Você está na página 1de 20

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA

-Bhat- e Mach-e Bangali: A MUTUALIDADE NO TERRENO –

LUCAS DOS SANTOS GUIMARÃES DA FONSECA (A2019134260)


DAVID ADRIANO FREITAS PLÁCIDO (A2019126443)
PROFESSORA: SÓNIA ALMEIDA

MAI/2021

1
-Índice1-

-- -Resumo/Abstract:..................................................................................................................3

Introdução
- “The First Barrier” -.................................................................................................................4

Estado da Arte
- “because the new year’s means a new time, with new hope and new goals” -....................... 5

Metodologia
- “This is not a ‘you’ project, but a ‘us’ project” -.....................................................................6

Contextualização
- “You are now our Brother” -................................................................................................... 8

- “Once it was a struggle but now it becomes a fashionable tradition” -...................................9

Dados Etnográficos
- “In zoom it’s not possible to share food” -..............................................................................9

- “Food is a very powerful weapon to win some people’s heart” -.........................................10

- “First we are Muslims, Second we are Bangla” -..................................................................11

Teorização
- “It’s a ‘us’ Project” -..............................................................................................................12

Conclusão
- “In the future the Boishakhi mela will have a positive effect in communication for both
portuguese and bangladeshi people to have a ‘Bhondon’” -....................................................13

- Bibliografia -..........................................................................................................................14

- Anexo -

1
O nome dos capítulos foram retirados do diário de campo ou das entrevistas para uma “elevação estética”

2
Resumo: Objetiva-se, com base numa etnografia realizada durante três meses numa
organização bangladeshiana localizada na Mouraria, no coração da cidade de Lisboa,
investigar a importância da comida e da comensalidade em associação com o festival do
“Boishaki Mela” e questionar a posição do antropólogo no trabalho de campo a partir de um
terreno marcado pela mutualidade e pela apropriação do projeto etnográfico pela organização.
Além de evidenciar a criação da identidade do “antropólogo” enquanto um “agente de
visibilidade” num terreno acostumado com a etnografia e seus resultados.

Palavras-Chave: “Mutualidade”, “Comensalidade”, “Identidade” e “Metodologia”

Abstract: The aim of this project is based on an ethnography carried out for three months
in a Bengali organization located in Mouraria, at the heart of Lisbon, and it is to investigate
the importance of food – and, consequently, commensality – in association with the
“Boishaki Mela” festival and, later, to question the anthropologist's position in field work
based on our experience, that was marked by mutuality and by the appropriation of the
ethnographic project by the organization. In addition, we also aim at highlighting the creation
of the identity of the “anthropologist” as an “agent of visibility” in a field accustomed to
ethnography and its results.

Keywords: “Mutuality”, “Commensality”, “Identity” and “Methodology”

3
- “The First Barrier” -
A queda pacífica do Estado Novo simbolizou um novo começo democrático para Portugal e,
ao mesmo tempo, embora menos reconhecido, marcou o início duma “nova presença
islâmica” (Tiesler, 2005). Essa presença – inicialmente caracterizada por um forte vínculo
colonial – se expandiu tanto em quantidade quanto em variedade de origem mas,
paradoxalmente, Portugal continuou a não reconhecer tais populações no seu processo de
construção de nação (Vakil, 2000), nem a existência dessas no quotidiano; é, assim, uma
migração caracterizada por “marginalização publica inconsciente da presença muçulmana
portuguesa” (Tiesler, 2005).

Somado à esta marginalização inconsciente, a migração tomou um novo padrão nas últimas
duas décadas do século XX (Pinto, 2014) ;(Tiesler, 2005) ;(Mapril, 2014), que transformaram
o “migrante típico”. Se antes era comum um migrante vir diretamente de países de língua
portuguesa, com alta educação, grandes oportunidades de integração no mercado laboral e
legalização facilitada (Tiesler, 2005), hoje em dia o migrante normalmente provêm de países
do Sudeste Asiático – como o Bangladesh, o Nepal e a Índia – que não falam a língua
portuguesa, também são altamente educados, não encontram grandes oportunidades de
integração laboral e social e têm grandes dificuldades com a legalização (Mapril, 2014).

Esse perfil do novo migrante contribui para a sua marginalização social e precariedade
vivida, a partir desse contexto nasceu uma iniciativa nas ruas da Mouraria; a “Portuguese
Multicultural Academy” com o projeto “Bhondon”. Essa organização nasceu da comunidade
Bangladeshiana com o objetivo de ensinar a língua portuguesa, ajudar na legalização e
distribuir sestas básicas toda semana; “Bhondon” – ou conexão – é o projeto que cuida da
integração na sociedade. É nesse contexto, e nessa organização específica, que realizamos
este trabalho etnográfico todos os sábados – e algumas sextas – durante mais de três meses,
numa verdadeira “step-in, step-out anthropology” (Madden, 2012).

Inicialmente, o objetivo era o estudo do festival do “Boishaki mela”, mas por consequência
da covid-19, do Ramadão e da presença maior doutros temas de interesse metodológico, o
objetivo se torna entender a epistemologia antropológica como um processo de
“corresponsabilidade” (Mapril e Viegas, 2012), e questionar o papel do antropólogo num
terreno onde os interlocutores tomaram iniciativas e construíram o trabalho como algo “de
todos” e não “nosso”. Com esse objetivo, começaremos por apresentar o estado da arte e
explicitar a metodologia utilizada, seguida por uma contextualização do terreno – a

4
“construção do terreno” (Madden, 2012) – e pela apresentação dos dados etnográficos e do
questionamento acima, por fim, concluiremos que fomos utilizados como “agentes de
visibilidade” para tal sociedade que, historicamente, foi tão ignorada no nosso – de todos –
Portugal.

-“Because the new year’s means a new time, with new hope and goals”-
A “zona de teoria” deste trabalho gira em torno de três conceitos chave, a “mutualidade”
(Mapril e Viegas, 2012), o “long-distance nationalism” (Anderson; 1998) e a “relatedness”
(Carsten, 2000), além doutros que estão intimamente ligados aos temas propostos por estes
três; como o “gesto etnográfico” (Cabral, 2007) com a mutualidade ou a comunidade
imaginada (Anderson, 1983) com o “long-distance nationalism”.

As críticas pós-modernas trouxeram consigo um revisionismo disciplinar, que levou à um


desapegar dum positivismo objetivo e o aceitar dum novo conjunto de preocupações teóricas
e a adoção dum método mais “reflexivo” (Sluka, 2008). Na última década, a antropologia
tomou mais um novo rumo em detrimento do pós-modernismo, uma espécie de “turno da
compaixão”, onde repensa a sua relação com o “interlocutor” através duma nova interlocução
marcada pela mutualidade e pela “corresponsabilidade” da construção epistemológica
(Mapril e Viegas, 2012); por outras palavras, a antropologia abandona a ideia pós-moderna
duma etnografia inerentemente “colonialista” para abraçar uma “applyed anthropology”
(Sluka, 2008) que procura a inclusão da comunidade no processo etnográfico.

Isso se dá por que quando começamos um processo etnográfico, iniciamos uma produção de
conhecimento num local e tempo específico; dessa forma, o conhecimento não é encontrado
mas construído (Hoskins, 1998). Entretanto, esse não é um processo unilateral onde o
antropólogo conduz e encontra o conhecimento na “mente do interlocutor”, mas de “dupla
via”, onde tanto o antropólogo quanto o entrevistado têm responsabilidade na produção do
conhecimento etnográfico (Mapril e Viegas, 2012).

A emergência do capitalismo e o avanço tecnológico, “encolheram” o “espaço” (mundo) e o


“tempo” (Inda e Rosaldo; 2002), a partir da criação de transportes e meios de comunicação
que conseguem conectar mais rapidamente a “humanidade”. Esse “encolhimento” permite o
estabelecimento duma relação social transnacional (Basch, Schiller e Blanc; 1994) entre uma
comunidade de migrantes e seu país de origem. Essas relações podem criar um “nacionalismo
de longa distância” (Anderson, 1998), onde os migrantes bangladeshianos em Portugal
podem afetar a política nacional do seu país de origem, como no caso de estudo atual, onde

5
os bangladeshianos são importantes fatores na política e na construção duma memória
nacional (Mapril, 2014); o festival abordado neste trabalho, é intimamente influente na
construção dessa memória que afeta a política e, por isso, se torna necessário considerar tal
dimensão simbólica.

Quando perguntados no primeiro dia “oficial” desta etnografia, nossos interlocutores


enunciaram em “unisom” que a “comida” – e a comensalidade – era a mais importante forma
de criação de “Bhondon” – conexão – com nova pessoas e solidificação de sociabilidades
antigas, e, que, por isso, nosso trabalho “should be about this”. Nesse sentido, convêm
considerar o conceito de “relatedness” da antropóloga Janet Carsten (2000); que é uma
proposta alternativa ao conceito de “patrimônio”, que no contexto malásio se forma através
da comensalidade, ou seja, os indivíduos se “tornam humanos” e estabelecem sociabilidades
a partir do compartilhamento de comida sobre um mesmo teto (Carsten, 1995).

No caso da comunidade bangladeshiana em Lisboa, a comensalidade também se tornou uma


forma central de construção de novas sociabilidades; a partir do compartilhamento de comida
em visitas ou banquetes sociais, os bangladeshianos fazem novos amigos, contatos e
fortalecem amizades antigas (Mapril, 2016). Por fim, é importante salientar que todos esses
conceitos chaves foram essenciais, e presentes a todo momento, na nossa etnografia, desde a
produção de conhecimento até a criação da etnografia enquanto “produto” (Sanjek, 1996)

- “This is not a ‘you’ project, but a ‘us’ project” -


No quadro metodológico da antropologia pode ser muito apelativo reduzir as questões de
metodologia à uma só ideia, a da “observação participante”, mas com a evolução da
disciplina e com a emergência de ideias como a “Mutualidade” (Viegas e Mapril, 2012), o
“Gesto etnográfico” (Cabral, 2007), as “Relações de Poder” (Sluka, 2008), a “Co-presença”
(Beaulieu, 2010) e a “rotina, mobilidade e socialidade” (Pink, 2012), se torna cada vez mais
difícil proceder nessa tentadora redução metodológica; por mais que essa “observação” ainda
seja central na etnografia contemporânea. Em visão desta complexidade metodologia,
objetiva-se a introdução do processo de trabalho de campo e a apresentação de importantes
questões metodológicas; como a “ética”, o “ciberespaço” e o “ciclo de pesquisa etnográfica”.

Nossa etnografia foi realizada durante três meses, de 19 de Fevereiro até 22 de maio, na
organização bangladeshiana “Portuguese Multicultural Academy”, localizada na Mouraria; o
epicentro da migração do sudeste asiático. Além da observação participante, os dados foram
conseguidos através de três entrevistas formais – cada uma com 30 minutos – que foram

6
transcritas e analisadas, além da utilização dum “diário de campo” que era preenchido após o
dia de trabalho normal (distribuição de comida) num formato “virtual”; a partir da ferramenta
do “Google Docs”. Graças à relativa “curta duração” e a não possibilidade de “co-
residencia”, nossa etnografia melhor se encaixa na categoria de “step-in, step-out
anthropology” (Madden, 2012); ou seja, o antropólogo não se limita ao “terreno físico”, mas
volta para sua “base” e continua o processo etnográfico a partir da analise dos dados e da
criação de novas perguntas.

Tal método exige uma “entrada” e “saída” do terreno constante e força a adoção dum “gesto
etnográfico” – movimento tanto físico quando intelectual que leve o cientista a

descontextualizar-se socialmente para re-contextualizar-se no ‘terreno’” (Cabral; 2007, 191).


Esse mecanismo permite ao antropólogo o desconectar de sua vida social e o conectar ao
“terreno” enquanto cientista social; isso é necessário na medida que uma etnografia não é
simplesmente uma experiencia de sociabilização, mas um método cientifico que têm suas
regras metodológicas, lentes teóricas e preocupações epistemológicas (Madden, 2012).

Assim, o gesto etnográfico necessita de um certo “engenho” -– a capacidade de combinar


aquilo que as pessoas que estudamos falam e dizem de forma a permitir melhor conhecer seu
mundo” (Cabral, 2007; 195) – para permitir uma entrada ao terreno; e uma saída e “volta” à
vida social. Graças a uma pandemia internacional, o terreno também continuou
“virtualmente” – através das entrevistas online, perfis sociais dos interlocutores e
acompanhamento das reuniões online da missão “Bhondon” – e tornou-se necessário o
abandono duma antropologia focada na “co-location”, melhor representada pela ideia de
terreno de Malinowski, e a adoção duma metodologia que foca na “co-presence” (Beaulieu,
2010); em outras palavras, é a descentralização do “local” e a adoção das relações sociais
como determinante do terreno.

Ainda numa temática cibernética, também foi importante considerar as redes sociais dos
nosso locutores, na medida que muita da comunicação entre a sociedade e a preparação do
próprio festival é feito através desta. Sendo assim, será necessário utilizar a ideia de “rotina,
mobilidade e socialidade” na análise das redes sociais propostas por Sarah Pink e John Postil
(2012). Em associação com a dimensão “virtual”, este trabalho destaca a etnografia enquanto
um tipo de pesquisa “cíclica” (Spradey, 1980), ou seja, “as you go through the ethnographic
research cycle you will discover new questions to ask; these will guide your data collection.

7
Then, when you analyse your data, new ethnographic questions will come to light, leading
you to repeat the cycle. This process will continue throughout your investigations” (Ibid. 32).

É ainda importante salientar que a proposta ética para este trabalho foi a de utilizar o “código
de ética” da ABA2, Associação Brasileira de Antropologia, de forma integral; na medida que
todos os seus limiares fizeram sentido neste terreno específico. Foi dada especial atenção aos
direitos das populações, que foram informadas, incluídas no processo etnográfico e na
decisão do tema, além da posterior tradução para inglês, de modo que os interlocutores
tenham acesso ao que foi construído sobre eles; esse trabalho não se limita as ações dos
antropólogos, mas, antes, é um projeto de todos envolvidos na missão “Bhondon”. Esse
código de ética em conjunto com a metodologia apresentada acima é responsável pelos dados
etnográficos detalhados e analisados a seguir.

- “You are now our Brother” -

Encontrava-me nervoso antes do primeiro contacto no terreno, mas sentir-me-ia rapidamente


reconfortado através de uma conversa com um senhor paquistanês antes de chegar na
organização, que relatava as suas experiências e expectativas em Portugal. Em poucos
minutos, este convidava-me para tomar um café e chamava-me de “irmão”. Esta pequena
história apresenta o ambiente do Martim Moniz e da Mouraria, que refletem um sentimento
de hospitalidade e conforto dados pelos membros das várias comunidades inseridas. O
mesmo impacto seria sentido dentro da PMAA, na qual há uma aceitação de novas pessoas e
uma partilha de familiaridade, durante o ato de voluntariado e no almoço em conjunto. O
termo de “irmão”, é usado várias vezes no contacto com os nossos interlocutores, que sentiam
este sentimento de família connosco, pois nossa identidade se tornou aquela de “agentes de
visibilidade”; indivíduos que podem retratar e expor os vários pormenores culturais.

O campo etnográfico foi sedutor, e abriu vastas possibilidades de estudo, mas a “construção
do terreno” serviu como “an attempt to put boundaries around an ethnographer’s enquiries
into a human group or institution” (Madden, 2012; 39). Isto acontece, porque o etnógrafo,
assim como todo humano, é um “criador de locais” e na “Portuguese Multicultural Academy”
criamos esse “terreno abstrato” que não considerou todas as dimensões mas se limitou aos
temas da comensalidade, da identidade, do nacionalismo e da mutualidade a partir do estudo
do “Boishaki Mela”; mas qual será a história deste festival?

2
http://www.portal.abant.org.br/codigo-de-etica/

8
- “Once it was a struggle but now it becomes a fashionable tradition” -

No dia 14 de Abril é realizado o “Pohela Boishakh” (o primeiro [Pohela] mês [Boishakh])


que simboliza o Ano Novo do calendário bengalês; o “Boishakhi Mela”, que refere-se a feira
realizada durante este período. O Ano Novo apresenta esperanças e expectativas individuais e
coletivas, sendo um dos festivais nacionais mais importantes. Este festival é classificado
como património cultural imaterial, pela UNESCO3, e apresenta uma forte relação com a
cultura Hindu; é celebrado na Índia e Bangladesh. Além desta ligação cultural e religiosa com
o Hinduísmo, o festival encontra-se correlacionado com a dimensão agrícola.

O Bangladesh foi atingido por grandes fomes: após a partição de territórios coloniais
britânicos, em 1947, que estabeleceria Índia e o Paquistão, que englobava o país dos “bangla”
até a guerra da libertação, em 1971, que marca a independência do Bangladesh (Schendel,
2009). Após a libertação do Bangladesh, as celebrações do “Boishakhi Mela” começaram a
ganhar força através dos estudantes da universidade de Dhâka e, mais tarde, pela população.
Este evento é um marco histórico e cultural que se apresenta no festival, havendo assim a
importância da comida, especialmente do arroz e do peixe, como símbolos das lutas e fomes
do “passado”. Para Rasel o festival representa uma história de superação:

“Once it was a struggle but now it becomes a fashionable tradition. That time people were used to
get this kind of food because they did not have any kind of choice, but now five stars restaurants serve
this dish as one of the most important dishes.”

O festival atualmente não é só regional, do Bangladesh e Bengali (parte da Índia com


costumes e tradições similares), como também demonstra um “long-distance nationalism"
(Anderson, 1998), na medida que é incentivado pelas embaixadas e realizado por várias
diásporas, como pode ser visto no caso da comunidade Bangladeshiana Britânica, onde “both
maintain their ties with their country of origin, and to distinguish themselves as an
ethnic/cultural ‘community’ in Britain based on a secular nationalist Bengali heritage”
(Garbin and Eade, 2006: 185).

3
https://ich.unesco.org/en/RL/mangal-shobhajatra-on-pahela-baishakh-01091

9
- “In zoom it’s not possible to share food” -

Neste país agrícola, que conta com mais de 200 rios, a comida têm o papel principal na
cultura e nas tradições, e fundamenta a ideia do que é ser bangladeshiano, como é indicado
por Alvia: “There is a term “Bathe Mache Bengali”, which means that if you have fish, you
have rice, and you are bengali”. Na Mouraria as várias lojas locais comercializam os
ingredientes procurados pela comunidade, sendo que em alguns casos os produtos vêm em
malas pessoais (Mapril, 2016) ou encontram outras alternativas, como a substituição do
“hilsha” pelo “Sável”.

A comida é uma forma de criar “relatedness” (Carsten, 2000), estabelecendo relações e


solidificando o respeito de amigos, familiares e outros indivíduos. Ambos os interlocutores
que trabalhamos partilharam a mesmo da importância da comida em estabelecer e reforçar
relações (Mapril, 2016). Para o Farhad, a comida é importante na dinâmica de partilha e
convívio com o outro, seria impensável convidar alguém é não haver comida ou não ser
oferecida, “it would be innaceptable”. Para Alvia, qualquer convite tem que se relacionar com
algum tipo de partilha de comida, como processo de gratidão e “Bhondon”.

A importância da comida relaciona-se com a “honra” (um aspecto de grande importância para
a comunidade), e de acordo com Rasel; “food is really important to my culture, as this is the
way to represent their kindness and represent themselves to others”. Existe felicidade e
respeito entre os intervenientes, para quem recebe, mas também para quem organiza. A honra
também se destaca no processo de voluntariado do “Bhondon”, na qual a entrega e ajuda, do
outro, é importante na afirmação das relações entre indivíduos e com a organização. A
importância da comida é demonstrada todos os sábados, com a existência de banquetes após
o trabalho, mas qual será a importância do Boishaki mela?

- Food is a very powerful weapon to win some people’s heart -

O “Boishakhi Mela” não só destaca aspetos religiosos, mas é sentido pelos os nossos
interlocutores como um festival nacional e secular, que têm importância independentemente
de crenças ou culturas individuais, tomando o papel de um promotor de harmonia duma
comunidade imaginada (Anderson, 2000), a partir desta ideia, para Farhad o festival serve
para que “we can create a bond together”. É uma festa compartilhada, com um esforço da
comunidade na preparação e participação do festival, havendo várias comidas disponíveis

10
(como Aloh Bortha, Panta Ilish), uso de roupas tradicionais, feiras e desfiles coloridos. Este
ano o aspecto coletivo não ocorreu, devido ao Ramadã e a Covid, e a importância coletiva
transferir-se para um nível individual, doméstico e familiar, como é indicado pela Alvia.

“You would be surprised that in some festival we offer 50, 60 types of food, so it is not just to eat but
to replicate, we have to represent this kind of food to the person, to such some kind of honor to the
person or to the relative.” - Rasel

Durante o festival, o Rasel afirmou ser normal convidar amigos, relativos e outros
conhecidos, onde troca-se presentes, cozinha-se pratos especiais e se fortalece as
sociabilidades através de um “gostoso” banquete; além da importância simbólica da doação e
das boas ações que são realizadas no festival para a continuação dum ano bom. Mas como
será que se interpelam uma identidade religiosa, ligada ao ramadão, e uma secular, ligada ao
festival?

- “First we are Muslims, Second we are Bangla” -


“This year is an exception, because, normally, in Ramadan it is a little contradictory, because
there is a confront between the tradition of the country and the religious belief.” - Rasel

Na “Portuguese Multicultural Academy” esse ano foi atípico, além da continuação da Covid-
19, o festival do “Boishaki Mela” acabou por acontecer ao mesmo momento do Ramadão –
uma situação “out of the normal” para nossos interlocutores – e se iniciou um confronto entre
uma identidade religiosa associada ao Ramadão enquanto pilar do Islão (Pinto, 2014), e uma
identidade nacional associada ao festival secular do “Boishaki”. Tal confronto identitário foi
tão intenso que até na semana do próprio festival, ainda era difícil encontrar certezas.

Após o festival, Farhad e Rasel reafirmaram a prioridade de suas identidades religiosas. Para
Farhad, mesmo que o estado bangladeshiano seja laico, “so the majority of the people are
firstly fasting and following Islam and secondly following our nationality” e que para ele,
“first we are muslims, second we are Bangla”. Rasel acredita o mesmo e confirma que
“people first respect their Islamic belief”, até mesmo para as minorias doutras religiões que já
estão acostumadas com o mundo simbólico do Islão e acabam o seguindo também. Alvia por
sua vez, acredita que o Ramadão nada influenciou o Boishaki e que se não fosse o Lockdown,
os indivíduos iriam seguir primeiro sua identidade bengali.

11
Embora tal conflito identitário tenha sido um tema recorrente nas nossas entrevistas e nos
apontamentos do diário de campo (por consequência de fatores como a falta de tempo,
bibliografia especializada e a existência de fatores metodológicos importantes), gostaríamos
de destacar a importância de tal tema para o contexto e incentivar uma futura investigação a
fundo. Outra questão recorrente na nossa etnografia foi a vontade de participação na
etnografia por parte de toda a organização, neste contexto, qual será o papel do antropólogo?

- “It’s a ‘us’ Project” -


Mesmo antes da “entrada definitiva” no terreno, a possibilidade da realização duma pesquisa
etnográfica chamava atenção aos trabalhadores da iniciativa “Bhondon”. Desde a minha –
David se envolveu posteriormente no início dessa etnografia – introdução na organização em
setembro de 2020, a presença dum antropólogo nas conversas mais intimas da organização
suscitavam ideias relacionadas a cultura e a visibilidade; e a possibilidade duma etnografia
foi levantada algumas vezes durante este tempo. Esse conhecimento prévio da antropologia e
da etnografia provêm da investigação do professor José Mapril (Mapril, 2012) que é citada
como algo que trouxe muito orgulho à comunidade bangladeshiana.

Quando, em fevereiro, decidimos realizar este trabalho, meus colegas de trabalho ficaram
extremamente animados e afirmaram ser uma oportunidade para a organização de ganhar
visibilidade e que através dos meus estudos sobre a comunidade e o contexto, poderia
conseguir financiamentos através de projetos internacionais – como “foodwave” ou “bairros
saudáveis” – que promoveriam a iniciativa. A partir desse entusiasmo, perguntamos qual
seria o tema que melhor representaria a comunidade e as necessidades, e foi-nos dito a
comensalidade e a importância simbólica da comida enquanto criadora de novas relações
(Carsten, 2000). Em um terreno com estes contornos, como devemos agir enquanto
antropólogos? Qual será a relação apropriada entre o investigador e os “investigados”?

A relação entre antropólogo e o “estudado” têm sido um tema bastante discutido na


disciplina, e foi central nas críticas pós-modernas à antropologia clássica (Sluka, 2008); onde
a falta de um código de ética implicou uma heterogeneidade das formas de se lidar com o
trabalho de campo e gerou grandes erros, como o projeto CAMELOT (Sluka 2008). Por mais
que a existência dum código de ética obstrua alguns possíveis caminhos de investigação
(Bourgois, 2008), acabou por criar uma conscientização na antropologia de que os
investigadores não podem entrar numa situação pior daquela que nos encontramos, além de
não estragar o terreno para futuros antropólogos (Atkinson, 1983).

12
Além deste ensinamento ético em mente – lembrando que “Ethics are everywhere” (Madden,
2012) – procuramos respostas também para o “turno da compaixão” (Sluka, 2008) que
marcou a antropologia contemporânea; a ideia da necessidade duma “Applied anthropology”
que também procure melhorar a comunidade através do conhecimento sociocultural que pode
fornecer. Em associação com estas ideias, objetiva-se afirmar que a função do antropólogo
deve ser uma de colaboração e contribuição para os estudados, o conhecimento não deve ser
construído para livros, mas para ações e mudanças reais.

Nesse sentido, a conexão do antropólogo e do interlocutor deve ser de total “mutualidade”,


onde ambos são “co-responsaveis” (Mapril e Viegas, 2012) pela construção do trabalho, pelo
tratamento do tema e com aquilo que pode ser o aproveitamento do trabalho pela
comunidade. Neste caso específico, tal conhecimento recebido da preparação e da etnografia
foi utilizado para propor projetos sociais – como a criação de jornais na língua bengali com as
notícias portuguesas – e para aplicar para possibilidades de financiamento (como “civic
europe”).

- In the future the Boishakhi mela will have a positive effect in


communication for both portuguese and bangladeshi people to have a
‘Bhondon -
Este projeto começou como um trabalho acadêmico e acabou como um esforço coletivo de
todos da “Portuguese Multicultural Academy” e nos fez questionar não só o papel do
antropólogo no terreno, mas a nossa própria introdução na organização. A partir duma
comunidade já acostumada com a figura do antropólogo, graças a etnografia do professor
José Mapril (2012), a nossa presença no terreno não foi uma “novidade” mas, antes, uma “re-
confirmação” do personagem antropológico como um “agente de visibilidade”; ou seja,
através da etnografia, fomos construídos enquanto indivíduos que poderiam trazer à
comunidade uma desejada visibilidade e até avançar os objetivos da organização.

Através deste nosso papel, o “Boishaki mela” se figurou como uma oportunidade de trazer à
comunidade um reconhecimento de sua cultura, a partir desse “ideário”. Quando perguntados
sobre o futuro, afirmaram em coesão que esperam que o festival ganhe visibilidade
internacional e que, no contexto português, saia da esfera nacional do Bangladesh e seja
comemorado também por outras nacionalidades; como os portugueses e os brasileiros. Nosso
trabalho, dessa forma, se constituiu como uma forma de trazer a desejada visibilidade para o
festival e que contribua para o futuro da comunidade.

13
Em conclusão, nosso trabalho objetivou demonstrar os dados etnográficos recolhidos a partir
do tema da comida, do festival e da identidade e questionar o papel do antropólogo – tido
como um “agente de visibilidade” – enquanto “autoridade no terreno”, e defendemos uma
antropologia “aplicada” que tome em consideração a necessidade da população e que
construa o conhecimento com o objetivo de criar mudanças, expor problemas importantes
para a comunidade e dar visibilidade para grupos marginalizados.

- Bibliografia -
- ANDERSON, B, 1998. “Long-Distance Nationalism” The Spectre of Comparisons:
Nationalism, Southeast Asia, and the World, 58–74

- ANDERSON, Benedict (1983) 1991. Imagined Communities – Reflections on the Origin


and Spread of nationalism, London/New York, Verso

- ATKINSON, P. et all, 2007 1983. Ethnography. Principles in practice. London, New York,
Routledge [pp. 209-229]

- BEAULIEU, A. 2010. From Co-location to Co-presence: Shifts in the Use of Ethnography


for the Study of Knowledge, Social Studies of Science, XX(X): 1–18

- BASCH, Linda, Nina GLICK SCHILLER & Cristina Szanton BLANC, 1994, Nations
Unbound. Transnational Projects, Postcolonial Predicaments and Deterritorialised Nation-
States, Basel, Gordon and Breach Publishers.

- BENJAMIN Z, MANPREET K. and MAPRIL, J. 2014. « Introduction. Imagining


Bangladesh: Contested Narratives », South Asia Multidisciplinary Academic Journal.

- BOURGOIS, P., 2008 [1991], “Confronting the Ethics of Ethnography. Lessons From
Fieldwork in Central America” in A. Robben and J. Sluka (eds.) Ethnographic Fieldwork. An
Anthropological Reader, Malden: Blackwell Publishing, pp. 288-297

- CARSTEN, J. 2000. “Introduction: cultures of relatedness”. In Carsten, J., Cultures of


Relatedness: New approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University
Press.

- CARSTEN, J. 1995. “The substance of kinship and the heat of the hearth: feeding,
personhood and relatedness among Malays in Pulau Langkawi”. American Ethnologist, 22.

14
-EADE, J, and GARBIN, D, 2006. “Competing visions of identity and space: Bangladeshi
Muslims in Britain” Contemporary South Asia, 15:2: 181-193

- HOSKINS, J 1998. Biographical Objects: How Things Tell the Stories of People's Lives.
New York: Routledge: pp 1-25.

- INDA, Jonathan & Renato ROSALDO, 2002. “Introduction”, Inda, J, & R. Rosaldo (eds.),
The Anthropology of Globalization. A Reader, Malden MA-Oxford, Blackwell.

- MADDEN, R., 2012. Being Ethnographic. A Guide to the theory and Practice of
Ethnography, Los Angels, California, New Dehli, Singapore: Sage

- MAPRIL, José. 2012. Islão e Transnacionalismo: Uma Etnografia entre Portugal e o


Bangladeche. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

- MAPRIL, J, 2014. The Dreams of Middle Class: Consumption, Life-course and Migration
Between Bangladesh and Portugal . Modern Asian Studies, 48, pp 693-719

- MAPRIL, J. 2014. « A Shahid Minar in Lisbon: Long Distance Nationalism, Politics of


Memory and Community among Luso-Bangladeshis », South Asia Multidisciplinary
Academic Journal.

- MAPRIL, J. 2016. Food, relatedness and home between Portugal and Bangladesh. Abstract
from 25th European Conference on South Asian Studies, Paris, France.

- PINA-CABRAL, J., 2007. «“Aromas de urze e de lama”: reflexões sobre o gesto


etnográfico», Etnográfica [Online], vol. 11 (1), pp. 191-212

- PINTO, P, 2014. “Islã: Religião e Civilização. Uma abordagem antropológica. São Paulo,
Edit Santuário

- POSTILL, J. ; PINK, 2012. «Social media ethnography: the digital researcher in a messy
web» in Media International Australia, N. 145, pp. 123-134

- ROBBEN, A.; SLUKA, J., 2008. “Fieldwork in Cultural Anthropology: An Introduction” in


A. Robben and J. Sluka (eds.) Ethnographic Fieldwork. An Anthropological Reader, Malden:
Blackwell Publishing, 1-28

- SANJIEK, R. 1996. “Ethnography”, Barnard, A.; Spencer, J. (eds.), Encyclopedia of social


and cultural anthropology, London, New York: Routledge, pp. 295- 302

15
- SCHENDEL, van W, 2009. A History of Bangladesh. Cambridge: Cambridge University
Press

- SLUKA, J.A., 2008. “Fieldwork Ethics” in A. Robben and J. Sluka (eds.) Ethnographic
Fieldwork. An Anthropological Reader, Malden: Blackwell Publishing, pp. 271-275

- SPRADLEY, J. P., 1980. Participant Observation, EUA: Harcourt Brace College Publishers
[pp. 27-35]

- TIESLER, N, 2005. “Novidades no terreno: muçulmanos na Europa e o caso português”.


Análise Social. n. 173. pps 827-849

- VAKIL, A, 2004. «Do outro ao Diverso e Muçulmanos em Portugal: história, discursos,


identidades» R. Lusófona de C. das Religiões – Ano III, n.º 5/6

- VIEGAS, S. M.; MAPRIL, J., 2012. «Mutualidade e conhecimento etnográfico»,


Etnográfica [Online], vol. 16 (3), pp. 513-524

16
- Anexo -

17
18
19
20

Você também pode gostar