro-
mas sentidos contemporaneamente; e, finalmen- tineiras de consumo alimentar.
te, (4) a comida como natureza. As reflexões aqui apresentadas nos levam a
Por fim, é necessário atentar para as políticas um esforço de apontar uma necessária agenda
da natureza englobadas discursivamente pelo ter- de pesquisa capaz de captar esses novos proces-
mo ambientalismo, uma vez que não há uma sos de politização da alimentação, bem como as
natureza única e singular, mas uma diversidade práticas de consumo político nesse campo.
de naturezas contestadas e constituídas através Tal agenda de pesquisa tem se mostrado pro-
de vários processos políticos, sociais e culturais. fícua entre pesquisadores estrangeiros, entre os
Assim, quando um alimento é visto como mais quais se observa vasta produção acadêmica abor-
ou menos “natural”, produzido de um modo dando temas como a governamentalidade, o pro-
mais ou menos “sustentável” ou harmoniosa- blema dos riscos, a dimensão de natureza da co-
mente adaptado a certas noções de natureza, o mida e o consumo político no contexto alimen-
que se tem, de fato, é a inserção dos debates em tar, bem como as conexões nas relações de poder
um campo em que o que prevalece é a dúvida. presentes no campo da alimentação, conforme
Com base em uma pesquisa com consumi- apresentado neste artigo.
dores de alimentos orgânicos na Dinamarca, No entanto, nos parece ainda haver uma ca-
Halkier18 compreende que os riscos associados à rência de reflexões e investigações empíricas so-
alimentação se inserem em teias sociais e cultu- bre consumo político no Brasil, o que contrasta
rais mais complexas e diversificadas do que su- com a observação do crescimento, em nosso país,
põe a racionalidade instrumental dos debates de experiências como redes de produtores e con-
públicos, em especial por parte das instituições sumidores, associações de compras coletivas,
políticas. Em sua análise, a autora demarca as boicotes, buycotts e, ainda, a adoção do consu-
diferentes formas de enxergar os riscos, colocan- mo político por diversos movimentos sociais
do, de um lado, pesquisadores, políticos e admi- como estratégia para alcançar seus objetivos
nistradores que enfatizam questões como quali- como, por exemplo, os movimentos de econo-
dade, segurança e ética alimentar e, de outro, o mia solidária e comércio justo.
público em geral, que se volta mais para as nor- Acreditamos que as reflexões sobre a alimen-
mas sociais práticas que governam o consumo tação como campo político devem incluir investi-
de alimentos. gações relacionadas a questões como a politiza-
Assim, no momento em que os consumido- ção do consumo alimentar como tendência nas
res se dão conta dos riscos associados ao consu- sociedades contemporâneas, as especificidades
mo de alimentos, ingressam na arena política que, desse fenômeno no contexto brasileiro, os limites
no campo da alimentação, se caracteriza pelo cres- e possibilidades desse tipo de ativismo, a capaci-
cente número de escândalos alimentares e confli- dade de o consumo político alterar agendas e pau-
tos de controle e regulação, bem como pelo grande tar políticas públicas e empresariais, a conjuga-
número de discursos conflituosos. Desta forma, ção (ou não) do consumo político com a partici-
alguns consumidores constroem suas práticas pação via formas institucionalizadas e coletivas e
cotidianas de alimentação como uma ação polí- as opções metodológicas capazes de captar os
tica individualizada, local e orientada para uma processos de politização do consumo alimentar.
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Portilho F et al.

Colaboradores

F Portilho, M Castañeda e IRR Castro participa-


ram igualmente na concepção e redação final
deste artigo.

Referências

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