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REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ISSN 2177-9325 • www.revista.cfch.ufrj.br


Edição Especial SIAC 2016

O conceito de Orpha e os efeitos do trauma sobre o aparelho psíquico em


Ferenczi
Bianca Gerk
Instituto de Psicologia
biancagerk@gmail.com

Paula Ferrarese Barbosa


Instituto de Psicologia
paulabarbosa2@hotmail.com

Orientador: Julio Sergio Verztman


Instituto de Psicologia
jverztman@globo.com

Palavras-chave:
Trauma. Clivagem. Orpha. Ferenczi.

O objetivo geral do trabalho consiste em apresentar a teoria do trauma e seus


efeitos sobre o aparelho psíquico, segundo a teoria de Sándor Ferenczi. Ferenczi foi um
psicanalista húngaro, colaborador da obra de Freud. Além disso, o trabalho expõe o
fenômeno nomeado orpha, presente na obra ferencziana quando o autor fala de uma de
suas mais emblemáticas pacientes, Elizabeth Severn.
Trauma é um termo médico retomado por Freud e que, nos estudos
psicanalíticos, em geral, remeteu, em primeiro lugar a uma concepção econômica:
trauma como vivência de um afluxo de excitação excessivo, superior à tolerância do
aparelho psíquico.
Freud elaborou a teoria da sedução, relacionando trauma e sexualidade,
afirmando que uma ação sexual sofrida na infância não será compreendida como tal
nesse momento; mas, na puberdade, um acontecimento qualquer poderá, através de
traços associativos, evocar memórias dessa violência, desencadeando no psiquismo um
afluxo de excitação superior às suas defesas.
Freud vai abandonar a teoria da sedução, mas continua a trabalhar sobre a
questão traumática, que ganha nova abordagem em 1920. Nessa época, destacam-se os
conceitos de compulsão à repetição e pulsão de morte, importantes de se levar em
consideração ao estudar a perspectiva do trauma em Ferenczi.

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Ferenczi (2011) resgatou a questão ambiental em suas considerações sobre o


trauma, tendo em vista o caráter intersubjetivo de sua teoria. O trauma passou a ser
compreendido a partir de uma falha grave e precoce na relação do sujeito com o outro.
A metáfora utilizada por Ferenczi (2011) alude a um abuso real de uma criança por um
adulto, seguido pelo desmentido de um terceiro, a quem a criança confidencia o
ocorrido em busca de um significado para ele. Como efeito desses acontecimentos, se
terá a clivagem da personalidade da criança abusada.
Um ponto relevante para o desenvolvimento da teoria sobre o trauma é a
hipótese de que a primeira reação a um choque seja sempre uma ruptura com a
realidade, o que o autor pensou em termos de uma “psicose passageira”. Isso se explica
a partir de uma clivagem da personalidade em decorrência do choque, ponto sugerido
por Elizabeth Severn, a paciente que tanto contribuiu para a teoria do trauma.
Segundo Pinheiro (1995, p. 65), o trauma em Ferenczi tem duas características
fundamentais: É um acontecimento real e exterior que impõe uma mudança no
psiquismo. O termo pode ser dividido em duas categorias: os estruturantes (não só
inevitáveis como também necessários à estruturação psíquica e, consequentemente, ao
desenvolvimento, como é o caso da castração) e os desestruturantes (quando o
acontecimento traumático não pôde ser integrado ao psiquismo, acarretando
consequências dramáticas para o sujeito, colocando em risco seu processo
identificatório).
A primeira cena desta história é a sedução – um movimento da criança em
relação ao adulto, na forma de fantasias lúdicas, ao nível da brincadeira. Porém,
segundo Ferenczi, o adulto “confunde a brincadeira infantil com os desejos de uma
pessoa que atingiu a maturidade sexual” (FERENCZI, 2011, p. 116), e responde à
sedução neste registro. Ele irá chamar de “confusão de línguas”, já que existe uma
diferença da posição subjetiva da criança e do adulto: enquanto a primeira se utiliza da
linguagem da ternura, o segundo responde através da linguagem da paixão. O trauma só
se instaura de fato porque as instâncias de mediação entre os jogos de linguagem,
ternura e paixão falharam. É importante lembrar que, ao utilizar-se da noção de ternura,
Ferenczi não estava negando a sexualidade infantil, mas marcando que esta não é
coincidente com a genitalidade (distinção presente também em Freud).

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A segunda cena é o desmentido, responsável pelo caráter desestruturante do


trauma. Ferenczi (2011) afirma que, após o ato de violência cometido pelo adulto, a
criança sente medo, se sente indefesa física e moralmente, incapaz de protestar “contra a
força e a autoridade deste adulto. A criança se vê então, obrigada a submeter-se à
vontade do agressor, identificando-se com ele. A primeira consequência dessa
identificação seria o fato de ela possibilitar o desaparecimento da agressão como
realidade externa, conseguindo manter a ternura. A segunda, mais significativa, seria a
introjeção do sentimento de culpa do adulto.
O adulto pode experimentar culpa após a violência, mas essa culpa é
incompreensível para a criança. Recuperada da agressão, a criança encontra-se confusa
e descrente de si, inocente e culpada. Procura então, outro adulto, alguém em quem
confie, para que este dê sentido àquilo que ela não compreende. O desmentido
corresponde ao ato deste adulto que, incapaz de suportar o relato da criança, acusa-a de
mentir, transformando seu relato em fábula, conferindo ao trauma seu caráter
desestruturante.
Outro ponto essencial para a compreensão ferencziana do trauma é a ideia de
clivagem, uma de suas principais consequências. Por meio desse mecanismo, o sujeito
pode se retirar da experiência traumática, ainda que para isso precise cindir sua
personalidade. Ele assegura para si uma sobrevivência paradoxal, ao mesmo tempo
descentrado de si e distanciado de sua vida subjetiva.
Diante do acontecimento traumático, a criança não pode abrir mão do adulto
idealizado, a quem tem esperança de introjetar (afinal, ele é a única realidade que ela
conhece). Por isso, ela incorpora a sua culpa e cliva-se, ou seja, a criança destrói uma
parte de si mesma, para que não caiba culpa ao adulto que de fato a sentiu. A
identificação com o agressor corresponde a uma invasão do ego da criança – o adulto
torna-se posseiro do ego infantil, toma esse lugar e assume a fala da criança.
Estamos aqui diante da clivagem do ego em duas partes que não mantêm
contato entre si: uma parte aniquilada, sacrifício do sentimento de si e da
espontaneidade, e outra culpada, que irá amadurecer artificialmente, tomando a forma
que o mundo exterior lhe der.

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O conceito de orpha surge em passagens do Diário Clínico de Ferenczi, (1990)


no momento em que ele se refere à Elizabeth Severn. Para muitos autores, o caso de
Elizabeth é crucial para a história e para o desenvolvimento da psicanálise. Segundo
Fortune: “Elizabeth Severn pode ter sido a primeira analisanda sexualmente abusada
cujo trauma infantil, de fato, foi foco de um tratamento psicanalítico desde que Freud
abandonou sua teoria da sedução no final dos anos 1890” (FORTUNE 1991 apud
FORTUNE, 2011, p. 102).
Elizabeth Severn era uma criança adoecida, atormentada por medos e
ansiedades; sofria de dores de cabeça violentas, distúrbios alimentares e ataques
nervosos frequentes. Ao mencionar o caso de Elizabeth Severn, Ferenczi faz referência
a instintos vitais organizadores, denominando-os “orpha” pela primeira vez. Forças
orphicas são despertadas diante do sofrimento, do desamparo e da desesperança e levam
o indivíduo à loucura, em lugar da morte. Orpha nomearia o conjunto de forças
pulsionais, vitais e organizadoras, que emergem ao cessar o pensamento consciente,
depois de uma experiência de violência extrema, da qual resultou a fragmentação do
indivíduo. Nesse cenário, orpha refere-se à organização que sucederia a fragmentação, a
vitalidade que se opõe à morte.
O autor descreve este fragmento como um “anjo da guarda”, capaz de alucinar
a realização de promessas, fantasiar consolação, anestesiar a consciência e a
sensibilidade frente a sensações intoleráveis. É importante salientar, porém, que, ainda
que orpha reviva e preserve o self, ela é incapaz de regenerá-lo ou curá-lo em sua
integridade (SMITH, 1999, p. 11).
Ferenczi (2011) foi um psicanalista que apostou na vida e que defendeu existir
uma saída para o trauma. Nesse sentido, Castillo Mendoza (2013) propõe que orpha seja
definida como “a pulsão de vida em sentido extenso”. Dito de outro modo, orpha
poderia ser compreendida como um aspecto da pulsão de vida, um aspecto vital que
ganha função diante do trauma.
Ferenczi (2011) acreditava em um psiquismo orientado para a manutenção da
vida. Para esse autor, vida é sinônimo de organização, de reunião, ou seja, de
reagrupamento de fragmentos. Nesse sentido, diante dos pacientes clivados, cuja
principal característica da personalidade é justamente a fragmentação, o trabalho do

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analista consiste em entrar em contato com os pedaços e restituir-lhes os afetos dos


quais o sujeito se afastou ao proceder com a clivagem.
Na clínica do trauma, segundo a perspectiva de Ferenczi (2011), o analista
coloca-se para o paciente como uma testemunha do ocorrido, pois irá ser fiador da
história relatada, reconhecerá a dimensão traumática e afiançará para o paciente que o
trauma ocorreu. Além disso, será testemunha por presenciar o momento em que o
paciente revive o trauma em análise, permanecendo junto a ele quando for necessário
encarar os eventos passados e o dano que eles causaram.
De fato, uma questão que permanece em relação ao fenômeno Orpha diz
respeito a sua universalidade. Desse modo, o quanto orpha pode ser entendido como um
mecanismo psíquico disponível para todos os sujeitos e o que possibilita a sua ação,
para além de Elizabeth Severn, são pontos aos quais a psicanálise ainda precisa se
dedicar.
Diante do exposto, parece relevante considerar finalmente a originalidade da
clínica e da teoria de Ferenczi (2011), a qual permitiu analisar um grupo de pacientes
que, até então, não era contemplado pelo tratamento. Por conta de sua ousadia e por
atrever-se a transgredir as recomendações da psicanálise clássica, Ferenczi (2011)
alcançou nova compreensão para o traumatismo, enfatizando os seus aspectos
intersubjetivos e apontando que, em meio à fragmentação, é possível pensar sempre em
uma saída para a vida.

Referências

CASTILLO MENDOZA, C. A. “Mutualidad” y constitución del psiquismo:


contribuciones metapsicológicas de Sándor Ferenczi. Revista de la Sociedad
Argentina de Psicoanálisis, Buenos Aires, n. 17, p. 125-150, 2013.

FERENCZI, Sandor. Obras completas. Psicanálise I, IV. Tradução Álvaro Cabral. 2 ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

______. Dário clínico. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p.
273.

FORTUNE, C. The case of “RN”: Sándor Ferenczi radical experiment in


psychoanalysis. Psyche, Stuttgart, v. 48, n. 8, p. 683-705, ago. 1994.
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HERZOG, R.; PACHECO-FERREIRA, F. Trauma e pulsão de morte em Ferenczi.


Ágora, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 181-194, jul./dez. 2015.

LAPLANCHE, J. Trauma. In: ______. Vocabulário de psicanálise. Tradução Pedro


Tamen. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 522-527.

PINHEIRO, Teresa. O trauma. In: ____ Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar; UFRJ, 1995. 65-82 p.

SMITH, N. Del Edipo hasta orfa: revisitando Ferenczi y el paradigmático caso de


Severn. Los Angeles, 1999.

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