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Povo que Canta

Ciência e militância cultural em Michel Giacometti

«No momento histórico em que a lenta desagregação da nossa velha cultura de


tradição oral se processa em termos violentos – a industrialização necessária, as
migrações internas e externas, as comunicações de massa, no seu conjunto, impelindo o
nosso povo para um novo tipo de cultura, com características cosmopolitas – afigura-
se-nos útil e necessário que, sem compromisso de qualquer espécie, recorramos a
meios técnicos indispensáveis, como são os meios áudio-visuais, para enriquecer, no
sentido de uma melhor objectividade, alguns documentos por nós recolhidos a partir de
1960». Dessa forma, Michel Giacometti define «o espírito e a orientação, assim como
os limites do programa” 1 a que deu o título genérico de «Povo que Canta».
Os documentários que integram «Povo que Canta», apresentam ao público fragmentos
de inquéritos musicais conduzidos por Giacometti e realizados entre os anos de 1970 e
1972.
Conforme é explicitamente assumido, «Povo que Canta» “vem completar, no estrito
plano do registo filmado (…) as recolhas e os estudos iniciados desde 1960”. Mas
“evidencia-se no entanto uma dificuldade, senão mesmo uma contradição”, ao querer
apresentar “em termos televisivos um programa que pretende constituir um arquivo
para o estudo de documentos científicos, forçosamente despidos de todo e qualquer
apriorismo” 2.
A série de documentários televisivos «Povo que Canta» almejava alcançar, na sequência
de dez anos de intenso labor desenvolvido por Michel Giacometti, um propósito
científico.
A questão do reconhecimento da dimensão ou do carácter científico das pesquisas
desenvolvidas por Giacometti tem estado sempre presente. Assim foi em 1960, no início
do seu trabalho, quando vê recusado o apoio solicitado à Fundação Calouste
Gulbenkian, ou após a sua morte, nas opiniões manifestas sobretudo por investigadores
oriundos do meio académico, que “catalogam” o trabalho de Giacometti restritivamente
como colector.
Na formulação mais seriamente assumida por um desses investigadores [em Jorge Freitas
Branco (1993), A Missão], a orientação científica do trabalho desenvolvido por Giacometti
(e não necessariamente o seu valor enquanto produto) é globalmente posta em questão3.
O conceito chave utilizado para esse questionamento é o de institucionalização
enquanto critério de demarcação entre o que será e o que não será conhecimento
científico.

1
Giacometti, Michel. Texto de apresentação do 1º programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do
Museu da Música Portuguesa).
2
Giacometti, Michel. Texto de apresentação da segunda série do programa. Guiões da série televisiva “Povo que
Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa).
3
Ao afirmar que “a sua linha de orientação [de Giacometti] não era a Ciência, pois a ela nunca esteve
institucionalmente ligado”.

1
Mas, mesmo atendendo às dificuldades assinaladas por Giacometti no texto
introdutório, já referido, da segunda série do programa «Povo que Canta», uma
observação atenta do conteúdo dos mais de trinta documentários realizados permitem
considerá-los também sob o ponto de vista da ciência institucionalizada4.
A Giacometti reconhece-se uma perseverança e persistência singulares, qualidades
também utilizadas como argumento para, contrapondo em dicotomia militância e
ciência, lhe negar o reconhecimento científico5.
Todavia, analisando o percurso geográfico em que Giacometti desenvolveu a sua
pesquisa ao longo de mais de duas décadas, verificam-se também traços de uma acção
programada e concertada, acção em que se combinaram elementos caracterizadores de
uma preocupação científica com uma postura militante, participativa e comprometida
com a vida social e cultural do seu tempo. E a série televisiva «Povo que Canta» pode
ser entendida também como expressão dessa postura.
Podemos relacionar a dicotomia estabelecida entre militância e ciência com o
paradigma de “ciência moderna” questionado por Boaventura de Sousa Santos em Um
Discurso sobre as Ciências, ao qual contrapõe um paradigma emergente (talvez mais
apto a enquadrar a postura protagonizada por Giacometti enquanto pesquisador).
Segundo aquele autor, o “conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um
conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções
tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como
natureza / cultura (...), observador / observado, subjectivo / objectivo, colectivo /
individual”.6 E Boaventura Santos acrescenta que “as nossas trajectórias de vida (...) e
os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso
conhecimento, sem o qual as nossas investigações (...) constituiriam um emaranhado de
diligências absurdas”.
Giacometti encontra Portugal num contexto histórico bem definido. É um tempo de
militância cultural, onde, segundo Joaquim Pais de Brito, participam também
“intelectuais e investigadores de distinta formação que, frequentemente em
colaboração ou articulação interdisciplinar, vão ajudar a revelar e melhor conhecer
aspectos decisivos para a compreensão da história social e cultural de um país também
feito de diversidades”, “um movimento de busca e descoberta” do País, movimento em
que «o trabalho de Giacometti (…) vem ocupar um lugar de uma extrema importância
pelo que tem de revelação de um universo fundamental da identidade mais sensual e
física da própria manifestação do canto e da música”, trabalho capaz de “restituir ou
evocar a presença dos executantes já também enquanto indivíduos” 7.

4
Considerando, para o efeito, quatro normas essenciais de conduta no trabalho científico: “a partilha dos
conhecimentos e das descobertas, tornando-os públicos”; “uma avaliação do trabalho segundo critérios impessoais e
pré-estabelecidos”; “a canalização das motivações dos cientistas para o fim institucional da ciência, restringindo as
motivações pessoais”; e a “não aceitação dogmática de qualquer teoria” (normas referidas por José Manuel
Canavarro, em Ciência e Sociedade).
5
Ainda segundo Jorge Freitas Branco, “a sua persistência não era o produto de uma acção programada e
concertada mas uma atitude pessoal de militância”. Em A Missão. Lisboa: Celta Editora (1993).
6
Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento (1996, 8ª Ed.).
7
Brito, Joaquim Pais. Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. Lisboa: IPM/MNE (1995). Este autor refere o
caso de Rosa Ramalho, no âmbito das produções plásticas populares. Podemos acrescentar, no âmbito das expressões
musicais, os nomes de Catarina “Chitas” e Francisco Domingues.

2
«Povo que Canta», apresentando uma “versão por assim dizer, sintetizada, de uma
realidade apreendida na sua totalidade”8, visa cumprir, assim como o «Cancioneiro
Popular Português» e grande parte das edições discográficas produzidas por Giacometti
(onde sobressaem os cinco volumes da «Antologia da Música Tradicional Portuguesa»),
o critério mais amplo do paradigma emergente enunciado por Boaventura de Sousa
Santos: “todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”. Projecto em
que ciência e militância cultural se unem, pondo o conhecimento “à disposição do
homem como património comum”9.
«Povo que Canta» é o resultado visível de quatro campanhas, realizadas nos anos de
1970 a 1972, onde foram prospectadas mais de sessenta e cinco localidades e recolhidos
cerca de setecentos documentos10. A planificação de «Povo que Canta» demonstra o
propósito de, através do conjunto de documentários que o constitui, expor, na sua
diversidade, o universo sonoro captado no percurso feito pelo território nacional, um
percurso feito nos dez anos antecedentes “sem enquadramento institucional e com a
preocupação de captar nos seus próprios contextos quotidianos ou festivos as
manifestações musicais registadas”11.
Assim, as regiões prospectadas são-no sequencialmente – do Algarve ao Minho – e ao
longo de três anos, em campanhas realizadas em meses não coincidentes, evidenciando
a intenção de abarcar no mesmo gesto o calendário agrícola e as diversidades regionais
susceptíveis de registo (não nos esquecendo que se trata, em todo o caso, de um
programa televisivo).
Os condicionalismos que o suporte apresenta – a televisão tem critérios de discurso
expositivo muito próprios que dificilmente se coadunam com exigências de âmbito
científico – foram sendo superados num esforço de adaptação a que não será certamente
alheio o desempenho de Alfredo Tropa enquanto realizador. Mas, para que as
campanhas realizadas tivessem tido o grau de sucesso que «Povo que Canta» atesta, era
indispensável um conhecimento profundo e detalhado do universo geográfico e humano
a perscrutar.
Por outro lado, o modo como Giacometti se relaciona com o informante no acto do
inquérito, observável em distintos momentos nos mais de trinta documentários
8
Giacometti, Michel. Texto de apresentação da segunda série do programa. Guiões da série televisiva “Povo que
Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa).
9
Frase extraída do texto A Arte e a Cultura Popular, de Bento de Jesus Caraça, texto que também ajuda a entender a
questão da militância cultural e o modo como a pratica Giacometti: “A especialidade, o domínio em cada
compartimento da actividade humana, pertencem àquele que a cultiva habitualmente (...). Há, no entanto, em cada
compartimento de actividade, uma margem, larga e luminosa, que interessa ao especialista e a todo o homem, como
homem; uma região que, pertencendo ainda à especialidade, faz, no entanto, já parte daquele conjunto de aquisições
gerais que permitem ao homem encontrar-se no mundo, consciente do seu papel e lugar nele”.
10
Os dados referidos neste texto constam da listagem que acompanha o acervo sonoro adquirido pelo Estado em
1985, guardado no Museu Nacional de Etnologia (MNE). Nessa listagem estão assinalados os registos realizados
aquando das campanhas do «Povo que Canta». Sendo a fonte mais detalhada para o estudo do acervo constituído
pelos registos sonoros realizados por Michel Giacometti entre 1959 e 1982 (os registos posteriores não constam deste
acervo), algumas referências essenciais requerem um aturado esforço de descodificação, que se faz através da audição
de cada fonograma (dos mais de 3500 que constituem o acervo), confrontado o seu conteúdo com os documentos
existentes em papel (listagem e fichas deixados por Giacometti) e com os materiais editados ao longo da sua vida.
Este trabalho, que vem sendo realizado pelo MNE não está ainda concluído, pelo que os dados disponíveis, embora
permitam antever o processo de trabalho seguido por Giacometti (ao menos a sua calendarização e distribuição
geográfica), devem ser considerados sob alguma reserva. As campanhas de «Povo que Canta» tiveram duração
certamente superior à que consta na listagem deixada por Giacometti, pois nesses registos apenas dispomos das datas
em que foram efectuados registos áudio (que efectuou em paralelo com os registos de imagem da RTP).
11
Brito, Joaquim Pais. Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. Lisboa: IPM/MNE (1995).

3
televisivos12 denota uma capacidade de aproximação muito apurada que interessa
realçar pois o modo como Giacometti, enquanto observador, se aproxima do objecto é,
creio eu, um dos traços distintivos da sua pesquisa (diverso, segundo se depreende dos
relatórios e anotações em cadernos de campo, dos modos que seguiam, por exemplo,
Armando Leça, Vergílio Pereira e Artur Santos).
A primeira campanha tem início nas regiões do Baixo Alentejo e Algarve. A campanha,
que terá tido início (ou o seu primeiro registo) em 19 de Abril de 1970, tem a duração
de oito dias, sendo prospectadas uma dúzia de localidades (entre elas, Salir e
Marmelete, no Algarve, e Santo Aleixo, Barrancos, Belmeque e Vilaverde de Ficalho,
no Baixo Alentejo). Obtêm-se, entre outros, os registos da Moda da Lavoura (lugar de
Pedreira, Vilaverde de Ficalho) e a flauta travessa de José de Sousa (em Salir),
apresentadas no primeiro e terceiro programas, os registos da Festa do Espírito Santo
(em Marmelete) e diversos toques de Tamborileiro (em Ficalho), que deram conteúdo,
respectivamente, ao segundo e sexto programas (o programa sobre os Tamborileiros foi
expressamente dedicado a Ernesto Veiga de Oliveira).
A segunda campanha decorre entre 29 de Maio e 4 de Junho de 1970, com um dia de
interrupção. Centrada na região do Alto Alentejo, contempla ainda uma primeira
deslocação da equipa de «Povo que Canta» à Beira Baixa. São visitadas oito
localidades, como Alpalhão, onde é colhido testemunho da representação do seu famoso
Presépio; Estremoz, onde é recolhido o material para o programa sobre Manuel Jaleca e
a viola campaniça, São Bento do Ameixial e Cabaços, onde se registam cantadores da
oração das almas. Ainda nesta campanha é visitada Malpica do Tejo, já na região da
Beira Baixa.
Entre a segunda e a terceira campanhas de «Povo que Canta», Giacometti continuou o
seu trabalho, do qual havia conhecimento através dos cinco volumes da «Antologia» já
editados. O sexto volume seria dedicado à região da Estremadura, região prospectada
durante os meses de Agosto e Setembro de 1971. As cerca de duas centenas de
documentos recolhidos vieram juntar-se aos quarenta e três fados gravados em 1960 em
Lisboa.
A terceira campanha inicia-se em 23 de Junho de 1971, com uma deslocação à Beira
Baixa, onde é registada a Festa de S. João no Rosmaninhal (Idanha-a-Nova, no distrito
de Castelo Branco). Foram dois dias de registos no Ameixial. Após um interregno de
uma semana, a Beira Baixa passa a ser o foco principal das atenções, com inquéritos em
Penha Garcia, onde se captam as imagens e a voz de Catarina “Chitas”, Alcongosta,
com os seus Bombos, havendo mesmo o registo de um despique entre estes e os
Bombos de Lavacolhos (apresentado no vigésimo programa dedicado à temática do
despique). Em Dornelas (nas margens do Rio Zêzere) é gravada a cantilena da roda13,
momento alto da realização de «Povo que Canta», enquanto que em Alcongosta e na
Aldeia-de-Joanes são registados cantos acompanhados a adufe. Já na Beira Alta é
registado o lerar do gado (em Manhouce) e, na Beira Litoral (em Couto Esteves)
captam-se, entre outros registos, uma “cana verde” e a canção do Senhor da Pedra.

12
De «Povo que Canta» tive a oportunidade de visionar 33 documentários que corresponde, em número, aos registos
da RTP, havendo ainda dois textos de guiões de documentários que não alcancei visionar e que não constam dos
registos da RTP.
13
Cuja primeira “lição” foi anotada em 1938 por A. A. Joyce, versão editada por Giacometti no «Cancioneiro
Popular Português». Outra “lição” dessa mesma cantilena foi anotada por Lopes-Graça em 1953, em Paúl. Giacometti
realizou o seu registo áudio em 1969 e, com a RTP, em 1971.

4
A quarta e última campanha de registos do «Povo que Canta» percorre localidades de
Trás-os-Montes e do Minho e Douro Litoral. São registados cantos de S. João (em S.
João do Campo, Terras de Bouro), cantos de trabalho e de romaria em S. Martinho de
Crasto, além de canções de baile, alguns exemplos de música instrumental, com chulas
e valsas a dois violinos e guitarra, e o canto de carpideira, género também registado em
1963 e editado no volume da «Antologia da Música Tradicional Portuguesa» dedicado à
região do Minho.
Esta quarta campanha de «Povo que Canta», a mais longa, realizada no ano de 1972,
tem início em 20 de Setembro e termina a 11 de Outubro. São realizados os inquéritos
sobre a Dança dos Paulitos a que é dedicado o trigésimo primeiro programa14 e, em
Paradela é feito o inquérito com Francisco Domingues, de quem Giacometti gravou os
registos editados no disco «Oitos Cantos Transmontanos». Em Parada de Infanções são
registadas as Malhas, e, em Tuiselo, o Da-la-dou (canção de abaular ) e Faixinha Verde,
outra cantiga das Malhas (de que há registo anterior, feito por Kurt Schindler em
1932)15.
Michel Giacometti encerra com «Povo que Canta» um ciclo do seu trabalho, que teve
como primeiro impulso o contacto com o livro de Kurt Schindler, Folk Music and
Poetry from Spain and Portugal, e as pesquisas por ele realizadas.
As pesquisas de Michel Giacometti em Portugal iniciaram-se precisamente na região de
Trás-os-Montes. Em Fevereiro de 1959, Giacometti realiza cerca de sessenta registos de
cantigas, lhaços de paulitos, bailes de roda, canções de malhas e segadas, romances e
canções de berço. Foram essas primeiras gravações apresentadas por Giacometti a
Lopes-Graça, que, em 1991, nos testemunha: “(...) o que Giacometti me fez conhecer na
sua primeira recolha anunciou uma pessoa capaz de ir mais esclarecidamente e mais
ao fundo, do que até àquela altura (...) trouxe-me a convicção de que finalmente
estamos num bom caminho do conhecimento assente em boas e sérias bases da nossa
música tradicional. Giacometti tinha um plano e um programa que eu não podia deixar
de escusar. Afiancei-lhe, então a minha colaboração até onde pudesse ir...”16.
Esses mesmos registos foram apresentados à Fundação Calouste Gulbenkian no intuito
de obter apoio para a prossecução das pesquisas. Giacometti vê recusado esse apoio por
considerarem o seu trabalho como de amador.17

14
O título do programa é «A dança dos Paulitos em S. Martinho de Angueira». Há discrepância entre a numeração
dos programas encontrada nos registos da RTP e nos de Giacometti. Assim, nos registos da RTP este seria o 32º
programa.
15
A cantiga «Faixinha Verde» na versão recolhida por K. Schindler foi objecto de tratamento composicional por
F.Lopes-Graça, com registo discográfico pela voz de Arminda Correia. Confrontando o registo discográfico da peça
de Lopes-Graça com o registo fonográfico realizado por Michel Giacometti é impressionante a proximidade entre
ambos.
16
Em Lembrança de Michel Giacometti de F. Lopes-Graça, gravado em 1991 (transcrição editada no catálogo da
exposição MICHEL GIACOMETTI, realizada em Macau, editado em 1997 pelo Instituto Português do Oriente.
17
Nessa recusa, protagonizada pela Comissão de Etnomusicologia da FCG, teve papel determinante Artur Santos.
Segundo Cristina Brito da Cruz (2001), “A. Santos punha sistematicamente objecções aos candidatos que não fossem
músicos, que não achava serem etnomusicólogos”. [em Artur Santos e a Etnomusicologia em Portugal (1936-1969)].
Após esta recusa, Lopes-Graça demitiu-se da referida Comissão.
Mas, citando ainda Brito da Cruz, uma das razões principais da recusa da FCG em apoiar Giacometti se prendia com
o facto de este pretender conservar o direito de editar “com ou sem a ajuda da fundação uma antologia de música
popular portuguesa”, o que foi considerado inaceitável pela FCG, respondendo a Directora do Serviço de Música que
“os materiais recolhidos por qualquer investigador devem sempre ficar pertença da Fundação, que oportunamente
lhe dará o destino que entender”. E os registos realizados por Vergílio Pereira, com o apoio e nas condições impostas
pela FCG, continuam ainda hoje inéditos.

5
Não obstante a recusa de apoio por parte da Fundação C. Gulbenkian, Giacometti dá
início ao seu trabalho por conta própria, em colaboração com Lopes-Graça. E o
reconhecimento do mérito do seu trabalho, atestado por personalidades como João de
Freitas Branco, Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, João Gaspar Simões e Miguel
Torga, irá cruzar-se com o reconhecimento da sua presença no mesmo no espaço de
militância cultural.
«Povo que Canta» ocupa uma posição central no conjunto das pesquisas realizadas por
Michel Giacometti. Até 1970, Giacometti havia coligido cerca de 1600 documentos ao
longo de 10 anos de trabalho. Entre 1970 e 1972, são realizados mais de 1100 registos.
Desses, cerca de 700 resultaram dos inquéritos relacionados com o «Povo que Canta».
Após 1972 e até 1982 (ano do último registo considerado no acervo existente no MNE),
foram recolhidos mais quatro centenas de documentos.
É notório que, no período em que se realizou «Povo que Canta», Giacometti dispôs de
algum desafogo, pelo menos no que respeita a suporte para os registos em fita
magnética, facto que atestam a quantidade de registos realizados no espaço de três anos
(se compararmos com a que foi realizada nos dez anos precedentes) e a quantidade de
entrevistas que foram conservadas na forma de registo sonoro.
Sobre Michel Giacometti há ainda muito desconhecimento. Sobrevive muito do mito
romântico do pesquisador solitário que palmilha os caminhos do nosso universo sonoro
em busca de tesouros, quem sabe se sob a forma de uma canção. Há até quem considere,
algo disparatadamente, que as privações e dificuldades que enfrentou eram o motivo da
sua persistência18.
Michel Giacometti “utilizou de princípio um método extensivo de pesquisa e, a seguir, e
de acordo com os resultados obtidos, desenvolveu o seu trabalho em zonas
preestabelecidas de intervenção intensiva (...) Na impossibilidade de, no decurso de
cada uma das investigações, surpreender ao vivo as manifestações musicais inscritas
no calendário agrícola/cristão, procedeu ainda a frequentes e breves pesquisas
circunstanciais. Por outro lado, voltou a registar, em anos consecutivos, o repertório
de comunidades rurais, de grupos ou de intérpretes isolados, com vista à análise de
fenómenos sociais e culturais intervenientes na transformação estrutural e formal de
elementos determinados do nosso património musical. (...) A investigação no terreno
constou de 26 campanhas de mais de 60 dias cada e de 45 incursões breves e pontuais,
abrangendo um total de 78 meses, no decurso dos quais foram investigados mais de 650
localidades e recolhidos quase 2000 espécimes musicais em 450 de entre elas. (...) No
entanto, por motivo de estrita obediência económica, houve a necessidade de
preseleccionar os exemplares musicais objecto de registo mecânico, contrariando,
deste modo, o princípio estabelecido à partida de uma recolha sistemática e sem
exclusivos [sic]. (...) De colaboração com a RTP e organismos cinematográficos
estrangeiros [realizou] um conjunto de 100 horas de documentação filmada retratando
aspectos diversificados da cultura musical popular, apreendida no contexto próprio em
que se exprime.”19

18
No Expresso de 29 de Junho de 1996 pode ler-se, sobre Giacometti, a seguinte sentença: «era um obstinado que
andou dez anos com um gravador pelo país (...) se tivesse as condições ideais não teria feito aquele trabalho».
19
Síntese de Michel Giacometti sobre o seu próprio trabalho, incluído no texto intitulado «A Música Tradicional
Portuguesa e a sua Investigação – Cronologia Geral e Notas Críticas», inédito, documento que integra o acervo do
Museu da Música Portuguesa. Neste trabalho, Giacometti, para além de inventariar grande parte da investigação e das

6
Ao confrontar o texto citado, síntese de Giacometti sobre o seu próprio trabalho,
encontrámos uma perspectiva crítica que nos remete para o enunciado de Boaventura de
Sousa Santos sobre o «paradigma emergente» da ciência. Segundo Sousa Santos, “todo
o conhecimento é auto-conhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo
protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica tem de se conhecer
intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos
metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da
explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma
explicação”20.
Seria absurdo pretender, neste texto e tendo como foco um programa televisivo,
apresentar conclusões sobre o carácter científico do trabalho de Michel Giacometti. E
talvez essa seja a questão menos relevante (as próprias resistências da comunidade
científica, ou no caso, do meio académico dedicado à etnomusicologia, em aceitar
Giacometti, são talvez mais significantes para o auto-conhecimento dessa mesma
comunidade que para o conhecimento de Giacometti e daquilo que Giacometti nos
aporta). Mas o seu legado coloca certamente, a quem compete, um claro desafio, que é
fazer dele um legítimo aproveitamento científico.

Queluz, Novembro de 2003, Alexandre Branco Weffort

publicações realizadas desde o final do século XIX, com César das Neves, até, creio, o ano de 1984 (pois faz
referência, com essa data, a um livro de J.M.Bettencourt: «Para a Sociologia da Música Tradicional Açoriana»)
20
Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento (1996, 8ª Ed.).

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