Você está na página 1de 304

FOGE, NICKY, FOGE!

Nicky Cruz
e Jamie Buckingham

Título original em inglês: Run Baby Run


Tradução de Adiel de Almeida Oliveira
6ª.edição, 1980
Editora Betânia
Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
P re f á c i o

QUANDO TOME I A INICIATIVA d e r ea liza r es te


p r ojet o, Ca t h er in e Ma r s h a ll com en t ou qu e es cr ever u m
livr o d es t e t ip o é com o t er u m filh o. E u t er ia d e viver
com ele, até que nascesse.
Nes t e ca s o, n ã o fu i s ó eu qu em t eve d e viver com
ele, m a s a m in h a fa m ília e ta m b ém a Igr eja Ba tis t a d o
Taber n á cu lo qu e eu es t a va p a s t or ea n d o. S ofr er a m
com igo t od os os a t a qu es d e m a l-es t a r m a t u t in o, t od a s
a s d or es d e p a r t o, e a t é m es m o u n s d ois a la r m es fa ls os .
Ma s , t a n t o m in h a fa m ília com o a igr eja , com p r een d er a m
qu e es t e livr o er a con ceb id o p elo E s p ír it o S a n t o, es cr it o
com or a çã o e lá gr im a s , e d ever ia s er p u b lica d o p a r a a
glór ia d e Deu s . A igr eja p r a t ica m en t e lib er t ou -m e d e
t od a s a s ob r iga ções , a t é t er m in á -lo; a lém d is s o, vá r ios
dos membros ajudaram no trabalho de datilografia.
Con t u d o, os p a d r in h os d o livr o for a m J oh n e
Tib b y S h er r il e os ed it or es d a r evis t a Gu id ep os t s . A
r ecom en d a çã o e a con fia n ça d e J oh n d er a m in ício a o
p r ojet o, e n o s eu t ér m in o, foi a cr ít ica d o ca s a l S h er r il
qu e n os d eu a vis ã o fin a l d a h is t ór ia violen t a , m a s
empolgante, da vida de Nicky Cruz.
Os m ér it os d a m ovim en t a çã o d a h is t ór ia em s i
ca b em , p or ém , a Pa t s y Higgin s , qu e ofer eceu volu n -
t a r ia m en t e os s eu s s er viços p a r a a glór ia d e Deu s . E la
viveu e s en t iu o m a n u s cr it o com o cr ít ica , ed it or a e
datilógrafa — r evela n d o u m t a len t o p a r a cor t a r e
reescrever, que só pode ter sido dado por Deus.
O livr o em s i qu eb r a u m a d a s r egr a s b á s ica s d a
lit er a t u r a . Ter m in a a b r u p t a m en t e. Nã o h á u m fin a l
a p ot eót ico ou b em ela b or a d o. Ca d a vez qu e eu en -
t r evis t a va Nick y Cr u z, ele r ela t a va u m a exp er iên cia n ova
e fa n t á s t ica , m a t er ia l qu e d a r ia p a r a ou t r o livro — t a lvez
para vários. Portanto, Foge, Nicky, Foge! é a história, tão
exa t a , qu a n t o p os s ível, d os p r im eir os vin t e e n ove a n os
d a vid a d e u m m oço, cu jos d ia s m a is á u r eos a in d a es t ã o
no futuro.
Jamie Buckingham
Eau Gallie, Flórida

In t ro d u ç ã o

A HISTÓRIA DE NICKY CRUZ é notável. Tem todos


os elem en t os d e t r a géd ia , violên cia e in t er es s e, a lém d o
m a ior d e tod os os in gr ed ien t es , o p od er d o eva n gelh o d e
Jesus Cristo.
Os p r im eir os ca p ít u los for m a m u m cen á r io ob s -
curo e t en eb r os o p a r a o elet r iza n t e d es en la ce d es t a
h is t ór ia . Por t a n t o, n ã o d es a n im e com a a t m os fer a u m
tanto sangrenta da primeira metade do livro.
Nick y é jovem , e es t á a t u a lm en t e ca u s a n d o u m
grande impacto sobre um bom número de outros jovens,
n os E s t a d os Un id os . A p op u la çã o a d u lt a já n ã o p od e
m a is ign or a r a m ocid a d e, com os t r em en d os p r ob lem a s
d o s écu lo vin t e. A ju ven t u d e b u s ca u m p r op ós it o n a
vid a . Nã o es t á en a m or a d a d e n os s os es cler os a d os t a b u s
s ocia is . Qu er s in cer id a d e n a r eligiã o, h on es t id a d e n a
polít ica , e ju s t iça para os d es p r ivilegia d os d a
s ocied a d e O a s p ect o en cor a ja -d or , n o qu e d iz r es p eit o a
es s es m ilh ões d e “garotos” (qu e em 1 9 7 0 u lt r a p a s s a r a m
o n ú m er o d a p op u la çã o a d u lt a ), é qu e eles es t ã o
d es es p er a d a m en t e p r ocu r a n d o s olu ções p a r a s eu s
p r ob lem a s . E m con t a t os com cen t en a s d e es t u d a n t es d e
n os s a s u n iver s id a d es , fiqu ei t r em en d a m en t e
im p r es s ion a d o com a b u s ca qu e es t ã o em p r een d en d o,
p r ocu r a n d o a ver d a d e, a r ea lid a d e e s olu ções h on es t a s .
Algu n s joven s d e n os s a s fa vela s es t ã o a n s ios os p a r a t er
u m con t a t o h on es t o com a s ocied a d e, e com r a zã o.
Algu n s d eles s ã o in flu en cia d os p or d efen s or es d a
violência e da força bruta, e são facilmente atraídos para
o r ed em oin h o d os d is t ú r b ios d e r u a , in cên d ios e
p ilh a gem . Foge, Nick y, Foge! é u m exem p lo n ot á vel d e
qu e es s a m ocid a d e in s a t is feit a p od e en con t r a r u m
s ign ifica d o e u m p r op ós it o p a r a a vid a , n a p es s oa d e
Cristo.
E m n os s a s ca m p a n h a s , qu a s e a m et a d e d os ou -
vin t es t em m en os d e vin t e e cin co a n os . Nã o vã o à s
ca m p a n h a s p a r a zom b a r , m a s p a r a u m a b u s ca s in cera
d a ver d a d e e d e ob jet ivos p a r a a vid a . Cen t en a s d eles
atendem ao chamado de Cristo.
Foge, Nick y, Foge! é u m a h is t ór ia em ocion a n t e!
Min h a es p er a n ça é qu e ela s eja m u it o lid a , e qu e m u it os
leit or es ven h a m a con h ecer o Cr is t o qu e t r a n s for m ou o
cor a çã o va zio e in s a t is feit o d e Nick y Cr u z e fez d ele u m a
epopéia cristã de nossa era.
Billy Graham

P re â m b u l o

A HIS TÓRIA DE NICKY é, p os s ivelm en t e, a m a is


d r a m á t ica d o m ovim en t o Pen t ecos t a l, m a s n ã o é a
ú n ica . Nick y é u m vivid o r ep r es en t a n t e d e va s t o n ú m er o
d e p es s oa s qu e, n a s ú lt im a s d éca d a s , t êm s id o
lib er t a d a s d o cr im e, d o á lcool, d os n a r cót icos , d a
p r os t it u içã o, d o h om os s exu a lis m o, e d e qu a s e t od o t ip o
d e p er ver s ã o e d egen er a çã o qu e o h om em con h ece.
Tr a t a m en t o p s icológico, cu id a d os m éd icos e con s elh os
espirituais n ã o con s egu ir a m in flu en cia r es s a s p es s oa s .
E la s , p or ém , for a m lib er t a s d e s u a es cr a vid ã o d e m od o
in es p er a d o e m a r a vilh os o, p elo p od er d o E s p ír it o S a n t o,
e leva d a s a u m a vid a d e s er viço ú t il, e, a lgu m a s vezes ,
d e p r ofu n d a or a çã o. É m u it o n a t u r a l d es con fia r -s e d e
t r a n s for m a ções r a d ica is e r ep en t in a s . Por ém n ã o h á
r a zã o t eológica p a r a s e s u s p eit a r d ela s . A gr a ça d e Deu s
p od e a p os sar-s e d e u m h om em e t r a n s for m á -lo, n u m
abrir e fechar de olhos, de pecador em santo. “Porque eu
vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a
Abraão.” (Lu ca s 3 :8 .) O es for ço h u m a n o n ã o p od e
p r od u zir t a is t r a n s for m a ções , n em n a p r óp r ia p es s oa
n em em ou t r em , p or qu e a n a t u r eza exige t em p o p a r a s e
d es en volver , gr a d u a lm en t e; m a s Deu s p od e fa zer em u m
instante o que leva anos e anos para o homem realizar.
Con ver s ões a s s im ocor r er a m n a h is t ór ia d o cr is -
t ia n is m o, d es d e o p r in cíp io. Za qu eu , Ma r ia Ma d a len a (a
p en it en t e d e Lu ca s 7 :3 7 ), o “b om la d r ã o”, o a p ós t olo
Pa u lo, e m es m o Ma t eu s , o d is cíp u lo, s ã o os p r im eir os d e
u m a lon ga lis t a . Con t u d o, o m a ior n ú m er o d e t a is
con ver s ões es t á t en d o lu ga r h oje em d ia , em r ela çã o a o
chamado “Movim en t o Pen t ecos t a l”, o qu e é, cr eio eu ,
s em p r eced en t es . Qu a l o s ign ifica d o d es t e fa t o
extraordinário?
Ten h o m ed it a d o m u it o s ob r e is t o, e o qu e m e vem
à m en t e com fr eqü ên cia é a p a r á b ola d a s b od a s (Ma t eu s
22:1-1 4 ). Qu a n d o as p es s oa s con vid a d a s não
a p a r ecer a m , o s en h or d is s e a s eu s er vo: “S a i d epressa
p a r a a s r u a s e b ecos d a cid a d e e t r a ze p a r a a qu i os
p ob r es , os a leija d os , os cegos e os coxos .” (Lu ca s 1 4:21.)
Qu a n d o n em a qu ilo foi s u ficien t e, o s er vo foi en via d o
u m a vez m a is , d es t a vez p a r a os ca m in h os e a t a lh os ,
com a or d em : “Ob r iga a t od os a en t r a r , p a r a qu e fiqu e
ch eia a m in h a ca s a .” Cr eio qu e is t o é o qu e es t a m os
ven d o a con t ecer h oje. Os “convidados” à m es a d o
S en h or , is t o é, os qu e “n a s cer a m n o cr is t ia n is m o”, os
ju s t os , os m em b r os legít im os d a s ocied a d e, já
d em on s t r a r a m s ob eja m en t e qu e s ã o in d ign os . E les “vão
à igr eja ”, m a s n a ver d a d e n ã o t êm p a r t icip a d o d o
banquete propiciado pelo Rei. É por isto que a Igreja, em
lu ga r d e s er u m cor p o vivo e u m a t es t em u n h a
d es a fia d or a , m u it a s vezes s e a s s em elh a a u m in ú t il
clube religioso.
Tod a via , en qu a n t o os d ou t or es d a lei d is cu t em
qu a l o n ovo voca b u lá r io qu e fa r á r es s u s cit a r Deu s
(p or qu e t u d o o qu e con h ecem a r es p eit o d ele s ã o
p a la vr a s ), e qu e n ovos s ím b olos fa r ã o com qu e a lit u r gia
t en h a m a is s ign ifica d o (p or qu e t u d o o qu e en xer ga m n a
r eligiã o é a p a r t e h u m a n a ), Deu s es t á r eu n in d o, em
s ilên cio, n ovos con vid a d os p a r a o s eu b a n qu et e. Receb e
a legr em en t e a qu eles qu e, s egu n d o os p a d r ões h u m a n os ,
s ã o es p ir it u a l e m or a lm en t e p ob r es , a leija d os , cegos e
coxos . Pelo p od er d o s eu E s p ír it o, es t á m es m o
“forçando-os” a en t r a r , a r r a n ca n d o-os d a s r u a s d a
degradação e dos atalhos da perversão.
Nick y Cr u z e os m ilh a r es qu e s e lh e a s s em elh a m
n ã o s ã o a p en a s exem p los com oven t es d o a m or fiel d o
Bom Pa s t or , m a s s ã o t a m b ém s in a is d os t em p os , qu e
fa r ía m os b em em d is cer n ir . S ã o u m s in a l en cor a ja d or d e
qu e Deu s es t á a gin d o com u m p od er n ovo em n os s a
ép oca , p a r a qu e n ã o t en h a m os m ed o d e proclamar
ou s a d a m en t e o eva n gelh o a t od os . Por ou t r o la d o,
t a m b ém s ã o u m s in a l d e a d ver t ên cia a t od os os qu e,
p elos s eu s h á b it os r eligios os , p elo s eu m in is t ér io
s a gr a d o, ou p or qu a lqu er ou t r a r a zã o, s eja ela qu a l for ,
ju lga m t er u m lu ga r m a r ca d o à m es a d o b a n qu et e.
“Por qu e vos d ecla r o qu e n en h u m d a qu eles h om en s qu e
for a m con vid a d os p r ova r á a m in h a ceia .” (Lu ca s 1 4 :2 4 .)
Porque “es t á p r on t a a fes t a , m a s os con vid a d os n ã o
eram dignos”. (Mateus 22:8.)
Prof. Edward D. O'Connor, C.S.C.
Universidade de Notre Dame
Estados Unidos
Capítulo 1

N I N GU É M ME Q U E R

“S E GURE M E S S E GAROTO MALUCO!” gr it ou


alguém.
A p or t a d o qu a d r im ot or d a Pa n Am er ica n m a l
a ca b a r a d e s e a b r ir , e eu já m e p r ecip it a va es ca d a
a b a ixo, em d ir eçã o a o p r éd io d o Aer op or t o Id lewild , em
Nova Yor k . E s t á va m os a 4 d e ja n eir o d e 1 9 5 5 , e o ven t o
frio fazia arder minhas faces.
Algu m a s h or a s a n t es , m eu p a i m e coloca r a n o
a viã o em S a n J u a n : u m r a p a zin h o p or t o-riquenho,
r eb eld e e a m a r gu r a d o. For a en t r egu e a os cu id a d os d o
p ilot o; h a via m -m e r ecom en d a d o qu e p er m a n ecess e n o
a viã o a t é a ch ega d a d e m eu ir m ã o, Fr a n k . Porém,
qu a n d o a p or t a a b r iu , fu i o p r im eir o a s a ir , cor r en d o
selvagemente pela pista de concreto.
Tr ês fu n cion á r ios d o a er op or t o s e a p r oxim a r a m d e
m im , cer ca n d o-m e, em p u r r a n d o-m e con t r a a cer ca d e
correntes d e a ço, a o la d o d o p or t ã o. O ven t o cor t a n t e
zu n ia a t r a vés d a m in h a r ou p a t r op ica l e leve, en qu a n t o
eu p r ocu r a va es ca p a r . Um p olicia l a ga r r ou -m e p elo
b r a ço, e os fu n cion á r ios volt a r a m a o s eu t r a b a lh o. Pa r a
m im a qu ilo er a u m a b r in ca d eir a ; olh ei p a r a o gu a r d a e
sorri.
“Porto-r iqu en h o lou co! Qu e d ia b o você p r et en d e
fazer?”
Meu s or r is o s u m iu qu a n d o n ot ei ód io em s u a voz.
S u a s b och ech a s gor d a s es t a va m ver m elh a s d e fr io, e os
olh os la cr im eja va m d evid o a o ven t o. Um t oco d e ciga r r o
a p a ga d o es t a va es qu ecid o en t r e s eu s lá b ios b a lofos .
Ód io! S en t i-o cir cu la r p or t od o o m eu cor p o. O m es m o
ód io qu e eu t iver a con t r a m eu p a i e m in h a m ã e, con t r a
m eu s p r ofes s or es e os gu a r d a s em Por t o Rico. ód io!
Ten t ei lib er t a r -m e, m a s ele m e p r en d eu com u m a fér r ea
chave de braço.
“Venh a , ga r ot o, va m os volt a r a o a viã o.” Olh ei p a r a
ele e dei uma cusparada.
“Porco!” r os n ou . “Por co s u jo!” E le a fr ou xou a
pressão sobre o meu braço e tentou segurar-me por trás,
p ela gola d o ca s a co. Mer gu lh a n d o p or b a ixo d o s eu
b r a ço, d es lizei p elo p or t ã o a b er t o qu e leva va p a r a o
edifício do aeroporto.
At r á s d e m im , ou vi gr it os e p is a d a s r á p id a s . Cor r i
p elo lon go cor r ed or d es via n d o-m e, à es qu er d a e à d ir eit a
d a s p es s oa s qu e s e d ir igia m a os a viões . De r ep en t e,
achei-m e em u m gr a n d e s a lã o. Des cob r in d o u m a p or t a
de saída, zuni pelo salão e saí para a rua.
Um gr a n d e ôn ib u s es t a va p a r a d o ju n t o a o m eio-
fio, com a p or t a a b er t a e o m ot or liga d o. A fila es tava
en t r a n d o. Com a lgu m a s em p u r r a d a s , con s egu i en t r a r
t a m b ém . O m ot or is t a m e a ga r r ou p elo om b r o e p ed iu o
dinheiro d a p a s s a gem . E n colh i os om b r os e r es p on d i-lhe
em es p a n h ol. E le m e p ôs p a r a for a r is p id a m en t e,
ocu p a d o d em a is p a r a p er d er t em p o com u m r a p a zin h o
t olo qu e m a l com p r een d ia in glês . Qu a n d o ele d es viou a
a t en çã o p a r a u m a s en h or a qu e es t a va r em exen d o n a
bolsa, b a ixei a ca b eça e es gu eir ei-m e p or d et r á s d ela ,
a t r a ves s ei a p or t a e p en et r ei n o ôn ib u s lot a d o. Da n d o
u m a olh a d ela p or s ob r e o om b r o, p a r a t er a cer t eza d e
que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus,
e sentei-me junto a uma janela.
Qu a n d o o colet ivo d eu a p a r t id a , vi o gu a r d a
gor d u ch o e m a is d ois s old a d os s a ir ofega n t es p ela p or t a
la t er a l d o a er op or t o, e olh a r em t od a s a s d ir eções . Nã o
pude resistir à tentação de bater na vidraça, acenar para
eles e sorrir através do vidro.
Afu n d a n d o n o b a n co, a p oiei os joelh os n a s cos tas
d o a s s en t o d a fr en t e e a p er t ei o n a r iz con t r a o vid r o fr io
e sujo da janela.
O ôn ib u s a t r a ves s ou com d ificu ld a d e o t r á fego
in t en s o d e Nova Yor k , em d ir eçã o a o cen t r o d a cidade.
Lá for a h a via n eve e la m a p ela s r u a s e ca lça d a s . E u
s em p r e im a gin a r a qu e a n eve er a b r a n ca e b on ita , com o
n os con t os d e fa d a s . Ma s a qu ela er a p a r d a , com o
m in ga u s u jo. Min h a r es p ir a çã o em b a çou a vid r a ça .
Afastei-m e u m p ou co e p a s s ei o d ed o n ela . E r a u m
m u n d o d ifer en t e, in t eir a m en t e d ifer en t e d o qu e eu
acabara de abandonar.
Min h a m en t e volt ou a o d ia a n t er ior , qu a n d o eu
p a r a r a n o m or r o d ia n t e d e m in h a ca s a . Lem b r ei-m e d a
gr a m a ver d e qu e m eu s p és a m a s s a va m , s a lp ica d a d os
p on t in h os d e cor cla r a , d a s p equ en in a s flor es
ca m p es t r es . O ca m p o d es cia n u m d eclive s u a ve, a t é a
vila , lá em b a ixo. Lem b r ei-m e d a b r is a fr es ca qu e
s op r a va con t r a m in h a fa ce, e d o ca lor d o s ol em m inhas
costas bronzeadas e nuas.
Por t o Rico é u m a b ela t er r a d e s ol e d e cr ia n ças
d es ca lça s . É u m a t er r a em qu e os h om en s n ã o u s a m
camisa, e a s m u lh er es ca m in h a m p r egu iços a m en t e s ob
u m s ol ca u s t ica n t e. Os s on s d os t a m b or es d e a ço e d a s
gu it a r r a s ou vem -s e n oit e e d ia . É u m a t er r a d e ca n t iga s ,
flores, crianças sorridentes e água azul refulgente.
Mas é também uma terra de feitiçaria e macumba,
d e s u p er s t içã o r eligios a e d e m u it a ign or â n cia . De n oit e,
os s on s d os t a m b or es d a m a cu m b a r es s oa m n a s
m on t a n h a s cob er t a s d e p a lm eir a s , en qu a n t o feit iceir os
exer cem o s eu ofício, ofer ecen d o s a cr ifícios e d a n ça n d o
com serpentes à luz de fogueiras bruxuleantes.
Meu s p a is er a m es p ír it a s . Ga n h a va m a vid a ex-
p u ls a n d o d em ôn ios e es t a b elecen d o u m s u p os t o con tato
com espíritos de mortos. Papai era um dos homens mais
t em id os d a ilh a . Com m a is d e l,8 0 m d e a lt u r a , s eu s
en or m es om b r os en cu r va d os h a via m leva d o os ilh éu s a
s e r efer ir em a ele com o “O Gr a n de” E le for a fer id o
d u r a n t e a S egu n d a Gu er r a Mu n d ia l e r eceb ia u m a
p en s ã o d o gover n o. Ma s , com o h a via d ezes s et e m en in os
e u m a m en in a n a fa m ília , d ep ois d a gu er r a ele r ecor r eu
ao espiritismo para ganhar a vida.
Mam ã e t r a b a lh a va com p a p a i com o “médium”.
Nos s a ca s a er a s ed e d e t od a s or t e d e r eu n iões d e
m a cu m b a , s es s ões e feit iça r ia . Cen t en a s d e p es s oa s
vin h a m d e t od a a ilh a p a r a p a r t icip a r d a s s es s ões
espíritas.
Nos s a ca s a en or m e, n o a lt o d a colin a , er a liga d a
p or u m a t r ilh a s in u os a e es t r eit a à p equ en a vila m o-
d or r en t a d e La s Pied r a s , es con d id a n o va le, lá em b a ixo.
Os a ld eões s u b ia m p ela t r ilh a a qu a lqu er h or a d o d ia ou
d a n oit e, p a r a ir à “Ca s a d o Feit iceir o”. E les t en t a va m
fa la r com es p ír it os d os m or t os , t omavam p a r t e em a t os
d e feit iça r ia , e p ed ia m a p a p a i p a r a lib er t á -los d e
demônios.
Pa p a i er a o ch efe m a s h a via ou t r os m éd iu n s qu e
s e u t iliza va m d e n os s a ca s a p a r a s ed e d e s u a s a t i-
vid a d es . Algu n s p er m a n ecia m a li s em a n a s s egu id a s , à s
vezes in voca n d o es p ír it os , à s vezes exp u ls a n d o
demônios.
Ha via u m a m es a com p r id a n a s a la d a fr en t e, a o
r ed or d a qu a l o p ovo s e a s s en t a va , qu a n d o es t a va
t en t a n d o s e com u n ica r com os es p ír it os d os m or t os .
Pa p a i er a m u it o en t en d id o n o a s s u n t o, e t in h a u m a
b ib liot eca d e m a gia e es p ir it is m o, s em igu a l, n a qu ela
parte da ilha.
Cer t a m a n h ã , d ois h om en s t r ou xer a m u m a s e-
n h or a p er t u r b a d a à n os s a ca s a . E u e m eu ir m ã o Gen e
esgueiramo-n os d a ca m a , olh a m os p or u m a fr es t a d a
p or t a , e vim os qu a n d o eles a es t en d er a m s ob r e a m es a
gr a n d e. O s eu cor p o t r em ia e gem id os es ca p a va m d e
s eu s lá b ios ; os h om en s s e p os t a r a m u m d e ca d a la d o d a
m es a , s egu r a n d o-a . Ma m ã e ficou a os p és d ela , com os
olh os er gu id os p a r a o tet o, r ep et in d o p a la vr a s
es t r a n h a s . Pa p a i foi à cozin h a e volt ou com u m a
p equ en a u r n a p r et a ch eia d e in cen s o a fu m ega r . Tr a zia
t a m b ém u m gr a n d e s a p o qu e colocou s ob r e o es t ôm a go
a git a d o d a m u lh er . Dep ois , s u s p en d en d o a u r n a s ob r e a
ca b eça d ela , a s p er giu p ó d e in cen s o s ob r e s eu cor p o
convulso.
Nós t r em ía m os d e m ed o; ele m a n d ou qu e os es -
p ír it os m a u s s a ís s em d a m u lh er e en t r a s s em n o s a po.
De r ep en t e, a m u lh er jogou a ca b eça p a r a t r á s e s olt ou
u m gr it o a gu d o. O s a p o s a lt ou d o s eu es t ôm a go e
espatifou-s e con t r a a s oleir a d a p or t a . Im ed ia t a m en t e,
ela com eçou a d a r p on t a p és e, s a cudindo-s e, lib er t ou -se
dos h om en s qu e a s egu r a va m , r olou d a m es a e ca iu
p es a d a m en t e n o ch ã o. Picou b a b a n d o e m or d en d o a
lín gu a e os lá b ios ; s a n gu e m is t u r a d o com es p u m a
escorria pelos cantos de sua boca.
Ma is t a r d e a qu iet ou -s e e ficou im óvel. Pa p a i d e-
cla r ou qu e ela es t a va cu r a d a e os h om en s lh e d er a m
d in h eir o. E les p ega r a m o cor p o in con s cien t e e s e for a m ,
a gr a d ecen d o a p a p a i e ch a m a n d o-o r ep et id a m en t e d e
“Grande Milagreiro”.
Min h a in fâ n cia foi ch eia d e t em or e s ob r es s a ltos.
O fato de sermos uma família grande significava que mui
p ou ca a t en çã o er a d a d a in d ivid u a lm en t e a ca d a filh o.
E u t in h a r a iva d e p a p a i e m a m ã e, e t in h a m ed o d a
macumba que era realizada todas as noites.
No verão anterior à época que eu devia entrar para
a es cola p a p a i t r a n cou -m e, u m d ia , n o p om b a l. J á er a
noite e ele m e a p a n h a r a r ou b a n d o d in h eir o d a b ols a d e
m a m ã e. Pr ocu r ei cor r er , m a s ele es t icou o b r a ço e m e
a ga r r ou p ela n u ca : “Nã o a d ia n t a cor r er , m olequ e. Você
roubou; agora vai me pagar.”
“Eu te odeio”, gritei.
E le m e leva n t ou d o ch ã o, s a cu d in d o m e d ia n t e d e
si “Vou en s in á -lo a fa la r a s s im com s eu p a i”, d is s e en t r e
d en t es . Coloca n d o-m e d eb a ixo d o b r a ço com o s e eu
fos s e u m s a co d e fa r in h a , a t r a ves s ou o qu in t a l es cu r o,
dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao
abrir a porta. “Para dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí
com os pombos, até aprender.”
Atirou-m e p or t a a d en t r o, e fech ou -a a t r á s d e m im ,
deixando-m e em t ot a l es cu r id ã o. Ou vi o t r in co s en d o
colocado no lugar, e a voz de papai, abafada, através das
fen d a s d a p a r ed e: “E n a d a d e ja n t a r .” Ou vi s eu s p a s s os
se diminuindo na distância, de volta para casa.
E u es t a va p et r ifica d o d e t er r or . Ma r t ela va a p or ta
com os p u n h os . Ch u t a va -a fr en et ica m en t e, gr it a n d o e
chorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulho
d e a s a s : os p á s s a r os , a s s u s t a d os , h a via m a cor d a d o;
r ep et id a s vezes , ch oca r a m -s e con t r a o m eu cor p o.
Ap er t ei a s m ã os con t r a o r os t o e gr it ei h is t er ica m en t e,
en qu a n t o a s p om b a s s e a r r em et ia m con t r a a s p a r ed es , e
b ica va m fer ozm en t e m eu r os to e p es coço. Ca í a tu r d id o
n o ch ã o im u n d o, e en t er r ei a ca b eça n os b r a ços ,
t en t a n d o p r ot eger os olh os e t a p a r os ou vid os p a r a n ã o
ou vir o s om d a s a s a s qu e volt ea va m s ob r e m in h a
cabeça.
Pa r ecia qu e u m a eter n id a d e s e p a s s a r a , qu a n d o a
p or t a a b r iu , e p a p a i m e fez fica r d e p é e a r r a s t ou -me
p a r a o qu in t a l. “Da p r óxim a vez, você va i lem brar-s e d e
n ã o r ou b a r e d e n ã o r es p on d er com in s olên cia qu a n d o
for a p a n h a d o”, d is s e ele a s p er a m en t e: “Agor a , t om e u m
banho e vá para a cama.”
Ch or ei n a qu ela n oit e a t é d or m ir ; d ep ois , s on h ei
com p á s s a r os es voa ça n t es qu e s e ch oca va m con t r a m eu
corpo.
Meu s r es s en t im en t os con t r a p a p a i e m a m ã e r ea -
vivaram-s e n o a n o s egu in t e, qu a n d o en t r ei p a r a a
es cola . E u od ia va qu a lqu er a u t or id a d e. Ma is t a r d e,
qu a n d o já t in h a oit o a n os , r eb elei-m e d e u m a vez con t r a
m eu s p a is . Foi em u m a t a r d e qu en t e d e ver ã o. Ma m ã e e
vá r ios ou t r os “médiuns” es t a va m s en t a d os à gr a n d e
m es a d a s a la , t om a n d o ca fé. E u m e ca n s a r a d e b r in ca r
com m eu ir m ã o e en t r a r a n a s a la , b r in ca n d o com u m a
p equ en a b ola , b a t en d o-a n o a s s oa lh o. Um d os m éd iu n s
d is s e à m a m ã e: “O Nick y é u m m en in o b on it o. Pa r ece
com você. Deve orgulhar-se dele.”
Ma m ã e olh ou s ér ia p a r a m im e com eçou a b a -
lançar-s e n a ca d eir a , p a r a a fr en t e e p a r a t r á s . S eu s
olh os r evir a r a m , a p on t o d e a p a r ecer s om en t e o b r a n co.
E s t en d eu os b r a ços p a r a a fr en t e, s ob r e a m es a . S eu s
d ed os fica r a m d u r os e t r em ia m e ela leva n t ou
va ga r os a m en t e os b r a ços s ob r e a ca b eça e com eçou a
fa la r em tom d e ca n t och ã o: “E s t e... n ã o... m eu ... filh o.
Nã o, Nick y n ã o. E le n u n ca foi m eu . E le é filh o d o m a ior
d e t od os os b r u xos . Lú cifer . Nã o, m eu n ã o... n ã o, m eu
não... Pilho de Satanás, filho do diabo.”
Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei-
m e à p a r ed e, e m a m ã e con t in u ou em t r a n s e; s u a voz s e
leva n t a va e b a ixa va , en qu a n t o ela fa la va com o em
responso: “Nã o, m eu n ã o, n ã o, m eu , n ã o... a m ã o d e
Lú cifer s ob r e a s u a vid a ... o d ed o d e S a t a n á s es t á n a
s u a vid a ... o d ed o d e S a t a n á s t oca n a s u a a lm a ... a
m a r ca d a b es t a n o s eu cor a çã o... Nã o, m eu n ã o, m eu
não.”
Ob s er vei qu e lá gr im a s cor r ia m p ela s s u a s fa ces .
De r ep en t e, volt ou -s e p a r a m im com os olh os a r -
r ega la d os e gr it ou com voz es ga n iça d a : “S a i, DIABO!
Pa r a lon ge d e m im . Deixa -m e, DIABO! Lon ge! Lon ge!
Longe!”
E u es t a va p et r ifica d o d e t er r or . Cor r i p a r a o m eu
qu a r t o e jogu ei-m e s ob r e a ca m a . Pen s a m en t os
p a s s a va m p ela m in h a m en t e com o r ios ca n a liza d os em
u m a ga r ga n t a es t r eit a . “Nã o s ou filh o d ela ... filh o d e
S a t a n á s ... ela n ã o m e a m a ... Nin gu ém m e qu er .
Ninguém me quer.”
E n t ã o a s lá gr im a s vier a m , e eu com ecei a ch or a r e
a s olu ça r . A d or qu e s en t ia n o p eit o er a in s u p or t á vel, e
esmurrei a cama até ficar exausto.
O velh o ód io s e a git ou d en t r o d e m im , a con s u mir
m in h a a lm a , com o a on d a d a m a r é a va n ça s ob r e u m
r ecife d e cor a l. S en t i qu e od ia va m in h a m ã e. Pu xa , com o
a od ia va ! E u qu er ia fer i-la , t or t u r á -la , vin ga r -me.
Empurrei a porta e saí correndo e gritando até a sala. Os
m éd iu n s a in d a es t a va m a li com m a m ã e. E s m u r r ei a
m es a e gr it ei. E s t a va t ã o fr u s t r a d o p elo ód io qu e
gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t-
t e o-o-odeio.” Ap on ta va u m d ed o t r êm u lo p a r a m in h a
mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você me paga.”
Dois d e m eu s ir m ã os m a is n ovos es t a va m à p or ta
olh a n d o, cu r ios os . E m p u r r ei-os p a r a o la d o e cor r i p a r a
os fu n d os d a ca s a . Mer gu lh a n d o es ca d a a b a ixo, vir ei-me
e a r r a s t ei-m e p a r a b a ixo d a va r a n d a e ch egu ei a o ca n t o
es cu r o e fr io on d e eu s em p r e m e es con d ia . Ab a ixa d o s ob
a escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheres
r in d o e m a is a lt a d o qu e a s ou t r a s , a voz d e m in h a m ã e
ecoa n d o a t r a vés d o a s s oa lh o r a ch a d o: “Vir a m , eu b em
disse que ele é filho de Satanás.”
Com o s en t i ód io d ela . Qu er ia d es t r u í-la , m a s n ã o
s a b ia com o. E s m u r r a n d o a p oeir a , gr it ei d e d es es pero,
m eu cor p o s a cu d in d o-s e em s olu ços , con vu ls ivos. “E u t e
od eio. E u t e od eio. E u t e od eio”, gr it ei. Ma s n in gu ém m e
ou viu . Nin gu ém s e im p or t ou . No m eu d es es p er o p ega va
mancheia s d e p ó e a t ir a va fu r ios a m en t e em t od a s a s
d ir eções . A p oeir a a s s en t a va em m eu r os t o
transformando-s e em p equ en os r ia ch os s u jos a o
misturar-se com as lágrimas.
Ma is t a r d e o fr en es i a ca lm ou -s e e fiqu ei em s i-
lên cio. Ou vi a s cr ia n ça s b r in ca n d o n o qu in t a l. Um
ga r ot o es t a va ca n t a n d o u m a m ú s ica qu e fa la va d e
p a s s a r in h os e b or b olet a s m a s eu m e s en t ia is ola d o,
s olit á r io... Tor t u r a d o p elo ód io e p ela p er s egu içã o e
ob ceca d o p elo m ed o. Ou vi a p or t a d o p om b a l fech a r -s e e
a s r u id os a s p a s s a d a s d e p a p a i qu e vin h a d os fu n d os d a
ca s a ; ele com eçou a s u b ir os d egr a u s d a es ca d a .
Pa r a n d o, olh ou p a r a a s t r eva s , p or en t r e a s r a ch a d u r a s
d a s t á b u a s d os d egr a u s . “O qu e es t á fa zen d o a í em
b a ixo, m en in o?” Fiqu ei em s ilên cio, com a es p er a n ça d e
qu e n ã o m e r econ h eces s e. E le en colh eu os om b r os e
con t in u ou s u b in d o a es ca d a , e en t r ou d eixa n d o a p or t a
bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei.
Ou vi m a is r is a d a s d en t r o d a ca s a , qu a n d o a voz
d e b a ixo p r ofu n d o d e m eu p a i u n iu -s e à d a s m u lh eres.
Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim.
On d a s d e ód io m e in va d ir a m ou t r a vez. Lá gr imas
r ola r a m p elo m eu r os t o, e com ecei a gr it a r d e n ovo. “Eu
t e od eio, m a m ã e! E u t e od eio. E u t e od eio.” Min h a voz
ecoou no vácuo sob a casa.
Ch ega n d o a u m a u ge d e em oçã o, ca í d e cos t a s n a
poeira, e rolei de um lado para o outro — a poeira cobria
m eu cor p o. E xa u s t o, fech ei os olh os e ch or ei, a t é ca ir
num sono agitado.
O s ol já t in h a s e es con d id o n o m a r , qu a n d o d es -
p er t ei e m e a r r a s t ei p a r a for a , s a in d o d e b a ixo d a
va r a n d a . A a r eia a in d a r a n gia em m eu s d en t es , e o m eu
cor p o es t a va cob er t o d e s u jeir a . Os s a p os coa xa va m . Os
gr ilos ca n t a va m . E u s en t ia o or va lh o ú m id o e fr io s ob
meus pés descalços.
Pa p a i a b r iu a p or t a d os fu n d os , e u m ja t o d e lu z
a m a r ela p r ojet ou -s e on d e m e a ch a va , a o p é d a es ca d a .
“Porco!” gr it ou ele. “O qu e você es t a va fa zen d o t a n t o
t em p o d eb a ixo d a ca s a ? Veja com o es t á . Nã o qu er em os
porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.”
Ob ed eci. Por ém , m ed it a n d o en qu a n t o m e la va va
d eb a ixo d a b ica , ch egu ei à con clu s ã o d e qu e h a ver ia d e
od ia r et er n a m en t e. Com p r een d i qu e n u n ca m a is a m a r ia
d e n ovo .. a n in gu ém . E n u n ca m a is ch or a r ia ... n u n ca .
Med o, s u jeir a e ód io p a r a o filh o d e S a t a n á s . Foi qu a n d o
comecei a fugir.
Mu it a s fa m ília s p or t o-r iqu en h a s t êm o cos t u m e d e
m a n d a r s eu s filh os p a r a Nova Yor k , qu a n d o es t es
a lca n ça m id a d e s u ficien t e p a r a cu id a r d e s i. S eis d os
m eu s ir m ã os m a is velh os já h a via m d eixa d o a ilh a ,
mudando-s e p a r a Nova Yor k . Tod os es t a va m ca s a d os e
procurando construir vida nova.
E u , p or ém , er a m u it o n ovo p a r a ir . Nã o ob s t a n te,
n os cin co a n os s egu in t es m eu s p a is ch ega r a m à
con clu s ã o d e qu e n ã o er a p os s ível qu e eu p er m a n ecesse
em Por t o Rico. Tor n a r a -m e r eb eld e n a es cola . E s t a va
s em p r e p r ocu r a n d o b r iga , p r in cip a lm en t e com cr ia n ça s
m en or es d o qu e eu . Um d ia a t ir ei u m a p ed r a n a ca b eça
d e u m a m en in a . Fiqu ei olh a n d o, com u m s en t im en t o d e
p r a zer , o s a n gu e qu e got eja va a t r a vés d e s eu ca b elo. A
menina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo.
Meu p a i es b ofet eou -m e a qu ela n oit e a t é m in h a
boca sangrar. “Sangue por sangue”, gritou ele.
Com p r ei u m a es p ingarda “pica-pau” p a r a m a tar
p a s s a r in h os . Ma s , p a r a m im , m a t á -los n ã o er a o
suficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmãos
se afastavam de mim, por causa do meu estranho desejo
de ver sangue.
Qu a n d o es t a va n o oit a vo a n o, t ive u m a b r iga com
o p r ofes s or d e a r tes m a n u a is . E r a u m h om em a lt o e
m a gr o qu e gos t a va d e a s s ob ia r p a r a a s m oça s . Um d ia ,
na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa
e os ou t r os r a p a zes s e es gu eir a r a m p a r a t r á s d a s
máquinas da oficina, sentindo a tensão no ar.
O p r ofes s or ca m in h ou p ela cla s s e, a t é o lu ga r
on d e eu es t a va , a o la d o d e u m t or n o. “S a b e o qu e m a is ,
rapaz? Você é pretensioso.”
Res p on d i com in s olên cia : “Des cu lp e, n egr o, eu
acho que não sou.”
An t es qu e p u d es s e s a fa r -m e, ele m e b a t eu com o
lon go b r a ço os s u d o e s en t i a ca r n e d os m eu s lá b ios
esmagar-s e con t r a os d en t es com a violên cia d o golp e.
S en t i o gos t o d o s a n gu e qu e es cor r ia p ela m in h a b oca e
pelo meu queixo.
Ava n cei p a r a ele, b r a n d in d o os b r a ços . O p r o-
fes s or er a u m h om em feit o en qu a n t o eu p es a va m enos
d e cin qü en t a qu ilos . E u es t a va ch eio d e ód io e a vis t a d o
sangue fez-me explodir. Esticando os braços e colocando
a s m ã os con t r a a m in h a t es t a ele m e con s er vou à
distância, enquanto eu dava murros no ar.
Com p r een d en d o a in u t ilid a d e d os m eu s es for ços ,
fugi. “Você va i ver , n egr o”, gr it ei. “Vou à p olícia . E s p er a
para ver.” Saí correndo da sala de aula.
E le cor r eu a t r á s d e m im , ch a m a n d o-me: “Espere.
Eu sinto muito.” Mas, não voltei.
Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai
e lh e d is s e qu e o p r ofes s or t en t a r a m e m a t a r . E le ficou
fu r ios o. Cor r eu a o qu a r t o e d ep ois s a iu com s u a en or m e
p is t ola n o cin t o. “Va m os ga r ot o. Vou m a t a r u m
valentão.”
Volt a m os à es cola . E u t in h a d ificu ld a d e em
a com p a n h a r os p a s s os lon gos d e p a p a i e qu a s e p r e-
cis a va cor r er p a r a a lcançá-lo. Meu cor a çã o s a lt a va a o
p en s a r n a s en s a çã o d e ver a qu ele p r ofes s or a lt o
encolher-se de medo sob a fúria de meu pai.
Ma s , o p r ofes s or n ã o es t a va n a s a la d e a u la .
“E s p er a a qu i, m en in o”, d is s e p a p a i. “E u vou con ver sar
com o diretor, e resolver isto.” Senti medo, mas esperei.
Pa p a i d em or ou m u it o t em p o n o es cr it ór io d o
d ir et or . Qu a n d o s a iu , ca m in h ou d ep r es s a em m in h a
d ir eçã o, e m e s a cu d iu p elo b r a ço. “Mu it o b em , r a paz,
você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”
Volt a m os d e n ovo a t r a vés d a p equ en a vila , e p ela
t r ilh a s in u os a , a t é em ca s a . E le m e p u xa va a t r á s d e s i,
p r es o p elo b r a ço. “Men t ir os o s u jo”, d is s e-m e já d efr on t e
d a ca s a . Leva n t ou a m ã o p a r a es b ofet ea r -m e, m a s
con s egu i s a ir for a d o s eu a lca n ce, e cor r i la d eir a a b a ixo.
“E s t á cer t o... Fu ja , m olequ e!” gr it ou . “Você h á d e volt a r
para casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...”
Voltei para casa; mas só três dias depois. A polícia
pegou-m e a n d a n d o n a b eir a d e u m a es t r a d a qu e leva va
à s m on t a n h a s , n o in t er ior . Rogu ei-lh es qu e m e
soltassem, m a s d evolver a m -m e a o m eu p a i. E ele
cumpriu a sua promessa.
E u s a b ia qu e p r ecis a va fu gir ou t r a vez. E m a is
ou t r a . Fu gir ia p a r a t ã o lon ge qu e n in gu ém s er ia ca paz
d e m e t r a zer d e volt a . Nos d ois a n os qu e s e s eguiram,
fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou e
m e levou d e volt a p a r a ca s a . Fin a lm en t e, s em m a is
es p er a n ça , p a p a i e m a m ã e es cr ever a m p a r a m eu ir m ã o
Fr a n k , p er gu n t a n d o-lh e s e p od er ia r eceb er -m e p a r a
m or a r em s u a com p a n h ia . Fr a n k con cor d ou , e eles
traçaram os planos para a minha ida.
Na m a n h ã em qu e via jei, a s cr ia n ça s s e
en fileir a r a m n a va r a n d a à fr en t e d a ca s a . Ma m ã e m e
apert ou a o p eit o. Ha via lá gr im a s em s eu s olh os qu a n d o
ela t en t ou fa la r , p or ém n ã o s a iu p a la vr a n en h u m a . E u
n ã o t in h a p or ela s en t im en t o d e qu a lqu er es p écie.
Pegan d o m in h a p equ en a m a la , vir ei a s cos t a s ,
ca r r a n cu d o, e d ir igi-m e à velh a ca m in h on et a on d e p a p a i
me esperava. Não olhei para trás.
Leva m os qu a r en t a e cin co m in u t os p a r a ch ega r a o
a er op or t o d e S a n J u a n , on d e p a p a i m e d eu a p a s sagem
e en fiou em m in h a m ã o u m a n ot a d e d ez d ólares
dobrada. “Telefon e p a r a Fr a n k logo qu e ch ega r a Nova
York”, disse ele. “O p ilot o va i t om a r con t a d e você a t é ele
chegar.”
Ficou d e p é olh a n d o p a r a m im d u r a n t e lon go
t em p o, b em m a is a lt o d o qu e eu , en qu a n t o u m ca ch o d o
s eu ca b elo gr is a lh o e on d u la d o er a a git a d o p ela b r is a
qu en t e. É p r ová vel qu e eu p a r eces s e p equ en o e p a t ét ico
a s eu s olh os , p a r a d o a li n a es t r a d a , com a m a let a n a
m ã o. S eu s lá b ios t r em er a m qu a n d o es t en d eu a m ã o
p a r a a p er t a r a m in h a . E n t ã o, r ep en t in a m en t e, en volveu -
me em s eu s lon gos b r a ços e a p er t ou o m eu cor p o m a gr o
contra o seu.
Escutei-o s olu ça r só u m a vez: “Hijo m io”
(filho meu).
Soltando-m e, ele d is s e r a p id a m en t e: “S eja u m
b om m en in o, p a s s a r in h o.” Vir ei-m e, e s a í cor r en d o;
ga lgu ei a s es ca d a s d o en or m e a viã o, e s en t ei-m e ju n t o a
uma janela.
Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O
Grande”, en cos t a d o n a cer ca . E le leva n t ou a m ã o u m a
vez, com o s e fos s e a cen a r , m a s p a r eceu en ver gonhar-se,
e volt ou , a n d a n d o d ep r es s a , p a r a ju n t o d a velh a
caminhoneta.
Por que será que ele me chamara de “passarinho”?
Recor d ei o m om en t o qu a n d o, m u it os a n os a t r á s ,
s en t a d o n os d egr a u s d a gr a n d e va r a n d a , p a p a i m e
chamara daquela forma.
E s t a va s en t a d o em u m a ca d eir a d e b a la n ço, fu -
m a n d o o s eu ca ch im b o, qu a n d o m e con t ou a len d a d e
u m p á s s a r o qu e n ã o t in h a p és , e p or is s o voa va
con t in u a m en t e. Pa p a i olh ou -m e s om b r io, e d is s e: “Esse
p a s s a r in h o é você, Nick y. Você n ã o t em d es ca n s o. Com o
u m p a s s a r in h o, você es t á s em p r e fu gindo.” Men eou a
cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus,
s op r a n d o fu m a ça n a s t r ep a d eir a s , qu e s u b ia m a t é o
telhado da varanda.
“E s s e p a s s a r in h o é p equ en in o e m u it o leve. Nã o
p es a m a is d o qu e u m a p en a . E le é leva d o p ela s cor -
r en t es d e a r , e d or m e a o ven t o. E s t á s em p r e fu gin do.
Fu gin d o d e ga viões , d e á gu ia s , d e cor u ja s . Aves d e
r a p in a . E le s e es con d e coloca n d o-s e en t r e ela s e o s ol.
S e ela s voa r em a cim a d ele, p od er ã o vê-lo, em con t r a s t e
com a t er r a es cu r a . Ma s a s s u a s p equ en a s a s a s s ã o
t r a n s p a r en t es , com o a á gu a cla r a d a la goa . E n qu a n t o
ele p er m a n ece n o a lt o, ela s n ã o con s egu em vê-lo, e
assim ele nunca descansa.”
Pa p a i r ecos t ou -s e e s olt ou u m a b a for a d a d e fu -
maça azul. “Mas, como é que ele come?” perguntei.
“E le com e a o ven t o”, r es p on d eu p a p a i. Fa la va
va ga r os a m en t e, com o s e t ives s e vis t o a a vezin h a . “Ele
a p a n h a in s et os e b or b olet a s . Nã o t em p er n a s ... n em
pés... está sempre se movendo.”
Fiqu ei fa s cin a d o com a es t ór ia . “E n os d ia s ch u -
vosos?” perguntei-lhe. “O qu e a con t ece qu a n d o o s ol n ã o
b r ilh a ? Com o é, en t ã o, qu e ele es ca p a d os s eu s
inimigos?”
“Nos d ia s feios , Nick y”, d is s e p a p a i, “ele voa t ã o
a lt o qu e n in gu ém p od e vê-lo. A ú n ica h or a em qu e p á r a
d e voa r — o ú n ico m om en t o em qu e p á r a d e fu gir — a
ú n ica vez qu e vem à t er r a — é qu a n d o m or r e. Pois , u m a
vez que toca o solo, não pode mais fugir”
Pa p a i m e d eu u m t a p in h a n o t r a s eir o e m e t ocou
d e ca s a . “Vá a gor a , p a s s a r in h o. Fu ja , voe. S eu p a i o
chamará quando já não for hora de correr.”
Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os
b r a ços com o u m p á s s a r o qu e t en t a s s e a lça r vôo.
Con t u d o, p or a lgu m a r a zã o, p a r ece qu e n ã o con s eguia
ganhar suficiente velocidade para subir.
Os m ot or es d o a viã o t os s ir a m , s olt a r a m fu m a ça
n egr a , e en t r a r a m em fu n cion a m en t o. Fin a lm en t e, eu ia
voar. Estava a caminho...
O ôn ib u s p a r ou . Lá for a , a s lu zes b r ilh a n t es e os
a n ú n cios lu m in os os m u lt icolor id os a cen d ia m e
a p a ga va m n a p en u m b r a fr ia . Um h om em qu e es t a va d o
ou t r o la d o leva n t ou -s e p a r a d es cer . S egu i-o a t é a p or t a ,
e s a ím os . As p or t a s s e fech a r a m a t r á s d e m im , e o
ôn ib u s p a r t iu . Fiqu ei a li n a ca lça d a ... s ozin h o n o m eio
de oito milhões de pessoas.
Ap a n h ei u m p u n h a d o d e n eve s u ja e t ir ei a cr os t a
qu e a cob r ia . Ali es t a va : n eve p u r a e b r ilh a n t e. Des ejei
colocá-la n a b oca e com ê-la Por ém , a o olh a r b em ,
p equ en a s m a n ch a s n egr a s com eça r a m a a p a r ecer n a
s u p er fície. Com p r een d i qu e o a r es t a va ch eio d e fu ligem
d a s ch a m in és e qu e a n eve es t a va t om a n d o o a s p ect o d e
queijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino.
J ogu ei a n eve p a r a o la d o. Nã o fa zia d ifer en ça . E u
estava livre.
Va gu eei p ela cid a d e d ois d ia s . E n con t r ei u m ca -
s a co velh o joga d o em u m a la t a d e lixo. As m a n ga s
cob r ia m a s m in h a s m ã os , e a b a r r a va r r ia a ca lça d a . Os
b ot ões t in h a m s id o a r r a n ca d os e os b ols os r a s ga dos,
m a s ele m e a qu ecia . Aqu ela n oit e eu d or m i n o m et r ô,
encolhido em um banco.
No fim d o s egu n d o d ia , m eu en t u s ia s m o es friar a .
E u es t a va com fom e... e com fr io. E m d u a s oca s iões ,
t en t ei fa la r com a lgu ém , p ed in d o a ju d a . O p r im eir o
h om em s im p les m en t e ign or ou -m e. Con t in u ou a n d a n d o,
com o s e eu n ã o es t ives s e a li. O s egu n d o em p u r r ou -me
con t r a a p a r ed e: “Ca ia for a , s eu . Nã o p on h a es s a s m ã os
gor d u r en t a s em m im .” Piqu ei com m ed o. Ten t a va
im p ed ir qu e o p â n ico s u b is s e d o es t ôm a go p a r a a
garganta.
Na qu ela n oit e, p er cor r i d e n ovo a s r u a s d a cidade,
o p a let ó com p r id o va r r en d o a ca lça d a e a p equ en a m a la
s egu r a fir m em en t e em m in h a m ã o. Pes s oa s p a s s a va m
p or m im , e m e olh a va m , m a s n in gu ém p a r ecia im p or t a r -
se comigo. Apenas olhavam e continuavam andando.
Nes s a m es m a n oit e ga s t ei os d ez d óla r es qu e
p a p a i m e d er a . E n t r ei em u m p equ en o r es t a u r a n t e e
p ed i u m ca ch or r o-qu en t e, a p on t a n d o p a r a a figu r a d e
u m , qu e es t a va d ep en d u r a d a a cim a d o b a lcã o. E n goli-o
s ofr ega m en t e e in d iqu ei qu e d es eja va ou t r o. O h om em
s a cu d iu a ca b eça n ega t iva m en t e e es t en d eu a m ã o.
E n fiei a m ã o n o b ols o e t ir ei a n ot a a m a r fa n h a d a .
Lim p a n d o a s m ã os em u m a t oa lh a , ele a b r iu a n ot a ,
alisou-a , e m et eu -a n o b ols o d o a ven t a l s u jo. Tr ou xe-me
en t ã o ou t r o ca ch or r o-qu en t e e u m a t er r in a d e feijã o com
ca r n e. Qu a n d o t er m in ei, p r ocu r ei-o, m a s ele h a via
d es a p a r ecid o n a cozin h a . Pegu ei a m a la e volt ei p a r a a
r u a fr ia . Aca b a r a d e t er m eu p r im eir o en con t r o com a
es p er t eza a m er ica n a . Com o ir ia s a b er qu e u m ca ch or r o-
quente americano não custa cinco dólares?
Des cen d o a r u a , p a r ei em fr en t e a u m a igr eja . Um
p es a d o p or t ã o d e fer r o, t r a n ca d o com u m ca d ea d o, for a
coloca d o d ia n t e d a s p or t a s . Pa r ei d ia n t e d o gr a n d e
ed ifício d e p ed r a cin zen t a e ob s er vei a t or r e qu e
a p on t a va p a r a o céu . As fr ia s p a r ed es d e p ed r a e os
es cu r os vit r a is es t a va m for a d o m eu a lca n ce, p r ot egid os
p ela cer ca d e fer r o. A es t á t u a d e u m h om em d e r os t o
s im p á t ico e olh os t r is t es es p ia va a t r a vés d o p or t ã o
fech a d o. Os s eu s b r a ços es t a va m es t en d id os e cob er t os
d e n eve, m a s ele es t a va t r a n ca d o lá d en t r o, e eu a qu i
fora.
Arrastei-m e r u a a b a ixo... a n d a n d o... a n d a n d o s em
parar.
O p â n ico volt a va fu r t iva m en t e. E r a qu a s e m eia -
n oit e, e eu t r em ia n ã o s ó d e fr io, m a s t a m b ém d e m ed o.
Tin h a es p er a n ça d e qu e a lgu ém p a r a s s e e m e
p er gu n t a s s e em qu e p od er ia m e a ju d a r . Nem s ei o qu e
t er ia d it o, s e a lgu ém p a r a s s e e ofer eces s e a ju d a . Ma s eu
me sentia sozinho, com medo, e perdido...
A m u lt id ã o a p r es s a d a foi em b or a e m e d eixou .
Nu n ca p en s ei qu e u m a p es s oa p u d es s e s en t ir s olid ã o n o
m eio d e u m m ilh ã o d e p es s oa s . Pa r a m im , s olid ã o er a
perder-s e n a flor es t a ou em u m a ilh a d es er t a . Por ém ,
es s a er a a p ior d a s s olid ões . Vi p es s oa s b em ves t id a s ,
volt a n d o d o t ea t r o p a r a s u a s ca s a s ... velh os ven d en d o
jor n a is e fr u t a s em p equ en a s b a n ca s qu e fica va m
a b er t a s a n oit e t od a ... p olicia is p a t r u lh a n d o, a os p a r es ...
ca lça d a s ch eia s d e p es s oa s a p r es s a d a s . Ao olh a r p a r a
s eu s r os t os , ela s t a m b ém p a r ecia m s olit á r ia s . Nin guém
ria. Ninguém de rosto alegre. Todos apressados.
Sentei-m e n a ca lça d a e a b r i m in h a p equ en a m a la.
E n con t r ei u m p ed a ço d e p a p el d ob r a d o, com o n ú m er o
d o t elefon e d e Fr a n k , es cr it o p or m a m ã e. De r ep en t e,
s en t i a lgo em p u r r a n d o-m e p or t r á s . E r a u m ca ch or r o
velh o, felp u d o qu e en cos t a va o focin h o n o en or m e
ca s a co qu e cob r ia m eu cor p o m a gr o. Rod eei s eu p es coço
com o b r a ço, e p u xei-o p a r a m im . E le la m b eu m eu r os t o
e eu enterrei a cabeça no seu pelo sarnento.
Nã o s ei qu a n t o t em p o fiqu ei a li s en t a d o, t r em en do
e a fa ga n d o o cã o. Qu a n d o olh ei p a r a cim a , vi os p és e
pernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas
es t a va m m olh a d a s e s u ja s . O ca ch or r o s a r n en t o
p r es s en t iu o p er igo, e s a iu cor r en d o, d es a p a recendo
num beco.
Um d os gu a r d a s b a t eu n o m eu om b r o com a
p on t a d o ca s s et et e. “O qu e é qu e você es t á fa zen d o a qu i
s en t a d o, n o m eio d a n oit e?” p er gu n t ou ele. A s u a fa ce
p a r ecia es t a r cem qu ilôm et r os a cim a . Com d ificu ld a d e
p r ocu r ei exp lica r , em m eu in glês d e p é qu eb r a d o, qu e
estava perdido.
Um d eles m u r m u r ou a lgo p a r a o ou t r o, e s e foi. O
qu e fica r a a joelh ou -s e a o m eu la d o, n a ca lça d a s u ja.
“Posso ajudá-lo, garoto?”
Acen ei qu e s im e t ir ei o p ed a ço d e p a p el com o
n om e e n ú m er o d o t elefon e d e Fr a n k . “Irmão”, d is se-lhe,
mostrando o papel.
Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase
ilegível. “É aí que você mora, garoto?”
E u n ã o s a b ia r es p on d er e a p en a s d is s e: “Irmão”.
E le a cen ou qu e s im , leva n t ou -m e p elo b r a ço, e d ir igim o-
n os a u m a ca b in e t elefôn ica a t r á s d e u m a b a n ca d e
jor n a is . Pes cou u m n íqu el n o b ols o e d is cou o n ú m er o.
Qu a n d o a voz s on olen t a d e Fr a n k r es p on d eu , ele m e
en t r egou o fon e. E m m en os d e u m a h or a eu es t a va a
salvo, no apartamento de meu irmão.
A s op a qu en t e qu e t om ei já n a ca s a d e Fr a n k
es t a va gos t os a , e a ca m a lim p a , d elicios a . Na m a n h ã
seguin t e Fr a n k m e con t ou qu e eu d ever ia fica r com ele,
qu e ele cu id a r ia d e m im e m e p or ia n a es cola . Algo
d en t r o d e m im , p or ém , m e d izia qu e eu n ã o fica r ia a li.
Começara a fugir, e agora nada me faria parar.

Capítulo 2

N A S E LV A D O Q U A D R O -
N E GR O

FIQUE I DOIS ME S E S COM FRANK, a p r en d en d o a


m a n ob r a r o in glês . Por ém n ã o er a feliz, e a s ten s ões
internas estavam me perturbando muito.
Fr a n k , logo n a p r im eir a s em a n a , m a t r icu lou -me
n o gin á s io. A es cola er a qu a s e in t eir a m en t e d e n egr os e
porto-r iqu en h os . Era d ir igid a m a is com o um
r efor m a t ór io d o qu e com o es cola p ú b lica . Os p r ofessores
e a d m in is t r a d or es p a s s a va m a m a ior p a r t e d o t em p o
tentando manter a disciplina, de forma que pouco tempo
r es t a va p a r a o en s in o. E r a u m lu ga r s elva gem , ch eio d e
b r iga s , d e im or a lid a d e e d e con s t a n t e b a t a lh a con t r a os
que tinham autoridade.
Tod a s a s es cola s d o Br ook lin t êm r ep r es en t a n t es
d e p elo m en os d u a s ou t r ês ga n gs . E s t a s ga n gs s ã o
qu a d r ilh a s for m a d a s p or r a p a zes e ga r ot a s qu e vivem
em u m cer t o b a ir r o. Algu m a s vezes a s ga n gs s ã o
inimigas , o qu e in va r ia velm en t e cr ia con flit os , qu a n d o
são colocadas na mesma sala de aula.
Aqu ilo er a u m a exp er iên cia n ova p a r a m im . Todo
d ia n a es cola t in h a d e h a ver u m a b r iga n os cor redores
ou em u m a d a s s a la s d e a u la . E u m e en cos t a va à
p a r ed e, com m ed o d e qu e a lgu m d os r a p a zes m a ior es
m e b a t es s e. Dep ois d a a u la , s em p r e h a via u m a b r iga n o
pátio, e alguém saía ferido e perdendo sangue.
Fr a n k cos t u m a va a d ver t ir -m e, p a r a n ã o a n d a r
p ela s r u a s à n oit e. “As qu a d r ilh a s , Nick y. As qu a drilhas
p od em t e m a t a r . E les s a em com o m a t ilh a s d e lob os ,
d u r a n t e a n oit e, e m a t a m qu a lqu er p es s oa qu e n ã o
conheçam.”
E le m e r ecom en d ou qu e vies s e d ir et o d a es cola
p a r a ca s a , t od a s a s t a r d es , e fica s s e n o a p a r t a m en t o, e
me conservasse à distância das gangs.
Logo fiqu ei s a b en d o t a m b ém qu e a s qu a d r ilh a s
n ã o er a m a ú n ica cois a qu e eu d ever ia t em er . Ha via
t a m b ém os “pequenos”. E r a m t er r íveis m olequ es d e n ove
e d ez a n os qu e p er a m b u la va m p ela s r u a s à t a r d e e à
n oit in h a , ou qu e b r in ca va m d ia n t e d os p a r d ieir os em
que moravam.
Tive m eu p r im eir o en con t r o com os “pequenos”
qu a n d o volt a va d a es cola p a r a ca s a cer t o d ia , logo n a
p r im eir a s em a n a . Um a ga n g d e cer ca d e d ez m eninos
en t r e oit o e d ez a n os in ves t iu con t r a m im , s a in d o d e u m
portão.
“Ei, garotos, olhem por onde andam.”
Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para
o inferno!”
Ou t r o veio p or t r á s e a b a ixou -s e. An t es qu e m e
desse conta do que estava acontecendo, vi-me estatelado
d e cos t a s n a ca lça d a . Ten t ei leva n t a r -m e, m a s u m d os
ga r ot os a ga r r ou m eu p é e com eçou a p u xa r . Gr it a va m e
riam o tempo todo.
Per d i a ca lm a e d ei u m s oco n o qu e es t a va m a is
p r óxim o, joga n d o-o n a ca lça d a . Na qu ele m om en t o, ou vi
u m a m u lh er gr it a r . Olh ei p a r a cim a , e vi-a d eb r u ça d a
n u m a ja n ela n o qu a r t o a n d a r . “Afaste-s e d e m eu filh o,
porco nojento, ou eu te mato.”
Naquele m om en t o, n ã o h a via n a d a qu e eu d es e-
jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outros
m en in os es t a va m a va n ça n d o. Um d eles a t ir ou u m a
ga r r a fa d e r efr iger a n t e n a m in h a d ir eçã o. E la a cer t ou n a
ca lça d a , p er t o d o m eu om b r o, fa zen d o ch over vid r o n o
meu rosto.
A m u lh er es t a va gr it a n d o a in d a m a is : “Nã o s e
m et a com os m eu s m en in os ! S ocor r o! S ocor r o! E le es t á
matando meu filho!”
De repente, outra mulher apareceu em uma porta,
com u m a va s s ou r a n a m ã o. E r a gor d a e b a m b olea va a o
cor r er ; t in h a a ca r a m a is feia qu e eu já vi. E la en tr ou n o
m eio d a qu a d r ilh a d e ga r ot os , com a va s s ou r a leva n t a d a
a cim a d e s u a ca b eça . Ten t ei r ola r n o ch ã o, fu gin d o d ela ,
m a s er a t a r d e — a va s s ou r a a cer t ou em ch eio n a s
minhas costas. Rolei de novo e ela me acertou no alto da
ca b eça . E la es t a va gr it a n d o. Per ceb i en t ã o qu e vá r ia s
ou t r a s m u lh er es es t a va m d eb r u ça d a s n a s ja n ela s ,
gr it a n d o, e ch a m a n d o a p olícia . A m u lh er gor d a m e
golp eou p ela t er ceir a vez, a n t es qu e eu p u d es s e p ôr -me
d e p é e com eça r a cor r er . Ou vi-a d izer , a t r á s d e m im :
“S e você a p a r ecer p or a qu i d e n ovo, ju d ia n d o d e n os s a s
crianças, nós te matamos.”
Na t a r d e s egu in t e, a o volt a r d a es cola p a r a ca sa,
escolhi um caminho diferente.
Um a s em a n a m a is t a r d e t ive o p r im eir o en con tro
com u m a ga n g. Volt a va d a es cola e p a r a r a em u ma
p r a ça p a r a ver u m h om em qu e t in h a u m p a p a ga io. E u
estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com
o p á s s a r o, qu a n d o o h om em s u b it a m en t e p er d eu o
in t er es s e, a p er t ou o p a p a ga io con t r a o p eit o e foi s a in d o.
Olh ei a o r ed or , e vi cer ca d e qu in ze r a p a zes n u m
s em icír cu lo em t or n o d e m im . Nã o er a m “pequenos”. Ao
con t r á r io, er a m b em “grandes”, n a m a ior ia , m a ior es d o
que eu.
Ra p id a m en t e for m a r a m u m cír cu lo p on d o-m e n o
m eio e u m d os r a p a zes d is s e: “E i, m olequ e, d e qu e é qu e
você está rindo?”
Ap on t ei p a r a o h om em d o p a p a ga io, qu e en tã o
fu gia d a p r a ça . “Pu xa , eu es t a va r in d o d a qu ele p a p a gaio
bacana.”
“E s cu t e, você m or a a qu i p or p er t o?” p er gu n t ou o
rapaz, com olhar ameaçador.
S en t i qu e a lgo es t a va er r a d o, e com ecei a ga gu ejar
u m p ou co: “Eu-eu m or o com m eu ir m ã o, n o fim d es t a
rua.”
“Você p en s a qu e s ó p or qu e m or a n o fim d es t a r u a ,
p od e en t r a r n a n os s a p r a ça e r ir com o u m a h ien a , h ein ?
É o qu e você p en s a ? Nã o s a b e qu e es t á n os d om ín ios
d os Bis h op s , r a p a z? Nós n ã o p er m it im os qu e es t r a n h os
en t r em em n os s os d om ín ios , p r in cip a lm en t e p a s p a lh os
que riem como hienas.”
Olh ei p a r a eles , e p er ceb i qu e fa la va m s ér io. An tes
qu e eu p u d es s e r es p on d er , o r a p a z d e olh a r d u r o t ir ou
u m a fa ca d o b ols o e, p r es s ion a n d o u m b ot ã o, a b r iu -a,
m os t r a n d o u m a lâ m in a r elu zen t e d e d ezes s ete
centímetros.
“S a b e o qu e vou fa zer ?” d is s e ele. “Vou cor t a r a
s u a ga r ga n t a e d eixa r você s a n gr a r , com o o a n im a l qu e
ri como você.”
“E i, r a -ra-rapaz”, ga gu ejei. “O qu e é qu e h á d e
errado comigo? Por que é que você quer me esfaquear?”
“Por qu e n ã o gos t o d a s u a ca r a , s ó is s o”, d is s e ele.
Ap on t ou a fa ca p a r a o m eu es t ôm a go, e com eçou a
andar em minha direção.
“Va m os , p a izin h o. Deixe-o. E s s e m en in o a ca b a d e
ch ega r d e Por t o Rico. Nã o con h ece a s r egr a s ”, fa lou
outro membro da quadrilha, um moreninho espigado.
“Cer t o, m a s u m d ia va i s a b er . E é m elh or qu e n ã o
p is e n o d om ín io d os Bis h op s .” Com u m s or r is o d e
escárnio, ele recuou.
Viraram-s e e for a m em b or a . Cor r i p a r a o a p a r -
tamento e passei o resto da tarde pensando.
No d ia s egu in t e, n a es cola , a lgu n s m en in os ou -
vir a m fa la r d o in cid en t e d a p r a ça . Des cob r i qu e o r a p a z
qu e t ir a r a a fa ca ch a m a va -s e Rob er t o. Na qu ela t a r d e,
d u r a n t e a a u la d e ed u ca çã o fís ica , es t á va m os joga n d o
b eis eb ol. Rob er t o d er r u b ou -m e d e p r op ós it o. Tod os os
outros meninos começaram a gritar:
“Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de
n a d a , qu a n d o n ã o es t á com u m a fa ca n a m ã o. Va m os ,
Nicky, nós estamos com você. Dá nele!';
“E s t á b em ”, d is s e eu , “va m os ver s e você é b om d e
briga.” Levantei-me e limpei a roupa.
Tomamos posição um diante do outro, e os demais
m en in os for m a r a m u m gr a n d e cír cu lo à n os s a volt a .
Ouvi-os gr it a r : “Lu t em ! Lu t em !” e p er ceb i qu e o cír cu lo
aumentava.
Rob er t o r iu , p or qu e eu t om a r a a p os içã o t r a d i-
cion a l d e p u gilis t a , com a s m ã os d ia n t e d o r os t o. E l?
encurvou-s e u m p ou co e t a m b ém leva n t ou os p u n h os
fech a d os , d es a jeit a d a m en t e. E r a ób vio qu e n ã o es t a va
a cos t u m a d o a lu t a r d a qu ela for m a . Da n cei em d ir eçã o a
ele, e a n t es qu e p u d es s e m over -s e, a cer t ei-lh e u m s oco
d e es qu er d a . O s a n gu e es p ir r ou d e s eu n a r iz e ele d eu
u m p a s s o p a r a t r á s , olh a n d o-m e s u r p r es o. Ava n cei d e
novo.
De r ep en t e, ele b a ixou a ca b eça e ca r r egou con tra
m im com o u m t ou r o, a cer t a n d o-m e n o es t ôm a go e
jogando-m e d e cos t a s n o ch ã o. Ten t ei leva n t a r -m e, m a s
ele m e ch u t ou com s eu s s a p a t os p on t u d os . Rolei p a r a o
la d o, e ele p u lou s ob r e m in h a s cos t a s e p u xou -m e a
ca b eça p a r a t r á s , en t er r a n d o d elib er a d a -m en t e os d ed os
nos meus olhos.
Fiqu ei p en s a n d o qu e os ou t r os m en in os ir ia m m e
a ju d a r , ou p elo m en os a p a r t a r a b r iga , m a s s e lim it a r a m
a ficar ali, torcendo.
E u n ã o s a b ia b r iga r d a qu ela for m a . Tod a s a s
m in h a s b r iga s h a via m s id o s egu n d o a s r egr a s d o b oxe,
m a s p en s ei qu e a qu ele r a p a z ir ia m e m a t a r , s e n ã o
fizes s e a lgo. Aga r r ei a s s u a s m ã os e t ir ei-a s d os m eu s
olh os , en t er r a n d o os m eu s d en t es n o s eu d ed o. E le
gritou de dor e saiu de cima de mim.
De u m p u lo fiqu ei d e p é e t om ei n ova m en t e p o-
s içã o d e p u gilis t a . E le leva n t ou -s e va ga r os a m en t e,
s egu r a n d o a m ã o fer id a . Da n cei em s u a d ir eçã o e
acertei-lh e d ois s ocos d e es qu er d a n o r os t o. E u o fer ir a ,
e a va n cei p a r a s ocá -lo d e n ovo, qu a n d o ele m e a ga r r ou
p ela cin t u r a , p r en d en d o m eu s b r a ços a o la d o d o cor p o.
Us a n d o a ca b eça com o u m b a t e-es t a ca s , ele com eçou a
dar-m e ca b eça d a s n o r os t o. Meu n a r iz com eçou a
s a n gr a r e fiqu ei cego d e d or . Fin a lm en t e ele m e s olt ou e
m e d eu d ois s ocos , e eu ca í n o p ó d o p á t io d a es cola .
S en t i qu e ele m e d eu u m p on t a p é, qu a n d o ch egou u m
professor que o afastou de mim.
Na qu ela n oit e qu a n d o fu i p a r a ca s a , Fr a n k gr itou
comigo. “E les vã o m a t a r você, Nick y. E u lh e d is s e p a r a
fica r lon ge d a s qu a d r ilh a s . E les vã o m a t a r você.” Min h a
fa ce es t a va m u it o fer id a e m eu n a r iz p a r ecia es t a r
quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém
m a is leva r ia va n t a gem s ob r e m im . E u er a ca p a z d e lu t a r
t ã o d es lea lm en t e com o eles — e a t é m a is . Da p r óxim a
vez estaria preparado .
A “p r óxim a vez” foi vá r ia s s em a n a s m a is t a r d e. As
a u la s t in h a m t er m in a d o, e eu ia d es cen d o p elo cor r ed or ,
em d ir eçã o à p or t a . Per ceb i qu e a lgu n s a lu n os es t a va m
m e s egu in d o. Dei u m a olh a d a p or s ob r e o om b r o. At r á s
d e m im h a via cin co ga r ot os n egr os e u m a m en in a . S a b ia
qu e er a com u m h a ver b r iga s feia s en t r e r a p a zes p or t o-
r iqu en h os e n egr os . Com ecei a a n d a r m a is d ep r es s a ,
mas percebi que eles também apressavam o passo.
S a in d o p ela p or t a , eu d es cia u m cor r ed or qu e
d a va p a r a a r u a . Os ga r ot os d e cor m e cer ca r a m , e u m
d eles , u m gr a n d ã o, m e em p u r r ou con t r a a p a r ede.
Der r u b ei os livr os , e ou t r o r a p a z ch u t ou -os cor redor
abaixo, e eles caíram numa vala cheia de água suja.
Olh ei a o r ed or , p or ém n ã o vi n in gu ém qu e p u -
d es s e ch a m a r em m eu s ocor r o. “O qu e você es t á fa zen d o
n es t es d om ín ios , r a p a z?” p er gu n t ou o gr a n d a lhão. “Você
não sabe que isto aqui é nosso?”
“E s s a n ã o! Is t o é d om ín io d a es cola . Nã o p er tence
a quadrilha alguma”, disse eu.
“Nã o b a n qu e o es p er t in h o com igo, m en in o, n ã o
gosto de você.”
Colocou a m ã o con t r a o m eu p eit o e m e a p er t ou
con t r a a p a r ed e. Na qu ele m om en t o ou vi u m cliqu e e
percebi que era o ruído de um canivete automático.
Qu a s e t od os os r a p a zes a n d a va m com u m d es ses.
E les p r efer ia m u s a r u m t ip o d e ca n ivet e d e p r es s ã o, qu e
é op er a d o com o a u xílio d e u m a m ola . Qu a n d o u m
p equ en o b ot ã o d e la d o é a p er t a d o, a m ola s olt a -s e e a
lâmina se abre.
O r a p a gã o colocou a a r m a con t r a m eu p eit o,
p ica n d o os b ot ões d a m in h a ca m is a com a p on t a a fia d a
e fina.
“Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você
é n ovo n es t a es cola , e n ós fa zem os t od os os n ova t os n os
p a ga r em p a r a r eceb er p r ot eçã o d e n ós . É u m b om
n egócio. Você n os p a ga vin t e e cin co cen t a vos p or d ia e
nós garantimos que ninguém te amola.”
Um dos outros rapazes deu uma risadinha forçada
e d is se: “S im , m eu ch a p a ; d a m es m a for m a , n ós
garantimos que não amolamos você, também.”
Todos os outros rapazes riram.
E n t ã o eu d is s e: “Ah , é? E qu em m e p r ova qu e
m es m o qu e eu d ê vin t e e cin co cen t a vos p a r a vocês
todos os dias, vocês não judiarão de mim?”
“Ningu ém p r ova , m en in o in t eligen t e. Você a p enas
nos dá o dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”,
respondeu ele.
“E s t á b em . E n t ã o é m elh or qu e vocês m e m a tem
a gor a m es m o. Por qu e s e vocês n ã o m a t a r em , eu volt a r ei
m a is t a r d e e m a t a r ei vocês u m p or u m .” Pu d e p er ceb er
qu e os ou t r os fica r a m u m p ou co a m ed r on t a d os . O
r a p a gã o qu e t in h a a fa ca con t r a o m eu p eit o,
n a t u r a lm en t e, p en s a va qu e eu er a d es t r o. Por is s o, n ã o
es p er a va qu e fos s e a ga r r á -lo com a m ã o es qu er d a . Tor ci
a s u a m ã o, a fa s t a n d o-a d o m eu p eito, o fiz gir a r s ob r e s i
mesmo e dobrei-lhe o braço por detrás das costas.
E le d eixou ca ir a fa ca e eu a p a n h ei-a d o ch ã o.
Senti-me bem como ela na mão. Coloquei-a contra a sua
ga r ga n t a , p r es s ion a n d o-a a p on t o d e m a r ca r a p ele, s em
furá-la.
E m p u r r ei o s eu r os to con t r a a p a r ed e com a fa ca
n o la d o d a s u a ga r ga n t a , logo a b a ixo d a or elh a . A
m ocin h a com eçou a gr it a r , com r eceio d e qu e eu fos s e
matá-lo.
Virei-m e p a r a ela e d is s e: “E i, b on eca , eu con h eço
você. S ei on d e é a s u a ca s a . Hoje à n oit e vou a t é lá e t e
mato; quer?”
E la gr it ou m a is a lt o e a ga r r ou o b r a ço d e u m d os
ou t r os r a p a zes , com eça n d o a p u xá -lo p a r a lon ge: “Foge!
Foge!” gritava ela. “Esse cara é louco. Foge!”
E les fu gir a m , in clu s ive o r a p a gã o qu e es t iver a
p r es o con t r a a p a r ed e. Deixei qu e s e fos s e, s a b en d o qu e
eles poderiam ter-me matado, se tivessem tentado.
Des ci p ela ca lça d a a t é on d e os livr os es t a va m jo-
ga d os n a á gu a . Ap a n h ei-os e s a cu d i-os . Ain d a t in h a o
p u n h a l n a m ã o. Fiqu ei p a r a d o m u it o t em p o, a b r in d o e
fech a n d o a lâ m in a . E r a o p r im eir o “canivete d e p r es s ã o”
qu e s egu r a va em m in h a m ã o. Ach ei d elicios o m a n ejá -lo.
Deixei-o ca ir n o b ols o d o p a let ó e fu i p a r a ca s a .
“Da qu ela h or a em d ia n t e, s er ia m elh or qu e eles
p en s a s s em d u a s vezes a n t es d e s e en r os ca r em com o
Nicky”, pensei.
Logo es p a lh ou -s e o b oa t o d e qu e eu er a t er r ível.
Aqu ilo fez d e m im u m a is ca a t r a en t e p a r a qu a lqu er
r a p a z qu e qu is es s e b r iga r . Ch egu ei à con clu s ã o d e qu e
a lgo d r á s t ico a con t ecer ia : er a a p en a s u m a qu es t ã o d e
tempo. Mas, estava preparado.
A exp los ã o fin a l veio d ois m es es d ep ois d e eu ter
com eça d o a es t u d a r . A p r ofes s or a a ca b a r a d e
es t a b elecer a or d em n a cla s s e e es t a va fa zen d o a
ch a m a d a . Um r a p a z d e cor ch egou a t r a s a d o. Veio
gin ga n d o e t in h a u m s or r is o cín ico n os lá b ios . Ha via
u m a lin d a ga r ot a p or t o-r iqu en h a s en t a d a n a ú lt im a
fileira. Ele curvou-se e beijou-a no pescoço.
E la a fa s t ou -s e d ele e s en t ou -s e er et a n a ca r t eir a .
E le d eu a volt a e b eijou -a n a b oca ; a o m es m o t em po
t en t a n d o a ca r iciá -la . E la p u lou d o lu ga r e com eçou a
gritar.
Os ou t r os a lu n os es t a va m r in d o e gr it a n d o: “Va-
mos, rapaz, larga brasa!”
Dei u m a olh a d ela p a r a a p r ofes s or a . E la p ôs -s e a
d es cer en t r e a s fileir a s , m a s u m la t a gã o leva n t ou -se
d ia n t e d ela e d is s e: “Or a , p r ofes s or a , a s en h or a n ã o va i
qu er er es t r a ga r a fes t a , va i?” A p r ofes s or a en ca r ou o
r a p a z qu e er a m a is a lt o d o qu e ela , e r ecu ou p a r a a s u a
mesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se.
A es t a a lt u r a , o r a p a z t in h a a ga r ot a p r es a con tra
a p a r ed e, e t en t a va b eija r lh e a b oca . E la gr it a va e
tentava afastá-lo.
E le fin a lm en t e d es is t iu e d eixou -s e ca ir p es a d a -
m ente no seu lugar.
A professora limpou a garganta e começou de novo
a fazer a chamada.
Algo es t a la r a d en t r o d e m im . Leva n t ei-m e d a
ca r t eir a e d ir igi-m e a os fu n d os d a cla s s e. A ga r ot a
s en t a r a d e n ovo e s olu ça va , en qu a n t o a p r ofes s or a fa zia
a chamada.
Cheguei p or t r á s d o r a p a z, qu e a gor a es t a va
s en t a d o n a ca r t eir a , lim p a n d o a s u n h a s . Pegu ei u m a
p es a d a ca d eir a d e m a d eir a qu e es t a va n o fim d o cor -
r ed or e d is s e: “E i, olh e, ga r ot ã o, eu t en h o u m a coisa
para você.”
Qu a n d o ele vir ou -s e p a r a olh a r , d ei-lh e u m a
cadeir a d a n o a lt o d a ca b eça . E le a fu n d ou n a ca r t eir a ,
en qu a n t o o s a n gu e es cor r ia d e u m p r ofu n d o cor t e n a
cabeça.
A p r ofes s or a s a iu cor r en d o d a cla s s e e volt ou em
u m s egu n d o com o d ir et or . E le a ga r r ou -m e p elo b r a ço e
m e em p u r r ou cor r ed or a for a , p a r a s eu es critór io. Fiqu ei
s en t a d o lá en qu a n t o ele ch a m a va u m a a m b u lâ n cia , e
t om a va p r ovid ên cia s p a r a qu e a lgu ém cu id a s s e d o r a p a z
ferido.
Virou-s e p a r a m im . Dep ois d e d izer t u d o o qu e
ou vir a a m eu r es p eit o, n os ú lt im os d ois m es es , is t o é, a s
con fu s ões em qu e eu es t iver a m et id o, p ed iu -m e u m a
exp lica çã o d o qu e a con t ecer a n a cla s s e. Con t ei-lhe
exa t a m en t e o qu e h ou ver a . Dis s e-lh e qu e o r a p a z es t a va
s e a p r oveit a n d o d a ga r ot a p or t o-riqu en h a , e qu e a
p r ofes s or a n a d a fizer a p a r a im p ed i-lo. Por is s o eu m e
colocara a seu lado.
E n qu a n t o fa la va , p u d e ver o s eu r os t o s e a ver -
m elh a r . Fin a lm en t e, ele s e leva n t ou e d is s e: “Est á b om ,
já a gü en t ei es s a s b r iga s a t é on d e p u d e. Vocês vêm a qu i
e p en s a m qu e p od em a gir d a m es m a for m a qu e a gem
n a s r u a s . Pen s o qu e já é h or a d e d a r u m exem p lo, e
qu em s a b e s e a a u t or id a d e s er á m a is r es p eit a d a a qu i
d en t r o. Nã o es t ou p a r a m e s en t a r a qu i t od os os d ia s e
ver vocês s e m a t a n d o e m en t in d o d ep ois , p a r a exp lica r o
que não tem explicação. Vou chamar a polícia.”
Pus-m e d e p é: “S en h or , a p olícia va i m e p ôr n a
cadeia.”
“E s p er o qu e s im ”, d is s e o d ir et or . “Pelo m en os o
r es t o d es s es m on s t r os qu e h á a qu i a p r en d er ã o a
respeitar a autoridade.”
“Ch a m e a p olícia ”, d is s e eu ; a o m es m o t em p o,
en cos t ei n a p or t a t r em en d o d e m ed o e d e r a iva , “e
qu a n d o eu s a ir d a ca d eia , volt a r ei, e u m d ia p ego o
senhor sozinho e o mato.”
Meus dentes rangiam enquanto falava.
O d ir et or ficou b r a n co. S u a fa ce em p a lid eceu e ele
pensou durante um momento.
“Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas
n u n ca m a is qu er o vê-lo n es t a es cola . Nã o m e im p or t a
on d e você va i; p a r a m im , p od e ir p a r a o in fer n o; m a s
n u n ca m a is d eixe qu e eu veja a s u a ca r a a qu i p or p er t o.
Qu er o qu e s a ia d a qu i cor r en d o, e n ã o p a r e en qu a n t o
não estiver fora das minhas vistas. Compreendeu?”
Eu compreendi. E saí... correndo.

Capítulo 3

S O ZI N H O

UMA VIDA MOTIVADA p elo ód io e p elo t em or n ã o


t em lu ga r p a r a m a is n a d a a n ã o s er o p r óp r io ego. E u
od ia va a tod o m u n d o, in clu s ive Fr a n k . E le r ep r es en t a va
a a u t or id a d e, e qu a n d o com eçou a r ecla m a r p or qu e eu
n ã o ia m a is à es cola e fica va for a a té t a r d e d a n oit e,
resolvi deixá-lo.
“Nicky”, d is s e ele, “Nova Yor k é u m a s elva . O p ovo
qu e vive a qu i, vive p ela lei d a s elva . S ó os for tes
sobrevivem. Na verdade, você ainda não viu nada, Nicky.
Mor o a qu i h á cin co a n os e s ei. E s t e lu ga r es t á ch eio d e
p r os t it u t a s , vicia d os em n a r cót icos , éb r ios e a s s a s s in os .
E s s es in d ivíd u os p od em m a t a r você, n in gu ém va i s a b er
qu e es t á m or t o, a t é qu e a lgu m m a la n d r o t r op ece n o s eu
corpo em decomposição, sob um monte de lixo.”
Fr a n k t in h a r a zã o. Ma s eu n ã o p od ia m a is fica r
a li. E s t a va in s is t in d o p a r a qu e eu volt a s s e à es cola , e eu
s a b ia qu e t in h a d e t en t a r viver p or m in h a con ta,
sozinho.
“Nick y, n ã o p os s o for ça r você a volt a r p a r a a
escola. Mas se você não fizer isso, está perdido.”
“Ma s o d ir et or m e exp u ls ou . E le d is s e p a r a eu n ã o
voltar nunca mais.”
“Nã o t en h o n a d a a ver com is s o. S e qu is er viver
aqui, tem de voltar. Você precisa estudar.”
“S e p en s a qu e vou volt a r , es t á lou co, Fr a n k .”
Res p on d i com m a u s m od os . “S e t en t a r m e ob r iga r , eu t e
mato.”
“Nick y, você é meu ir m ã o. Is t o n ã o é cois a qu e s e
fa le. Ma m ã e e p a p a i m e d is s er a m p a r a t om a r con t a d e
você e n ã o vou d eixa r qu e fa le a s s im . Ou você va i p a r a a
es cola , ou s a i d a qu i. Vá em b or a , s e qu is er . Ma s você
volt a r á , p or qu e n ã o t em on d e ir . Ma s s e fica r , va i p a r a a
escola e é só.”
Is s o foi n a s ext a -feir a d e m a n h ã , a n t es d e Fr a n k
s a ir p a r a o t r a b a lh o. Na qu ela t a r d e d eixei u m b ilhete
s ob r e a m es a d a cozin h a , d izen d o-lh e qu e for a
con vid a d o p or a lgu n s a m igos p a r a fica r com eles d u -
r a n t e u m a s em a n a . E u n ã o t in h a a m igos , t od a via n ã o
podia ficar mais com Frank.
Na qu ela n oit e, va gu eei p or Bed for d -Stuyvesant,
u m b a ir r o d e Br ook lin , p r ocu r a n d o lu ga r p a r a fica r .
Dirigi-m e a a lgu n s r a p a zes qu e es t a va m p a r a d os n u ma
esquina. “Algu ém s a b e on d e eu p os s o en con t r a r u m
quarto para morar?”
Um d eles vir ou s e e olh ou p a r a m im , t ir a n d o
b a for a d a s d e u m ciga r r o. “Sim”, d is s e ele, a p on t a n do
com o p olega r s ob r e o om b r o, n a d ir eçã o d a E s cola d e
Brooklin. “O m eu velh o é zela d or d a qu eles
a p a r t a m en t os , d o ou t r o la d o d a r u a . Fa le com ele, qu e
encontra r á u m lu ga r p a r a você. Lá es t á ele s en t a d o n a
es ca d a , joga n d o b a r a lh o com a qu eles ou t r os ca r a s . E le é
o que está bêbado.” Todos os outros rapazes riram.
O p r éd io a qu e o r a p a z s e r efer ir a p er t en cia a o
p r ojet o For t Gr een e, n o cor a çã o d e u m d os m a ior es
conju n t os r es id en cia is d o m u n d o. Ma is d e t r in t a m il
p es s oa s vivia m n os a lt os ed ifícios , s en d o qu e a m a ior ia
er a d e n egr os e p or t o-r iqu en h os . O Con ju n t o
Ha b it a cion a l d e For t Gr een e va i d es d e a Av. Pa r k a t é a
Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro.
Encaminhei-m e p a r a o gr u p o d e h om en s e p er -
gu n t ei a o zela d or s e h a via u m qu a r t o p a r a a lu ga r . E le
t ir ou os olh os d a s ca r t a s e gr u n h iu : “S im , t em u m . Por
quê?”
Hes it ei e ga gu ejei: “Bem , p or qu e eu p r ecis o d e u m
lugar para morar.”
“Tem qu in ze p a cot es a í?” p er gu n t ou , cu s p in d o
fumo na direção de meus pés.
“Bem, não, agora não, mas...”
“E n t ã o n ã o t em qu a r t o”, d is s e ele, e volt ou a o
b a r a lh o. Os ou t r os h om en s n em s e d ign a r a m a levantar
os olhos.
“Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei.
“Olh e, ga r ot o, qu a n d o você p u d er m os t r a r -me
qu in ze p a cot es a d ia n t a d os , o qu a r t o é s eu . Nã o m e
im p or t a com o va i con s egu i-los . Rou b e d e a lgu m a velh a ,
n ã o m e im p or t o. Ma s a t é qu e você t en h a o d in h eir o, n ã o
meta mais o nariz aqui, você está me enchendo.”
Volt ei p a r a a Av. La fa yet t e: p a s s ei p or Pa p a
J oh n 's , Ca s a d e Ca r n e Ha r r y, Ba r Pa r a d is e, S h er y's , Th e
E s qu ir e, Ba r Va lh a l, e Ren d ezvou s d o Lin coln . Pa r a n d o
a o la d o d o ú lt im o, en t r ei em u m b eco, p r ocurando
descobrir como conseguir dinheiro.
S a b ia qu e s e t en ta s s e a s s a lt a r a lgu ém e fos s e
a p a n h a d o, ir ia p a r a a ca d eia , m a s es t a va d es es p er a do.
Dis s er a a Fr a n k qu e s ó volt a r ia d ep ois d e u m a s em a n a .
Um quarto custava dinheiro, e eu não tinha um centavo.
E r a m qu a s e d ez h or a s d a n oit e, e o ven t o d e in ver n o
es t a va fr io d e r a ch a r . Recu ei p a r a a es cu r id ã o d o b eco, e
vi p es s oa s p a s s a n d o n a ca lça d a . Tir ei o p u n h a l d o b ols o
e a p er t ei o b ot ã o. A lâ m in a a b r iu -s e com u m es t a lid o.
E n cos t ei a p on t a con t r a a p a lm a d a m ã o. Min h a m ã o
t r em ia a o p en s a r com o ir ia p r a t ica r o r ou b o. S er ia
m elh or em p u r r á -los p a r a o b eco? E u d ever ia es fa qu eá -
los, ou apenas amedrontá-los? E se gritassem?...
Meu s p en s a m en t os for a m in t er r om p id os p or d u a s
p es s oa s qu e con ver s a va m n a en t r a d a d o b eco. Um velh o
b êb ed o fez p a r a r u m r a p a z d e u n s d ezen ove a n os , qu e
leva va u m en or m e s a co d e m a ntim en t os . O velh o p ed ia -
lh e u n s t r oca d os p a r a t om a r ca fé. Ou vi o r a p a z,
t en t a n d o es ca p a r , d izer a o b êb ed o qu e n ã o t in h a
dinheiro.
Atravessou-m e a m en t e o p en s a m en t o d e qu e o
velh o, p r ova velm en t e, es t a va com o b ols o ch eio d e
d in h eir o m en d iga d o e r ou b a d o. Nã o ou s a r ia gr it a r
p ed in d o s ocor r o, s e eu o r ou b a s s e. Logo qu e o r a p a z s e
fosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.
O r a p a z es t a va p ou s a n d o o s a co d e m a n t im en t os
n o ch ã o. E n fiou a m ã o n o b ols o e en con t r ou u m a
m oed a . O velh o r es m u n gou u m a gr a d ecim en t o e foi
embora.
“Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?”
Na qu ele in s t a n t e o r a p a z d er r u b ou o s a co d e
m a n t im en t os . Du a s m a çã s r ola r a m p ela ca lça d a . E le
curvou-s e p a r a a p a n h á -la s , e eu o p u xei p a r a o b eco,
apertando-o con t r a o m u r o. Am b os es t á va m os m or r en d o
d e m ed o, m a s eu t in h a a va n t a gem d a s u r p r es a . E le
ficou p et r ifica d o qu a n d o eu leva n t ei a fa ca d ia n t e d o s eu
nariz.
“Nã o qu er o m a ch u ca r você, m a s p r ecis o d e d i-
n h eir o. E s t ou d es es p er a d o. Dê-m e d in h eir o. J á ! De-
pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.”
Min h a m ã o t r em ia t a n t o qu e eu t ive m ed o d e
deixar cair a faca.
“Por fa vor , p or fa vor . Leve t u d o, m a s n ã o m e
mate”, r ogou o r a p a z. Tir ou a ca r t eir a d o b ols o e t en t ou
passá-la p a r a m im , m a s d er r u b ou -a . E le t r em ia m a is d o
qu e eu . Ch u t ei a ca r t eir a a in d a m a is p a r a o fu n d o d o
beco. “Ca ia for a ”, d is s e eu . “Cor r a , h om em , cor r a ! E s e
p a r a r d e cor r er a n t es d o s egu n d o qu a r t eir ã o, é u m
homem morto.”
Olh ou p a r a m im , com os olh os a r r ega la d os d e
t er r or , e com eçou a cor r er . Tr op eçou n os
m a n t im en t os e es t a t elou -s e n a ca lça d a , n a en t r a d a d o
b eco. Ca m b a lea n d o, leva n t ou -s e ou t r a vez, e m eio d e
ga t in h a s , m eio em p é, s a iu cor r en d o r u a a b a ixo. Logo
qu e vir ou a es qu in a , p egu ei a ca r t eir a e cor r i com t od a s
a s for ça s n a d ir eçã o op os t a . E m er gin d o d a es cu r id ã o em
De Ka lb , s a lt ei a cer ca d e cor r en t e qu e cer ca o p a r qu e, e
cor r i p ela gr a m a a lt a , em d ir eçã o à s á r vor es .
Escondendo-m e p or t r á s d e u m a t er r o, p a r ei p a r a t om a r
fôlego e p er m it ir qu e o m eu cor a çã o a celer a d o s e
a ca lm a s s e. Ab r in d o a ca r t eir a , con t ei d ezen ove dólares.
E r a u m a s en s a çã o a gr a d á vel t er a s n ota s n a m ã o. At ir ei
a ca r t eir a n o m eio d a gr a m a a lt a , e con t ei o d in h eir o
outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso.
Na d a m a l, p en s ei. As qu a d r ilh a s es t ã o m a t a n d o
va ga b u n d os p or m en os d e u m d óla r , e eu conseguira
d ezen ove n a p r im eir a t en t a t iva . Afin a l d e con t a s , a s
coisas não iam assim tão mal.
Ma s o s en t im en t o d e a u t ocon fia n ça n ã o r em oveu
todo o medo e permaneci escondido detrás dos arbustos,
a t é d ep ois d a m eia -n oit e. A es s a a ltu r a , já er a t a r d e
demais p a r a ir p r ocu r a r o qu a r t o; volt ei en t ã o a o lu ga r
on d e h a via com et id o o r ou b o. Algu ém já ju n t a r a t od os
os m a n t im en t os qu e h a via m ca íd o, com exceçã o d e u m a
caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei a
ca ixa e s a cu d i-a , fa zen d o com qu e os p ed a ços e o fa r elo
ca ís s em n a ca lça d a . Recon s t it u í o a con t ecid o em m eu s
p en s a m en t os , e s or r i. E u d evia t ê-lo cor t a d o, s ó p a r a ver
como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto.
Dirigi-m e p a r a a en t r a d a d o m et r ô, p er t o d e Pa pa
J oh n , e p egu ei o p r im eir o t r em qu e ch egou . Pa s s ei a
n oit e n o m et r ô, e n o d ia s egu in t e, logo ced o, es t a va d e
volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto.
O zelador subiu comigo três lances de escadas. O quarto
t in h a ja n ela s p a r a a r u a qu e fica va d efr on t e à E s cola
Técn ica d e Br ook lin . E r a p equ en o, com r a ch a d u r a s n o
forro. O zelador disse-me que havia um banheiro comum
n o s egu n d o a n d a r , e qu e eu p od ia r egu la r o s is t em a d e
a qu ecim en t o com a m a ça n et a d o r a d ia d or d e a ço.
Entregou-m e a ch a ve, e d is s e-m e qu e o a lu gu el ven cia
t od o s á b a d o, u m a s em a n a a d ia n t a d o. A p or t a fech ou -se
a t r á s d ele. E s cu t ei s eu s p a s s os s oa n d o p es a d a m en t e
escada abaixo.
Voltei-m e e olh ei o qu a r t o. Ha via d u a s ca m a s d e
s olt eir o, u m a ca d eir a , u m a m es in h a , u m la va t ór io e u m
p equ en o gu a r d a -r ou p a . In d o à ja n ela , olh ei a r u a , lá
em b a ixo. O t r â n s it o, logo ced in h o, m ovia -s e com u m
zu m b id o n a Av. La fa yet t e, n o fim d o qu a r t eir ã o. Do
ou t r o la d o d a r u a er gu ia -s e a E s cola Técn ica d e
Br ook lin . Ocu p a va t od o o qu a r t eir ã o e im p ed ia a vis ã o
d e qu a lqu er ou t r o p a n or a m a , m a s n ã o fa zia m u it a
d iferença. Pelo menos, eu estava por conta própria.
Na qu ela m a n h ã , d ei a p r im eir a volt a p ela vizi-
n h a n ça . Des cen d o a s es ca d a s d o p a r d ieir o, vi u m r a p a z
s a ir ca m b a lea n d o d e d eb a ixo d a es ca d a . S u a fa ce es t a va
p á lid a com o u m len çol, e s eu s olh os p r ofundamente
en cova d os . O p a let ó s u jo e es fa r r a p a d o ca ía d e u m d os
om b r os , e a s s u a s ca lça s fica r a m com a b r a gu ilh a
a b er t a , d ep ois d ele t er u r in a d o a t r á s d o r a d ia d or . Nã o
s a b ia d izer s e es t a va b êb ed o ou d op a d o. Pa r ei n o
patamar e fiquei a observá-lo, enquanto saía pela porta e
d es cia os d egr a u s ext er n os . Deb r u çou -s e s ob r e o
corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos”
ir r om p eu p or u m a p or t a la t er a l d o p r im eir o a n d a r e
cor r eu p a r a for a , ign or a n d o com p let a m en t e s u a
p r es en ça . O ca r a p a r ou d e vom it a r e d eixou -se ca ir n o
último degrau, olhando inexpressivamente para a rua.
Pa s s ei p or ele e d es ci p a r a a ca lça d a . S ob r e a
minha cabeça ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima
exa t a m en t e a t em p o d e d es via r -m e r a p id a m en t e d e u m a
a va la n ch e d e lixo qu e er a joga d a d o t erceir o a n d a r . E m
ou t r a p or t a , logo a d ia n t e, u m d os “pequenos” es t a va
a ga ch a d o n a p en u m b r a , d eb a ixo d a es ca d a , u s a n d o
u m a en t r a d a d e p or ã o com o la t r in a . E s t r em eci, m a s
d is s e a m im m es m o qu e a ca b a r ia m e a cos t u m a n d o com
aquilo.
Por t r á s d o ed ifício d e a p a r t a m en t os h a via u m
t er r en o b a ld io, ch eio d e es p in h eir os e m a t o qu e ch e-
gavam à altura da cintura. Algumas árvores esqueléticas
es t ica va m s eu s ga lh os d es n u d os p a r a o céu cin zen t o. A
p r im a ver a com eça r a , m a s a s á r vor es p a reciam
r elu t a n t es em fa zer b r ot a r n ovos r eb en t os e en fr en t a r
ou t r o ver ã o d o gu et o (Gu et o: Nom e d a d o a u m a á r ea
p ob r e d e cid a d e gr a n d e, em qu e h a b it a m p es s oa s d e
u m a m es m a r a ça ou cor . N. d os E .). Ch u t ei u m a la t a d e
cer veja va zia — o t er r en o es t a va ch eio d ela s . Ca ixa s
velh a s d e p a p elã o, jor n a is e ca ixa s qu eb r a d a s es t a va m
es p a lh a d os n o m eio d o m a t o cr es cid o. Um a cer ca d e
a r a m e t od a es t r a ga d a , es t en d ia -s e a t r a vés d o lot e, a t é
ou t r o ed ifício d e a p a r t a m en t os qu e fa zia fr en t e com a
Ru a S t . E d wa r d . Olh a n d o p a r a t r á s , vi o m eu p r éd io, e
a lgu m a s d a s ja n ela s d o p r im eir o a n d a r t a p a d a s com
t á b u a s ou com folh a s d e zin co, p a r a r es gu a r d a r os
a p a r t a m en t os d o ven t o fr io. Dois p r éd ios a lém , eu vi a s
fa ces r ed on d a s d e u n s n egr in h os p equ en os , com s eu s
n a r izes a p er t a d os con t r a a vid r a ça s u ja , ob s er va n d o-me
chutar o lixo. E les m e fizer a m p en s a r em a n im a izin h os
en ga iola d os , a n s ia n d o p ela lib er d a d e, m a s com m ed o d e
aventurar-s e for a d a ga iola , t em er os os d e s er em fer id os
ou m or t os . Pa r t e d a ja n ela es t a va qu eb r a d a e em s eu
lugar haviam posto folhas de papelão manchado de umi-
d a d e. Con t ei cin co fa ces a m ed r on t a d a s . Pos s ivelm en te
h a via m a is cin co n o p equ en o a p a r t a m en t o d e t r ês
cômodos.
Dei a volta , e r et or n ei à fr en t e d o a p a r t a m en t o. O
a p a r t a m en t o d o p or ã o, d eb a ixo d o n ú m er o 5 4 , es tava
va go. O p or t ã o d e fer r o es t a va a b er t o. Ch u t ei-o e en t r ei
O ch eir o d e u r in a , excr em en t os , vin h o, fu m o e gr a xa er a
maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo
a r es p ir a çã o. Pelo m en os eu t in h a u m qu a r t o n o ter ceir o
andar.
Com ecei a d es cer p ela ca lça d a . As p r os t it u t a s
constituíam u m a cen a p a t ét ica . As m u lh er es b r a n cas
exer cia m o s eu com ér cio d o la d o d ir eit o d a r u a e
ocu p a va m u m p r éd io d e a p a r t a m en t os a u m qu a r teirão
do meu. As mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado
d a r u a , e vivia m p er t o d a en t r a d a d o m et r ô. E r a m t od a s
vicia d a s em n a r cót icos . Pica va m p or a li, ves t id a s com
ca s a cos s u jos , em gr u p os . Algu m a s b oceja va m ou
p or qu e es t a va m d oen t es , ou p or qu e p r ecis a va m d e u m
“estimulante”, u m a p ica d a d e h er oín a , logo d e m a n h ã ,
para animá-las.
Dois m es es s e p a s s a r a m e eu a in d a n ã o m e a cos -
t u m a r a com Nova Yor k . Lá em Por t o Rico vir a gr a vu r a s
da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas,
m a s a qu i, n es t a á r ea p ob r e, s ó h a via ed ifícios d e
a p a r t a m en t os a t é p er d er d e vis t a , ch eios d e ca r n e
h u m a n a . Ca d a ja n ela s im b oliza va u m a fa mília,
a m on t oa d a em qu a r t os m in ú s cu los , leva n d o u m a vid a
m is er á vel. Pen s ei n o ja r d im zoológico d e S a n J u a n , on d e
os u r s os a n d a va m len t a m en t e, e os m a ca cos
t a ga r ela va m d et r á s d a s gr a d es . E les s e es p oja va m n a
s u a p r óp r ia im u n d ície. Com ia m ca r n e es t r a ga d a ou
a lfa ce m u r ch a . Lu t a va m u n s con t r a os ou t r os , e a ú n ica
vez em qu e con cor d a va m er a qu a n d o s e r eu n ia m p a r a
r ech a ça r u m in t r u s o. Os a n im a is n ã o for a m feit os p a r a
viver d es t a for m a , s ó com u m a flor es t a p in t a d a n a
p a r ed e d e t r á s d a ja u la , a r ecor d a r -lhes o lu ga r on d e
d ever ia m es t a r . Nem a s p es s oa s . Ma s a qu i, n os gu et os ,
elas vivem assim.
Pa r ei n o m eio-fio, n a es qu in a d a Av. Myr t le, es -
p er a n d o o s in a l a b r ir . S ob r e m in h a ca b eça u m t r em
r u giu e m a t r a qu eou , cob r in d o os qu e es t a va m em baixo
com u m a ca m a d a fin a d e fu ligem e p oeir a . As r u a s
es t a va m cob er t a s com u m a m is t u r a la m a cen t a d e n eve,
s u jeir a e s a l, qu e o p ovo a t r a ves s a va qu a n d o o s in a l
abria.
Nos fu n d os d os p r éd ios d e a p a r t a m en t os os va rais
ia m d e u m a s a ca d a a ou t r a , d e u m a ch a m in é a ou t r a .
As ca m is a s a zu is e ca lça s cá qu i d r a p eja va m a o ven t o
gélid o. Rou p a s d e b a ixo qu e u m a vez h a via m s id o
b r a n ca s a gor a er a m d e u m cin zen t o en ca r d id o, d evid o à
con s t a n t e exp os içã o a o a r p olu íd o. O s á b a d o
a m a n h ecer a . Os lojis t a s a b r ia m a s p es a d a s gr a d es d e
fer r o d efr on t e à s loja s . E m m u it os qu a r t eir ões n ã o h a via
loja que não tivesse uma grade de ferro em forma de tela
ou b a r r a s d e fer r o, p a r a p r ot egê-la d a s qu a d r ilh a s qu e
por ali vagueavam à noite.
Os a p a r t a m en t os er a m , p or ém , o qu e m a is m e
d ep r im ia . Ha via evid ên cia s d e t en t a t iva s a n êm ica s d os
ocu p a n t es , p r ocu r a n d o a lgu m a for m a d e id en t idade,
a cim a d a s elva d e con cr et o e d os p r ecip ícios d e t ijolos .
Ma s er a u m es for ço d es es p er a d o à s em elh a n ça d e u m
h om em qu e es t á s e en t er r a n d o em a r eia m oved iça , qu e
t a t eia à s b or d a s d o lod a ça l com d ed os fr em en t es ,
p r ocu r a n d o u m a r a iz qu e s eja , a ga r r a n d o-s e a ela
d es es p er a d a m en t e, en qu a n t o é a r r a s t a d o p a r a o fu n d o,
com a r a iz qu a s e es m a ga d a n a s m ã os a p er t a d a s em
desespero.
Um va s o d e cer â m ica , s u jo, com flor es , en feit a va o
b a t en t e d e u m a ja n ela cob er t a d e fu ligem . Um ger â n io
mal cuidado apoiava-se contra o vidro.
Oca s ion a lm en t e, via u m a p a r t a m en t o com es ca -
d a s p in t a d a s d e cor es viva s , e à s vezes os u m b r a is d e
u m a ja n ela es t a va m p in t a d os , a p a r ecen d o a s s im em
fla gr a n t e con t r a s t e com a s p ed r a s es cu r a s . E m ou t r o
loca l u m a ja r d in eir a im p r ovis a d a , feit a com a m a d eir a
rústica de um engradado, aparecia dependurada de uma
ja n ela im u n d a . Nela , a lgu m a s flor es a r t ificia is
d es a fia va m o ven t o d e in ver n o, cob er t a s d a fu ligem qu e
s a ía d e m ilh a r es d e ch a m in és er gu id a s p or t od a a
cidade.
E u ch ega r a à Ru a S t . E d wa r d , e p a r a r a d efr on t e à
b ib liot eca Wa lt Wh it m a n , p er t o d o Dis t r it o Policia l. Do
ou t r o la d o d a r u a h a via u m en or m e ed ifício d e
a p a r t a m en t os d e d oze a n d a r es , qu e cob r ia u m
quarteirão inteiro. Suas seiscentas janelas davam para
a r u a , ca d a u m a r ep r es en t a n d o u m es t a d o m is er á vel d e
h u m a n id a d e, t r em en d o p or t r á s d a s vid r a ça s De u m a
d a s ja n ela s p en d ia u m t r a p o es fa r r a p a d o, ou t r or a d e
cor es b r ilh a n t es , a gor a d es b ot a d o d evid o à s in t em p ér ies .
A m a ior p a r t e d a s ja n ela s ' n ã o t in h a ven ezia n a s ou
cortinas — es t a va m a li, a r r ega la d a s com o os olh os d e
um cadáver congelado, deitado na rua.
Volt ei s ob r e os m eu s p a s s os , em d ir eçã o à Pr a ça
Wa s h in gt on . O qu e h á d e er r a d o com es t e p ovo, a qu i
n es t e lu ga r im u n d o? p en s ei. Por qu e vive a s s im ? Nã o h á
qu in t a is . Nem gr a m a . Nem es p a ços a b er t os . Nem
á r vor es . E u n ã o s a b ia qu e u m a vez qu e a lgu ém m u d a
p a r a u m a d a qu ela s ga iola s d e con cr et o, fica p r is ion eir o
dela. Não há escapatória na selva de asfalto.
Na qu ela t a r d e, d es ci r u a a b a ixo d e n ovo. E u
n ot a r a qu e h a via u m a es p écie d e p a r qu e d e d iver s ões e
es p et á cu los , n o p á t io qu e h a via a t r á s d a Igr eja Ca t ólica
d e S t . Mich a el e S t . E d wa r d n a es qu in a d a s r u a s
Au b u r n e S t . E d wa r d . E r a u m a qu er m es s e. Ch egu ei à s
qu a t r o h or a s . A m ú s ica d o a lt o-fala n t e r es s oa va n o
volu m e m á xim o. Ain d a t in h a u m p ou co d e d in h eir o qu e
r es t a r a d o fu r t o, e o p en s a m en t o d e u m a qu er m es s e
fa zia m eu s a n gu e for m iga r . Na p or t a , n ot ei u m gr u p o d e
r a p a zes em volt a d e u m t oca d or d e r ea lejo. Ves t ia m
b lu s ões n egr os , com d ois M ver m elh os cos t u r a d os n a s
cos t a s . A m ú s ica d o r ea lejo er a qu a s e s u foca d a p elo
b a r u lh o qu e os r a p a zes es t a va m fa zen d o, b a t en d o
palmas e dançando no meio da calçada.
No cen t r o d o gr u p o es t a va u m r a p a z d e ca b elos
negros, bem magro, mais ou menos da minha idade. Seu
r os t o b on it o a b r ia -s e n u m s or r is o, en qu a n t o ele
sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cintura,
ele gir a va a o r it m o d a m ú s ica . Rep en t in a m en t e s eu s
olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e o
s or r is o foi in s t a n t a n ea m en t e s u b s t it u íd o p or u m olh a r
duro e frio.
“E i, ca r a , o qu e é qu e você es t á fa zen d o n es t e
t er r it ór io? Aqu i é d om ín io d os Ma u -Ma u s . Nós n ã o
queremos nenhum quadrado rondando por aqui.”
Devolvi-lh e o olh a r d u r o, e p er ceb i qu e os ou t r os
r a p a zes d e b lu s ã o p r et o h a via m , s ilen cios a m en t e, for -
m a d o u m p equ en o cír cu lo a o n os s o r ed or . O r a p a z
b on it o, d e olh os fr ios com o o a ço, en ca m in h ou -s e p a ra
m im e m e em p u r r ou com o p eit o, r in d o: “Qu a l a s u a
“turma”, moleque?”
“Nã o t en h o t u r m a ”, r es p on d i. “Vim a qu i p a r a
entrar na quermesse. É crime?”
Um rapaz do grupo avançou para mim.
“E i, m eu ch a p a , você s a b e o qu e é is t o?” d is s e ele,
b r a n d in d o u m a fa ca a b er t a . “Is t o é u m p u n h a l, ca r a .
Is s o va i cor t a r s u a b a r r iga . Qu er o ver você a b a n ca r o
espertinho comigo! Eu não sou mole como o Israel.”
O r a p a z a qu em ele ch a m a r a d e Is r a el fez s in a l
p a r a o ou t r o a fa s t a r -s e, e con t in u ou : “S a b e, u m qu a -
d r a d o p od e s er m or t o n u m in s t a n t e. Pod e s er qu e eu o
mate. Agora, se você quer viver, é melhor pinicar .”
E u es t a va com r a iva , e p u s a m ã o n o b ols o, p r o-
cu r a n d o m in h a fa ca , m a s ch egu ei à con clu s ã o d e qu e a
m in h a d es va n t a gem er a m u it o gr a n d e. Nã o qu er ia
portar-m e com o cova r d e, m a s s a b ia qu e h a ver ia ou tra
op or t u n id a d e p a r a d em on s t r a r m in h a cor a gem . As s en t i
com a ca b eça e volt ei r u a a cim a , em d ir eçã o à Pr a ça
Wa s h in gt on , e a o m eu qu a r t o. At r á s d e m im p u d e ou vir
a qu a d r ilh a r in d o e a p u p a n d o: “Is t o é qu e é fa la r , Is r a el.
Aquele pirralho aprendeu a lição, desta vez. Vai fazer frio
no inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.”
E u es t a va za n ga d o e fr u s tr a d o. Pa s s a n d o p or
b a ixo d o p on t ilh ã o d o t r em n a Av. Myr t le, en t r ei n a
p r a ça e s en t ei-m e em u m b a n co. Nã o n ot ei qu e u m
ga r ot o d e cer ca d e t r eze a n os m e s egu ir a . Vir ei-m e e
olh ei p a r a ele, qu e r iu e s en t ou -s e n o b a n co, a o m eu
lado.
“E les lh e fizer a m p a s s a r u m a p er t o, n ã o?” d is s e
ele.
“O qu e você es t á p en s a n d o?” p er gu n t ei. “E u d ou
em t od os eles , m a s s er ia u m b ob o s e t os s e lu t a r con t r a
todos de uma só vez.”
“Ra p a z, a s qu a d r ilh a s a qu i s ã o d u r on a s ”, d is s e o
m en in o, t ir a n d o d o b ols o d a ca m is a u m ciga r r o feit o em
casa. “Matam a gente se não concordar com eles.”
Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.
“Você fu m a m a con h a ?” p er gu n t ou . Men eei a
cabeça, embora soubesse do que estava falando.
“Qu er exp er im en t a r ? Ten h o m a is u m . É b á r b a ro,
bicho.”
“Claro”, r es p on d i. Recu a r a u m a vez n a qu ela t a r de,
e não queria recuar de novo.
E le en fiou a m ã o n o b ols o d a ca m is a e t ir ou u m
ciga r r o d ob r a d o e a m a r fa n h a d o. E s t a va d ob r a d o em
a m b a s a s p on t a s , e m a n ch a d o la t er a lm en t e, on d e ele
lambera o papel para colá-lo.
“É p r ecis o t r a ga r ”, d is s e o r a p a z. “S e n ã o, ele s e
apaga.”
E le a cen d eu o ciga r r o e com ecei a fu m a r cu id a -
dosamente .
“Não”, riu o menino, “é assim.”
Deu u m t r a go p r ofu n d o n o ciga r r o e in a lou va -
garosamente a fumaça para os pulmões.
“Pu xa , com o is t o é b om ! S e você der baforadas, ele
s e qu eim a e você n ã o a p r oveit a . Você p r ecis a t r a ga r ,
meu chapa!”
Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente doce, e
um cheiro forte.
“O qu e a con t ece?” p er gu n t ei, com eça n d o a s en tir
os efeitos atordoantes da erva.
“Meu ch a p a , is t o fa z a gen t e voa r ”, r es p on d eu o
rapaz. “Fa z a gen t e r ir u m b oca d o. Fa z a gen t e a ch a r
qu e é o m elh or d a n ça r in o, m elh or n a m or a d or , m elhor
lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermesse estavam
fumando a erva. Você não viu como os
olh os d eles es t a va m ver m elh os ? A gen t e p od e
s a b er s e eles es t ã o “altos”, ob s er va n d o o b r ilh o d os
olhos.”
“Onde é que você consegue isto?”
“Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na
vizin h a n ça . A m a ior p a r t e d os r a p a zes p od e con s egu i-la
p a r a você. E les con s egu em d e con t a t os m a is
im p or t a n t es . Cu b a , México. E u ? Meu velh o t em u m a
p la n t a çã o d e m a con h a n o fu n d o d o qu in t a l. Nos s o
qu in t a l es t á ch eio d e m a t o. Nin gu ém va i lá , e o m eu
velh o p la n t ou a lgu m a s s em en t es n o m eio d o m a t o. Nós
t em os u m a s m u d a s , p a r a o ga s t o. Nã o é t ã o b oa com o
outros tipos de mercadoria, mas é de graça.”
“Qu a n t o cu s t a , a gen t e com p r a n d o n u m a b oca d e
fumo?” p er gu n t ei, p r ocu r a n d o a p r en d er o voca b u lá r io e
u m p ou co em b a r a ça d o p elo fa t o d e u m m en in o d e t r eze
anos saber mais do que eu.
“Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas vezes
a gen t e en con t r a a s et en t a e cin co cen t a vos , m a s é
m elh or com p r a r u m a la t a . É com o u m a p equ en a la t a d e
fu m o. Des s a for m a a gen t e p od e fa zer os p r óp r ios
“pacaus” p or qu a r en t a cen t a vos , m a is ou m en os . Ma s ,
p r ecis a t er cu id a d o. Algu n s ca r a s p od em qu er er t a p ea r
você. E les m is t u r a m or éga n o com a m a con h a , e a s s im a
gen t e n ã o com p r a a er va p u r a . S em p r e é b om p r ova r
antes de pagar, pois certamente eles quererão tapear.”
E u t er m in a r a d e fu m a r o m eu “pacau”, e es t icara
a s p er n a s p a r a a fr en t e, d es ca n s a n d o a ca b eça n a s
cos t a s d o b a n co. Nã o p a r ecia es t a r s en t in d o o ven t o fr io,
e a t on t u r a d es a p a r ecer a , d eixa n d o-m e u m a s en s a çã o
de estar flutuando em uma nuvem de sonho.
Voltei-m e p a r a olh a r o ga r ot o. E le es t a va s en tado
no banco, com a cabeça nas mãos.
“Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por
que você não está rindo?”
“Ra p a z, p or qu e é qu e eu vou r ir ?” d is s e ele. “Meu
velh o é u m b eb er r ã o. S ó qu e ele n ã o é m eu ver d a d eir o
p a i. E le veio m or a r com m in h a m ã e n o a n o p a s s a d o. Pr a
t e con t a r a ver d a d e, eu n em s ei qu em é o m eu velh o.
E s s e h om em b a t e n a m in h a m ã e o t em p o t od o. Na
s em a n a p a s s a d a t en t ei t ir á -lo d e cim a d ela e ele d eu
u m a ga r r a fa d a n a m in h a ca r a , qu eb r a n d o-m e d ois
dentes. Joguei um despertador nele, que pegou nas suas
costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou
e disse para eu me mandar... que eu não tinha direito de
m a ch u ca r o s eu h om em . Agor a eu es t ou m or a n d o n a
r u a , es p er a n d o a h or a d e p od er m a t á -lo. Nã o fa ço p a r t e
d e n en h u m a qu a d r ilh a . Nã o es t ou u n id o a n in gu ém .
E s t ou s ó es p er a n d o p ega r a qu ele va ga b u n d o s ozin h o,
p a r a m a t á -lo. Ta m b ém n ã o gos t o m a is d e m in h a m ã e.
Que motivo tenho para sorrir?”
Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto falava.
“E s s e é o m es m o h om em qu e p la n t ou a m a con h a
no fundo do quintal?” perguntei.
“É. Ele também é traficante. Meu chapa, espera só
eu o pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma
faca.” Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado.
Pa r ecia m a is a fa ce d e u m m a ca co velh o, d o qu e a d e
um rapazinho de treze anos.
“E o s eu velh o, ele t a m b ém é u m p a u d á gu a ?”
“Nã o, eu s ou d e s or t e. E u n em m es m o t en h o u m velh o
ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.”
O m en in o leva n t ou a ca b eça : “É, a gor a eu t a m -
bém; espero.”
Dep ois , a n im a n d o-s e, a cr es cen t ou : “Bem, “ciao”.
Tom e cu id a d o com a s qu a d r ilh a s . E les t e m a t a m , s e t e
pegarem na rua durante a noite!”
“E i, e o qu e você m e d iz d es s a s qu a d r ilh a s ?
Quantas são?”
“Centenas”, d is s e ele. “Ra p a z, h á t a n t a s qu e a
gente nem pode contar.”
“O que é que eles fazem?”
“Br iga m , m eu ch a p a ; o qu e m a is ? E s t ã o s em p r e
saindo p a r a lu t a r con t r a ou t r a ga n g, ou en t ã o fica m
p er t o d e ca s a p a r a d efen d er s eu s d om ín ios con t r a a l-
guma gang invasora. Quando não estão combatendo uns
com os ou t r os , es t ã o com b a t en d o com a p olícia . Us a m
tudo o que podem para brigar. Carregam facas, porretes,
p is t ola s , r evólver es , s oqu eir a s d e b r on ze, r ifles ,
es p in ga r d a s d e ca n o s er r a d o, b a ion et a s , t a cos d e
b eis eb ol, ga r r a fa s qu eb r a d a s , t ijolos , p ed r a s , cor r en t es
d e b iciclet a ... r a p a z, qu a lqu er cois a qu e você p en s a r ,
eles u s a m p a r a m a t a r . Ch ega m a a fia r a p on t a d o
guarda-ch u va , p ôr p r egos n os s a p a t os , e a lgu m a s d a s
qu a d r ilh a s d os it a lia n os ca r r ega m n a va lh a s , e coloca m
lâ m in a s d e b a r b ea r en t r e os d ed os , qu a n d o vã o d a r
s ocos . Fiqu e p or a qu i, e você va i ver . É p or is t o qu e n ã o
m e u n o a eles . E u s ó a n d o p elos b ecos e r u a s es cu r a s , e
fico lon ge d eles . Ma s você va i a p r en d er ; fica p or a í, qu e
você aprende.”
E le s e leva n t ou e foi a n d a n d o s em d es t in o p ela
p r a ça , d es a p a r ecen d o n o cr ep ú s cu lo. Volt ei a o n ú mero
54 da Fort Greene. Já estava ficando escuro.

Capítulo 4

B AT I S MO D E S AN GU E

VÁRIAS S E MANAS MAIS TARDE , s a í d e m eu


a p a r t a m en t o p or volt a d e oit o d a n oit e, e fu i a t é Pa p a
J oh n 's , n u m a es qu in a d a Av. La fa yet t e. Um m oço p or t o-
r iqu en h o ch a m a d o Tico es t a va en cos t a d o n a p a r ed e d o
ed ifício, fu m a n d o. E u já m e en con t r a r a com ele u m a ou
duas vezes, e sabia que era perito na faca.
E le olh ou p a r a m im e d is s e: “E i, Nick y, você
gos t a r ia d e ir a u m a “festinha”? Vou a p r es en t á -lo a o
Carlos, presidente da gang.”
E u t in h a ou vid o fa la r d es s a s “festinhas”, m a s
n u n ca for a con vid a d o, p or is s o a ceit ei p r es s u r os o o s eu
con vit e, e a com p a n h ei-o p or u m a r u a t r a n s versal;
en t r a m os em u m p or ã o d eb a ixo d e u m la n ce d e es ca d a s
de um edifício de apartamentos.
Tive d ificu ld a d e em a cos t u m a r os olh os com a
p en u m b r a . Um qu eb r a -lu z es t a va a ces o a u m ca n t o. Um
p ou co d e cla r id a d e en t r a va p ela s ja n ela s , e u m
pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora.
Qu a n d o en t r ei n o s a lã o, p u d e ver figu r a s a ga r -
r a d a s u m a s à s ou t r a s , d a n ça n d o a o s om d e m ú s ica
s u a ve. S u a s ca b eça s ca ía m n o om b r o u m a d a ou t r a ,
enqua n t o os p és m ovia m -s e em com p a s s o com a m ú sica
lenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho por
t r á s d a s cos t a s d o s eu p a r , e ca m b a leou a o m es m o
t em p o qu e r od ea va o p es coço d a m oça com o b r a ço e
tomava um longo trago da garrafa.
Vá r ios r a p a zes s e a ch a va m s en t a d os d ia n t e d e
u m a p equ en a m es a , joga n d o b a r a lh o e fu m a n d o m a -
con h a , com o vim a s a b er m a is t a r d e. Um a ga r r a fa d e
vinho fora colocada no meio da mesa.
Bem a o fu n d o d o s a lã o, lon ge d a lâ m p a d a , d ois
ca s a is es t a va m d eit a d os n u m a es t eir a . Um ca s a l es t ava
a p a r en t em en t e d or m in d o, u m n os b r a ços d o ou t r o.
E n qu a n t o eu a in d a os ob s er va va , leva n t a r a m , e s a ír a m
tropeçando por uma porta lateral.
Tico olh ou p a r a m im e p is cou . “Há u m a ca m a a li.
Eles podem fazer amor quando quiserem.”
Um m on t e d e r evis t a s com figu r a s d e m u lh er es
nuas e semi-nuas estava no chão, aos meus pés.
“Então, isto é uma “festinha”, pensei.
Tico a ga r r ou m eu b r a ço e em p u r r ou -m e s a lã o
adentro. “E i, t u r m a , es t e é u m a m igo m eu . Va m os fa zê-
lo sentir-se em casa.”
Um a ga r ot a lou r a s u r giu d a s t r eva s p er t o d a p or -
ta, e me agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto
a p er t a d o, u m a s a ia ver m elh a , e d es ca lça . Coloqu ei a
m ã o a o r ed or d a s u a cin t u r a e d is s e: “E i, b on eca , qu er
dançar comigo?”
“Com o s e ch a m a ?” p er gu n t ou . An t es qu e eu
p u d es s e r es p on d er , Tico fa lou : “S eu n om e é Nick y. E le é
m eu a m igo e é u m ca r a m u it o b om d e b r iga . Pod e s er
que entre na nossa turma.”
A ga r ot a d es lizou à m in h a fr en t e e ficou b em p er t o
de mim.
“Tá b om , Nick y, s e você é t ã o b om d e b r iga , va m os
ver se é bom também para dançar.”
Da n ça m os u m p ou co e d ep ois p a r a m os p a r a ver
dois rapazes fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um
d os r a p a zes es t a va d e p é con t r a a p a r ed e, e o ou t r o
atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era
espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos
pés. Se o rapaz recuasse, ele era um “galinha”.
Surpreendi-m e d es eja n d o qu e ele fer is s e o r a p a z.
A id éia d e ver s a n gu e m e excit a va . Ali d e p é, com ecei a
r ir in t er ior m en t e, es p er a n d o qu e ele er r a s s e, e
machucasse o outro.
A lou r a d e s u ét er n egr o m e p u xou p elo b r a ço:
“Ven h a com igo. Qu er o qu e você con h eça u m ca r a qu e é
muito importante.”
Segui-a a t é u m a s a la a o la d o. Um p or t o-riquenho
a lt o e es b elt o es t a va es t ir a d o n u m a ca d eir a , com a s
p er n a s s ob r e u m a m es in h a à s u a fr en t e. Um a ga rota
es t a va s en t a d a a ca va lo em s eu colo, en cos t a d a n ele, e
ele soprava fumaça através do cabelo dela e sorria.
“Ei!” gr it ou p a r a n ós . “Vocês n ã o t êm ed u ca ção?
Nã o s a b em qu e n ã o p od em en t r a r a qu i s em p ed ir
licen ça ? Vocês p od em m e p ega r fa zen d o a lgu m a cois a
qu e n ã o qu er o qu e n in gu ém veja .” Riu , vir ou -s e d e la d o,
e d eu t a p in h a s n os qu a d r is d a ga r ot a com a m b a s a s
mãos.
Olh a n d o p a r a m im , ele p er gu n t ou : “Qu em é es s e
cara?”
A lou r a r es p on d eu : “É m eu a m igo Nick y. Veio com
Tico. Tico disse que ele é bom de briga.”
O r a p a z a lt o t ir ou a ga r ota d o colo e olh ou
ca r r a n cu d o p a r a m im . Dep ois a r r ega n h ou os d en t es
num sorriso e estendeu a mão.
“Toca a qu i, Nick y. Meu n om e é Ca r los . Pr es idente
dos Mau-Maus.”
Cu id a d os a m en t e en cos t ei m in h a m ã o a b er t a n a
s u a e p u xei-a p a r a t r á s , es cor r ega n d o a p a lm a con t r a a
dele. Esta é a maneira de cumprimentar das quadrilhas.
Ou vir a fa la r d os Ma u -Ma u s . E les t om a r a m es s e
n om e em p r es t a d o d os s a n gu in á r ios s elva gen s d a Áfr ica .
Já os vira nas ruas, com seus blusões de couro com dois
M ver m elh os cos t u r a d os à s cos t a s . Us a va m ch a p éu s
a lp in os ext r a va ga n t es , m u it os d os qu a is en feit a d os com
fós for os d e m a d eir a . Qu a s e t od os ca r r ega va m b en ga la s e
u s a va m s a p a t os p on t u d os e p od ia m m a t a r u m h om em a
pontapés em questão de segundos.
Ca r los a cen ou com a ca b eça p a r a o ca n t o d a s a la
e eu r econ h eci o r a p a z qu e vir a n a qu er m es s e. “Aqu ele é
Israel, vice-presidente dos Mau-Maus.” O rosto de Israel,
a o olh a r p a r a m im , es t a va in exp r es s ivo. S eu s p r ofu n d os
olh os n egr os p a r ecia m qu er er p er s cr u t a r m in h a a lm a ,
deixando-me embaraçado.
Des cob r i m a is t a r d e qu e o p r es id en t e e o vice-
p r es id en t e es t ã o qu a s e s em p r e ju n t os . Pr ot egem -s e u m
ao outro no caso de um dos dois ser atacado.
“Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos.
“Dezesseis”, respondi.
“Sabe brigar?”
“Claro.”
“E s t á d is p os t o a b r iga r com qu a lqu er u m , a t é com
a polícia?”
“Claro”, respondi outra vez.
“Ei, você já “furou” alguém ?”
“Não”, repliquei pesaroso, mas falando a verdade.
“Alguém já tentou “furá-lo” ?”
“Já”, respondi.
“É ?”, d is s e Ca r los , d em on s t r a n d o r en ova d o in -
teresse. “E o que foi que você fez com o cara?”
“Nada”, d is s e eu , “m a s vou fa zer . S ó es t ou es -
p er a n d o p egá -lo d e n ovo, e qu a n d o is s o a con t ecer , vou
matá-lo.”
Is r a el in ter r om p eu -nos: “E s cu t e, m eu ch a p a , s e
você qu er en t r a r p a r a a n os s a ga n g, p r ecis a s er como
n ós . S om os os m a is d u r ões . At é a p olícia t em m ed o d a
gen t e. Ma s n ã o qu er em os “bolhas”. Pa r a en t r a r p a r a a
nossa quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá cer t o? S e você
bancar o “galinha”, nós cortamos e matamos você.”
E u s a b ia qu e Is r a el es t a va fa la n d o a ver d a d e, p ois
já ou vir a con t a r d e r a p a zes qu e t in h a m s id o m or t os p or
s u a s p r óp r ia s qu a d r ilh a s , p or t er em d en u n cia d o u m
colega de gang.
Ca r los , en t ã o fa lou : “Du a s cois a s , r a p a z: s e você
en t r a r p a r a os Ma u -Ma u s , é p a r a t od a a vid a . Nin guém
p ed e d em is s ã o. S egu n d o, s e a p olícia te p ega r e você d er
o s er viço, n ós a cer t a m os você qu a n d o s a ir d a ca d eia , ou
en t r a m os n a ca d eia e a cer t a m os você lá . O fa t o é qu e
acertamos.”
Is r a el m os t r ou u m s or r is o es ca r n in h o n o r os to
simpático: “Qu e t a l, m en in o, você a in d a qu er en t r a r n a
turma?”
“Dêem-m e t r ês d ia s ”, d is s e eu . “S e eu en t r a r p a r a
a sua gang quero ir até o fim.”
“Tá b om , m eu ch a p a ”, d is s e Ca r los , “t em t r ês d ia s
para pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber
s u a d ecis ã o.” E le a in d a es t a va m eio d eit a d o n a ca d eir a
com a s p er n a s s ob r e a m es a . At r a ír a a ga r ot a p a r a s i,
ou t r a vez, e es t a va com a m ã o es qu er d a s ob a s u a s a ia ,
ao redor dos quadris.
Virei-m e p a r a s a ir , e Ca r los d is s e: “E i, Nick y, eu
m e es qu eci d e lh e d izer : s e você con t a r a a lgu ém ... a
qu a lqu er p es s oa ... on d e es t a m os , eu o m a t o a n t es d e
você dizer “ai”. Morou?”
“Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério.
Lá for a , n a r u a , in t er r ogu ei Tico: “O qu e é qu e
você a ch a , Tico? Ach a qu e eu d evo en t r a r p a r a os Ma u -
Maus?”
Tico apenas encolheu os ombros.
“É u m n egócio b om , ca r a . S e en t r a r , eles t om a m
con t a d e você. S e n ã o en t r a r , eles s ã o ca p a zes d e m a t á -
lo p or n ã o t er en tr a d o. Você n ã o t em m u it a es colh a
a gor a . Além d is t o, você va i t er qu e en t r a r p a r a u m a
quadrilha, para continuar vivo por aqui.”
“Qu e é qu e você a ch a d e Ca r los ?” p er gu n t ei, “que
tipo de sujeito é ele?”
“É cem p or cen t o. Nã o fa la m u it o, m a s qu a n do
fa la , t od o m u n d o es cu t a . E le é o ch efe, e t od os s a b em
disso.”
“É ver d a d e qu e o p r es id en t e es colh e a ga r ot a qu e
quiser?” perguntei.
“É ”, d is s e Tico. “Tem u m a s s et en t a e cin co ga rotas
em n os s a ga n g e o p r es id en t e es colh e qu a lqu er u m a
d ela s . Ca d a d ia é u m a d ifer en t e, s e qu is er . Ra p a z, ela s
gos t a m d is s o. Você s a b e, n a m or a r o p r es id en t e é s er
im p or t a n t e. E la s b r iga m p a r a ver qu em va i d iver t ir -se
com ele. E is t o n ã o é t u d o. A qu a d r ilh a cu id a d o
p r es id en t e. E le t em a p a r t e d o leã o em t u d o o qu e
roubamos — o qu e ger a lm en t e d á p a r a ele p a ga r o
a lu gu el, a com id a e a s r ou p a s . S er p r es id en t e é u m a lto
negócio.”
“E i, Tico, s e você é t ã o b om d e fa ca , p or qu e você
não é o presidente ?”
“E u n ã o, m eu ch a p a . O p r es id en t e n ã o b r iga m u i-
t o. E le t em d e fica r p a r a t r á s e fa zer os p la n os . E u gos t o
é de brigar. Não quero ser presidente.”
“É d is s o t a m b ém qu e eu gos t o”, p en s ei. “Prefiro
brigar... brigar.”
Tico foi p a r a o Pa p a J oh n 's ou t r a vez, e eu voltei
p a r a o n .° 5 4 d e For t Gr een e. S en t ia o s a n gu e fer ver n a s
veia s a o im a gin a r o qu e m e es p er a va . As “festinhas”, a s
ga r ot a s ... Por ém , a cim a d e t u d o, a s b r iga s . E u n ã o t er ia
m a is d e b r iga r s ozin h o. Pod er ia fer ir t a n t o qu a n t o
qu is es s e, s em s er fer id o. Meu cor a çã o com eçou a b a t er
m a is d ep r es s a . Ta lvez eu t ives s e a ch a n ce d e es fa qu ea r
a lgu ém . Qu a s e qu e já p od ia en xer ga r o s a n gu e
es cor r en d o p ela s m in h a s m ã os e p in ga n d o n a r u a . Fiz
m ovim en t os com a s m ã os , golp ea n d o o a r , en qu a n t o
a n d a va , com o s e es t ives s e com u m a fa ca a t a ca n d o e
fer in d o figu r a s im a gin á r ia s n a es cu r id ã o. Dis s er a a
Ca r los qu e r es olver ia em t r ês d ia s , m a s já m e d ecid ir a .
Tu d o o qu e qu er ia er a qu e a lgu ém m e d es s e u m p u n h a l
e um revólver.
Duas noites mais tarde, voltei à sede da quadrilha.
Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta.
“E i, Nick y, você ch egou b em n a h or a . Há ou t r o
r a p a z qu e d es eja en t r a r p a r a os Ma u -Ma u s . Qu er ver o
ritual de iniciação ?”
E u n ã o t in h a id éia d o qu e fos s e u m a in icia çã o,
m a s qu er ia a s s is t ir . Ca r los con t in u ou: “Ma s qu em s a b e
s e você veio p a r a d izer qu e n ã o qu er en t r a r p a r a a ga n g,
hein?”
“Não”, r ep liqu ei. “Vim p a r a d izer qu e qu er o en trar.
Qu er o b r iga r . Ach o qu e s ou t ã o d u r ã o com o qu a lqu er d e
vocês, e luto melhor do que a maioria dos outros.”
“Bom”, d is s e Ca r los, “você p od e a s s is t ir , e d epois
s er á a s u a vez. Tem os d u a s m a n eir a s d e s a b er s e o ca r a
é cova r d e. Ou ele fica im óvel en qu a n t o cin co d os n os s os
r a p a zes m a is for t es o s u r r a m , ou en cos t a n a p a r ed e
es p er a n d o a fa ca . Se fu gir d e qu a lqu er u m a d a s p r ova s ,
n ã o p od e en t r a r p a r a a qu a d r ilh a . E s t e r a p a z d iz qu e é
d u r ã o. Va m os ver s e é m es m o. E d ep ois ver em os s e você
também é.”
Olh ei p a r a o ou t r o la d o d o s a lã o e vi o ou t r o
ga r ot o. Tin h a cer ca d e t r eze a n os , es p in h a s p or t od o o
r os t o, e lon gos ca b elos n egr os qu e ca ía m s ob r e os olh os .
E r a p equ en o e m a gr o, e s eu s b r a ços ca ía m d u r os a o
lon go d o cor p o. E s t a va ves t id o com u m a ca m is a b r a n ca
d e m a n ga s com p r id a s , m a n ch a d a n a fr en t e e r ep u xa d a
s ob r e o cin t o. Pen s ei já t er vis t o a qu ele r os t o es p in h en t o
n a es cola , m a s n ã o t in h a cer t eza , p ois ele er a m a is n ovo
do que eu.
Ha via cer ca d e qu a r en t a r a p a zes e ga r ot a s es -
p er a n d o a n s ios a m en t e o es p et á cu lo. Ca r los es t a va n a
d ir eçã o. Ma n d ou qu e a b r is s em es p a ço, e t od o m u n d o
en cos t ou n a s p a r ed es . Ca r los m a n d ou qu e o m en in o s e
encostasse n a p a r ed e n u a , e ficou à s u a fr en t e, com u m
p u n h a l a b er t o n a m ã o. A lâ m in a d e a ço b r ilh a va m es m o
na luz fraca.
“Vou d a r a s cos t a s p a r a você e d a r vin t e p a s s os
em d ir eçã o à ou t r a p a r ed e”, d is s e ele. “Você fica on d e
es t á . Você d iz qu e é d u r ã o. Bem , va m os ver s e é.
Quando eu acabar de contar vinte, vou virar e atirar esta
fa ca . S e você s e en colh er ou t ir a r o cor p o for a , é
“galinha”. S e n ã o, m es m o qu e a fa ca a cer t e em você, é
durão, e pode entrar para os Mau-Maus. Morou?”
O menino fez que sim.
“Agor a , ou t r a coisa”, d is s e Ca r los , leva n t a n d o a
fa ca d ia n t e d o n a r iz d o m en in o. “S e fica r com m ed o
enquanto eu estiver contando os passos, é só gritar, mas
então é m elh or n u n ca m a is m os t r a r o n a r iz p or a qu i. S e
a p a r ecer , n ós va m os cor t a r es s a s or elh on a s , fa zer você
comer , e d ep ois a r r a n ca r o s eu u m b igo com u m a b r id or
de latas e deixar você sangrar até morrer “
Os r a p a zes e ga r ot a s com eça r a m a r ir e a a p la u -
dir. “Vamos, cara, vamos!” gritavam para Carlos.
Ca r los d eu as cos t a s para o m en in o e
com p a s s a d a m en t e cr u zou a s a la . S egu r a va a lon ga fa ca
relu zen t e p ela p on t a d a lâ m in a e cr u zou os b r a ços , com
a faca diante dos olhos.
“Um... dois. . . três. . .” A turma começou a gritar e
a zombar : “Acerta nele, Carlos ! Atravessa os olhos dele!
Mostra a cor do sangue dele; rapaz, faz um furo nele.”
O r a p a zin h o es t a va p et r ifica d o d e m ed o, en cos -
t a d o à p a r ed e, p a r ecen d o u m r a t in h o qu e t ives s e s id o
p ego p or u m t igr e. E s t a va t en t a n d o d es es p er a d a mente
s er va len t e. S eu s b r a ços r ígid os a o lon go d o cor p o, s u a s
m ã os a p er t a d a s em p u n h os m in ú s cu los , a s u n h a s
enterrando-s e n a p a lm a d a m ã o. S eu r os t o p er d er a t od o
o sangue, e os seus olhos estavam arregalados de terror.
“On ze... d oze... t r eze...” Ca r los con t a va em voz
a lt a . en qu a n t o m ed ia a s p a s s a d a s . A t en s ã o ch egou a o
a u ge, à m ed id a qu e r a p a zes e ga r ot a s va ia va m e
clamavam por sangue.
“Dezen ove.. . vin t e. “ Va ga r os a m en t e Ca r los virou-
s e e leva n t ou a m ã o, à a lt u r a d a or elh a , s egu r a n d o a
faca pela ponta da lâmina, pontuda como uma agulha. A
t u r b a d e a d oles cen t es m os t r a va -s e s elva gem n o s eu
fu r or , p ed in d o s a n gu e. No in s t a n t e em qu e ele la n çou o
p u n h a l p a r a a fr en t e, o m en in o d ob r ou -s e, cr u za n d o a s
m ã os p or t r á s d a ca b eça , e gr it a n d o : “Nã o ! Nã o !” A
fa ca ch ocou -s e s u r d a m en t e con t r a a p a r ed e, a p ou cos
centímetros de onde estivera a sua cabeça.
“Galinha !... galinha !... galinha !...” rugiu a turba.
Ca r los ficou com r a iva . Os ca n t os d e s u a b oca
apertaram-se e os seus olhos se franziram. “Peguem-no”,
s ilvou ele. Dois r a p a zes a va n ça r a m d e ca d a la d o d a s a la
e a ga r r a r a m o ga r ot o en colh id o d e m ed o, p elos b r a ços ,
empurrando-o contra a parede.
Ca r los a t r a ves s ou o s a lã o e p a r ou d ia n t e d o m e-
n in o qu e t r em ia . “Galinha”, fa lou ele en t r e d en t es .
“Ga lin h a ! eu s a b ia qu e er a cova r d e d es d e a p r im eira,
vez que te vi. Devia te matar.”
Os r a p a zes p or t od a a s a la a p r oveit a r a m -s e d o
tema : “Mate ! Mate esse sujo !”
“S a b e o qu e fa zem os com os cova r d es ?” p er gu n -
t ou Ca r los . O m en in o olh ou p a r a ele t en t a n d o m over os
lábios, mas nenhum som saía.
«E u vou lh e con t a r o qu e fa zem os com “galinhas”,
disse Carlos. “Cortamos as asas, para não voarem mais.”
Ar r a n cou a fa ca qu e es t a va es p et a d a n a p a r ed e d e
madeira. “Estiquem o bicho!” disse ele.
An t es qu e o m en in o p u d es s e m over -s e, os d ois
r a p a zes , com u m r ep elã o, a b r ir a m -lh e os b r a ços ,
afastando-os d o cor p o. Moven d o-s e t ã o r a p id a m en t e qu e
com d ificu ld a d e p od ia -s e a com p a n h a r o m ovim en t o d a
s u a m ã o. Ca r los leva n t ou a fa ca em u m golp e r á p id o,
com toda a força, e enfiou-a quase até o cabo na axila do
garoto. O menino contorceu-se e gritou de dor. O sangue
s a iu a os b or b ot ões , e em p ou cos in s t a n t es m a n ch ou d e
vermelho sua camisa branca.
Ar r a n ca n d o o p u n h a l d a ca r n e d o ga r ot o, p a s sou-
o r a p id a m en t e p a r a a ou t r a m ã o. “Veja , ca r a ”, ja ct ou -se
ele, leva n t a n d o-o a m ea ça d or a m en t e e en t er r a n d o-o n a
outra axila, “sou canhoto também.”
Os d ois r a p a zes la r ga r a m o m en in o e ele ca iu n o
ch ã o, com os b r a ços cr u za d os s ob r e o p eit o e a s m ã os
a p er t a n d o la m en t os a m en t e a ca r n e d ila cer a d a . E le
gr it a va e gem ia , r ola n d o p elo ch ã o. A ca m is a es t a va
qu a s e qu e com p let a m en t e en s op a d a d e s a n gu e, d e u m
vermelho vivo.
“Tir em is s o d a qu i”, or d en ou Ca r los r is p id a m en t e.
Dois r a p a zes a va n ça r a m e, a ga r r a n d o-o p elos b r a ços,
puseram-no de pé. Ele atirou a cabeça para trás e gritou
em agonia, quando eles lhe levantaram os braços. Carlos
tapou-lh e a b oca e o gr it o ces s ou . Os olh os d o ga r ot o,
a r r ega la d os d e t er r or , olh a va m -n os p or s ob r e a m ã o d e
Carlos.
“Va i p a r a ca s a , “galinha”! S e eu ou vir você gr it a r
m a is u m a vez, ou s e você n os d ela t a r , vou cor t a r s u a
lín gu a t a m b ém , t á ?” E n qu a n t o fa la va , leva n t ou o
p u n h a l, d e cu ja lâ m in a o s a n gu e a in d a cor r ia s ob r e o
cabo de madrepérola. “Morou?” repetiu Carlos.
O garoto fez que sim com a cabeça.
Os r a p a zes leva r a m -n o m eio a r r a s t a d o p elo ch ã o
a t é a ca lça d a . A qu a d r ilh a d e a d oles cen t es n o s a lã o
gritou quando ele saiu: “Vai para casa, “galinha!”
Ca r los volt ou -se. “Qu em é o s egu in t e ?” p er gu n -
tou... olhando bem nos meus olhos. A turba silenciou.
Per ceb i en t ã o qu e eu n ã o es t a va a m ed r on t a d o. De
fa t o, eu t in h a fica d o t ã o en volvid o com a s fa ca d a s e a
d or qu e es t a va gos t a n d o d o es p et á cu lo. A vis t a d e t od o
a qu ele s a n gu e m e d a va u m a s en s a çã o s elva gem en t e
deliciosa. Eu estava com inveja de Carlos. Mas agora era
a minha vez.
Lembrei-m e d a d ecla r a çã o d e Ca r los qu e eu p odia
es colh er a for m a d a m in h a in icia çã o. O b om s en s o m e
d izia qu e Ca r los a in d a es t a va en r a ivecid o. S e eu
p er m it is s e qu e ele a t ir a s s e o p u n h a l em m im , ir ia t en t a r
acertar-m e d e p r op ós it o. Den t r e a s d u a s p r ova s , p a r ecia
mais sábio escolher a outra.
“Tem outro covarde aqui?” pilheriou Carlos.
Ava n cei p a r a o m eio d a s a la e olh ei à m in h a volt a .
Um a d a s ga r ot a s , es b elt a e a lt a , com ca lça s com p r id a s
b em ju s t a s , gr it ou : “O qu e é qu e h á , m en in ã o, você es t á
com m ed o, ou o qu e é? S ob r ou a lgu m s a n gu e, s e você
n ã o t em .” A t u r b a va iou e gr itou r in d o. E la t in h a r a zã o.
O a s s oa lh o, p er t o d a p a r ed e on d e o m en in o es t iver a ,
estava coberto com uma camada grossa de sangue.
Respondi: “E u n ã o. Nã o t en h o m ed o. Pod e m e
exp er im en t a r , m en in a . On d e es t ã o os r a p a zes qu e
querem me surrar?”
E u es t a va t en t a n d o a p a r en t a r ca lm a , m a s p or
d en t r o es t a va com m ed o. Tin h a cer t eza d e qu e ia a ca b a r
m a ch u ca d o. Com p r een d i qu e a qu ela gen t e n ã o er a d e
b r in ca d eir a . Ma s eu p r efer ia m or r er d o qu e s er
“galinha”. Por isso disse: “Estou pronto”.
Ca r los gr it ou cin co n om es . “ J oh n n y!” Um r a p a z
t r on cu d o s a iu d o gr u p o e p a r ou à m in h a fr en t e. Tin h a o
d ob r o d o m eu cor p o, u m a t es t a p r ofu n d a m en t e vin ca d a
e qu a s e n ã o t in h a p es coço. S u a ca b eça p a r ecia
d es ca n s a r d ir et a m en t e s ob r e os om b r os . Foi a t é o cen t r o
da sala e estalou os dedos, com um ruído seco e forte.
Pr ocu r ei im a gin a r m eu s cin qü en t a qu ilos con tra
os s eu s qu a s e cem qu ilos . E le a p en a s olh ou -me
in exp r es s iva m en t e, com o u m s ím io, es p er a n d o a or dem
de ataque.
“Ma t t ie !” Ou t r o r a p a z a p r es en t ou -s e. E r a p ou co
m a ior d o qu e eu , m a s os s eu s b r a ços er a m com pridos,
m u it o m a is lon gos d o qu e os m eu s . E le d a n çou n o
cen t r o d a s a la , d a n d o s ocos n o a r , com o u m p u gilis t a .
Con s er va va o qu eixo b em ju n t o a o p eit o, olh a n d o p or
en t r e a s s ob r a n celh a s . Deu u m a volt a n o s a lã o,
es m u r r a n d o o a r com a velocid a d e d o r elâ m p a go. As
ga r ot a s a s s ob ia r a m e s u s p ir a r a m en qu a n t o ele
con t in u a va s u a lu t a fa n t a s m a , b u fa n d o p elo n a r iz
enquanto se esquivava e dava pequenos golpes.
“J os é !” Um t er ceir o r a p a z ju n t ou s e a o gr u p o.
Tin h a u m a cica t r iz p r ofu n d a n a fa ce es qu er d a , qu e ia
d es d e s ob o olh o a té a p on t a d o qu eixo. Com eçou a t ir a r
a ca m is a e flexion a r os m ú s cu los . Tin h a a con s t it u içã o
fís ica d e u m h a lt er ofilis t a . Rod eou -m e, olh a n d o-m e d e
todos os ângulos.
“Coruja!” Um a a cla m a çã o fez-s e ou vir d os ou tros
r a p a zes qu e es t a va m n a s a la . Cor u ja , s em d ú vid a , er a
u m d os fa vor it os . Ma is t a r d e fiqu ei s a b en d o qu e eles o
ch a m a va m Cor u ja p or qu e er a ca p a z d e ver t ã o b em d e
n oit e com o d e d ia . Lu t a va n a lin h a d e fr en t e, d u r a n t e os
“quebra-paus”, p a r a qu e ele a vis a s s e os ou t r os d a
p r es en ça d e qu a d r ilh a s in im iga s , qu a n d o ela s s e
aproxima s s em . Tin h a olh os gr a n d es e r a s ga d os , e u m
n a r iz r ecu r va d o qu e cer t a m en t e for a qu eb r a d o d iver s a s
vezes . Per d er a m et a d e d e u m a or elh a a o s er a t in gid o p or
u m a t á b u a com u m p r ego com p r id o. Is s o a con t ecer a
d u r a n t e u m t u m u lt o n o p á t io d a es cola , e o p r ego
rasga r a s u a or elh a , a r r a n ca n d o m a is d a m et a d e. Cor u ja
era um garotão baixo e gordo, e tinha um olhar maldoso,
o pior que eu já vira.
“Paco!” Não cheguei a ver Paco. Ouvi-o dizer o meu
nome, às minhas costas: “Ei, Nicky”. Virei-me para olhar
e ele m e d eu u m m u r r o n a s cos t a s , p ou co a cim a d a
cin t u r a . A d or foi excr u cia n t e. Pa r ecia qu e ele m e
r om p er a o r im . Pr ocu r ei t om a r fôlego, m a s ele m e
golp eou d e n ovo. Qu a n d o eu m e en d ir eit ei e coloqu ei a s
m ã os à s cos t a s p a r a a p er t a r o lu ga r d olor id o, u m d os
ou t r os r a p a zes m e es m u r r ou n o es t ôm a go com t a n t a
for ça qu e p er d i o fôlego. S en t i qu e com eça va a d es m a ia r
d e d or , qu a n d o a lgu ém m e d eu u m s oco n o r os t o, e eu
ouvi o osso do nariz quebrar-se sob o impacto.
Nã o t ive op or t u n id a d e d e r evid a r . S en t i-m e ca ir .
Per ceb i qu e a lgu ém m e a ga r r ou p elo m eu ca b elo
com p r id o. Meu cor p o d es p en cou n o ch ã o, m a s m in h a
ca b eça con t in u a va s u s p en s a p elo ca b elo. Um d eles
chutou-m e o r os t o com u m s a p a t o s u jo, e p u d e s en t ir a
a r eia em m eu s lá b ios e r os t o. E u es t a va leva n d o ch u t es
em t od a s a s p a r tes d o cor p o e, o qu e es ta va m e
agarrando pelo cabelo, golpeava-me na têmpora.
As lu zes en t ã o s e a p a ga r a m e eu n ã o m e lem b r o
de mais nada.
Algu m t em p o d ep ois p er ceb i qu e a lgu ém es t a va
m e s a cu d in d o e es t a p ea n d o-m e a s fa ces . Ou vi a lgu ém
dizer: “Ei, acorda, Nicky.”
Pr ocu r ei foca liza r os olh os , m a s n ã o er a ca p a z d e
ver n a d a a lém d o for r o. Pa s s ei a m ã o p elo r os t o, e p u d e
s en t ir s a n gu e n a p ele. E s t a va cob er t o d e s a n gu e. Olh ei
p a r a cim a e vi o r os t o d o r a p a z a qu em ch a m a va m d e
Cor u ja . O s a n gu e m e fez fica r lou co. Com u m
m ovim en t o r á p id o a cer t ei-o n a b oca . Rep en tinamente,
t od a a m in h a en er gia r et or n ou . E u es t a va d eit a d o d e
cos t a s n a qu ela gr a n d e p oça d e s a n gu e en d u r ecid o, e
com ecei a volt ea r , m es m o d eit a d o, ch u t a n d o t od os os
qu e es t ives s em a o m eu a lca n ce, xin gando, gritando,
batendo com as mãos e com os pés.
Algu ém a ga r r ou m eu s p és e im ob ilizou -m e con tra
o s olo, a té p a s s a r a fú r ia . Is r a el cu r vou -s e s ob r e m im ,
rindo.
“Você é u m d os n os s os , Nick y. Ra p a z, você p od e
nos ajudar. Você pode ser um monte de coisa, mas não é
covarde. No duro. Toque aqui.” Ele apertou algo contra a
minha mão.
E r a u m r evólver t r in t a e d ois . “Você é Ma u -Mau
agora, Nicky. Mau-Mau.”

Capítulo 5

T U M U LT O N A S R U A S

DE S DE O PRINCÍPIO, eu e Is r a el n os t or n a m os
qu a s e in s ep a r á veis . Tr ês n oit es d ep ois , ele p a s s ou p elo
m eu a p a r t a m en t o p a r a d izer qu e ia h a ver u m “quebra-
pau” com os Bis h op s . “Por fim ”, p en s ei, “uma
op or t u n id a d e p a r a u s a r m eu r evólver — u m a op or t u -
n id a d e p a r a lu t a r .” E n qu a n t o Is r a el d es cr evia o p la no
senti-me arrepiar.
Os Ma u -Ma u s d ever ia m r eu n ir-s e n a Pr a ça
Wa s h in gt on p er t o d e De Ka lb . Dever ía m os es t a r lá , p or
volta das nove da noite. O nosso conselheiro de guerra já
h a via s e en con t r a d o com o con s elh eir o d e gu er r a d os
Bis h op s , u m a qu a d r ilh a d e r a p a zes d e cor , p a r a m a r ca r
a h or a e o lu ga r . Dez d a n oit e n o p a r qu e a t r á s d o 6 7 .°
Distrito.
Is r a el d is s e: “Leva s eu r evólver . Tod os os ou tros
r a p a zes t êm a r m a s . Algu n s fizer a m s u a s p r óprias
es p in ga r d a s , e Heit or t em u m r ifle s er r a d o. Va m os d a r
u m a liçã o n os Bis h op s . S e t iver m os d e m a t a r ,
m a t a r em os . Ma s s e ca ir m os , ca ir em os lu t a n d o. S om os
os Ma u -Ma u s . Os t a is . Os Ma u -Ma u s a fr ica n os b eb em
sangue, cara, e nós somos iguais a eles.”
A ga n g já es t a va r eu n id a , qu a n d o eu ch egu ei à
p r a ça à s oit o e m eia . Ha via m es con d id o s u a s a r m a s n a s
á r vor es e n a gr a m a a lt a , com m ed o qu e a p olícia
ch ega s s e. Ma s n a qu ela n oit e n ã o h a via p olícia , e Is r a el e
Ca r los es t a va m d a n d o or d en s . Às d ez h or a s h a via m a is
d e cem r a p a zes va gu ea n d o p ela p r a ça . Algu n s d eles
t in h a m r evólver es . A m a ior ia t in h a fa ca s . Un s p ou cos ,
t a cos d e b eis eb ol, p or r et es com p r egos n a s p on t a s , ou
cla va s feit a s em ca s a . Ou t r os t in h a m cor r en t es d e
b iciclet a , qu e er a m a r m a p er igos a qu a n d o b a t ia m n a
ca b eça d e a lgu ém . Ca r los t in h a u m a b a ion et a d e cer ca
d e s es s en t a cen t ím et r os , e Heit or , a s u a es p in ga r d a
s er r a d a . Algu n s r a p a zes d ever ia m ir d ois qu a r t eir ões
a b a ixo, p a s s a r p or t r á s d o p á t io d a es cola , n a Av. Pa r k ,
para cortar a retirada dos Bishops. Deveriam esperar até
ou vir o b a r u lh o d a lu t a e en t ã o a t a ca r p ela r et a gu a r d a .
O r es t a n t e a va n ça r ia d a R. S t . E d wa r d , a o la d o d a
es cola , t en t a n d o for ça r os Bis h op s a r ecu a r em p a r a
on d e o n os s o p elot ã o d e r et a gu a r d a cor t a r ia s u a
retirada.
Movemo-n os s ilen cios a m en t e, a p a n h a n d o n os s a s
a r m a s n os es con d er ijos a o s a ir m os . Tico es t a va a o m eu
lado, rindo. “Que tal, Nicky, está com medo ?”
“Ra p a z, eu n ã o ! É is t o qu e eu es t a va es p er a n do”,
d is s e, a b r in d o o b lu s ã o p a r a qu e ele p u d es s e ver o m eu
revólver.
“Qu a n t a s b a la s t em a í?” p er gu n t ou . “E s t á ch eio,
m en in o. Cin co b a la s .” “Puxa”, d is s e Tico, a s s ob ia n d o
baixo, “não está nada mal. Você deve pegar um daqueles
b a s t a r d os p r et os es t a n oit e, s em d ú vid a . E u ? Fico
com a minha faca.”
Dividimo-n os em gr u p os p equ en os , a fim d e p a s -
s a r m os d es p er ceb id os p ela d elega cia qu e h a via n a es -
qu in a d a s r u a s Au b u r n e S t . E d wa r d . Reu n im o-nos
defronte da escola, e Carlos deu o sinal de ataque.
Cor r em os a o r ed or d o ed ifício, e en t r a m os n o
p á t io. Os Bis h op s es t a va m n os es p er a n d o. “E ia ! eia !
m a t em ! p egu em !” gr it á va m os , en qu a n t o en xa m eá va m os
em d ir eçã o a o p á t io, e cor r ía m os p elo es p a ço a b er t o qu e
separava as duas quadrilhas.
Ar r em et i à fr en t e d o gr u p o, t ir a n d o o r evólver d o
cinto. Israel desviou-se para um lado, girando o seu taco
d e b eis eb ol. Ra p a zes volt ea va m a o m eu r ed or , gr it a n d o,
xin ga n d o e a t a ca n d o u n s a os ou t r os . Devia h a ver
d u zen t os r a p a zes n o p á t io, m a s es t a va es cu r o, e er a
d ifícil d is t in gu ir -s e a s qu a d r ilh a s . Vi Heit or cor r er p or
u m a qu a d r a d e b a s qu et e, e vi a lgu ém cor r en d o em
d ir eçã o a ele com u m a t a m p a d e la t a d e lixo. Heit or ca iu
p a r a t r á s , d is p a r a n d o a es p in ga r d a a o m es m o t em p o,
com um barulho ensurdecedor.
Per t o d ele u m r a p a z n egr o ca iu p a r a a fr en t e, com
s a n gu e es cor r en d o d e u m fer im en t o n a ca b eça . Pa s s ei
cor r en d o p er t o d ele e ch u t ei s eu cor p o. Pa r ecia u m s a co
de milho.
De r ep en t e, fu i em p u r r a d o p or t r á s , e m e es p a r -
ramei no cimento duro da quadra. Estendi as mãos para
d im in u ir o im p a ct o d a qu ed a , e s en t i a p ele d a p a lm a
d a s m in h a s m ã os es fola r -s e. Olh ei p a r a ver qu em m e
em p u r r a r a , e d es viei r a p id a m en t e a ca b eça exa t a m en t e
n o in s t a n t e em qu e u m t a co d e b eis eb ol es p a t ifa va -se
contra o pavimento, ao meu lado. Ouvi o taco estilhaçar-
se ao bater. Um golpe direto teria me matado.
Um gr a n d e gr it o leva n t ou -s e d os Ma u -Maus,
quand o o r es t o d a n os s a qu a d r ilh a a t a cou p ela
retaguarda. “Aca b em com eles , t u r m a , a ca b em com eles
!” Leva n t ei-m e ca m b a lea n d o, en qu a n t o os Bis h op s , a go-
r a em con fu s ã o, com eça va m a fu gir p ela s r u ela s qu e
d a va m p a r a a Ru a S t . E d wa r d . Is r a el es t a va a m eu la d o,
gritando: “Atira naquele lá, Nicky, atira nele.”
E le a p on t a va p a r a u m m en in o qu e t en t a va fu gir
mas fora ferido e estava tentando correr, meio coxeando,
ficando cada vez mais para trás dos Bishops que fugiam.
Fiz m ir a com o r evólver n a d ir eçã o d a figu r a
ca m b a lea n t e, e p u xei o ga t ilh o. A b a la d is p a r ou , m a s
ele a in d a cor r ia . Aga r r ei o r evólver com a m b a s a s m ã os ,
e puxei o gatilho outra vez.
“Você a cer t ou , ca r a , você a cer t ou .” Vi o r a p a z ca ir
p a r a a fr en t e, a o im p a ct o d a b a la n a coxa . E le a in d a
r a s t eja va , qu a n d o Is r a el a ga r r ou o m eu b r a ço e gr it ou :
“Vamos nos mandar, rapaz; aí vêm os tiras.” Ouvimos os
a p it os e gr it os d os gu a r d a s d ia n t e d a es cola , e a p olícia
r od ea n d o, cer ca n d o os Bis h op s qu e fu gia m p elo b eco,
t en t a n d o es ca p a r . Cor r em os n a d ir eçã o op os t a ,
espalhando-n os p elo fu n d o d o p á t io d a es cola . Olh ei
p a r a t r á s , a o p u la r u m a cer ca d e cor r en t e. Na
penumbra, pude ver ainda três rapazes caídos no pátio e
vá r ios ou t r os s en t a d os , a p er t a n d o os fer im en t os . A
batalha não durara mais de dez minutos.
Cor r em os s eis ou s et e qu a r t eir ões , a t é fica r m os
exa u s t os . Ca r los e m a is d ois r a p a zes u n ir a m -s e a n ós , e
p u la m os n u m a va let a d e es got o, qu e h a via a t r á s d e u m
posto de gasolina.
Is r a el es t a va s em fôlego, m a s r ia t a n t o qu e qu a se
n ã o a gü en t a va . “Você viu es s e Nick y m a lu co ?” a r qu ejou
ele en t r e ga r ga lh a d a s . “Ra p a z, ele p en s ou qu e er a u m
filme de mocinho e ficou dando tiros para o ar.”
Os ou t r os es t a va m r et om a n d o o fôlego e r in d o
t a m b ém . Pa r t icip ei d a a legr ia ger a l. E s t á va m os d eitados
d e cos t a s n a va let a , r in d o. At é p en s a m os qu e n os s os
p u lm ões ir ia m es t ou r a r . Is r a el t om ou fôlego e, com o
d ed o es t ica d o, fez: “Ba n g! Ba n g! Ba n g!” ca in d o ou t r a vez
n a r is a d a . Nós a p er t á va m os a b a r r iga e r olá va m os n a
valeta, rindo a mais não poder.
Sentia-m e b em . Tin h a vis t o s a n gu e cor r er . Ha via
a t ir a d o em a lgu ém , e t a lvez o h ou ves s e m a t a d o, e
h a vía m os con s egu id o es ca p a r . E u ja m a is t iver a a qu ela
s en s a çã o d e p er t en cer a u m gr u p o com o a qu e s en t ia a li
d en t r o d a qu ele fos s o, com a qu eles r a p a zes . E r a qu a s e
com o s e fôs s em os u m a fa m ília , e p ela p r im eir a vez n a
vida senti que era aceito e querido.
Is r a el es t en d eu o b r a ço e colocou -o a o r ed or d os
m eu s om b r os . “Você é d os b on s , Nick y. E s t a va es -
p er a n d o a lgu ém com o você h á m u it o t em p o. S om os d o
mesmo tipo — nós dois somos doidos.”
Ca ím os n a r is a d a ou t r a vez, m a s d en t r o d e m im
p en s ei qu e er a m elh or s er lou co e d es eja d o, d o qu e s er
normal e viver sozinho.
“E i, t u r m a , qu e t a l a gen t e b eb er ?” d is s e Ca r los ,
ainda empolgado pelo êxito. “Quem tem grana?”
Estávamos todos “duros”.
“Vou arrumar dinheiro”, disse eu.
“O qu e é qu e você va i fa zer ? a s s a lt a r a lgu ém ?”
perguntou Israel.
“Cer t o, m eu ch a p a . Qu er ir t a m b ém ?” Is r a el d eu
u m s oco n o m eu b r a ço: “Você é lega l, Nick y. Ra p a z, você
n ã o t em cor a çã o, n em s en t im en t os . Tu d o o qu e você
quer é brigar. Vamos, cara, nós estamos com você.”
Olh ei p a r a Ca r los , qu e d evia s er o líd er . J á es tava
d e p é, p r on t o p a r a s a ir . Foi a m in h a p r im eir a in d ica çã o
d e qu e os ou t r os r a p a zes s egu ir ia m o qu e fos s e o m a is
cruel, o mais sedento de sangue, o mais corajoso.
Levantamo-n os d o fos s o, e a t r a ves s a m os a r u a ,
cor r en d o p a r a u m a r u ela es cu r a . Na es qu in a , b r ilh a vam
luzes em um bar que ficava aberto a noite inteira. Dirigi-
me para lá.
Ha via t r ês p es s oa s n a la n ch on et e. Du a s d ela s , u m
h om em e u m a s en h or a , es t a va m p or t r á s d o b a lcã o. Um
velh o a ca b a r a d e leva n t a r -s e d u m b a n qu in h o, d ia n t e d o
b a lcã o, e es t a va p a ga n d o a con t a . Ch egu ei p er t o d ele e
empurrei-o con t r a o b a lcã o. E le vir ou -s e com s u r p r es a e
m ed o, lá b ios t r êm u los , a o ver -m e a p er t a r o b ot ã o d a
m in h a fa ca , a b r i-la , e en cos t á -la d e leve n o s eu
estômago.
“Va m os , velh o. Dá a qu i”, d is s e eu , fa zen d o s in a l
com a cabeça para as notas em sua mão.
O h om em qu e es t a va a t r á s d o b a lcã o com eçou a
mover-se em direção ao telefone público, na parede.
Is r a el a b r iu o p u n h a l e a ga r r ou o h om em p ela
p a r t e s u p er ior d o a ven t a l. E m p u r r a n d o-o com for ça con -
t r a o b a lcã o, ele d is s e: “E i, ca r a , você qu er m or r er ,
hein?” Ou vi a m u lh er en ga s ga r -s e e coloca r a m ã o n a
b oca p a r a s u foca r u m gr it o. Is r a el em p u r r ou o h omem
p a r a t r á s , s ob r e a ca ixa e t ir ou o fon e d o ga n cho. “Você
qu er ch a m a r os t ir a s , gr a n d ã o ?” zom b ou ele. “Pronto,
aqui está!” Deu um sorriso de mofa, enquanto arrancava
o r ecep t or d a p a r ed e e a t ir a va p a r a o h om em . “Pode
ch a m a r !” O h om em , es t on t ea d o, a p a n h ou o fon e e ficou
a s egu r á -lo p elo fio, qu e os cila va com o o fio d e u m
pêndulo.
“Vamos depressa, velho. Não posso esperar a noite
toda”, r os n ei. E le es t en d eu a m ã o t r êm u la à m in h a
frente, e eu a r r eb a t ei a s n ota s d e en tr e os s eu s d ed os .
“Is t o é t u d o?” p er gu n t ei. E le t en t ou r es p on d er , m a s
n en h u m s om s a iu d os s eu s lá b ios t r êm u los . Os olh os
com eça r a m a gir a r p a r a t r á s n a s ór b it a s , a s a liva a
cor r er d os ca n t os d a b oca , en qu a n t o d a va gr u n h id os
esquisitos.
“Vamos nos mandar daqui”, disse um dos rapazes.
Ca r los a p er t ou u m b ot ã o d a ca ixa r egis t r a d or a , e r a p ou
t od a s a s n ot a s , en qu a n t o n os a fa s t á va m os p a r a a p or t a .
O velh o d es p en cou p or t er r a , a p er t a n d o o p eit o com a s
mãos, produzindo ruídos, como de cacarejo.
“E i, es p er a ”, d is s e Is r a el, en qu a n t o a ga r r a va u m
p u n h a d o d e t r oco d a ca ixa r egis t r a d or a . Moed a s d e
t od os os t a m a n h os t ilin t a r a m n o ch ã o d u r o. Is r a el
es t a va r in d o. “Nu n ca s a ia d e u m a es p elu n ca s em d eixa r
u m a gor jet a ”, ga r ga lh ou . Tod os r im os . O hom em e a
m u lh er a in d a es t a va m p r es os à p on t a d o b a lcã o, e o
velho estava ajoelhado no chão, todo curvado.
Apanhei um pesado açucareiro e espatifei-o contra
o vidro da vitrine.
“Ra p a z, você é lou co”, gr it ou Ca r los e com eça mos
a cor r er r u a a b a ixo. “Isto va i a t r a ir t od os os t ir a s d e
Br ook lin . Va m os n os m a n d a r d a qu i.” O velh o ca iu
p a r a fr en t e, d e r os t o n o ch ã o. Cor r em os p ela r u a es cu r a
até em casa, rindo e gritando.
Dois m es es d ep ois Ca r los foi a p a n h a d o p ela p o-
lícia , e con d en a d o a s eis m es es d e ca d eia . Na qu ela n oit e
t ivem os u m a gr a n d e r eu n iã o d a qu a d r ilh a n o a u d it ór io
d a es cola p er t o d o 6 7 .° Dis t r it o. Nin gu ém p od ia en t r a r
n a es cola for a d o exp ed ien t e, m a s fizem os u m t r a t o com
Fir p o, vice-p r es id en t e d os Ch a p la in s , cu jo p a i er a
zela d or d a es cola . E le d eixa va a s qu a d r ilh a s u s a r em o
a u d it ór io d o p r éd io, d e n oit e, p a r a r eu n iões , p or qu e
t in h a m ed o d o filh o. Na qu ela n oit e p r om ovem os Is r a el à
p r es id ên cia , e eu fu i es colh id o com o vice-p r es id en t e p or
unanimidade.
Dep ois d a r eu n iã o d a qu a d r ilh a , t ivem os u m a
“festinha” n o p or ã o d a es cola . Ha via u m gr a n d e n ú mero
de “bonecas”, e u m d os r a p a zes m e a p r es en t ou s u a
ir m ã , Líd ia , qu e m or a va d efr on t e à es cola . Pica m os
m u it o t em p o n a es cola , n a qu ela n oit e, fu mando
m a con h a , b eb en d o vin h o b a r a t o, e s en t a d os n a
es ca d a r ia in t er ior , n a m or a n d o, en qu a n t o ou t r os
d a n ça va m a o s om d e u m fon ógr a fo. A es ca d a es t a va
fechada por um gradil que vários casais abriam, a fim de
subir ao primeiro andar, para fazer amor, no escuro.
Pu xei Líd ia p ela m ã o: “Va m os ca ir for a .” Qu a n do
s a ím os p ela p or t a , ela ch egou -s e a m im : “S ou s u a p a r a
sempre, Nicky. Sempre que você me quiser, eu sou sua.”
Nos qu a t r o m es es s egu in t es h ou ve b r iga s , r ou bos,
e ou t r a s a t ivid a d es d a qu a d r ilh a . Fu i a ga r r a d o p ela
p olícia qu a t r o vezes , m a s em n en h u m a d ela s p u d er a m
provar cois a a lgu m a con t r a m im . Tod a s a s vezes s a í
livre, recebendo apenas uma advertência.
Os m em b r os d a qu a d r ilh a gos t a va m d e m im e m e
r es p eit a va m . E u n ã o t in h a m ed o d e cois a a lgu m a , e
es t a va d is p os t o a b r iga r t a n t o à p len a lu z d o d ia , com o
sob o manto das trevas.
Cer t a t a r d e u m d os Ma u -Ma u s con t ou qu e Líd ia
h a via m e d ela t a d o a u m Ap a ch e. Meu s a n gu e fer veu e
eu d is s e qu e ia m a t a r Líd ia . Volt ei a o m eu a p a r t a mento
p a r a p ega r o r evólver . Um d os r a p a zes con t ou a o ir m ã o
d ela e ele cor r eu a a vis á -la . Qu a n d o ch egu ei a o
a p a r t a m en t o d ela , con ver s ei com Lu ís , s eu ir m ã o m a is
velh o. E le m e d is s e qu e u m d os Ap a ch es en con t r a r a
Líd ia n a r u a , n a n oit e a n t er ior , e b a t er a n ela , p a r a s a b er
onde eu morava, pois queria me matar.
S a í d e lá e s egu i p a r a o a p a r t a m en t o d e Is r a el.
Saím os p r ocu r a n d o o Ap a ch e d e qu em Lu ís n os fa lara.
Encontramo-lo n a es qu in a d a s r u a s La fa yet t e e For t
Gr een e, d efr on t e à Ca s a d e Ca r n es Ha r r y. Ma is s eis
Mau-Ma u s r eu n ir a m -s e a n ós for m a n d o u m p equeno
cír cu lo. Dei u m s oco n o r a p a z, d er r u b a n d o-o, e b a t i n ele
com u m ca n o d e m et a l. E le r ogou -m e qu e n ã o o
m a t a s s e. A t u r m a es t a va r in d o; con t in u ei golp ea n d o-o;
acertei-o r ep et id a s vezes , e ele ficou cob er t o d e s a n gu e.
Os es p ect a d or es cor r er a m , en qu a n t o a su rra
con t in u a va . Fin a lm en t e, qu a n d o ele n ã o p od ia m a is
leva n t a r os b r a ços p a r a p r ot eger -s e con t r a os golp es , eu ,
maldosamente, amassei o cano contra os seus ombros, e
con t in u ei b a t en d o n ele a t é qu e ca iu , in con s cien t e, em
uma poça de sangue.
“E s t ú p id o, s eb en t o ! Is t o t e en s in a r á a n ã o b a t er
n a m in h a ga r ot a .” S a ím os cor r en d o. E u es t a va a n sioso
p a r a d izer a Líd ia o qu e fizer a p a r a d efen d er s u a h on r a ,
embora uma hora antes estivesse disposto a matá-la.
À m ed id a qu e o ver ã o a va n ça va , a s b r iga s d e r u a
tornavam-s e p ior es . O ca lor n os a p a r t a m en t os er a
in s u p or t á vel, e n ós ficá va m os n a r u a a m a ior p a r t e d a
n oit e. Dificilm en t e u m a n oit e s e p a s s a va s em a t ivid a d e
das quadrilhas.
Nin gu ém d e n os s a ga n g t in h a ca r r o. S e qu er ía mos
ir a a lgu m lu ga r , t om á va m os o m et r ô, ou r ou bávamos
u m ca r r o. E u n ã o s a b ia gu ia r , m a s u m a n oit e Ma n nie
Du r a n go ch egou p a r a m im e d is s e: “Va m os r ou b a r u m
carro e dar uma volta.”
“Você sabe de algum ?” perguntei.
“S im , m eu ch a p a , logo a li vir a n d o a es qu in a . É
u m a b eleza , e o b ob o d o d on o d eixou a s ch a ves n o
contato.”
Fu i com ele e vi o ca r r o, d efr on t e a u m p r éd io d e
a p a r t a m en t os . Ma n n ie t in h a r a zã o, er a u m a b eleza . E r a
u m Ch evr olet con ver s ível com a ca p ot a a b a ixada.
Pu la m os p a r a d en t r o e Ma n n ie s en t ou -s e a t r á s d o
vola n t e. Reclin ei-m e n o b a n co a o s eu la d o, e fu m a va u m
cigarro, sacudindo as cinzas por sobre a porta, como um
grã-fin o s ofis t ica d o. Ma n n ie vir a va a d ir eçã o p a r a u m
la d o e p a r a ou t r o, fa zen d o r u íd os com a b oca , im it a n d o
pneus derrapando e motor de carro de corrida.
“Rr r u u u u u m m m m m m m ! Rr u u u u m m m m m m m !
Rroooouurrrrr!” Comecei a rir.
“Ei, Mannie, você sabe mesmo guiar este carro?”
“Claro, rapaz, olhe só.”
E le gir ou a ch a ve qu e es t a va p en d u r a d a n o con -
t a t o e o ca r r o r u giu . E n ga t ou em m a r ch a -r é e ca lcou o
p é n o a celer a d or , t r om b a n d o com u m ca m in h ã o qu e
es t a va es t a cion a d o a t r á s . Ou vim os b a r u lh o d e vid r o
quebrado.
“E i, m eu ch a p a ”, fa lei, r in d o, “você é u m m ot orista
b a ca n a . Pu xa , você s a b e m es m o m exer com es s e t r oço.
Quero ver agora se sabe andar para a frente.”
Ma n n ie en ga t ou a m a r ch a , eu m e r et es ei n o b a n -
co, e o ca r r o ch is p ou p a r a a fr en t e, b a t en d o n a t r a seira
d e ou t r o ca r r o. De n ovo h ou ve u m es t r on d o for t e d e
vidro quebrado e de lata amassada.
Nós d ois r ía m os t a n t o qu e n ã o vim os u m h omem
s a ir cor r en d o d o a p a r t a m en t o, e gr it a r con os co. “Saiam
d o m eu ca r r o, s eu s ca ch or r os !” gr it a va ele, t en t a n d o
tirar-m e d o a s s en t o. Ma n n ie a r r a n cou p a r a r é e fez o
h om em p er d er o equ ilíb r io, joga n d o-o p a r a t r á s . Pegu ei
u m a ga r r a fa d e r efr iger a n t e qu e es t a va n o b a n co d o
ca r r o e d ei-lh e u m a for t e p a n ca d a n a m ã o, qu e s e
agarrava desesperadamente
à p or t a . E le gr it ou d e d or . Ma n n ie en ga t ou a
primeir a e n ós n os a r r em es s a m os p a r a a r u a . E u a in d a
est a va r ecos t a d o n o a s s en t o, r in d o d es b r a ga d a m en t e.
J ogu ei a ga r r a fa n a ca lça d a , e ou via qu eb r a r -s e, en -
quanto saíamos à toda.
Ma n n ie n ã o s a b ia gu ia r . E le vir ou a es qu in a , com
os pn eu s ca n t a n d o, e en t r ou n o la d o er r a d o d a Av. Pa r k .
Por p ou co n ã o colid im os com d ois ca r r os , e ou t r o,
b u zin a n d o in s is t en t em en t e, s u b iu n a ca lça d a , p a r a
evit a r u m a colis ã o. Nós d ois es t á va m os r in d o e gr it a n d o.
Ma n n ie a t r a ves s ou u m p os t o d e ga s olin a e s a iu por uma
rua lateral.
“Va m os p ôr fogo n es t e ca r r o”, d is s e Ma n n ie. “Não,
ca r a ! E s t e ca r r o é u m a b eleza . Va m os fica r com ele.
Vamos mostrá-lo as garotas.”
Por ém Ma n n ie n ã o foi ca p a z d e fa zer a volt a e
fin a lm en t e en fiou -o n a t r a s eir a d e u m ca m in h ã o qu e
parara d ia n t e d e u m s in a l ver m elh o. Pu la m os p a r a for a
e cor r em os r u a a b a ixo, d eixa n d o o ca r r o s er ia mente
danificado enfiado sob a carroceria do caminhão.
Mannie era o tipo ideal de companheiro para mim.
Mal sabia eu o horror que estava reservado para ele.
Todos os d ia s n os d á va m os a m u it a s a t ivid a d es
cr im in os a s . As n oit es er a m a in d a p ior es . Um a n oite,
Ton y e m a is qu a t r o r a p a zes a t a ca r a m u m a s en h or a qu e
volt a va d o s er viço p a r a ca s a , a r r a s t a r a m -n a p a r a u m
ja r d im , on d e os cin co a b u s a r a m d ela , d u a s vezes ca d a
um. Ton y t en t ou m a t á -la p or a s fixia , com o s eu
cin t u r ã o. Ma is ta r d e ela o id en tificou , e ele foi
condenado a doze anos de prisão.
Du a s s em a n a s d ep ois , eu e m a is qu in ze p ega mos
u m r a p a z it a lia n o a n d a n d o n os d om ín ios d os Ma u -
Ma u s . Rod ea m o-lo e joga m o-lo a o s olo. Coloquei-me
s ob r e ele, b r in ca n d o com a fa ca , es p et a n d o d e leve o s eu
p om o d e Ad ã o, e cu t u ca n d o os b ot ões d a s u a ca m is a .
Xingando-m e, ele d eu u m t a p a n a fa ca , a r r eb a t a n d o-a
d a m in h a m ã o, e a n t es qu e eu p u d es s e m over -m e, Tico
pegou-a e r is cou o r os t o d ele. O r a p a z gr it ou qu a n d o
Tico cor t ou s u a ca m is a e r is cou u m en or m e “M” n a s
s u a s cos t a s . “Olh e a qu i, ca r a , is t o é p a r a en s in a r você a
n ã o p is a r n os d om ín ios d os Ma u -Maus”, d is s e ele.
S a ím os cor r en d o, d eixa n d o-o en s a n gü en t a d o n a
calçada.
Tod os os d ia s os jor n a is es t a m p a va m r ep or t a gens
d e a s s a s s in a t o n os ja r d in s , n os m et r ôs , n a s t r a vessas,
n os s a gu ões d os p r éd ios d e a p a r t a m en t os , n os b ecos .
Todas as noites havia “quebra-pau”.
Os d ir et or es d a E s cola Técn ica d e Br ook lin m a n -
d a r a m coloca r t ela s d e a r a m e gr os s o s ob r e a s p or t a s e
ja n ela s d a es cola . Tod a s a s ja n ela s , m es m o a s d o qu in t o
andar, estavam cobertas de tela metálica.
Mu it os p r op r iet á r ios d e loja s es t a va m com p r a n do
cã es p olicia is , e d eixa va m -n os p r es os d en t r o d a s loja s ,
durante a noite.
As ga n gs es t a va m fica n d o m a is or ga n iza d a s , e
n ova s qu a d r ilh a s es t a va m s e for m a n d o. Tr ês ga n gs
n ova s h a via m s u r gid o em n os s o b a ir r o: a S cor p ion s , a
Viceroys e a Quentos.
Des cob r im os p ou co d ep ois qu e a lei d a cid a d e d e
Nova Yor k p r oib ia os p olicia is d e r evis t a r em m u lh er es.
Por is s o, d eixá va m os a s ga r ot a s ca r r ega r n os s os
r evólver es e fa ca s , a t é n a h or a em qu e p r ecisássemos
d eles . S e u m gu a r d a p a r a s s e p a r a n os r evis t a r , a s
ga r ot a s fica va m p a r a t r á s e gr it a va m : “E i, t ir a s u jo!
La r gu e d ele. E le n ã o t em n a d a , es t á lim p o. Por qu e você
n ã o vem m e r evis ta r ? d ep ois eu t e p on h o n a ca d eia . E i,
tira, você não quer pôr as mãos em mim? Venha!”
Ap r en d em os a fa zer r evólver es p a r a b a la s ca libre
vin t e e cin co, u s a n d o a n t en a d e ca r r o e p eça s d e
fech a d u r a . Oca s ion a lm en t e u m d es s es r evólver es
exp lod ia n a m ã o d e a lgu ém , ou a t ir a va p a r a t r á s
cegando-o. Ma s n ós con s egu im os fa b r ica r gr a n d e
n ú m er o d eles e ven d ê-los p a r a m em b r os d e ou t r a s
quadrilhas — s a b en d o qu e eles os u s a r ia m con t r a n ós ,
se tivessem oportunidade.
Na qu ele ver ã o, n o d ia qu a t r o d e ju lh o, t od a s a s
ga n gs r eu n ir a m -s e n o p a r qu e d e d iver s ões d e Con ey
Is la n d . Os jor n a is ca lcu la r a m qu e m a is d e oit o m il
joven s , m em b r os d e qu a d r ilh a s , con ver gia m p a r a Coney
Is la n d . Nin gu ém p a gou . E les a p en a s en t r a r a m
em p u r r a n d o o p or t ã o, e n in gu ém ou s ou d izer cois a
alguma. O mesmo aconteceu no metrô.
No dia primeiro de agosto, Israel foi apanhado pela
p olícia . Qu a n d o s a iu d a ca d eia , d is s e-n os qu e a s cois a s
es t a va m m es m o p r et a s p a r a ele, e qu e qu er ia a s s u m ir
u m a p os içã o s ecu n d á r ia , a t é qu e a s it u a çã o es fr ia sse.
Con cor d a m os , e a qu a d r ilh a m e elegeu p r es id en t e,
d es ign a n d o Is r a el p a r a s er vir com o vice-p r es id en t e a t é
qu e t u d o es fr ia s s e. E u fa zia p a r t e d a qu a d r ilh a h á s eis
meses, quando passei a ser chefe.
Nã o levei m u it o t em p o p a r a p er ceb er qu e os Ma u -
Ma u s er a m m u it o t em id os , e qu e eu h a via ga nhado
r ep u t a çã o d e s er u m va len t ã o s a n gu in á r io. E u m e
gloriava dessa reputação.
Cer t a n oit e, fom os t od os a u m gr a n d e b a ile qu e
er a p r om ovid o p elo cen t r o s ocia l d a igr eja d e S t . E d wa r d
— S t . Mich a el. A igr eja es t a va fa zen d o u m a t en t a t iva
p a r a a fa s t a r os r a p a zes d a s r u a s , e h a via a b er t o u m a
ca n t in a logo a b a ixo d a d elega cia d e p olícia , p a r a r ea liza r
b a iles n os fin s d e s em a n a . Tod a s ext a -feir a h a via a li u m
con ju n t o d e d a n ça e t od os os m em b r os d a s qu a d r ilh a s
ia m a o cen t r o p a r a d a n ça r . Fica va m n a r u a t a m b ém ,
d efr on t e a o cen t r o, e b eb ia m cer veja e vin h o b a r a t o. Na
s em a n a a n t er ior n ós h a vía m os n os em b eb ed a d o, e
qu a n d o os p a d r es t en t a r a m fa zer -n os fica r qu iet os ,
b a t em os e cu s p im os n eles . A p olícia veio e n os p ôs a
correr. Raramente passava-se uma sexta-feira sem que o
baile da cantina não se transformasse em tumulto.
Na qu ela n oit e, eu for a com Ma n n ie e Pa co. E s -
t á va m os b eb en d o m u it o e fu m a n d o m a con h a . Ma r quei
u m a b on it a ga r ot a lou r a e d a n cei vá r ia s vezes com ela .
E la m e d is s e qu e o ir m ã o es t a va com p lica d o com a ga n g
Phantom Lords. Eles iam matá-lo.
“On d e es t á s eu ir m ã o?” p er gu n t ei. “Nin gu ém va i
machucá-lo sem minha ordem. Vamos falar com ele.”
Levou-m e a u m ca n t o d a s a la , e a p r es en t ou -me ao
ir m ã o. E le d is s e qu e a t u r m a Ph a n t om Lor d s d a Av.
Bed for d qu er ia m a t á -lo p or qu e ele n a m or a va u m a d a s
suas “bonecas”. O r a p a z es t a va com p let a m en t e b êb ed o e
muito amedrontado.
“Olhe”, d is s e eu “s u a ir m ã é u m a m en in a b a ca na.
Ach o qu e vou qu er er s a ir com ela m a is vezes , e com o
gosto dela, vou tomar conta de você também.”
E u já m a r ca r a en con t r o com a ga r ot a , p a r a levá-la
a o cin em a . Dis s e-lh e qu e t er ia d e fa zer t u d o o qu e eu
quisesse, porque eu era o presidente dos Mau-Maus. Ela
ficou a m ed r on t a d a , e d is s e qu e ir ia com igo, m a s n ã o
qu er ia qu e n en h u m d os ou t r os r a p a zes t oca s s e n ela .
Nós n os b eija m os e eu d is s e qu e en qu a n t o ela es t ives s e
comigo eu cuidaria dela.
Leva n t a m os os olh os exa t a m en t e n o in s t a n t e em
qu e t r ês Ph a n t om Lor d s en t r a va m p ela p or t a . E s t a vam
ves t id os com p a let ós es p a lh a fa t os os e ca lça s xa d r ez, e
t in h a m ch a veir o com cor r en t e lon ga . Um d os r a p a zes
p a s s ou p er t o d e n ós gir a n d o a cor r en t e e p is cou p a r a a
m in h a ga r ot a . E la d eu -lh e a s cos t a s e eu p u s o b r a ço a o
seu redor.
“E i, m en in a ”, zom b ou ele, “qu e t a l s a ir com igo?
Meu ir m ã o es t á com o ca r r o a í for a , e o b a n co d e t r á s
fica r es er va d o s ó p a r a n ós ...” “E s t á qu er en d o m or r er ”,
rosnei. “Bruto”, r iu o r a p a z, “n ós já es t a m os p la n eja n do
m a t a r o s eu a m igo b êb ed o, e b em p od em os m a t a r você
também, vagabundo.”
Ma n n ie d eu u m a ga r ga lh a d a zom b et eir a . O r a paz
virou-se rápido: “Quem foi?”
Ma n n ie com eçou a r ir , m a s eu s en t i a t em p es tade
n o a r , e r es p on d i: “Ninguém.” Com ecei a m e a fa s t a r ,
m a s o r a p a z voou p a r a o la d o d e Ma n n ie, e d eu -lh e u m
s oco, d er r u b a n d o-o. Dep ois d e Is r a el, Ma n n ie er a o m eu
m elh or a m igo. Nin gu ém ir ia fer i-lo n a m in h a p r es en ça ,
s em r eceb er o t r oco. Volt ei e d ei n o r a p a z u m golp e
t er r ível n a s cos t a s , b em a cim a d os r in s . E le a p er t ou os
rins com as mãos, e gritou de dor.
Ma n n ie leva n t ou -s e a os t r op eções e p u xou d a
fa ca . E u p egu ei a m in h a t a m b ém e os ou t r os r a p a zes
for m a r a m u m s em icír cu lo e a va n ça r a m con t r a n ós . Nã o
h a via m u it os d e n os s o gr u p o p a r a b r iga r , p or is s o
r ecu a m os p a r a a p or t a . Qu a n d o ch ega m os à es ca d a , u m
r a p a gã o a r r em et eu con t r a m im com u m a fa ca . E le er r ou
o golp e, m a s a fa ca cor t ou m eu p a let ó. Qu a n d o ele
t r op eçou d evid o à violên cia d o golp e fr u s t r a d o, a t in gi-o
n a n u ca e ch u t ei-o p elos d egr a u s d e con cr et o a b a ixo.
Dois ou t r os p u la r a m s ob r e m im . Ma n n ie p u xou o m eu
p a let ó e n ós com eça m os a cor r er . “Vamos”, gr it ei. “Vou
procurar os Ma u -Ma u s , e volt a m os p a r a in cen d ia r es t e
lugar.”
Os r a p a zes olh a r a m u m p a r a o ou t r o. Nã o s a biam
qu e eu er a Ma u -Ma u , p ois es t a va ves t id o d e p a let ó e
gravata, naquela noite. Começaram a recuar para a sala,
e Mannie e eu viramo-nos e saímos.
No dia seguinte chamei Mannie e Paco. Estávamos
a t r á s d e S a n t o, o Ph a n t om Lor d qu e h a via a m ea ça d o o
ir m ã o d a lou r a . Ma n n ie e eu h a vía m os b eb id o, e
estávamos quase bêbedos. Fomos até a Loja de Doces da
Ru a Tr ês , e vi a lgu n s Ph a n t om Lor d s . “Qu a l d e vocês é
Santo?” perguntei. Um dos rapazes deu uma olhadela na
d ir eçã o d e u m r a p a z a lt o d e ca b elo a n ela d o. E u d is s e:
“Ei, garotão, qual é o seu nome? Santo do Dia?”
Mannie riu, e o rapaz olhou para mim e me xingou
de um palavrão.
“Olh e, m en in o”, d is s e eu , “es t á s en d o b ob o. S a b e
quem são os Mau-Maus?”
“S im , ou vi fa la r d eles . E les s ã o s a b id os d em a is
para ficar vadiando por aqui.”
“Hoje eles es t ã o a qu i, ca r a . Aqu i es t ã o os Ma u -
Ma u s . Meu n om e é Nick y. S ou o p r es id en t e. Você va i
lembrar este nome o resto da vida, moleque.”
O d on o d a loja es t en d eu a m ã o p a r a o t elefon e.
Pus a mão no bolso e espetei o dedo contra o forro, como
s e t ives s e u m r evólver n o b ols o. “Você a í!” gr it ei, “largue
isso!”
Os ou t r os fica r a m com m ed o e r ecu a r a m . E n -
caminhei-m e p a r a S a n t o e d ei-lh e d ois t a p a s n o r os to.
Con s er va va a in d a a ou t r a m ã o n o b ols o: “Qu em s a b e s e
você agora vai lembrar de mim, cara.” Ele vacilou, e eu o
golp eei n o es t ôm a go. “Vamos”, d is s e eu a Pa co, “vamos
s a ir d a qu i. E s s es ca r a s es t ã o com m ed o.” Vir a m o-n os e
começa m os a s a ir ; cu s p i p or s ob r e o om b r o. “Da p r óxi-
ma vez, diga à sua mamãe para não se esquecer de pôr a
fr a ld a em vocês , a n t es d e d eixá -los sair. Vocês ainda são
nenês.” Rim os u m p a r a o ou t r o e s a ím os . Qu a n d o
ch ega m os à r u a , Ma n n ie colocou a m ã o n o b ols o d o
p a let ó e a p on t ou o d ed o a t r a vés d o t ecido: “Ba n g! b a n g!
b a n g! Você es t á m or t o!” gr it ou ele. Rim os e d es cem os
bamboleando rua abaixo.
Na qu ela n oit e Is r a el foi à m in h a ca s a e d is s e qu e
os Ph a n t om Lor d s es t a va m s e p r ep a r a n d o p a r a u m
grande “quebra-pau”. p or ca u s a d a b r iga d a con feitaria.
Israel e eu passamos na casa de Mannie para apanhá-lo,
e d ir igim o-n os p a r a os d om ín ios d os Ph a n t om Lor d s , a
fim d e s u r p r een d ê-los a n t ecip a d a m en t e. Qu a n d o
ch ega m os p er t o d a p on t e d e Br ook lin , s ep a r a m o-nos.
Is r a el e Ma n n ie r od ea r a m o qu a r teirão, e eu d es ci
d ir et a m en t e p ela r u a . Pou cos in s t a n t es d ep ois , ou vi
Is r a el gr it a r e s a í cor r en d o a t od a , r od ea n d o o ed ifício.
E les h a via m s u r p r een d id o u m Ph a n t om Lor d s ozin h o, e
tinham-no deitado na calçada, pedindo misericórdia.
“Tir a a ca lça d ele”, or d en ei. Os r a p a zes d es a fi-
vela r a m o cin t o e t ir a r a m -lh e a ca lça . J oga r a m -n a n a
sarjeta de água suja, e depois rasgaram sua cueca.
“De p é, a b or t o, e com ece a cor r er .” Ob s er va m o-lo
en qu a n t o ele cor r ia a t er r or iza d o, r u a a b a ixo. Ficamos
rindo e gritando nomes.
“Vamos”, d is s e Is r a el, “n en h u m d a qu eles m a lo-
qu eir os es t á p or a qu i. Va m os volt a r p a r a ca s a .” Co-
m eça m os a volt a r , qu a n d o r ep en t in a m en t e fom os
r od ea d os p or u m a t u r m a d e d oze ou qu in ze Ph a n tom
Lor d s . E r a u m a em b os ca d a . Recon h eci a lgu n s m em b r os
d e u m a ga n g d e ju d eu s com eles . Um r a p a z a va n çou
p a r a m im com u m a fa ca , e eu o fer i com u m ca n o d e
fer r o. Ou tr o a r r em et eu com ím p et o con t r a m im ; d ei u m a
guinada e golpeei-o no lado da cabeça com o cano.
Foi en t ã o qu e eu s en t i u m a exp los ã o n a n u ca , e
ca í n a ca lça d a . Min h a ca b eça p a r ecia qu e ia es t ou rar.
Ten t ei olh a r p a r a cim a , p or ém u m d eles ch u tou-m e o
r os t o com u m s a p a t o d e ch a p in h a . Ou t r o ch u t ou -me
n a s cos t a s , à a lt u r a d a cin t u r a . Ten t ei leva n t a r -m e, m a s
fu i a t in gid o a cim a d os olh os , com u m ca n o. E u s a b ia
qu e eles ir ia m m a t a r -m e, s e eu n ã o fu gis s e, m a s n ã o
con s egu ia leva n t a r -m e. Ca í d e volt a n a ca lça d a , d e
b r u ços , e s en t i qu e o r a p a z qu e t in h a ch a p in h a s n o
s a p a t o p u lou n a s m in h a s p er n a s e d ep ois s a p a t eou
s ob r e a s m in h a s cos t a s . As ch a p in h a s er a m a fia d a s
com o gilet es . S en t i o a ço a fia d o r a s ga n d o m in h a ca lça e
afundando-s e n a ca r n e d e m in h a s coxa s e n á d ega s .
Desmaiei de dor
A p r im eir a cois a d e qu e m e lem b r o a s egu ir , é d e
Is r a el e Ma n n ie a r r a s t a n d o-m e p or u m b eco. E u s a b ia
qu e es t a va m u it o fer id o, p or qu e n ã o er a ca paz d e fir m a r
a s p er n a s . “Va m os , cor r a !” con t in u a va m a d izer .
“Aqu eles b a s t a r d os vã o es t a r d e volt a n u m m in u t o.
Precisamos nos raspar “
Des m a iei d e d or ou t r a vez, e, qu a n d o r ecu p er ei os
s en t id os , es t a va n o ch ã o d e m eu a p a r t a m en t o. E les
haviam-m e a r r a s t a d o o ca m in h o t od o, a t é em ca s a , e
s u b id o os t r ês la n ces d e es ca d a , leva n d o-m e a t é m eu
qu a r t o. Ha via m -m e a ju d a d o a d eit a r n a ca m a , on d e eu
d es m a ia r a d e n ovo. O s ol for t e jor r a va a tr a vés d a ja n ela ,
qu a n d o a cor d ei e a r r a s t ei-m e p a r a for a d a ca m a . E s t a va
tão dolorido que mal podia mover-me. A parte inferior do
m eu cor p o es t a va cob er t a d e s a n gu e coa gu la d o. Ten t ei
t ir a r a s ca lça s , m a s o s a n gu e cola r a o t ecid o à m in h a
ca r n e, e eu s en t i qu e es t a va r a s ga n d o a p ele, a o t ir á -la.
Des ci ca m b a lea n t e u m la n ce d e es ca d a s , a t é o b a n h eir o
e fiqu ei d eb a ixo d o ch u veir o, d e r ou p a e t u d o, a t é qu e o
s a n gu e a m oleceu e p u d e a fa s t a r a r ou p a d a s fer id a s .
Min h a s cos t a s e qu a d r is er a m u m a ver d a d eir a m a s s a d e
cor t es p r ofu n d os e ch a ga s h or r íveis . Volt ei ca m b a lea n t e,
s u b i n u a s es ca d a s , lembrando-m e d o r a p a z qu e cor r er a
de nós, sem calças.
“Puxa”, p en s ei, “s e ele p u d es s e m e ver a gor a ...”
Arrastei-m e a t é o qu a r t o e p a s s ei o r es t o d o d ia fa zen d o
cu r a t ivos n os m eu s cor t es . S er p r es id en t e d os Ma u -
Ma u s er a b om , m a s h a via cer t a s h or a s em qu e p od ia
significar a morte. Desta vez ela chegara bem perto.

Capítulo 6

O INF E R NO

NAQUE LE OUTONO, LUÍS , m eu ir m ã o qu e vivia


em Br on x, foi a o m eu a p a r t a m en t o p ed ir -m e p a r a ir
m or a r com ele. E le ler a n os jor n a is d e Nova Yor k qu e eu
es t iver a en volvid o com a p olícia. “Nick y, você es t á
cor r en d o r is co d e vid a . E s t á fa zen d o u m jogo p er igos o.
Va i a ca b a r s en d o a s s a s s inado.” Dis s e qu e t in h a
con ver s a d o s ob r e m im com a es p os a , e a m b os
d es eja va m qu e eu fos s e p a r a o a p a r t a m en t o d eles .
Minha resposta foi uma risada.
“Por qu e vocês qu er em qu e eu m u d e p a r a lá ? ”
perguntei. “Nin gu ém m a is m e qu er , com o vocês d e-
cidiram que me querem?”
“E s t á er r a d o, Nick y”, r es p on d eu Lu ís , “todos
qu er em os você. Fr a n k , Gen e, t od os n ós qu er em os você.
Mas é preciso que sossegue.”
“Escute”, d is s e eu , “n in gu ém m e qu er . Você é
m es m o u m t a p ea d or . Nem você, n em Fr a n k , n em Gen e,
nem papai, nem mamãe...”
“E s p er e a í”, in t er r om p eu Lu ís , “p a p a i e m a m ã e
amam você.”
“Ah , é? E n t ã o p or qu e foi qu e eles m e m a n d a ram
embora de casa? Como explica isso, espertalhão?”
“E les m a n d a r a m você p a r a cá p or qu e n ã o p odiam
com a s u a vid a . Você é com o u m s elva gem ... com o s e
estivesse fugindo de alguma coisa, o tempo todo.”
“Você a ch a ? Ta lvez eu es t ou m es m o fu gin d o d e
vocês , s eu s va ga b u n d os . E s cu t e, s a b e qu a n t a s vezes n a
vid a p a p a i con ver s ou com igo? Um a . S ó u m a vez n a vid a
ele s en t ou e t ivem os u m a con ver s a . Con t ou -m e en t ã o
u m a es t ór ia s ob r e u m p a s s a r in h o es t ú p id o. Um a vez s ó!
Na d a m a is . Ra p a z, n ã o vem m e d izer qu e ele m e a m a .
E le n ã o t in h a t em p o p a r a ga s t a r com n in gu ém , a n ã o
s er consigo mesmo.”
Luís levantou-se e começou a andar pelo quarto.
“Nick y, s er á qu e você n ã o p od e ou vir a voz d a
razão?”
“Por qu e t en h o d e ir p a r a s u a ca s a ? Você qu er m e
mandar de novo para a escola, como Frank queria . Aqui
eu m e r ea lizei. Ten h o d u zen t os a m igos qu e fa zem o qu e
eu m a n d o, e s et en ta e cin co ga r ot a s qu e es t ã o com igo
s em p r e qu e eu p eço. E les m e d ã o t od o o d in h eir o qu e
p r ecis o. Aju d a m -m e a p a ga r o a lu gu el. At é a p olícia t em
m ed o d e m im . Por qu e eu h a ver ia d e ir p a r a a s u a ca s a ,
m or a r com você? A ga n g é a m in h a fa m ília . É s ó o qu e
preciso.”
Luís ficou sentado à beira da cama, durante muito
t em p o, n oit e a d en t r o, t en t a n d o m e con ven cer qu e u m
d ia t u d o a qu ilo ir ia m u d a r . Dis s e qu e, s e eu n ã o fos s e
m or t o ou joga d o n o cá r cer e, u m d ia eu p r ecisaria
arr a n ja r u m em p r ego e t er ia n eces s id a d e d e in s t r u çã o.
E u lh e d is s e qu e n ã o p en s a s s e m a is n o a s s u n t o. Tu d o
m e cor r ia b em , e eu n ã o es t a va d is p os t o a a b a n d on a r
aquela posição cômoda.
Sozinho no quarto, na tarde seguinte, o medo, que
t ã o b em con s egu ir a d is s im u la r , t om ou con t a d e m im .
Recos t ei n a ca m a , e b eb i vin h o a t é fica r t ã o em b r ia ga d o
e t on t o qu e n ã o con s egu ia fica r s en t a d o. Aqu ela n oit e
d or m i d e r ou p a , p or ém n ã o es t a va p r ep a r a d o p a r a a
exp er iên cia qu e p a s s ei — p es a d elos ! p es a d elos h or r íveis ,
d e gela r o s a n gu e! S on h ei com p a p a i. S on h ei qu e ele
es t a va a cor r en t a d o em u m a ca ver n a . S eu s d en t es er a m
com o os d e u m lob o, e o s eu cor p o es t a va cob er t o p or
u m p elo s a r n en t o E le es t a va la t in d o qu e d a va d ó, e eu
qu er ia a p r oxim a r m e d ele e a fa gá -lo, m a s t in h a m ed o d e
que me abocanhasse.
Vier a m en t ã o os p á s s a r os . A fa ce d e Lu ís ia e
vin h a à m in h a fr en t e, p ois s e a ch a va m on t a d o em u m
p á s s a r o, qu e voa va livr em en t e p elo céu . Fu i d epois
rodeado por milhões de pássaros que dilaceravam minha
ca r n e e b ica va m -m e os olh os . Ca d a vez qu e eu
con s egu ia livr a r -m e d eles , via Lu ís voa n d o com o u m a
p equ en a m a n ch a n o céu , ca va lga n d o u m p á s s a r o qu e
voava para uma liberdade desconhecida.
Levantei-m e gr it a n d o: “Nã o t en h o m ed o. Nã o
t en h o m ed o “ Ma s qu a n d o ca í n o s on o ou t r a vez, vi
p a p a i a cor r en t a d o n a s t r eva s , e os p á s s a r os qu e s e
ajuntavam ao meu redor, para me atacar.
O efeit o con t in u ou . Por m a is d e d ois a n os eu t ive
m ed o d e d or m ir . Ca d a vez qu e p ega va n o s on o, os
s on h os h or r íveis volt a va m . Lem b r a va -m e d e p a p a i e
d es eja va qu e ele vies s e a Nova Yor k , a fim d e a fa s t a r
a qu eles d em ôn ios d e m im . E u es t a va p os s u íd o d e u m
s en t im en t o d e cu lp a e d e m ed o, e d e n oit e fica va d eit a d o
n a ca m a , lu t a n d o con t r a o s on o e r ep et in d o
indefinidamente: “Va i m a l. Va i m a l. Nã o t en h o s a íd a .
Nã o t en h o s a íd a .” S ó a s a t ivid a d es d a qu a d r ilh a m e
impediam de enlouquecer completamente .
Os Ma u -Ma u s t in h a m -s e t or n a d o p a r t e d a m inha
vid a . E m b or a fôs s em os s u ficien t em en t e for t es p a r a
s ob r eviver s ozin h os , oca s ion a lm en t e for m á va mos
aliança com outra quadrilha. No inverno de 1955 os Hell
Bu r n er s , d e Willia m s b u r g, p r ocu r a r a m -n os p a r a for m a r
aliança conosco.
A n oit e vin h a p er t o e a lgu n s d e n ós es t á va m os
r eu n id os n o p a r qu e in fa n t il, p er t o d o 6 7 .° Dis t r it o, p a r a
d is cu t ir u m a “guerra” qu e t er ía m os con t r a os Bis h op s .
Leva n t ei os olh os e vi t r ês r a p a zes s a in d o d a s t r eva s ,
encaminhando-s e p a r a n ós . Im ed ia t a m en t e coloca m o-
n os em gu a r d a . Um d os Ma u -Ma u s es gu eir ou -s e p ela s
s om b r a s e colocou -s e p or t r á s d os t r ês qu e já es t a va m
quase nos alcançando.
“Ei, o que é que estão querendo?” gritei.
“E s t a m os p r ocu r a n d o Nick y, o líd er d os Ma u -
Maus.” Um deles falou pelos outros.
“Bem, o que é que querem com o Nicky?” Eu sabia
que podia ser um truque.
“E s cu t e, ca r a , n ã o qu er em os t a p ea r n in gu ém .
Estamos atrapalhados, e precisamos falar com o Nicky.”
Eu con t in u a va d es con fia d o. “Qu e a t r a p a lh a çã o é
essa?” perguntei.
“Meu n om e é Willie Açou gu eir o”, d is s e o r a p a z,
s u ficien t em en t e p er t o a gor a , p a r a qu e eu p u d es s e vê-lo.
“Sou o líder dos Hell Burners. Precisamos de ajuda.”
E u a gor a es t a va cer t o d e qu em s e t r a t ava: “Que
tipo de ajuda?”
“Vocês ou vir a m fa la r d o qu e os Ph a n t om Lor d s
fizeram com o Ike?” apontou com a cabeça o rapaz à sua
direita.
E u t in h a ou vid o. Tod a a h is t ór ia t in h a s id o p u -
b lica d a n os jor n a is . Ik e t in h a qu a t or ze a n os , e m orava
n a Ru a Kea p . E s t a va b r in ca n d o com d ois m eninos,
qu a n d o u m a t u r m a d e Ph a n t om Lor d s os a t a ca r a . Os
ou t r os con s egu ir a m fu gir , m a s Ik e foi cer ca d o e
empurrado contra uma cerca. Quando ele tentou reagir,
foi d om in a d o e a r r a s t a d o p a r a u m p or ã o, d o ou t r o
la d o d a r u a . Ali, d e a cor d o com a r ep or t a gem d os
jor n a is , a m a r r a r a m -n o com a s m ã os p a r a a fr en t e, e lh e
d er a m s ocos e ch u t es a t é qu e p er d eu os s en t id os .
Dep ois , d er r a m a r a m flu id o p a r a is qu eir o s ob r e a s s u a s
m ã os , e p u s er a m fogo. E le ca m b a leou a t é a r u a , on d e
ca iu e foi en con t r a d o p or u m a r a d iop a t r u lh a qu e
passava.
Dei u m a r á p id a olh a d ela n o r a p a z qu e Willie
Açou gu eir o a p r es en t a r a com o Ik e. As m ã os e os b r a ços
es t a va m cob er t os d e a t a d u r a s , e o s eu r os t o es t a va
muito ferido.
“Vocês s ã o os ú n icos qu e p od em a ju d a r . Qu e-
r em os s er clu b es ir m ã os . Tod o m u n d o t em m ed o d os
Mau-Ma u s , e n ós p r ecis a m os d a s u a a ju d a p a r a b r iga r
com Ph a n t om Lor d s . S e n ã o vin ga r m os Ik e, s om os
covardes”, continuou Willie.
As ou t r a s qu a d r ilh a s con h ecia m a m in h a r ep u -
t a çã o e a r ep u t a çã o d a ga n g d os Ma u -Ma u s . Nã o er a a
p r im eir a vez qu e a lgu ém n os p r ocu r a va , p ed in d o a ju d a .
E n ós gos t á va m os , p ois is s o n os d a va u m a d es cu lp a
para brigar.
“E se nós não ajudarmos?”
“Va m os p er d er o n os s o t er r it ór io p a r a os Ph a n tom
Lor d s . On t em à n oit e eles já en t r a r a m lá e p u s er a m fogo
em nossa confeitaria.”
“E les qu eim a r a m a s u a con feit a r ia ? Bem , r a paz,
eu vou qu eim á -los . Tod os eles . Am a n h ã à n oit e eu
es t a r ei n o t er r it ór io d os Hell Bu r n er s , e fa r em os p la n os
para matar aqueles esnobes.”
No dia seguinte, saí do meu apartamento, logo que
es cu r eceu , e d ir igi-m e p a r a Willia m s b u r g. No ca m in h o,
con vid ei d ez m em b r os d a m in h a qu a d r ilh a . Ao
en t r a r m os n o t er r it ór io d os Hells , s en t im os a t en s ã o n o
a r . E les es t a va m com m ed o e t in h a m s u b id o a os
t elh a d os . De r ep en t e, fom os b om b a r d ea d os com p ed r a s
e ga r r a fa s . Felizm en t e a p on t a r ia d eles er a p és s im a , e
n ós n os en fia m os p ela p or t a d e u m p r éd io d e
a p a r t a m en t os , p a r a es ca p a r à a va la n ch e d e p ed r a s e
vidro que despencava do alto.
Dis s e a os ou t r os r a p a zes qu e con t in u a s s em es -
con d id os , en qu a n t o eu s u b ia p elo p r éd io d e a p a r t a -
mentos, até o último andar. Ali descobri uma escada que
subia até o teto, com um alçapão dando para o telhado.
Leva n t a n d o u m p ou co a t a m p a d o a lça p ã o, p u de
ver os rapazes na parte da frente do telhado, debruçados
n a b eir a d a , olh a n d o a r u a , lá em b a ixo. E s gu eir ei-me
s ilen cios a m en t e p elo a lça p ã o, e m e es con d i a t r á s d o
tubo de ar.
Deva ga r in h o, a p r oxim ei-m e d e d ois d eles , e d ei-
lh es u m t a p a n o om b r o. “Aiiiiii!” gr it a r a m . Os d ois qu a s e
ca ír a m d o t elh a d o. Olh a r a m p a r a t r á s , com os olh os
arr ega la d os , m ã os a ga r r a d a s n er vos a m en t e ao
parapeito, bocas abertas de medo.
“Q-q-q-quem é-é-é- vo-você?” gaguejaram.
“E i, m eu ch a p a , eu s ou Nick y. Qu em é você? Um a
coruja, ou o quê?” Não pude deixar de rir.
“Q-q-quem é Nicky?” gaguejou um deles.
“Va m os , m olequ e, eu s ou o líd er d os Ma u -Maus.
E s t a m os a qu i p a r .a a ju d a r , a m en os qu e n os m a t em
p r im eir o. On d e es t á o s eu líd er ? On d e es t á Willie
Açougueiro?”
E le es t a va em ou t r o t elh a d o. Leva r a m -m e a t é lá .
Cer ca d e qu in ze Hell Bu r n er s a glom er a r a m -s e a o n os s o
redor, e o resto dos Mau-Maus subiu e juntou-se a nós.
Willie n os con t ou com o es t a va m t en t a n d o fr u s trar
a in va s ã o d os Ph a n t om Lor d s , m a s com o a t é en t ã o n ã o
t in h a m con s egu id o n a d a . Na qu ela n oit e, t u d o es t a va
qu iet o, m a s n u n ca s e s a b ia qu a n d o a qu a d r ilh a s u r gir ia
n a s r u a s , p a r a p icá -los em p ed a cin h os . A p olícia s a b ia
qu e es t a va h a ven d o u m a gu er r a d e qu a d r ilh a s , m a s
nada podia fazer para impedi-la.
Willie t in h a u m r evólver , m a s p elo qu e p u d e
com p r een d er , n en h u m d os ou t r os r a p a zes t in h a a r ma
de fogo.
E s cu t ei o qu e t in h a m a d izer e d ep ois com ecei a
t r a ça r os p la n os p a r a a b a t a lh a . A t u r m a ficou qu iet a
enquanto eu falava.
“Vocês es t ã o p er d en d o p or qu e es t ã o n a d efen s iva.
E s t ã o d eixa n d o qu e eles ven h a m a qu i, e a s s im t êm d e
d efen d er o s eu p r óp r io t er r it ór io. A m a n eir a d e ven cer é
ir atrás deles.”
Fiz u m a p a u s a p a r a ca u s a r efeit o, e d ep ois con -
tinuei: “E nada de armas de fogo.”
“Na d a d e a r m a s d e fogo? Com o é qu e s e p od e
brigar sem revólver?” Houve um movimento entre eles.
“Va m os u s a r a r m a s s ilen cios a s .” Ab r i o p a let ó e
t ir ei u m a b a ion et a d e u n s s es s en t a cen t ím et r os ,
com p let a , com b a in h a . Tir ei-a d a b a in h a , b r a n d in d o-a
n o a r . Pu d e ou vir a s s ob ios b a ixos d os r a p a zes qu e n os
rodeavam.
E u ga n h a r a s eu r es p eit o e a p r ova çã o. Agor a ou -
viam-me, ansiosos para ver como é que eu ia liderá-los.
Vir ei p a r a Willie: “Qu er o cin co d os r a p a zes m a is
for t es . Nós va m os es colh er cin co d os n os s os . Am a n h ã à
n oit e va m os en t r a r n o t er r it ór io d os Ph a n t om Lor d s , e
con ver s a r com os ch efes . E les n ã o qu er em in im iza d e
com os Mau-Maus. Digo que agora somos clubes irmãos,
e s e eles n ã o d eixa r em vocês em p a z, t er ã o d e lu t a r
t a m b ém com a gen t e. S e n ã o qu is er em a cor d o, va m os
b ot a r fogo n a con feit a r ia d eles , s ó p a r a eles fica r em
s a b en d o qu e es t a m os fa la n d o s ér io. O qu e é qu e
acham?”
“S im , s im , m eu ch a p a ”, com eçou a gr it a r a ga n g.
“Va m os t oca r fogo n a qu eles b a s t a r d os . Va m os a ca bar
com eles. Vamos mostrar a eles.”
Na t a r d e s egu in t e fu i com cin co d e n os s os r a -
p a zes , e n os r eu n im os n a con feit a r ia d a Ru a Wh it e, n o
t er r it ór io d os Hell Bu r n er s . A con feit a r ia for a fech a d a
d es d e a b r iga d a s qu a d r ilh a s , a lgu n s d ia s a n t es . Cin co
d os Hells , in clu s ive Willie, n os en con t r a r a m lá .
Con ver s ei com o ger en t e, e d is s e qu e s en t ía m os m u it o
qu e os Ph a n t om Lor d s t ives s em d ep r ed a d o a ca s a , e
qu e ir ía m os p r ovid en cia r p a r a qu e a qu ilo ja m a is
a con t eces s e d e n ovo. Ped i-lh e en t ã o p a r a gu a r d a r a
minha baioneta até que voltássemos
E r a m cer ca d e cin co d a t a r d e, e u m a ch u va fin a
es t a va ca in d o n o cr ep ú s cu lo fr io. S a ím os d a li e
a t r a ves s a m os a cid a d e, em d ir eçã o à Ru a Tr ês , n o
território d os Ph a n t om Lor d s . Ha via cin co d eles n a
con feit a r ia . E les n os vir a m ch ega n d o, m a s n ã o p u deram
escapar porque tínhamos bloqueado a porta.
Tod os en t r a m os d e m ã os n o b ols o d o p a let ó, com o
s e p or t á s s em os r evólver es . Dir igi-m e a os r a p a zes qu e
t in h a m fica d o d e p é, p or t r á s d a m es a . Per gu n t ei
praguejando: “Quedê o chefe?”
“Fr ed d y é o n os s o líd er ”, d is s e u m r a p a z d e ex-
pressão maldosa, que usava óculos escuros.
“Qual de vocês é Freddy?”
“Eu sou Freddy; que diacho são vocês?” perguntou
u m r a p a z d e cer ca d e d ezoit o a n os , d e feições
abrutalhadas e cabelo negro e crespo, que deu um passo
à frente.
E u m a n t in h a a in d a a m ã o n o b ols o, e a gola d a
capa de chuva levantada atrás.
“S ou Nick y, Pr es id en t e d os Ma u -Ma u s . J á ou viu
fa la r d e n ós ? E s t e é Willie Açou gu eir o, ch efe d os Hell
Bu r n er s . Agor a n ós s om os clu b es ir m ã os . Qu er emos
acabar com a briga.”
“Tá certo, meu chapa”, disse Freddy. “Vamos bater
um papo. “
Reunimo-n os a u m ca n t o p a r a con ver s a r , m a s u m
d os Ph a n t om Lor d s xin gou Willie com u m p a la vrão
An t es qu e eu p u d es s e m over -m e, Willie t ir ou a m ã o d o
b ols o e a b r iu u m p u n h a l. E m vez d e r ecu a r , o r a p a z
es t en d eu o gu a r d a -ch u va n a d ir eçã o d ele. A p on t a d e
m et a l, a fia d a com o u m a a gu lh a , r a s gou a ca p a d e ch u va
d e Willie, es fola n d o-lh e o la d o, p er t o d a s cos t ela s .
Imediatamente, u m d os Hell Bu r n er s a ga r r ou u m
p es a d o a çu ca r eir o, e a t irou-o n o r a p a z qu e em p u n h a va
o gu a r d a -ch u va , a t in gindo-o n o om b r o e d er r u b a n d o-o
por terra.
“E i ca lm a !” gr it ou Fr ed d y, m a s n in gu ém lh e d eu
a t en çã o. Os r a p a zes la n ça r a m -s e u n s con t r a os ou t r os .
Freddy virou-se para mim: “Manda parar.”
“Ora, manda você. Foi sua turma que começou.”
Foi en t ã o qu e a lgo m e a t in giu n a n u ca . Ou vi u m
tinido de vidro quebrado, quando uma garrafa espatifou-
se contra um espelho por trás do balcão.
Lá for a , u m ca r r o d a r a d iop a t r u lh a p a r ou n o m eio
d a r u a , com u m r a n gid o d e fr eios , lu zes ver melhas
p is ca n d o. Dois p olicia is u n ifor m iza d os s a ltaram,
d eixa n d o a s p or t a s d o ca r r o a b er t a s , e cor r en d o p a r a a
confeitaria, com os cassetetes na mão.
Os ou t r os r a p a zes t a m b ém os vir a m . Com o p or
u m s in a l, t od os voa m os p a r a a p or t a e n os es p a lh a mos
p or en t r e os ca r r os . Um gu a r d a es t a va b em a t r á s d e
m im , m a s eu vir ei u m a gr a n d e la t a d e lixo n o m eio d a
ca lça d a , r et a r d a n d o-o o s u ficien t e p a r a es ca p a r p or u m a
travessa.
O palco estava montado para um “quebra-pau” em
grande escala.
Na n oit e s egu in t e, m a is d e cem Ma u -Ma u s s e
r eu n ir a m n a con feit a r ia , n o t er r it ór io d os Hells . Willie
Açou gu eir o es t a va lá com m a is d e cin qü en t a d os s eu s
r a p a zes . Ma r ch a m os ju n t os p elo m eio d a r u a , em
direção à confeitaria na zona dos Phantom Lords.
Cor t ez, u m d os Ma u -Ma u s , t in h a p a s s a d o a s e-
m a n a t od a “alto” com h er oín a , e n a qu ela n oit e es tava
lou co p a r a b r iga r . Qu a n d o ch ega m os à con feit a r ia , ele
em p u r r ou a p or t a e a ga r r ou u m Ph a n t om Lor d qu e
t en t ou es ca p a r . Cor t ez t en t ou golp eá -lo com u m a fa ca ,
mas errou, e empurrou-o para mim, que vinha atrás.
E u es t a va r in d o. E r a a qu ela a p r op or çã o em qu e
eu gos t a va d e b r iga r — cer ca d e cen t o e cin qüenta
con t r a qu in ze. Com u m p ed a ço d e ca n o d e ch u m b o qu e
leva va n a m ã o b a t i n o r a p a z qu e ca m b a lea va . E le gr it ou
d e d or qu a n d o o p es a d o ca n o o a cer t ou n o om b r o.
E n qu a n t o ele ca ía n a ca lça d a , golp eei-o d e n ovo, d es t a
vez n a n u ca . E le d es p en cou p es a d a m en t e n o con cr et o, e
o sangue escorreu por um ferimento profundo.
“Va m os gen t e”, gr it ou a lgu ém, “va m os qu eim a r
t od o o t er r it ór io.” Os r a p a zes es p a lh a r a m -s e. Algu n s
en t r a r a m n a con feit a r ia e ou t r os a r r em et er a m con tra
um salão de bilhar que ficava ao lado. Eu fui levado pela
on d a , e vi-m e n a con feit a r ia . Ain d a es t a va com o ca n o
n a m ã o, e ia b a t en d o em t u d o qu e en con t r a va . As
ja n ela s já t in h a m s id o qu eb r a d a s , e p u d e ver o ger en t e
en colh id o d eb a ixo d o b a lcã o, p r ocu r a n d o p r ot eger -s e. O
p es s oa l es t a va com o lou co, qu eb r a n d o t u d o. Algu ém fez
t om b a r a vit r ola , e eu m e vi s ob r e ela , a r r eb en t a n d o-a
com o ca n o. Ou t r os t in h a m en t r a d o a t r á s d o b a lcã o, e
es t a va m a r r a n ca n d o a s p r a t eleir a s d a p a r ed e, e
qu eb r a n d o ga r r a fa s e p r a t os . Algu ém “limpou” a ca ixa
r egis t r a d or a , e en t ã o d ois r a p a zes a t ir a r a m -n a a t r a vés
da vidraça quebrada.
Cor r i p a r a a r u a , com o r os t o cob er t o d e s a n gue,
fer id o p or u m es t ilh a ço d e vid r o. Cor r ia p a r a b a ixo e
p a r a cim a , qu eb r a n d o os p á r a -b r is a s d os ca r r os com o
cano.
Cer ca d e cin qü en t a r a p a zes es t a va m d en t r o d o
s a lã o d e b ilh a r . Tin h a m vir a d o t od a s a s m es a s d e b ilh a r
d e p er n a s p a r a o a r , e qu eb r a d o t od os os t a cos . Agor a
tinham voltado para a rua e atiravam bolas de bilhar em
todas as lojas.
Uma turma de rapazes fez parar um carro no meio
d a r u a , e s u b ia n ele, p u la n d o s ob r e o t et o e o cofr e d o
m ot or , a t é qu e o ca r r o ficou d is for m e. Tod os es t avam
rindo, gritando e destruindo.
S ir en es gem er a m qu a n d o ca r r os d a p olícia con -
ver gir a m d e a m b a s a s ext r em id a d es d a r u a . Nor m a l-
m en t e, a qu ilo s er ia u m s in a l p a r a os r a p a zes p a r a r em e
fu gir em , m a s a feb r e d e d es t r u içã o a s s u m ir a o con t r ole,
e já não ligávamos mais.
Um ca r r o d a r a d iop a t r u lh a con s egu iu ch ega r a t é o
m eio d o qu a r t eir ã o, m a s os t ir a s n ã o p u d er a m a b r ir a s
p or t a s d o ca r r o, p ois os r a p a zes a r r em et er a m d e t od os
os la d os , b a t en d o n eles com ga r r a fa s qu eb r a d a s , t ijolos
e p or r et es , qu eb r a n d o os fa r óis e d es p ed a ça n d o a s
ja n ela s . Os p olicia is , en ja u la d os d en t r o d o veícu lo,
t en t a r a m ch a m a r a cen t r a l d e p olícia p ed in d o a ju d a ,
m a s n ós s u b im os em cim a d o ca r r o e a r r a n ca m os a
a n t en a . Um d os r a p a zes com eçou a d a r p on t a p és n a
sirene, e ela soltou-se e caiu na rua.
Ma is ca r r os d a p olícia b r eca r a m , os fr eios r a n -
gen d o, n o fim d o qu a r t eir ã o. E r a a b a d er n a . Ma is d e
cen t o e cin qü en t a r a p a zes es t a va m lu t a n d o, gr itando,
vir a n d o ca r r os , qu eb r a n d o vid r os . Policia is
aventuraram-s e n o m eio d a qu ela m u lt id ã o efer ves cente
e r u id os a , b r a n d in d o os ca s s et et es . Vi Cor t ez lu t a n d o
contra dois guardas no meio da rua. Corri para ajudá-lo,
m a s ou vi es t a m p id os d e t ir os , e p er ceb i qu e er a h or a d e
dar o fora.
Espalhamo-n os em t od a s a s d ir eções . Algu n s d os
r a p a zes cor r er a m r u a a b a ixo e en ver ed a r a m p elas
travessas. Outros entraram nos prédios de apartamento,
s u b ir a m a s es ca d a s e es con d er a m -s e n os t elh a d os . E m
qu es t ã o d e m in u t os a cen a es t a va va zia , e n a d a m a is
r es t a va a lém d e t od o u m qu a r t eir ã o d es t r u íd o. Nen h u m
ca r r o fica r a in t a ct o. A con feit a r ia for a com p let a m en t e
d em olid a . O s a lã o d e b ilh a r t a m b ém . Tod a s a s vid r a ça s
h a via m s id o qu eb r a d a s n o b a r d o ou t r o la d o d a r u a , e
qu a s e t od o o u ís qu e for a r ou b a d o d a s p r a t eleir a s .
Algu ém a b r ir a a p or t a d e u m ca r r o, cor t a r a os a s s en t os ,
e d ep ois p u s er a fogo n o es t ofa m en t o. Os p olicia is
es t a va m t en t a n d o a p a ga r o fogo, m a s o fogo a in d a a r d ia ,
quando fomos embora.
Tod os es ca p a r a m , m en os Cor t ez e t r ês Hells . A lei
d a s qu a d r ilh a s d ecla r a va qu e s e o ca r a fos s e p r es o, t er ia
que “s e vir a r s ozin h o”. S e com eça s s e a “cantar” ou a
“d a r o s er viço”, s er ia p u n id o p ela qu a d r ilh a . Ou , s e
es t ives s e n a ca d eia , a ga n g s e vin ga va n a fa m ília d ele.
Cor t ez foi s en t en cia d o a t r ês a n os , e os ou t r os t a m b ém
receberam condenação.
Ma s os Ph a n t om Lor d s n u n ca m a is volt a r a m a o
território dos Hells.
Capítulo 7

F I LH O D E LÚ C I F E R

QUANDO O S E GUNDO VE RÃO s e a p r oxim ou ,


parecia que o gueto inteiro estava pegando fogo, cheio de
ód io e violên cia . As qu a d r ilh a s h a via m d im in u íd o a s
a t ivid a d es d u r a n t e o in ver n o, s u r gin d o n a p r im a ver a
com for ça s m u it o b em or ga n iza d a s . Du r a n t e t od o a qu ele
in ver n o n ós n os ocu p á r a m os , fa zen d o r evólver es
caseiros, roubando armas de fogo, e estocando munição.
E u ga n h ei a r ep u t a çã o d e s er o ch efe d e qu a d r ilh a m a is
t em id o d o Br ook lin . Fu i p r es o d ezoit o vezes , e u m a vez
n a qu ele in ver n o, p a s s ei t r in t a d ia s n a ca d eia ,
a gu a r d a n d o ju lga m en t o. J a m a is , p or ém , p u d er a m
provar qualquer acusação.
Com a ch ega d a d o ca lor , com eça m os a a gir como
lou cos ou s elva gen s . Os Dr a gon s es t a va m em p enhados
em b a t a lh a con t ín u a con t r a os Vicer oys . No d ia p r im eir o
d e m a io, Min go, p r es id en t e d os Ch a -p la in s , en t r ou em
u m a con feit a r ia , t en d o n o b r a ço u m a es p in ga r d a d e
cano serrado.
“E i ga r ot o”, d is s e ele, a p on t a n d o a es p in ga r d a p or
s ob r e o b r a ço, p a r a u m r a p a z s en t a d o em u m r es er va d o.
“Você é o Sawgrass?”
“Sou eu, sim. O que é que há?”
Min go n ã o r es p on d eu . Fez m ir a com a es p in garda
e apontou para a cabeça dele.
“E i, ca r a ” d is s e S a wgr a s s r in d o a m a r elo, en quanto
s e p u n h a d e p é e r ecu a va . “Nã o a p on t e es s e n egócio
para mim. Pode disparar.”
Min go estava “alto” d e h er oín a , e con t en t a va -se
em olh á -lo s em qu a lqu er exp r es s ã o, a o p u xa r o ga tilho.
O d is p a r o a t in giu o r a p a z p ou co a cim a d o n a r iz, e
a r r a n cou o a lt o d a s u a ca b eça . O r es t o d o cor p o ca iu
debatendo-se no chão. Sangue, ossos e grãos de chumbo
for a m ch oca r -s e con t r a a p a r ed e qu e lh e fica va p or
detrás.
Min go vir ou -s e e s a iu d a con feit a r ia . Qu a n d o a
p olícia o en con t r ou , ele d es cia a r u a , s egu r a n d o a
es p in ga r d a in d olen t em en t e. Gr it a r a m -lh e p a r a qu e
p a r a s s e. E m lu ga r d e ob ed ecer , vir ou -s e e a p on t ou a
a r m a p a r a os gu a r d a s . E les a b r ir a m fogo e Min go ca iu
na rua crivado de balas.
Con t u d o, d en t r o d e ca d a u m d e n ós h a via u m
Mingo. Era como se toda a cidade tivesse enlouquecido.
Na qu ele ver ã o d ecla r a m os gu er r a à p olícia . E s -
cr evem os u m a ca r t a p a r a os gu a r d a s d o 8 8 º . Dis t r it o e
p a r a a Cen t r a l d e Polícia , a vis a n d o qu e es t á va m os em
gu er r a con t r a eles e qu e d a qu ela h or a em d ia n t e
qu a lqu er gu a r d a qu e en t r a s s e em n os s o t er r it ór io er a
um homem morto.
A polícia dobrou as patrulhas, e geralmente faziam
a r on d a em gr u p o d e t r ês . Is t o n ã o n os in t imidava.
S u b ía m os n os t elh a d os , e a t ir á va m os t ijolos , ga r r a fa s e
la t a s d e lixo n eles . Qu a n d o s a ía m p a r a ver qu em es t a va
a t ir a n d o a qu ela s cois a s , n ós a b r ía m os fogo. Nos s a
p on t a r ia er a p és s im a , e n os s os r evólver es d e fa b r icação
ca s eir a er a m m u it o im p r ecis os , excet o em d is p a r os à
queima-r ou p a . Nos s o m a ior s on h o er a m a t a r u m
guarda.
Um d os n os s os golp es fa vor it os er a a t ir a r b om bas
d e ga s olin a , ch a m a d a s “coqu et éis Molot ov”. Rou -
b á va m os ga s olin a d e ca r r os qu e fica va m es t a cion a dos
d u r a n t e a n oit e, e a colocá va m os em ga r r a fa s d e
r efr iger a n t e e d e vin h o. Fa zía m os u m p a vio com u m
t r a p o, p ú n h a m os fogo e a t ir á va m os a ga r r a fa n a p a r ed e
d e u m ed ifício ou em u m ca r r o d a p olícia . E la exp lod ia
em chamas.
Algu m a s vezes o feit iço vir a va -se con t r a o feit i-
ceiro. Certa tarde Dan Brunson, membro da nossa gang,
a cen d eu u m “coqu et el Molot ov” p a r a a t ir a r n a d elega cia .
O p a vio qu eim ou d ep r es s a d em a is , e a b om b a exp lod iu
n a m ã o d ele. An t es qu e a lgu ém p u d es s e ch ega r a t é ele,
t od o o s eu cor p o já es t a va cob er t o d e ga s olin a em
ch a m a s . Os gu a r d a s cor r er a m e a p a ga r a m a s ch a m a s
com a s p r óp r ia s m ã os . Um d eles ficou gr a vem en t e
qu eim a d o a o a b a fa r o fogo. Leva r a m d ep r es s a Da n p a r a
o hospital, mas os médicos disseram que só após muitos
anos é que ele voltaria ao normal.
Na s em a n a s egu in t e, d im in u ím os o r it m o d a s
b r iga s , p or ém , ela s for a m logo r ein icia d a s com fe-
rocidade ainda maior.
Os fer ia d os er a m oca s iões excelen t es p a r a os
“quebra-paus” d a s qu a d r ilh a s . Na Pá s coa , n o Dia d o
Tr a b a lh o e n o Dia d a In d ep en d ên cia gr a n d e p a r t e d a s
d u zen t a s e oit en t a e cin co ga n gs d a cid a d e r eu niam-se
em Con ey Is la n d . Tod os ia m ves t id os com a s s u a s
m elh or es r ou p a s , e p r ocu r a va m exib ir -s e, o qu e
r es u lt a va em lu t a s t er r íveis , e m u it a s vezes fa tais.
Na qu ele 4 d e ju lh o — Dia d a In d ep en d ên cia d os E UA —
os Bis h op s m a t a r a m La r r y S t ein , u m d e n os s os r a p a zes .
E le t in h a s ó t r eze a n os d e id a d e. Cin co d eles s u r r a r a m -
n o com cor r en t es d e b iciclet a a t é m a t á -lo; d ep ois ,
en t er r a r a m s eu cor p o n a a r eia , d eb a ixo d e u m a
p a s s a gem d e t á b u a s . E le s ó foi en con t r a d o u m a s em a n a
mais tarde.
Qu a n d o fica m os s a b en d o d is s o, n os r eu n im os n o
p or ã o d a es cola — ér a m os qu a s e d u zen t os — p a r a u m a
assembléia de vingança. A sala estava carregada de ódio.
Met a d e d os r a p a zes es t a va em b r ia ga d a , e qu er ia s a ir
naquela noite e queimar os prédios de apartamentos dos
Bis h op s , e p ôr fogo n a p a r t e d a Av. Bed for d qu e fica va
n o b a ir r o d e Br ook lin . Con t u d o, eu con s egu i m a n t er a
or d em , e con cor d a m os em a s s is t ir a o en t er r o d e La r r y,
n a t a r d e s egu in t e, e d ep ois r eu n ir m o-n os ou t r a vez, à
noite, para traçar os planos de batalha.
Na t a r d e s egu in t e r eu n im o-n os n o cem it ér io p a ra
o en t er r o. Dois ca r r os p a r a r a m e u m p equ en o gr u p o d e
p es s oa s qu e ch or a va m s a iu d eles . Recon h eci a m ã e d e
La r r y, s eu p a i e s eu s qu a t r o ir m ã os . Os Ma u -Maus
estavam va gu ea n d o p elo cem it ér io, e qu a n d o o fu n er a l
ch egou , t od os a va n ça m os — m a is d e d u zen t os r a p a zes e
ga r ot a s , a m a ior ia ves t id a d e b lu s ões n egr os com u m
duplo M escarlate nas costas.
Dirigi-m e à S en h or a S t ein p a r a fa la r com ela . E la
m e viu ch ega n d o e gr it ou : “Tir em es s es m on s t r os d a qu i!
Levem es s es d ia b os !” E la volt ou -s e e com eçou a a n d a r
em direção ao carro, cambaleando, mas desmaiou e caiu
n a gr a m a . O m a r id o cu r vou -s e s ob r e ela , e os filh os
ficaram estáticos de terror, olhando nossa quadrilha que
s e es gu eir a va p or en t r e os t ú m u los , a p r oxim a n d o-s e d a
cova.
O p a i d e La r r y olh ou p a r a m im e a m a ld içoou -me:
“Você é o culpado. Se não fosse você e sua gang imunda,
La r r y es t a r ia vivo h oje.” Com eçou a a p r oxim a r -s e d e
m im , d is p a r a n d o ch is p a s d e ód io p elos olh os , m a s o
a d m in is t r a d or d o cem it ér io a ga r rou-o p elo b r a ço,
puxando-o para trás.
“Por favor, espere do outro lado da cova”, disse-me
o administrador. “Colabore conosco, certo?”
Fiz o qu e p ed ia e a fa s t a m o-n os d o t ú m u lo, en -
qu a n t o eles r ea n im a va m a S r a . S t ein e con t in u a va m a
cerimônia fúnebre.
Na qu ela n oit e t ivem os a s egu n d a r eu n iã o. Des t a
vez n a d a h a ver ia d e n os s egu r a r . Fica m os s a b en d o n a
t a r d e d o m es m o d ia , qu e os GGI h a via m m a t a d o u m d os
Bis h op s , e qu e o fu n er a l s er ia r ea liza d o n o d ia s egu in t e.
Os r a p a zes qu er ia m a ca b a r com o fu n er a l a t ir a n d o
b om b a s d os ed ifícios A in t en s a lea ld a d e d a qu a d r ilh a ,
em vin ga r o s eu p a r ceir o m or t o, er a es p a n t os a . Tod os
fer via m d e ód io, e fin a lm en t e n ã o p od ia m m a is con t ê-lo.
Ma n n ie foi qu em gr it ou qu e já ia p a r a a a gên cia
funerária , on d e o cor p o d o r a p a z d os Bis h op s a gu a r d a va
a h or a d o en t er r o. “Va m os p ôr fogo n a qu ela b a iú ca ”,
gr it ou ele. “S e es p er a r m os a t é a m a n h ã , s er á t a r d e
demais. Vamos agora.”
“S im , s im , va m os ”, gr it a r a m em cor o. Ma is d e
qu in ze d eles con ver gir a m em d ir eçã o a o p equ en o s a lão
d a em p r es a fu n er á r ia , r es er va d o a os n egr os ; t om b a r a m
caixões e rasgaram as cortinas com facas.
O en t er r o foi r ea liza d o n o d ia s egu in t e s ob for t e
escolta policial, mas nós nos sentimos vingados.
Os t u m u lt os n a s r u a s er a m s u p er a d os a p en a s
pelos p es a d elos d e violên cia qu e fer vilh a va m em m eu
cor a çã o. E u er a u m a n im a l s em con s ciên cia , m or a l,
r a zã o, e s em qu a lqu er s en s o d o qu e er a cer t o ou er rado.
A qu a d r ilh a m e s u s t en t a va com o p r od u t o d os s eu s
r ou b os n ot u r n os , e Fr a n k m e a ju d a va u m p ou co. Ma s
eu p r efer ia ob t er o d e qu e p r ecis a va p or m eu s p r óp r ios
meios.
Na p r im a ver a d e 1 9 5 7 , Fr a n k veio ver -m e e d is se
qu e m a m ã e e p a p a i vin h a m d e Por t o Rico p a r a vis it a r -
n os . E le qu er ia qu e eu fos s e a o s eu a p a r t a m en t o n a
n oit e s egu in t e, p a r a vê-los . Recu s ei-m e. E u n ã o
p r ecis a va d eles . E les m e h a via m r ejeit a d o, e eu a gor a
não queria qualquer contato com eles.
Na n oit e s egu in t e, Fr a n k t r ou xe p a p a i a o m eu
qu a r t o. Ma m ã e n ã o a p a r eceu , já qu e eu n ã o qu is er a vê-
la.
Pa p a i ficou d e p é à p or t a , p or m u it o t em p o,
olhando para mim, que estava sentado à beira da cama
“Fr a n k m e con t ou t u d o s ob r e você”, d is s e ele,
leva n t a n d o a voz, a t é fa la r qu a s e a os gr it os qu a n d o
terminou. “E le d is s e qu e você é a gor a ch efe d e u m a
quadrilha e que a polícia está procurando-o. É verdade?”
Nã o r es p on d i, m a s vir ei-m e p a r a Fr a n k , qu e es -
t a va d e p é a o la d o d o velh o, e r os n ei: “Qu e d ia b o a n d ou
fa la n d o p a r a ele? E u t e d is s e p a r a n ã o vir a qu i com
eles.”
“Contei-lh e a ver d a d e, Nick y”, d is s e Fr a n k ca l-
mamente.
“Ta lvez já s eja h or a d e você t a m b ém en fr en t a r a
verdade.”
“E le t em u m d em ôn io”, d is s e p a p a i, en ca r a n d o-me
s em p is ca r os olh os . “E le es t á p os s es s o. Pr ecis o lib er t á -
lo.”
Olh ei p a r a p a p a i e r i n er vos a m en t e: “No a n o
p a s s a d o eu p en s ei qu e t in h a u m d em ôn io. Ma s a gora
até os demônios têm medo de mim.”
Papai a t r a ves s ou o qu a r t o e colocou s u a p es a d a
m ã o em m eu om b r o. E m p u r r ou -m e com for ça , a t é qu e
fu i ob r iga d o a a joelh a r -m e p or t er r a . Dom in ou -m e em
t od a a s u a a lt u r a , s u a s m ã os en or m es p r en d en d o-me
como correntes.
“S in t o cin co es p ír it os m a u s n ele”, d is s e p a p a i. Fez
s in a l p a r a qu e Fr a n k a ga r r a s s e m eu s b r a ços e os
leva n t a s s e a cim a d a m in h a ca b eça . Lu t ei p a r a libertar-
m e, m a s eles er a m for t es d em a is p a r a m im . “Cinco
demônios!” ca n t ou p a p a i, “é p or is s o qu e ele é
delinqüente! Hoje nós vamos curá-lo.”
Cr u za n d o a s m ã os s ob r e a m in h a ca b eça , exer ceu
gr a n d e p r es s ã o, a p er t a n d o p a r a b a ixo, e t or cen d o a s
m ã os , com o s e es t ives s e t en t a n d o a b r ir a t a m p a d e u m
recipiente.
“S a i! S a i!”, gr it a va ele, “eu or d en o qu e vocês
saiam.” Papai estava falando com os demônios da minha
mente.
Deu-m e, en t ã o, t a p a s com a s d u a s m ã os em a m -
b os os la d os d a ca b eça , s ob r e a s or elh a s , r ep et id a s
vezes . E s t a va gr it a n d o com os d em ôn ios p a r a qu e
saíssem de meus ouvidos.
Fr a n k con t in u ou s egu r a n d o m eu s b r a ços a cim a
d a ca b eça , e p a p a i colocou s u a s m ã os im en s a s a o r ed or
do meu pescoço, e começou a me estrangular.
“Há u m d em ôn io n a s u a lín gu a . S a i, d em ôn io,
sai.” Depois gritou: “Pronto. Ele já está saindo.”
“O s eu cor a çã o t a m b ém es t á n egr o”, d is s e ele, e
deu-m e vá r ios s ocos n o p eit o, qu e a t é p en s ei qu e
minhas costelas iriam partir-se.
Fin a lm en t e, ele m e a ga r r ou p ela cin t u r a e m e
colocou d e p é, d a n d o-m e t a p a s n a s vir ilh a s e or denando
aos espíritos maus que saíssem das minhas entranhas.
Afin a l ele m e s olt ou e Fr a n k a fa s t ou -s e d izen d o :
“E le t e fez u m gr a n d e fa vor , Nick y. Você t em s id o m u it o
mau, mas papai te purificou.”
Pa p a i es t a va d e p é n o m eio d o qu a r t o, t r em en do
com o va r a ver d e. E u d is s e u m p a la vr ã o e s a í com o u m
pé-de-ven t o p ela p or t a a for a , cor r en d o p ela s es ca d a s ,
em d ir eçã o à r u a . Du a s h or a s d ep ois en con t r ei u m
m a r in h eir o b êb ed o, d or m in d o em u m b a n co n a Pr a ça
Wa s h in gt on . Vir ei-o d e la d o e r ou bei-lh e a ca r t eir a . S e
p a p a i t in h a exp u ls a d o os d em ôn ios d e m im , n ã o
d em or ou m u it o t em p o p a r a qu e eles volt a s s em . E u
ainda era filho de Lúcifer.
Os p es a d elos fica r a m p ior es . A vis it a d e m eu p a i
p a r eceu a u m en t a r o m eu m ed o d o fu t u r o. Noit e a p ós
n oit e r ola va p ela ca m a gr it a n d o, a o a cor d a r d e u m
p es a d elo a p ós ou t r o. Red ob r ei m in h a s b r iga s fr en ét ica s ,
t en t a n d o en cob r ir o m ed o qu e m e con s u m ia
interiormente.
Naquele ver ã o n os s a lu t a con t r a a p olícia t or nou-
s e a in d a m a is in t en s a . Tod a s a s n oit es ficá va m os n os
t elh a d os , es p er a n d o qu e os gu a r d a s p a s s a s s em p or
b a ixo. Der r u b á va m os s a cos d e a r eia , a t irávamos
ga r r a fa s e p ed r a s n eles — m a s p r ecis á va m os d e a r m a s
de fogo, principalmente de rifles, e isto custava dinheiro.
Tive u m a id éia , p a r a r ea liza r u m r ou b o fá cil. E u
t in h a n ot a d o qu e t od o s á b a d o, à s t r ês d a m a drugada,
u m h om em ch ega va em u m gr a n d e ca r r o p r et o,
dirigindo-s e p a r a u m d os a p a r t a m en t os . Os r a p a zes já
havia m ob s er va d o is s o, e con t á va m os m u it a s p ia d a s
s ob r e o ca s o. S a b ía m os qu e ele vin h a d a cid a d e d e
J er s ey, e qu e es p er a va s em p r e qu e Má r io S ilvér io s a ís s e
p a r a o t r a b a lh o. Ach á va m os qu e es t a va s e en con t r a n d o
com a m u lh er d e Má r io. Cer ta n oit e, a lgu n s d os r a p a zes
d es a fia r a m a m im e Alb er t o a es p iá -los . Tr ep a m os a s s im
pela escada de incêndio e vimo-lo entrar no apartamento
de Silvério.
Tod o s á b a d o à s t r ês d a m a n h ã a con t ecia a m es ma
cois a . E le es t a cion a va o ca r r o, t r a n ca va a s p or t a s e
subia as escadas até o apartamento.
E u d is s e a Ma n n ie qu e a ch a va qu e s er ia u m
t r a b a lh in h o fá cil e ele con cor d ou . Ped im os a Willie
Açou gu eir o p a r a t r a zer o s eu r evólver , e en con t r a r -se
conosco às duas da madrugada.
Qu a n d o ch ega m os a o p r éd io d e a p a r t a m en t os ,
Willie já es t a va p or a li, t es t a n d o o r evólver . E le t irara
t od a s a s b a la s e coloca r a u m a a o la d o d a ou t r a , n u m
d egr a u d a es ca d a r ia . Ven d o-n os ch ega r , r eca r r egou a
arma e colocou-a no cinto.
Nos s o p la n o er a : Willie e Ma n n ie es p er a r ia m a t r á s
d o ed ifício. Qu a n d o o h om em s a ís s e d o ca r r o, eu m e
a p r oxim a r ia d ele e fa r ia u m a p er gu n t a . E n t ã o Willie e
Ma n n ie a p a r ecer ia m , o p r im eir o a p on t a n d o a a r m a p a r a
o h om em , en qu a n t o o r evis t á va m os e t om á va m os s eu
dinheiro.
O r elógio d o gr a n d e ed ifício d e Fla t b u s h , n a
esquina da Rua Houston, deu três badaladas. Willie quis
exa m in a r o r evólver d e n ovo. Des t a vez d ir igiu-s e a os
fu n d os d o ed ifício, e volt ou d en t r o d e p ou cos m in u t os ,
dizendo que tudo estava pronto.
Ma is ou m en os à s t r ês e qu in ze o ca r r o vir ou a
es qu in a e p a r ou d efr on t e a o p r éd io. Willie e Ma n n ie
esconderam-s e n a s s om b r a s . E n r olei a ca p a d e ch u va
em t or n o d o cor p o, e com ecei a a n d a r p ela ca lça d a . O
h om em s a iu d o ca r r o. E r a u m s u jeit o gr a n d a lh ã o, d e
cer ca d e qu a r en t a a n os e u s a va ch a p éu e ca s a co d e
eleva d o p r eço. Fech ou o ca r r o cu id a d os a m en t e, e
começou a andar em direção ao edifício.
As ruas estavam desertas. Só os carros que transi-
tavam pela avenida próxima quebravam o silêncio.
Qu a n d o m e a p r oxim ei, ele a p er t ou o p a s s o. “Ei,
moço”, disse eu, “estou perdido. Pode me dizer onde é a
Av. Lafayette ?”
O h om em vir ou -s e e olh ou em t od a s a s d ir eções .
“Suma, moleque”, disse, “não quero amolação. “
“Olh e, m oço, t u d o o qu e eu qu er o s a b er é on d e
fica a Av. La fa yet t e.” Dei u m a r is a d a e p u s a m ã o n o
b ols o d a ca p a , com o s e t ives s e u m r evólver a p on tado
para ele.
“S ocor r o! La d r ões !” gr it ou o h om em , r ecu a n d o
para o carro.
Encostei-me nele : “Cale a boca, ou eu te mato.”
E le en goliu em s eco, e olh ou -m e in cr éd u lo. Depois
começou a gritar : “Socorro! Socorro!”
Na qu ele m om en t o Willie p a s s ou o b r a ço a o r edor
d o s eu p es coço, p or t r á s , b a t en d o-lh e n o r os t o com o
t a m b or d o r evólver : “S e d er u m p io, es t á m or t o”, fa lou
Willie entre dentes.
O h om em ficou d u r o, en qu a n t o Ma n n ie e eu co-
meçávamos a revistá-lo.
No b ols o d o p a let ó en con t r ei o m a ior m a ço d e
n ot a s qu e já vir a . E s t a va m p r es a s p or u m elá s t ico.
Pen s o qu e es t a va leva n d o a qu ele d in h eir o p a r a a m u lh er
de Mário.
“E i, olh e, Willie. Qu e t a l ? E s t e ca r a é r ico. Pu xa ,
veja todo este dinheiro.”
Afastei-m e r in d o. Tín h a m os a ch a d o u m a m in a d e
ouro. Comecei a caçoar dele : “Ei, cara, se eu deixar você
d or m ir com a m in h a velh a , você m e d a r á d in h eir o t od a
semana ?”
Ma n n ie com eçou a d es a fivela r o cin t o d o h omem.
“Qu e t a l, Zé ? Nã o s e im p or t a s e t ir a r m os s u a ca lça p a r a
que todas as senhoritas vejam como você é simpático?”
O h om em r ilh ou os d en t es e com eçou a gemer.
“E i, ca r a , n ós es t a m os p r es t a n d o u m fa vor a você”, d is s e
Mannie. “Va m os , va m os t ir a r a ca lça com o u m b om
menino.”
Ab r iu o cin t o e o h om em com eçou a gr it a r ou t r a
vez. “Socorro! Soc...”
Ma s eu p u lei e fech ei-lh e a b oca com a m ã o. E le
en t er r ou os d en t es com for ça n a p a lm a d a m in h a m ã o.
Pu lei p a r a t r á s gr it a n d o : “At ir a n ele, Willie! Fu r a ele !
Ele me mordeu. “
Willie r ecu ou e com a m b a s a s m ã os a p on t ou o
r evólver p a r a a s cos t a s d o h om em e p u xou o gatilho.
Ouvi o pino cair, mas nada aconteceu.
Dei u m s oco n o es t ôm a go d o h om em , com t od a s
as forças. Ele dobrou-se, e eu dei-lhe outro soco na fonte
com a ou t r a m ã o, m a s s en t i t a n t a d or qu e p en s ei qu e ia
desmaiar. Fiquei de lado, rodeando-o : “Atira nele, Willie.
Dê-lhe uma lição.”
Willie p u xou o ga t ilh o ou t r a vez. Na d a a con teceu
d e n ovo. E le con t in u ou t en t a n d o, m a s o r evólver n ã o
disparou.
Aga r r ei o r evólver d e Willie, e d ei u m a cor on h a -da
n o r os t o d o h om em . Hou ve u m r u íd o d e m et a l b a t en d o
n o os s o. A ca r n e s e r om p eu e eu p u d e ver o b r a n co d o
os s o fa cia l, e o s a n gu e com eça n d o a cor r er . E le es t a va
t en t a n d o gr it a r qu a n d o eu o fer i d e n ovo n o a lt o d a
ca b eça . E le ca iu p r os t r a d o n a s a r jet a , u m a d a s m ã os
pendentes sobre o bueiro que havia sob o meio-fio.
Não es p er a m os m a is . Lu zes s e a cen d ia m n a s ja -
n ela s d os a p a r t a m en t os , e ou vim os a lgu ém gr it a r .
Corremos rua abaixo, e atalhamos por uma travessa que
ia d a r a t r á s d a es cola . E n qu a n t o cor r ia , t ir ei a ca p a e
joguei-a em uma lata de lixo.
Separamo-n os n a r u a s egu in t e. Cor r i p a r a a m i-
n h a r u a e s u b i a es ca d a a t é m eu qu a r t o. J á d en t r o,
t r a n qu ei a p or t a e fiqu ei n a es cu r id ã o a r qu eja n d o e
rindo, “Isto sim, era vida.”
Acen d i a lu z e olh ei p a r a a m in h a m ã o. Vi cla -
r a m en t e a s m a r ca s d os d en t es d o h om em n a p a lm a .
Lavei-a com um pouco de vinho e enrolei um lenço.
Apaguei a luz e deixei-me cair na cama. As sirenes
d a p olícia gem er a m à d is t â n cia , e eu s or r i p a r a m im
mesmo. “Qu e p a cot e!” p en s ei, e a p a lp ei o b ols o,
procurando o maço de notas.
E es t a a gor a ? Nã o es t a va lá ! Fiqu ei d e p é, p r o-
cu r a n d o fr en et ica m en t e em tod os os b ols os . De r epente,
lem b r ei. E u o coloca r a n o b ols o d a ca p a , n o com eço d a
briga. Ah, não ! Eu havia jogado a capa na lata de lixo. E
o revólver? O revólver de Willie também se fora. Eu devia
tê-lo d eixa d o ca ir , d ep ois qu e d er a a cor on h a d a n o
homem.
E u n ã o p od ia volt a r lá a qu ela h or a . O lu ga r d evia
es t a r r egu r git a n d o d e gu a r d a s . Pr ecis a r ia es p er a r a t é d e
m a n h ã , m a s en t ã o o lixeir o t er ia p a s s a d o e a ca p a e o
dinheiro estariam perdidos.
Ca í n a ca m a , b a t en d o com os p u n h os n o colchão.
Todo aquele esforço, e nenhum resultado.

Capítulo 8

A G A R G A LH A D A D O D I A B O

DURANTE O PE RÍODO d e d ois a n os em qu e fu i


líd er d os Ma u -Ma u s , d ezes s et e p es s oa s for a m m or tas.
Fu i p r es o m a is vezes d o qu e s ou ca p a z d e m e lem b r a r .
Nós vivíamos — todos os componentes das quadrilhas —
com o s e n ã o exis t is s e lei. Na d a er a s a gr a d o, excet o a
n os s a lea ld a d e u n s para com os ou t r os —
p r in cip a lm en t e os la ços d e lea ld a d e qu e eu s en t ia em
relação a Israel e a Mannie.
Cer t o d ia Is r a el en t r ou fu r t iva m en t e em m eu qu a r t o, n o
m eio d a n oit e, e la n çou u m a p om b a p ela p or t a . Ficou d e
for a e d eu ga r ga lh a d a s a o ou vir m eu s gr it os d e m ed o.
Qu a n d o ele a b r iu a p or t a e a cen d eu a lu z, eu es t a va
d eb a ixo d a ca m a . Ten t ei en cob r ir m eu t er r or , r in d o
en qu a n t o ele a t ir a va a p om b a p ela ja n ela . Ma s d ep ois
qu e ele s e foi, fiqu ei t r em en d o n a ca m a , com o s om d e
a s a s r u fla n d o n os ou vid os . Qu a n d o fin a lm en t e con s egu i
pegar no sono, sonhei que estava caindo. Acordei julgan-
do ter ouvido a gargalhada do diabo.
Na m a n h ã s egu in t e Is r a el volt ou p a r a m e con tar
que Mannie fora esfaqueado e estava no hospital. “O que
é que há, Nicky ?” disse ele depois de contar como fora a
facada, “que cara é essa?”
Nã o p u d e r es p on d er n a h or a . S en t ia o es t ôm a go
em b r u lh a d o, e o s a n gu e fu gin d o d e m in h a s fa ces.
Ma n n ie e Is r a el er a m os ú n icos a m igos qu e eu t in h a . De
r ep en t e, via m in h a s egu r a n ça a b a la d a , en qu a n t o Is r a el
me contava que Mannie quase morrera.
S a cu d i a ca b eça : “E s t ou b em . É s ó r a iva . Vou
vis it a r Ma n n ie e d es cob r ir qu em fez is s o. Dep ois va m os
queimar esse cara direitinho.”
Na qu ela t a r d e t en t ei en t r a r n o h os p it a l, m a s h a via
d ois p olicia is u n ifor m iza d os n a p or t a . Tr ep ei p ela escada
de incêndio e bati de leve na janela e Mannie a abriu por
d en t r o. E le es t a va fr a co e m a l p ôd e a r r a s t a r -s e d e volt a
para o leito.
“Qu em fez is t o, ca r a ?” p er gu n t ei. “Nin gu ém va i
bater e esfaquear você sem levar o troco.”
“For a m os Bis h op s . E les m e p ega r a m s ozin h o, e
me acertaram duas vezes: na perna e no lado.”
“Quem foi ?” perguntei. “Você sabe quem fez isso?”
“S im . Foi a qu ele ca r a ch a m a d o J oe. É o n ovo
vice-p r es id en t e d eles . Pen s a qu e é o t a l. Qu a n d o fu giu
d is s e qu e eles volt a r ia m p a r a m e m a t a r . É p or is s o qu e
os tiras estão aí fora.”
“Bem , s ó qu er o qu e você fiqu e b om , m eu ch a p a . E
quando sair daqui, vamos agarrar aquele negro sujo.”
Esgueirei-m e d e volt a p ela es ca d a d e in cên d io e
n a qu ela n oit e en con t r ei com Is r a el e Hom er Bela n ch i,
n os s o con s elh eir o d e gu er r a , p a r a t r a ça r p la n os d e
vingança. Decidimos fazer um seqüestro.
No d ia s egu in t e Hom er r ou b ou u m ca r r o. E s -
condem os o b ich o a t r á s d e u m velh o a r m a zém d u rante
duas semanas, até Mannie sair do hospital.
E s t á va m os n a s em a n a a n t er ior a o Na t a l d e 1 9 5 7 ,
qu a n d o en t r a m os em a çã o. Hom er foi gu ia n d o o ca r r o, e
n ós a p a n h a m os Ma n n ie. E le a in d a es t a va u s a n do
b en ga la . Au gie, Pa co e eu fica m os n o b a n co d e t r á s .
Cr u za m os a Ru a S t . E d wa r d , d ep ois d o Cen t r o Ca t ólico.
Ha via u m b a ile d e Na t a l n o Cen t r o, n a qu ela n oit e, e d ois
p olicia is u n ifor m iza d os es t a va m d e gu a r d a à p or t a . Nã o
vim os n en h u m d os Bis h op s p or a li; p or is s o,
continuamos d es cen d o a r u a , a t é a con feit a r ia , e
es t a cion a m os d o la d o op os t o. E r a m qu a s e on ze h or a s d a
noite; dissemos a Mannie para esperar no carro.
At r a ves s a m os a r u a e en t r a m os n a con feit a r ia .
Ha via vá r ios Bis h op s n a con feit a r ia , e eu d is s e: “Ei,
t u r m a , n ós es t a m os p r ocu r a n d o o n os s o a m igo, Vice-
Pr es id en t e d os Bis h op s . Algu ém d is s e qu e ele qu er fa zer
u m a cor d o, e n ós viem os p or ca u s a d is s o. E le es t á p or
aqui ?”
“Você es t á fa la n d o d o J oe ? E s t á lá n o ca n t o,
beijando a garota”, disse um dos Bishops.
S a ím os d eva ga r e fom os a t é on d e J oe es t a va ,
s en t a d o n o ch ã o, a o la d o d e u m a m ocin h a . E le levantou
os olh os e Au gie d is s e : “Bich o, n ós s om os os ta is . Os
Mau-Maus. Viemos buscar você.”
J oe t en t ou leva n t a r , m a s Au gie p ôs o p é s ob r e o
s eu om b r o e em p u r r ou -o p a r a t r á s . Nós d ois es távamos
armados e ele viu que apontávamos para ele.
Com eçou a gr it a r . Au gie t ir ou o r evólver e a p on tou
p a r a os ou t r os qu e es t a va m n o loca l. “Nã o s e m ova m .
Ninguém. O primeiro que mexer é homem morto.”
O proprietário parecia que ia ter um acesso.
“Nã o va m os fa zer n a d a com você, velh in h o”, d is s e
Augie.
“Fiqu e qu iet o qu e n ós va m os ca ir for a n u m m i-
nuto.”
Fa lei com J oe, qu e a in d a es t a va s en t a d o n o ch ã o,
a o la d o d a ga r ot a qu e p a r ecia h or r or iza d a : “E i, p u lh a ,
você tem duas coisas para escolher: ou vai conosco,
ou n ós o m a t a m os a qu i m es m o. Qu er u m m in u t o p a r a
pensar ?”
O r a p a z com eçou a ga gu eja r a lgo, e eu d is s e :
“Bem, fico alegre por você ter resolvido.”
De u m a r r a n co coloqu ei-o d e p é, e s a ím os p ela
p or t a , e Is r a el ficou a p on t a n d o o r evólver p a r a os ou t r os
rapazes que ficaram no bar.
“Diga m a os Bis h op s qu e va m os t r a zê-lo d e volt a
d ep ois d e m os t r a r o qu e a con t ece qu a n d o a lgu ém p õe a
m ã o n u m Ma u -Mau”, d is s e Au gie. Fech a m os a p or t a
a t r á s d e n ós e o ob r iga m os a cor r er ; a t r a ves s a m os a r u a
empilhamo-n os n o ca r r o. E le s en t ou -s e a t r á s , en t r e
Au gie e eu , e d u r a n t e t od o o t em p o a p on t a m os a s a r m a s
p a r a ele. Hom er d eu p a r t id a n o ca r r o, e s a ím os em
d ir eçã o a u m ed ifício a b a n d on a d o, p er t o d a Pon t e d e
Manhattan.
Leva m os J oe p a r a d en t r o, a m a r r a n d o-o a u m a
cadeira, com uma mordaça na boca.
“Ta lvez s u a m or t e s eja r á p id a . Ta lvez vá fica r a qu i
o r es t o d a vid a ”, fa lei zom b a n d o. Au gie cu s p iu n o r os t o
d ele e s a ím os b a t en d o a p or t a a t r á s d e n ós . E r a m eia -
noite.
S ó volt a m os d ois d ia s d ep ois . Qu a n d o o fizem os ,
levam os vin t e e cin co Ma u -Ma u s con os co. J oe es t a va
ca íd o d e la d o, a in d a a m a r r a d o à ca d eir a . Ten t a ra
es ca p a r , m a s for a m u it o b em a m a r r a d o. Pu s em os a
cadeira em pé e acendemos a luz. Ele tinha passado dois
d ia s in t eir os s em com id a e s em á gu a . O ed ifício es t a va
gela d o. E le p is cou d e m ed o e h or r or , qu a n d o n os
agrupamos ao seu redor.
Chamei Mannie para ficar diante dele.
“Ma n n ie, foi es t e qu e t e d eu u m a fa ca d a e a m ea -
çou te matar?”
Ma n n ie a p r oxim ou -s e m a n ca n d o. “Foi ele. Foi ele
mesmo.”
Tir ei a m or d a ça d a b oca d e J oe. S eu s lá b ios e s u a
lín gu a es t a va m in ch a d os e r a ch a d os . Tin h a a ga r ga n t a
s eca e p r od u ziu r u íd os es qu is it os e ofega n t es , a o t en t a r
falar.
“Veja, ele está confessando”, disse eu rindo.
Au gie a ga r r ou -o p elos lon gos ca b elos e p u xou -lhe
a ca b eça p a r a t r á s . Ma n n ie s a cu d iu a cin za d e s eu
ciga r r o, e colocou -o p er t o d o p es coço d o r a p a z. Os olh os
d e J oe es t a va m a r r ega la d os d e m ed o, e Ma n n ie r iu a o
en cos t a r levem en t e a p on t a a ces a d o ciga r r o n a p ele
fina. Ele gritou de dor, e Mannie tirou o cigarro.
“Ou t r a vez”, d is s e Au gie a Ma n n ie, “ele es fa qu eou
você duas vezes.”
Des t a vez Ma n n ie es m a gou va ga r os a m en t e o ci-
ga r r o con t r a a b oca d o r a p a z, for ça n d o-o d elib er a d a -
m en t e en t r e os lá b ios r a ch a d os , qu e ele cer r a va for -
t em en t e. O qu eixo d o r a p a z tr em ia en qu a n t o ele cor r ia a
lín gu a cr es t a d a p ela s fer id a s a ver m elh a d a s , em u m a
d éb il t en t a t iva d e livr a r -s e d a cin za e d os fr a gm en t os d e
fumo que se haviam apegado a elas.
“Agora, pessoal, é a vez de vocês”, disse Augie.
Ca d a r a p a z qu e es t a va n o p r éd io a cen d eu u m ci-
ga r r o, e a va n çou p a r a ele, en qu a n t o Au gie o a ga r rava
pelo cabelo outra vez, forçando sua cabeça para trás. Ele
gr it ou d e d or e a ga r ga n t a p r od u ziu r u íd os es t r a n h os ,
com o d e lixa es fr ega d a em u m a t ela . Os r a p a zes
chegaram-s e a ele, ca d a u m a p a ga n d o o ciga r r o con t r a o
s eu r os t o e p es coço. E le gr it ou s em p a r a r , a t é d es m a ia r
de dor.
Tir a m os a s cor d a s qu e o p r en d ia m e ele es cor -
r egou p a r a o s olo, em m eio à s u jeir a e t eia s d e a r a nha.
Gr it a n d o p a la vr ões , os r a p a zes d er a m -lh e ch u t es , com
os s a p a t os p on t u d os , qu eb r a n d o-lhe a s cos t ela s e o
m a xila r . Foi d ep ois a t ir a d o n o ca r r o e leva d o à
con feit a r ia qu e h a via n o t er r it ór io d os Bis h op s . Au gie
es cr eveu u m a n ot a e p r en d eu -a com um alfinete às suas
costas. “Nin gu ém fer e u m Ma u -Ma u e fica s em o t r oco.”
Pa s s a m os va ga r os a m en t e p ela con feit a r ia , e r ola m os o
s eu cor p o in con s cien t e p a r a a r u a . Dep ois , ch is p a m os
para longe dali.
No d ia d e Na t a l en con t r ei Ma n n ie n o b a r d o Gin o.
E s t á va m os s en t a d os em b a n qu et a s d ia n t e d o b a lcã o,
fumando, e rindo do que acontecera na semana anterior.
Leva n t ei os olh os e vi cin co Bis h op s a t r a ves s a n do
a r u a . Dei u m a olh a d ela em volt a : em b or a es t ivéssemos
n o cen t r o d o t er r it ór io d os Ma u -Ma u s , es távamos
s ozin h os . Cu t u qu ei Ma n n ie : “Bis h op s , m eu ch a p a .
Vamos nos raspar.”
Ma s er a t a r d e d em a is . E les n os vir a m m er gu lh a r
d et r á s d o b a lcã o p a r a t en t a r s a ir p ela p or t a la t er a l.
Tín h a m os a lgu m tem p o d e va n t a gem s ob r e eles , e
cor r em os p or t a a for a , a t r a ves s a m os a r u a e n os en -
fia m os p or u m a t r a ves s a Cor r ía m os o m a is d ep r es sa
possível, mas fraco como estava, Mannie foi ficando para
trás. Quando viramos a esquina da travessa e saímos na
outra rua — eles estavam à nossa frente.
Ba ixei a ca b eça e cor r i d ir et a m en t e a t r a vés d eles.
Peguei-os d e s u r p r es a com m in h a ou s a d ia , e eles n ã o
es t a va m p r ep a r a d os p a r a o a t a qu e. At in gi u m d eles n o
es t ôm a go, d e ca b eça , e ele ca iu d e cos t a s n a ca lça d a .
Pu s a m ã o s ob r e a ca p ot a d e u m ca r r o es t a cion a d o, e
s a lt ei s ob r e ele, ca in d o n o m eio d a r u a . Um ca r r o d e
en t r ega s vin h a a t od a p ela r u a , e t ocou in s is t en t em en t e
a b u zin a en qu a n t o eu m e s a fa va p or p ou co. E s p er a va
qu e Ma n n ie a p r oveit a s s e a va n t a gem d o m eu a t a qu e, e
me seguisse.
De r ep en t e, p er ceb i qu e Ma n n ie n ã o m e s egu ir a .
Olh ei p a r a t r á s . Nen h u m d os Bis h op s es t a va m e s e-
gu in d o. Pa r ei d e cor r er e voltei p ela r u a , p a r a ver o qu e
t in h a a con t ecid o. Na en t r a d a d a t r a ves s a vi qu e os cin co
t in h a m cer ca d o Ma n n ie, a p er t a n d o-o con t r a o m u r o, e
davam-lhe socos e chutes no estômago e na virilha.
Algo b r ilh ou p or u m in s t a n t e, e p er ceb i qu e er a o
r eflexo d a lu z d o s ol n a lâ m in a d e u m a fa ca . Cor r i p a r a
eles , p r ocu r a n d o t ir a r a p r es s a d a m en t e a m in h a fa ca d o
b ols o, e gr it a n d o: “Ba s t a r d os ! La r gu em d ele Vou m a t a r
vocês.”
E r a , p or ém , m u it o t a r d e. Vi o r a p a z qu e es t a va
com a fa ca leva n t a r o b r a ço, e n u m golp e d es leal,
abaixá-lo em d ir eçã o à cos t ela d e Ma n n ie, com gr a n d e
for ça . E s t e gem eu e vi-o er et o con t r a o m u r o p or u m
cu r t o m om en t o; d ep ois com eçou a ca ir d e r os t o n o
con cr et o. E n qu a n t o ca ía , o r a p a z, m a ld os a mente
enterrou a faca outra vez no seu peito.
E u t in h a p a r a d o n o m eio-fio. Nã o a cr ed it a va qu e
eles t en t a r ia m m a tá -lo. Fiqu ei com o lou co. Cor r i p a r a o
gr u p o b r a n d in d o a fa ca e d a n d o s ocos com a ou t r a m ã o.
E les es p a lh a r a m -s e e cor r er a m em t od a s a s d ir eções .
Ma n n ie ficou ca íd o n a ca lça d a . O s a n gu e cor r ia d a b oca
e d o n a r iz, e u m a p oça com eçou a for m a r -s e a li, com o
que vazava de sob o casaco de couro.
E s t a va d eit a d o d e b r u ços , m a s t in h a o r os t o
vir a d o d e la d o, e os s eu s olh os m e en ca r a va m ch eios d e
t er r or . Ten t ou fa la r , m a s qu a n d o a b r iu a b oca , s ó
saíram pequenas bolhas de sangue.
Ajoelhei-m e e vir ei-o d e cos t a s . Leva n t ei s u a ca -
b eça e coloqu ei-a em m eu colo, a b r a ça n d o-a con t r a m eu
b lu s ã o d e cou r o. S eu s a n gu e m a n ch ou m in h a s ca lça s , e
eu o sentia quente e pegajoso em minhas mãos.
Con t in u ou t en t a n d o d izer -m e a lgo. Os olh os es -
t a va m a r r ega la d os d e t er r or . Por ém , qu a n d o a b r iu a
b oca p a r a fa la r , t u d o o qu e p u d e ou vir foi u m gor golejo
qu e s u b ia d os p u lm ões . Con t in u ou s olt a n d o p equ en a s
bolhas de sangue com os lábios.
“Mannie, Mannie”, gritei, “não morra, Mannie. Não
morra, Mannie.”
E le a b r iu a b oca u m a vez, m u it o p ou co, e p u d e
ou vir u m s om com o d e a r es ca p a n d o. Pa r ecia u m p n eu
a ca b a n d o d e s e es va zia r . S u a ca b eça r olou em m eu s
braços e senti que o seu peito baixava sob a jaqueta.
Olhei para os seus olhos fixos. Estava morto!
“Ma n n ie! Ma n n ie! Ma n n ie!” eu es t a va gritando
com t od a s a s for ça s , e m in h a p r óp r ia voz s e en ch er a d o
h or r or in fin it o d a r ea lid a d e qu e eu a ca b a r a d e
presenciar.
Ouvi vozes rua abaixo. Uma mulher gritou: “O que
está acontecendo aí?”
Eu não podia mais ficar ali. Com todas as minhas
passagen s p ela p olícia , eles t en t a r ia m cu lp a r -m e. Nã o
h a via ou t r a cois a qu e eu p u d es s e fa zer n a qu ela h or a .
As vozes s e a p r oxim a va m . Leva n t ei-m e ca m b a lea n d o.
O cor p o in er t e d e Ma n n ie ca iu p es a d a m en t e n a
calçada. O som cavo de sua cabeça, chocando-se contra
o con cr et o d u r o, ecoa va em ca d a u m a d e m in h a s
p a s s a d a s , en qu a n t o cor r ia p ela t r a ves s a , a t é s a ir n a r u a
s egu in t e. E m m in h a m en t e, a in d a es t a va ven d o Ma n n ie
ca íd o n a ca lça d a com a fa ce vir a d a p a r a m im , com
a qu eles olh os m or t os , a r r ega la d os d e t er r or . Eu
estava com medo.
Cor r i a t é ch ega r a o m eu a p a r t a m en t o. Ba t i a
p or t a a t r á s d e m im , e t ir ei o r evólver d o gu a r d a -roupa.
Minha respiração saía aos arrancos, e eu me sentei,
n a b eir a d a ca m a , t r em en d o, com a p is t ola a r m a d a
a p on t a d a p a r a a p or t a fech a d a . E u es t a va p et r ifica d o d e
terror.
Nu n ca vir a a m or t e t ã o d e p er t o — p elo m enos
n ã o fa ce a fa ce. E le for a m eu a m igo. Um m in u t o a n t es
es t a va r in d o e fa la n d o. No m in u t o s egu in t e, es t a va
d eit a d o n a r u a , com s a n gu e es cor rendo d a b oca ...
Eu não podia agüentar aquilo. Pensara que era valente
— qu e n ã o t in h a m ed o d e n a d a . Ma s a m or t e er a
d em a is p a r a m im . Com ecei a s en t ir -m e m a l. Gr a n d es
on d a s d e n á u s ea m e d om in a r a m , e eu me es for cei
para não vomitar. Queria chorar, mas não conseguia.
Fiqu ei d e p é e cor r i em d ir eçã o à p a r ed e. “Não
es t ou com m ed o! Nã o es t ou com m ed o!” gr it ei r epetidas
vezes.
Pa r ecia qu e es t a va p os s u íd o p or d em ôn ios . Olh ei
p a r a m in h a s m ã os . Vi o s a n gu e coa gu la d o em m in h a
p ele e s ob a s u n h a s . Aqu ela im a gem , d e lá b ios r a ch a d os
e olhos arregalados atravessou de novo minha mente.
Com ecei a b a t er a ca b eça n a p a r ed e, gr it a n d o:
“Nin gu ém p od e m e fa zer m a l! Nin gu ém p od e m e fa zer
mal! Ninguém...”
E xa u s t o, ca í ofega n t e n o ch ã o. Med o! Ter r or
in fin it o, in d efen s á vel, in ven cível, t er r ifica n t e! E r a com o
s e u m p es a d elo t ives s e s e t or n a d o r ea lid a d e. Rolei n o
ch ã o d u r a n t e m u it o t em p o, a p er t a n d o o p eit o com os
b r a ços , gem en d o e gr it a n d o. As p a r ed es d o qu a r t o
p a r ecia m a p r oxim a r -s e d e m im , à m ed id a qu e o for r o s e
afastava . Pa r ecia es t a r a d ez qu ilôm et r os d e d is t â n cia .
Piqu ei d eit a d o n o fu n d o d a qu ele r et â n gu lo m in ú s cu lo,
olh a n d o p a r a cim a , ven d o a p or t a e a ja n ela qu e
p a r ecia m es t a r a cen t en a s d e m et r os a cim a d e m im . E u
es t a va a p er t a d o e p r es o n o fu n d o d o qu e er a , p a r a m im,
com o u m ca n u d in h o d e r efr es co, qu a d r a d o, qu e t inha
dez quilômetros de altura, sem saída.
E n t ã o, d e cim a , u m a n u vem n egr a , gr os s a e
lod os a a p a r eceu e com eçou a a ch a t a r o ca n u d o em
m in h a d ir eçã o. E u es t a va s u foca n d o. Ab r i a b oca p a r a
gr it a r , m a s n a d a s a ía a n ã o s er b olh a s d e s a n gu e. E u
estava arranhando a parede, tentando escapar, tentando
t r ep a r . Ma s m eu p es coço in s is t ia em ca ir d e la d o, e eu
s en t i m in h a ca b eça ch oca n d o-s e con t r a o s olo com u m
r u íd o com o o d a ca b eça d e Ma n n ie, qu a n d o, a o r ola r d e
meu colo, chocara-se contra a calçada de cimento.
A nuvem negra foi descendo, e eu fiquei deitado de
cos t a s , com a s m ã os e os p és es t en d id os p a r a cim a ,
t en t a n d o a fa s t á -la . E r a a n u vem d a m or te — m or t e —
m or t e... e vin h a b u s ca r -m e. Ou vi o ch ia d o s u a ve d o a r
es ca p a n d o d os m eu s p u lm ões qu e s e es va zia va m . Tive
n á u s ea s e t en t ei gr it a r , m a s s ó s a ír a m m a is b olh a s , e
en t ã o a qu ele gor golejo ca vo qu e ou vir a n o p eit o d e
Ma n n ie, qu a n d o o s a n gu e en ch er a s eu p u lm ã o e s u b ir a
p ela ga r ga n t a . E s cu t ei-o em m eu p r óp r io p eit o. E n t ã o, a
nuvem n egr a m e en volveu e ou vi u m a ga r ga lh a d a fa n -
t a s m a gór ica ecoa r p ela s p a r ed es d a qu ele ca n u d o
qu a d r a d o n o fu n d o d o qu a l eu es t a va . O eco r ep etiu-se
vezes s em con t a . MORTE . .. Mor t e .. Mor t e... E r a a
gargalhada do Diabo.
Qu a n d o a cor d ei, er a d ia . O s ol es t a va t en t a n d o
p en et r a r p ela m in h a ja n ela im u n d a . E u a in d a es t a va n o
ch ã o p a r a lis a d o, d olor id o, e en r egela d o. A p r im eir a cois a
qu e n ot ei for a m m in h a s m ã os , a in d a cob er t a s d e s a n gu e
endurecido.

Capítulo 9

NA F OS S A

TRÊ S DIAS ANTE S DA Pá s coa , eu e m a is t r ês d e


n os s o gr u p o es t á va m os n a es qu in a d a s Ru a s Au b u r n e
S t . E d wa r d , d efr on t e à Igr eja S t . E d wa r d e S t . Mich a el.
S a b ía m os qu e os p a d r es r eceb ia m m u it o d in h eir o
d u r a n t e a s m is s a s es p ecia is d a s em a n a s a n t a , e
estávamos planejando entrar na igreja.
Um p olicia l s a iu d o Dis t r it o, a t r a ves s ou a r u a e
viu-nos encostados na grade de ferro que rodeia a igreja.
Aproximou-s e d e n ós e d is s e: “Ca ia m for a , s eu s p or t o-
r iqu en h os p or cos .” Fica m os a li, a b r a ça n d o a gr a d e,
contemplando-o com olhos inexpressivos .
O gu a r d a r ep et iu : “Va ga b u n d os , já d is s e qu e
ca ia m for a !” Os ou t r os r a p a zes s e es p a lh a r a m m a s eu
n ã o m e m ovi. O gu a r d a olh ou -m e fixa m en t e: “E u d is s e
mexa-s e, va ga b u n d o; en t ã o, vá cir cu la n do.” Leva n t ou o
cassetete, como se fosse me bater.
Cu s p i n ele. Br a n d iu o ca s s et et e em m in h a d ir e-
çã o, m a s eu m e b a ixei, e es t e foi a t in gir a gr a d e. In ves t i
con t r a o p olicia l, e ele m e a ga r r ou p elo p es coço. E r a
d u a s vezes m a ior d o qu e eu , m a s eu o m a t a r ia , s e
p u d es s e. Pr ocu r ei a p a n h a r a fa ca , qu a n d o p er ceb i qu e
ele a b r iu o cold r e e es t a va t en t a n d o t ir a r o r evólver , a o
mesmo tempo que gritava, pedindo socorro.
Afastei-m e d ep r es s a e leva n t ei a s m ã os . “E u m e
entrego! Eu me entrego!”
Vá r ios p olicia is d er r a m a r a m -s e p ela p or t a d o
Distrito, e atravessaram a rua correndo. Agarraram-me e
arrastaram-m e p a r a a Delega cia , fa zen d o-m e s u b ir os
degraus e entrar no prédio.
O gu a r d a qu e lu t a r a com igo b a t eu com for ça n o
meu rosto. Senti na boca o sangue que saía dos lábios.
“Você é u m va len t ã o qu a n d o es t á a r m a d o, m a s
p or d en t r o é u m cova r d e com o t od o o r es t o d es s es t ir a s
sujos”, disse eu.
E le m e b a t eu ou t r a vez; fin gi qu e d es m a ia va e ca í
no chão.
“Levante-s e, p or co im u n d o. Des t a vez va m os a ju s -
tar as contas com você.”
E n qu a n t o eles m e a r r a s t a va m p a r a ou t r a s a la ,
ou vi o s a r gen t o es cr even t e m u r m u r a r : “Ach o qu e es s e
ca r a é lou co. Deve fica r p r es o a t é m ofa r , a n t es qu e m a t e
alguém.”
E u já for a p r es o m u it a s vezes , m a s eles n u n ca
con s egu ir a m m e s egu r a r p or m u it o t em p o. Nin guém
t es t em u n h a r a con t r a m im , p or qu e s a b ia qu e qu a n d o eu
saísse d a ca d eia h a ver ia d e m a t á -lo, ou os Ma u -Maus
matariam para mim.
Des s a vez eles m e leva r a m p a r a o ou t r o la d o d a
cid a d e, e coloca r a m -m e em u m a cela . O ca r cer eir o d eu -
m e u m em p u r r ã o, qu a n d o en t r ei n a cela . Vir ei-m e e
a r r em et i con t r a ele d a n d o s ocos . O h omem p u xou -me
p a r a o cor r ed or , e ou t r o gu a r d a m e s egu r ou , en qu a n t o
ele me esmurrava à vontade.
“A ú n ica m a n eir a d e t r a t a r es s es p ... é b a t er n eles
a t é m a t á -los”, d is s e ele. “S ã o u m a s ú cia d e p or cos s u jos
e fed or en t os . A ca d eia es t á ch eia d e n egr os , it a lia n os e
porto-r iqu en h os . Você é igu a lzin h o a o r es t o, e s e n ã o
en t r a r n a lin h a , va i a ca b a r d es eja n d o qu e es t ives s e
morto.”
Empurraram-m e d e n ovo p a r a a cela , e eu ca í n o
ch ã o d u r o, d ir igin d o-lh es p a la vr ões . “E s t á b om ,
vagabundo”, d is s e o ca r cer eir o a o fech a r a p or t a d a cela ,
“p or qu e você n ã o s e leva n t a e b r iga con os co a gor a ?
Você n ã o é t ã o d u r ã o?” Mor d i os lá b ios e n ã o r es p on d i,
mas sabia que iria matá-lo quando saísse.
No d ia s egu in t e o ca r cer eir o volt ou à m in h a
cela . Qu a n d o a b r iu a p or t a , jogu ei-m e d e n ovo con tra
ele, em p u r r a n d o-o d e volt a p a r a o cor r ed or . E le m e
b a t eu n a ca b eça com o m olh o d e ch a ves . S en t i o s a n gu e
correr de um corte no supercílio.
“Va m os , p od e b a t er em m im ”, gr it ei, “m a s u m d ia
vou à s u a ca s a e m a t o a s u a m u lh er e s eu s filhos.
Espere para ver.”
E u es t a va s en d o a cu s a d o a p en a s d e u m a p equena
contravenção, por ter resistido à prisão e desobedecido à
a u t or id a d e. Ma s es t a va p ior a n d o a m in h a p r óp r ia
s it u a çã o. O ca r cer eir o m e d eu u m s oco, joga n d o-m e d e
costas no chão da cela, e fechou a porta.
“Pois b em , ca ch or r o, você p od e a p od r ecer a í!” Meu
ju lga m en t o foi n a s em a n a s egu in t e. Fu i a lgem a d o e
m a r ch ei p a r a o t r ib u n a l. S en t ei-m e em u m a ca d eir a , e
um policial começou a ler as acusações.
O ju iz, u m h om em d e r os t o s ever o, d e cer ca d e
cin qü en t a a n os , qu e u s a va ócu los s em a r o, d is s e.
“E s p er e u m m in u t o: es t e r a p a z já n ã o es t eve n o b a n co
dos réus?”
“S im , m er it ís s im o”, r es p on d eu o p olicia l, “es t a é a
t er ceir a vez qu e ele é t r a zid o a o t r ib u n a l. Além d is t o, ele
t em vin t e e u m a p r is ões n a s u a folh a cor r id a , e tem s id o
a cu s a d o d e t u d o, d es d e r ou b o a t é a s s a lto a m ã o a r m a d a
e tentativa de homicídio.”
O ju iz vir ou -s e e olh ou pa ra m im : “Quantos
anos você tem, rapaz?”
Curvei-me na cadeira e fixei os olhos no chão.
“Levante-s e qu a n d o eu fa la r com você!” exp lod iu o
juiz.
Fiquei de pé e olhei para ele
“Per gu n t ei qu a n t os a n os você t em ”, r ep et iu ele
firmemente
“Dezoito”, respondi.
“Você t em d ezoit o a n os e já foi p r es o vin t e e u m a
vezes e já com p a r eceu a o b a n co d os r éu s t r ês vezes .
Por que seus pais não vieram com você?”
“Eles estão em Porto Rico”, respondi.
“Com quem você vive?”
“Com n in gu ém . Nã o p r ecis o d e n in gu ém . Vivo
sozinho.”
“Há quanto tempo vive sozinho?”
“Des d e qu a n d o ch egu ei a Nova Yor k , h á t r ês a n os
atrás.”
“Meritíssimo”, in t er r om p eu o oficia l d e ju s t iça , “ele
n ã o p r es t a . É o p r es id en t e d os Ma u -Ma u s . É o cen t r o d e
t od os os p r ob lem a s qu e t em os t id o n o con ju n t o
h a b it a cion a l. Nu n ca vim os u m r a p a z t ã o m a lva d o e
in cor r igível com o es t e. É com o u m a n im a l, e a ú n ica
cois a qu e s e p od e fa zer com u m ca ch or r o lou co é
enjaulá-lo. Gos t a r ia d e r ecom en d a r , m er it ís s im o, qu e
Vossa Exª. o colocasse na prisão até que ele completasse
vin t e e u m a n os . Qu em s a b e s e a t é en t ã o p od er ía m os
manter um pouco de ordem em Fort Greene.”
O juiz virou-se e olhou para o oficial de justiça:
“Você d iz qu e ele é com o u m a n im a l, n ã o é? Um
cachorro louco, não é assim ?”
“E xa t a m en t e, m er it ís s im o. E s e V. E xª ., s oltá-lo,
ele matará alguém antes do escurecer.”
“S im , cr eio qu e você t em r a zã o”, d is s e o ju iz,
olh a n d o p a r a m im ou t r a vez “Ma s p en s o qu e p r e-
cis a m os p elo m en os t en t a r d es cob r ir o qu e é qu e fa z
com qu e ele s eja com o u m a n im a l. Por qu e é t ã o
d ep r a va d o? Por qu e od eia , r ou b a , b r iga e m a t a ?
Cen t en a s d e r a p a zes com o ele p a s s a m p elos t r ib u nais
todos os dias, e creio que o Estado, tem, por assim dizer,
u m a ob r iga çã o d e t en t a r s a lva r a lgu n s d es t es r a p a zes .
Nã o a p en a s t r a n cá -los p elo r es t o d e s u a s vid a s . Cr eio
qu e b em n o fu n d o d o cor a çã o d es t e p er ver s o “cachorro
louco” há uma alma que pode ser salva.”
Virou-s e p a r a o oficia l d e ju s t iça : “Você a ch a
que devemos tentar ?”
“Nã o s ei, m er it ís s im o”, d is s e o p olicia l. “Estes
r a p a zes m a t a r a m t r ês p olicia is n os ú lt im os d ois
a n os , e t ivem os qu a s e cin qü en t a a s s a s s in a t os n a -
qu ele b a ir r o, d es d e qu e es t ou n a qu ela r on d a . S ó com -
preendem a linguagem da força. Estou certo de que.
se V. E xª . s olt á -lo, t er em os d e p r en d ê-lo d e n ovo Só
que da próxima vez poderá ser por assassinato .”
O juiz lançou os olhos à folha de papel que tinha à
sua frente.
“Cru z, n ã o é? Ven h a a qu i, Nick y Cr u z, e fiqu e d e
pé diante da mesa.”
Levantei-m e e fu i a t é on d e ele es t a va . S en t i qu e
meus joelhos começavam a tremer.
O ju iz d eb r u çou -s e s ob r e a m es a e olh ou -me
dentro dos olhos.
“Nicky, eu tenho um filho da sua idade. Ele vai
à es cola , vive em u m a b oa ca s a , em u m b a ir r o
a gr a d á vel. E le n ã o s e m et e em b a r u lh o. J oga b eisebol
n o t im e d a es cola e t em b oa s n ot a s . Nã o é u m ca ch or r o
lou co com o você A r a zã o é qu e t em a lgu ém qu e o a m a .
Pa r ece evid en t e qu e n in gu ém a m a você — e você
t a m b ém n ã o a m a a n in gu ém Nã o t em ca p a cid a d e p a r a
a m a r . Você es t á d oen t e, Nick y, e eu qu er o s a b er o
m ot ivo. Qu er o s a b er o qu e fa z você od ia r t a n t o. Você
n ã o é n or m a l com o os ou t r os r a p a zes . O oficia l t em
r a zã o. Você é u m a n im a l. Vive com o u m a n im a l e a ge
com o u m a n im a l. Devia t r a t á -lo com o a u m a n im a l, m a s
vou t en t a r d es cob r ir p or qu e você é t ã o a n or m a l. Fica r á
s ob a cu s t ód ia d o p s icólogo d o t r ib u n a l, o Dr . J oh n
Good m a n . Nã o es t ou qu a lifica d o p a r a d ecid ir s e você é
ou não um psicopata. Ele vai examiná-lo e dar a decisão
final.”
Sacudi a cabeça. Eu não sabia se ele iria me soltar
ou d eixa r n a cela , m a s com p r een d i qu e ele n ã o ia
mandar-me para a cadeia, pelo menos por enquanto.
“Ma is u m a cois a , Nick y”, d is s e o J u iz, “s e você
a r r a n ja r n ova s en cr en ca s , s e eu t iver u m a s ó qu eixa
contra você, se fizer qualquer coisa errada, saberei então
qu e é com p let a m en t e in ca p a z d e s egu ir or d en s , e a ceit a r
r es p on s a b ilid a d es , e s er á im ed ia t a m en t e en via d o p a r a
Elmira, para a colônia agrícola . Compreendeu?”
“S im , s en h or ”, r es p on d i. E fiqu ei s u r p r es o comigo
m es m o. E r a a p r im eir a vez qu e r es p on d ia a a lgu ém
dizendo “senhor”. Ma s p a r eceu -m e a cois a m a is cor r et a
a dizer naquele caso.
No d ia s egu in t e, logo d e m a n h ã , o p s icólogo d o
tribunal, Dr. John Goodman, entrou em minha cela. Era
u m h om en za r r ã o d e ca b elos p r em a t u r a m en t e gr is a lh os
n a s t êm p or a s , e u m a p r ofu n d a cica t r iz n a fa ce. O
cola r in h o d e s u a ca m is a es t a va ga s t o e os s a p a t os s em
brilho.
“Fu i en ca r r ega d o d e a com p a n h a r o s eu ca s o”,
d is s e ele, s en t a n d o-s e n o m eu ca t r e e cr u za n d o a s
pernas. “Is t o s ign ifica qu e t er em os d e p a s s a r a lgum
tempo juntos.”
“Está certo, grandão, seja como quiser.”
“E s cu t e, va ga b u n d o, con ver s o com vin t e s u jeitos
com o você t od os os d ia s . Veja com o fa la com igo, s en ã o
vai ser pior para você.”
Fiqu ei s u r p r een d id o com s eu s m od os r u d es , m a s
r ep liqu ei com a r r ogâ n cia : “Qu em s a b e qu er r eceb er u m a
visita dos Mau-Maus uma noite destas?”
An t es qu e p u d es s e m over -m e, o m éd ico h a via m e
agarrado pelo colarinho, e quase me levantou do chão.
“Deixe-m e d izer-lh e a lgo, es p ir r o. Pa s s ei qu a t r o
a n os n a s ga n gs e t r ês n os Fu zileir os Na va is , a n t es d e ir
p a r a a Fa cu ld a d e. E s t á ven d o es t a cica t r iz?” E le vir ou a
ca b eça p a r a qu e eu p u d es s e ver a p r ofu n d a cica t r iz qu e
ia d a p on t a d o s eu qu eixo a t é o cola r in h o d a ca m is a .
“Ga n h ei is t o n a s qu a d r ilh a s , m a s n ã o a n t es d e t er
m a t a d o s eis ou t r os p u lh a s com u m t a co d e b eis eb ol.
Agor a , s e qu er b a n ca r o va len t e, en con t r ou o h om em
certo.”
E le m e em p u r r ou p a r a t r á s . Tr op ecei n o ca t r e e
caí sentado. Cuspi no chão, mas não falei mais nada.
S u a voz volt ou a u m t om n or m a l qu a n d o d is s e:
“Am a n h ã d e m a n h ã t en h o d e fa zer u m a via gem à
m on t a n h a Bea r . Você p od e ir com igo, e en t ã o
conversaremos.
No d ia s egu in t e es t ive s ob o exa m e in for m a l d o
p s icólogo. S a ím os d a cid a d e e en t r a m os n o E s t a d o d e
Nova York. Era a minha primeira viagem fora da selva de
a s fa lt o, d es d e qu e ch ega r a d e Por t o Rico, t r ês a n os
a n t es . S en t i u m cer t o en t u s ia s m o, m a s p er m a n eci
amuado e arrogante, quando me fazia perguntas.
Dep ois d e u m a b r eve p a r a d a n a clín ica , levou-me
a o ja r d im zoológico, n o p a r qu e p ú b lico. An d a m os p elo
caminho que passava defronte às jaulas. Parei e observei
os a n im a is s elva gen s a n d a n d o p a r a lá e p a r a cá , d et r á s
das grades.
“Você gosta de zoológicos, Nicky ?” perguntou ele.
“Detesto”, respondi, dando as costas para as
jaulas e descendo caminho abaixo. “Ah, é? Por quê?”
“Od eio es s es b ich os fed or en t os . S em p r e a n d a n do
para lá e para cá. Sempre querendo sair.”
S en t a m os em u m b a n co d o p a r qu e, e con ver s a -
m os . O Dr . J oh n t ir ou a lgu n s ca d er n os d e u m a p a s t a , e
pediu-m e p a r a fa zer a lgu n s d es en h os . Ca va los . Va ca s .
Casas. Fiz uma casa com uma porta enorme na frente.
“Por qu e colocou u m a p or t a t ã o gr a n d e n a ca sa?”
perguntou ele.
“Pa r a o es t ú p id o p s iqu ia t r a p od er en t r a r ”, r es -
pondi .
“Não aceito isto. Dê-me outra resposta.”
“Pois b em , p a r a eu p od er s a ir d ep r es s a n o ca s o d e
alguém estar atrás de mim.”
“Muita gente desenha portas para entrar.”
“Eu não. Estou querendo sair.”
“Agora desenhe uma árvore”, disse ele.
Des en h ei u m a á r vor e. Pen s ei, en t ã o, qu e n ã o es -
tava certo ter uma árvore sem um passarinho, e por isso
desenhei um no alto da árvore.
O Dr . Good m a n olh ou p a r a o d es en h o e d is s e:
“Você gosta de pássaros, Nicky?”
“Detesto.”
“Você parece que tem ódio de tudo.”
“S im . Pod e s er qu e s im . Ma s d et es t o p á s s a r os
mais do que tudo.”
“Por quê ?” perguntou ele, “por que são livres ?”
Ou vi u m t r ovã o r ola n d o s u r d a m en t e n o céu , à
distância.
Aqu ele h om em es t a va com eça n d o a m e a m e-
d r on t a r com s u a s p er gu n t a s . Pegu ei u m lá p is e fiz u m
buraco no lugar da figura do pássaro.
“Então esqueça o passarinho. Já está morto.”
“Você p en s a qu e p od e livr a r -s e d e t od a s a s cois a s
de que tem medo, matando-as, não é?”
“Qu e d ia ch o você p en s a qu e é, s eu ch a r la t ã o
estúpido?” gritei.
“Pen s a qu e p od e m e fa zer d es en h a r u m a figu r a
est ú p id a , fa zer -m e a lgu m a s p er gu n t a s b ob a s , e s a ber
t u d o a m eu r es p eit o? E u n ã o t en h o m ed o d e n in gu ém .
Tod o m u n d o t em m ed o d e m im . Per gu n t e a os Bis h op s ,
eles lh e con t a r ã o. Nã o h á n en h u m a qu a d r ilh a d e Nova
Yor k qu e qu eir a en cr en ca com os Ma u -Ma u s . E u n ã o
t en h o m ed o d e n in guém.” Min h a voz s e eleva r a
febrilmente, enquanto o enfrentava.
O Dr . J oh n con t in u ou es cr even d o cois a s em s eu
bloco.
“Sente-s e, Nick y”, d is s e ele, leva n t a n d o os olh os ,
“não precisa tentar impressionar-me.”
“E s cu t e, ca r a , p a r a d e en ch er , s en ã o a ca b o com
você “
O r ib om b a r n o h or izon t e t or n ou -s e m a is for t e.
Con t in u ei d e p é à s u a fr en t e, t r em en d o. Dr . J oh n olh ou
p a r a cim a e com eçou a d izer a lgu m a cois a , m a s os
p in gos d e ch u va com eça r a m a ca ir com for ça n o
ca m in h o, a o n os s o la d o. E le s a cu d iu a ca b eça: “É
m elh or ir m os em b or a a n t es qu e fiqu em os m olh a d os ”,
disse.
Fech a m os a s p or t a s d o ca r r o exa t a m en t e n o
in s t a n t e em qu e a p r im eir a p a n ca d a for t e d e ch u va
s a lp ica va o p á r a -b r is a . O Dr . J oh n ficou s en t a d o
s ilen cios a m en t e d u r a n t e m u it o t em p o, a n t es d e d a r
partida no carro e sair para a estrada.
“E u n ã o s ei, Nick y”, d is s e ele, “n ã o s ei m es m o.” A
via gem d e volt a foi h or r ível. A ch u va b om b a r d ea va o
ca r r o s em com p a ixã o. O Dr . J oh n gu ia va
s ilen cios a m en t e. Eu es t a va p er d id o em m eu s
p en s a m en t os . Od ia va t er d e volt a r p a r a a cid a d e. A id éia
d e volt a r p a r a a ca d eia m e a m ed r on t a va . E r a
insuportável ficar enjaulado como um animal selvagem
A ch u va p a r ou , m a s o s ol já s e es con d er a qu a n do
p a s s a m os p ela s cen t en a s d e qu a r t eir ões d e a lt os
ed ifícios d e a p a r t a m en t o en ca r d id os . E u m e s en t ia com o
s e es t ives s e a fu n d a n d o em u m a fos s a . Gos t a r ia d e s a ir e
cor r er . Ma s , em lu ga r d e d ir igir-s e a o p r es íd io, o Dr .
J oh n d im in u iu a m a r ch a e en t r ou n a Av. La fa yet t e, em
direção ao conjunto habitacional de Fort Greene.
“Nã o va i m e leva r p a r a a ca d eia ?” p er gu n t ei,
confuso.
“Não. Tenho direito de trancá-lo ou soltá-lo.
Não acho que a cadeia vai lhe trazer nenhum benefício .”
“Boa , m eu ch a p a , a gor a você es t á n a m in h a ”, fa lei
rindo.
“Nã o, você n ã o com p r een d e o qu e eu qu er o d izer.
Acho que nada pode ajudá-lo!”
“Qu e é is s o, d ou t or , a ch a qu e n ã o h á es p er a n ça ?”
gargalhei.
E le es t a cion ou o ca r r o n a es qu in a d a Av La fayette
com Fort Greene.
“E xa t a m en t e, Nick y. Ten h o t r a b a lh a d o com r a -
p a zes com o você d u r a n t e a n os . E u vivi n u m gu et o. Ma s
é a p r im eir a vez qu e vejo a lgu ém t ã o d u r o, fr io e
selvagem como você. Não reagiu a nada que eu lhe disse.
Od eia a t u d o e a t od os , e t em m ed o d e t u d o qu e p os s a
ameaçar a sua segurança.”
Abri a porta e saí: “Olhe, doutorzinho, pode ir para
o inferno. Não preciso de você nem de ninguém .”
“Nicky”, disse ele, quando eu comecei a afastar-me
d o ca r r o, “qu er o s er b em cla r o : você es t á con denado.
Nã o t em es p er a n ça A m en os qu e m u d e, es t á n u m a
es t r a d a qu e o leva r á d ir et o à ca d eia , à ca d eir a elét r ica , e
ao inferno.”
“Ach a ? Vejo você lá en t ã o”, d is s e eu . “Onde?”
perguntou.
“No in fer n o, m eu ch a p a ”, r es p on d i, d a n d o u m a
risada.
E le s a cu d iu a ca b eça e a r r a n cou , p er d en d o-s e em
m eio à n oit e es cu r a . Ten t ei con t in u a r r in d o, m a s o s om
morreu na minha garganta.
Fiquei p a r a d o n a es qu in a com a s m ã os n os b olsos
d a ca p a . E r a m s et e h or a s d a n oit e, e a s r u a s es t a va m
ch eia s d e in con t á veis r os t os , p es s oa s d e p a s s os
a p r es s a d os .. a n d a n d o, a n d a n d o, a n d a n d o... E u m e s en t i
com o u m a folh a n o m a r d a h u m a n id a d e, s en d o leva d o
p a r a t od a s a s d ir eções p ela s m in h a s p r óp r ia s p a ixões
in s en s a t a s . Olh ei p a r a o p ovo. Tod o m u n d o s e m ovia .
Algu n s es t a va m cor r en d o. E s t á va m os em m a io, m a s o
ven t o er a fr io. O ven t o fu s t igou m in h a s p er n a s e es fr iou -
me por dentro.
As p a la vr a s d o p s icólogo con t in u a r a m s oa n d o em
m in h a m en t e com o u m d is co en gu iça d o: “O s eu ú n ico
caminho é a cadeia, a cadeira elétrica, e o inferno.”
E u ja m a is h a via olh a d o p a r a m im m es m o, a n tes.
S er ia m en t e, n ã o. Gos t a va d e olh a r p a r a m im m es m o n o
es p elh o. S em p r e for a u m r a p a z a s s ea d o, o qu e é u m
p ou co in com u m p a r a a m a ior ia d os p or t o-r iqu en h os d o
m eu b a ir r o. Difer en t em en t e d e qu a s e tod os os r a p a zes
da quadrilha, eu me orgulhava da forma como me vestia.
Gos t a va d e u s a r gr a va t a s e ca m is a s color id a s . S em p r e
p r ocu r a va con s er va r a s ca lça s b em p a s s a d a s , e u s a va
montes de loção no rosto. Não fumava muito, para evitar
o mau hálito produzido pelo cigarro.
Senti-m e, p or ém , s u jo p or d en t r o, r ep en t in a m en -
t e. O Nick y qu e eu via n o es p elh o n ã o er a o ver d a d eiro
Nick y. E o Nick y qu e eu es t a va ven d o a gor a er a s u jo...
imundo... perdido.
Da vit r ola a u t om á t ica n o b a r d o Pa p a J oh n ou via-
s e o s om gr it a n t e d e u m d is co d e m ú s ica p op u la r . O
t r â n s it o n a r u a er a in t en s o: u m ca r r o en cos t a d o n o
pára-ch oqu e d o ou t r o. As b u zin a s t oca va m , a p it os
s ilva va m , p es s oa s gr it a va m . Olh ei p a r a os s eu s r os t os
in exp r es s ivos e a n ôn im os . Nin gu ém s or r ia . Tod os
p a r ecia m a p r es s a d os . Algu n s m en d igos es t a va m
em b r ia ga d os . Na fr en t e d o b a r , a m a ior ia d os s u jeit os
es t a va m a con h a d a . Aqu ele er a o ver d a d eir o Br ook lin .
Aquele o verdadeiro Nicky...
Com ecei a s u b ir a r u a em d ir eçã o a o m eu qu a r to
n a For t Gr een e. Folh a s d e jor n a l leva d a s p elo ven t o
agarravam-s e à cer ca d e fer r o e à s gr a d es d e a ço d ia n t e
d a s loja s . Ha via ga r r a fa s qu eb r a d a s e la t a s d e cer veja
va zia s a o lon go d a ca lça d a . O ch eir o d e com id a s eb os a
d es cia a t é a r u a , e eu m e s en t i n a u s ea d o. A ca lça d a
t r em ia d eb a ixo d os m eu s p és , qu a n d o os t r en s
passavam matraqueando rumo às trevas desconhecidas.
Encontrei-m e com u m t r a p o d e velh a . E u d is se
“velha”, mas pelas costas não se podia dizer a sua idade.
E la er a b a ixa , m a is b a ixin h a d o qu e eu . Tin h a u m len ço
p r et o en r ola d o n a ca b eça , b em a p er t a d o. S eu ca b elo
amarelo-a ver m elh a d o, t in gid o r ep et id a s vezes , a p a r ecia
n a s b eir a d a s . Ves t ia u m a velh a ja qu et a d e lã d e
m a r in h eir o, s eis n ú m er os m a ior qu e o t a m a n h o cer t o.
S u a s p er n a s m a gr a s , en volt a s em ca lça s n egr a s ,
p a r ecia m p a lit os a b a ixo d o ca s a co. Ca lça va s a p a t os d e
homem, sem meias.
Odiei-a. Ela simbolizava toda a sujeira e imundície
d a m in h a vid a . Pr ocu r ei a fa ca n o b ols o. Des t a vez eu
não es t a va b r in ca n d o. Fiqu ei im a gin a n d o com qu e for ça
p r ecis a r ia golp eá -la p a r a qu e a lâ m in a a t r a ves s a s s e o
ca s a co gr os s o e a t in gis s e s u a s cos t a s . Im a gin a r qu e o
s a n gu e got eja r ia d a b a r r a d o ca s a co e s e em p oça r ia n a
rua, deu-me uma sensação pegajosa de calor.
Na qu ele m om en t o u m ca ch or r in h o veio cor r en do
r u a a b a ixo em n os s a d ir eçã o, e d es viou -s e d ela . E la
virou-s e e olh ou p a r a ele com olh os va zios e m or t iços .
Reconheci-a com o u m a d a s p r os t it u t a s d eca d en t es qu e
vivia m n o m eu qu a r t eir ã o. Pela s u a a p a r ên cia , p elos
olh os s em icer r a d os , in exp r es s ivos , p er ceb i qu e es t a va
“baratinada”.
S olt ei a fa ca , volt a n d o a p en s a r em m im m es m o, e
com ecei a u lt r a p a s s á -la . Ao fa zê-lo, vi s eu s olh os va zios
ob s er va n d o u m b a lã o ver m elh o vivo, leva d o p elo ven t o
para o meio da rua.
Um b a lã o. Meu p r im eir o in s t in t o foi cor r er p a r a o
meio da rua e pisá-lo. Que ódio senti dele. Era livre.
Rep en t in a m en t e, u m a gr a n d e on d a d e com p a ixão
m e d om in ou . Id en t ifiqu ei-m e com a qu ela es t ú p id a b ola
flu t u a n t e. É es t r a n h o qu e a p r im eir a vez em qu e t ive
pied a d e em t od a a m in h a vid a , foi p or u m ob jet o
inanimado sendo levado pelo vento, sem destino.
As s im , em vez d e d es cer a t é o m eio d a r u a e
estourá-lo, u lt r a p a s s ei a m u lh er e a p er t ei o p a s s o p a r a
acompanhar o balão que voava e saltava pela rua suja.
Parecia es t r a n h a m en t e d es loca d o n a qu ele lu ga r
im u n d o. Ao s eu r ed or h a via p a p éis e lixo t a m b ém
s op r a d os p elo ven t o fr io. Na ca lça d a via m -s e ga r r a fa s d e
vin h o qu eb r a d a s e la t a s d e cer veja a m a s s a d a s . De
a m b os os la d os d a r u a fica va m a s p a r ed es d e con cr et o e
p ed r a s n egr a s , d es b ot a d a s , d a p r is ã o in es ca p á vel on d e
eu m or a va . E a li, n o m eio d e t u d o a qu ilo, es ta va u m a
b ola ver m elh a , livr e, s en d o leva d a p ela s for ça s in vis íveis
do vento.
O qu e h a via n a qu ele es t ú p id o b a lã o qu e m e in -
t er es s a va ? Ap er t ei a in d a m a is o p a s s o p a r a a com panhá-
lo. Surpreendi-me desejando que o balão não batesse em
u m p ed a ço d e vid r o e es t ou r a s s e, em b or a s ou b es s e qu e
ele n ã o d u r a r ia m u it o. E r a m u it o d elica d o. Mu it o lim p o;
t en r o e p u r o d em a is p a r a con t in u a r a exis t ir n o m eio
daquele inferno.
Prendia a r es p ir a çã o ca d a vez qu e ele s a lt a va n o
a s fa lt o, es p er a n d o o es t ou r o fin a l e in evit á vel, m a s
con t in u ou s eu t r a jet o s a lt it a n t e p elo m eio d a r u a . Fiqu ei
pensando: “Pod e s er qu e ele con s iga . Pod e s er qu e
ch egu e a t é o fim d o qu a r t eir ã o, e s eja leva d o p elo vento,
p a r a a p r a ça , livr e. Afin a l d e con t a s , é p os s ível qu e ele
tenha chance de sobreviver .”
E u es t a va qu a s e r eza n d o p a r a qu e t a l a con t e-
ces s e. Por ém , a d ep r es s ã o volt ou qu a n d o p en s ei n a
p r a ça . Aqu ela p r a ça m a l-ch eir os a e es t ú p id a . O qu e
a con t ecer á s e ele ch ega r a o ja r d im ? E d ep ois ? Nã o h á
n a d a p a r a ele a li. S er á a t ir a d o, p elo ven t o, con t r a a
cer ca en fer r u ja d a e exp lod ir á . Ou m es m o qu e con s iga
p a s s a r p or cim a d a cer ca e en t r e n o gr a m a d o, ca ir á em
cim a d e a lgu m es p in h o n a gr a m a ou n os a r b u s t os , e lá
se vai...
“Ou en t ã o”, p en s ei com m eu s b ot ões , “m es m o qu e
a lgu ém o p egu e, va i levá -lo p a r a o s eu im u n d o
a p a r t a m en t o, on d e fica r á a p r is ion a d o p a r a o r es t o d a
vid a . Nã o h á es p er a n ça . Nã o h á es p er a n ça p a r a ele —
nem para mim.”
S u b it a m en t e, s em a vis o p r évio, u m ca r r o d a p o-
lícia s u r giu n a es qu in a . An t es qu e eu p u d es s e in t er -
r om p er m in h a ca d eia d e p en s a m en t os , ele es t a va em
cim a d o b a lã o. Ou vi u m p equ en o es t ou r o, qu a n d o o
ca r r o, s em com p a ixã o, es m a gou -o con t r a o ch ã o. O
ca r r o s u m iu — d es ceu a r u a e vir ou a es qu in a . Nem
p er ceb eu o qu e a con t ecer a , e m es m o qu e s ou b es s e, n ã o
s e im p or t a r ia . Ma s eu qu is cor r er a t r á s d o ca r r o e gr it a r :
“Mega n h a s im u n d os , n ã o en xer ga m ?” Qu er ia m a t á -los
por me terem esmagado no meio da rua.
S en t i u m d es â n im o m or t a l. Pa r ei n o m eio-fio e
olhei p a r a a r u a es cu r a , p or ém n ã o h a via s in a l d o b a lã o.
S eu s r es t os s e m is t u r a r a m com o lixo e o ca s ca lh o, n o
m eio d a r u a , e s e id en t ifica r a m com tod a a s u jeir a d e
Brooklin.
Volt ei e s en t ei-m e n a es ca d a . A velh a m er et r iz
d es a p a r ecer a n a s t r eva s . O ven t o a in d a a s s ob ia va e os
p a p éis e o lixo con t in u a r a m s en d o s op r a d os r u a a b a ixo,
e a t ir a d os con t r a a cer ca qu e r od ea va a p r a ça . Ou t r o
m et r ô m a t r a qu eou d eb a ixo d a t er r a , e r et u m b ou n a s
t r eva s . E u es t a va com m ed o. E u , Nick y. E s t a va com
m ed o. E s t a va t r em en d o, n ã o d e fr io, m a s p or d en t r o.
Coloquei a cabeça entre as mãos, e pensei: “Não adianta.
E s t ou con d en a d o. É exa t a m en t e com o o Dr . J oh n d is s e.
Não há esperança para o Nicky; seu destino é a cadeia, a
cadeira elétrica e o inferno.”
Depois daquilo nada mais me importava. Devolvi a
p r es id ên cia d a qu a d r ilh a a Is r a el. E s t a va n a fos s a ; n ã o
p od ia d es cer m a is fu n d o. Nã o h a via m a is es p er a n ça . E u
p od ia m u it o b em fa zer com o t od os os ou t r os n o gu et o, e
r ecor r er à a gu lh a . E s t a va ca n s a d o d e fu gir . O qu e o ju iz
d is s er a qu e m e fa lt a va ? Am or ! Ma s on d e p od er ia
encontrar amor dentro da fossa?

Capítulo 10

O E NCONT R O

E RA UMA TARDE QUE NTE d e s ext a -feir a , em


ju lh o d e 1 9 5 8 . Is r a el, Líd ia e eu es t á va m os s en t a d os n a
es ca d a d efr on t e a o m eu a p a r t a m en t o, qu a n d o a lguns
dos garotos vieram correndo rua abaixo.
“Ei, o que está acontecendo ?” gritei para eles.
“É u m cir co qu e es t á lá n a es cola ”, r es p on d eu u m
dos meninos.
Acon t ecim en t os ext r a or d in á r ios s ã o r a r os em
Br ook lin . E s t a é u m a d a s r a zões qu e t em os p a r a cr ia r
n os s os p r óp r ios d iver t im en t os , em for m a d e lu tas,
n a r cót icos e s exo. Qu a lqu er cois a er a m elh or d o qu e
fica r a li s en t a d o. Por is s o, a t r a ves s a m os o ja r d im em
direção à escola da Rua St. Edward.
Qu a n d o ch ega m os , u m a gr a n d e m u lt id ã o s e for -
m a r a em fr en t e a o Pos t o Policia l n °. 6 7 . Ab r im os ca -
min h o a t r a vés d o p ovo, d er r u b a n d o a o ch ã o os m eninos
pequenos, para ver o que estava acontecendo.
Um h om em s e a ch a va d e p é s ob r e o h id r a n t e, t o-
cando “Ava n t e, Ava n t e, ó Crentes” em u m p is t om . E le
ficou r ep et in d o a m es m a m ú s ica , vezes s em con t a . Ao
seu lado, de pé na calçada, estava outro homem.
O in d ivíd u o m a is m a gr o, m a is fr a co e m a is in s ig-
n ifica n t e qu e eu já vir a . S ob r e eles , p r es a a u m m a s tro,
drapejava uma bandeira americana.
O p is t on is t a fin a lm en t e p a r ou , e a t u r b a com eçou
a gr it a r p a r a ele. Qu a s e cem r a p a zes e m oça s s e h a via m
reunido, bloqueando a rua e a calçada.
O m a gr in h o t in h a u m a b a n qu et a d e p ia n o qu e
t r ou xer a d a es cola . S u b iu n ela e a b r iu u m livr o p r et o.
Com eça m os a gr it a r e a gr a ceja r . E le ficou a li, com a
ca b eça cu r va d a e vim os qu e es t a va com m ed o. A gr itaria
tornou-se maior. A multidão era compacta.
De r ep en t e, p er ceb i qu e t u d o s ilen cia r a . Des viei a
a t en çã o d e Líd ia e olh ei p a r a o h om em d e p é s ob r e o
b a n qu in h o. E le cu r va r a a ca b eça e s egu r a r a o livr o
p r et o, a b er t o. Um a s en s a çã o d e m ed o p er cor r eu o m eu
cor p o, a m es m a qu e cos t u m a va s en t ir qu a n d o, em ca s a ,
meu pai praticava a feitiçaria. Tudo ficou estranhamente
qu iet o; a t é os ca r r os n a Av. Pa r k , a m eio qu a r t eir ã o d a li,
p a r ecia m n ã o es ta r fa zen d o r u íd o a lgu m . E r a u m
silêncio esquisito. Fiquei amedrontado.
O velh o m ed o, qu e eu n ã o s en t ir a d es d e qu e m e
ju n t a r a a os Ma u -Ma u s , r ep en t in a m en t e m e d om in ou .
E r a o m ed o qu e eu p r ecis a r a com b a t er n o t r ib u n a l,
d ia n t e d o ju iz; er a o m ed o qu e s en t ir a n a n oit e em qu e
for a p a r a ca s a , d ep ois d a en t r evis t a com o psicólogo d o
t r ib u n a l. Da s ou t r a s vezes eu p u d er a a fa s t á -lo, ou fu gir
d ele. Ma s a gor a , ele s e a ga r r a va a o m eu cor a çã o e a o
m eu cor p o, e eu p od ia s en t i-lo t om a r p os s e d a m in h a
p r óp r ia a lm a . Qu er ia es ca p a r — m a s t od o m u n d o es t a va
escutando — esperando.
De r ep en t e, o m a gr icela leva n t ou a ca b eça e, n u -
m a voz t ã o fr a ca qu e m a l s e p od ia ou vir , com eçou a ler
n o livr o p r et o: “Por qu e Deu s a m ou o m u n d o d e t a l
m a n eir a qu e d eu o s eu Filh o u n igên it o p a r a qu e t od o o
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”
Eu t r em ia d e m ed o. Aqu ele s u jeit o d evia s er u m a
es p écie d e p a d r e, ou feit iceir o, ou cois a p a r ecid a . E le
es t a va fa la n d o d e a m or . E u con h ecia o “amor”. E r a
exp er ien t e n is s o. E s t en d i a m ã o e b elis qu ei a coxa d e
Líd ia . E la olh ou p a r a m im : “E s cu t e o qu e ele d iz,
Nicky.” Fech ei a ca r a e volt ei os olh os d e n ovo p a r a o
magricela. Ele estava falando a respeito de pedirmos que
a con t eces s e u m m ila gr e. E u n ã o s a b ia o qu e er a u m
m ila gr e, m a s t od o m u n d o es t a va es cu t a n d o, e eu n ã o
queria ser diferente.
O h om em t in h a p a r a d o d e fa la r e es t a va a li d e p é,
es p er a n d o a lgu m a cois a a con t ecer . Dis s e a s egu ir qu e
qu er ia fa la r com os p r es id en t es e vice-presid en t es d a s
qu a d r ilh a s . Com ecei a a ch a r a qu ele h om em p er igos o.
E le es t a va in va d in d o o n os s o m u n d o e eu n ã o qu er ia
que nenhum estranho se intrometesse.
E le con t in u ou : “S e vocês s ã o t ã o gr a n d es e t ã o
fortes, não terão medo de vir aqui e apertar a mão de um
pregador magricela, não é?”
Houve um movimento na multidão. Alguém gritou,
lá d e t r á s : “E i Bu ck , o qu e é qu e h á , es t á com m ed o?”
Referiam-s e a Bu ck , o p r es id en t e d os Ch a p la in s , n os s a
quadrilha irmã.
Ou vi u m b u lício a tr á s , n a m u lt id ã o, e olh ei: a li
vin h a Bu ck a o la d o d e S t a ge e m a is d ois m em b r os
d a qu ela ga n g d e r a p a zes d e cor . Dir igir a m -s e p a r a o
p r ega d or m a gr in h o, qu e a gor a d es cer a d a b a n qu et a e os
esperava.
Fiqu ei m a is n er vos o. Nã o es t a va gos t a n d o d a qu ilo,
d e for m a a lgu m a . Dei u m a olh a d a a o m eu r ed or , e
p a r ecia qu e t od o m u n d o es t a va s or r in d o e a b r in d o
caminho para Buck e Stage passarem.
E les s e cu m p r im en t a r a m , e d ep ois o p r ega d or e o
p is t on is t a leva r a m Bu ck , S t a ge e os ou t r os d ois r a pazes
p a r a a en t r a d a d a es cola . Fica r a m lá con ver s a n d o; eu
m e a fa s t ei d e Líd ia , e m e a p r oxim ei d e Is rael. “O qu e
es t ã o fa zen d o ?” p er gu n t ei-lh e. Is r a el n ã o r es p on d eu .
Tinha um ar estranho.
De r ep en t e, eu vi t od os eles s e a joelh a n d o a li
m es m o, n a r u a . Bu ck e S t a ge t in h a m t ir a d o o ch a p éu e
o seguravam, ajoelhados ali na calçada.
Qu a n d o s e leva n t a r a m , volt a r a m p a r a o m eio d a
multidão. Eu gritei para Buck: “Ei, Buck, você é crente
agora?” Bu ck er a u m r a p a z cor p u len t o; t in h a n a qu ela
ép oca u n s oit en t a qu ilos e cer ca d e 1 ,8 0 m d e a lt u r a .
Virou-s e e olh ou p a r a m im d e u m a for m a qu e eu n u n ca
vira antes. Seu rosto estava sério, muito sério. Seu olhar
p en et r ou p r ofu n d a m en t e n o m eu , e com p r een d i o qu e
qu er ia d izer , em b or a n ã o en t en d es s e o qu e lh e
a con t ecer a . E s t a va d izen d o, com os olh os : “É m elh or
você cair fora, Nicky; isto não é hora de piadas.”
S u b it a m en t e, a lgu ém gr it ou p a r a m im : “E i, Nick y,
s er á qu e a qu eles n egr in h os vã o d eixa r você p r a t r á s ?
Está com medo de ir à frente, também?”
Is r a el m e cu t u cou e a cen ou com a ca b eça em d i-
r eçã o a os d ois h om en s . “Va m os , Nick y, va m os .” Vi qu e
ele es t a va fa la n d o s ér io, e m e a fa s t ei. Ha via a lgo d e
sinistro naquilo tudo... algo perigoso e enganador. Fazia-
me lembrar de algo de que eu tinha terror mortal.
A t u r b a com eçou a va ia r e a gr it a r : “E i, veja o
nosso líder. Ele está com medo do pregador magrinho.”
Is r a el p u xou -m e p elo p a let ó. “Va m os , Nick y.” E u
n ã o t in h a es colh a : fu i à fr en te e m e coloqu ei d ia n t e d os
dois homens.
Israel d eu a m ã o p a r a eles . E u a in d a es t a va com
m ed o, r et r a íd o. O h om em m a gr in h o veio a t é m im e
es t en d eu a m ã o. “Nick y, m eu n om e é Da vi Wilk er s on .
Sou um pregador da Pensilvânia.”
Olh ei b em p a r a ele e d is s e: “Vá p r o in fer n o, p r e-
gador.”
“Você não gosta de mim, Nicky”, falou ele, “mas eu
p en s o d ifer en t e. Gos t o d e você. E n ã o é s ó is t o: vim p a r a
lhe falar sobre Jesus, que também ama você.”
E u m e s en t i com o u m a n im a l a p a n h a d o n u m a
a r m a d ilh a , p r es t es a s er en ja u la d o. At r á s d e m im es tava
a m u lt id ã o. Na m in h a fr en t e, a fa ce s or r id en t e d a qu ele
h om em fr a n zin o fa la n d o d e a m or . Nin gu ém m e a m a va .
Nin gu ém ja m a is m e a m a r a . E n qu a n t o es t a va a li d e p é,
r ecor d ei m e d a qu ela oca s iã o, t a n t os a n os a n t es ,
qu a n d o ou vir a m in h a m ã e d izer com ód io: “Nã o gos t o
d e você, Nick y.” Pensei: “Qu a n d o n os s a p r óp r ia m ã e n ã o
ama a gente, ninguém nos ama — nem pode amar.”
O p r ega d or con t in u a va a li d e p é, s or r in d o, com a
m ã o es t en d id a . E u s em p r e m e or gu lh a r a d e n ã o t er
m ed o. Ma s , es t a va com m ed o. Com m u it o m ed o d e qu e
a qu ele h om em fos s e m e p ôr n u m a ja u la . E le ia r ou b a r -
m e os a m igos . Ia t r a n s t or n a r t u d o em m in h a vid a , e p or
isso eu o odiava.
“S e ch ega r p er t o d e m im , p r ega d or , eu t e m a t o”,
d is s e eu , r et r a in d o-m e, b u s ca n d o a p r ot eçã o d o p ovo.
E s t a va a m ed r on t a d o e n ã o s a b ia com o en fr en t a r a
situação.
O p a vor m e d om in a va . S en t ia -m e qu a s e em p â -
n ico. Ros n ei a lgo p a r a ele e p u s -m e a a n d a r a t r a vés d a
multidão. “E s t e h om em é com u n is t a , t u r m a ”, gr it ei.
“Saiam daqui. Ele é comunista.”
E u n ã o s a b ia o qu e er a u m com u n is t a , m a s s a b ia
qu e er a a lgo qu e t od os d ever ia m com b a t er . E u es t a va
fu gin d o, e b em s a b ia d is s o, m a s é qu e n ã o con s egu ia
en fr en t a r u m a s it u a çã o com o a qu ela . S e ele t ives s e m e
atacado com uma faca, teria enfrentado. Se tivesse vindo
r oga n d o e s u p lica n d o, t er ia r id o d ele, e lh e d a r ia u m
s oco n os d en t es . Ma s ele veio d izen d o: “Gos t o d e você.”
E eu n u n ca t iver a qu e en fr en t a r a lgu ém qu e s e
aproximasse de mim com afeto.
At r a ves s ei a m u lt id ã o com a ca b eça leva n t a d a e o
p eit o es t u fa d o. Ch egu ei a t é Líd ia , a ga r r ei-a p elo b r a ço, e
levei a com igo; com eça m os a s u b ir a Ru a S t . E d wa r d ,
afastando-nos da escola.
Algu n s r a p a zes n os s egu ir a m . Des cem os a o p orão
e ligu ei a vit r ola a o m á xim o. E s t a va t en t a n d o a b a fa r o
s om d a qu ela s p a la vr a s : “J es u s a m a você.” Por qu e u m
fa t o com o a qu ele m e d eixa r a t ã o con fu s o? Da n cei u m
p ou co com Líd ia , b eb i m eia ga r r a fa d e vin h o b a r a t o e
fu m ei u m m a ço d e ciga r r os . Fu m ei m u it o — a cen d en d o
u m ciga r r o n o t oco d o ou t r o. Líd ia p er ceb eu qu e eu
es t a va n er vos o. “Nick y, qu em s a b e você d ever ia
con ver s a r com o p r ega d or . S er cr is t ã o p od e n ã o s er t ã o
r u im com o você p en s a .” Olh ei-a ca r r a n cu d o: ela b a ixou
a cabeça.
E u m e s en t ia m is er á vel. E com m ed o. De r ep en te,
h ou ve u m a a git a çã o n a p or t a ; leva n t ei os olh os e vi o
p r ega d or m a gr icela en t r a n d o. E le p a r ecia
com p let a m en t e d es loca d o, a li n a qu ele p or ã o s u jo, com o
t er n o b on it o, ca m is a b r a n ca e gr a va t a lim p a . Per guntou
a um dos rapazes : “Onde está o Nicky ?”
O r a p a z a p on t ou p a r a o lu ga r on d e eu m e a ch a va
s en t a d o com o r os t o es con d id o n a s m ã os , o ciga r r o
pendente dos lábios.
Da vi a t r a ves s ou a s a la com o s e o lu ga r lh e
p er t en ces s e. Tin h a u m s or r is o a ilu m in a r -lh e a fa ce.
E s t en d eu a m ã o ou t r a vez, d izen d o: “Nick y, eu a p enas
qu er ia a cer t a r a s u a m ã o e...” An t es qu e p u d es se
terminar, dei-lhe um tapa na cara — com toda força. Ele
t en t ou for ça r u m s or r is o, m a s er a evid en t e qu e eu o
im p r es s ion a r a . A s egu ir , p or ém , con s egu iu con t r ola r -se
e ou t r a vez o m ed o b r ot ou d en t r o d e m im , a p on t o d e
s en t ir o es t ôm a go em b r u lh a d o. Fiz a ú n ica cois a qu e
sabia fazer, para me vingar: cuspi nele.
“Nick y, cu s p ir a m em J es u s t a m b ém , e ele or ou :
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”
“S a ia d a qu i! Vá p r o in fer n o!” gr it ei, fu r ios o, e
empurrei-o para a porta.
“Nick y, a n t es d e s a ir , qu er o d izer s ó u m a cois a :
Jesus ama você.”
“Ca ia for a , p a d r e d oid o. Nã o s a b e o qu e fa la . Vou
lh e d a r vin t e e qu a t r o h or a s p a r a d eixa r m eu t er ritório;
depois, te mato.”
O Rev. Wilk er s on r et ir ou -s e, a in d a s or r in d o.
“Lembre-se, Nicky, Jesus ama você.”
E r a m a is d o qu e eu p od ia s u p or t a r . Pegu ei a
ga r r a fa d e vin h o va zia qu e es t a va n o ch ã o e a t ir ei-a no
a s s oa lh o es p a t ifa n d o-a . Nu n ca m e s en t ir a t ã o fr u s trado,
tão desesperado, tão insatisfeito.
S a í p or t a a for a , b a t en d o os p és . O m eu or gu lh o
b or b u lh a va d en t r o d e m im . Per ceb i qu e t od os os ou t r os
r a p a zes s a b ia m qu e a qu ele s u jeit o con s egu ir a m e
impressionar. A ú n ica m a n eir a qu e con h ecia p a r a en -
ganá-los era agir rudemente. Se desse demonstração das
m in h a s ver d a d eir a s em oções , m es m o p or u m in s tante,
sentia que perderia todo o respeito da quadrilha.
“Aqu ele m a cu m b eir o es t ú p id o, m a lu co”, d is s e eu ;
“s e ele volt a r a qu i, p on h o fogo n ele.” Ba t i a p or t a a t r á s
d e m im e p er m a n eci n a ca lça d a , olh a n d o-o p ela s cos t a s ,
en qu a n t o ele s e r et ir a va a p r es s a d o. “Convencido”,
p en s ei. Ap es a r d e t u d o, lá n o fu n d o eu s a b ia qu e h a via
algo de verdadeiro naquele homem estranho.
Voltei-m e, e a n d ei n a d ir eçã o op os t a . Pa r ei n o s a -
lã o d e b ilh a r , com ecei u m a p a r t id a , t en t a n d o con cen -
trar-m e n a p on t a d o m eu t a co. Por ém t u d o o qu e eu
con s egu ia ou vir em m in h a m en t e er a a voz d o p r ega d or
magricela, e as palavras : “Jesus ama você.”
“Qu e m e importa”, p en s ei; “ele n ã o va i m e a s -
sustar. Ninguém me mete medo.”
Fiz a s d u a s joga d a s s egu in t es e a t ir ei o t a co n a
mesa. “J es u s a m a você”, a s p a la vr a s r es s oa va m n os
m eu s ou vid os . Dis s e a os r a p a zes qu e es t a va d oen t e e
arrastei-me de volta ao meu apartamento.
Tin h a m ed o d e es t a r r ea lm en t e d oen t e. Nu n ca m e
r ecolh er a t ã o ced o. E r a m vin t e e d u a s e t r in t a e eu
sempre esperava até três ou quatro horas da madrugada
p a r a ir d or m ir . Fech ei a p or t a e t r a n qu ei-a . Tr em ia a o
a t r a ves s a r o qu a r t o e a o a cen d er o p equ en o qu eb r a -luz
s ob r e a m es a , a o la d o d a ca m a . Pegu ei m eu r evólver n o
guarda-r ou p a , coloqu ei d u a s b a la s n o t a m b or , e d eixei-o
t a m b ém n a m es a . Ch u t ei for a os s a p a t os e t r oqu ei d e
r ou p a . Deixei o m a ço d e ciga r r os s ob r e a m es a , d eit ei, e
fiqu ei olh a n d o p a r a o for r o. Ou via a s p a la vr a s d e Da vi
Wilk er s on r ep et in d o-s e s em ces s a r : “J es u s a m a você,
Nicky, Jesus ama você.”
Levantei a mão, apaguei a luz e acendi um cigarro.
Nova m en t e, fu m ei u m ciga r r o a t r á s d o ou t r o. Nã o
con s egu ia r ep ou s a r . Vir a va -m e d e u m la d o p a r a ou tro.
Nã o con s egu ia d or m ir . As h or a s p a s s a va m . Fin a lm en t e,
levantei-m e, a cen d i a lu z e olh ei o r elógio : cin co d a
madrugada. Eu me revirara na cama a noite inteira.
Levantei-m e, ves t i-m e e gu a r d ei o r evólver n o
guarda-r ou p a , n ova m en t e. Pegu ei os ciga r r os , d es ci os
d ois la n ces d e es ca d a s e a b r i a p or t a d a fr en t e d o p r éd io
de apartamentos. O céu tinha começado a ficar cinzento.
À d is t â n cia , ou via m -s e os s on s d a gr a n d e cid a d e, qu e
bocejava e se espreguiçava, voltando à vida.
Sentei-m e n os d egr a u s d o p r éd io, com a ca b eça
n a s m ã os . “J es u s a m a você... J es u s a m a você... J es u s
ama você.”
Ouvi um carro parar em frente ao apartamento e a
p or t a b a t er . S en t i o p es o d a m ã o d e a lgu ém em m eu
om b r o. Leva n t ei a ca b eça e vi o p r ega d or fr a n zin o d e p é,
d ia n t e d e m im . E s t a va a in d a s or r in d o, e d is s e: “Oi,
Nick y. Você s e lem b r a d o qu e lh e fa lei on t em à n oit e?
Tive von t a d e d e volt a r e d izer -lh e ou t r a vez : Nick y,
Jesus ama você.”
Fiquei em pé de um salto e fiz um movimento para
atingi-lo. Da vi t in h a cer t a m en t e p er ceb id o, p ois p u lou
p a r a t r á s , p a r a for a d o m eu a lca n ce. Fiqu ei r os nando
com o u m a n im a l p r on t o p a r a o b ot e. E le olh ou -m e b em
n os olh os , e d is s e: “Você p od e m e m a t a r , Nick y. Você
p od e m e cor t a r em m il p ed a ços e jogá -los n a r u a . Ma s ,
ca d a p ed a ço con t in u a r ia gr it a n d o: “Jesu s a m a você”.
Nunca poderá escapar disto.”
E u t en t ei in t im id á -lo com m eu a s p ect o b elicos o,
m a s ele con t in u ou fa la n d o: “Nick y, n ã o t en h o m ed o d e
você. Você fa la gr os s o, m a s p or d en t r o é exa t a mente
igu a l a t od os n ós . E s t á com m ed o. E s t á ca n s a d o d os
seus pecados. Sente-se solitário. Mas Jesus ama você.”
Algo d eu u m es t a lo em m im : com o é qu e ele s a b ia
qu e eu m e s en t ia s olit á r io? E u n ã o s a b ia d o qu e ele
falava quando mencionou pecado; tinha medo de admitir
m eu s t em or es . Ma s , com o ele s a b ia qu e eu m e s en t ia
solit á r io ? A qu a d r ilh a es t a va s em p r e a o m eu la d o.
Tin h a t id o t od a s a s ga r ot a s qu e d es eja r a . As p es s oa s
t in h a m m ed o d e m im — a o m e ver em , ela s d es cia m d a
ca lça d a e a n d a va m p elo m eio d a r u a . E u er a o ch efe d a
ga n g. Com o a lgu ém p od ia s a b er qu e m e s en t ia is ola do?
E s t a er a , p or ém , a ver d a d e. E a qu ele p r ega d or zin h o
sabia disso.
Ten t ei p a r ecer es p er t o : “Você a ch a qu e va i m e
t r a n s for m a r d e u m m om en t o p a r a ou t r o?” d is s e eu ,
es t a la n d o d ois d ed os . “Você a ch a qu e vou a t en d ê-lo, vou
p ega r u m a Bíb lia e a n d a r p or a í p r ega n d o, e o p ovo va i
com eça r a d izer : Nick y Cr u z — a n jo — s a n t o ?” Ma s eu
compreendi que ele estava decidido. E que era sincero.
“Nick y, você n ã o d or m iu m u it o es t a n oit e, n ã o é ?”
Fiqu ei d e n ovo a d m ir a d o. Com o é qu e ele s a b ia qu e eu
não dormira ?
“E u t a m b ém n ã o d or m i m u ito es t a n oit e, Nick y.
Fiquei acordado a maior parte da noite, orando por você.
An t es d is s o, con ver s ei com a lgu n s d os r a p a zes d a qu i.
E les m e d is s er a m qu e n in gu ém p od e a p r oximar-s e d e
você. Tod os t êm m ed o d e você. Olh e, Nick y, eu vim p a r a
dizer-lh e qu e a lgu ém s e im p or t a com você: J es u s . E le
a m a você.” Olh ou -m e en t ã o b em fir m e n os olh os : “Um
d ia , e n ã o d em or a m u it o, Nick y, o E s p ír it o d e Deu s
com eça r á a op er a r em você. Um d ia , Nick y, você va i
deixar de fugir, e vai correr para ele.”
E u n ã o d is s e n a d a . Leva n t ei-m e, d ei-lh e a s cos tas
e en t r ei n o p r éd io, fech a n d o a p or t a a t r á s d e m im . S u b i
a es ca d a , en t r ei n o m eu a p a r t a m en t o e s en t ei-m e n a
ca m a . Olh a n d o p ela ja n ela , vi qu e o ca r r o d ele s e for a .
No les t e, o céu es t a va com eça n d o a fica r r os a d o. Um
en or m e ed ifício, d o ou t r o la d o d a r u a , b loqu ea va a
m in h a vis ã o d o h or izon t e. Por ém , s u b it a m en t e, a s s im
com o s en t im os a b r is a m a r ít im a qu a n d o a in d a es t a m os
a m u it os qu ilôm et r os d o m a r , t ive u m a s en s a çã o d e qu e
h a via , n a vid a , a lgo m a is d o qu e a qu ilo qu e eu con h ecia .
Ma is d o qu e a qu eles ed ifícios a lt ís s im os , d e con cr et o —
aquelas prisões de vidro e pedra.
Pen s ei n a s p a la vr a s d ele: “Um d ia você va i p a r a r
d e fu gir e cor r er á p a r a ele.” E u n em s a b ia qu em er a ele,
m a s , s en t a d o a li n a ca m a , olh a n d o p a r a a r u a ch eia d e
lixo e ou vin d o o r u íd o d os ca m in h ões qu e d es cia m
r a n gen d o e r u gin d o, p en s ei qu e ele d evia s er a lgo
s em elh a n t e à es t r ela m a t u t in a qu e a in d a b r ilh a va n o
céu qu e s e color ia com a s p r im eir a s t in t a s d o a r r eb ol.
Talvez... Algum dia...
Esse dia estava mais perto do que eu pensava.
Nos d ia s qu e s e s egu ir a m , eu n ã o p u d e es ca p a r a
u m en con t r o com o h om em qu e r ep r es en t a va Deu s . E r a
Is r a el qu e m e a t or m en t a va con s t a n t em en t e. Tod a vez
qu e n os en con t r á va m os , t in h a d e ou vir a lgu m a cois a a
respeito de Deus.
“Diacho, Is r a el, s e você n ã o p á r a d e fa la r n es s e
negócio de Deus, eu te mato.”
Ma s Is r a el con t in u ou fa la n d o s ob r e ele, e eu
s u s p eit ei qu e es t ives s e s e en con t r a n d o com Da vi
Wilk er s on à s es con d id a s . E u n ã o es t a va gos t a n d o
d a qu ilo. Ach a va qu e a qu ele h om em p od ia a t é mesmo
destruir a nossa quadrilha. Agora que Mannie se fora, só
Is r a el fica r a . E a t é ele p a r ecia es t a r s e d es via n d o p a r a
ou t r a d ir eçã o. As s u a s con s t a n t es r efer ên cia s a Da vi
Wilk er s on e o s eu in s is t en t e d es ejo d e m e for ça r a fa la r ,
levaram-me às raias do desespero.
Nã o a gü en t a va m a is . Na vés p er a d o d ia d a in -
d ep en d ên cia d os E s t a d os Un id os , qu a t r o d e ju lh o,
qu a n d o t od a s a s qu a d r ilh a s d evia m con ver gir p a r a o
p a r qu e d e Con ey Is la n d , Is r a el p a s s ou a n oit e comigo.
Fa lou a t é t a r d e d a n oit e, p r ocu r a n d o con ven cer -m e a
que não fosse a Coney Island na noite seguinte, e em vez
d is s o, qu e fos s e con ver s a r com Da vi Wilk er s on . Ta p ei os
ou vid os , p r ocu r a n d o a b a fa r a s u a con ver s a in ces s a n t e.
Ma is t a r d e, ele ca iu n o s on o. Deit ei-m e n o leit o, olh a n d o
p a r a o for r o, n o es cu r o, qu a s e con s u m id o d e m ed o. E u
t in h a d e p a r a r com a qu ilo. Tin h a d e fa zer Is r a el ca la r .
Não suportava mais ouvir falar de Davi Wilkerson.
Ta t ea n d o s ob o colch ã o, en con t r ei o ca b o d e
m a d eir a d o fu r a d or d e gelo qu e eu t in h a es con d id o a li.
Ou via Is r a el r es s on a n d o p r ofu n d a m en t e, n a ca m a a o
la d o. Qu a n t o m a is p en s a va n ele, m e a m ola n d o a
respeito de Deus, mais furioso ficava.
Não agüentei mais. “Isto vai ensinar você a não me
en ch er m a is ”, gr it ei, en qu a n t o a r r a n ca va o fu r a d or d e
gelo d e s ob o colch ã o e o la n ça va em d ir eçã o à s cos t a s
de Israel.
O m eu gr it o a cor d ou -o e ele s e leva n t ou r a p id a -
m en t e, exa t a m en t e n a h or a em qu e o fu r a d or d e gelo
penetrava profundamente no colchão, atrás dele.
Arranquei-o, e t en t ei b r a n d i-lo ou t r a vez, gr it a n do:
“E u m a n d ei você ca la r a b oca e n ã o fa la r m a is s ob r e
Deus. Por que você não se calou? Por quê? Por quê ?”
Is r a el m e a ga r r ou e com eça m os a lu t a r cor p o a
cor p o, ca in d o n o ch ã o, en qu a n t o eu o golp ea va cega -
mente.
E le m e d eit ou d e cos t a s e ca iu s ob r e m im , s en -
tando-s e s ob r e o m eu p eit o, s egu r a n d o-m e a s m ã os
contra o assoalho, sobre a minha cabeça.
“Por que você não parou?” continuei gritando.
“O qu e é qu e h á com você?” Is r a el gr it a va , t en -
t a n d o m a n t er -m e s egu r o. “Você es t á lou co. S ou eu . S eu
amigo. O que há com você?”
Repentinamente, p er ceb i qu e ele es t a va ch or a n do,
enquanto gritava e lutava comigo. Lágrimas corriam pela
sua face. “Nicky, Nicky. Pára. Eu sou seu amigo. Não me
ob r igu e a m a ch u cá -lo. Por fa vor , p á r a . E u s ou s eu
amigo. Eu gosto de você.”
E le h a via d it o a qu ilo! Aqu ela s p a la vr a s ca ír a m
s ob r e m im com o á gu a gela d a . E le h a via fa la d o exa -
t a m en t e d a m a n eir a com o Da vi Wilk er s on fizer a . Rela xei
a p r es s ã o s ob r e o fu r a d or d e gelo e ele a r rancou-o d a
m in h a m ã o. E u n u n ca vir a Is r a el ch or a r . Por qu e
chorava agora?
Ficou com o furador de gelo suspenso sobre o meu
r os t o. Aga r r a va -o com t a n t a for ça qu e os n ós d os s eu s
d ed os s u r gia m b r a n cos n a p en u m b r a . E s t a va t r êm u lo
p ela t en s ã o m u s cu la r . Por u m m om en t o p en s ei qu e ia
golpear-m e n a ca b eça com o fu r a d or , m a s d ep ois a t ir ou -
o r a ivos a m en t e p a r a u m la d o. Ain d a es t a va ch or a n d o
quando me soltou e jogou-se na cama.
E u r olei n o ch ã o, fr u s t r a d o, con fu s o e exa u s t o. O
qu e h a via d e er r a d o com igo ? Ten t a r a m a t a r o m eu
melhor amigo !
Fu gi d o qu a r t o e s u b i os d egr a u s qu e leva va m a o
t elh a d o d o ed ifício. Lá for a es t a va es cu r o e a b a fado.
Cr u zei a la je d ir igin d o-m e p a r a o lu ga r on d e o velh o
Gon za les gu a r d a va a s s u a s p om b a s em u m a ga iola . Ab r i
a ga iola e p egu ei u m a p om b a . As ou t r a s es voa ça r a m ,
debateram-se, e fugiram na noite.
Segurei a pomba bem apertada contra o meu peito
nu, dirigi-me para perto do tubo de ar, e sentei-me.
Pá s s a r os ! E u os od ia va . Tã o livr es ! Ó, Deu s , com o
eu od ia va os qu e er a m livr es . Da vi Wilk er s on er a livr e.
Is r a el a p r oxim a va -s e d a lib er d a d e. E u es t a va s en t in d o
is s o. Aqu ele p á s s a r o er a livr e, m a s eu es t a va p r es o n a
minha gaiola de ódios e temores.
Meu s d ed os s e a p er t a r a m em t or n o d a ca b eça d a
pomba, esticando-lhe o pescoço. “Não estou com medo.”
O p á s s a r o d eu u m p ia d o cu r t o e a b a fa d o e s en t i
s eu cor p o t r em er , qu a n d o os os s os d o p es coço s e
separaram. “Veja, mãe, eu não estou com medo.”
Per d i o con t r ole. Tor ci-lh e o p es coço p a r a d ia n t e e
p a r a t r á s , a t é qu e s en t i a p ele e os os s os s e s epararem;
d ep ois , com u m for t e r ep elã o, s ep a r ei com p let a m en t e a
cabeça do corpo.
O s a n gu e qu en t e jor r ou n a s m in h a s m ã os , p in gou
n os m eu s joelh os e cor r eu p ela la je d e con cr et o. Mir ei a
ca b eça en s a n gü en t a d a n a m in h a m ã o, e gr it ei: “Agora,
você não está livre. Ninguém é livre.”
At ir a n d o lon ge a ca b eça d a p om b a , es m a gu ei
con t r a a la je, o cor p o a in d a t r êm u lo. Por fim , a qu ele
p a s s a r in h o d a n a d o es t a va m or t o; n u n ca m a is a s -
sombraria meus sonhos.
Fiqu ei n o t elh a d o, d or m in d o e a cor d a n d o in t er -
m it en t em en t e. Ca d a vez qu e d or m ia , o p es a d elo volt a va ,
m a is h or r ível d o qu e a n t es . Ao a m a n h ecer , volt ei
para meu quarto. Israel se fora.
Pa s s ei a m a ior p a r t e d o d ia s egu in t e p r ocu r a n do-
o. Fin a lm en t e en con t r ei-o s en t a d o s ozin h o n o p orão
on d e r ea lizá va m os a s n os s a s “festinhas”. Tod os os
outros rapazes haviam ido a Coney Island.
“E i, ca r a , d es cu lp e p elo qu e a con t eceu on t em à
noite”, comecei.
“Esqueça”, r es p on d eu Is r a el com um s or r is o
amarelo.
“Nã o, ca r a , eu s in t o m es m o. Nã o cos t u m o fa zer
isso. Acho que alguma coisa está errada comigo.”
Is r a el leva n t ou -s e e fin giu d a r -m e u m s oco n o
queixo. “Certo, meu chapa; somos iguais — malucos.”
Pa s s ei o r es t o d a t a r d e com ele. E r a a p r im eir a vez
em três anos que eu não ia a Coney Island no dia quatro
de julho.
Du r a n t e a s egu n d a s em a n a d e ju lh o d e 1 9 5 8 ,
Is r a el m e p r ocu r ou e fa lou a r es p eit o d a gr a n d e r eu nião
qu e Da vi Wilk er s on ir ia r ea liza r n a Ar en a S t . Nich ola s .
De fa t o, ele vier a con ver s a r com Is r a el e con vid a r os
Mau-Ma u s p a r a a r eu n iã o. Ha ver ia u m ôn ib u s es p ecia l
p a r a n ós , d efr on t e a o Pos t o Policia l n .° 6 7 , e t er ía m os
a s s en t os r es er va d os n os p r im eir os b a n cos d o a u d it ór io.
Israel d is s er a a Da vi Wilk er s on qu e leva r ia os Ma u -
Maus.
Men eei a ca b eça e com ecei a s u b ir os d egr a u s d o
p r éd io d o m eu a p a r t a m en t o. E u n ã o qu er ia n a d a com
a qu ilo. On d a s d e t er r or com eça r a m a r ola r s ob r e m im ,
n ova m en t e, e s en t i-m e tã o s u foca d o qu e t in h a
dificuldade de falar.
“E i, ca r a ”, ch a m ou Is r a el qu a n d o volt ei-m e p a r a
sair, “você não é covarde, é?”
Is r a el m e a t in gir a n a ú n ica fa lh a d a m in h a a r -
madura — m eu ú n ico p on t o fr a co. Volt ei-m e p a r a ele:
“Nick y n ã o t em m ed o d e n in gu ém ... n em d a quele
pregadorzinho... nem de você... nem mesmo de Deus.”
Is r a el ficou a li com u m p equ en o s or r is o b r in cando
n o s eu r os t o s im p á t ico. “Pa r ece qu e você es t á com
medo de alguma coisa. Então, por que não quer ir?”
Lem b r ei d e Bu ck e S t a ge a joelh a d os n a ca lça d a ,
d ia n t e d a es cola . Tin h a cer t eza d e qu e s e a qu ilo p odia
a con t ecer a eles ... A ú n ica cois a qu e eu s a b ia er a fu gir
— con t in u a r fu gin d o. Ma s , cor r er a gor a , em fa ce d o
d es a fio d e Is r a el, d a r ia a im p r es s ã o d e qu e es t a va com
medo. Com medo mesmo.
“A que horas chega o ônibus?” perguntei.
“S et e d a n oit e”, r es p on d eu Is r a el. “A r eu n iã o
começa às sete e trinta. Você vai ?”
“Cla r o, m eu ch a p a ! Você p en s a qu e s ou cova r d e ?
Va m os leva r a t u r m a t od a lá e p ôr fogo n a quela
espelunca.”
Is r a el s or r iu e d es ceu r u a a b a ixo, gin ga n d o. Virei-
me e s u b i os d egr a u s em d ir eçã o a o m eu a p a r t a mento,
três andares acima. Sentia-me doente.
Fechei a porta atrás de mim, e joguei-me de costas
n a ca m a . Pr ocu r ei u m “pacau”. Qu em s a b e s e a
m a con h a a ju d a r ia . Nã o t in h a n en h u m , p or is s o fu m ei
um cigarro comum.
Os pensamentos inundaram minha mente, como a
á gu a cor r en d o p or u m a com p or t a qu e t r a n s b or d a .
Estava aterrorizado! O cigarro tremeu e as cinzas caíram
n a m in h a ca m is a , in d o p a r a r s ob r e os len çóis s u jos d a
ca m a . Tin h a m ed o d e p ega r a qu ele ôn ib u s . Det es t a va a
idéia d e a b a n d on a r n os s os d om ín ios . S ó d e p en s a r em
s a ir d os a ca n h a d os lim it es d o t er r it ór io com qu e es t a va
fa m ilia r iza d o, u m t er r or d es m ed id o n a s cia n o m eu
cor a çã o. Tin h a m ed o d e m e en con t r a r em m eio a u m a
gr a n d e m u lt id ã o, d e s er en golid o p or ela e m e t or n ar
u m a b olh a — n a d a . S a b ia qu e, n a a r en a , t er ia d e fa zer
algo para chamar a atenção sobre mim.
Acim a d e t u d o, p or ém , eu es t a va com m ed o d o
que vira diante da escola, aquele dia. Tinha medo de que
a lgu ém ou a lgu m a cois a m a ior e m a is p od er os a d o qu e
eu m e for ça s s e a ca ir d e joelh os d ia n t e d o p ovo e m e
fizes s e ch or a r . Tin h a ver d a d eir o h or r or d e lá gr im a s .
E la s s im b oliza va m fr a qu eza , fr a ca s s o, es t u p id ez e
cr ia n cice. E u n u n ca m a is ch or a r a d ep ois d os oit o a n os
de idade. Algo fizera Israel chorar. Mas, eu — nunca.
Ma s , s e eu n ã o fos s e, s er ia ch a m a d o d e cova r d e
por Israel e pelo resto da turma. Eu não tinha escolha.
Fa zia m u it o ca lor n a qu ela n oit e d e ju lh o, em qu e
lot a m os u m ôn ib u s . Ha via d ois h om en s d e t er n o e
gr a va t a , qu e d evia m m a n t er a or d em . Ma s n a d a
conseguiram. O barulho no ônibus era ensurdecedor.
E u m e s en t i m elh or p or es t a r n o m eio d a m inha
ga n g. E r a a s olid ã o d o m eu qu a r t o qu e m e d ep r im ia . No
ôn ib u s er a d ifer en t e. Ma is d e cin qü en t a Ma u -Maus
es t a va m com p r im id os d en t r o d ele. Os m on it or es , a flit os ,
t en t a r a m m a n t er a or d em , m a s fin a lm en t e d es is t ir a m e
n os d eixa r a m à von t a d e. A t u r m a ficou s e es m u r r a n d o,
gr it a n d o p a la vr ões , a b r in d o ja n ela s , fu m a n d o, b eb en d o
vin h o, p u xa n d o a ca m p a in h a , e gr it a n d o p a r a o ôn ib u s
partir.
Qu a n d o ch ega m os à Ar en a , a b r im os a p or t a d e
em er gên cia e a lgu n s ch ega r a m m es m o a p u la r p ela s
ja n ela s . Ha via vá r ia s m ocin h a s n a fr en t e d o p r éd io,
u s a n d o b lu s a s ju s t a s e “shorts”. De t od os os la d os
ouviam-s e gr it os com o : “E i, b on eca , m e d á u m p edaço?
“Ven h a com igo, va m os fa zer u m a “festinha” d ivertida”.
Algu m a s d a s m en in a s ju n t a r a m -s e a n ós , qu a n d o
entramos.
Is r a el e eu fom os à fr en t e d a t r op a . Um p or t eir o
t en t ou fa zer -n os p a r a r n a p or t a in t er ior . Pod ía m os ver
qu e, lá d en t r o, p es s oa s s e volt a va m e olh a va m p a r a n ós ,
quando irrompemos no saguão.
“E i, ca r a , d eixa a gen t e en t r a r !” d is s e Is r a el. “Nós
s om os a ga n g. Os Ma u -Ma u s . O p r óp r io p a d r e n os
convidou. Tem lugar reservado para nós.”
Lá n a fr en t e, u m m em b r o d os Ch a p la in s n os viu ,
levantou-s e e gr it ou : “E i, Nick y, d es ce a qu i, ca r a . E s t es
lu ga r es s ã o p a r a vocês .” E m p u r r a m os o in d ecis o e
es p a n t a d o p or t eir o p a r a u m la d o, e en t r a m os
empavonados na Arena.
E s t á va m os ves t id os com os n os s os u n ifor m es d e
Mau-Ma u . Nen h u m d e n ós t ir ou o ch a p éu p r et o. Des -
fila m os p elo cor r ed or a b a ixo, b a t en d o for t e n o a s soalho
com n os s a s b en ga la s , gr it a n d o e a s s ob ia n d o p a r a a
multidão.
Olh a n d o p a r a o p ovo, p u d e ver m em b r os d e qu a -
d r ilh a s r iva is . Ha via Bis h op s , GGI, b em com o a lgu n s
Ph a n t om Lor d s d o p a r qu e d a Av. Bed for d . A a r en a
es t a va qu a s e ch eia e con t in h a t od os os ingredientes
p a r a u m con flit o em gr a n d e es ca la . Afin a l d e con t a s ,
isso não seria mau.
O b a r u lh o er a t er r ível. S en ta m os e com eça m os a
p a r t icip a r , a s s ob ia n d o, gr it a n d o e b a t en d o com a s
bengalas no chão.
E m u m d os la d os d a p la t a for m a , u m a jovem co-
m eçou a t oca r o ór gã o. Um jovem p or t o-r iqu en h o le-
vantou-s e, d eu u m m u r r o n o p eit o com a s d u a s m ã os ,
jogou a ca b eça p a r a t r á s e gr it ou : “Ó, J es u -u -u s ! S a lve
a m in h a a lm a gr a n d e e en ca r d id a .” Ca iu d e n ovo n a
ca d eir a en t r e va ia s e ga r ga lh a d a s es t r on d os a s d e t odas
as quadrilhas.
Vá r ios r a p a zes e m oça s for a m p a r a p er t o d o ór gão
e com eça r a m a r equ eb r a r . As m en in a s b a m b olea va m a s
ca d eir a s n u m r it m o d u a s vezes m a is r á p id o d o qu e a
m ú s ica , e os r a p a zes gin ga va m a o r ed or d ela s . Ap la u s os
e gr it os d e a p r ova çã o s a u d a r a m a s u a p r oeza . As cois a s
estavam começando a sair dos limites.
De r ep en t e, u m a jovem d ir igiu -s e a o cen t r o d o
p a lco. Colocou -s e a t r á s d o m icr ofon e, a s m ã os u n id a s
diante de si, esperando o barulho diminuir.
Aumentou. “Ei, boneca, requebra um pouco mais”,
gritou a lgu ém . “Va m os m a r ca r u m en con t r o, qu er id a ?”
Um r a p a z m a gr o, qu e eu n u n ca t in h a vis t o, levantou-se,
fech ou os olh os , es t en d eu os b r a ços , e d is s e, n u m t om
efem in a d o : “Mamãe!” A t u r b a a u m en t ou os a p la u s os e
assobios.
A m oça com eçou a ca n t a r . Mes m o d e n os s a p o-
sição privilegiada, na terceira fileira, era impossível ouvir
a s u a voz a cim a d a b a lb ú r d ia em qu e es t a va a m u lt id ã o.
E n qu a n t o ela ca n t a va , vá r ios r a p a zes e ga r ot a s
levantaram-s e d e s eu s lu ga r es e com eça r a m a gir a r e a
d a n ça r . As ga r ot a s , com “shorts” b em cu r t os , e os
r a p a zes com ja qu et a s Ma u Ma u , s a p a t os p on t u d os e
ch a p éu s d e p on t a , cob er t os d e fós for os e com u m a
estrela prateada na frente.
A m oça t er m in ou o s eu câ n t ico e olh ou n er vos a -
m en t e em d ir eçã o a os b a s t id or es . Com eça m os a a cla mar
e a p la u d ir e p ed ir ou t r a ca n çã o. Con tu d o, ela s a iu d o
p a lco e d e r ep en t e o p r ega d or m a gr icela a va n çou p a r a o
microfone.
E u n ã o o vir a d es d e a qu ele en con t r o d e m a d r u -
ga d a , vá r ia s s em a n a s a n t es . Meu cor a çã o d eu u m s a lt o
e o t er r or volt ou , com o a in u n d á -lo. E r a com o u m a
n u vem n egr a qu e p en et r a va em t od os os r eca n t os d a
m in h a p er s on a lid a d e. Is r a el es t a va d e p é. “E i, Da vi!
E s t ou a qu i. Veja , eu d is s e qu e vir ia . E olh e qu em es t á
aqui”, disse ele, apontando para mim.
Eu sabia que tinha de fazer algo ou iria arrebentar
d e m ed o. Fiqu ei d e p é e gr it ei: “E i, p r ega d or , o qu e é qu e
você vai fazer: converter-nos, ou o quê ?”
Os Ma u -Ma u s a com p a n h a r a m em ga r ga lh a d a s e
eu m e s en t ei d e n ovo, s en t in d o-m e m elh or . E les a in d a
r econ h ecia m a m in h a a u t or id a d e. Ap es a r d e s en t ir -me
petrifica d o d e t er r or e t er a b d ica d o a p r es id ên cia em
fa vor d e Is r a el, a in d a er a o líd er d eles e a in d a r ia m d a s
minhas piadas. Estava de novo no controle da situação.
O Rev. Wilk er s on com eçou a fa la r : “E s t a é a
ú lt im a n oit e d e n os s a ca m p a n h a p a r a a m ocid a d e d e
Nova Yor k . Hoje va m os fa zer u m a cois a d ifer en t e. Vou
p ed ir a os m eu s a m igos , os Ma u -Ma u s , p a r a t ir a r em a
coleta.”
Ir r om p eu o p a n d em ôn io. Os m em b r os d e t od a s a s
qu a d r ilh a s p r es en t es n o a u d it ór io con h ecia m a n os s a
r ep u t a çã o. Ped ir a os Ma u -Ma u s p a r a t ir a r em a coleta
er a com o p ed ir qu e J a ck , o E s t r ip a d or , s er vis s e d e a m a -
seca. O pessoal começou a rir e a gritar.
Ma s eu es t a va d e p é em u m s egu n d o. E s t iver a
es p er a n d o u m a op or t u n id a d e p a r a m e m os t r a r , p a r a
ch a m a r a a t en çã o d e t od os s ob r e m im , d e m a n eir a
espetacular. Ch ega r a a h or a . Nã o p od ia im a gin a r qu e o
p r ega d or ir ia ch a m a r -n os , m a s s e ele qu er ia , n ós
realmente o faríamos.
In d iqu ei ou t r os cin co, in clu s ive Is r a el. “Você, você,
você.. va m os .” Nós s eis m a r ch a m os p a r a a fr en t e e n os
a lin h a m os d efr on t e a o p a lco. At r á s d e n ós o a u d it ór io
ficou em silêncio — silêncio mortal.
Da vi Wilk er s on cu r vou -s e e en t r egou a ca d a u m
d e n ós u m a gr a n d e ca ixa d e p a p elã o. “Agora”, d is s e,
“qu er o qu e vocês s e en fileir em a qu i d ia n t e d a p la t a -
for m a . O ór gã o va i t oca r e vou p ed ir a o p ovo p a r a vir à
fr en t e e d a r a s u a ofer t a . Qu a n d o t er m in a r , qu er o qu e
vocês d êem a volt a p or a qu ela cor t in a e s u b a m a o p a lco.
Eu esperarei até que tragam a coleta.”
E r a b om d em a is p a r a s er ver d a d e. Nin gu ém d u -
vid a va d o qu e ir ía m os fa zer . Qu a lqu er s u jeit o qu e n ã o
a proveitasse uma situação daquelas seria um bobo.
A colet a foi gr a n d e. Os cor r ed or es es t a va m ch eios
d e gen t e qu e s e d ir igia à fr en t e. Mu it os d os a d u lt os
d er a m n ot a s gr a n d es e ou t r os d er a m ch equ es . S e n ós
ía m os r eceb er a ofer t a , eu r es olvi qu e ela d ever ia s er
b em b oa . Algu n s d os m em b r os d a s qu a d r ilh a s vier a m à
fr en t e, r equ eb r a n d o e d a n ça n d o p elo cor r ed or . Algu n s
n ã o p r et en d ia m p or d in h eir o n a ca ixa , m a s t ir a r .
Qu a n d o is t o a con t ecia , eu p u n h a a m ã o n o b ols o com o
s e fos s e a ga r r a r u m a fa ca e d izia : “E i, es p er e um
m in u t o, m eu ch a p a . Você s e es qu eceu d e p ôr a lgu m a
coisa.”
E les com eça va m a r ir , a t é p er ceb er em qu e eu fa -
la va s ér io. “Ra p a z, o p a d r e d is s e : d ê! Você va i d a r , ou
preciso fazer com que os rapazes o tirem de você ?”
Quase todos fizeram alguma contribuição.
Quando todos tinham vindo à frente, acenei com a
ca b eça e n ós m a r ch a m os p elo la d o d ir eit o d o a u d itório,
a t r a ves s a n d o a cor t in a qu e cob r ia a p a r ed e. Bem s ob r e
a s n os s a s ca b eça s es t a va u m let r eir o en or m e, em let r a s
ver m elh a s , es cr it o : “SAÍDA” Pod ia s er vis t o p or t od os , e
t ã o logo d es a p a r ecem os p or d et r á s d a s cor t in a s , a s
ga r ga lh a d a s com eça r a m . No com eço er a m a p en a s
r is in h os r ep r im id os . Pou co a p ou co, com eça m os a ou vi-
los a u m en t a r em n u m cr es cen d o, a t é qu e t od o o
auditório estava contorcendo-se de rir do pobre pregador
que fora logrado pelos Mau-Maus.
Reunimo-n os em cír cu lo, a t r á s d a cor t in a . Os r a -
p a zes olh a r a m p a r a m im com gr a n d e exp ect a t iva , es -
p er a n d o qu e eu lh es d is s es s e o qu e fa zer . E u p od ia d izê-
lo com os olh os . E s t a va m es p er a n d o u m s in a l. u m
piscar d e olh os em d ir eçã o à s a íd a , o qu e s ign ifica r ia :
“Va m os cor r er . Va m os p ega r es t e d in h eir o e d es a p a r ecer
daqui.”
Todavia, algo dentro de mim estava me arrastando
em ou t r a d ir eçã o. O p r ega d or m e es colh er a e
d em on s t r a r a con fia n ça n a m in h a p es s oa . E u p od ia fazer
o qu e a tu r b a es p er a va d e m im , ou o qu e ele es p er a va
qu e eu fizes s e. A con fia n ça d o p r ega d or a cen d eu u m a
fa ís ca em m eu ín t im o. E m vez d e p is ca r os olh os em
d ir eçã o d a p or t a d e s a íd a , s a cu d i a ca b eça : “Não.
Venham”, d is s e eu . “Va m os leva r es t e s a qu e p a r a o
magricela.”
Os r a p a zes qu a s e n ã o a cr ed it a va m , m a s t in h a m
d e fa zer o qu e eu lh es or d en a va . Ha via d ois r a p a zes n a
m in h a fr en t e, qu a n d o com eça m os a s u b ir os d egraus
p or t r á s d a p la t a for m a . Um d eles t ir ou u m a n ot a d e
vinte da caixa e meteu-a no bolso da jaqueta.
“E i, você! Qu e d ia ch o p en s a qu e es t á fa zen d o ?
Devolva esse dinheiro. Pertence ao padre.”
Eles olharam para mim, incrédulos.
“E i, Nick y, n ã o fiqu e n er vos o. Veja qu e m on t e.
Nin gu ém va i fica r s a b en d o... Va m os ! Há b a s t a n t e p a r a
todos nós e para ele também.”
Met i a m ã o n o b ols o e n u m m ovim en t o r á p id o
s a qu ei a m in h a fa ca . Br a n d in d o a lâ m in a a b er t a , d is se:
“Meu ch a p a , is t o va i s er s eu cem it ér io, s e você n ã o
devolver a gaita.”
Nã o h ou ve m a is d is cu s s ã o. E le d evolveu h u m il-
demente, à caixa, a nota roubada.
“E s p er a u m m in u t o; a in d a n ã o t er m in ou ”, d is s e
eu. “Quanto dinheiro você tem no bolso, meninão?”
“Or a , Nick y, p u xa vid a ”, ga gu ejou ele. “E s t e d i-
n h eir o é m eu . Min h a m ã e m e d eu p a r a com p r a r u m a
calça.”
“Quanto?” p er gu n t ei d e n ovo, a p on t a n d o a p on ta
brilhante da faca para o seu pomo de Adão.
E le ficou ver m elh o, en fiou a m ã o n o b ols o e t irou
duas notas de dez e uma de cinco. Eu disse: “Na caixa.”
“Meu ch a p a , você es t á lou co, ou o qu ê? Min h a
velh a va i m e p ela r vivo, s e eu p er d er es t e d in h eir o.” E le
estava quase chorando.
“Bem , eu vou lh e d izer u m a cois a , m en in ã o: eu
vou t e p ela r vivo a gor a m es m o, s e você n ã o ob ed ecer . Na
caixa !”
E le olh ou p a r a m im ou t r a vez, com in cr ed u lid a d e.
O p u n h a l con ven ceu -o d e qu e fa la va s ér io. Am a s s ou a s
notas e atirou-as na caixa.
“Agora vamos”, disse eu.
Ma r ch a m os em fila p a r a o p a lco. Um gr u p o d e
r a p a zes com eçou a va ia r . Pen s a va m qu e n ós ir ía m os
en ga n a r o p r ega d or e es t a va m d ecep cion a d os p or qu e
n ã o t ín h a m os fu gid o com o d in h eir o, com o t er ia m feit o.
Por ém , t ive a s en s a çã o a gr a d á vel d e s a b er qu e fizer a
u m a cois a cer t a . Um a cois a h on r a d a . Pela p r im eir a vez
em t od a a m in h a vid a , a gir a cor r et a m en t e p or qu e
quisera. A sensação era deliciosa.
“Aqu i, p r ega d or !” d is s e eu , “is t o é s eu .” E s t a va
n er vos o, a li n a fr en t e d a m u lt id ã o. Qu a n d o es t en d i a ele
o dinheiro, o auditório ficou silencioso outra vez.
Da vi Wilk er s on p egou a s ca ixa s d e n os s a s m ã os e
me olhou bem nos olhos. “Obrigado, Nicky. Eu sabia que
p od ia con t a r com você.” Vir a m os e, em fila , volt a m os
p a r a n os s os lu ga r es . O a u d it ór io es t a va t ã o qu iet o qu e
s e p od er ia ou vir u m a lfin et e ca ir . O Rev. Wilk er s on
começou a pregar.
Fa lou d u r a n t e cer ca d e qu in ze m in u t os . Tod o
mund o es t a va em s ilên cio, m a s eu n ã o ou vi p a la vr a .
Fiqu ei lem b r a n d o a s en s a çã o a gr a d á vel qu e t iver a
qu a n d o lh e en t r ega r a o d in h eir o. In t er ior m en t e, eu m e
r ep r ova va p or n ã o ter ca íd o for a com a gr a n a . Ma s a lgo
a d qu ir ir a vid a d en t r o d e m im e eu s en t ia qu e a qu ilo
cr es cia . E r a u m a s en s a çã o d e b on d a d e — d e n ob r eza —
de justiça. Sentimentos que eu jamais experimentara.
Fu i in t er r om p id o n a m in h a s u ces s ã o d e p en s a -
mentos por uma desordem atrás de mim. Davi chegara a
u m p on t o d o s er m ã o em qu e d izia qu e d evem os a m a r
u n s a os ou t r os . E le es t a va d izen d o qu e os p or t o-
r iqu en h os d evem a m a r os it a lia n os , os it a lia n os d evem
a m a r os n egr os , os n egr os d evem a m a r os b r a n cos , e
todos devemos amar-nos uns aos outros.
Au gie leva n t ou -s e p or t r á s d e m im : “E i, p r ega dor,
você é m a lu co, ou cois a p a r ecid a . Você qu er qu e eu a m e
es s es gr in gos ? E s t á lou co! Olh e a qu i.” Leva n t ou a
ca m is a e m os t r ou u m a gr a n d e cica t r iz ver m elh a n o s eu
lado. “Há dois meses um daqueles guinéus sujos me deu
u m t ir o. Você a ch a qu e p os s o es qu ecer d is t o ? E u vou
matar aquele... se eu o encontrar outra vez.”
“Ah , é ?” u m r a p a z d en t r e os it a lia n os leva n t ou -se
d e u m s a lt o e a b r iu a ca m isa. “E s t á ven d o is t o ?”
Apontou uma cicatriz de faca que dava uma volta no seu
om b r o e d es cia p elo p eit o. “Um n egr o m e cor t ou com
u m a n a va lh a . S im , eu vou a m á -los — com u m p a u d e
fogo.”
Um n egr in h o leva n t ou -s e, lá n o fu n d o, e, com
ven en o n a voz, gr it ou : “E i, gu in éu , você qu er exp e-
rimentar agora?”
De u m a h or a p a r a ou t r a , a s a la es t a va ca r r ega d a
d e ód io. Um r a p a z n egr o, d os Ch a p la in s , leva n t ou -se
d er r u b a n d o ca d eir a s . Ten t a va a b r ir ca m in h o p a r a o
lu ga r on d e s e a ch a va m os Ph a n t om Lor d s . S en t i qu e u m
tumulto generalizado estava se formando.
Um fot ógr a fo d es ceu p elo cor r ed or com a m á quina
fot ogr á fica . Pa r a n d o n a fr en t e, vir ou -s e e com eçou a
tirar fotos.
Is r a el d ir igiu -s e r a p id a m en t e a t r ês d os r a p a zes
qu e es t a va m n a p on t a d a fileir : “Agarrem-n o !” E les
levantaram-s e e en t r a r a m em lu t a cor p o-a -cor p o com o
fot ógr a fo. Um d os r a p a zes con s egu iu a r r a n ca r -lh e a
m á qu in a d a s m ã os e a t ir ou -a n o a s s oa lh o. Qu a n d o o
fot ógr a fo s e cu r vou p a r a a p a n h á -la , u m r a p a z d o ou t r o
la d o ch u t ou -a cor r ed or a b a ixo, a t é a fr en t e d o s a lã o. O
fot ógr a fo a r r a s t ou -s e d e ga t in h a s a t r á s d ela . No
m om en t o em qu e es t en d eu u m a d a s m ã os p a r a a p a n h á -
la , ou t r o r a p a z ch u t ou a p a r a lon ge d ele, em d ir eçã o à
p a r ed e, d o ou t r o la d o. O fot ógr a fo já es t a va d e p é,
cor r en d o a t r á s d a m á qu in a , m a s a n t es qu e p u d es s e
alcançá-la , ou t r o r a p a z ch u t ou -a com for ça : ela d es lizou
p elo ch ã o e foi es p a t ifa r -s e n a p a r ed e d e con cr et o —
quebrada e inútil.
Tod os es t á va m os d e p é. O a u d it ór io fer via d e ód io.
E u p r ocu r a va u m m eio d e s a ir p a r a o cor r ed or . Um
“quebra-pau” em grande escala estava se formando.
De r ep en t e, s en t i u m a n eces s id a d e im p er ios a d e
olh a r p a r a Da vi Wilk er s on . E le es t a va d e p é n o p a lco,
m u it o ca lm o. A ca b eça cu r va d a . As m ã os cr u za das
d ia n t e d o p eit o. E u p od ia ver s eu s lá b ios s e m ovendo.
Sabia que orava.
Algo a p er t ou o m eu cor a çã o. Pa r ei e olh ei p a r a
m im m es m o. Ao m eu r ed or , a b a d er n a con t in u a va , m a s
eu es t a va olh a n d o p a r a d en t r o. Ali es t a va a qu ele homem
fr a n zin o, cor a jos o, n o m eio d e t od o a qu ele p er igo. De
on d e ele r eceb ia es s e p od er ? Por qu e n ã o t in h a m ed o,
como todos nós ? Senti-me envergonhado. Culpado.
A ú n ica cois a qu e eu s a b ia a cer ca d e Deu s er a o
qu e a p r en d er a a o ob s er va r a qu ele h om em . Pen s ei em
m in h a ú n ica exp er iên cia a n t er ior a r es p eit o d e Deu s .
Qu a n d o eu er a cr ia n ça , m eu s p a is h a via m m e leva d o à
igreja. Estava cheia de gente. O padre mastigou algumas
p a la vr a s e o p ovo r es p on d eu ca n t a n d o. Foi u m a h or a
h or r ível. Na d a p a r ecia a p lica r -s e a m im . Nu n ca m a is
voltei.
Ca í s en t a d o n a m in h a ca d eir a . Ao r ed or , o p a n -
d em ôn io con t in u a va . Is r a el leva n t ou -s e e olh ou p ara
t r á s . Com eçou a gr it a r : “E i! Ca lm a ! Va m os ou vir o qu e o
pregador tem a dizer.”
Os Ma u -Ma u s s e s en t a r a m . Is r a el con t in u ou gr i-
t a n d o, p ed in d o s ilên cio. O b a r u lh o a r r efeceu . Com o u m
n evoeir o vin d o d o m a r , o s ilên cio in va d iu o a u d it ór io, d a
fr en t e p a r a o fu n d o, e d ep ois a s ga ler ia s . Ou t r a vez u m
silêncio mortal dominou o salão.
Algu m a cois a es t a va a con t ecen d o com igo. E s t a va
r ecor d a n d o... Recor d ei a m in h a in fâ n cia — o ód io qu e
d ed ica va à m in h a m ã e. Recor d ei os p r im eir os d ia s em
Nova Yor k , qu a n d o cor r ia com o u m a n im a l s elva gem
lib er t a d o d e u m a ja u la . Foi com o s e es t ives s e em u m
cin em a e a s m in h a s a ções fos s em p a s s a n d o d ia n t e d os
m eu s olh os . Vi a s ga r ot a s ... o d es ejo... o s exo. Vi a s
fa ca d a s ... a d or ... o ód io. E r a qu a s e in s u p or t á vel. E s t a va
com p let a m en t e in s en s ível a o qu e s e p a s s a va a o m eu
r ed or . A ú n ica cois a qu e con s egu ia er a r ecor d a r ...
Qu a n t o m a is eu r ecor d a va , m a ior er a o s en t im en t o d e
cu lp a e ver gon h a . Tin h a m ed o d e a b r ir os olh os ,
t em en d o qu e a lgu ém p u d es s e olh a r d en t r o d eles e ver o
que eu estava vendo. Era repulsivo.
Da vi Wilk er s on fa la va ou t r a vez. Dis s e a lgo s ob r e
a r r ep en d im en t o d e p eca d os . E u m e a ch a va s ob a
in flu ên cia d e u m p od er u m m ilh ã o d e vezes m a is for t e
d o qu e qu a lqu er d r oga . Nã o er a r es p on s á vel p or m eu s
m ovim en t os , m in h a s a ções ou p a la vr a s . E r a com o s e
t ives s e s id o a p a n h a d o p or u m a cor r en t eza s elva gem , em
u m r io t u r b u len t o. Nã o t in h a for ça s p a r a r es is t ir . Nã o
com p r een d ia o qu e es t a va a con t ecen d o d en t r o d e m im .
Só sabia que o medo desaparecera.
Ao m eu la d o, ou vi Is r a el a s s oa n d o o n a r iz. At r á s
d e m im , ou vi gen t e ch or a n d o. Algo es t a va va r r en d o
a qu ela a r en a lot a d a , com o o ven t o qu e b a la n ça a s cop a s
d a s á r vor es . At é a s cor t in a s , d os la d os d o a u ditório,
com eça r a m a m over -s e e a fa r fa lh a r com o s e a n im a d a s
por um sopro misterioso.
Davi Wilkerson dizia: “Ele está aqui! Ele está nesta
s a la . E le veio es p ecia lm en t e p a r a vocês . S e qu er em qu e
s u a s vid a s s eja m t r a n s for m a d a s , es t e é o m om en t o
exato.” E xcla m ou en t ã o com a u t or id a d e : “Leva n t em s e !
Os qu e d es eja m r eceb er J es u s Cr is t o e s er
transformados — levantem-se! Venham à frente!”
Per ceb i qu e Is r a el ficou d e p é. “Ra p a zes , eu es t ou
indo. Quem vai comigo ?”
E u es t a va d e p é. Vir ei-m e p a r a a m in h a qu a d r ilha
e a cen ei com o b r a ço : “Vamos.” Hou ve u m m ovimento
es p on t â n eo: leva n t a r a m -s e e for a m à fr en te. Ma is d e
vin t e e cin co d os Ma u -Ma u s a t en d er a m a o a p elo. At r á s
d e n ós , cer ca d e t r in t a r a p a zes d e ou t r a s qu a d r ilh a s
seguiram o nosso exemplo.
Reunimo-n os d e p é d ia n t e d o p a lco, olh a n d o p a r a
Davi, lá em cima. Ele terminou a reunião e convidou-nos
p a r a s egu i-lo p a r a a s s a la s d o fu n d o, on d e r eceb er ía m os
conselhos.
Is r a el ia à m in h a fr en t e, com a ca b eça cu r va d a , o
len ço n o r os t o. At r a ves s a m os a p or t a e en con t r a m o-nos
em um vestíbulo que levava aos camarins.
Vá r ios m em b r os d a m in h a qu a d r ilh a es t a va m a li
n o ves t íb u lo, d a n d o r is a d in h a s : “E i, Nick y, o qu e é qu e
h á , ca r a , você vir ou cr en t e ?” Leva n t ei a ca b eça , n a h or a
em qu e u m a d a s m en in a s d ir igiu -s e a n ós . E la leva n t ou
a b lu s a e m os t r ou -n os o s eio n u . “S e você for lá , m eu
bem, pode dizer adeus para isto aqui.”
Com p r een d o a gor a qu e ela s es t a va m com ciú m e.
S en t ia m qu e ía m os r ep a r t ir n os s o a m or com Deu s e
qu er ia m qu e o d és s em os s ó a ela s . E r a t u d o o qu e
s a b ia m a cer ca d o a m or . E r a t u d o o qu e eu t a m b ém
con h ecia d o a m or . Ma s , n a qu ela h or a , a qu ilo n ã o m e
a t r a iu . E m p u r r ei-a p a r a lon ge, cu s p in d o n o ch ã o, e
disse: “Você m e en oja .” Na d a m a is im p or t a va n a quele
m om en t o, excet o o fa t o d e qu e eu d es eja va s er s egu id or
de Jesus Cristo — fosse ele quem fosse.
Um h om em fa lou a r es p eit o d a vid a cr is t ã . E , en -
t ã o, Da vi Wilk er s on en t r ou: “O.K., r a p a zes ”, d is s e,
“ajoelhem aqui no chão.”
Pen s ei qu e ele es t a va lou co. E u n u n ca m e a joe-
lh a r a d ia n t e d e n in gu ém . Ma s u m a for ça in vis ível m e
p r es s ion ou . S en t i m eu s joelh os d ob r a r em . Nã o con segui
p er m a n ecer em p é. Foi com o s e u m a giga n t es ca m ã o
es t ives s e m e em p u r r a n d o p a r a b a ixo, a t é m eu s joelh os
tocarem o solo.
O con t a t o com o ch ã o d u r o m e t r ou xe d e volt a à
r ea lid a d e. E r a ver ã o. E r a ép oca d os “quebra-paus”. Ab r i
os olh os e p en s ei: “O qu e você es t á fa zen d o a qu i?” Is r a el
es t a va a o m eu la d o, ch or a n d o a lt o. No m eio d e t od a
aquela tensão, comecei a rir.
“E i, Is r a el, você es t á m e en ch en d o com es s e ch o-
ro.” Is r a el olh ou p a r a cim a e s or r iu en t r e lá gr im a s . Ma s ,
qu a n d o olh a m os u m p a r a o ou t r o, eu t ive u m a es t r a n h a
sensação. Senti lágrimas encherem os meus olhos, e dali
a p ou co ela s t r a n s b or d a r a m p elos ca n t os d os olh os e
d es cer a m p ela s m in h a s fa ces . E u es t a va ch or a n d o...
Pela p r im eir a vez, d es d e qu e ch or a r a à von t a d e n o p or ã o
da casa em Porto Rico, eu estava chorando.
Is r a el e eu es t á va m os d e joelh os , la d o a la d o, com
lá gr im a s cor r en d o p ela fa ce, m a s r in d o a o m es mo
tempo. Era um sentimento estranho, indescritível.
Lá gr im a s e r is os ... E u m e s en t ia feliz, m a s ch o-
r a va . Algo es t a va a con t ecen d o em m in h a vid a , s ob r e o
qu a l eu a b s olu t a m en t e n ã o t in h a con t r ole... e a qu ilo m e
trazia felicidade.
De r ep en t e, s en t i a m ã o d e Da vi Wilk er s on s ob r e a
m in h a ca b eça . E le or a va p or m im . As lá gr im a s cor reram
m a is livr em en t e qu a n d o b a ixei a ca b eça , e a ver gon h a , o
a r r ep en d im en t o, e a m a r a vilh os a a legr ia d a s a lva çã o
misturaram-s e em minha alma.
“Con t in u e, Nick y”, d is s e ele. “Con t in u e ch or a n d o.
Der r a m e a s u a a lm a d ia n t e d e Deu s . Cla m e a ele.” Ab r i
a b oca , m a s a s p a la vr a s qu e s a ír a m n ã o er a m m in h a s .
“Ó Deus, se você me ama, vem para a minha vida. Estou
ca n s a d o d e fu gir . Vem t r a n s for m a r m in h a vid a . Por
favor, transforma-me.”
Foi s ó is s o. Ma s s en t i-m e en volvid o e leva d o p a r a
o céu.
Ma con h a ! S exo ! S a n gu e! Tod a s a s em oções s á -
d ica s e im or a is d e u m m ilh ã o d e vid a s ju n t a s n ã o
p od ia m igu a la r -s e a o qu e eu s en t ia . Fu i lit er a lm en t e
batizado com amor.
Dep ois qu e a cr is e em ocion a l p a s s ou , Da vi
Wilk er s on m en cion ou a lgu n s ver s ícu los d a E s cr it u r a
p a r a n ós : “S e a lgu ém es t á em Cr is t o, é n ova cr ia t u r a : a s
coisas antigas já passaram: eis que se fizeram novas.” (II
Cor. 5:17.)
E r a is t o m es m o. Pela p r im eir a vez n a vid a eu
com p r een d ia . E u for a r en ova d o. E u er a Nick y, m a s n ã o
er a m a is Nick y. A velh a vid a h a via d es a p a r ecid o. E r a
com o s e eu t ives s e m or r id o p a r a a velh a vid a — m a s
estava vivo, em uma vida nova.
Felicid a d e. Alegr ia . Gozo. Alívio. Lib er d a d e. Ma-
ravilhosa, maravilhosa liberdade.
Eu parara de fugir.
Tod os os m eu s t em or es t in h a m fin d a d o. Tod a a
minha ansiedade terminara. Todo o meu ódio se fora. Eu
a m a va a Deu s ... a J es u s Cr is t o... e a t od a s a s p es s oa s
a o m eu r ed or . Am a va a t é a m im m es m o. O ód io qu e
s en t ir a p or m im m es m o t r a n s for m a r a -s e em a m or . De
r ep en t e, com p r een d i qu e a r a zã o p ela qu a l eu p r oced er a
de forma tão mesquinha em relação à minha pessoa, era
p or qu e eu r ea lm en t e n ã o a m a va a m im m es m o com o
Deus queria que amasse.
Is r a el e eu n os a b r a ça m os . Lá gr im a s n os cor r ia m
p elo r os t o, m olh a n d o a ca m is a u m d o ou t r o. E u o
amava. Ele era meu irmão.
Da vi Wilk er s on s a ír a , m a s já es t a va d e volt a à
s a la . E u o a m a va t a m b ém . Aqu ele p r ega d or fr a n zin o e
s or r id en t e em qu em eu cu s p ir a s em a n a s a t r á s — eu o
amava.
“Nick y, Is r a el”, d is s e ele, “qu er o d a r u m a Bíb lia a
vocês. Tenho bíblias para todos os outros Maus também.
Venham comigo.”
Nós o s egu im os a t é ou t r a s a la . Ali, em ca ixa s qu e
es t a va m n o ch ã o, h a via exem p la r es d o livr o p r et o. E le s e
cu r vou , p egou a lgu n s n ovos t es t a m en t os , t a m a n h o d e
b ols o, e com eçou a n os d a r . “E i, Da vi”, p er gu n t ei, “e
a qu eles livr os gr a n d es ? Nós p od er ía m os ga n h a r d os
gr a n d es ? Qu er em os qu e t od o m u n d o s a ib a qu e a gor a
somos cristãos “
Da vi p a r eceu s u r p r es o. Os “livr os gr a n d es ” er a m
exatamente isso. Eram bíblias enormes, de púlpito. Mas,
os r a p a zes qu er ia m a qu ela s e ele es t a va d is p os t o a d á -
las.
“Menino”, d is s e Is r a el r in d o p a r a m im , “qu e t a l ?
Um a Bíb lia d e d ez qu ilos !” E u t a m b ém a ch a va , m a s o
peso dela era pequeno em comparação com o peso tirado
d o m eu cor a çã o n a qu ela n oit e, qu a n d o o p eca d o for a
removido e o amor inundara.
Ta r d e d a n oit e, s u b i os d egr a u s p a r a o m eu qu a r -
t o, com o u m a n ova p es s oa . E r a m p ou co m a is d e on ze
h or a s , o qu e p a r a m im er a ced o, m a s eu es t a va a n sioso
p a r a volt a r a o m eu qu a r t o. Nã o h a via m a is n eces s id a d e
d e cor r er . As r u a s n ã o t in h a m m a is a t r a t ivo p a r a m im .
Nã o s en t ia m a is n eces s id a d e d e s er r econ h ecid o com o
chefe de gang. Não tinha mais medo da noite.
E n t r ei, d ir igi-m e a o gu a r d a -r ou p a , t ir ei o b lu s ã o
Mau-Ma u e os s a p a t os p on t u d os e coloqu ei-os em u m a
sacola. “Nu n ca m a is ”, p en s ei. “Nã o vou p r ecis a r m a is
disso.” E s t en d i a m ã o p a r a a p r a t eleir a e t ir ei o r evólver .
Por for ça d o h á b it o, com ecei a p or a s b a la s n o t a m b or ,
p a r a d or m ir com o r evólver n o cr ia d o-mud o. Por ém , d e
r ep en t e, lem b r ei. J es u s m e a m a . E le m e p r ot eger á . Tir ei
a s b a la s , coloqu ei-a s d e volt a n a ca ixin h a e d evolvi o
revólver à prateleira. De manhã, iria entregá-lo à polícia.
Pa s s ei p elo es p elh o. Nã o p od ia cr er n os m eu s
olhos. Havia uma luz radiosa em minha face, que jamais
vira. Sorri para mim mesmo. “Ei, Nicky, veja como você é
s im p á t ico. Pen a qu e t en h a d e d es is t ir d e t od a s a s
ga r ot a s , a gor a qu e é t ã o s im p á t ico.” Dei u m a
ga r ga lh a d a , d ia n t e d a ir on ia d e t u d o a qu ilo. Ma s es t a va
feliz. O peso dos temores se fora. Podia rir.
Ajoelhei-m e a o la d o d a ca m a , e jogu ei a ca b eça
p a r a t r á s . “Jesus...” n ã o p u d e d izer m a is n a d a .
“Jesus...” Fin a lm en t e vier a m a s p a la vr a s . “Obrigado,
Jesus... obrigado.”
Na qu ela n oit e, p ela p r im eir a vez, a o qu e m e lem -
b r a va , p u s a ca b eça n o t r a ves s eir o e d or m i m a r a vi-
lh os a m en t e d u r a n t e n ove h or a s . Na d a d e r ola r n a
ca m a . Nen h u m m ed o d e r u íd os for a d o qu a r t o. Os
pesadelos tinham terminado.

Capítulo 11

S AI N D O D O D E S E R T O

NO DIA SEGUINTE, bem cedo, eu já estava na rua


p r ocu r a n d o os r a p a zes qu e h a via m id o à fr en t e, n a n oit e
a n t er ior . Dis s e-lh es qu e t r ou xes s em a s a r m a s e a
m u n içã o, e s e en con t r a s s em com igo n a Pr a ça
Washington. Íamos marchar para a delegacia de polícia.
Voltando ao meu quarto, pus o revólver no cinto e,
p ega n d o m in h a Bíb lia gr a n d e, volt ei à Pr a ça Wa s h in gt on
para encontrar os outros.
Des cen d o p ela Ru a For t Gr een e, qu a s e d ei d e
en con t r o com u m a velh a s en h or a it a lia n a qu e já vir a
a n t es . No p a s s a d o ela cos t u m a va a t r a ves s a r a r u a
qu a n d o m e via . Des t a vez leva n t ei m eu gr a n d e livr o
p r et o qu e, em let r a s d ou r a d a s , t in h a a s p a la vr a s “Bíblia
Sagrada” na capa, e aproximei-me dela.
“On d e você r ou b ou es s a Bíb lia ?” A velh a a r r ega -
lou os olhos.
“Nã o r ou b ei. Ga n h ei d e u m p r ega d or .” Dei u m a
risada.
E la b a la n çou a ca b eça . “Nã o s a b e qu e n ã o d eve
mentir s ob r e a s cois a s s a gr a d a s ? Deu s va i ca s t iga r
você”.
“Nã o es t ou m en t in d o. Deu s n ã o va i m e ca s t iga r ,
p or qu e m e p er d oou . E s t ou in d o p a r a a d elega cia , p a ra
entregar o meu revólver.”
Abri a camisa e mostrei a arma debaixo do cinto.
S eu s olh os m over a m -s e d o r evólver p a r a a Bíb lia :
“Aleluia!”, gritou ela, enquanto seu rosto se abria em um
sorriso. Levantando os braços, gritou de novo: “Aleluia!”
S or r i e p a s s ei p or ela , em d ir eçã o à Pr a ça
Wa s h in gt on . Cer ca d e vin t e e cin co Ma u -Ma u s es t a va m
a li. Is r a el or ga n izou -os , e m a r ch a m os p ela Ru a S t .
E d wa r d , a t é a Delega cia d e Polícia n a es qu in a d a Ru a
Auburn.
Nã o p en s a m os n o qu e a p olícia p od er ia a ch a r d e
n os s a a t it u d e. Vin t e e cin co d os m a is en d u r ecid os
m em b r os d e qu a d r ilh a s d o Br ook lin , m a r ch a n d o p elo
m eio d a r u a , ca r r ega n d o u m a r s en a l d e a r m a s e m u -
n ições . Ten h o a gr a d ecid o a Deu s m u it a s vezes p elo fa t o
deles não nos terem visto antes de chegarmos à porta da
d elega cia . S e n os t ives s em vis t o a u m qu a r t eir ã o d e
d is t â n cia , t er ia m er gu id o b a r r ica d a s à s p or t a s e
provavelmente atirado em nós ainda de longe.
Qu a n d o en t r a m os , o s a r gen t o leva n t ou -s e d e u m
salto e procurou o revólver. “O que é que há, rapazes ? O
que estão querendo agora?”
“E i, ca lm a , s eu gu a r d a ”, d is s e Is r a el, “n ã o qu e-
remos encrenca. Viemos entregar nossas armas.”
“E n t r ega r o qu ê?” d is s e o s a r gen t o. “Qu e n egócio é
es s e a fin a l?” Vir ou -s e e gr it ou p or t r á s d o om bro:
“Delegado, acho que é melhor o senhor vir aqui já.”
O d elega d o a p a r eceu à p or t a : “O qu e é qu e es s es
r a p a zes es t ã o fa zen d o a qu i ?” p er gu n t ou a o s a r gento, “o
que é que há?”
Is r a el vir ou -s e p a r a o d elega d o : “Nós t od os d emos
o cor a çã o p a r a Deu s , e a gor a qu er em os d a r n os sos
revólveres para a polícia.”
“É s im ”, con cor d ou u m d os r a p a zes , “qu em s a be
vão servir para vocês atirarem nos moleques malvados .”
Tod os r im os , e o d elega d o vir ou -s e p a r a o s a r -
gento: “S er á ver d a d e? E n t ã o é m elh or m a n d a r a lguns
gu a r d a s d a r u m a olh a d a lá for a . Pod e s er u m a
emboscada, ou coisa parecida.”
Dei u m p a s s o à fr en t e: “E i, d elega d o olh e a qu i.”
Leva n t ei a m in h a Bíb lia . “O p r ega d or n os d eu es t a s
b íb lia s on t em à n oit e, d ep ois qu e t od os n ós en t r egamos
o cor a çã o a Cr is t o. Nã o va m os m a is s er m em b r os d e
quadrilhas. Agora, somos crentes.”
“Que pregador ?” perguntou o delegado.
“Or a , Da vi Wilk er s on . Aqu ele p r ega d or m a gr in h o
qu e t em es t a d o p or a qu i, con ver s a n d o com os m em bros
d a s qu a d r ilh a s . Teve u m a gr a n d e r eu n iã o n a Ar en a S t .
Nich ola s on t em à n oit e, e n ós t od os n os en t r ega m os a
Deus. Se não acredita na gente, telefona pra ele.”
O d elega d o olh ou p a r a o s a r gen t o: “Você t em o
telefone do pregador ?”
“S im , s en h or ; es t á h os p ed a d o em ca s a d e u m a t a l
Sra. Ortez.”
“Chame-o e d iga -lh e p a r a vir a qu i o m a is d epressa
p os s ível. Pod e s er qu e es t eja m os m et id os em gr a n d e
en cr en ca . S e is t o foi a lgo in ven t a d o p or ele, vou m et ê-lo
na cadeia tão depressa que ele vai ficar tonto.”
O s a r gen t o fez a liga çã o, e en t r egou o fon e p a r a o
delegado.
“Rever en d o Wilk er s on ? É b om o s en h or vir a qu i
a gor a m es m o. A s a la es t á ch eia d e Ma u -Ma u s , e eu n ã o
s ei o qu e es t á a con t ecen d o.” Hou ve u m a p a u s a , e d ep ois
o delegado colocou o fone no gancho.
“E le es t á a ca m in h o. Ma s a n t es d e ch ega r qu er o
suas armas — todas.”
“Cla r o, gen er a l”, d is s e Is r a el, “é p a r a is s o qu e
es t a m os a qu i.” Dep ois , vir a n d o-s e p a r a a t u r m a , d is s e :
“Va m os , t u r m a . Tr a ga m os r evólver es e p on h a m n o
balcão. Deixem as balas também.”
Os p olicia is n ã o p od ia m cr er n o qu e via m . A es sa
a lt u r a m a is qu a t r o gu a r d a s t in h a m ch ega d o, e ficaram
a li com os olh os a r r ega la d os d e in cr ed u lid a d e p a r a o
m on t e d e p is t ola s , r evólver es d e fa b r ica çã o ca s eir a e
espingardas pica-pau, que crescia mais e mais.
Qu a n d o t er m in a m os , o d elega d o s ó b a la n çou a
ca b eça . Vir a n d o-s e p a r a Is r a el, d is s e: “Pois b em
s u p on h a m os qu e a gor a você m e con t e a ver d a d e s ob r e o
que está acontecendo.”
Is r a el r ela t ou ou t r a vez o qu e h a via s u ced id o n a
Ar en a S t . Nich ola s . Dis s e-lh e qu e n ós a gor a ér a m os
cr en t es , e com eça r ía m os u m a vid a d ifer en t e. Dep ois
p er gu n t ou a o d elega d o s e ele p od ia a u t ogr a fa r a s u a
Bíblia.
Is t o p a r eceu -n os u m a gr a n d e id éia , e n ós t od os
reunimo-n os em t or n o d ele e d os gu a r d a s , p ed in d o-lhes
que autografassem nossas bíblias.
Na qu ele m om en t o, Da vi em p u r r ou a p or t a . Deu
u m a olh a d a r á p id a p a r a n ós e ca m in h ou d ir et o p a r a o
d elega d o. E s t e p ed iu qu e t od os os ou t r os gu a r d a s
en t r a s s em n a s a la . “Reverendo”, d is s e ele, “quero
apertar a sua mão
Da vi Wilk er s on olh ou em t or n o d e s i com u m a r
s u r p r es o, m a s es t en d eu a m ã o qu e o d elega d o a p er t ou
firmemente.
Como é que o Senhor conseguiu isto ?” perguntou.
E s t es r a p a zes d ecla r a r a m gu er r a con t r a n ós , e s ó t em
n os d a d o t r a b a lh o, d u r a n t e a n os . Agor a , s em n in gu ém
esp er a r , en t r a t od a es t a t r op a a qu i, e o s en h or s a b e o
que eles queriam ?”
Davi sacudiu a cabeça em negativa.
“Queriam nosso autógrafo em suas bíblias.”
O Rev. Wilk er s on es t a va s em fa la “Vocês p ed iram
aos policiais o quê ?” gaguejou
Ab r i m in h a Bíb lia e m ostrei-lh e o a u t ógr a fo do
delegado na folha de rosto.
“Bem , glór ia a Deu s !” d is s e Da vi. “Veja , d elega do,
Deus está operando aqui em Fort Greene!”
S a ím os t od os p a r a a r u a e d eixa m os o h om em
s a cu d in d o a ca b eça , es t u p efa t o, t en d o u m a p ilh a d e
armas amontoadas no balcão, diante dele.
Aglomeramo-n os a o r ed or d o Rev. Wilk er s on .
Is r a el fa lou : “E i, Da vi, p a s s ei a m a ior p a r t e d a n oite
len d o a Bíb lia . Veja ! E u es t ou n a Bíb lia . O m eu n om e
está em toda parte. Viu ? Israel. Sou eu. Sou famoso.”
Vá r ia s s em a n a s d ep ois , o Rev. Ar ce, p a s t or d e
u m a igr eja cu jos cu lt os er a m r ea liza d os em es p a n h ol,
chamada Iglesia d e Dios J u a n 3 :1 6 , veio a o m eu a p a r -
t a m en t o. Is r a el es t a va lá . Pa s s a m os m u it o t em p o ju n t os ,
len d o a Bíb lia e a n d a n d o p elo qu a r t o, or a n d o em voz
alta. O Rev. Arce queria que fôssemos à sua igreja no dia
s egu in t e, p a r a d a r t es t em u n h o. E r a u m cu lt o d e qu a r t a -
feir a à n oit e, e ele p r om et eu p a s s a r em m in h a ca s a p a r a
apanhar-nos.
Foi o primeiro culto verdadeiro que assisti em uma
igr eja . Ca n t a m os d u r a n t e qu a s e u m a h or a . Is r a el e eu
es t á va m os n a p la t a for m a , e o t em p lo s e en con trava
lot a d o. O Rev. Ar ce p r egou u m s er m ã o m a is ou m en os
longo, e depois chamou-me para dar meu testemunho.
Dep ois qu e t er m in ei d e fa la r , s en t ei-m e n a p r i-
meira fileira e ouvi Israel dar o dele.
Foi a p r im eir a vez qu e o ou vi fa la r em p ú b lico. E le
levantou-s e d et r á s d o p ú lp it o; s eu r os t o s im p á t ico
ir r a d ia va o a m or d e Cr is t o. Com voz s u a ve com eçou a
con t a r os a con t ecim en t os qu e m ot iva r a m a s u a
con ver s ã o. E m b or a t ivés s em os p a s s a d o ju n t os a m a ior
p a r t e d a s ú lt im a s s em a n a s , n a qu ela n oit e eu ob s er vei
n ele u m a p r ofu n d id a d e d e s en t im en t os e d e exp r es s ã o
qu e n ã o vir a a n t es . S u a s p a la vr a s leva r a m -m e d e volt a à
Ar en a S t . Nich ola s , qu a n d o ele t ã o p r on t a m en t e
a t en d er a a o eva n gelh o. Pen s ei n a m in h a p r óp r ia a t it u d e
p a r a com Da vi. Tiver a ód io d ele — Deu s s a b e com o eu o
od ia r a ! Com o p u d er a es t a r t ã o er r a d o ? Tu d o o qu e ele
qu er ia er a d eixa r Deu s m e a m a r a t r a vés d ele — m a s , n a
m in h a ign or â n cia , eu cu s p ir a n ele, xin ga r a e d es eja r a
matá-lo.
A m en çã o d o n om e d e Da vi, feit a p or Is r a el, t r ou -
xe-me de novo para a realidade.
“E u a in d a es t a va t es t a n d o a s in cer id a d e d o Rev.
Wilkerson”, d izia Is r a el, r ela t a n d o s eu s s en t im en t os
d ep ois d a qu ela p r im eir a r eu n iã o a o a r livr e, em qu e
ouvira Davi pregar.
“Cer t a t a r d e, ele veio à m in h a ca s a e p ed iu -me
p a r a a p r es en t á -lo a a lgu n s d os líd er es d e ou t r a s ga n gs .
E le qu er ia con vid á -los p a r a a s r eu n iões qu e es t a va
realizando na Arena St. Nicholas.
“Com eça m os a a n d a r ju n t os p elo b a ir r o d e
Br ook lin , e eu m os t r ei-lh e J o-J o, qu e er a p r es id en t e d os
Dragon s d e Con ey Is la n d , u m a d a s m a ior es qu a d r ilh a s
d e r u a d a cid a d e d e Nova Yor k . S ó in d iquei-o. Nã o
qu er ia qu e ele s ou b es s e qu e eu o id en t ifica r a p a r a Da vi
pois os Dragons eram grandes inimigos dos Mau-Maus.
“Dis s e a Da vi qu e ia p a r a ca s a . Qu a n d o ele s e
enca m in h ou p a r a J o-J o, es con d i-m e p or t r á s d a es ca -
d a r ia d e u m p r éd io d e a p a r t a m en t os , p a r a ou vir . J o-Jo
olh ou b em p a r a ele e d ep ois cu s p iu n os s eu s s a p a t os .
E s s e é o m a ior s in a l d e d es p r ezo qu e s e p od e d e-
m on s t r a r a u m in d ivíd u o. J o-J o n ã o d is s e p a la vr a : s ó
cu s p iu n os s a p a t os d e Da vi. Dep ois , vir ou -s e d e cos tas
para ele e sentou-se nos degraus da escada.
“Jo-J o n ã o t in h a ca s a . De fa t o, n ã o p os s u ía cois a
a lgu m a . Dor m ia n a p r a ça d u r a n t e o ver ã o, e qu a n d o
ch ovia ou fa zia fr io, d or m ia n o m et r ô. J o-J o er a u m
rema t a d o va ga b u n d o. Rou b a va r ou p a s d a s ca ixa s
gr a n d es qu e fica va m n a s es qu in a s p a r a a s or ga n iza ções
b en eficen t es , e u s a va -a s a t é qu e fica va m em fa r r a p os e,
depois roubava mais.
“Na qu ele d ia ele u s a va u m p a r d e a lp a r ga t a s ve-
lh a s e s u ja s , com os d ed ões a p a r ecen d o, e gr a n d es
ca lça s velh a s a m a r fa n h a d a s , qu e s er vir ia m b em p a r a
um gorducho.
“E s t a va cer t o d e qu e s e Da vi Wilk er s on fos s e u m
im p os t or , s er ia d es m a s ca r a d o em s eu en con t r o com J o-
Jo. Jo-Jo era esperto, e descobriria logo um impostor. Se
ele não fosse sincero, Jo-Jo lhe daria uma facada.
“E le leva n t ou os olh os p a r a Da vi e d is s e: “Vá
em b or a , h om em r ico. Você é u m es t r a n h o a qu i. Você
ch ega a Nova Yor k , fa la n d o b on it o, d izen d o qu e Deu s
t r a n s for m a a s p es s oa s . Tem s a p a t os n ovos , b em en -
gr a xa d os , e ca lça s n ova s — e n ós n ã o t em os n a d a .
Min h a velh a m e ch u t ou p a r a for a d e ca s a , p or qu e t em
d ez cr ia n ça s lá n o n os s o b u r a co, e n eca d e d in h eir o. Te
m a n ca , ca r a , eu con h eço o s eu t ip o. Você es t á a qu i
vis it a n d o os gu et os com o a qu eles ca r a s r icos qu e leva m
s eu s ôn ib u s p elo b a ir r o d e Bower y. Pr a fim d e con ver s a ,
é m elh or você d a r n o p é a n t es qu e a lgu ém en fie u m a
faca na sua barriga.”
“E u p er ceb i qu e a lgu m a cois a es t a va a p er t a n d o o
cor a çã o d e Da vi. Pod e s er qu e ele s ou b es s e qu e J o-Jo
fa la va a ver d a d e. Ma is t a r d e ele m e d is s e qu e foi p or t er
lem b r a d o d e a lgo qu e u m cer t o Gen er a l Boot h d is s er a :
“É im p os s ível a qu ecer o cor a çã o d os h om en s com o
a m or d e Deu s , qu a n d o s eu s p és es t ã o d u r os d e fr ios .”
Pod e s er qu e eu n ã o es t eja cit a n d o t ext u a lm en t e s u a s
p a la vr a s , m a s d e qu a lqu er for m a Da vi d is s e qu e is s o
passara pela sua mente. E sabem o que ele fez ? Sentou-
s e n a qu eles d egr a u s — b em a li n a r u a — t ir ou os
sapatos e entregou a Jo-Jo.
“Jo-J o olh ou es p a n t a d o p a r a Da vi e d is s e: “Que
es t á t en t a n d o p r ova r , p r ega d or ? qu e t em cor a çã o, ou o
quê ? Eu não vou calçar seus sapatos fedidos.”
“Ma s Da vi r es p on d eu -lh e à qu eim a -roupa: “Meu
chapa”, disse ele, “você estava choramingando por causa
de sapatos. Agora, calce, ou pare de chorar.”
“Jo-J o r es p on d eu : “Ma s eu n u n ca t ive u m s a p a to
novo.”
“Davi apenas continuou dizendo: “Calce.”
“Jo-J o ca lçou a s s im o s a p a t o d e Da vi. E m s egu i-
d a , es t e com eçou a a fa s t a r -s e em d ir eçã o a o ca r r o.
Con t in u ei es con d id o p or t r á s d os d egr a u s , en qu a n t o J o-
J o cor r ia a t r á s d e Da vi r u a a b a ixo. O p ob r e Da vi es t a va
s ó d e m eia , e t eve d e a n d a r a s s im d ois qu a r t eir ões p a r a
ch ega r a o ca r r o, en qu a n t o t od o m u n d o r ia e ca çoa va
dele. Foi aí que tive a certeza de que ele era sincero.”
Is r a el p a r ou u m p ou co, r ep r im in d o a s lá gr im a s .
“Na d a d o qu e Da vi d is s er a a t é en t ã o m e im p r es s ionara.
Ma s a qu ele h om em n ã o er a u m im p os t or : ele vivia o qu e
p r ega va . Per ceb i qu e n ã o p od er ia r es is t ir à es p écie d e
p od er qu e p od ia leva r u m h om em a u m a t o com o a qu ele
em fa vor d e a lgu ém com o J o-Jo.” Dep ois d o cu lt o,
a t r a ves s ei va ga r os a m en t e a m u lt id ã o, a in d a em ocion a d o
com o t r a b a lh o e com o p od er d a p r es en ça d e Deu s
d en t r o d e m im , en qu a n t o fa la r a . Fiqu ei p en s a n d o qu e
t a lvez ele qu is es s e qu e eu fos s e p r ega d or . S er ia a qu ela a
s u a for m a d e comunicar-s e com igo? Nã o en con t r ei a
r es p os t a , m a s s en t i qu e p r ecis a va d e t em p o p a r a p en s a r
no assunto.
O p es s oa l a in d a con ver s a va n o ves t íb u lo e n a
ca lça d a , em fr en t e a o t em p lo. Con t in u a va r eceb en d o
cu m p r im en t os a o s a ir p ela p or t a cen t r a l. Na qu ele m o-
m en t o, d ois ca r r os d o ou t r o la d o d a r u a liga r a m os
m ot or es . Ou vi u m gr it o d e m u lh er . Olh a n d o n a qu ela
d ir eçã o, vi ca n os d e es p in ga r d a s a in d o p ela s ja n ela s , e
r econ h eci a lgu n s d os Bis h op s . E les com eça r a m a a t ir a r
s elva gem en t e em m in h a d ir eçã o, en qu a n t o os ca r r os
a r r a n ca va m velozm en t e. Ha via gen t e ca in d o em fr en t e à
igr eja , e ou t r os cor r en d o a t er r or iza d os p a r a d en t r o d o
t em p lo, p r ocu r a n d o es ca p a r à fu zila r ia . Ab a ixei-m e p or
t r á s d e u m a p or t a , en qu a n t o b a la s r icoch et ea va m n a
p a r ed e d e p ed r a , a o m eu la d o. Os ca r r os d es a p a r ecer a m
na noite.
Qu a n d o a con fu s ã o s e d is s ip ou , u m s en h or d e
id a d e en caminhou-s e p a r a m im e r od eou -m e os om bros
com o b r a ço : “Filh o, n ã o fiqu e d es a n im a d o. O p r óp r io
J es u s foi t en t a d o n o d es er t o, d ep ois d o s eu b a t is m o.
Deve sentir-se honrado pelo fato de Satanás ter marcado
você p a r a s er p er s egu id o. E u p r evejo qu e fa r á gr a n des
cois a s p a r a Deu s , s e p er s ever a r .” Deu -m e u m a s
p a lm a d in h a s n o om b r o e d es a p a r eceu n o m eio d a
multidão.
E u n ã o s a b ia o qu e er a “perseverar”, con t u d o
qu er ia fa zer gr a n d es cois a s p a r a Deu s . Ma s n ã o es tava
m u it o cer t o d e s er u m a h on r a o fa t o d e S a t a n á s t er
mandado os Bishops para me matar.
O a m b ien t e p a r ecia t er -s e a ca lm a d o e s a í d e n ovo,
in icia n d o o lon go ca m in h o d e volt a p a r a ca s a . O Rev.
Ar ce leva r a Is r a el d e ca r r o p a r a ca s a , m a s eu qu is ir a
p é. Pr ecis a va p en s a r . O S r . Delga d o, qu e es t iver a
trabalhando com Davi Wilkerson, convidara-me para ir à
sua casa passar a noite com ele. Era um homem amável,
gen t il, b em ves t id o. Pen s ei qu e ele d evia s er m u it o r ico.
Fiquei envergonhado dos meus maus modos, das roupas
velh a s , e r ecu s ei o con vit e. E le m e d eu u m a n ot a d e u m
d óla r , e m e d is s e qu e s e p r ecis a s s e d e d in h eir o, b a s t a va
avisá-lo.
Agr a d eci e com ecei a volt a r p a r a o a p a r t a m en t o.
Ao a t r a ves s a r a Av. Va n d er b ilt , vi Loca d ia n t e d o s eu
apartamento. “E i, Nick y, on d e você t em es t a d o t od o es s e
tempo ? Disseram que saiu da quadrilha. É verdade ?”
Disse-lhe que sim.
“Pu xa , r a p a z, você es t á fa zen d o fa lt a . J á n ã o é a
mesma coisa, sem você lá. Por que não volta ?”
De r ep en t e, a lgu ém m e a b r a çou p or t r á s . E u r i:
“Pu xa , vocês qu er em m es m o qu e eu volt e, h ein ?”
p en s a n d o qu e fos s e u m d os n os s os . O r os t o d e Loca
transfigurou-s e, gela d o d e t er r or . Vir ei a ca b eça d e-
p r es s a , e r econ h eci J oe, u m Ap a ch e a qu em h a vía mos
raptado e queimado.
E s t a va lu t a n d o p a r a m e lib er t a r qu a n d o vi a fa ca
n a m ã o d ele. J oe m e s egu r ou p or t r á s p a s sando a m ã o
es qu er d a em volt a d o m eu p es coço, en qu a n t o b r a n d ia a
lâ m in a s ob r e o m eu om b r o, em d ir eçã o a o cor a çã o.
Leva n t ei a m ã o d ir eit a p a r a fr u s t r a r o golp e d a qu ela
lâ m in a d e vin t e e qu a t r o cen t ím et r os e ela m e fer iu n a
mão, entre o anular e o mínimo, atravessando-me a mão
e esfolando um pouco o peito.
Girei sobre mim mesmo, e ele me golpeou de novo.
“Des t a vez eu t e m a t o”, u ivou . “Pen s a qu e p od e fu gir ,
fica n d o es con d id o d et r á s d e u m a igr eja , m a s es t á m u it o
en ga n a d o, m eu velh o. Vou fa zer u m fa vor p a r a o m u ndo
e matar um covarde que virou honesto.”
Gr it ei p a r a Loca : “S a ia d a qu i! E s t e ca r a es t á
louco!”
E le a va n çou p a r a m im e d eu u m a fa ca d a em d i-
r eçã o a o m eu es t ôm a go, m a s p u lei p a r a t r á s e a r ranquei
a a n t en a d e u m ca r r o qu e es t a va es t a cion a d o a li. Agor a
podía m os lu t a r d e igu a l p a r a igu a l. Na s m in h a s m ã os , a
a n t en a er a u m a a r m a t ã o m or t ífer a qu a n t o a p eixeir a
dele.
Rod eei o r a p a z, es gr im in d o n o a r com a va r a d e
m et a l. E s t a va a gor a d e volt a a o m eu elem en t o. S en t i-me
con fia n t e d e qu e p od er ia m a t á -lo. Por exper iên cia , eu
s a b ia qu a l s er ia o s eu p r óxim o m ovim en t o. Qu a n d o ele
a r r em et es s e con t r a m im com a fa ca , d a r ia u m p a s s o
a t r á s , fa zen d o com qu e p er d es s e o equ ilíb r io. Pod ia
cegá-lo, gir a n d o o cor p o e o b r a ço e a t in gin d o-o n os
olhos, e paralisá-lo ou matá-lo com um segundo golpe.
Segurei a antena com a mão esquerda, enquanto a
d ir eit a , qu e p in ga va s a n gu e d o fer im en t o qu e ele m e
fizera, conservava à minha frente para me resguardar da
faca.
“Va m os , m en in o”, coch ich ei, “t en t e m a is u m a vez.
Só uma vez. Será a última.”
Os olh os d e J oe es t a va m a p er t a d os , ch eios d e
ód io. E u s a b ia qu e ter ia d e m a t á -lo, p or qu e n a d a m a is o
faria parar.
E le a va n çou p a r a m im , e eu d ei u m p a s s o a t r á s , e
a fa ca s ib ilou , qu a s e t oca n d o o m eu es t ôm a go. Agor a !
E le p er d er a o equ ilíb r io. Leva n t ei a a n t en a com o u m
chicote, para bater-lhe no rosto desprotegido.
Rep en t in a m en t e, s en t i com o s e a m ã o d e Deu s
t ives s e a ga r r a d o o m eu b r a ço. “Dê a ou t r a fa ce.” A voz
er a a u d ível, e m u it o r ea l. Olh ei p a r a a qu ele Ap a ch e n ã o
com o u m in im igo, m a s com o u m a p es s oa . S en t i p en a
d ele, a li n o m eio d a n oit e, cu s p in d o p a la vr ões , com o
ód io gr a va d o em s eu r os t o. Vi-m e n o s eu lu ga r , a lgu m a s
s em a n a s a t r á s , n a r u a es cu r a , p r ocu r a n d o m a t a r u m
inimigo.
Orei. Pela primeira vez na vida, orei por mim:
“Deus, ajuda-me.”
O Ap a ch e r ecu p er ou o equ ilíb r io e olh ou p a r a
mim: “O que você disse ?”
“Deu s , a ju d a -me”, eu r ep et i. E le p a r ou e a r r ega lou
os olhos.
Loca cor r eu , en fia n d o o ga r ga lo qu eb r a d o d e u m a
garrafa em minha mão : “Corta a cara dele, Nicky.”
O rapaz começou a correr.
“Atira nele, Nicky, atira nele !”
Leva n t ei o b r a ço, m a s em vez d e a t ir a r o ca co d e
ga r r a fa n o Ap a ch e qu e fu gia , a t ir ei-o con t r a a p a r ed e d o
prédio.
Dep ois , p egu ei u m len ço e en r olei-o n a m ã o qu e
s a n gr a va m u it o. Ficou logo em p a p a d o d e s a n gu e e Loca
s u b iu cor r en d o a o s eu qu a r t o, e t r ou xe u m a t oa lh a d e
b a n h o p a r a a b s or ver o s a n gu e. E la qu is m e leva r p a r a
ca s a , m a s eu d is s e qu e er a ca p a z d e ir s ozin h o, e fu i
embora.
Tin h a m ed o d e ir a o h os p it a l, m a s s a b ia qu e
p r ecis a va d e a ju d a . J á es t a va fica n d o fr a co d evid o à
perda d e s a n gu e. Pr ecis a va a t r a ves s a r a Pr a ça
Wa s h in gt on e a Pr a ça Fu lt on , p a r a ch ega r a o Hos p ital
Cu m b er la n d . Ach ei m elh or ir a n t es qu e m e es va ís s e em
s a n gu e e m or r es s e. De p é n a es qu in a d e De Ka lb , p er t o
d o Cor p o d e Bom b eir os , eu es p er a va a lu z d o s em á for o
a cen d er , m a s s en t i a ca b eça t on t a e r es olvi a t r a ves s a r a
rua antes de desmaiar.
Ca m b a leei p elo m eio d o t r á fego. E n t ã o ou vi u m gr it o, e
u m d os Ma u -Ma u s veio cor r en d o p ela r u a p a r a m e
a ju d a r . E r a Ta r za n , u m r a p a gã o qu e u s a va u m en or m e
ch a p éu m exica n o. “Que é is to, Nick y, es t á qu er en d o s e
matar?” E le p en s a va qu e eu es t a va lou co, p or qu e
entregara o coração a Jesus.
“Ra p a z, eu es t ou fer id o. Mu it o fer id o. Aju d e-m e a
chegar à casa de Israel, por favor.”
Ta r za n foi com igo a t é o a p a r t a m en t o d e Is r a el, e
n ós s u b im os os cin co la n ces d e es ca d a s , a t é o qu a r to
dele. Era meia-noite quando bati à porta.
A m ã e d e Is r a el a b r iu e m e con vid ou p a r a en trar.
E la p er ceb eu qu e eu es t a va fer id o. Is r a el s a iu d o ou t r o
qu a r t o. Olh ou p a r a m im e com eçou a r ir . “Ra p a z, o qu e
aconteceu com você?”
“Fui esfaqueado por um Apache.”
“Pu xa ! n u n ca p en s ei qu e is t o p u d es s e t e a con -
tecer.”
A m ã e d e Is r a el n os in t er r om p eu e in s is t iu p a r a
qu e eu fos s e p a r a o h os p it a l. Is r a el e Ta r za n m e
a ju d a r a m a d es cer a s es ca d a s , e m e leva r a m a o p r on to-
socorr o d o h os p it a l vizin h o. Ta r za n con cor d ou em p ega r
m in h a ca r t eir a on d e es t a va o d óla r qu e eu ga n h a r a , e ir
con t a r a o m eu ir m ã o Fr a n k o qu e m e a con t ecer a . Is r a el
es p er ou o m éd ico exa m in a r m in h a m ã o. Algu n s t en d ões
t in h a m s id o cor t a d os , e eu ia p r ecis a r d e a n es t es ia .
Is r a el es t a va s ér io qu a n d o m e leva r a m n a m a ca . “Nã o s e
p r eocu p e, m eu ch a p a , n ós va m os a cer t a r o ca r a qu e fez
isto.”
E u qu er ia d izer -lh e qu e n ã o p r ecis á va m os m a is d e
vin ga n ça . Deu s cu id a r ia d is s o. Ma s a p or t a fech ou s e
vagarosamente atrás de mim...
No d ia s egu in t e, b em ced o, Is r a el es t a va n o m eu
qu a r t o d e h os p it a l. E u a in d a es t a va m eio t on t o d evid o à
a n es t es ia , m a s p u d e p er ceb er qu e es t a va d iferente.
Fin a lm en t e con s egu i a b r ir os olh os e vi qu e ele t in h a
rapado completamente a cabeça.
“E i, ca r eca , o qu e é qu e h á ? ” m u r m u r ei. A velha
expressão voltara ao rosto de Israel.
“Ca r a m b a , p r im eir o eles qu a s e n os fu r a m com o
p en eir a s d ia n t e d a igr eja , e a gor a es fa qu eia m você. E s s e
n egócio d e J es u s n ã o d á p é. Aqu ele ca r a n ã o p od ia fa zer
isso. Vou pegá-lo para você.”
E u es t a va r ecu p er a n d o os s en t id os , e leva n t ei-me
n a ca m a . “E i, ca r a , você n ã o p od e fa zer is s o. E u p od er ia
tê-lo a cer t a d o s ozin h o, m a s d eixei-o n a s m ã os d e Deu s .
S e você volt a r à s r u a s , n u n ca m a is s a ir á . Lem b r e-s e d o
qu e Da vi fa lou s ob r e la n ça r a m ã o a o a r a d o... Meu
chapa, fique comigo e esqueça a briga.”
Lu t ei p a r a fica r s en ta d o, e n ot ei qu e Líd ia e Loreta
t in h a m en t r a d o com Is r a el. Ca í, p or ém , d e cos t a s n a
cama, pois ainda estava fraco com a perda de sangue e a
cir u r gia . O m eu b r a ço in t eir o es t a va em u m s ó m old e d e
gesso, desde a ponta dos dedos até o cotovelo.
Lor et a er a u m a b ela it a lia n in h a d e ca b elos n egr os
com qu em t iver a vá r ios en con t r os . E la fa lou : “Nicky,
Is r a el t em r a zã o. Aqu eles ca r a s vã o en t r a r n o h os p it a l e
matá-lo, s e você n ã o volt a r p a r a a qu a d r ilh a . Va m os
fa zer com o n os velh os t em p os . Você fica b om e volt a
para os Mau-Maus. Estamos esperando você.”
Vir ei e olh ei p a r a Líd ia . “É is s o qu e você a ch a
também ?”
Ela baixou a cabeça. “Nicky, preciso te contar uma
cois a . E s t ou en ver gon h a d a . Devia t er fa la d o h á m u it o
tempo. Já faz dois anos que sou crente.”
“O qu ê ?” en ca r ei-a in cr éd u lo. “Você qu er m e d izer
qu e a cr ed it a va em Cr is t o t od o es t e t em p o e n ã o m e
con t ou ? Com o é qu e p od e s er cr en t e e fa zer t u d o qu e
t em feit o? Os cr is t ã os n ã o a gem a s s im . E les n ã o s e
envergonham de Jesus. Não, não creio em você.”
Líd ia m or d eu o lá b io in fer ior , e lá gr im a s vier a m
a os s eu s olh os , en qu a n t o ela t or cia o len çol com a s
mãos. “E s t ou en ver gon h a d a , Nick y. E u t in h a m ed o d e
lh e fa la r d e Cr is t o. S e fa la s s e a ver d a d e, você n ã o m e
quereria mais.”
Israel aproximou-se da cama. “Vamos, Nicky. Você
es t á a p en a s con fu s o. Va i s en t ir -s e m elh or m a is t a r d e.
Lor et a e eu a ch a m os qu e você d eve volt a r p a r a a
qu a d r ilh a . Nã o s ei o qu e Líd ia a ch a . Ma s p en s e n is s o e
n ã o s e p r eocu p e. Vou fa la r com a lgu n s d os r a p a zes , e
vamos pegar aquele cara que fez isto com você.”
Dei-lhe as costas. Loreta chegou-se e beijou me na
face. Senti lágrimas em meu rosto, quando Lídia curvou-
s e e m e b eijou . “S in t o m u it o, Nick y. Per d oe-m e, p or
favor.”
E u n ã o d is s e n a d a . E la m e b eijou ou t r a vez e s a iu
depressa. Ouvi a porta fechar-se atrás deles.
Dep ois qu e eles s a ír a m , qu a s e p u d e s en t ir a p r e-
s en ça d e S a t a n á s n o qu a r t o. E le fa la r a com igo p or
in t er m éd io d e Is r a el e Lor et a . E s t a va m e p r ep a r a n d o
através da minha decepção com respeito a Lídia.
“Nicky”, coch ich ou ele, “você é u m b ob o. E les t êm
razã o. Volt e p a r a a ga n g. Recor d e d os b on s t em p os .
Lembre-s e d a s a t is fa çã o d e vin ga r -s e. Lem b r e com o er a
d oce es t a r n os b r a ços d e u m a ga r ot a b on it a . Você t r a iu
s u a qu a d r ilh a , Nick y, m a s a in d a n ã o é t a r d e d em a is
para voltar.”
E n qu a n t o m e t en t a va , a en fer m eir a en t r ou com a
b a n d eja d o ja n t a r . Ou vi-o a in d a a s egr ed a r : “On t em à
noite foi a primeira vez na vida em que você não revidou.
Cova r d e! O gr a n d e e b r a vo Nick y Cr u z ch or a n d o n a
Arena St. Nicholas, correndo de um Apache e deixando-o
escapar. Mulherzinha. Santinho Medroso.”
“S r . Cr u z?” E r a a en fer m eir a fa la n d o, a o a p r o-
ximar-s e d o m eu leit o. “S e vir a r p a r a cá , eu a r r u m a r ei a
sua bandeja.”
Dei u m p u lo n a ca m a , e b a t i n a b a n d eja , joga n d o-
a no chão: “Vá para o inferno !”
Qu is d izer m a is a lgu m a cois a , p or ém n ã o s a iu
n a d a . Tod os os a n t igos p a la vr ões t in h a m d es a p a r ecido.
Na qu ele in s t a n t e, n ã o fu i n em ca p a z d e lem b r á -los.
Fiqu ei a li s en t a d o com a b oca a b er t a , e d e r ep en te
lágrima s com eça r a m a cor r er d os m eu s olh os , d es cen d o
ao longo do rosto como dois regatos. “Desculpe”, solucei.
“Por favor, chame um ministro Chame o Rev. Arce.”
S ilen cios a m en t e, a en fer m eir a a p a n h ou os p r a tos
d o ch ã o, e b a t eu d e leve n o m eu om b r o: “Vou ch a m á -lo
agora mesmo. Deite e descanse.”
Deit ei a ca b eça n o t r a ves s eir o, a in d a s olu ça n d o.
E m p ou co t em p o o Rev. Ar ce ch egou e or ou em m eu
fa vor . E n qu a n t o ele or a va , eu m e s en t i lib er t a d o d o
es p ír it o qu e s e a p os s a r a d e m im . Dis s e-m e qu e p ediria
ao Sr. Delgado para me visitar, na manhã seguinte, e ele
p r ovid en cia r ia p a r a qu e eu t ives s e os cu id a d os
necessários.
Na qu ela n oit e, d ep ois qu e a en fer m eir a m e a ju dou
a t r oca r o p a let ó d o p ija m a , a joelh ei-m e a o la d o d o leit o
d o h os p it a l. De t a r d e eles h a via m coloca d o u m ou tro
p a cien t e n a ca m a a o la d o d a m in h a , m a s p en s ei qu e ele
es t ives s e d or m in d o. Com ecei a or a r em voz a lt a , o ú n ico
jeit o qu e eu s a b ia . Nin gu ém m e d is s er a qu e s e p od e or a r
“em p en s a m en t o”. S a b ia a p en a s qu e t in h a d e or a r a
Deu s , e a ú n ica m a n eir a d e fa zê-lo er a fa la n d o com ele
— em voz alta. Comecei assim a orar.
Ped i a Deu s qu e p er d oa s s e o r a p a z qu e h a via m e
es fa qu ea d o, e qu e o p r ot eges s e d e t od o m a l, a t é qu e ele
p u d es s e a ceit a r a J es u s . Ped i a Deu s qu e m e p er d oa s s e
p ela m a n eir a com o eu t r a t a r a Líd ia , e p or t er d a d o
a qu ele t a p a n a b a n d eja , d er r u b a n d o-a d a s m ã os d a
en fer m eir a . E u lh e d is s e qu e ir ia on d e qu er qu e
d es eja s s e e fa r ia o qu e ele qu is es s e. Lem b r ei a Deu s qu e
eu n ã o es t a va com m ed o d e m or r er , m a s p ed i qu e m e
d eixa s s e viver o b a s t a n t e p a r a u m d ia fa la r a m a m ã e e a
papai a respeito de Jesus.
Fiqu ei d e joelh os m u it o t em p o, a n t es d e joga r -me
na cama e cair no sono.
Na m a n h ã s egu in t e, es t a va m e ves t in d o p a r a
d eixa r o h os p it a l, qu a n d o o h om em d a ca m a a o la d o
fa lou b a ixin h o, fa zen d o m e s in a l p a r a ch ega r p er t o d ele.
E r a u m velh o qu e t in h a u m t u b o n a ga r ga n t a . Tr em ia ,
estava muito pálido e a sua voz era um murmúrio.
“E u es t a va a cor d a d o on t em à n oit e”, coch ich ou
ele.
Fiqu ei u m p ou co en ver gon h a d o e d ei u m s or r is o
tolo. “Mu it o ob r iga d o”, d is s e ele, “m u it o ob r iga d o p ela
sua oração.”
“Ma s eu n ã o es t a va or a n d o p elo s en h or ”, con -
fessei. “Pen s ei qu e o s en h or es t ives s e d or m in d o. E u
estava orando por mim mesmo.”
O ancião estendeu o braço e agarrou a minha mão
s ã , com s eu s d ed os fr ios e ú m id os . O a p er t o er a m u it o
fr a co, m a s p u d e s en t ir qu e ele es t a va a p er t a n d o com
energia.
“Oh , n ã o, você es t á en ga n a d o. Você es t a va or a n do
p or m im . E eu t a m b ém or ei. Pela p r im eir a vez em
m u it os , m u it os a n os , eu or ei. E u t a m b ém or ei. E u
t a m b ém d es ejo fa zer o qu e J es u s qu er qu e eu fa ça .
Muito obrigado.”
Gr a n d es lá gr im a s r ola r a m p ela s s u a s fa ces , vin -
ca d a s d e p r ofu n d a s r u ga s , en qu a n t o ele fa la va . E u
disse: “Deu s o a b en çoe, m eu a m igo”, e s a í. E u n u n ca
t en t a r a a ju d a r n in gu ém , em m in h a vid a . E n em s a bia
com o o fizer a , n a qu ele d ia . Ma s s en t ia d e forma
con for t a d or a e for te qu e o E s p ír it o d e Deu s op er a r a p or
meu intermédio. Estava satisfeito.
O S r . Delga d o es t a va m e es p er a n d o n o s a gu ã o.
Pa gou a m in h a con t a , e levou -m e p a r a o s eu ca r r o.
“Telefon ei p a r a Da vi Wilk er s on on t em à n oit e”, d is s e ele.
“E s t á em E lm ir a r ea liza n d o u m a s ér ie d e r eu n iões . E le
quer que eu leve você e Israel para lá, amanhã “
“Da vi m en cion ou is s o a ú lt im a vez em qu e n os
encontramos”, d is s e eu , “m a s Is r a el volt ou p a r a a
quadrilha. Acho que ele não vai.”
“Vou en con t r a r -m e com ele h oje à n oit e. Ma s h oje
qu er o qu e você fiqu e n a m in h a ca s a , on d e es t a r á em
segurança. Vamos sair amanhã bem cedo para Elmira.”
Pa r ecia u m a ir on ia o fa t o d e eu es t a r in d o p a r a
E lm ir a p a r a a vis t a r -m e com Da vi. E r a p a r a lá qu e a
p olícia qu er ia m e m a n d a r , m a s p or u m a r a zã o d iferente.
Pa s s ei o r es t o d o d ia or a n d o p or Is r a el, p a r a qu e ele n ã o
volt a s s e p a r a a qu a d r ilh a , m a s r es olves s e ir com igo p a r a
Elmira.
Na m a n h ã s egu in t e, leva n t a m o-n os b em ced o e
a t r a ves s a m os a cid a d e d e ca r r o, em d ir eçã o a o Br ook lin
e a o Con ju n t o Ha b it a cion a l For t Gr een e. O S r . Delga d o
d is s e qu e Is r a el con cor d a r a em ir con os co, e d ever ia
encontrar-s e con os co n a es qu in a d a s r u a s Myr t le e De
Kalb às sete da manhã. Quando ali chegamos, Israel não
es t a va . Com ecei a s en t ir u m fr io n a b oca d o es t ôm a go.
Dem os a volt a n o qu a r t eir ã o, m a s n ã o o vim os . O S r .
Delga d o d is s e qu e t ín h a m os p r es s a ; n ã o ob s t a n t e,
p a s s a m os p elo s eu a p a r t a m en t o, n a Ru a S t . E d wa r d ,
defronte ao 67.° Distrito, para ver se podíamos encontrá-
lo. Passamos lá, mas não vimos sinal dele. O Sr. Delgado
ficou olh a n d o p a r a o r elógio, e fin a lm en t e d is s e qu e
tínhamos de ir embora.
“S er á qu e n ã o p od em os d a r s ó m a is u m a volt a n o
quarteirão?” d is s e eu ; “p od e s er qu e o en con t r emos
desta vez.?
“Olh e, Nick y”, r es p on d eu , “eu s ei qu e você gos t a
de Israel e está com medo que ele volte para a quadrilha.
Ma s ele p r ecis a a p r en d er a a r r a n ja r -s e s ozin h o. Dis s e
qu e n os en con t r a r ia à s s et e h or a s , e n ã o es t á a qu i.
Va m os d a r m a is u m a volt a n o qu a r t eir ã o, m a s s ã o s eis
h or a s d e via gem a t é E lm ir a , e Da vi es t á n os esperando
às duas da tarde.”
Fizem os a volt a d o qu a r t eir ã o m a is u m a vez, e
d ep ois fom os p a r a o Br on x, p a r a p ega r J eff Mor a les . J eff
er a u m r a p a z p or t o-r iqu en h o qu e qu er ia en t r a r p a r a o
m in is t ér io d a Pa la vr a d e Deu s . Da vi p ed ir a a o S r .
Delga d o qu e o leva s s e p a r a s er vir -m e d e in térprete
quando falasse na igreja.
Qu a n d o s a ím os d a cid a d e, t ive u m a s en s a çã o d e
a lívio. Recos t ei-m e n o b a n co e s u s p ir ei. O p es o for a
r et ir a d o. Ma s n o m eu cor a çã o h a via u m a p r ofu n d a
t r is t eza p or qu e es t á va m os d eixa n d o Is r a el p a r a t r á s , e
eu t in h a u m p r es s en t im en t o d e a lgo a m ea ça d or ,
en volven d o con d en a çã o e d es es p er o, em r ela çã o a o
fu t u r o d ele. E u n ã o s a b ia n a qu ela ép oca , m a s ... s eis
a n os s e p a s s a r ia m a n t es qu e n os en con t r á s s em os d e
novo.
Na qu ela n oit e Da vi a p r es en t ou -m e a o p ovo d e
Elmira e d ei o m eu t es t em u n h o. Da vi m e p ed ir a p a r a
com eça r d es d e o p r in cíp io, e con t a r a m in h a h is t ória
exa t a m en t e com o a con t ecer a . Fu i ob s cu r o n os d etalhes,
e não pude lembrar-me de muita coisa. Compreendi logo
qu e Deu s n ã o a p en a s t ir a r a d e m im m u it os d os a ntigos
d es ejos , m a s t a m b ém a p a ga r a m u it a s d a qu ela s
r ecor d a ções d a m in h a m en t e. Con t ei, p or ém , a h is t ór ia
d a m elh or m a n eir a qu e p u d e. Mu it a s vezes a d ia n t ei-me
a o m eu in t ér p r et e, e J eff t in h a d e d izer : “Ca lm a , Nick y,
espere por mim.”
O p ovo r iu e ch or ou , e qu a n d o foi feit o o a p elo,
m u it os a p r oxim a r a m -s e d o a lt a r p a r a d a r s eu cor a çã o a
Cr is t o. A s en s a çã o d e qu e Deu s es t a va m e ch a m a n do
p a r a u m m in is t ér io es p ecia l ficou a in d a m a is for te,
qu a n d o vi qu e Deu s es t a va op er a n d o a t r a vés d a m in h a
vida.
No d ia s egu in t e t ive op or t u n id a d e d e con ver s a r
com Da vi p or m u it o t em p o. E le m e p er gu n t ou s e eu
es t a va m es m o d ecid id o a in gr es s a r n o m in is t ér io.
Res p on d i qu e n ã o s a b ia d ir eit o o qu e er a is s o, e n em
p od ia fa la r u m in glês in t eligível, m a s s en t ia qu e Deu s
es p er a va a lgo d e m im , e es t a va m e gu ia n d o n es s e
s en t id o. Da vi d is s e qu e fa r ia t u d o o qu e lh e fos s e
possível para me arranjar uma escola.
E s cola ! Há t r ês a n os qu e eu n ã o ia à es cola , d es de
qu e for a exp u ls o. “Da vi, n ã o p os s o volt a r p a r a a es cola .
O d ir et or d is s e qu e s e eu volt a r , ele m e en t r ega à
polícia.” Davi riu.
“Não é aquela escola, Nicky. É uma Escola Bíblica.
Você gostaria de ir para a Califórnia?”
“Para onde ?”
“Califórnia, na costa ocidental.”
“É p er t o d e Br ook lin ?” p er gu n t ei. Da vi ca iu n a
gargalhada
“Oh , n ã o, Nick y. E s tou ven d o qu e o S en h or va i t er
de op er a r m u it o em você. E eu s ei qu e ele é
s u ficien t em en t e p od er os o p a r a fa zê-lo. E s p er e p a r a ver
gr a n d es cois a s a con t ecer ã o a t r a vés d o s eu m in is t ério.
Estou certo disso.”
S a cu d i a ca b eça . Tin h a m ed o d os gu a r d a s d e
Br ook lin . S e p r ecis a va ir p a r a a es cola , fa zia vot os
fer vor os os p a r a qu e fos s e em a lgu m lu ga r for a d a cid a d e
de Nova York.
Da vi qu is qu e eu fica s s e em E lm ir a , en qu a n t o ele
es cr evia p a r a a E s cola Bíb lica . Ma is t a r d e, fiqu ei
s a b en d o qu e ela fica va em La Pu en t e, Ca lifór n ia , p er t o
d e Los An geles . O cu r s o b íb lico er a p a r a m oça s e
r a p a zes qu e d es eja va m p r ep a r a r -s e p a r a o m in is t ér io e
n ã o t in h a m p os s ib ilid a d es fin a n ceir a s d e ir p a r a a
fa cu ld a d e; o cu r s o d u r a va t r ês a n os . É cla r o qu e eu n ã o
t er m in a r a o gin á s io, m a s Da vi es cr eveu u m a ca r t a
expressa pedindo-lhes que me aceitassem assim mesmo.
E le d is s e qu e eu n ã o es t a va es con d en d o n a d a a r es p eit o
d a m in h a vid a p r egr es s a , m a s fa la va d e m eu s s on h os e
a m b ições , e p ed ia qu e fizes s em u m a exp er iên cia com igo,
em b or a eu t ives s e m e t or n a d o cr is t ã o h á p ou ca s
semanas.
As cois a s em E lm ir a n ã o es t a va m cor r en d o m u it o
b em , n es s e m eio t em p o. Algu ém es p a lh ou o b oa t o qu e
eu a in d a er a ch efe d a ga n g e qu e es t a va p r ocu r a n d o
for m a r u m a qu a d r ilh a a li. Da vi ficou a b or r ecid o, e
p er ceb eu qu e a qu ilo p od ia s ign ifica r d is t ú r b io. E u
p a s s a va a n oit e com Da vi, m a s t in h a m ed o d e qu e
p a s s a s s em a cr it icá -lo. Con cor d a m os em or a r a r es peito
do problema.
Na qu ela n oit e Da vi fa lou -m e s ob r e o b a t is m o n o
E s p ír it o S a n t o. Ou vi-o a t en t a m en t e, m a s n ã o en t en d i o
qu e ele es t a va qu er en d o m e en s in a r . E le leu p a s sagens
d a s E s cr it u r a s n os livr os d e At os , I Cor ín t ios e E fés ios .
E xp licou qu e d ep ois qu e u m a p es s oa é s a lva , Deu s
d es eja t r a n s m it ir -lh e o s eu p od er . E xp licou a con ver s ã o
d e S a u lo em At os 9 ; t r ês d ia s d ep ois d e s u a con ver s ã o,
S a u lo foi b a t iza d o com o E s p ír it o S a n t o, r eceb en d o u m
novo poder.
“É d is s o qu e você p r ecis a , Nick y”, d is s e Da vi.
“Deus deseja dar-lhe poder, e dons especiais.”
“Qu e es p écie d e d on s você qu er d izer ?” p er gu n tei-
lhe.
E le a b r iu a Bíb lia em I Cor ín t ios 1 2 :8 -1 0 e
explicou a respeito dos nove dons do Espírito.
“São dados aos que são batizados no Espírito San-
t o. Pod e s er qu e você n ã o r eceb a t od os , m a s r eceberá
a lgu n s . Nós , p en t ecos t a is , cr em os qu e t od os os qu e s ã o
batizados no Espírito têm dom de línguas.”
“Você qu er d izer qu e eu s er ei ca p a z d e fa la r em
inglês mesmo sem estudar?” perguntei, estupefato.
Da vi ia con t in u a r fa la n d o, p or ém fech ou a Bíb lia :
“O S en h or d is s e a os a p ós t olos p a r a “esperar”, e en tão
r eceb er ia m p od er . Nã o qu er o s er a p r es s a d o a es s e
r es p eit o, com você, Nick y. Va m os es p er a r n o S en h or , e
ele vai batizá-lo, quando estiver preparado para isso. Por
en qu a n t o, t em os u m p r ob lem a n a s m ã os , e p r ecis a m os
orar para resolvê-lo.”
E le d es ligou a lu z e eu d is s e: “S e ele m e d er ou t r a
língua es p er o qu e s eja it a lia n o. E u con h eço a ga r ot a
it a lia n a m a is b a ca n a qu e exis t e, e es t ou cer t o d e qu e...”
Fu i in t er r om p id o p elo t r a ves s eir o d e Da vi qu e s ib ilou
através do quarto e amassou-se contra o meu rosto.
“Du r m a , Nick y. J á é qu a s e d ia , e m et a d e d a ci-
d a d e p en s a qu e você a in d a é u m ch efe d e qu a d r ilh a . S e
ele lh e d er ou t r a lín gu a , é m elh or qu e s eja a lgo qu e es t e
povo possa entender, quando você lhes disser que não é,
na verdade, um assassino.”
Na m a n h ã s egu in t e, Da vi p a r ecia p r eocu p a d o
quando voltou da reunião matutina.
“A s it u a çã o n ã o es t á b oa , Nick y. Va m os p r ecis a r
t ir a r você d a qu i a n t es d e ca ir a n oit e, e eu n ã o s ei p a r a
onde pode ir, a menos que seja de volta para Nova York.”
“Você a ch a qu e o S en h or ou viu n os s a s or a ções
ontem à noite ?” perguntei.
“É cla r o qu e s im . É p or is t o qu e eu or o: p or qu e
creio que ele me ouve.” Davi olhou-me surpreso.
“Você or ou p a r a qu e Deu s t om a s s e con t a d e
mim?”
“Você sabe que sim.”
“Então, por que está tão preocupado ?”
Da vi leva n t ou -s e e en ca r ou -m e d u r a n t e u m m i-
nuto: “Vamos t om a r ca fé, es t a m os a t r a s a d os . E s t ou com
fome, e você?”
Na qu ele d ia , à s d u a s h or a s d a t a r d e, t ocou o
t elefon e n o qu a r t o d o m ot el. E r a o p a s t or d a igr eja on d e
Da vi es t a va p r ega n d o. Ha via u m a s en h or a n o s eu
es cr it ór io qu e qu er ia fa la r con os co. Da vi d is s e que
sairíamos imediatamente.
E n t r a m os e o p a s t or a p r es en t ou -n os à S r a .
J oh n s on qu e via ja r a t r ezen t os qu ilôm et r os , d e s u a ca s a ,
n o n or t e d o E s t a d o d e Nova Yor k . Tin h a s et en t a e d ois
a n os , e d is s e qu e n a n oit e a n t er ior o E s p ír it o S a n t o lh e
fa la r a . Ler a a s n ot ícia s a m eu r es p eit o n os jor n a is , e
a fir m ou qu e o E s p ír it o S a n t o a a vis a r a d e qu e eu es t a va
em dificuldades, e que deveria ir ao meu encontro.
Olh ei p a r a Da vi: gr a n d es lá gr im a s cor r ia m p ela
s u a fa ce. “O s eu n om e p od e s er S r a . J oh n s on , m a s eu
penso que realmente é Sra. Ananias”, disse ele.
“Nã o com p r een d o”, d is s e. Olh ou com es t r a n h eza
para Davi.
“E le es t á s e r efer in d o a o An a n ia s m en cion a d o em
At os 9 , a qu em o E s p ír it o S a n t o t ocou e en viou p a r a
auxiliar Paulo”, interrompeu o pastor.
“S ó s ei qu e o S en h or m e d ir igiu p a r a vir b u s ca r
es t e r a p a z e levá -lo p a r a ca s a ”, d is s e s or r in d o a S r a .
Johnson.
Da vi m a n d ou qu e m e p r ep a r a s s e p a r a volt a r com
ela . Dis s e t a m b ém qu e d ever ia t er u m a r es p os t a d e La
Pu en t e d en t r o d e p ou cos d ia s , e m e a vis a r ia o m a is
depressa possível. Eu não queria ir, mas depois de saber
o qu e a con t ecer a n a n oit e a n t er ior , e ven d o o qu e es t a va
acontecendo, fiquei com medo e atendi.
Du a s s em a n a s m a is t a r d e r eceb i u m telefon em a
d e Da vi. E s t a va exu lt a n t e. Os d ir et or es d o In s t it u t o
Bíb lico t in h a m r es p on d id o. E s t a va m t ã o in t r iga d os a
r es p eit o d a p er s p ect iva d a m in h a id a , qu e con cor d a ram
em d is p en s a r t od os os r equ is it os e a ceit a r -m e com o
a lu n o. E le m a n d ou qu e eu t om a s s e u m ôn ib u s d e volt a
a Nova Yor k , p ois s a ir ia p a r a a Ca lifór n ia n o d ia
seguinte.
Desta vez n ã o s en t i m ed o d u r a n t e a via gem p a r a
Nova Yor k . Lem b r ei-m e d a via gem com o Dr . J oh n , e d a
t er r ível d ep r es s ã o qu e s en t i, d a s en s a çã o d e es t a r
volt a n d o a ca ir n a fos s a . A fos s a , p or ém , d es a parecera.
Desta vez eu estava saindo do deserto.
E u t er ia d e es p er a r cin co h or a s n a es t a çã o r o-
d oviá r ia , a n t es qu e Da vi fos s e en con t r a r com igo.
Con cor d a r a em es p er a r n a p r óp r ia r od oviá r ia , p a r a
evit a r p r ob lem a s . Con t u d o, os p r ob lem a s t in h a m u m
m eio d e m e a ch a r . Vier a m n a for m a d e d ez Vicer oys qu e
for m a r a m u m cír cu lo s ilen cios o a o m eu r ed or , en qu a n t o
me achava sentado, lendo uma revista.
“E i, olh a o m en in o b on it o”, d is s e u m d eles , fa -
zen d o r efer ên cia a o m eu t er n o e gr a va t a . “E i, a lm o-
fa d in h a , você es t á for a d o s eu t er r it ór io. Nã o s a b e qu e
isto é domínio dos Viceroys?”
“E i, t u r m a , s a b em qu em é es t e? É a qu ele Ma u -
Ma u s im p lór io qu e vir ou p r ega d or ”, d is s e d e r ep en t e u m
dos rapazes.
Ou t r o a p r oxim ou -s e d e m im e es p et ou o d ed o n o
m eu r os t o: “E i, p r ega d or , p os s o en cos t a r em você ? Pod e
ser que a sua santidade pegue em mim.”
Dei u m t a p a n a s u a m ã o: “Você qu er m or r er ?”
r os n ei, o velh o Nick y r es s u s cit a n d o. “Pon h a ou t r a vez a
mão em mim, e você é um homem morto.”
“Puxa”, pulou para trás, fingindo surpresa. “Vejam
s ó. E le p a r ece p r ega d or , m a s fa la com o u m ...” e u s ou
um palavrão.
Antes qu e p u d es s e m exer -s e, leva n t ei-m e d e u m
s a lt o e m er gu lh ei o p u n h o n o s eu es t ôm a go. Qu a n d o s e
d ob r ou com o golp e, golp eei-o n a n u ca , com o p u n h o
fechado, fazendo-o cair inconsciente por terra. Os outros
r a p a zes es t a va m s u r p r es os d em a is p a r a s e m over em . As
p es s oa s qu e es t a va m n a es t a çã o r od oviá r ia com eça r a m
a s e es p a lh a r , e a s e es con d er p or t r á s d os b a n cos .
Afastei-me em direção à porta.
“Vocês a í, t en t em qu a lqu er cois a , e m a t o vocês .
Vou a t r á s d os Ma u -Ma u s d ep ois volt o p a r a m a t a r t od os
os Viceroys.
Vira m qu e eu fa la va s ér io e s a b ia m qu e os Ma u -
Maus eram duas vezes mais depravados e mais fortes do
que eles. Olharam uns para os outros e se afastaram em
d ir eçã o à ou t r a p or t a , a r r a s t a n d o o com p a n h eir o m eio
desmaiado.
“E u volt o”, gr it ei. “É m elh or vocês s e mandarem,
p or qu e s e es t iver em a qu i qu a n d o eu volt a r , já s a b em
que vão morrer.”
Cor r i p or t a a for a , em d ir eçã o a u m a en t r a d a d o
m et r ô qu e h a via a li p er t o. Ma s , n o ca m in h o, p a s s ei p or
u m a igr eja d e p es s oa s d e or igem es p a n h ola . Algo em
mim fez com que eu diminuísse o passo, e voltasse. Subi
va ga r os a m en t e os d egr a u s e en t r ei n o ed ifício a b er t o.
Qu em s a b e er a m elh or qu e eu or a s s e a n t es , p en s ei. Ir ia
depois buscar os Mau-Maus.
Uma vez, porém, dentro da igreja, esqueci os Mau-
Maus — e os Viceroys. Comecei a pensar em Jesus, e na
n ova vid a qu e m e es p er a va n o fu t u r o. Ajoelh ei-m e a o p é
d o a lt a r e os m in u t os s e p a s s a r a m com o s egu n d os , a t é
qu e fin a lm en t e s en t i u m t a p in h a n o om b r o. Olh ei. E r a
Davi Wilkerson.
“Quando não encontrei você na estação rodoviária,
imaginei que estivesse aqui”, disse ele.
“Naturalmente”, respondi. “Onde você acha que eu
es t a r ia : d e volt a à ga n g?” E le d eu u m a r is a d a , e s a ím os
em direção ao carro dele.

Capítulo 12

E N V O LV I D O N A E S C O LA

O INS TITUTO BÍBLICO DE LA PUE NTE , Ca li-


fór n ia , é a ca n h a d o e d es p r et en s ios o. E s t á loca liza d o em
u m p equ en o t r a t o d e t er r a , b em p er t o d a cid a d e. A
m a ior p a r t e d os s et en t a a lu n os m a t r icu la d os n a es cola
er a d e fa la es p a n h ola , e qu a s e t od os t in h a m or igem
modesta.
S t eve Mor a les e eu ch ega m os d e a viã o d e Nova
Yor k . A es cola er a d ifer en t e — m u it o d ifer en t e d e t u d o o
qu e eu já exp er im en t a r a . Os r egu la m en t os e h or á r ios
er a m m u it o r ígid os . A es cola er a m u it o s is t em á t ica , e a s
a u la s ia m d e t er ça a s á b a d o. A m a ior p a r t e d os a lu n os
vivia em dormitórios do tipo alojamento militar.
For a m n eces s á r ios vá r ios m es es p a r a qu e eu m e
a cos t u m a s s e com o In s t it u to. E u s em p r e viver a s em
fr eios , m a s n o In s t it u t o t u d o er a r egu la d o p or u m s in o,
d es d e a h or a em qu e n os leva n t á va m os , à s s eis d a
manhã, até o momento das luzes se apagarem, às nove e
t r in t a d a n oit e. De m od o ger a l, n ã o h a via t em p o
d is p on ível, e exigia m d e n ós qu e p a s s á s s em os m a is d e
d u a s h or a s p or d ia em or a çã o, a lém d a s s eis h or a s d e
a u la . Meu m a ior p r ob lem a er a n ã o p od er con ver s a r com
a s ga r ot a s . Is t o er a es t r it a m en t e p r oib id o, e a única
op or t u n id a d e em qu e p od ía m os con ver s a r er a em u n s
p ou cos m om en t os r ou b a d os a n t es e d ep ois d a s a u la s ,
ou en qu a n t o es t á va m os la va n d o p r a t os , d u r a n t e o
cumprimento de nossa escala na cozinha.
Con t u d o, a filos ofia d a es cola er a en s in a r d is ci-
p lin a e ob ed iên cia . E m b or a is s o fos s e m u it o d ifícil p a r a
m im , er a ju s t a m en t e o t ip o d e t r ein a m en t o d e qu e eu
p r ecis a va . Qu a lqu er cois a m en os s ever a me
proporcionaria liberdade em excesso.
As refeições eram fartas, mas estavam longe de ser
a p et it os a s . De m a n h ã ced o, ger a lm en t e com ía m os
m in ga u com t or r a d a s , m a s u m a vez p or s em a n a t í-
n h a m os ovos . Por ém es s a d iet a t íp ica er a p a r t e d efinida
d o n os s o t r ein a m en t o, p ois a m a ior ia ir ia t r a b a lh a r em
r egiões ou b a ir r os p ob r es , m in is t r a n d o a p es s oa s d e fa la
es p a n h ola . S er ía m os , en t ã o, for ça d os a viver em
circunstâncias bem humildes.
Os p r ofes s or es for a m m u it o p a cien t es com igo. E u
n ã o s a b ia com o a gir , e m e s en t ia t er r ivelm en t e in seguro.
Pr ocu r a va com p en s a r m in h a s fa lh a s , a gin d o com
esperteza e ostentação.
Lembro-m e d e cer t a m a n h ã , d u r a n t e o t er ceir o
m ês es cola r , qu a n d o es t á va m os d e p é en qu a n t o o p r o-
fes s or n os d ir igia em u m a lon ga or a çã o n o in ício d a
a u la . E u es t iver a es p r eit a n d o, h a via a lgu m a s s em a n a s ,
a qu ela ga r ot a m exica n a d e ca b elos n egr os , m u it o b onita
e espiritual, que se assentava à minha frente, porém não
con s egu ir a ch a m a r s u a a t en çã o. No m eio d a or a çã o
p egu ei a ca d eir a d ela , a fa s t a n d o-a s ilen cios a m en t e d a
carteira, pensando que assim ela iria sem dúvida ter sua
a t en çã o volt a d a p a r a m im . Dep ois d o “amém”, t od os n os
sent a m os . E la r ea lm en t e m e n ot ou . Vir ou -s e p a r a t r á s ,
em s u a p os içã o d es elega n t e n o ch ã o, e olh ou p a r a m im
com olh os qu e d es p ed ia m ch is p a s d e fogo. Qu a s e
m or r en d o d e r ir , es t en d i a m ã o p a r a a ju d á -la a leva n t a r -
s e, p or ém ela m e en ca r ou fu r ios a e p ôs -s e d e p é s em
minha ajuda. Não disse uma palavra e, de certa forma, a
cois a p er d eu m es m o a gr a ça . E n qu a n t o coloca va a
ca d eir a d e volt a n o lu ga r , ela b a t eu d elib er a d a m en t e
com a perna pontuda da mesma na minha canela. Penso
qu e n u n ca s en t ir a t a n t a d or em t od a a m in h a vid a . O
s a n gu e fu giu -m e d a s fa ces , e p en s ei qu e ia d es m a ia r .
Tod a a cla s s e ca iu n a r is a d a . Fin a lm en t e r ecu p er ei o
cont r ole e olh ei p a r a ela . E la d evolveu -m e o olh a r com
olh os qu e s er ia m ca p a zes d e fu n d ir a b lin d a gem d e u m
t a n qu e d e gu er r a . S or r i d eb ilm en t e, m a s s en t ia o
es t ôm a go em b r u lh a d o. E la vir ou -s e e s en t ou -s e r i-
gidamente na cadeira, olhando para o professor.
E s t e lim p ou a ga r ga n t a , e d is s e: “Agor a qu e
t er m in a m os a d evoçã o m a t in a l, com ecem os a a u la . S r .
Cruz será o primeiro a ser argüido esta manhã.”
Olh ei p a r a ele com olh os fr a cos e in exp r es s ivos .
“S r . Cr u z!” d is s e ele. “O s en h or p r ep a r ou a liçã o, n ã o
foi?” Ten t ei d izer a lgo, m a s m in h a p er n a d oía t a n t o qu e
n ã o p u d e fa la r . “Sr . Cr u z, s a b e qu a l é o ca s t igo p a r a
qu em n ã o p r ep a r a a liçã o. S ei qu e t em grande
d ificu ld a d e com a lín gu a , e qu e a in d a n ã o d is cip lin ou a
m en t e p a r a p en s a r em t er m os a ca d êm icos . Tod os
es t a m os t en t a n d o s er p a cien t es com o s en h or , m a s a
m en os qu e coop er e, n ã o t en h o es colh a : p r ecis o d a r -lhe
u m zer o, e r ep r ová -lo n es t a m a t ér ia . Vou p er gu n t a r -lhe
mais uma vez : preparou a lição?”
S a cu d i a ca b eça a fir m a t iva m en t e, e fiqu ei d e p é.
Min h a m en t e es t a va com p let a m en t e va zia . Fu i m a n -
qu eja n d o a t é a fr en t e d a s a la d e a u la , e olh ei p a r a a
cla s s e. E n ca r ei a ga r ot a b on it a d e olh os n egr os . E la
s or r iu d ocem en t e, e a b r iu o s eu ca d er n o d e for m a qu e
p u d e ver p á gin a s e m a is p á gin a s d e n ot a s es cr it a s com
u m a b elís s im a ca ligr a fia — a liçã o qu e eu d ever ia
a p r es en t a r . Olh ei p a r a o p r ofes s or e d is s e d eb ilm en t e :
“Desculpe-me.” Cor r i p a r a for a d a cla s se, em d ir eçã o a o
dormitório.
E u m e fizer a d e t olo. Pen s a r a qu e p od ia s er “vivo”
e todos iriam rir, como faziam nas quadrilhas. Mas estas
p es s oa s er a m d ifer en t es . E la s m e toler a va m p or qu e
t in h a m d ó d e m im . E u er a u m d es a ju s t a d o, u m
proscrito.
Sentei-me na cama e escrevi uma longa carta para
Da vi Wilk er s on . Dis s e-lh e qu e er a d u r o viver a li, e qu e
eu com et er a u m er r o em t er a ceit o s u a ofer t a . E u s en t ia
decepcioná-lo, m a s t in h a m ed o qu e fos s e d eixá -lo
em b a r a ça d o, s e con t in u a s s e n a es cola . Ped i-lh e p a r a
mandar-m e u m a p a s s a gem d e a viã o, p a r a qu e p u d es s e
volt a r . Ma n d ei a ca r t a exp r es s a , e en d er ecei-a à ca s a d e
Davi na Pensilvânia.
A r es p os t a d ele ch egou u m a s em a n a d ep ois . Ra s -
gu ei o en velop e a n s ios a m en t e, p a r a en con t r a r u m p e-
queno bilhete :

“Querido Nicky :
Fico s a t is feit o em s a b er qu e você es t á in d o t ã o
bem. Ame a Deus e fuja de Satanás.
Pen a qu e eu n ã o t en h a d in h eir o em ca ixa , a gor a .
E s cr ever ei m a is t a r d e p a r a você, qu a n d o con s egu ir
algum dinheiro. Seu amigo, Davi.”

Fiqu ei d oen t e, con fu s o e fr u s t r a d o. E s cr evi en t ã o


u m a ca r t a exp r es s a a o S r . Delga d o. E u s a b ia qu e ele
t in h a d in h eir o, m a s t ive ver gon h a d e con t a r -lh e qu e
es t a va p a s s a n d o p or h or a s t ã o d u r a s n a es cola . Dis s e-
lh e qu e m in h a fa m ília em Por t o Rico p r ecis a va d e
d in h eir o e eu t in h a d e ir p a r a lá , a r r u m a r u m em p r ego e
ajudá-la . Fa zia u m a n o qu e eu n ã o tin h a n ot ícia s d e
m in h a fa m ília , m a s p a r ecia -m e a ú n ica es t ór ia qu e eu
podia contar, sem me complicar.
Um a s em a n a d ep ois , r eceb i u m a ca r t a exp r es s a
do Sr. Delgado :

“Querido Nicky:
Fiqu ei s a t is feit o em r eceb er n ot ícia s s u a s . E n viei
dinheiro para a sua família, para que você possa ficar na
escola. Deus o abençoe.”

Na qu ela n oit e, fu i con ver s a r com o Dir et or , o S r .


Lopez. Contei-lhe os problemas que estava tendo. Estava
m e r eb ela n d o con t r a t od a a a u t or id a d e. No d ia a n t er ior ,
for a m in h a vez d e la va r o a u d it ór io, e eu a tir a r a o
es fr egã o n o a s s oa lh o e d is s er a a eles qu e vier a à
Ca lifór n ia p a r a es t u d a r , e n ã o p a r a t r a b a lh a r com o u m
escravo. Eu ainda andava gingando. Sabia que não devia
p en s a r com o o velh o Nick y p en s a va — m a s n ã o
con s egu ia . Qu a n d o os ou t r os r a p a zes d o d or mitório
t en t a r a m or a r p or m im , eu os em p u r r ei e d is s e-lh es qu e
er a m b on s d em a is p a r a m im . E u er a u m t r a p a ceir o. Um
ga n gs t er . E les t od os er a m s a n t os . E les qu er ia m or a r p or
m im e im p or a s m ã os s ob r e m im , m a s eu m e r ecu s ei a
p er m it ir qu e s e a p r oxim a s s em . Ch or ei lá gr im a s
a m a r ga s , s en t a d o em s eu p equ en o es cr it ór io, e cla m ei
pedindo sua ajuda.
O S r . Lop ez er a u m h om em p equ en o, d e p ele
b r on zea d a . Ou viu -m e s ilen cios a m en t e, m en eou a ca -
b eça , e fin a lm en t e es t en d eu a m ã o, p ega n d o s u a velha
Bíb lia qu e es t a va es con d id a d eb a ixo d e u m a p ilha
enorme de provas não corrigidas.
“Nick y, você p r ecis a d e u m r ela cion a m en t o m a is
ín t im o com o E s p ír it o S a n t o. Você foi s a lvo e qu er s egu ir
a J es u s , m a s ja m a is t er á qu a lqu er vit ór ia r ea l em s u a
vid a , en qu a n t o n ã o r eceb er o b a t is m o d o E s p írito
Santo.”
Fiqu ei a li s en t a d o, ou vin d o o S r . Lop ez ler , n a
Bíb lia a b er t a , ver s ícu los qu e fa la m d a m a r a vilh os a
vit ór ia qu e eu p od er ia a lca n ça r , s e r eceb es s e o E s p írito
de Deus.
“E m At os 1 ”, d is s e ele, “os a p ós t olos es t a va m n a
m es m a s it u a çã o em qu e você es t á . Tin h a m s id o s a lvos,
p or ém , n ã o t in h a m p od er . Dep en d ia m d a p r es en ça fís ica
d a p es s oa d e J es u s Cr is t o p a r a p r op or cionar-lh es p od er .
E n qu a n t o es t a va m p er t o d ele, s en t ia m p od er . Qu a n d o,
porém, for a m s ep a r a d os d ele p er d er a m o p od er . S ó u m a
vez n os E va n gelh os en con t r a m os o r egis t r o d e J es u s
cu r a n d o a lgu ém s em es t a r p r es en t e. Foi o ca s o d o s er vo
d o cen t u r iã o. Por ém , m es m o n es s e ca s o, o cen t u r iã o
p r ecis ou d irigir-s e a J es u s p a r a exer cer s u a fé. E m
Ma t eu s r egistra-s e qu e J es u s com is s ion ou os d oze
d is cíp u los e d eu -lh es p od er s ob r e os es p ír it os im u n d os ,
p a r a expulsá-los , e p a r a cu r a r t od a s or t e d e
en fer m id a d es . Ma s , m es m o t en d o r eceb id o a or d em , eles
n ã o p os s u ía m p od er s u ficien t e p a r a con tin u a r s ozinhos.
Encontra-s e evid ên cia d is s o n o fim d o m es m o livr o,
qu a n d o u m h om em levou s eu filh o p a r a s er cu r a d o p or
J es u s , d izen d o qu e o a p r es en t a r a a os d is cíp u los , e eles
não tiveram poder para curá-lo.”
Ou vi a t en cios a m en t e, en qu a n t o os d ed os d o d i-
r et or m ovia m -s e a gilm en t e, d em on s t r a n d o fa m ilia r idade
com a Bíb lia , ga s t a p elo u s o. “No J a r d im d o Gets êm a n i,
J es u s a fa s t ou -s e d os d is cíp u los p a r a or a r . Ma s logo qu e
ele d es a p a r eceu d e vis t a , eles p er d er a m o p od er . J es u s
p ed ir a qu e fica s s em a cor d a d os e vigia s s em , m a s eles
caíram no sono.”
Pen s ei com m eu s b ot ões : “É ju s t a m en t e is s o qu e
a con t ece com igo. S ei o qu e ele qu er qu e eu fa ça , m a s
n ã o t en h o for ça s p a r a fa zê-lo. E u o a m o e qu er o s er vi-lo,
mas não tenho poder.”
O d ir et or con t in u ou fa la n d o, a ca r icia n d o a Bíb lia
com a s m ã os , com o s e es tives s e t oca n d o a p on t a d os
d ed os d e u m velh o e qu er id o a m igo. S eu s olh os b r i-
lh a va m , ú m id os , en qu a n t o ele fa la va d o s eu p r ecioso
Senhor: “Dep ois , você s e lem b r a , n a qu ela m es m a n oit e
qu a n d o Ped r o es t a va a o la d o d e for a d o p a lá cio, no
m om en t o em qu e leva r a m o s eu S en h or , ele p er d eu o
p od er . Tor n ou -s e u m cova r d e es p ir it u a l. Na qu ela n oit e,
a t é m es m o u m a cr ia d a p ôs a d es cob er t o s u a m en t ir a ,
fa zen d o com qu e Ped r o b la s fem a s s e con t r a o s eu
Salvador, e até negasse que o conhecia.”
Lop ez r es p ir ou fu n d o, d a n d o u m s u s p ir o, e gr a n -
d es lá gr im a s s e for m a r a m n os s eu s olh os , ca in d o n a s
p á gin a s a m a r ela d a s d a Bíb lia a b er t a : “Nick y, is t o é
m u it o s em elh a n t e a t od os n ós . Com o é t r á gico! Com o é
t er r ivelm en t e t r á gico, qu e n a s u a h or a d e n eces s id a d e,
ele t eve d e fica r s ozin h o! Ap r ou ves s e a Deu s qu e eu
es t ives s e lá p a r a fica r com ele... p a r a m or r er com ele.
Ma s a s s im m es m o, Nick y, t en h o a im p r es s ã o d e qu e eu
s er ia igu a l a Ped r o, p or qu e o E s p ír it o S a n t o a in d a n ã o
vier a , e eu , d ep en d en d o d a s m in h a s p r óp r ia s forças,
teria também abandonado meu Salvador.”
Pa r ou d e fa la r p or u m m om en t o, p ois s u a voz
ficou s u foca d a . Tir ou o len ço d o b ols o e a s s oou r u i-
dosamente o nariz.
Rea b r iu a Bíb lia em At os , e con t in u ou : “Nicky,
lembra-se do que aconteceu depois da crucificação ?”
Men eei a ca b eça . E u con h ecia m u it o p ou co a Bí-
blia.
“Tod os os d is cíp u los d es is t ir a m . Foi is t o qu e
a con t eceu . E les d is s er a m qu e t u d o es t a va t er m in a d o, e
ia m volt a r a os s eu s b a r cos d e p es ca . O ú n ico p od er qu e
eles t in h a m er a o qu e flu ía d a p r es en ça fís ica d e J es u s ,
em qu em vivia o E s p ír it o S a n t o. Ma s , d ep ois qu e
r es s u s cit ou , J es u s lh es r ecom en d ou qu e volta s s em a
J er u s a lém e es p er a s s em a t é r eceb er em n ovo p od er ... o
prometido poder do Espírito Santo.
“A ú lt im a p r om es s a feit a p or J es u s a os s eu s s e-
guidores , foi a d e qu e eles r eceb er ia m p od er . Veja a qu i
em At os 1 :8 .” E le es t en d eu a Bíb lia p or s ob r e a
es cr iva n in h a , p a r a qu e p u d és s em os ler ju n t os : “Mas
r eceb er eis p od er , a o d es cer s ob r e vós o E s p ír it o S a n t o, e
s er eis m in h a s t es t em u n h a s t a n t o em J er u s a lém com o
em toda a Judéia, e Samaria, e até aos confins da terra.”
“Veja , Nick y, is t o n ã o é u m a or d em p a r a s a ir p elo
m u n d o d a n d o t es t em u n h o. É u m a p r om es s a d e qu e
r eceb er ía m os p od er . E qu a n d o os a p ós t olos r eceberam
p od er , n ã o p u d er a m d eixa r d e s er t es t em u nhas.
Receb er a m p od er p or oca s iã o d o b a t is m o d o E s p ír it o
S a n t o. O E s p ír it o volt a r a d os céu s d e m a n eir a p od er os a
e m a gn ificen t e, en ch en d o ca d a u m d a qu eles a p ós t olos
com o mesmo poder possuído por Jesus.”
E u m e r em exi n a ca d eir a : “S e ele já en viou o s eu
Espírito”, disse eu, “por que não o enviou a mim ?”
“Ma s ele en viou ”, r es p on d eu o d ir et or , qu e s e p ôs
ou t r a vez d e p é, e com eçou a a n d a r p a r a cá e p a r a lá , a o
la d o d e s u a p equ en a es cr iva n in h a ; “ele en viou ! S ó qu e
você ainda não o recebeu.”
“Enviar. Receber. Qual é a diferença ?”
“O E s p ír ito d e Deu s es t á em você, Nick y. E le en -
t r ou em s u a vid a n a qu ela n oit e, n a Ar en a S t . Nich olas.
Ninguém pode dizer: “Senhor Jesus!” senão pelo Espírito
S a n t o. Foi o E s p ír it o qu em o con ven ceu d os s eu s
p eca d os . Foi o E s p ír it o qu em lh e d eu o p od er p a r a
a ceit a r a J es u s com o s eu S en h or . Foi o E s p ír ito qu em
a b r iu a s p or t a s p a r a qu e você en t r a s s e n es t a es cola .
Ma s você a in d a n ã o d eixou qu e ele o p os s u ís s e
completamente.”
“Com o é qu e eu fa ço, en t ã o?” p er gu n t ei s in ce-
ramente. “Ten h o t en t a d o p u r ifica r m in h a vid a , livr a r -me
d e t od os os m eu s p eca d os . Ten h o jeju a d o e or a d o, m a s
nada aconteceu.”
“Você n a d a fa z, Nick y. Você s im p les m en t e o r e-
cebe.” Sacudi a cabeça. Ainda estava confuso.
O S r . Lop ez p egou a Bíb lia d e n ovo e en con t r ou
com fa cilid a d e o livr o d e At os . “Vou con t a r -lh e a h is tória
d e u m h om em ch a m a d o S a u lo. E s t a va a ca m in h o d e
Da m a s co p a r a u m gr a n d e “quebra-pau”, m a s foi
d er r u b a d o p elo E s p ír it o d e Cr is t o, n a es t r a d a . Tr ês d ia s
d ep ois ele foi b a t iza d o n o E s p ír it o e com eçou a p r ega r .
Desta vez o poder veio através da imposição de mãos.”
“É es t a a m a n eir a p ela qu a l eu p os s o r eceb ê-lo ?”
perguntei. “Algu ém ir á im p or a s m ã os s ob r e m im e s er ei
batizado com o Espírito Santo?”
“Pod e s er qu e s eja d es s a m a n eir a ”, r es p on d eu o
S r . Lop ez. “Ou você p od e r ecebê-lo qu a n d o es t iver
s ozin h o. Ma s , u m a vez qu e is t o a con teça , a s u a vid a
jamais será a mesma.”
E le p a r ou , e d ep ois , olh a n d o-m e b em n o fu n d o
d os olh os , d is s e: “O m u n d o p r ecis a d e s u a voz, Nick y.
Há centenas de milhares de jovens pelos Estados Unidos
que a in d a vivem on d e você viveu — e d a m es m a for m a
com o você viveu . E s t ã o p r es os n os la ços d o m ed o, d o
ód io e d o p eca d o. Neces s it a m d e u m a voz p r ofét ica
p od er os a qu e s e leva n t e n a s fa vela s e n os gu et os , e
indique-lh es Cr is t o, qu e é a ú n ica s a íd a p a r a a s s u a s
m is ér ia s . E les n ã o vã o ou vir os eloqü en t es or a d or es d os
p ú lp it os m od er n os . Nem d a r a t en çã o a os p r ofes s or es d e
s em in á r ios e in s t it u t os b íb licos . Nem a t en d er a os
vis it a d or es s ocia is . Nã o d a r ã o cr éd it o a os eva n gelis t a s
profission a is . Nã o vã o à s gr a n d es igr eja s , e m es m o qu e
o fizes s em , n ã o s er ia m b em r eceb id os . E les p r ecis a m d e
u m p r ofet a s a íd o d e s u a s p r óp r ia s fileir a s , Nick y. E
d es d e es t e m om en t o, vou com eça r a or a r p a r a qu e s eja
você es s e p r ofet a . Você fa la a lin gu a gem d eles . Viveu
on d e eles vivem . É com o eles . Você od iou com o eles
od eia m . Teve m ed o com o eles t êm . Agor a Deu s t ocou
s u a vid a e o ch a m ou p a r a for a d a s a r jet a , a fim d e qu e
possa chamar outros para seguirem o caminho da cruz.”
Houve um longo período de silêncio sagrado. Ouvi-
o d izer : “Nick y, qu er qu e eu or e p a r a qu e você r eceb a o
Espírito Santo?”
Pen s ei b a s t a n t e, e d ep ois r es p on d i: “Nã o. Ach o
qu e is t o é a lgo qu e d evo r eceb er s ozin h o. S e t en h o qu e
m e m a n t er p or m im m es m o, d evo r eceb ê-lo s ozinho.
Cr eio qu e ele vir á qu a n d o ch ega r a h or a ... p or qu e eu já
estou preparado.”
O d ir et or olh ou p a r a m im e s or r iu : “Você é
prudente, Nicky. Suas palavras só poderiam ter vindo do
E s p ír it o d e Deu s . Mu it o b r eve s u a vid a va i m u d a r
com p let a m en t e. Or a r ei p or você, en qu a n t o você or a p or
si próprio.”
Olh ei r a p id a m en t e p a r a o r elógio d e p a r ed e. E u
p a s s a r a qu a t r o h or a s com ele. E r a m d u a s d a m a -
drugada.
As cin co n oit es s egu in t es for a m p a s s a d a s em
or a çã o a gon iza n t e, n a ca p ela . Meu s d ia s er a m ch eios d e
a t ivid a d e es t u d a n t il, m a s à n oit e eu m e d ir igia p a r a a
ca p ela , a fim d e s u p lica r a Deu s p a r a qu e m e b a t iza s s e
n o s eu S a n t o E s p ír it o. E u n ã o s a b ia or a r , excet o em voz
a lt a . Com ecei a s s im a or a r em voz ca d a vez m a is a lt a .
E u m e a joelh a va d ia n t e d o a lt a r , e cla m a va a Deu s :
“Batiza-m e, b a t iza -m e, b a t iza -me!” Ma s , n a d a a con t ecia .
E r a com o s e o s a lã o fos s e u m a ca ixa h er m et ica m en t e
fech a d a , o qu e im p ed ia m in h a voz d e s u b ir a t é os céu s .
Noit e a p ós n oit e eu ia à ca p ela , a joelh a va , d a va s ocos n o
gr a d il d o a lt a r , e gr it a va : “Batiza-m e, ó Deu s , p or fa vor ,
batiza-m e, p a r a qu e eu t en h a o p od er d e J es u s .” Ten t ei
m es m o p r on u n cia r p a la vr a s em u m a lín gu a d es con h e-
cida, mas não saiu nada.
Na s ext a -feir a à n oit e, d ep ois d e u m a s em a n a d e
qu a t r o a cin co h or a s d e or a çã o in fr u t ífer a p or n oit e, eu
es t a va a p on t o d e es t ou r a r s ob a t en s ã o em ocional. S a í
da ca p ela , b em t a r d e, e es t a va a t r a ves s a n d o
va ga r os a m en t e o p á t io, qu a n d o ou vi a lgu ém gr it a n d o
a t r á s d o p r éd io on d e fica va m a s s a la s d e a u la . Cor r i
p a r a o la d o d e on d e ou vir a o b a r u lh o e d ei d e fr en t e com
Rob er t o, ex vicia d o em d r oga s : “O qu e foi, Rob er t o ? O
que foi?”
E le leva n t ou os b r a ços e gr it ou : “Glór ia a Deu s !
Glória a Deus ! Glória a Deus !”
“O que aconteceu ? Por que você está tão alegre ?”
“E u fu i b a t iza d o n o E s p ír it o. Agor a m es m o, h á
p ou cos m in u t os , eu es t a va or a n d o e Deu s t ocou m inha
vida e en ch eu -m e d e a legr ia e felicid a d e. Nã o p os s o
parar. Preciso ir. Preciso contar ao mundo inteiro. Glória
a Deus, Nicky, glória ao seu maravilhoso nome!” Ele saiu
cor r en d o p elo p á t io, p u la n d o e gr it a n d o: “Alelu ia ! Glór ia
a Deus!”
“E i, es p er e u m m in u t o”, s a í gr it a n d o a t r á s d ele.
“Rob er t o ! Rob er t o ! On d e você r eceb eu o b a t is m o? On d e
você estava quando isso aconteceu ?”
E le vir ou -s e, e qu a s e s em fôlego, a p on t ou p a r a o
p r éd io d a es cola . “Na cla s s e. Na s a la gr a n d e. E u es t a va
n a fr en t e, d e joelh os , e ele m e en ch eu d e fogo. Alelu ia !
Glória a Deus!”
Nã o es p er ei p a r a es cu t a r m a is . S a í cor r en d o lou -
ca m en t e p elo p á t io, em d ir eçã o à cla s s e. S e ele t ocara
Rob er t o, p od ia s er qu e a in d a es t ives s e lá e m e t oca s s e
t a m b ém . Des lizei p ela p or t a d o ed ifício e cor r i s a gu ã o a
d en t r o, a t é o s a lã o. Fr ea n d o à p or t a , es p iei. Tu d o es t a va
escuro e silencioso.
E n t r ei d eva ga r n a s a la va zia e es cu r a , e t a t eei p or
en t r e a s ca r t eir a s , a t é ch ega r à fr en t e. Ajoelh ei a o la d o
d a ca r t eir a on d e a ga r ot a b on it a d e olh os n egr os s e
es t en d er a t ã o s em cer im ôn ia n o ch ã o, qu a n d o a fa s t ei a
ca d eir a . Nã o t ive t em p o para r econ s t it u ir o
a con t ecim en t o em m in h a m en t e; coloqu ei-m e d e m ã os
postas, na posição tradicional de prece, e ergui o rosto.
Em alta voz, gritei então: “Deus, sou eu, Nicky! Eu
t a m b ém es t ou a qu i. Ba t iza -me!” E s p er ei a n s iosamente.
Nada aconteceu.
Ta lvez eu es t eja fa la n d o com a p es s oa er r a d a ,
p en s ei. Vou t en t a r ou t r a vez. “Jesus”, gr it ei com t od a s
as forças dos pulmões, “sou eu, Nicky Cruz, aqui na sala
d e a u la s , em La Pu en t e. E s t ou es p er a n d o p a r a s er
b a t iza d o n o t eu E s p ír it o. Per m it e qu e eu r eceb a o
batismo.” A a n s ied a d e er a t ã o gr a n d e qu e eu qu a s e m e
sentia suspenso no ar. Minha boca estava aberta, pronta
p a r a fa la r em lín gu a s . Min h a s p er n a s es t a va m t en s a s
d eb a ixo d e m im , p r on t a s p a r a p u la r e cor r er com o
Rob er t o. Na d a , p or ém , a con t eceu . Na d a . S ilên cio. O
a s s oa lh o t or n ou -s e d u r o, e m eu s joelh os com eça r a m a
d oer . Leva n t ei-m e va ga r os a m en t e e s a í d es a n im a d o,
atravessei o pátio escuro e fui para o dormitório.
O a r r ecen d ia com o p er fu m e d os ja s m in s qu e
d es a b r och a va m d u r a n t e a n oit e. A gr a m a es t a va ú m ida
d eb a ixo d os m eu s p és , r ega d a p elo or va lh o d a
m a d r u ga d a . Nos a r b u s t os , ou vi o ca n t o s olit á r io d e u m
curiango, e algures, à distância, ouvi o resfolegar grave e
p la n gen t e de uma locom ot iva d ies el, p u xa n do
vagarosamente os va gões ca r r ega d os , la d eir a a cim a . A
lu a es con d eu -s e p or t r á s d e u m a n u vem es cura
s em elh a n t e a u m a d a m a s ed u t or a , es gu eir ou -s e p a r a
d en t r o d o s eu a p a r t a m en t o e fech ou a p or t a . O p er fu m e
d os ja s m in s flu t u a va n o a r fr io d a n oit e, e a s lâ m p a d a s
d os p os t es p is ca va m qu a n d o o ven t o a git a va os r a m os
d a s p a lm eir a s d ia n t e d os r a ios d a s u a lu z. E u es t a va
sozinho no paraíso de Deus.
E n t r ei s ilen cios a m en t e n o d or m it ór io, e en ca m i-
nhei-m e, gu ia d o p ela for ça d o h á b it o, p a r a m eu b eliche
na p en u m b r a . Deit ei-m e d e cos t a s n a ca m a , com a s
m ã os cr u za d a s s ob a ca b eça , d e olh os a r r ega la d os n a
es cu r id ã o. E u p od ia ou vir o r es s on a r s u a ve d os ou t r os
rapazes. “Deus!” s olu cei. E s en t i lá gr im a s es ca ld a n t es
me subirem aos olhos e correrem para dentro de minhas
or elh a s , e s ob r e o tr a ves s eir o. “Fa z u m a s em a n a qu e eu
estou pedindo, e tu não me atendeste. Eu não presto. Já
s ei p or qu e n ã o p u d e r eceb er -t e: é p or qu e eu n ã o s ou
d ign o. E u a jo com o u m im b ecil em r ela çã o à s ou t r a s
pess oa s . Nem s ei com o s egu r a r o ga r fo e a fa ca . Nã o s ei
ler d ir eit o, n em r a ciocin a r com ligeir eza s u ficien t e p a r a
a s s im ila r os en s in a m en t os . Tu d o o qu e s ei é d a ga n g.
E s t ou t ã o d es loca d o a qu i, e s ou t ã o s u jo e p eca d or ... E u
qu er o s er b om . Ma s n ã o p os s o s er b om s em o t eu
E s p ír it o. Nã o ob s t a n t e, t u n ã o o d á s p or qu e eu n ã o s ou
bastante digno.”
A im a gem d o m eu velh o qu a r t o, n a Ru a For t
Gr een e, 5 4 , a t r a ves s ou -m e a m en t e com o u m
r elâ m p a go, e eu com ecei a t r em er in con t r ola velm en t e.
“E u n ã o qu er o volt a r , m eu Deu s , m a s o qu e a con t ece é
qu e n ã o con s igo m e a ju s t a r a qu i. Tod os es t es r a p a zes e
es t a s m oça s s ã o t ã o es p ir it u a is e s a n t os , e eu t ã o
im p u r o e p eca d or ... r econ h eço qu e es t ou for a d o m eu
lu ga r . Vou volt a r a m a n h ã .” Vir ei-m e d e la d o, e ca í n u m
sono agitado.
Dep ois d a a u la , n o d ia s egu in t e, volt ei a o d or -
m it ór io p a r a a r r u m a r m in h a s m a la s . Tin h a r es olvid o
s a ir fu r t iva m en t e d a es cola , e em p r een d er a lon ga
jor n a d a d e volt a p a r a ca s a — p ed in d o ca r on a . Nã o
adiantava ficar ali.
Na qu ela n oit e, s en t a d o n o m eu b elich e, os m eu s
p en s a m en t os for a m in t er r om p id os p or u m d os a lu n os
externos.
“Ah , Nick y! É você m es m o qu e eu qu er ia en -
contrar.”
Pen s ei com m eu s b ot ões : “É você m es m o qu e eu
não queria encontrar.”
“Nicky”, con t in u ou ele n u m t om a legr e, “vamos
r ea liza r u m es t u d o b íb lico e u m cu lt o n a p equ en a igr eja
do Boulevard Guava. Eu quero que você vá comigo.”
S a cu d i a ca b eça : “Hoje n ã o, Gen e. E s tou ca n s a d o,
e t en h o m u it o o qu e es t u d a r . Con vid e u m d os ou t r os
rapazes.”
“Ma s n ã o h á n en h u m ou t r o r a p a z p or a qu i”, d is s e
ele en qu a n t o m e d a va u m t a p in h a n a s cos t a s , “e a lém
disso, o Espírito Santo me mandou procurar você.”
“Hu m m m , o E s p ír it o, é? Bem , o E s p ír it o m e
m a n d ou fica r a qu i e d es ca n s a r u m p ou co, p ois eu t en h o
es t a d o m u it o ocu p a d o fa la n d o com ele a s em a n a in t eir a .
Agor a , r a s p e-s e e d eixe-m e d es ca n s a r .” Deit ei e d ei-lhe
as costas.
“Não sairei daqui se você não for comigo”, disse ele
t eim os a m en t e. S en t ou -se a os p és d e m in h a ca m a , e
cruzou as pernas.
Fiqu ei exa s p er a d o. O r a p a z es t a va lou co. S er á qu e
não percebia que eu não queria ir ?
“Tá b om ”, s u s p ir ei, “vou com você. Ma s , n ã o s e
surpreenda se eu cochilar no culto.”
“Vamos”, d is s e Gen e a legr em en t e, p u xa n d o-me
pelo braço. “Estamos atrasados, e tenho de pregar.”
E u con cor d a r a em ir p or qu e d ecid ir a s a ir d e m a n -
s in h o d ep ois d o cu lt o, e a r r a n ja r u m a ca r on a p a r a a
cid a d e. Met i n o b ols o à s p r es s a s a es cova d e d en t es e
a lgu n s ou t r os p er t en ces e r es olvi d eixa r o r es t o d a
bagagem. Afinal de contas, não valia muita coisa.
Ch ega m os à p equ en a ca p ela m a is ou m en os à s
s et e e t r in t a d a n oit e. E r a feit a d e a d ob e, r eb oca d a p or
d en t r o. Os t os cos b a n cos d e m a d eir a es t a va m ch eios d e
mexicanos simples e sinceros. “Pelo menos estou em boa
companhia”, p en s ei. “At é m es m o es t a gen t e é m elh or d o
qu e eu . Pelo m en os es t ã o a qu i p or qu e qu er em . E u es t ou
aqui porque fui forçado a vir.”
Gene pregou cerca d e qu in ze m in u t os , e d ep ois fez
o a p elo. E u es t a va s en t a d o n o ú lt im o b a n co, a o la d o d e
um homem de cabelos grisalhos que recendia fortemente
a s u jeir a e s u or . S u a s r ou p a s es t a va m s u ja s , com o s e
ele t ives s e vin d o d ir et a m en t e d o ca m p o s em t er t om a d o
banho. E n qu a n t o Gen e or a va , m eu vizin h o d e b a n co
com eçou a ch or a r : “J es u s , J es u s , J es u s ”, m u r m u r a va
ele sem parar. “Obrigado, Jesus. Oh, obrigado, Jesus.”
Algo m oveu s e d en t r o d e m im . E r a com o s e a l-
gu ém t ives s e a b er t o u m a t or n eir a , u m p ou qu in h o s ó, a
princípio; e qu e, d ep ois , com eça s s e a jor r a r . “Obrigado,
Jesus”, orava o velho granjeiro ao meu lado, “obrigado.”
“Oh , Deu s !” s olu cei, “Oh , J es u s , J es u s .” Cer r ei os
d en t es , e t en t ei s egu r a r a a va la n ch e, m a s a s com portas
n ã o a gü en t a r a m , e eu m e vi cor r en d o cor red or a b a ixo,
em d ir eçã o a o a lt a r , t r op eça n d o e ca m b a lea n d o, a t é qu e
ca í d e en con t r o a o gr a d il d e m a d eir a b r u t a , ch or a n d o
incontrolavelmente.
S en t i a s m ã os d e Gen e s ob r e m im . “Nicky.” E u
qu a s e n ã o ou via a s u a voz, p or ca u s a d e m eu s s olu ços.
“Nick y, Deu s n ã o ia d eixa r você fu gir es t a n oit e. O s eu
E s p ír it o veio a m im h á u m a h or a a t r á s , e m a n d ou qu e
fos s e a o d or m it ór io, p a r a b u s ca r e t r a zer você a es t e
cu lt o. E u s a b ia qu e você p la n eja va fu gir . E le en viou -me
para impedi-lo.”
Com o ele s a b ia ? Nin gu ém s a b ia ! Nin gu ém , exceto
Deus.
“Deus me enviou a você, Nicky. Todos os rapazes e
professores estão orando por você, na escola. Sentimos a
m ã o d e Deu s s ob r e você d e m a n eir a m a ravilhosa.
S en t im os qu e ele es t á p a r a en ca m in h á -lo a u m gr a n d e e
p r ecios o m in is t ér io. Nós gos t a m os d e você. Nós a m a m os
você. Amamos você.”
As lá gr im a s cor r ia m com o r ega t os . E u qu er ia
fa la r , m a s n ã o con s egu i d izer n a d a . Per ceb i qu e ele d eu
a volt a p elo gr a d il tos co, s em p in t u r a , p ôs o b r a ço a o
r ed or d os m eu s om b r os , e a joelh ou -s e a o m eu la d o.
“Pos s o or a r p or você, Nick y ? Pos s o or a r p a r a qu e Cr is t o
o batize no seu Santo Espírito ?”
Ten t ei r es p on d er , m a s o ch or o a u m en t ou . Acenei
a fir m a t iva m en t e com a ca b eça , r es m u n gu ei qu a lqu er
cois a qu e ele in t er p r et ou com o s en d o u m a r es p os t a
afirmativa.
E u n ã o t ive con s ciên cia d a s u a or a çã o, n em
p r es t ei a t en çã o n ela . Nem s ei s e ele or ou ou n ã o. De
r ep en t e, a b r i a b oca , e d ela s a ír a m os m a is b elos s on s
qu e eu já ou vi. S en t i u m a gr a n d e p u r ifica çã o in t er ior ,
como se o meu corpo estivesse sendo limpo, desde a sola
d os p és a t é o a lt o d a ca b eça . A lin gu a gem com qu e eu
es t a va lou va n d o a Deu s n ã o er a in glês n em es p a n h ol.
Era uma língua desconhecida. Eu não tinha idéia do que
estava fa la n d o, m a s s a b ia qu e er a lou vor a o Deu s S a n -
t ís s im o, em p a la vr a s qu e, p or m im m es m o, ja m a is s er ia
capaz de formar.
O correr do tempo perdeu qualquer significado, e a
d u r eza d a s t á b u a s em qu e eu es t a va a joelh a d o n ã o fez
d ifer en ça . E u es t a va lou va n d o a Deu s d a m a n eir a qu e
sempre desejara, e nunca mais ia parar.
Pareceu-me que se haviam passado apenas alguns
m om en t os , qu a n d o s en t i Gen e m e s a cu d ir p elo om b r o:
“Nick y, es t á n a h or a d e ir . Pr ecis a m os volt a r p a r a a
escola.”
“Nã o, es t á m u it o b om a qu i”, ou vi-m e d izer , “deixe-
me ficar aqui para sempre.”
“Nicky”, ele in s is t iu , “p r ecis a m os ir . Você p od e
con t in u a r qu a n d o volt a r m os , m a s a gor a p r ecis a m os ir
embora.”
Leva n t ei os olh os . A igr eja es t a va va zia ; s ó n ós
dois estávamos ali. “Ei, onde está o pessoal?”
“Ra p a z, s ã o on ze h or a s d a n oit e. Fa z u m a h or a
que todos saíram.”
“Qu er d izer qu e es t ive or a n d o d u a s h or a s ?” Nã o
podia acreditar.
“Ob r iga d o, J es u s , ob r iga d o!” gr it ei, en qu a n t o
corríamos para o carro.
Gen e d eixou -m e d efr on t e a o d or m it ór io, e foi
em b or a . Cor r i p a r a d en t r o e a cen d i a lu z. Com ecei a
ca n t a r com t od a s a s for ça s : “S a n t o, S a n t o, S a n t o, Deu s
onipotente!”
“E i, qu e b a r u lh o é es s e ? O qu e é qu e d eu em
você?” com eça r a m a gr it a r . “Ap a gu e es s a lu z. Qu e
loucura é essa? Apague a luz!”
“Calma”, gr it ei. “Hoje es t ou celeb r a n d o. Vocês n ã o
sabem o que me aconteceu, mas eu sei, e quero cantar...
Glór ia , glór ia , a lelu ia !...” Um a fu zila r ia d e t r a ves s eir os
m e a t in giu , vin d o d e t od os os ca n t os d o qu a r t o. “Apague
a lu z!” Ma s eu s a b ia qu e u m a lu z s e a cen d er a em m in h a
a lm a , qu e ja m a is h a ver ia d e a p a ga r -s e. Br ilh a r ia p a r a
sempre.
Na qu ela n oit e, s on h ei d e novo — p ela p r im eir a vez
d es d e qu e for a s a lvo. No s on h o, eu es t a va n o a lt o d a
colin a , p er t o d e La s Pied r a s , em Por t o Rico, on d e eu
subira muitas vezes em meus pesadelos. Olhando para o
céu , vi a for m a d e u m p á s s a r o. Mes m o d or m in d o,
com ecei a t r em er , e t en t ei leva n tar-me. “Oh , Deu s , n ã o
permita que isso comece de novo. Por misericórdia!” Mas
o p á s s a r o ch ega va ca d a vez m a is p er t o. S ó qu e d es t a vez
n ã o er a o p a s s a r in h o s em p er n a s — er a u m a p om b a .
Encolhi-m e d e t er r or , p en s a n d o qu e ela ir ia b ica r -m e, e
bater com a s a s a s n o m eu r os t o. Ma s n ã o — n a d a d is s o
acont eceu . E r a u m a p om b a m a n s a e m eiga . E la foi d es -
cen d o... d es cen d o... e p ou s ou m a n s a m en t e s ob r e a
m in h a ca b eça . O s on h o s e d es fez, e eu ca í n u m s on o
profundo, calmo, delicioso.

Capítulo 13

O N D E O S AN J O S T E ME M
AN D AR

OS DIAS QUE S E S E GUIRAM for a m ch eios d e


a legr ia e d e vit ór ia . A p r im eir a t r a n s for m a çã o qu e n ot ei
foi n a m in h a con d u t a . Nã o a n d a va m a is gin gando.
Fica va a t en t o d u r a n t e a s or a ções , or a n d o com a p es s oa
qu e d ir igia . E m lu ga r d e b a n ca r o “vivo”, com ecei a
d em on s t r a r con s id er a çã o p elos ou t r os , p r in cip a lm en t e
p ela ga r ot a d e lin d os olh os n egr os qu e s e s en t a va à
minha frente.
Des cob r i qu e o n om e d ela er a Glór ia . No d ia em
qu e d ei m eu t es t em u n h o d ia n t e d a cla s s e, ela en -
caminhou-s e p a r a m im e a p er t ou -m e a m ã o d e m a neira
d ign a , com o u m a d a m a : “Deu s o a b en çoe, Nick y. Ten h o
orado por você.”
Tin h a u m a d es con fia n ça d e qu e ela p r ova velmente
es t ives s e or a n d o p a r a qu e eu “ca ís s e m or t o”. Ma s
p er ceb i qu e es t a va r ea lm en t e feliz p elo fa t o d e Deu s t er -
m e t oca d o. S eu s olh os , p r ofu n d os e n egr os , p is ca va m
como as estrelas à meia-noite e seu sorriso era lindo.
Na s em a n a s egu in t e en con t r ei cor a gem s u ficien te
p a r a con vid á -la a ir com igo a u m a ca m p a n h a d e
eva n geliza çã o, qu e es t á va m os r ea liza n d o em u m a p e-
qu en in a igr eja p er t o d a es cola . E la s or r iu , e d u a s
covinhas apareceram, quando acenou afirmativamente.
No d ecor r er d a qu ele a n o fom os ju n t os a m u itos
cu lt os . E m b or a es t ivés s em os s em p r e n a com p a n h ia d e
ou t r a s p es s oa s , fiqu ei s a b en d o m u it a s cois a s a s eu
r es p eit o. Na s cer a n o E s t a d o d e Ar izon a . O p a i er a
it a lia n o, e s u a m ã e m exica n a . Tin h a m m u d a d o p a r a a
Califórnia quando ela estava com cinco anos, e seus pais
abriram um bar em Oakland. Na última série do ginásio,
for a s a lva e d ecid ir a en t r a r n a E s cola Bíb lica . S eu
pastor, o Rev. Sixto Sanchez, sugerira que ela escrevesse
p a r a o In s t it u t o Bíb lico. E les a a ceit a r a m , e en t r a r a n a
escola no outono daquele ano.
Per t o d o fim d o a n o es cola r , s en t i qu e Glór ia
es t a va p a s s a n d o p or a lgu m p r ofu n d o d es a s s os s ego
ín t im o. O r egim e es cola r er a m u it o p es a d o p a r a ela . Nos
ú lt im os d ia s d e a u la , ela m e d is s e qu e a ch a va qu e n ã o
a gü en t a r ia cu r s a r ou t r o a n o, e qu e p or is s o n ã o volt a r ia
à es cola d ep ois d a s fér ia s . Fiqu ei d es a p on t a d o, m a s ela
prometeu que me escreveria.
Pa s s ei a qu ele p r im eir o ver ã o em Los An geles .
Algu n s a m igos m e leva r a m p a r a lá e p r ovid en cia r a m u m
lu ga r p a r a eu m or a r . Ma s s en t i m u it o a fa lt a d e Glór ia .
Qu a n d o a s a u la s com eça r a m , n o ou t on o, fiqu ei m u it o
s a t is feit o a o en con t r a r u m a ca r t a à m in h a es p er a . E la
cumprira a promessa.
Glór ia r evelou -m e, em p a r te, os m ot ivos qu e a
leva r a m a d eixa r a es cola . “Min h a s exp er iên cia s foram
d ifer en t es d a s s u a s , Nick y”, es cr eveu ela . “Embora
m a m ã e e p a p a i t r a b a lh em n u m b a r , fu i cr ia d a em u m a
a t m os fer a m or a lm en t e b oa . Qu a n d o fu i s a lva , fu i a
ext r em os exa ger a d os . Ap r en d i qu e er a p eca d o cop ia r os
p a d r ões d o m u n d o. Des fiz-m e d e t od a m a qu ila gem ,
d eixei d e u s a r m a iô, e d es is t i a t é d e en feit a r -m e com
jóia s . Tu d o em m im er a n ega t ivo. Qu a n d o fu i p a r a a
es cola , a s it u a çã o p ior ou a in d a m a is . E s t a va a p on t o d e
s ofr er u m cola p s o m en t a l. Qu er ia con t a r is s o a você,
m a s n u n ca t ivem os op or t u n id a d e d e es t a r a s ós . E s p er o
qu e com p r een d a e con t in u e or a n d o p or m im . Ma s eu
não voltarei para a escola...”
O s egu n d o a n o n a E s cola Bíb lica p a s s ou
d ep r es s a . Min h a s n ot a s m elh or a r a m , e os ou t r os a lu n os
est a va m com eça n d o a m e a ceit a r com o igu a l. Tive vá rias
op or t u n id a d es d e p r ega r em t r a b a lh os a o a r livr e, e d a r
meu testemunho em algumas igrejas vizinhas.
E m a b r il, r eceb i u m a ca r t a d e Da vi Wilk er s on . E le
a in d a es t a va m or a n d o n a Pen s ilvâ n ia , m a s qu er ia qu e
eu volt a s s e p a r a Nova Yor k n a qu ele ver ã o, p a r a
t r a b a lh a r en t r e a s qu a d r ilh a s d o Br ook lin . Pla nejara
a lu ga r u m a p a r t a m en t o n a Av. Clin t on , en t r e a s r u a s
Fu lt on e Ga t es , e h a via con s egu id o qu e Th u r m a n Fa is on
e Lu iz Delga d o t r a b a lh a s s em com igo, s e eu fos s e. O
d in h eir o er a p ou co, m a s t er ía m os m or a d ia e p a ga r ia m
sete dólares por semana a cada um de nós.
Na qu ela n oit e, d ep ois d a h or a d e es t u d o, fu i a o
es cr it ór io d o d ir et or , e t elefon ei p a r a Da vi, a cob r a r . O
telefone t ocou d u r a n t e m u it o t em p o, e fin a lm en t e u m a
voz s on olen t a a t en d eu . E le r es m u n gou qu e p a ga r ia a
taxa.
“E i, Da vi, s ou eu , Nick y. Você já a ca b ou d e ja n -
tar?”
“Nick y, s a b e qu e h or a s s ã o?” “Cla r o, m eu ch a p a ,
s ã o d ez d a n oit e.” “Nicky...” h a via u m a p on t in h a d e
exa s p er a çã o n a voz, “p od em s er d ez h or a s n a Ca lifór n ia ,
m a s a qu i é u m a d a m a d r u ga d a . E u e Gwen es t a m os
dormind o h á d u a s h or a s . Agor a você a cor d ou o b eb ê
também.”
“Ma s Da vi, só qu er ia d a r -lh e a s b oa s n ova s .”
Ou vi p er feit a m en t e a cr ia n ça b er r a n d o, com o “fundo
musical”. “O qu e é t ã o b om qu e n ã o p od e es p er a r a t é d e
manhã, Nicky ?”
“Is t o n ã o p od e es p er a r , Da vi. E u vou p a r a Nova
Yor k t r a b a lh a r com você n es t e ver ã o. Deu s m e d is s e qu e
quer que eu vá.”
“Is s o é ót im o, Nick y. E s t ou vib r a n d o, Gwen
t a m b ém , e o b eb ê t a m b ém . Vou m a n d a r u m a p a s s a gem
de avião para você. Boa noite.”
Fiqu ei a cor d a d o a n oit e in t eir a , fa zen d o p la n os
para a minha volta a Nova York.
A via gem p a r a a “m in h a cid a d e” a ju d ou -m e a ver
com o eu t in h a m u d a d o. E r a com o s e t od a a m in h a vid a
tivesse s e t or n a d o r ea lm en t e viva . Qu a n d o com eça m os a
d es cer n o a er op or t o d e Nova Yor k , m eu cor a çã o
com eçou a b a t er m a is d ep r es s a a n t e a s r ecor d a ções , e o
en t u s ia s m o cr es ceu . Loca lizei a s ilh u et a d o E d ifício
E m p ir e S t a t e n o h or izon t e, e d ep ois , a p on t e d e
Brooklin . Nu n ca p er ceb er a com o a cid a d e er a t ã o
com p a ct a , n em com o s e es p a lh a va p or cen t en a s d e
qu ilôm et r os qu a d r a d os . Meu cor a çã o t r a n s b or d a va d e
a m or e com p a ixã o p elos m ilh ões d e p es s oa s qu e
es t a va m a m a r r a d a s , a li em b a ixo, n a s elva d e a s fa lt o d o
p eca d o e d o d es es p er o. Meu s olh os fica r a m r a s os d e
á gu a qu a n d o o a viã o fez u m cír cu lo s ob r e a cid a d e.
E s t a va t r is t e e feliz — a m ed r on t a d o e a n s ios o. E s t a va
em casa.
Da vi foi m e b u s ca r n o a er op or t o, e n ós n os
a b r a ça m os e ch or a m os s em a ca n h a m en t o. Com o
bra ço r od ea n d o m eu s om b r os , levou -m e a t é o ca r ro,
fa la n d o, ch eio d e en t u s ia s m o, a r es p eit o d o s eu n ovo
sonho.
E s cu t ei, en qu a n t o ele fa la va d os p la n os qu e t inha
p a r a o fu t u r o; d o s eu n ovo Cen t r o — Des a fio J ovem .
Por ém , ele p er ceb eu qu e a lgo es t a va m e p r eocu p a n d o, e
fin a lm en t e s eu en t u s ia s m o a r r efeceu o s u ficien t e p a r a
perguntar-me o que era.
“Da vi, você s ou b e a lgu m a cois a d e Is r a el? On d e
ele está? Se está bem?”
Da vi cu r vou a ca b eça , e fin a lm en t e olh ou p a r a
mim com um olhar sombrio.
“Nã o, Nick y, n em t u d o es t á b em . Nã o fa lei n a d a
s ob r e is t o em m in h a s ca r t a s , p or qu e t em ia d es a nimá-lo.
Ach o qu e d evo con t a r t u d o a gor a , p a r a qu e com ece a
orar comigo nesse sentido.”
Fica m os a lgu m t em p o n o ca r r o a b a fa d o, n o p á t io
d e es t a cion a m en t o d o a er op or t o, en qu a n t o Da vi m e
contava a situação de Israel.
“Is r a el es t á n a p r is ã o, Nick y. Foi en volvid o em u m
a s s a s s in a t o, em d ezem b r o, d ep ois qu e você foi p a r a a
escola. Até agora, não saiu da prisão.”
Meu cor a çã o a celer ou -s e. S en t i u m s u or fr io n a
palma das mãos. Respirei fundo.
“Conte-m e t u d o o qu e s a b e, Da vi. E u qu er o s a -
ber.”
“Qu a n d o t ive n ot ícia s d ele t u d o es t a va ter m inado,
e já tinha sido levado para a penitenciária de Elmira. Fui
até Nova York para visitar a mãe de Israel. Ela chorou ao
con ver s a r com igo, e m e con t ou qu e h ou ver a u m a gr a n d e
m u d a n ça n a vid a d o filh o d ep ois qu e ele a ceit a r a Cr is t o,
mas, depois do desengano, ele voltara para a quadrilha.”
“Que desengano?” perguntei.
“Você não sabe?”
“Você s e r efer e a o fa t o d e eu t er s id o es fa qu ea do?
Ele disse que ia pegar o cara que fizera aquilo.”
“Nã o, foi a lgo m a is p r ofu n d o d o qu e is s o. A m ã e
dele contou me que no dia em que você saiu do hospital,
o S r . Delga d o p a s s ou n o a p a r t a m en t o p ed iu -lh e p a r a
ir com você en con t r a r com igo em E lm ir a , n o d ia
s egu in t e. Is r a el ficou en t u s ia s m a d o e d is s e qu e ir ia . E la
o a cor d ou n a m a d r u ga d a d o d ia s egu in t e à s qu a t r o
h or a s , p a s s ou a s r ou p a s d ele, e a r r u m ou a s u a m a la .
E le foi a t é a Av. Fla t b u s h e es p er ou d a s s eis a t é à s n ove
d a m a n h ã . De a lgu m a for m a , vocês s e d es en con t r a r a m .
E le volt ou p a r a o a p a r t a m en t o, jogou a m a la n o ch ã o, e
d is s e à m ã e qu e t od os os cr en t es er a m u m a ca m b a d a d e
trapaceiros. Naquela noite voltou para a gang.”
S en t i lá gr im a s vin d o a os m eu s olh os , qu a n d o m e
vir ei p a r a Da vi. “Nós o p r ocu r a m os . Pr ocu r a mo-lo p or
t od a p a r t e. E u qu er ia p a r a r e p r ocu r a r m a is , m a s o S r .
Delga d o d is s e qu e p r ecis á va m os ir . Oh , Da vi, s e
s ou b és s em os ! S e t ivés s em os olh a d o u m p ou co m a is
d et id a m en t e, p od er ia s er qu e ele a gor a es t ives s e n a
escola comigo.”
Da vi a s s oou o n a r iz e p r os s egu iu : “Dep ois qu e
voltou p a r a a qu a d r ilh a , ele e ou t r os qu a t r o a t ir a r a m em
u m r a p a z d a qu a d r ilh a d os An gels d a Ru a S u l, d efr on t e
à Ar ca d a Pen n y. E le m or r eu im ed ia t a m en t e. Is r a el foi
a cu s a d o d e a s s a s s in a t o em s egu n d o gr a u , e s en t en cia d o
a cinco anos na penitenciária do Estado. Está lá agora.”
Hou ve u m a lon ga e s ofr id a p a u s a , e fin a lm en t e
p er gu n t ei a Da vi s e ele o t in h a vis t o, ou t iver a n ot ícias
dele desde que fora preso.
“Escrevi-lh e, m a s vim a s a b er qu e ele n ã o p od ia
r es p on d er . S ó p od e es cr ever p a r a a fa m ília . At é os s eu s
cur s os p or cor r es p on d ên cia p r ecis a m s er en viados
a t r a vés d o ca p elã o d a p r is ã o. Or ei p or ele t od o o ver ã o
s egu in t e, e fin a lm en t e em p r een d i u m a via gem a E lm ir a ,
s ó p a r a vê-lo. E s t a va m p r ep a r a n d o a s u a t r a n s fer ên cia
p a r a a colôn ia p en a l a gr ícola d e Com s t ock , e p er m it ir a m
qu e eu m e en t r evis t a s s e com ele d u r a n t e a lgu n s
minutos. Israel está bem, penso eu, mas ainda tem mais
de três anos para ficar atrás das grades.”
Fica m os a li, s en t a d os em s ilên cio, d u r a n t e lon go
t em p o, e fin a lm en t e eu d is s e: “Pen s o qu e d evem os or a r
por ele.”
Da vi cu r vou -s e s ob r e o vola n t e e com eçou a or a r
em voz a lt a . Vir ei-m e d e cos t a s , n o a s s en t o, e a joelh ei-
m e n o p is o d o ca r r o, com os cot ovelos a p oia d os n o
b a n co. Pa s s a m os qu a s e qu in ze m in u t os or a n d o, a li n o
p á t io d e es t a cion a m en t o. Qu a n d o term in a m os , Da vi
disse: “Fizem os t u d o o qu e n os é p os s ível fa zer p or
Israel, por enquanto, Nicky; mas há uma cidade cheia de
ou t r os , igu a izin h os a ele, qu e n ós a in d a p od em os s a lva r
p a r a J es u s Cr is t o. Você es t á p r on t o p a r a p or m ã os à
obra?”
“Vamos”, d is s e eu . Ma s eu s a b ia qu e m in h a ob r a
ja m a is es t a r ia com p let a en qu a n t o n ã o p u d es s e lib er t a r
Is r a el. Da vi d eu p a r t id a n o ca r r o, e en ver ed ou p elo
in t en s o t r á fego d e Nova Yor k . E u es t a va a b r a s a d o d e
zelo p elo S en h or . “Qu er o vis it a r os m em b r os d a m in h a
velh a qu a d r ilh a , a m a n h ã ”, d is s e com o qu e
desinteressadamente. “Quero falar-lhes de Jesus.”
Da vi vir ou -s e p a r a m im , a o s a ir d a p r efer en cia l e
b r eca r d ia n t e d e u m s in a l ver m elh o, e d is s e: “E u , s e
fos s e você, a va n ça r ia d eva ga r , Nick y. Des d e qu e você foi
em b or a , m u it a cois a a con t eceu . Você se lem b r a qu a n d o
s e con ver t eu ? Qu a s e m a t a r a m você. E u t er ia m u it o
cu id a d o. Há m u it o o qu e fa zer , s em s e en volver t ã o ced o
com os Ma u -Ma u s . S ó lou cos en t r a m on d e os a n jos
temem andar.”
O s em á for o m u d ou d e cor , e n ós a r r a n ca m os ,
abrindo a curva, para ultrapassar um ônibus. “Posso ser
louco, Davi, mas desta vez sou louco por amor de Jesus.
E le ir á com igo e m e p r ot eger á . Os a n jos p od em t er m ed o
d e en t r a r n a zon a d os Ma u -Ma u s , m a s eu vou com
Jesus.”
Da vi s or r iu e b a la n çou a ca b eça com o a concor-
dar, enquanto entrava na Av. Clinton. Freando diante de
um edifício de apartamentos, ele disse: “Ele é o seu guia,
Nick y, n ã o eu . Fa ça o qu e ele or d en a r , e você s ó t er á
vitória. Vamos, quero que conheça Thurman e Luís.”
O d ia s egu in t e s er ia o gr a n d e d ia . Pa s s ei a m a ior
p a r t e d a n oit e a cor d a d o, or a n d o. De m a n h ã , ves t i o
t er n o e p u s u m a gr a va t a vis t os a , com m in h a Bíb lia n ova
d e ca p a d e cou r o d eb a ixo d o b r a ço, a tr a ves s ei a cid a d e
em d ir eçã o a o con ju n t o h a b it a cion a l d e For t Gr een e. Ia
ao encontro dos Mau -Maus.
A cid a d e n ã o s e m od ifica r a m u it o. Algu n s d os
p r éd ios m a is a n t igos t in h a m s id o con d en a d os , e h a via
tapumes ao seu redor. Tudo o mais permanecia como eu
d eixa r a , d ois a n os a n t es . Ma s eu es t a va d iferente.
E n gor d a r a e cor t a r a o ca b elo. Con t u d o, a d iferença
maior estava no íntimo. Eu era um novo Nicky.
Qu a n d o a t r a ves s ei a Pr a ça Wa s h in gt on , m eu co-
r a çã o com eçou a b a t er m a is d ep r es s a . Com ecei a
p r ocu r a r os Ma u -Ma u s ; con t u d o, p ela p r im eir a vez,
es t a va p r eocu p a d o a r es p eit o d a m a n eir a com o s a u d á -
los — e o qu e eles d ir ia m , qu a n d o m e vis s em . Com o eu
m e a p r es en t a r ia ? Nã o es t a va com m ed o, s ó qu er ia t er
s a b ed or ia p a r a m a n eja r a s it u a çã o p a r a a glór ia d e
Deus.
Qu a n d o s a í d a p r a ça , vi u m a t u r m a d e Ma u -Maus
en cos t a d a n a p a r ed e d e u m ed ifício. As p a la vr a s d e Da vi
r ela m p eja r a m p ela m in h a m en t e: “S ó lou cos en t r a m
on d e os a n jos t em em a n d a r ”, m a s eu m u r m u r ei u m a
or a çã o em voz a lt a , p ed in d o qu e o E s p ír it o S a n t o fos s e
com igo, e en ca m in h ei-m e para a “tropa” d e
desocupados.
Ha via cer ca d e t r eze r a p a zes n a qu ela t u r m a .
Recon h eci Willie Cor t ez, e d a n d o-lh e u m t a p in h a n a s
costas, disse: “Ei, Willie, meu chapa...”
Cor t ez volt ou -s e e a r r ega lou os olh os : “Nã o m e
diga que você é o Nicky?”
“Sim, meu chapa, sou o Nicky.” “Puxa, você parece
u m s a n t o, ou cois a p a r ecid a .” “Con ver s a , r a p a z. Aca b o
de chegar da Califórnia. As coisas estão indo bem para
mim. Sou crente e estou estudando.”
E le a ga r r ou m eu s om b r os com a m b a s a s m ã os e
fez-me girar várias vezes, olhando para minhas roupas
e m eu a s p ect o. “Pu xa , Nick y, n ã o a cr ed it o. Nã o p os s o
acreditar.”
Dep ois , vir a n d o-s e p a r a os ou t r os m em b r os d a
ga n g, qu e es t a va m olh a n d o cu r ios a m en t e, d is s e. “Ei,
r a p a zes , t ir em o ch a p éu . E s t e é o Nick y. E le foi n os s o
p r es id en t e. E r a u m ca r a b em b om d e b r iga e fez h is t ór ia
com os Mau-Maus. Era o mais durão de todos.”
Os r a p a zes t ir a r a m os ch a p éu s , r es p eit os os . Willie
Cor t ez er a o ú n ico d o gr u p o a qu em eu con h ecia . Qu a s e
t od os os r a p a zes er a m m a is n ovos , m u it o m a is n ovos ,
m a s t od os fica r a m im p r es s ion a d os . Tin h a m ou vid o fa la r
d e m im , e a glom er a r a m -s e a o n os s o r ed or , es t en d en d o a
mão.
Coloqu ei o b r a ço a o r ed or d o om b r o d e Willie e
s or r i p a r a ele. “Olh a , Willie, va m os d a r u m a volt a p ela
praça. Quero conversar com você.”
Afastamo-n os d o gr u p o e en t r a m os n a Pr a ça
Wa s h in gt on . Willie a n d a va va ga r os a m en t e a o m eu la do,
com a s m ã os n os b ols os , a r r a s t a n d o os p és n o cim en t o.
Qu eb r ei o s ilên cio: “Willie, qu er o con t a r a você o qu e
Cristo fez em minha vida.”
E le n ã o leva n t ou a ca b eça , m a s con t in u ou a n -
d a n d o en qu a n t o eu fa la va . Con t ei-lh e com o eu m e
s en t ir a qu a n d o er a m em b r o d a qu a d r ilh a , d ois a n os
a n t es , e com o eu en t r ega r a o cor a çã o a Cr is t o. Con tei-
lhe a maneira como Deus me guiara para fora do deserto
d e con cr et o, p a r a u m lu ga r on d e a gor a eu er a u m s er
humano útil.
Willie in t er r om p eu -m e, e eu p er ceb i qu e a s u a voz
tremia: “E i, Nick y, p á r a com is s o, t e m a n ca ! Você m e fa z
s en t ir m a l. Qu a n d o fa la , a lgu m a cois a m exe a qu i d en t r o
d o m eu p eit o. Você es t á d ifer en t e. Nã o é m a is o m es m o
velho Nicky. Você me dá medo.”
“Tem r a zã o, Willie, a lgu m a cois a m e t r a n s for mou.
O s a n gu e d e Cr is t o t r a n s for m ou -m e e la vou -m e; a gor a ,
es t ou lim p o. S ou u m h om em d ifer en t e. Nã o t en h o m a is
m ed o. Nã o t en h o m a is ód io. Agor a eu a m o a s p es s oa s .
Amo você, Willie. E quero dizer-lhe que Jesus te ama.”
Ch ega m os a u m b a n co, e fiz s in a l p a r a Willie
sentar . E le s en t ou -s e e olh ou -m e, d izen d o: “Nick y, fa la
m a is d e Deu s .” Pela p r im eir a vez n a m in h a vid a p er ceb i
com o er a im p or t a n t e fa la r d e Cr is t o p a r a os m eu s
a m igos . Per ceb i a s olid ã o n a s u a fa ce, a ign or â n cia — o
med o. E le er a exa t a m en t e com o eu for a d ois a n os a n tes.
Ma s a gor a eu qu er ia m os t r a r -lh e com o es ca p a r . S en t ei
a o la d o d ele, e a b r i a Bíb lia n a s p a s s a gen s m a r ca d a s
com lá p is ver m elh o. Li a s p a s s a gen s b íb lica s r efer en t es
a o p eca d o d o h om em . Qu a n d o li : “Pois o s a lá r io d o
p eca d o é a m or t e”, Willie olh ou p a r a m im com m ed o
estampado no rosto.
“O qu e qu er d izer , Nick y? S e eu s ou p eca d or , e
Deu s va i m e m a t a r p or qu e p equ ei, o qu e p os s o fa zer?
Qu er o d izer , p u xa , p r ecis o fa zer a lgu m a cois a . Qu e d evo
fazer?” S eu s olh os m os t r a va m gr a n d e excit a çã o, e ele
ficou de pé, de um salto.
“Sente-s e, Willie, a in d a n ã o a ca b ei. Vou con t a r o
r es t o d a h is t ór ia . Deu s a m a você. E le n ã o qu er qu e vá
p a r a o in fer n o. E le o a m a t a n t o qu e m a n d ou s eu ú n ico
Filh o p a r a p a ga r o p r eço d e s eu s p eca d os . E le en viou
J es u s p a r a m or r er em s eu lu ga r , p a r a qu e você n ã o
p r ecis e m or r er , m a s p os s a t er vid a et er n a . E s e você
aceitá-lo, se você confessá-lo, ele salvará você.”
Willie d eixou -s e ca ir n o b a n co, com u m a r d e
d es es p er o n o r os t o. Fiqu ei olh a n d o p a r a ele, com os
olh os ch eios d e lá gr im a s . Fech ei os olh os com for ça e
comecei a orar, mas as lágrimas conseguiram passar por
en t r e a s p á lp eb r a s cer r a d a s , e cor r er a m p ela s m in h a s
fa ces . Qu a n d o a b r i os olh os , Willie t a m b ém es t a va
chorando.
“Willie, sabe o que significa arrepender-se?” Ele fez
que não.
“S ign ifica m u d a r d e d ir eçã o. Da r m a r ch a -r é. S e
você não se importa, quero que faça uma coisa.
Pod e fer ir o s eu or gu lh o, m a s eu vou or a r p or
você. Você quer ajoelhar-se?”
E u n ã o t in h a id éia d e com o ele ir ia r ea gir . Ha via
gen t e a n d a n d o p a r a lá e p a r a cá , n a ca lça d a , b em
d efr on t e a o b a n co em qu e es t á va m os s en t a d os , m a s
Willie a cen ou a fir m a t iva m en t e, e s em h es it a ção,
ajoelhou-s e n a ca lça d a . Olh a n d o p a r a cim a , ele d is s e:
“Nick y, s e Deu s p ôd e m u d a r você, p od e m e t r a n s for m a r
também. Você ora por mim agora?”
Coloqu ei a s m ã os s ob r e a ca b eça d e Willie e co-
m ecei a or a r . S en t i s eu cor p o es t r em ecer s ob m inhas
m ã os , e ou vi s eu s s olu ços . E le p ôs -s e a or a r . E s t á va m os
ambos orando em voz alta — muito alta. Através de uma
cor t in a d e lá gr im a s , cla m ei: “Sen h or ! Toca em Willie!
Toca em m eu a m igo. S a lva-o. Fa z com qu e ele s eja u m
líder para levar outros a ti.”
Willie or a va em voz a lt a e t or t u r a d a : “Jesus...
J es u s ... Aju d a -m e! Aju d a -me!” E s t a va ofega n t e, en -
quanto chorava e gritava: “Oh, Jesus, ajuda-me!”
Fica m os n o ja r d im o r es t o d a t a r d e. Ao cr ep ú s -
cu lo, Willie volt ou a o s eu a p a r t a m en t o, p r om et en d o
t r a zer o r es t o d a ga n g à m in h a ca s a , n a n oit e s eguinte.
Fiqu ei a li d e p é ven d o-o a fa s t a r -s e, a t é s u mir-s e a o
lon ge. Mes m o olh a n d o p or t r á s , p od ia -s e n ot a r a
d ifer en ça . Algo flu ír a a t r a vés d e m im e a lca n ça r a Willie
Cor t ez. Ach o qu e n ã o a n d ei a t é a Av. Clin t on , n a qu ela
t a r d e... flu t u ei... lou va n d o a Deu s a ca d a vez qu e
r es p ir a va . Lem b r ei-m e d a vez em qu e cor r er a p elo
gr a n d e p a s t o, d efr on t e à n os s a ca s a em Por t o Rico,
batendo os braços e tentando voar como um passarinho.
Ali em Nova Yor k , n a qu ela n oit e, leva n t ei a ca b eça e
respirei fundo. Finalmente estava voando.
Pa s s ei o r es t o d o ver ã o com a ga n g, p r ega n d o a o
a r livr e e r ea liza n d o t r a b a lh o p es s oa l. J eju a va r eli-
gios a m en t e, fica n d o s em com id a d a s s eis h or a s d a
m a n h ã d e qu a r t a -feir a a t é s eis d a m a n h ã d e qu in t a -
feir a . Des cob r i qu e qu a n d o jeju a va e p a s s a va a lgu m
t em p o em or a çã o, a con t ecia m cois a s em m in h a vi- da.
Ta m b ém es cr evi vá r ia s vezes p a r a Glór ia , e u ltimamente
s u a s ca r t a s es t a va m ga n h a n d o u m t om a m igo e a m á vel,
com o s e ela es t ives s e gos t a n d o d e m e es cr ever . Os s eu s
p la n os p a r a o a n o s egu in t e er a m a in d a in d efin id os , e eu
orei muito por ela.
Du a s s em a n a s a n t es d e volt a r à es cola , u m n e-
gociante cristão, que fazia parte da junta de conselheiros
d e Da vi, ch egou com u m ch equ e. Dis s e-m e qu e qu er ia m
dar-m e a lgu m a cois a ext r a p elo t r a b a lh o qu e eu
r ea liza r a , e s u ger ia m qu e eu u s a s s e o ch equ e p a r a
comprar uma passagem de avião até Porto Rico, a fim de
vis it a r m eu s p a is , a n t es d e volt a r à es cola . Foi im en s a a
minha emoção.
Ch egu ei a S a n J u a n n u m a s egu n d a -feir a , à
tardinha, e tomei um ônibus para Las Piedras.
J á es t a va qu a s e es cu r o, qu a n d o d es ci d o ôn ib u s e
com ecei a a t r a ves s a r a cid a d ezin h a , em d ir eçã o à
con h ecid a t r ilh a qu e s er p ea va p ela colin a gr a m a d a ,
s u b in d o a t é a ca s in h a b r a n ca d e m a d eir a , n o t op o d o
ou t eir o. Cem m il r ecor d a ções in u n d a r a m m eu cor a çã o e
minha mente. Alguém gritou: “É Nicky. É Nicky Cruz”, e
vi u m h om em cor r en d o à m in h a fr en t e, colin a a cim a ,
p a r a con t a r a p a p a i e m a m ã e qu e eu es t a va ch ega n d o.
Algu n s s egu n d os d ep ois a p or t a a b r iu -s e d e u m golp e, e
qu a t r o d os m en in os m a is n ovos s a ír a m voa n d o colin a
a b a ixo. Fa zia cin co a n os qu e n ã o os via , m a s eu
r econ h eci m eu s ir m ã os . At r á s d eles , com a s a ia voa n d o
a o ven t o, vin h a m in h a m ã e. Deixei ca ir a m a la , e cor r i
p a r a en con trá-los . Colid im os em u m a a git a çã o d e
excla m a ções felizes , lá gr im a s e a b r a ços a p er t a d os . Os
m en in os t r ep a r a m à s m in h a s cos t a s , d er r u b a n d o-me
p or t er r a em u m a lu t a a n im a d a . Ma m ã e p ôs -s e d e
joelhos, abraçando-m e o p es coço, e s u foca n d o-m e d e
b eijos . Recu p er a n d o a ca lm a , vi qu e d ois d os m en in os
m a is n ovos t in h a m cor r id o p a r a a p a n h a r a m in h a m a la
e t r a zia m -n a t r ilh a a cim a . Olh ei p a r a a ca s a , e a li d e p é,
a lt a e im p or t a n t e, es t a va a figu r a p od er os a e s olit á r ia d e
p a p a i, olh a n d o em m in h a d ir eçã o. Dir igi-me
va ga r os a m en t e p a r a ele, qu e p er m a n ecia im óvel, er et o,
observando-m e. Pu s -m e en t ã o a cor r er , e ele com eçou a
d es cer va ga r os a m en t e os d egr a u s p a r a m e en con t r a r .
Afin a l, ir r om p eu t a m b ém n u m a cor r id a , e m e en con t r ou
n a fr en t e d a ca s a . Ap er t a n d o-m e n os b r a ços p elu d os ,
levantou-m e d o ch ã o e a p er t ou -m e con t r a o p eit o a m p lo.
“Bem-vindo, à sua casa, passarinho, bem-vindo.”
Fr a n k es cr ever a a m a m ã e e p a p a i, d izen d o qu e
m in h a vid a m u d a r a , e qu e eu es t a va es t u d a n d o, n a
Ca lifór n ia . E s p a lh a r a -s e a n ot ícia d e qu e m e t or n a ra
cr en t e, e m u it os d os m em b r os d a s igr eja s em La s
Pied r a s for a m à n os s a ca s a , à n oit e, p a r a m e ver .
Dis s er a m qu e ou t r os qu er ia m ver -m e, m a s fica r a m com
m ed o d e ir à “ca s a d o feit iceir o”. Cr ia m qu e p a p a i p od ia
fa la r com os m or t os , e n a s u a s u p er s t içã o t in h a m m ed o
de se aproximar. Contudo, queriam ter um culto na casa
d e u m d os cr en t es e p ed iram-m e p a r a p r ega r e d a r m eu
t es t em u n h o. Dis s e-lh es qu e d ir igir ia o cu lt o, m a s t er ia
qu e s er em m in h a ca s a . Olh a r a m u n s p a r a os ou t r os , e
o d ir igen t e d o gr u p o d is s e: “Ma s , Nick y, m u it os d os
n os s os ir m ã os t êm m ed o d os d em ôn ios . Têm m ed o d e
seu pai.”
Disse-lhes que iria ajeitar as coisas, e que na noite
s egu in t e t er ía m os u m gr a n d e cu lt o cr is t ã o em m in h a
casa.
Mais t a r d e, n a qu ela m es m a n oit e, qu a n d o p a p a i
ou viu o qu e t ín h a m os p la n eja d o, ob jet ou violen t a mente.
“Nã o p er m it o is s o. Nã o h a ver á cu lt o cr is t ã o n es t a ca s a .
E s s a gen t e va i a r r u in a r m eu s n egócios . S e t iver m os u m
cu lt o a qu i, os ou t r os n u n ca m a is vir ã o... es t a rei
arruinado como espírita. Proíbo isso.”
“Você n ã o é ca p a z d e ver com o o S en h or t r a n s -
for m ou o s eu filh o? Tem d e h a ver a lgo n is s o. A ú ltima
vez em qu e o viu , ele er a com o u m a n im a l. Agor a é u m
p r ega d or , u m m in is t r o cr is t ã o. Nós t er em os o cu lt o e
você assistirá”, argumentou mamãe.
Ra r a m en t e m a m ã e d is cu t ia com p a p a i, m a s
qu a n d o is t o a con t ecia , s em p r e s a ía ven cen d o. Des t a vez,
t a m b ém foi a s s im . Na n oit e s egu in t e a ca s a ficou lot a d a
d e gen t e d a vila , b em com o d e vá r ios p r ega d or es d e
cid a d es vizin h a s . O ca lor er a es ca ld a n t e. Fiqu ei d e p é,
n a fr en t e d a s a la , e d ei o m eu t es t em u n h o. E n t r ei em
m u it os d et a lh es , con t a n d o o d om ín io qu e S a t a n á s
exer cer a s ob r e m im , e com o eu for a lib er t o d a s s u a s
ga r r a s p elo p od er d e Cr is t o. O p ovo m a n ifes t a va
a u d ivelm en t e s eu a gr a d o, en qu a n t o eu p r ega va ,
m u r m u r a n d o a p r ova çã o, e a lgu m a s vezes gr it a n d o e
b a t en d o p a lm a s d e jú b ilo, en qu a n t o eu d es cr evia os
vários acontecimentos que cercaram a minha salvação.
Ao fim d o cu lt o, p ed i a t od os qu e cu r va s s em a
ca b eça . E n t ã o, con vid a n d o os qu e qu is es s em a ceit a r a
Cr is t o com o s a lva d or p es s oa l qu e d es s em u m p a s s o à
fr en t e e s e a joelh a s s em , fech ei os olh os e com ecei a or a r
silenciosamente.
Hou ve u m m ovim en t o n a m u lt id ã o. S en t i qu e
a lgu m a s p es s oa s es t a va m s e a p r oxim a n d o. Ou vi-as
ch or a r , en qu a n t o s e a joelh a va m à m in h a fr en t e. Ma n t ive
m in h a p os içã o, com os olh os fech a d os e o r os t o volt a d o
p a r a o céu . Pod ia s en t ir a t r a n s p ir a çã o d es cen d o p elo
m eu r os t o, cor r en d o p ela s m in h a s cos t a s e got eja n d o
p ela s m in h a s p er n a s . E u es t a va t od o s u a d o, d evid o a o
calor qu e s e ger a r a em m im , en qu a n t o p r ega va , m a s
sentia que Deus estava operando, e continuei a orar.
Ou vi en t ã o u m a m u lh er qu e a joelh a d a d ia n t e d e
mim, começou a orar. Reconheci sua voz, e abri os olhos
in cr ed u la m en t e. Nã o p u d e con t er m in h a a legr ia : a li,
a joelhada à minha frente, com o rosto enterrado na saia,
es t a va m in h a m ã e e t a m b ém d ois d e m eu s ir m ã os
m en or es . Ca í d e joelh os d ia n t e d ela , e r od eei-a com os
braços.
“Oh , Nick y, m eu filh o, m eu filh o, eu t a m b ém cr eio
n ele. Qu er o qu e ele s eja o S en h or d e m in h a vid a . Nã o
suporto mais ouvir falar de demônios e espíritos maus, e
qu er o es t e J es u s com o m eu S a lva dor.” E la com eçou
então a orar. Ouvi a mesma voz que um dia me mandara
p a r a o qu a r t o, e d ep ois p a r a o p or ã o, com gr it os
h is t ér icos d e: “E u od eio você...” cla m a n d o a gor a a Deu s ,
p ed in d o s a lva çã o, e gr a n d es s olu ços s a cu d ir a m m eu
cor p o, en qu a n t o ela or a va p ed in d o p er d ã o: “Por
m is er icór d ia , Deu s qu er id o, p er d oa -m e p or t er fa lh a d o
em relação ao meu filho. Perdoa-me por tê-lo afastado do
la r . Per d oa m eu s p eca d os , e p or n ã o t er cr id o em t i.
Agora eu creio. Creio em ti. Salva-me, ó Deus, salva-me.”
Ab r i os b r a ços e cin gi os m eu s d ois ir m ã os m a is
n ovos , u m d e qu in ze e ou t r o d e d ezes s eis a n os , e t od os
nos aconchegamos, orando e louvando a Deus.
Ma is t a r d e, leva n t ei-m e e olh ei p a r a a m u lt id ã o.
Mu it os ou t r os t in h a m vin d o e es t a va m a joelh a d os n o
ch ã o, or a n d o e ch or a n d o. Fu i d e u m p a r a ou t r o,
im p on d o a s m ã os s ob r e a s s u a s ca b eça s , e or a n d o p or
eles . Fin a lm en t e, p a r ei e olh ei p a r a o fu n d o d a s a la . Ali,
en cos t a d o à p a r ed e, via-s e a figu r a s olit á r ia d e p a p a i,
levantando-s e er et a s ob r e a s ca b eça s cu r va d a s . Nos s os
olh os s e cr u za r a m em u m lon go olh a r , e o s eu qu eixo
es t r em eceu vis ivelm en t e. S eu s olh os en ch er a m -s e d e
lágrimas — m a s ele vir ou -s e e d eixou r ep en t in a m en t e a
sala.
Pap a i ja m a is d ecla r ou a b er t a m en t e s u a fé. Ma s
s u a vid a a b r a n d ou -s e d es d e en t ã o. Dep ois d a qu ela
n oit e, n ã o h ou ve m a is n en h u m a s es s ã o es p ír it a n a ca s a
d a fa m ília Cr u z. Volt ei a Nova Yor k d ois d ia s d ep ois , e
u m d os p a s t or es p or t o-r iqu en h os b a t izou m in h a m ã e e
m eus dois irmãos nas águas, na semana seguinte.
E u t in h a m en os d e u m a s em a n a d is p on ível em
Nova Yor k , a n t es d e via ja r p a r a a Ca lifór n ia , p a r a fa zer
m eu ú lt im o a n o n a es cola . Na n oit e a n t er ior à m in h a
viagem houve uma grande concentração da mocidade na
Igreja d e Deu s J oã o 3 :1 6 . Fizem os u m gr a n d e es for ço
p a r a leva r os Ma u -Ma u s a a s s is t ir . Fizer a a m iza d e com
S t eve, s eu n ovo p r es id en t e, e ele d is s e qu e s e eu fos s e
estar presente, levaria com certeza a gang ao culto.
No ves t íb u lo, a n t es d o cu lt o com eça r , eu
exa m in a va os velh os or ifícios feit os p ela s b a la s d e d ois
a n os a n t es , qu a n d o os Ma u -Ma u s com eça r a m a ch egar.
Ma is d e oit en t a e cin co d eles a p a r ecer a m . A p equena
igr eja ficou com p let a m en t e lot a d a . Qu a n d o en t r a r a m ,
gritei-lhes: “E i, m eu s ch a p a s , a qu i é t er r it ór io d e Deu s .
Tir em o ch a p éu .” E les ob ed ecer a m d e b oa von t a d e. Um
r a p a z es t a va n o ca n t o d o ves t íb u lo, com u m a d a s
ga r ot a s . Gr it ou : “E i, Nick y, p os s o a b r a ça r m in h a ga r ot a
aqui?”
Respondi: “S im , m eu ch a p a , va i em fr en t e, m a s
n a d a d e b eija r n em d e b olin a ção.” O r es t o d a qu a drilha
caiu na gargalhada e entrou no auditório.
No fim d o cu lt o, o p a s t or p ed iu -m e p a r a d a r m eu
t es t em u n h o. Vir ei-m e e olh ei p a r a os r a p a zes . S a b ia qu e
ir ia em b or a p a r a a Ca lifór n ia n o d ia s egu in t e, e u m
ca la fr io s u b iu p ela m in h a es p in h a . Algu n s d a qu eles
r a p a zes es t a r ia m m or t os ou p r es os , qu a n d o eu volt a s s e.
Pr egu ei. Pr egu ei com o u m m or ib u n d o a m or ib u n d os .
Esqueci-m e d e r es t r in gir a s em oções , e d er r a m ei o
cor a çã o. J á es t á va m os n a igr eja h a via d u a s h or a s , e eu
p r egu ei m a is qu a r en t a e cin co m in u t os . Nin gu ém s e
m ovia . Qu a n d o t er m in ei lá gr im a s cor r ia m p ela m in h a
fa ce, e eu a p elei a eles p a r a en t r ega r em a vid a a Deu s .
Tr eze r a p a zes for a m à fr en t e, e a joelh a r a m -s e d ia n t e d o
altar. Se Israel estivesse ali...
Um d os r a p a zes qu e s e a p r es en t ou er a m eu velho
a m igo, Hect or Fu r a cã o. Lem b r ei-m e d a ép oca em qu e o
fizer a p a s s a r p ela cer im ôn ia d a in icia çã o, p a r a en t r a r n a
qu a d r ilh a , e d a vez em qu e h a vía m os t id o u m a “briga
leal” e ele fu gir a a o ver qu e eu ia m a t á -lo p or t er
r ou b a d o m eu d es p er t a d or . Fu r a cã o es t a va a gor a
ajoelhado diante do altar.
Dep ois d o cu lt o, fu i a n d a n d o com ele a t é For t
Gr een e. Fu r a cã o er a o con s elh eir o d e gu er r a d os Ma u -
Ma u s . Vis t o qu e for a p or m eu in t er m éd io qu e en t r a r a n a
ga n g, s en t ia m u it a r es p on s a b ilid a d e p or ele. Per gu n t ei-
lhe onde vivia.
“E s t ou m or a n d o em u m a p a r t a m en t o a b a n d o-
nado.”
“Ra p a z, p or qu e n ã o es t á m or a n d o m a is com s u a
família?” perguntei.
“E les m e ch u t a r a m . Fica r a m com ver gon h a d e
m im . Você s e lem b r a ? eu fu i u m d os r a p a zes qu e for a m
à fr en t e n a qu ela n oit e n a Ar en a S t . Nich ola s , com você e
Is r a el. Vá r ia s s em a n a s d ep ois , con vid ei m in h a fa m ília
para ir à igreja comigo, e todos os meus familiares foram
con ver t id os . Tor n a m o-n os a t ivos n a igr eja , e eu es t a va
t r a b a lh a n d o com a m ocid a d e. Ab a n d on a r a a ga n g, e
t u d o o m a is , com o você e Is r a el. A igr eja , p or ém , er a
m u it o exigen t e. E u qu er ia a r r a n ja r fes t in h a s p a r a a
m ocid a d e, m a s eles n ã o a ceit a va m . Fin a lm en t e fiqu ei
desanimado e desviei .”
E r a a m es m a velh a h is t ór ia . E le s e en con t r a r a
m a is t a r d e com os Ma u -Ma u s , e eles o con vid a r a m a
volt a r p a r a a qu a d r ilh a , d a m es m a for m a com o h a via m
t en t a d o com igo. Dis s er a m qu e os cr en t es er a m
“quadrados”, va ga b u n d os , a fem in a d os , e qu e a ga n g er a
o ú n ico gr u p o qu e t in h a a ver d a d eir a s olu çã o p a r a os
p r ob lem a s d a vid a . Na ver d a d e, eles o “evangelizaram”,
fazendo com que voltasse à quadrilha.
Seguiu-s e u m a s ér ie d e p r is ões . S eu s p a is t en -
t a r a m con ver s a r com ele, m a s ele t eim ou e fin a lmente
fica r a m t ã o exa s p er a d os a p on t o d e d izer qu e t er ia d e
s a ir d e ca s a , s e n ã o con cor d a s s e com a s r egr a s
fa m ilia r es . Pr efer iu s a ir , e d es d e en t ã o m or a va em u m
velho edifício condenado.
“Algu m a s vezes p a s s o fom e”, d is s e ele, “mas
p r efir o m or r er d e fom e d o qu e p ed ir a lgu m a cois a a o
meu velho. Ele é “quadrado” mesmo. Tudo o que pensa é
em ir à igr eja e ler a Bíb lia . E u cos t u m a va s er a s s im ,
m a s a gor a es t ou d e volt a a o m eu a m b iente — os Ma u -
Maus.”
Ch ega m os a o ed ifício on d e ele m or a va . Tod a s a s
ja n ela s es t a va m cob er t a s p or t a p u m es , e ele m e con t ou
qu e h a via u m lu ga r , n os fu n d os , on d e con s egu ir a for ça r
u m d os t a p u m es e es gu eir a r -s e p a r a d en t r o. Dor m ia
sobre um acolchoado estendido no chão.
“Fu r a cã o, com o é qu e você a p a r eceu es t a n oite?”
p er gu n t ei, r efer in d o-m e a o fa t o d ele t er a t en d id o a o
apelo para salvação.
“Fu i à fr en t e p or qu e, b em d en t r o d e m im , eu
d es ejo s er cor r et o, Nick y. Qu er o s egu ir a Deu s . Ma s n ã o
con s igo en con t r a r a s olu çã o cer t a . Ca d a vez qu e m e
volt o p a r a ele, e d ep ois d es vio, a s cois a s fica m p ior es .
Gos t a r ia qu e você volt a s s e p a r a a ga n g, Nick y. Qu em
sabe se eu voltaria para Cristo, se você estivesse aqui.”
Sentamo-n os n a gu ia d a ca lça d a e con ver s a m os
m a d r u ga d a a d en t r o. Ou vi o r elógio d a t or r e d a r qu a t r o
horas. “Fu r a cã o, s in t o o E s p ír it o d e Deu s d izen d o-me
p a r a fa la r is t o a você. O r elógio a ca b a d e d a r qu a t r o
h or a s . É t a r d e. Ma s s e você d er o cor a çã o a J es u s , ele o
leva r á d e volt a . É t a r d e, m a s n ã o t a r d e d em a is . Você
s en t e a s u a cu lp a , m a s Deu s o p er d oa r á . Você n ã o qu er
entregar-se a Jesus agora?”
Hect or es con d eu o r os t o n a s m ã os e com eçou a
ch or a r . Ma s con t in u ou a s a cu d ir a ca b eça e a d izer :
“Não p os s o. Nã o p os s o. Qu er o fa zer is s o. Ma s s ei qu e s e
fizer , volt o p a r a a qu a d r ilh a a m a n h ã m es m o. Nã o p os s o.
Não posso mesmo.”
“Hect or , você n ã o viver á n em m a is u m a n o s e n ã o
s e r en d er a Cr is t o a gor a . Você es t a r á m or t o, n es t e
m es m o d ia d o a n o qu e vem . E les vã o m a t a r você.” Meu
cor a çã o t r a n s b or d a va com p a la vr a s qu e n ã o er a m
minhas, enquanto eu profetizava para ele.
Hect or a p en a s b a la n çou a ca b eça . “S e a con t ecer,
aconteceu, Nicky, e eu não posso fazer nada.”
E s t á va m os s en t a d os n o m eio-fio d a Av. La fa yet t e.
Perguntei-lh e s e p od ia or a r p or ele. E le en colh eu os
ombros. “Não vai adiantar nada, Nicky, eu sei disso.”
Levantei-m e, coloqu ei a s m ã os s ob r e a s u a ca -
b eça , e or ei p a r a qu e Deu s a b r a n d a s s e o s eu cor a ção,
p a r a qu e ele p u d es s e volt a r a Cr is t o. Qu a n d o t er m in ei,
apertei-lh e a m ã o: “Fu r a cã o, es p er o vê-lo qu a n d o volt a r .
Ma s s in t o p r ofu n d a m en t e qu e, a m en os qu e você volt e
p a r a Cr is t o, n u n ca m a is o ver ei.” Na t a r d e s egu in t e,
via jei p a r a a Ca lifór n ia . Na qu ela ép oca , n ã o s a b ia qu ã o
exatamente a minha profecia viria a ser cumprida.

Capítulo 14

G LÓ R I A

O VERÃO PASSADO EM NOVA YORK transformou


m in h a vid a , m eu s p en s a m en t os e m eu s p on t os d e vis t a .
Voltei à Califórnia resolvido a pregar.
Nã o t in h a en con t r a d o, p or ém , a m a ior b ên çã o,
s en ã o qu a n d o ch egu ei à es cola em La Pu en t e — Glór ia
volt a r a a o In s t it u t o Bíb lico. Nã o s a b ia qu a n t o s en t ir a a
sua falta, até o momento em que a encontrei de novo.
A s it u a çã o n a es cola con t in u a va a in d a im p os s ível.
Tu d o p a r ecia con s p ir a r p a r a n os s ep a r a r . Os
r egu la m en t os er a m os m es m os d e d ois a n os a n t es ,
qu a n d o h a vía m os s en t id o a m es m a fr u s t r a çã o. A
conversa à mesa era limitada a frases como “passe o sal,
p or fa vor ”, e os p r ofes s or es com olh os d e á gu ia
ob s er va va m ca d a u m d os n os s os m ovim en t os n o p á t io.
E m b or a eu d et es t a s s e t r a b a lh a r n a cozin h a , com ecei a
apresentar-m e com o volu n t á r io p a r a s er viços ext r a ,
la va n d o p r a t os , com o p r op ós it o d e fica r p er t o d e Glór ia .
A cozin h a b a r u lh en t a er a t u d o, m en os r es er va d a , m a s
d es cob r i qu e p od ía m os m a n t er u m a con ver s a s em i-
r es er va d a , con t a n t o qu e es t ivés s em os a m b os cu r va d os
s ob r e a p ia — eu com os b r a ços en t er r a d os a t é os
cot ovelos em á gu a qu en t e e s a b ã o, e Glór ia en xa gu a n d o
e enxugando.
À m ed id a qu e os m es es voa va m , ch egu ei à con -
clu s ã o d e qu e es t a va a p a ixon a d o p or ela . Min h a s n ot a s
con t in u a va m a m elh or a r , e eu t in h a u m a p et it e d e leã o,
em p a r t e, es t ou cer t o, p or ca u s a d o exer cício ext r a ju n t o
à p ia d a cozin h a ; m a s s en t ia -m e fr u s t r a d o p or qu e n ã o
p od ia exp r es s a r -lh e o m eu a m or . Tod a vez qu e t ín h a m os
a lgu n s m in u t os a s ós , a lgu ém n os in t er r om p ia .
Pr ocu r a va ch ega r m a is ced o à s a la d e a u la s , m a s
in va r ia velm en t e a lgu n s es t u d a n t es en t r a va m a li,
ju s t a m en t e n a h or a em qu e eu t en t a va fa la r a s ér io com
Glór ia . A fr u s t r a çã o es t a va m e p on d o lou co. Mes m o
leva n d o em con t a m in h a or igem la t in a , a ch a va qu a s e
im p os s ível s en t ir -m e r om â n t ico d ia n t e d e u m a p ia
r ep let a d e p r a t os gor d u r os os , em u m a cozin h a ch eia d e
estudantes a cantar hinos.
Nu m a qu in t a -feir a à n oit e, r eceb i p er m is s ã o p a r a
ir à cid a d e. Pa r ei n a p r im eir a ca b in a t elefôn ica qu e
en con t r ei, e d is qu ei o n ú m er o d o d or m itório d e Glór ia .
Qu a n d o a con s elh eir a a t en d eu , coloqu ei u m len ço s ob r e
o fon e e, em voz d e b a ixo p r ofu n d o, p ed i p a r a fa la r com
a S r t a . S teffa n i. Hou ve u m a p a u s a , e ou vi a con s elh eir a
cochichar para Glória: “Penso que é o seu pai.”
Glór ia d eu u m a r is a d in h a , qu a n d o m e ou viu ga -
gu eja n d o d o ou t r o la d o d a lin h a . E s t a va fr u s t r a d o e
desesperado. “Pr ecis o en con t r a r -m e com você”,
murmurei.
“Nick y, o qu e é qu e você es t á p r ocu r a n d o d izer ?”
coch ich ou Glór ia , lem b r a n d o-s e d e qu e p en s a va m qu e
ela estava falando com o pai.
Gagu ejei e en r olei a s p a la vr a s , m a s os t er m os
cer t os n ã o m e vin h a m à m en t e. Tod a s a s m in h a s
a s s ocia ções com ga r ot a s h a via m s id o em t er m os d e
ga n g, e eu r ea lm en t e n ã o s a b ia com o con ver s a r com
uma moça tão pura e doce como Glória.
“Pen s o qu e s e p u d es s e vê-la p es s oa lm en t e, p o-
d er ia exp r es s a r -m e m elh or ”, d is s e eu . “Ta lvez s eja
m elh or volt a r p a r a o m eu qu a r t o e p a r a r d e a b or recer
você.”
“Nickyyy!” es cu t ei-a gr it a r , “n ã o ou s e coloca r o
fone no gancho.”
Ou vi a s ou t r a s m oça s d o qu a r t o r in d o. Nã o
obstante, Glória estava resolvida a forçar-me a falar.
“Ps iu , ela s vã o fica r s a b en d o qu e s ou eu ”,
respondi.
“Nã o m e im p or t a qu e fiqu em s a b en d o. Agor a d iga -
me o que você está procurando dizer.”
Fiz u m t r em en d o es for ço p a r a en con t r a r a s p a -
la vr a s cer t a s , e fin a lm en t e d is s e: “Estou p en s a n d o qu e
s er ia m a r a vilh os o s e você a ceit a s s e a n d a r comigo.” E u
con fes s a r a . Fin a lm en t e, t in h a con s egu id o. Fiqu ei d e
respiração suspensa, esperando a reação dela.
“An d a r com você? Qu e s ign ifica “andar” com
você?” Glór ia es t a va gr it a n d o e d es s a vez ou vi a s m oça s
rindo alto.
“S ign ifica is s o m es m o”, d is s e m eio a ca n h a d o.
S en t i m eu r os t o qu eim a r em b or a es t ives s e s ozin h o n a
ca b in e, a u m qu ilôm et r o d e d is t â n cia . “Qu er ia qu e você
saísse comigo.”
Glór ia volt ou a coch ich a r : “Você qu er d izer qu e
quer. que eu seja a sua namorada?”
“É is s o m es m o o qu e qu er o d izer ”, d is s e eu , a in d a
ver m elh o e t en t a n d o en colh er -m e d en t r o d a ca b in e
telefônica.
Per ceb i qu e ela en cos t ou b em a b oca n o fon e
qu a n d o s u s p ir ou : “S im , Nick y, s er ia m a r a vilh os o. Ten h o
s en t id o qu e Deu s n os vem a p r oxim a n d o com u m
p r op ós it o. Vou es cr ever u m b ilh et e b em com p r id o e
passá-lo a você na hora do café, amanhã cedo.”
Dep ois d e coloca r o fon e n o ga n ch o, fiqu ei p a rado
n a ca b in e d u r a n t e m u it o t em p o. A n oit e es t a va qu en t e,
m a s eu es t a va a la ga d o d e s u or fr io, e m in h a s m ã os
tremiam como varas verdes.
Ma is t a r d e, fiqu ei s a b en d o qu e d ep ois qu e Glória
p ôs o fon e n o ga n ch o, a con s elh eir a olh ou p a r a ela ,
d izen d o com u m a voz s ever a : “Glór ia , p or qu e o s eu p a i
h a ver ia d e t elefon a r a es t a h or a d a n oit e, e p ed ir p a r a
você sair com ele?”
Um a d a s ga r ot a s fa lou en t r e r is a d a s : “Por qu e o
n om e d o p a i d ela é Nick y.” E m b or a b em m or en a , Glór ia
ficou r u b r a , e t od o o qu a r t o exp lod iu em u m a gr a n d e
ga r ga lh a d a . Nã o é t od o o d ia , qu e u m a ga r ot a r eceb e u m
con vit e d o h om em d os s eu s s on h os p a r a s er n a m or a d a
dele, com quarenta colegas escutando tudo. A conselhei-
r a ficou in d ign a d a , e d eu -lh es t r ês m in u t os p a r a s e
a p r on t a r em p a r a d or m ir . Glór ia , p or ém , p a s s ou a
m et a d e d a n oit e com a ca b eça d eb a ixo d o t r a ves seiro,
t en d o s ó a t ên u e lu z d a r u a com o ilu m in a çã o,
escrevendo-m e a s u a p r im eir a ca r t a d e a m or . E s t a ficou
totalmente ilegível, mas foi a carta mais esperada que eu
já recebi.
Vá r ia s s em a n a s d ep ois , fu i a b or d a d o p or u m d os
professores, Esteben Castilho, que pediu-me para ajudá-
lo a in icia r u m a ob r a eva n gelís t ica em S . Ga b r iel, p er t o
d a es cola . Dis s e qu e a lis t a r a m a is s et e a lu n os p a r a
t r a b a lh a r com ele n os fin s d e s em a n a . Des cob r ir a u m a
p equ en a ca p ela qu e for a fech a d a e a b a n d on a d a . Os
a lu n os d ever ia m s a ir a os s á b a d os , e b a t er em tod a s a s
p or t a s d a vizin h a n ça , con vid a n d o o p ovo p a r a os cu lt os
n a ca p ela . Os a lu n os a ju d a r ia m a la va r e p r ep a r a r o
p equ en o ed ifício, e en s in a r ia m n a es cola d om in ica l. O
Professor Castilho seria o pregador e pastor.
Senti-m e h on r a d o com o con vit e, e fiqu ei m u ito
emocionado quando ele piscou um olho e me contou que
Glór ia for a t a m b ém con vid a d a p a r a s er vir n o com it ê,
ju n t o com igo. “O s en h or é u m p r ofes s or m u it o s á b io, S r .
Esteben”, d is s e-lh e s or r in d o. “Cr eio qu e p od em os fa zer
u m b om t r a b a lh o p a r a Cr is t o com o excelen t e com it ê
que escolheu.”
“Qu em s a b e s e d ep ois qu e t er m in a r em o t r a b a lho
s ob r a r á a lgu m t em p o p a r a ou t r a s cois a s im p or tantes”,
replicou ele.
Pu d e p er ceb er qu e a n ot ícia d e qu e Glór ia con -
cor d a r a em s er m in h a n a m or a d a já s e es p a lh a r a . Fiqu ei
m u it o gr a t o à qu ele m es t r e s á b io e com p r een s ivo, qu e
n os a ju d ou a en con t r a r u m a for m a p ela qu a l o n os s o
a m or p u d es s e d es en volver -s e e d es a b r och a r d e m a n eir a
natural, orientada por Deus.
No m ês s egu in t e, t r a b a lh a m os t od os os s á b a d os
n a p equ en a ca p ela , e s a ím os d e ca s a em ca s a con vi-
d a n d o o p ovo p a r a os cu lt os d e d om in go. Fin a lm en t e, eu
e Glór ia t ivem os op or t u n id a d e d e p a s s a r u m d ia ju n t os .
Vía m os u m a o ou tr o con s t a n t em en t e, m a s s em p r e n a
com p a n h ia d e ou t r os . Na qu ele d ia , p or ém , p ela p r im eir a
vez, t er ía m os t r ês h or a s glor ios a s s ó p a r a n ós . Glór ia
p r ep a r ou u m la n ch e d e p iqu en iqu e, e d ep ois d e u m a
a t a r efa d a m a n h ã , con vid a n d o o p es s oa l p a r a os cu lt os ,
fomos a um pequeno parque para comer e conversar.
Com eça m os a fa la r a o m es m o t em p o — e d epois
r im os u m p a r a o ou t r o, em b araçados. “Você p r im eir o,
Nicky. Eu ouço”, disse Glória.
Os m in u t os s e fizer a m h or a s , en qu a n t o ficá va m os
a li s en t a d os , con ver s a n d o. E s t iver a t ã o a n s ios o p a r a
con t a r m in h a vid a a ela com t od os os d et a lh es . Fa lei
in t er m in a velm en t e, e ela ou viu com a t en çã o, a b s or t a ,
com a s cos t a s a p oia d a s em u m a gr a n d e á r vor e. De
repente, caí em mim: só eu estava falando, e ela só fizera
ouvir.
“Des cu lp e, Glór ia , m a s h á ta n t a cois a n o m eu
coração, e eu quero que você saiba de tudo... todo o bem
e t od o o m a l. Qu er o qu e s a ib a t u d o o qu e m e a con t eceu
n o p a s s a d o. Per d oe-m e p or t er fa la d o t a n t o. Fa le você
agora. Conte-me o que está no seu coração.”
E la com eçou , d eva ga r a p r in cíp io, m a s logo a s
p a la vr a s com eça r a m a flu ir fa cilm en t e, e ela d er r a m ou o
cor a çã o d ia n t e d e m im . Dep ois , r et r a iu -s e e ficou em
silêncio.
“O que foi, Glória? Continue.”
“E u es fr iei m u it o, Nick y. Com p r een d i is s o qu a n d o
volt ei p a r a a es cola e vi s u a t r a n s for m a çã o. Você es t á
d ifer en t e. Você n ã o é t olo n em in s egu r o, com o er a . Você
cresceu, amadureceu, e tem grande espiritualidade. Vejo
em você uma vida que foi entregue ao Senhor. Nicky...” e
os seus olhos se encheram de lágrimas. “Eu-eu-eu quero
is s o p a r a m im . Qu er o a p a z, a s egu r a n ça , a cer teza qu e
você t em n a s u a vid a . E u m e s in t o s eca ,
es p ir it u a lm en t e. E m b or a Deu s t en h a m e cu r a d o e
m a n d a d o d e volt a à es cola , es p ir it u a lm en t e s in t o-me
fr ia . Pr ocu r o or a r , m a s n a d a a con t ece. E s t ou va zia .
Morta. Desejo aquilo que vejo em você.”
E la b a ixou a ca b eça e es con d eu o r os t o n a s m ã os .
Aproximei-m e e coloqu ei d es a jeit a d a m en t e o b r a ço a o
r ed or d os s eu s om b r os , en qu a n t o es t á va m os a li s ob a
r a m a d a d a á r vor e. E la vir ou -s e p a r a m im e en t er r ou a
ca b eça n o m eu p eit o. Os m eu s b r a ços r od ea r a m s eu
cor p o t r êm u lo, e a lis ei o s eu ca b elo com a m ã o. Glór ia
volt ou a fa ce m a n ch a d a d e lá gr im a s em d ir eçã o à
m in h a , e n os s os lá b ios s e en con t r a r a m em u m lon go e
hesitante beijo de amor.
“E u a m o você, Nick y.” As p a la vr a s d er r a m a ram-se
d a s u a b oca , b em d en t r o d o m eu ou vid o. “E u o a m o d e
todo o coração.”
Nã o n os m exem os d e n os s a p os içã o, e fica m os
s en t a d os a li, d u r a n t e m u it o t em p o, b em ju n t in h os ,
a b r a ça d os com o d u a s vid eir a s en la ça d a s , s u b in d o em
direção aos céus.
“Glór ia , qu er o ca s a r -m e com você. S ei d is s o h á
m u it o t em p o. Qu er o viver o r es t o d a m in h a vid a com
você. Nada tenho a oferecer. Pequei muito, mas Deus me
perdoou. E se você acha que o seu coração também pode
perdoar, quero que seja minha esposa.”
S en t i s eu s b r a ços m e en la ça r em a o r ed or d a
minha cintura, e ela deitou a cabeça no meu ombro.
“S im , qu er id o. S im . S e Deu s o p er m it ir , eu s er ei
s ua para sempre.”
E la leva n t ou a ca b eça , e n os s os lá b ios s e en -
con t r a r a m em ou t r o b eijo. Deixei-m e ca ir d e cos t a s , e
puxei-a p a r a m im . Fica m os d eit a d os n a gr a m a , os
braços ao redor um do outro, em um apertado abraço.
S en t i em m in h a s p er n a s u m a s en s a çã o d e quei-
m a d u r a , d e com ich ã o. Deu s es t a va p er t o, m a s o
p a s s a d o a in d a es t a va d en t r o d e m im . S u r giu n a m in h a
m en t e o p en s a m en t o d e qu e a qu ela er a u m a d a s m a is
b ela s cr ia t u r a s d e Deu s . E s t a va eu p a r a con t a m in á -la
com d es ejos p eca m in os os ? A s en s a çã o d e fogo
continua va a s u b ir p or m in h a s p er n a s . Tor n ou -s e m a is
aguda.
De r ep en t e, er gu i-m e d e u m s a lt o, em p u r r a n d o-a
p a r a t r á s . E la r olou n a gr a m a . “Nicky”, gr it ou “o qu e
foi?”
“Formigas”, gr it ei. “Milh ões d e for m iga s ! E s t ou
coberto delas!”
Com ecei a cor r er , b a t en d o fu r ios a m en t e n a s
p er n a s ; ch u t ei for a os s a p a t os . Nã o a d ia n t ou . Minhas
m eia s es t a va m cob er t a s d e p equ en os d em ôn ios
ver m elh os . E u a s s en t ia a n d a n d o à s cen t en a s p ela s
m in h a s p er n a s . Por m a is qu e b a t es s e n a ca lça , n a d a
p a r ecia in t er r om p er o s eu a t a qu e s em t r égu a s e o s eu
a va n ço p a r a cim a . Glór ia m e olh a va d e olh os
a r r ega la d os , com a r in cr éd u lo, en qu a n t o eu cor r ia em
círculo, dando tapas nas pernas e coçando-me.
“Vire-s e! Vir e-se!” gr it ei. “Olh e p a r a o ou t r o la d o!
Depressa.” E la vir ou -m e a s cos t a s e olh ou p a r a o
p a r qu e. Lu t ei fr en et ica m en t e com a fivela d o m eu
cinturão, e soltei-a.
“Nicky...” começou ela, e fez menção de virar-se.
“Vire-s e! Nã o olh e!” gr it ei, E la com p r een d eu o qu e
eu estava fazendo, e virou-se, obedientemente.
Levei m u it o t em p o p a r a a fa s t a r t od a s a s for migas.
Algu m a s t en t a va m p en et r a r d eb a ixo d a m in h a p ele.
Tive qu e b a t er a s ca lça s n u m a á r vor e, p a r a fa zê-la s ca ir .
Finalmente, pude dizer a Glória que ela podia virar-se.
Volt a m os p a r a a es cola . E la foi a n d a n d o, e eu
coxea n d o. Ten t ei n ã o p er d er a ca lm a , p ois ela es tava
r in d o. Ma s , p a la vr a , qu e eu n ã o con s egu ia ver n a d a d e
engraçado naquilo.
Deixei-a d efr on t e a o d or m it ór io d a s m oça s , e fu i
d ir et o p a r a m eu qu a r t o e p a r a o ch u veir o. De p é s ob a
á gu a fr ia , e es fr ega n d o s a b ã o n os ver gões ver m elh os que
cob r ia m m in h a s p er n a s , a gr a d eci a Deu s p or Glór ia — e
p elo p od er p r ot et or d o s eu E s p ír it o. “Senhor”, d is s e eu
sob a cascata que se derramava do chuveiro, “sei que ela
é p a r a m im . As for m iga s for a m u m a p r ova . Lou vo o t eu
n om e p or m e t er es p r ova d o, e p eço qu e n u n ca m a is p r e-
cises disciplinar-me de novo.”
No d ia s egu in t e, d om in go à n oit e, fu i es ca la d o
p a r a p r ega r n a m is s ã o d e S . Ga b r iel. S en t i o E s p ír it o d e
Deu s s ob r e m im , qu a n d o d ei m eu t es t em u n h o p a r a o
p equ en o gr u p o d e gen t e h u m ild e qu e vier a a o cu lt o. No
fim d o cu lt o, fiz o a p elo. Ob s er vei Glór ia qu a n d o ela
es cor r egou d o s eu a s s en t o, a o fu n d o, a li n a qu ela
p equ en in a igr eja , e veio à fr en te. Nos s os olh os
prenderam-s e n u m a b r a ço, qu a n d o ela s e a joelh ou
d ia n t e d o a lt a r e cu r vou a ca b eça em or a çã o. Ajoelhei-
m e a o la d o d ela , e o S r . Ca s tilh o im p ôs a s m ã os s ob r e
n ós e or ou . S en t i a m ã o d e Glór ia a p er t a r m eu cot ovelo,
en qu a n t o o E s p ír it o d e Deu s en ch ia s eu cor a çã o. A m ã o
de Deus estava sobre nós dois.
No Na t a l, fu i p a r a s u a ca s a , em Oa k la n d . Glór ia
providencia r a p a r a qu e eu fica s s e com a m igos , vis t o os
p a is d ela n ã o s im p a t iza r em com s eu s es t u d os n o
In s t it u t o. S eu p a s t or , Rev. Sa n ch ez, a r r a n jou p a r a eu
fa la r em u m a p equ en a igr eja on d e os cu lt os er a m feit os
em es p a n h ol, a Mis s ã o Bet â n ia . E u p a s s a va os d ia s com
Glór ia , e p r ega va à n oit e. Na d a p od er ia t er m e feit o m a is
feliz.
Na p r im a ver a d o m eu ú lt im o a n o, r eceb i ou t r a
ca r t a d e Da vi. E s t a va com p r a n d o u m a gr a n d e ca s a
velh a n a Av. Clin t on , p a r a a b r ir u m cen t r o p a r a
adolescentes e viciados em entorpecentes. Convidava-me
p a r a volt a r a Nova Yor k d ep ois d e r eceb er o d ip lom a , e
trabalhar no Centro Desafio Jovem.
Con ver s ei à qu ele r es p eit o com Glór ia . Pa r ecia qu e
o S en h or es t a va n os for ça n d o a a ceit a r os s eu s p la n os .
Pen s á va m os t er d e es p er a r m a is u m a n o, a t é qu e Glór ia
t er m in a s s e o s eu cu r s o, a n t es d e n os ca s a r m os . Ma s
a gor a , a s p or t a s es t a va m s e a b r in d o, e p a r ecia qu e Deu s
qu er ia qu e eu volt a s s e p a r a Nova Yor k . E u s a b ia qu e
não poderia voltar sem ela.
E s cr evi a Da vi, e d is s e-lh e qu e eu p r ecis a r ia or a r
a n t es d e t om a r u m a d ecis ã o. Dis s e-lh e t a m b ém qu e
Glór ia e eu qu er ía m os n os ca s a r . Res p on d eu qu e fica r ia
es p er a n d o m in h a d ecis ã o, e qu e Glór ia t a m b ém s er ia
bem-vinda.
Res olvem os ca s a r em n ovem b r o, e u m m ês d epois
ch ega m os a Nova Yor k , p a r a a ceit a r o ofer ecim en t o d e
Davi, e com eça m os o n os s o t r a b a lh o n o Cen t r o Des a fio
Jovem.
A en or m e e velh a m a n s ã o d e t r ês a n d a r es , n a Av.
Clin t on , 4 1 6 , fica va n o cor a çã o d e u m velh o b a ir r o
r es id en cia l d o Br ook lin , a p ou cos qu a r t eir ões d o
Con ju n t o Ha b it a cion a l d e For t Gr een e. Na qu ele ver ã o,
a lgu n s es t u d a n t es t in h a m id o a li e t in h a m d a d o u m a
lim p eza n o ed ifício, a fim d e com eça r o m in is t ér io. Da vi
con t r a t a r a os s er viços d e u m jovem ca s a l p a r a m or a r n o
ca s a r ã o, com o s u p er vis or es . E les p r ep a r a r a m u m
p equ en o a p a r t a m en t o p a r a m im e Glór ia em uma
garagem, nos fundos da casa.
E r a m u it o p equ en o e t os co. O ch u veir o fica va d o
lado de fora, pegado ao edifício principal, e a única cama
er a u m s ofá ; m a s p a r a n ós er a o céu . Nós n a d a
t ín h a m os e d e n a d a p r ecis á va m os . Tín h a m os u m a o
ou t r o, e u m d es ejo a b r a s a d or d e s er vir a Deu s a
qu a lqu er cu s t o. Qu a n d o Da vi com eçou a d es cu lp a r -se
p or n os s a s a com od a ções p ob r es e p equ en a s , lem b r ei-lhe
qu e s er vir a J es u s n u n ca er a s a cr ifício — m a s u m a
honra.
Pou co a n t es d o Na ta l, volt ei a vis it a r a zon a d os
Mau-Ma u s . Meu cor a çã o s en t ir a o p es o d a r es -
p on s a b ilid a d e p or Hect or Fu r a cã o, e qu er ia en con trá-lo
e t r a b a lh a r com ele p es s oa lm en t e, a gor a qu e volt a r a
p a r a o Br ook lin p a r a fica r . E n con t r ei u m gr u p o d e Ma u -
Ma u s n a con feit a r ia , e p er gu n t ei-lhes: “On d e es t á o
Furacão?”
“Con ver s e com S t eve, o n os s o p r es id en t e; ele
con t a r á o qu e a con t eceu ”, d is s e u m d eles e os r a pazes
se entreolharam.
E u t em ia a ver d a d e, m a s fu i a o a p a r t a m en t o d e
Steve.
“O que aconteceu a Hector?” perguntei-lhe.
“Va m os d es cer p a r a a r u a , e eu lh e con t a r ei. Não
qu er o qu e a m in h a velh a es cu t e.” S t eve s a cu d iu a
cabeça e olhou para a parede.
Des cem os a s es ca d a s , e p a r a m os n o s a gu ã o d o
ed ifício, p a r a n os r es gu a r d a r d o ven t o fr io, e S t eve m e
con t ou a h is t ór ia . “Dep ois qu e fa lou com você, n a qu ela
n oit e a n t es d e s u a volt a p a r a a Ca lifór n ia , ele ficou
m u it o im p a cien t e. Nu n ca o vir a d a qu ele jeit o. Tivem os
u m gr a n d e “quebra-pau” com os Ap a ch es , e ele p or t ou -
s e com o u m s elva gem , p r ocu r a n d o m a t a r t od o m u n d o
qu e a t r a ves s a s s e s eu ca m in h o, a t é os Ma u -Ma u s . E
então, três meses depois ele levou a dele.”
“Com o foi qu e a con t eceu ?” p er gu n t ei, s en t in d o já
a d ep r es s ã o b or b u lh a r em m eu cor a çã o e p u lmões,
fa zen d o com qu e a m in h a r es p ir a çã o s e tor nasse
ofegante e curta. “Quem foi ?”
“Fu r a cã o, Gilb er t , m a is d ois r a p a zes e eu , fom os
m a t a r u m Ap a ch e. E le vivia s ozin h o n o qu in t o a n d a r d e
u m p r éd io d e a p a r t a m en t os . Ma is t a r d e, d es cob r im os
qu e a qu ele n ã o er a o ca r a , m a s Fu r a cã o r es olver a m a t a r
a qu ele m es m o, e n ós fom os com ele p a r a a ju d á -lo.
Fu r a cã o es t a va com u m r evólver . Ba t em os à p or t a d o
s u jeit o. E s t a va es cu r o, m a s o ca r et a er a es p er t o.
Ab r in d o r a p id a m en t e a p or t a , viu Fu r a cã o com o
r evólver . Pu lou p a r a for a , p a r a o cor r ed or , b r a n d in d o
uma b a ion et a d e s es s en t a cen t ím et r os . Ha via u m a
lâmpada acesa, no teto, e ele a estourou com a baioneta.
Nã o con s egu ía m os ver n a d a . E le es t a va com o u m lou co,
b r a n d in d o a b a ion et a . e d a n d o golp es p a r a t od os os
la d os . Fu r a cã o d is p a r ou o r evólver t r ês vezes , e d ep ois
ouvim os u m gr it o t er r ível: “E le m e m a t ou ! E le m e
matou!” Nã o s a b ía m os qu em er a , e p en s a m os qu e
Fu r a cã o m a t a r a o Ap a ch e. S a ím os cor r en d o es ca d a
abaixo — cinco lances de degraus, e chegamos à rua.”
S t eve vir ou -s e e olh ou es ca d a a cim a , em d ir eçã o
a o s eu a p a r t a m en t o, p a r a ver s e a lgu ém es t a va p r o-
cu r a n d o ou vir . “Vim os , en t ã o, qu e Fu r a cã o n ã o es tava
con os co. Gilb er t s a iu cor r en d o e s u b iu a s es ca d a s , in d o
en con t r a r Fu r a cã o em p é, en cos t a d o n a p a r ed e, com
a qu ela b a ion et a in t eir a cr a va d a n ele. Gilb er t d is s e qu e a
p on t a es t a va a p a r ecen d o n a s cos t a s . O Ap a ch e volt a r a
correndo para o quarto e trancara a porta. Hector estava
com m ed o, e ch or a va . E le s e a p oia r a à p a r ed e, com
a qu ela en or m e fa ca en t er r a d a , a t r a ves s a n d o s eu ven t r e,
e im p lor a va a Gilb er t qu e n ã o o d eixa s s e m or r er . Dis s e
qu e t in h a m ed o d e m or r er . Gr it ou a lgo a r es p eit o d a s
b a t id a s d o r elógio, e d ep ois ca iu n o cor r ed or , s ob r e a
baioneta, e morreu.”
Min h a ga r ga n t a es t a va s eca , e m in h a lín gu a p a -
r ecia com o s e eu t ives s e en r ola d o a lgod ã o n ela .
Gaguejei: “Por que vocês o deixaram lá?”
“Por qu e es t á va m os t od os a m ed r on t a d os . E s t á -
va m os em p â n ico. Nu n ca t ín h a m os vis t o n in gu ém
m or r er a s s im . Tod os os r a p a zes s e es p a lh a r a m e
fu gir a m . A p olícia foi lá , m a s n ã o con s egu iu p r ova r
n a d a , e s olt a r a m o Ap a ch e. Fica m os m u it o ch oca dos
com tudo o que aconteceu.”
Virei-m e p a r a s a ir , e S t eve m e p er gu n t ou : “Nicky,
o que você acha que ele quis dizer sobre o relógio?”
Balancei a cabeça “Não sei. Até mais tarde.”
E s t a va a t or d oa d o en qu a n t o volt a va à Av. Clin t on .
A cada passo parecia ouvir as batidas do relógio da torre
n a Av. Fla t b u s h e m in h a voz d izen d o a Hect or Fu r a cã o:
“É t a r d e, Hect or , m a s n ã o d em a is . Ma s , s e você n ã o
entregar seu coração a Cristo, eu nunca mais o verei.”
“Deu s qu er id o”, m u r m u r ei, “p or fa vor , n ã o m e
d eixe a fa s t a r ou t r a vez d e u m a m igo, s em t en t a r u m
pouquinho mais.”
Meu s a lá r io in icia l er a d e d ez d óla r es p or s emana,
a lém d e qu a r t o e com id a . Da d o o fa t o d e qu e o p equ en o
a p a r t a m en t o n a ga r a gem n ã o t in h a cozin h a , t om á va m os
a s r efeições n a ca s a gr a n d e. Glór ia e eu gos t á va m os
m u it o d e com id a es p a n h ola a p im en t a d a . Ma s n o Cen t r o,
p r ecis á va m os com er a lim en t o b em equ ilib r a d o. Por is s o,
es b a n já va m os a m a ior p a r t e d os n os s os d ez d óla r es ,
t od a s a s s em a n a s , em com id a . E r a o n os s o ú n ico p r a zer
extra na vida.
Com eça m os o t r a b a lh o n a s r u a s . Da vi Wilk er s on
escrevera um pequeno folheto que chamávamos “Folheto
Galinha”. Con t in h a m en s a gem para os jovens,
desafiando-os a a ceit a r em a Cr is t o, d eixa n d o d e s er
“covardes” (ga lin h a s ). Dis t r ib u ía m os a qu ele folh et o a os
milhares, nas ruas de Brooklin e de Harlem.
Ficou evid en t e, im ed ia t a m en t e, qu e a n os s a ob r a
m a is im p or t a n t e s er ia en t r e os vicia d os em en t or -
p ecen t es . Mu it os d os m em b r os d a s qu a d r ilh a s , qu e
ou t r or a s e s a t is fa zia m em fu m a r m a con h a e b eb er
vinho, haviam começado a fazer uso de heroína.
Nos s o m ét od o er a ou s a d o. Ap r oxim á va m os d e
gr u p os d e r a p a zes qu e es t a va m p a r a d os n a s es qu in a s , e
entabulávamos conversa.
“Ei, meu chapa, quer largar o vício?”
“S im , m eu ch a p a , m a s com o?” r es p on d ia m eles
invariavelmente.
“Ven h a a o Cen t r o Des a fio J ovem , n a Av. Clin t on .
Nós va m os or a r p or você. Cr em os qu e Deu s r es p on d e à s
orações. Você pode dar um pontapé no vício, pelo poder
d e Deu s .” Dá va m os -lh es u m exem p la r d o folh eto
“Galinha”.
“Pu xa vid a , s ó is s o? Bem , t a lvez eu t elefon e p a r a
vocês , ou a p a r eça lá a lgu m d ia .” Foi u m com eço m u it o
va ga r os o. A m a ior p a r t e d o t em p o er a ga s t a a ndando
en t r e gr u p os d e joven s qu e es t a va m p ela s es qu in a s ,
con ver s a n d o. Os vicia d os n ã o t r a b a lh a m . Ar r a n ja m
d in h eir o em fu r t os , b a t en d o ca r t eir a s e p ega n d o
“otários” n o con t o d o vigá r io, e ou t r os “contos”. E les
en t r a m em a p a r t a m en t os fech a d os , r ou b a m os m óveis e
ven d em . Rou b a m b ols a s d e s en h or a s . Rou b a m r ou p a s
d os va r a is , leit e d a s p or t a s , d e m a d r u ga d a ; en fim ,
qu a lqu er cois a d is p on ível p a r a ob t er d in h eir o s u ficien t e
p a r a a lim en t a r o vício. Por t od a a p a r t e em
Williamsburg, há pequenas turmas de oito a dez pessoas
p ela s es qu in a s , p la n eja n d o r ou b os ou p r ocu r a n d o
descobrir como se livrar de coisas roubadas.
Na ép oca d o Na t a l, t ivem os o p r im eir o con ver tido
no Centro.
S eu n om e er a Ped r o. For a u m Ma u -Ma u . E r a u m
r a p a z a lt o, d e cor , qu e viver a com u m a m u lh er ca s a da.
Um d ia o m a r id o d ela en con t r ou -o em u m b a r , e Ped r o
feriu-o com u m a fa ca . O h om em er a m em b r os d os
S cor p ion s , u m a ga n g d o ou t r o la d o d a cid a d e, e Ped r o
ou viu fa la r qu e es t a va m a t r á s d ele. Con h eci-o cer t a
n oit e, ou vi s u a h is t ór ia , e ofereci-lh e r efú gio n o Cen t r o
Des a fio J ovem . E le a ceit ou d e b oa von t a d e. Tr ês d ia s
d ep ois qu e s e m u d ou p a r a o Cen t r o, a ceit ou a Cr is t o,
entregando sua vida ao Senhor.
Du r a n t e os t r ês m es es qu e s e s egu ir a m , vivem os e
r es p ir a m os Ped r o. Glór ia e eu p a s s a m os o n os s o
p r im eir o Na t a l d ep ois d e ca s a d os , em n os s o p equ eno
a p a r t a m en t o d e d ois côm od os , t en d o Ped r o com o n os s o
h ós p ed e. E le t om a va t od a s a s r efeições con os co. Ia
con os co a t od os os lu ga r es a on d e fôs s em os . Nos fin s d e
s em a n a , ía m os d e m et r ô a vá r ia s igr eja s , p a r a a s s is t ir
cultos. Pedro sempre ia conosco .
Um a n oit e, em m a r ço, fu i d or m ir t a r d e, com o d e
cos t u m e. Glór ia já s e h a via a n in h a d o em n os s o s ofá -
ca m a , n o qu a r t o d a fr en t e. Pen s ei qu e ela es tivesse
d or m in d o, e m e d es p i s ilen cios a m en t e, p a r a n ã o a cor d á -
la . E s gu eir a n d o-me p a r a d eb a ixo d a s cob er t a s , coloqu ei
o b r a ço em t or n o d e s eu s om b r os , qu a n d o p er ceb i qu e
ela es t a va ch or a n d o. S en t i s eu cor p o s a cu d in d o-s e s ob o
meu braço, enquanto ela soluçava.
“Ei, menina, o que é que há ?”
Foi o b a s t a n t e; a s lá gr im a s vier a m com s olu ços.
Fiqu ei a o s eu la d o, m a s s a gea n d o-lh e a s cos t a s e
confortando-a , a t é qu e ela s e a ca lm ou s u ficien t em en te
p a r a p od er m os con ver s a r . “O qu e h á , Glór ia ? Você n ã o
está se sentindo bem, o que foi ?”
“Nã o é n a d a , Nick y. Você n ã o en t en d e, e n u n ca
entenderá.”
“Enten d er o qu ê?” E s t a va con fu s o d ia n t e d a s u a
atitude hostil.
“Aqu ele p a r a s it a !” Glór ia excla m ou . “Aquele
p a r a s it a d o Ped r o! S er á qu e ele n ã o com p r een d e qu e
qu er o p a s s a r u m p ou co d e t em p o s ozin h a com você ?
Fa z a p en a s qu a t r o m es es qu e es t a m os ca s a d os , e ele
tem de ir conosco a todos os lugares onde vamos ? Se no
b a n h eir o n ã o cou b es s e s ó u m a p es s oa , ele s er ia ca p a z
de pedir para tomar banho conosco .”
“E i, va m os ”, a ca lm ei-a, “n em p a r ece qu e você é a
m in h a Glór ia . Devia s en t ir -s e or gu lh os a . E le é o n os s o
prim eir o con ver t id o. Você d evia es t a r a gr a d ecen d o a
Deus.”
“Ma s , Nick y, eu n ã o qu er o p a r t ilh a r você com
ou t r a s p es s oa s , o t em p o t od o. E u m e ca s ei com você, e
você é o m eu m a r id o. Pelo m en os , d evo p od er p a s s a r
a lgu m t em p o com você s em t er a qu ele Ped r o d e d en tes
a r r ega n h a d os p or p er t o, d izen d o o t em p o t od o: Glór ia a
Deus!”
“Você não está falando sério; está, Glória?”
“Nu n ca fa lei t ã o s ér io. Um d e n ós p r ecis a ir
em b or a . Ou você es t á ca s a d o com igo, ou você va i
d or m ir com Ped r o. E s t ou fa la n d o s ér io. Você n ã o p od e
ter nós dois.”
“E i, es cu t e, qu er id a . S e eu o m a n d a r d e volt a p a r a
a r u a , ele volt a r á d ir et a m en t e p a r a a qu a d r ilh a , ou os
Scorpions o matarão. Precisamos conservá-lo aqui.”
“Bem, se ele voltar para a quadrilha, então há algo
er r a d o com o s eu Deu s . Qu e es p écie d e Deu s Ped r o t em ,
a fin a l d e con t a s ? Um Deu s qu e o s olt a r á n o m u n d o, a
p r im eir a vez em qu e ele s e en con t r a r em d ificu ld a d es ?
Nã o cr eio n is s o. Cr eio qu e, s e u m h om em t em u m a
exp er iên cia d e con ver s ã o, Deu s é s u ficien t em en t e
gr a n d e p a r a gu a r d á -lo p a r a s em p r e. E s e for m os
ob r iga d os a b a n ca r a a m a -seca para todos esses rapazes
qu e você es t á con vid a n d o a vir a qu i, eu n ã o qu er o s a b er
d es s e n egócio.” A voz d e Glór ia a lt er ou -s e en qu a n t o ela
falava.
“Mas, Glória, ele é o meu primeiro convertido...”
“Ta lvez s eja is t o qu e es t á er r a d o en t r e você e ele.
E le é o s eu con ver t id o. S e fos s e u m con ver t id o d o
S en h or , você n ã o p r ecis a r ia fica r t ã o p r eocu p a d o com o
perigo dele voltar para a quadrilha.”
“Bem , p od e s er qu e você es t eja cer t a . Ma s a s s im
m es m o, tem os a ob r iga çã o d e p r ovid en cia r u m lu gar
p a r a ele fica r . E lem b r e-s e, Glór ia , qu e o S en h or m e
ch a m ou p a r a es t a ob r a , e você con cor d ou em vir
comigo.”
“Ma s , Nick y, o qu e eu n ã o qu er o é p a r t ilh a r você
com os outros, o tempo todo. Só isto.”
“Você n ã o p r ecis a m e p a r t ilh a r com n in gu ém
a gor a . E a m a n h ã eu vou fa la r com Ped r o, e ver s e ele
p od e en con t r a r a lgu m a cois a p a r a fa zer , em vez d e fica r
a t r á s d e n ós o t em p o t od o. Cer t o?” Ab r a cei-a
carinhosamente.
“Certo”, m u r m u r ou ela , a o m es m o t em p o qu e
d eit a va a ca b eça n o m eu om b r o e a con ch ega va -s e a
mim.
S on n y ch egou n o ú lt im o d ia d e a b r il — ju n t o com
uma predição de neve em maio. Era o primeiro viciado
em entorpecentes com quem eu trabalharia .
E n t r ei n a ca p ela , a qu ela n oit e, e n ot ei u m r a p a z
d e r os t o m u it o p á lid o, s en t a d o n u m ca n t o. Per ceb i logo
qu e ele er a vicia d o; d ir igi-m e a ele e s en t ei a o s eu la d o.
Pa s s a n d o o b r a ço p or s ob r e os s eu s om b r os , com ecei a
falar-lh e fr a n ca m en t e. Ficou com a ca b eça cu r va d a ,
olhando para o chão, enquanto eu falava.
“S ei qu e você é vicia d o... é u m fa r r a p o. Per ceb o
qu e já es t á “fisgado” h á m u it o t em p o, e qu e n ã o é ca p a z
d e livr a r -s e d o vício. Pen s a qu e n in gu ém s e im p or t a com
você. Deixe-m e d izer -lh e u m a cois a , Deu s s e im p or t a .
Ele pode ajudá-lo.”
O r a p a z leva n t ou a ca b eça e olh ou -me
inexpressiva m en t e. Fin a lm en t e, d is s e qu e o s eu n om e
er a S on n y. Fiqu ei s a b en d o m a is t a r d e qu e for a cr ia d o
em u m la r r eligios o, m a s fu gir a d e ca s a e for a p a r a r n a
ca d eia vezes s em con t a , p or u s o d e d r oga e p or r ou b o.
Teve d e d eixa r o vício “n a m a r r a ” n a s vá r ia s vezes qu e
p a s s ou p ela ca d eia , m a s a o s a ir , volt a va a os
entorpecentes. Estava “fisgado” irremediavelmente.
S on n y er a u m vicia d o qu e t in h a u m m eio s in gular
d e con s egu ir d in h eir o p a r a a lim en t a r s eu vício. S eu
com p a n h eir o s a ía cor r en d o p ela r u a , e a r r eb a t a va a
b ols a d e u m a s en h or a . Qu a n d o ela com eça va a gr it a r ,
S on n y a p r oxim a va -s e d ela e d izia : “Nã o gr it e, m in h a
s en h or a . Con h eço a qu ele la d r ã o. Vou b u s ca r s u a b ols a .
E s p er e a qu i, qu e eu volt o em u m m in u t o.” A s en h or a
p a r a va d e gr it a r ch a m a n d o a p olícia , e en qu a n t o ela
fica va es p er a n d o, S on n y s a ía cor r en d o p a r a ju n t a r -s e a o
amigo e dividir o despojo.
Ajoelh a d o a s eu la d o, n a ca p ela , eu d is s e : “Quero
or a r p or você. Você p r ecis a d e J es u s em s u a vid a .” S en t i
u m a on d a d e com p a ixã o en ch er m eu cor a çã o, e com ecei
a ch or a r en qu a n t o or a va : “Sen h or , a ju d a es t e r a p a z.
Ele está morrendo. Só tu podes ajudá-lo. Ele precisa de
esperança, de amor. Por misericórdia, ajuda-o.”
Qu a n d o t er m in ei, S on n y d is s e : “Pr ecis o ir p a r a
casa.”
“Eu levo você.”
“Não”, r es p on d eu com exp r es s ã o d e p â n ico n o
rosto. “Você não pode fazer isso.”
Eu sabia que ele estava dando um jeito de escapar
p a r a t om a r u m a “picada”. E n t ã o, va m os fica r com você
aqui”, disse eu.
“Não”, r es p on d eu , “p r ecis o ir a o t r ib u n a l a m a n h ã
ced o. E les vã o m e s en t en cia r a p r is ã o. Nem s ei m es mo
por que estou aqui.”
“Você es t á a qu i p or qu e Deu s o m a n d ou ”, d is s e eu .
“Deu s es t á m e u s a n d o p a r a a ju d á -lo. Fiqu e conosco
a qu i n o Cen t r o es t a n oit e; a m a n h ã ir ei a o t r ib u n a l com
você.” E le in s is t iu em ir p a r a ca s a , e eu p r om et i
encontrar-m e com ele às oito da manhã.
No d ia s egu in t e, fu i com ele a o t r ib u n a l. Qu a n do
es t á va m os s u b in d o os d egr a u s d o gr a n d e ed ifício, eu lh e
disse: “S on n y, vou or a r p a r a qu e Deu s fa ça com qu e o
juiz adie o seu julgamento por dois meses, para que você
p os s a d eixa r o vício e con h ecer a Cr is t o. Dep ois d is s o,
pode ser até que ele absolva você.”
“Va i s er d ifícil. Aqu ele ju iz s em -ver gon h a n u n ca
a d ia n a d a . E le m e p or á n a ca d eia a n t es d o m eio-dia.
Espere para ver.” Sorriu.
Pa r ei n os d egr a u s d o t r ib u n a l e com ecei a or a r em
voz a lt a : “S en h or , eu t e p eço em n om e d e J es u s qu e
m a n d es o t eu E s p ír it o S a n t o t oca r a qu ele ju iz, fa zen d o
com qu e a d ie o ju lga m en t o d o ca s o d e S on n y, p a r a qu e
ele p os s a t or n a r -s e cr en t e. Mu it o ob r iga d o p or
responderes à minha oração. Amém.”
S on n y olh ou p a r a m im com o s e eu es t ives s e
lou co. Tom ei-o p elo b r a ço: “Va m os , va m os ou vir o ju iz
dizer que vai adiar o seu caso.”
E n t r a m os n a s a la d e a u d iên cia , e S on n y a p r esentou-se
a o oficia l d e ju s t iça . Dep ois , ficou ju n t o a os ou t r os
acusados, e eu me sentei no fundo da sala.
O ju iz ou viu t r ês ca s os , e s en t en ciou os r a p a zes a
p r olon ga d os p er íod os d e p r is ã o. O t er ceir o r a p a z qu e foi
ju lga d o com eçou a gr it a r qu a n d o o ju iz p r on u n ciou s u a
s en t en ça . Tr ep ou n a m es a e t en t ou p ega r o ju iz,
gr it a n d o qu e ia m a tá -lo. Tod os os qu e es t a va m n a s a la
d e a u d iên cia fica r a m d e p é, en qu a n t o os p olicia is
d er r u b a va m o r a p a z e o a lgem a va m . Qu a n d o o
arrastaram para fora, por uma porta lateral, ele gritava e
d a va p on t a p és , e o ju iz en xu gou a t es t a e d is s e: “O
seguinte.” S on n y p ôs -s e d e p é n er vos a m en t e, en qu a n t o
o m a gis t r a d o folh ea va s eu p r oces s o. Olh a n d o p or cim a
dos óculos, finalmente ele disse : “Por alguma razão, sua
in ves t iga çã o p r elim in a r n ã o es t á com p let a . Qu er o qu e
você se apresente de novo daqui a sessenta dias.”
S on n y vir ou -s e e olh ou p a r a m im com os olh os
ch eios d e in cr ed u lid a d e. S or r i e fiz s in a l p a r a qu e ele
vies s e com igo. Tín h a m os u m a t a r efa d ifícil p ela fr en t e, e
precisávamos iniciá-la.
Deixa r a h er oín a “n a m a r r a ” é u m a d a s exp e-
r iên cia s m a is a gon iza n t es qu e s e p od e im a gin a r . Pr e-
p a r ei u m qu a r t o p a r a S on n y n o t er ceir o a n d a r d o
Cen t r o. E u s a b ia qu e s er ia n eces s á r ia con s t a n t e s u -
p er vis ã o. Por is s o, a vis ei a Glór ia qu e p a s s a r ia os t r ês
d ia s s egu in t es com S on n y. Ar r u m ei u m a vit r ola com
d is cos eva n gélicos , e r es olvi fica r s en t a d o a o la d o d ele
naquele quarto, até que passasse pela prova.
No primeiro dia ele ficou desassossegado, andando
p elo qu a r t o e fa la n d o r a p id a m en t e. Na qu ela n oit e ele
com eçou a t r em er . Fiqu ei s en t a d o a s eu la d o n oit e a
d en t r o, en qu a n t o t er r íveis cr is es d e cala fr io s e s u ced ia m
e s eu cor p o er a violen t a m en t e s a cu d id o, os d en t es
ca s t a n h ola va m , ch ega n d o a t é a fa zer vib r a r o qu a r t o
t od o. Às vezes ele con s egu ia es ca p a r d e m im e cor r ia
para a porta, mas eu a trancara, e ele não podia sair.
Na m a d r u ga d a d o s egu n d o d ia , s eu t r em or d i-
m in u iu , e eu o levei p a r a b a ixo, p a r a t om a r u m la n ch e.
S u ger i qu e d és s em os u m a volt a n o qu a r t eir ã o. Nem b em
h a vía m os s a íd o d o Cen t r o, qu a n d o ele com eçou a
vom it a r . Cu r vou -s e s ob r e a ca lça d a , a p er t a n d o o
es t ôm a go com â n s ia s d e vôm it o. Levantei-o, m a s ele
safou-s e d e m im e foi ca m b a lea n d o a t é o m eio d a r u a ,
on d e ca iu . Ar r a s t ei-o d e volt a a t é a ca lça d a , e s egu r ei
s u a ca b eça n o m eu colo, a t é qu e os t r em or es
p a s s a s s em , e ele r ecu p er a s s e a s for ça s . Volt a m os , en t ã o
ao nosso quarto no terceiro andar, para esperar e orar.
Qu a n d o a n oit e s e a p r oxim a va , ele com eçou a
gritar: “Nick y, eu n ã o con s igo. Fu i lon ge d em a is , n ã o d á
para largar o vício. Preciso de uma “picada.”
“Nã o, S on n y, va m os a t r a ves s a r ju n t os es t a p r ova .
Deus lhe dará forças para vencer.”
“Nã o qu er o for ça n en h u m a . Qu er o u m a “picada”.
Pr ecis o d ela . Por fa vor , p or fa vor , Nick y. Nã o m e s egu r e
aqui. Pelo amor de Deus, deixe-me ir. Deixe-me ir.”
“Não, Sonny. Pelo amor de Deus eu não deixo você
ir . Você é p r ecios o p a r a ele. E le qu er u s á -lo, m a s n ã o
p od e fa zê-lo en qu a n t o es t e d em ôn io p os s u ir você. Pelo
a m or d e Deu s , vou s egu r á -lo a qu i a t é qu e es t eja b om d e
novo.”
Sentei-m e com ele, e p a s s a m os a li a n oit e in teira.
E le s u ou fr io e t eve n á u s ea s t er r íveis , a p on t o d e eu
p en s a r qu e o s eu es t ôm a go ia vir a r p elo a ves s o. Ba n h ei
s u a ca b eça com t oa lh a s m olh a d a s , ligu ei a vit r ola n o
ú lt im o volu m e, e ca n t ei p a r a ele, a com p a n h a n d o os
cantores dos discos.”
No d ia s egu in t e eu es t a va m or r en d o em p é. Ten t ei
ou t r a vez fa zê-lo en golir a lgu m a lim en t o, m a s d evolveu
t u d o n a m es m a h or a . S en t ei-m e a o la d o d a s u a ca m a , e
orei até o por do sol.
E le ca iu n u m s on o es p a s m ód ico, gem en d o, s o-
b r es s a lt a d o, e d a n d o r ep elões . Du a s vezes leva n t ou -se
a git a d a m en t e e t en t ou a lca n ça r a p or t a . Da ú lt im a vez
tive de agarrá-lo e arrastá-lo de volta para o leito.
Por volt a d e m eia n oit e, s en t a d o n a ca d eir a a o
la d o d a ca m a , s en t i a n u vem n egr a d o s on o ca ir s obre
m im . Ten t ei lu t a r p a r a a fa s t á -la , m a s h a via qu a r en t a e
d u a s h or a s qu e eu n ã o d or m ia . S a b ia qu e s e ca ís s e n o
s on o, S on n y p od er ia es ca p a r , e d es a p a r ecer . E s t á va m os
p er t o d a vit ór ia , m a s eu n ã o t in h a m a is for ça s , e s en t i
m eu qu eixo ca ir s ob r e o p eit o. “Ta lvez s e fech a r os olh os
só uns minutinhos...”
Acor d ei a s s u s t a d o. O b r ilh o m ela n cólico d a s lâ m -
p a d a s d a r u a r eflet ia m -s e n o gr a n d e qu a r t o s im p les d o
t er ceir o a n d a r d o p r éd io. Nã o p en s a va qu e t ives se
d or m id o m a is d o qu e a lgu n s s egu n d os , m a s a lgo d en t r o
d e m im m e a d ver t ia d e qu e d or m ir a m u it o m a is d o qu e
is s o. Olh ei p a r a a ca m a d e S on n y. E s t a va va zia . Os
cob er t or es es t a va m em d es or d em , e joga d os d e la d o. E le
fora embora!
Meu cor a çã o p u lou p a r a a ga r ga n t a . Leva n t ei-me
d e u m p u lo, e s a í em d ir eçã o à p or t a , qu a n d o o vi
a joelh a d o n o a s s oa lh o, a o la d o d a ja n ela . S en t i u m a
on d a d e a lívio, e m e a p r oxim ei d eva ga r d a ja n ela ,
ajoelhando-me n a s t á b u a s n u a s , a o la d o d ele. Um a
n eva d a p r im a ver il ca ía s u a vem en t e, e r eflet ia n a ca lçada
a lu z d os p os t es . A r u a e a ca lça d a con fu n diam-se
d eb a ixo d e u m s ó ta p et e d e u m b r a n co im a cu la d o, e os
r a m os d a s á r vor es , p er t o d a ja n ela , com s eu s
m in ú s cu los b r ot os d elica d os qu e com eça va m a s u r gir ,
b r ilh a va m d evid o à n eve b r a n ca e fofa qu e os cob r ia .
Ca d a floco m a cio r elu zia in d ivid u a lm en t e, qu a n d o
flu t u a va d ia n t e d a lu z d a s lâ m p a d a s , ca in d o a o ch ã o.
Faziam-me lembrar de uma figura de cartão de Natal.
“É m a r a vilh os o. É in d es cr it ível. Nu n ca vi cois a
mais bela; e você?” disse Sonny.
Eu olhava para ele. Seus olhos estavam claros, e a
voz firme. Sua face mostrava-se radiante; sua língua não
estava grossa, nem sua fala pastosa.
E le s or r iu p a r a m im : “Deu s é b om , Nick y. E le é
m a r a vilh os o. E s t a n oit e ele m e lib er t ou d e u m d es t in o
p ior d o qu e o p r óp r io in fer n o. E le m e lib er t ou d a
escravidão.”
Olh ei p a r a for a , a d m ir ei o qu a d r o d elica d o d e
b eleza p u r a qu e es t a va d ia n t e d e m im , e m u r m u r ei :
“Ob r iga d o, S en h or , ob r iga d o.” E ou vi Son n y m u r m u r a r :
“Muito obrigado.”
Pela p r im eir a vez d eixei S on n y a s ós , a t r a ves s ei o
p á t io cob er t o d e n eve fofa , em d ir eçã o a o m eu
a p a r t a m en t o. Tin h a a ca b eça d es cob er t a , e a n eve
gélid a , qu e ca ía t ã o m a n s a m en t e, cob r iu m eu ca b elo e
r a n gia s u a vem en t e d eb a ixo d os m eu s p és , en qu a n t o eu
subia os degraus exteriores.
Ba t i d e leve, e Glór ia a b r iu a p or t a . “Qu e h or a s
são ?” perguntou ela estremunhada.
“Qu a s e t r ês d a m a n h ã ”, r es p on d i. E n con t r a m o-
n os n a s oleir a d a p or t a , e a p er t ei-a a m or os a m en t e
con t r a m im , en qu a n t o ob s er vá va m os a n eve s u a ve e fofa
amontoar-s e s ilen cios a m en t e n o ch ã o, cob r in d o t u d o o
qu e er a es cu r o e feio com u m len çol m a ravilhosamente
branco, como a inocência.
“S on n y en con t r ou -s e com Cr is t o”, d is s e eu . “Uma
nova vida nasceu para o reino.”
“E u t e a gr a d eço, J es u s ”, d is s e Glór ia d e m a n s o.
Hou ve u m a lon ga p a u s a , e fica m os n a s oleir a d a p or t a ,
a d m ir a n d o o m a r a vilh os o qu a d r o d ia n t e d e n ós . E n t ã o,
s en t i o b r a ço d e Glór ia a p er t a r m in h a cin t u r a . “Sonny
n ã o é a ú n ica n ova vid a qu e p a s s ou a exis t ir . Nã o t en h o
t id o t em p o d e fa la r com você, p or qu e t em es t a d o t ã o
ocupado nestes últimos três dias, mas há uma vida nova
em mim, também, Nicky. Vamos ter um nenê.”
Puxei-a p a r a m im e es t r eit ei-a ju n t o a o m eu p eit o,
ch eio d e a m or e a legr ia . “Oh , Glór ia , eu a m o você! E u a
a m o m u it o, m u it o!” S u a vem en t e, cu r vei-m e, p a s s ei os
b r a ços p or t r á s d os joelh os d ela , e va ga r os a m en t e
levantei-a n o colo. Dei u m p on t a p é n a p or t a , qu e s e
fech ou com u m es t a lid o, m er gu lh a n d o o qu a r t o em
com p let a es cu r id ã o. Ca r r egu ei-a p a r a o s ofá , e coloqu ei-
a ca r in h os a m en t e n a ca m a . S en t a n d o-m e a o la d o d ela ,
p ou s ei a ca b eça s u a vem en t e n o s eu ven t r e m a cio,
aconchegando-m e a o m á xim o à n ova vid a qu e es t a va
a li d en t r o. Com a s m ã os ela a ca r iciou m eu r os t o e
m in h a ca b eça . A exa u s t ã o m e d om in ou e ca í n u m s on o
profundo e sossegado.
Dep ois d e s u a con ver s ã o, S on n y levou -n os a co-
n h ecer o es cu r o s u b m u n d o d a gr a n d e cid a d e, e in -
troduziu-n os n o r ein o d os vicia d os , d a s p r os t it u t a s , e
dos criminosos.
Glór ia e eu p a s s a m os m u it a s h or a s n a s r u a s ,
distribuin d o folh et os , e o n ú m er o d e p es s oa s qu e er a m
a t en d id a s n o Cen t r o cr es ceu . Tín h a m os con t u d o, b em
p ou cos a d oles cen t es . A m a ior ia er a con s t it u íd a d e
a d u lt os . Ab r im os o t er ceir o a n d a r p a r a r ecolh er a s
m u lh er es . Glór ia a ju d a va a cu id a r d a s m oça s , e eu
trabalh a va com os r a p a zes , em b or a com o d ir et or
estivesse encarregado dos dois grupos.
Da vi m u d a r a -s e p a r a u m a ca s a em S t a t en Is la n d ,
e vin h a a o Cen t r o t od os os d ia s , qu a n d o es t a va n a
cidade, para supervisionar o trabalho.
Com p r a m os u m a Kom b i. Glór ia e u m d os rapazes
s a ía m d u a s vezes p or s em a n a p a r a a p a n h a r m em b r os
de gangs e trazê-los ao Centro, para os cultos.
Ped r o a lu gou u m a p a r t a m en t o em J er s ey, e m u -
dou-s e, m a s S on n y ficou a t é s et em b r o, qu a n d o via jou
p a r a La Pu en t e, on d e foi cu r s a r o In s t it u t o Bíb lico.
Na qu ele m es m o ver ã o, o a p a r t a m en t o d o s egu n d o a n d a r
d o Cen t r o foi d es ocu p a d o, e eu e Glór ia m u damo-nos
p a r a lá . O d or m it ór io d os h om en s fica va n os fu n d os d o
s egu n d o a n d a r . No p r im eir o, h a via o es cr it ór io, a
cozin h a , o r efeit ór io e u m a s a la gr a n d e qu e u s á va mos
com o ca p ela . E s p er a va qu e d ep ois qu e n os m u d á s s em os
p a r a o ca s a r ã o, is t o a ju d a r ia a d im in u ir a t en s ã o qu e
Glór ia s en t ia . Nã o ob s t a n t e, a n eces s id a d e d e viver n a
m es m a ca s a com qu a r en t a vicia d os em p s icot r óp icos
não propiciava uma vida de calma e paz.
A t en s ã o con t in u ou . Glór ia e eu t ín h a m os b em
p ou cos m om en t os a s ós , p ois eu p a s s a va t od a s a s h or a s
d is p on íveis com os vicia d os . No ou t on o d e 1 9 6 2 , t ive d e
fa zer u m a via gem d e em er gên cia a Por t o Rico. Ma m ã e
en via r a u m ca b ogr a m a a Fr a n k . Pa p a i m or r er a . Fr a n k,
Gen e e eu voa m os p a r a Por t o Rico com n os s a s es p os a s ,
on d e eu d ir igi u m cu lt o, p or oca s iã o d o s ep u lt a m en t o d o
meu pai. Eu retornava como pastor evangélico, e embora
papai jamais tivesse aceitado abertamente a Cristo como
filho de Deus, realizei aquela cer im ôn ia com a cer t eza d e
qu e h ou ver a u m a t r a n s for m a çã o n a s u a vid a , e qu e
Deu s , n a s u a m is er icór d ia , s er ia ca p a z d e ju lgá -lo d e
a cor d o com o s eu cor a çã o. O “Grande” es t a va m or t o —
mas as recordações de um pai que eu aprendera a amar,
continuaram vivendo no meu coração.
Alicia An n n a s ceu em ja n eir o d e 1 9 6 3 . Aju d ou a
p r een ch er u m va zio n a vid a s olit á r ia d e Glór ia , vis t o qu e
a gor a ela p os s u ía a lgu ém com qu em r ep a r t ir s eu a m or ,
d u r a n t e os lon gos d ia s qu e p a s s a va s ozin h a . E u a n s ia va
p or fica r a lgu m a s h or a s com ela s , m a s o d es ejo
d om in a n t e d e m in is t r a r a os fa r r a p os h u m a n os vicia d os
em en t or p ecen t es , a fa s t a va -m e d o la r d es d e o a lvor ecer
a t é a m eia -n oit e. Recom en d ei-lh e qu e n ã o d eixa s s e
n in gu ém p ega r o b eb ê, p ois em b or a eu a m a s -s e os
vicia d os , s a b ia qu e su as m en t es s ever a m en t e
p r eju d ica d a s p ela s d r oga s er a m ca p a zes d e qu a lqu er
coisa.
Ma s n u n ca fiqu ei s a b en d o qu a n t a s n oit es Glór ia
ficou ch or a n d o s ozin h a a t é d or m ir , n a s olid ã o d e n os so
a p a r t a m en t o. E la for a , s em d ú vid a , a es colh a cer t a d e
Deu s p a r a m im . Nen h u m a ou t r a m u lh er t er ia p odido
agüentar uma vida daquelas.

Capítulo 15

P AS S E I O AO I N F E R N O

EU PASSARA DOIS DIAS FORA da cidade, quando


volt ei, Glór ia fa lou -m e d e Ma r ia . Tin h a vin t e e oit o a n os .
For a r ecolh id a d a r u a m eio con gela d a , com s in tomas
a gu d os d e p r iva çã o d e h er oín a , e n o lim ia r d a m or t e.
Glór ia p ed iu -m e qu e p en s a s s e es p ecia lm en t e n ela , a o
pregar naquela noite, na pequena capela.
Dep ois d o cu lt o, Glór ia levou Ma r ia a o m eu es -
cr it ór io. E la ga gu eja va o t em p o t od o, s ofr en d o a in d a a
p r iva çã o d a d r oga . “Esta n oit e”, d is s e ela , “t ive a
es t r a n h a s en s a çã o d e qu e d es eja va lib er t a r -m e d es t a
vid a in ú t il. E n qu a n t o você p r ega va , t ive u m es t r a nho
s en t im en t o d e qu e r ea lm en t e d es eja va m or r er p a r a es t a
vid a m is er á vel. Nã o ob s t a n t e, p ela p r im eir a vez n a vid a ,
eu quero viver. Não consigo entender isso.”
Expliquei-lh e qu e ela es t a va exp er im en t a n d o o
qu e a Bíb lia ch a m a “arrependimento”. “Ma r ia , você n ã o
p od e r eceb er o a m or d e Deu s , en qu a n t o n ã o es t iver
d is p os t a a m or r er p a r a você m es m a . Diga -m e, qu er
m or r er p a r a a s u a velh a vid a ? Qu er qu e a velh a vid a d e
d r oga s e p r os t it u içã o s eja con d en a d a à m or t e, s ep u lt a d a
e esquecida para sempre?”
“S im , s im , s im ”, s olu çou ela . “E s t ou d is p os t a a
fazer qualquer coisa para escapar.”
“Está disposta a morrer para o “eu”?” perguntei.
“Sim”, r es p on d eu ela , r ep r im in d o a s lá gr im a s , “até
isso.”
“E n t ã o d eixe-m e fa la r -lh e a r es p eit o d e u m a m or
t ã o m a r a vilh os o, t ã o lin d o, t ã o es p lên d id o qu e p od e
m u d a r a t é m es m o u m a p es s oa com o você t or n a n d o-a
pura e santa. Deixe-me falar-lhe de Jesus.”
Du r a n t e cer ca d e d ez m in u t os , fa lei-lh e a r es p eit o
d o p er feit o a m or d e Deu s , qu e foi d er r a m a d o s ob r e n ós
em Jesus Cristo.
E la es con d eu o r os t o n a s m ã os e com eçou a
ch or a r . Ap r oxim ei-m e d ela e coloqu ei a m ã o n o s eu
ombro. “Ma r ia , va m os fica r d e joelh os e or a r ...” An t es
qu e eu t er m in a s s e d e fa la r , Ma r ia ca ír a d e joelh os n o
a s s oa lh o. S en t i qu e a r ep r es a s e r eb en t a r a . Ma r ia
nascera de novo, para uma nova vida em Jesus Cristo.
Um m ês d ep ois , ela en t r ou em m eu es cr it ór io. A
n eces s id a d e qu e s en t ia d a d r oga es t a va s e t or n a n do
in s u p or t á vel, e ela qu er ia d eixa r o Cen t r o. J oh n n y, s eu
n a m or a d o, já s e r en d er a à p r es s ã o d a d r oga ,
a b a n d on a n d o o Cen t r o a lgu n s d ia s a n t es , n a s ca la d a s
da noite.
Levantei-m e e fech ei a p or t a . “Maria”, d is s e eu ,
“n a d a em m in h a vid a é t ã o im p or t a n t e com o o seu
fu t u r o. Fa lem os a r es p eit o d o qu e a con t eceu em s u a
vida.”
E la con cor d ou . Rem on t a m os à ép oca em qu e Ma -
r ia t in h a d ezen ove a n os , e t ir a r a o d ip lom a d o gin á sio.
Deixei-a fa la r . “Foi J oh n n y qu em m e en s in ou a fu m a r
m a con h a . Min h a s a m iga s h a via m -m e con t a d o sua
exp er iên cia com a er va . Tin h a m d it o qu e n ã o h a via
p r ob lem a s , con t a n t o qu e n ã o s e la n ça s s e m ã o d e cois a
m a is for t e. J oh n n y p a r ecia t er s em p r e u m b om
s u p r im en t o d e “pacaus”, e eu a ch a va t u d o m u it o d i-
vertido.”
Ma r ia p a r ou , com o s e lem b r a s s e d a qu eles p r imei-
r os d ia s , qu a n d o com eça r a s u a d es cid a a o in fer n o, e
p en s ei com o s u a a t it u d e er a t íp ica d a s d ezen a s d e
viciados que estavam se apresentando no Centro.
Noven t a p or cen t o d eles t in h a m com eça d o com
macon h a e d ep ois t in h a m id o a lém , vicia n d o-s e em n a r -
cóticos . Per ceb i o qu e vin h a a s egu ir , m a s s en t i qu e ela
p r ecis a va d es a b a fa r . “Fa le, Ma r ia , qu a l er a o efeit o?” E la
r ela xou o cor p o n a ca d eir a , e com eçou a con t a r -m e a
história, com os olhos semi-cerrados.
“Eu sentia que os problemas, literalmente, voavam
para lon ge d e m im ”, r es p on d eu ela . “Cer t a vez, s en t i qu e
eu m es m a es t a va flu t u a n d o qu ilôm et r os e qu ilômetros
a cim a d a t er r a . E n t ã o com ecei a p a r t ir -m e em p ed a ços .
Meu s d ed os s olt a r a m -s e d a s m ã os e voa r a m p a r a lon ge,
n o es p a ço. As m ã os s a ír a m d os p u n h os . Os b r a ços e
p er n a s d eixa r a m m eu cor p o. Pa r t i-m e em m ilh ões d e
pedaços que voaram, levados por uma brisa suave.”
E la p a r ou d e n ovo, r elem b r a n d o. “Ma s a m a conha
n ã o er a s u ficien t e. O qu e ela fa zia er a a p en a s a gu ça r em
m im u m d es ejo d e a lgo m a is for t e. E u es t a va
mentalmente “fisgada”.
“Foi Johnny quem me deu a primeira “picada”. Ele
vin h a fa la n d o d is s o h á s em a n a s . Cer t a t a r d e, d ep ois d e
t er ch or a d o o d ia in t eir o, p a r ecia qu e t u d o ia m a l.
J oh n n y ch egou en t ã o com a a gu lh a e a colh er . E u s a b ia
o que ele ia fazer, mas ele parecia tão certo de que aquilo
m e a ju d a r ia , qu e d eixei-o p r os s egu ir . Na qu ela ép oca eu
n a d a s a b ia a r es p eit o d o vício d e n a r cóticos , m a s ele m e
ga r a n t iu qu e t u d o ir ia s a ir b em . Am a r r ou u m cin t o em
t or n o d o m eu b r a ço, b em a p er t a d o, p ou co a cim a d o
cot ovelo, a t é qu e a veia s a lt ou com o u m gr a n d e ca r oço,
s ob a m in h a p ele. E s va ziou n a colh er o con t eú d o d e u m
en velop e, u m p ó b r a n co e s em elh a n t e a a çú ca r .
Ad icion ou á gu a com u m con t a -got a s , e em s egu id a
a cen d eu u m fós for o s ob a colh er , a t é o líqu id o fer ver .
Ou t r a vez, com o con t a -got a s , s u gou a h er oín a a gor a
d is s olvid a . Dep ois , com p er ícia , fu r ou m in h a veia com a
p on t a d a a gu lh a h ip od ér m ica . E n t ã o, cu id a d os a m en t e,
apert ou o con t a -got a s , fa zen d o got eja r o p ot en t e líqu id o
n a p a r t e m a is la r ga d a a gu lh a h ip od ér m ica . Deixa n d o o
conta-got a s d e la d o, m oveu a a gu lh a p a r a b a ixo e p a r a
cim a , em m eu b r a ço, a t é o líqu id o d es a p a r ecer n a veia .
Nã o s en t i n a d a qu a n d o ele t ir ou a a gu lh a . Nã o s a b ia
en t ã o, m a s a ca b a r a d e m e t or n a r u m a vicia d a qu e in jet a
n a r cót ico d ir et a m en t e n a veia , s en d o es t a a for m a m a is
terrível do vício.
“Johnny, não estou boa”, disse eu.
“Na d a d is s o, você es t á b em , ga r ot a ”, r es p on d eu .
“Des ca n s e e logo es t a r á voa n d o. Pr om et i, e n u n ca d eixo
de cumprir minhas promessas, não é mesmo?”
“Ma s eu n ã o o ou via m a is . Com ecei a t er â n s ia s , e
a n t es qu e p u d es s e m exer -m e, vom it ei n o a s s oa lh o. Ca í
a t r a ves s a d a n a ca m a , e com ecei a t r em er e a s u a r .
J oh n n y s en t ou -s e a o m eu la d o e s egu r ou m in h a m ã o.
Logo r ela xei os m ú s cu los , e u m a s en s a çã o qu en t e, d e
flu id ez, a t r a ves s ou m eu cor p o. Tin h a a im p r es s ã o d e
que me elevava em direção ao forro; acima de mim podia
ver a fa ce s or r id en t e d e J oh n n y. E le cu r vou -s e s ob r e
mim e murmurou: “Como é que está indo, boneca ?”
“Delicioso”, m u r m u r ei. “Pu xa , es t á fica n d o b om .”
Eu começara a minha incursão no inferno.
“S ó r eceb i ou t r a p ica d a u m a s em a n a m a is t a r d e.
Des t a vez, qu a n d o J oh n n y fez a s u ges t ã o, con cor d ei
prontamente. A dose seguinte veio após três dias. Depois
d is s o, J oh n n y n ã o p r ecis a va m a is s u ger ir , eu é qu e
p ed ia . Nã o o s a b ia en t ã o, m a s já es t a va vicia d a . ..
“fisgada”.
“Na s em a n a s egu in t e, qu a n d o J oh n n y ch egou em
ca s a , eu es t a va com eça n d o a t r em er . Ped i-lh e u m a
“picada”.
“E s cu t e, b on eca , eu gos t o d e você e tu d o o m a is ,
mas esta droga custa dinheiro, você sabe.”
“E u s ei d is s o. J oh n n y, m a s p r ecis o d e u m a “pi-
cada .”
“Johnny sorriu: “Não tem, menina. Puxa, você está
começando a me custar caro.”
“Por fa vor , J oh n n y”, in s is t i com ele, “n ã o b r in que
comigo. Não percebe que eu preciso de uma “picada ?”
“J oh n n y d ir igiu -s e p a r a a p or t a . “Hoje n ã o. E s -
queça. Eu não tenho tempo nem dinheiro.”
“Johnny”, eu es t a va gr it a n d o. “Nã o m e a b a n d on e.
Pelo a m or d e Deu s , n ã o s a ia !” Ma s ele s e for a , e ou vi a
chave girar na fechadura.
“Ten t ei con t er -m e, m a s n a d a p u d e fa zer . Ch egu ei
à janela, e vi Johnny na esquina, conversando com duas
ga r ot a s . E u s a b ia qu em er a m . Tr a b a lh a va m p a ra
J oh n n y. E le s e r efer ia a ela s com o p a r t e d o s eu
“estábulo”. E r a m p r os t it u t a s qu e com p r a va m a d r oga d e
qu e p r ecis a va m com o d in h eir o qu e ga n h a va m n a
p r ofis s ã o. J oh n n y for n ecia a “mercadoria”, e ela s
p a s s a va m a d r oga a os fr egu es es , m ed ia n t e u m a co-
missão.
“Fiqu ei olh a n d o p ela ja n ela , e vi qu a n d o ele p ôs a
m ã o n o b ols o d o p a let ó e p a s s ou d is fa r ça d a m en t e, p a r a
u m a d a s ga r ot a s , u m p equ en o en velop e b r a n co. E u
s a b ia qu e er a a d r oga . Ao ver J oh n n y d es fa zer -s e d a
p r ecios a h er oín a , n ã o p u d e a gü en t a r . Por qu e ele a d a va
p a r a ela , e n ã o m e d eixa va t om a r u m a “picada”? Deu s ,
como eu precisava de uma!
“De r ep en t e, ou vi m eu s p r óp r ios gr it os : “Johnny!
Johnny!” eu gr it a va d a ja n ela , com t od a s a s for ças d os
p u lm ões . E le olh ou p a r a cim a , e volt ou p a r a o
a p a r t a m en t o. Qu a n d o en t r ou , eu es t a va a t r a ves s a d a n a
ca m a , s olu ça n d o e t r em en d o. Ha via p er d id o t od o o
autocontrole.
“J oh n n y fech ou a p or t a . S en t ei n a ca m a e t en t ei
fa la r , m a s a n t es qu e p u d es s e d izer qu a lqu er cois a , ele
avançou para mim e bateu-me na boca com as costas da
mão. “Qu e d ia b o es t á qu er en d o?” gr it ou ele. “Qu er qu e
eu seja preso, ou o quê ?”
“J oh n n y, p or fa vor , a ju d e-m e. Pr ecis o d e u m a “pi-
cada”. Vi você d a r a d r oga p a r a a qu ela s ga r ot a s . Por qu e
n ã o d á p a r a m im ? Por fa vor !” E u ch ega r a a u m es t a d o
d e com p let o d es es p er o. E s t a va t r em en d o e s olu ça n d o a o
m es m o t em p o. S en t ia o gos t o d o s a n gu e qu e es cor r ia
p elo ca n t o d a b oca , m a s n ã o m e im p or t a va . Tu d o o qu e
eu qu er ia er a a a gu lh a . J oh n n y d eu u m a r is a d a .
“E s cu t e, ga r ot a , você é d ifer en t e d a qu ela s ca d ela s qu e
es t ã o lá n a r u a . Você t em cla s s e. Ma s es t a d r oga n ã o s e
con s egu e d e gr a ça . Cu s t a , e m u it o. Aqu ela s ga r ot a s lá
em b a ixo t r a b a lh a m p a r a con s egu ir a d ela s . O qu e é qu e
você está fazendo para conseguir a sua, hein ?”
“E u vou tr a b a lh a r , J oh n n y. Fa r ei qu a lqu er cois a .
Tudo. Só quero que você me dê aquela agulha.”
“Nã o s ei n ã o”, d is s e J oh n n y. “Você t em cla s s e
demais para trabalhar na rua.”
“J oh n n y, fa r ei qu a lqu er cois a . Fa le o qu e é.” S en ti
o s oa lh o s u b ir a o m eu en con t r o, qu a n d o jogu ei-m e a os
s eu s p és e a b r a cei s eu s joelh os p a r a n ã o ca ir com o
rosto no chão.
“Você qu er d izer qu e es t á d is p os t a a t r a b a lh a r
p a r a m im n a r u a ?” E le p a r ou e d ep ois con t in u ou com
entusiasmo. “Você p od e, m en in a , eu s ei qu e você p ode,
s e qu is er . Ra p a z, você p od e p a s s a r p or cim a d a quelas
fr a n ga s , d e d ez con t r a u m . Os h om en s vã o en xa m ea r a o
s eu r ed or , e en t r e n ós d ois p od em os fa zer m u it o
d in h eir o. Qu e t a l? E u t er ia m u it o d in h eir o e p od er ia
com p r a r p a r a você t od a H (h er oín a ) qu e qu isesse e você
n u n ca m a is p a s s a r ia p or is t o. Qu e t a l? É is s o qu e você
quer?”
“S im , J oh n n y, s im , s im . S ó qu er o qu e você m e d ê
uma “picada.”
“J oh n n y a p r oxim ou -s e d o fogã o, e a cen d eu u m a
b oca . Tir ou a colh er e colocou n ela u m p ou qu in h o d e p ó
b r a n co. Ad icion ou á gu a e s egu r ou -a s ob r e a ch a ma.
E n ch en d o a a gu lh a , a p r oxim ou -s e d e m im , qu e es t a va
a ga ch a d a n o ch ã o. “Pu xa , m en in a , is t o é o com eço d o
céu p a r a n ós d ois . Com você a o m eu la d o, p od em os
a lca n ça r a lu a .” S en t i a a gu lh a p en et r a r n a veia . A
t r em u r a p a r ou qu a s e im ed iatamente — em qu es t ã o d e
s egu n d os . J oh n n y a ju d ou -m e a leva n t a r , e levou -me
p a r a a ca m a , on d e eu ca í em p r ofu n d o s on o. Ma s
J oh n n y es t a va en ga n a d o. Nã o er a o com eço d o céu . E r a
o com eço d e u m p es a d elo h or r ível, qu e h a ver ia d e d u r a r
oito longos anos. Não o céu — mas o inferno.
“O in fer n o é u m a b is m o s em fu n d o, n o qu a l a
gen t e ca i e con t in u a ca in d o, s em n u n ca ch ega r a o
fu n d o. Nã o h á p on t o d e p a r a d a n em in t er r u p çã o n a
qu ed a n o vício d os t óxicos . E s s e, o ca m in h o qu e eu
começava a trilhar.
“J oh n n y n ã o p od er ia u s ar-m e, s e eu n ã o fos s e
vicia d a . Qu a n d o m e t or n ei es cr a va d a s d r oga s , t or n ei-
m e t a m b ém es cr a va d ele. Tin h a d e fa zer o qu e ele
qu is es s e... e ele qu er ia qu e eu m e p r os t it u ís s e p a r a d a r -
lh e d in h eir o. E le m e for n ecia d r oga , m a s eu via qu e a
situação não era exatamente o céu que ele prometera.
“Descobri logo que Johnny tinha outra mulher. Eu
s a b ia qu e ele n ã o qu er ia ca s a r com igo, m a s n u n ca
im a gin a r a qu e es t ives s e s u s t en t a n d o ou t r a . S ou b e d is t o
de maneira crua.
“O movimento fora pequeno na noite anterior, e eu
havia leva n t a d o e d es cid o à r u a , n a qu ela t a r d e, p a ra
fa zer a lgu m a s com p r a s . Gos t a va d e s a ir e es qu ecer-me
d o qu e eu er a , im a gin a n d o s er igu a l à s ou t r a s p es s oa s .
E s t a va n a es qu in a d a s r u a s Hick s e At la n t ic, es p er a n d o
o s in a l a b r ir , qu a n d o s en t i a lgu ém a ga r r ar-m e o om b r o,
puxando-m e com for ça , d e for m a qu e m e fez d a r m eia -
volta. “Você é Maria, não é?” Era uma mulher morena de
lon gos ca b elos n egr os qu e s e es p a lh a va m p elos om b r os .
S eu s olh os d es p ed ia m ch is p a s d e fogo. An t es qu e eu
p u d es s e r es p on d er , ela d is s e: “S im , é você. J á t e
con h eço. É você qu e a n d a a t r á s d o m eu h om em . Vou
ensiná-la, cadela imunda.”
“Pr ocu r ei a fa s t a r -m e, m a s ela d eu -m e u m t a p a n o
r os t o. O s in a l s e a b r ir a , e o p ovo p a s s a va a p r es s a d o a o
n os s o r ed or , m a s eu n ã o es t a va p a r a s er em p u r r a d a p or
n in gu ém , d a qu ela for m a . E s t en d i a m ã o, p u xei-a p elo
cabelo, e empurrei-a para trás com a outra mão.
“E la com eçou a gr ita r com o u m a lou ca . “Cadela
s u ja . Dor m in d o com o m eu h om em . Vou m a t a r você.”
E s t a va com o lou ca . Ten t ou a cer t a r -m e com a b ols a , m a s
eu m e a b a ixei. E m p u r r ei-a com o cor p o, e ela ca iu d e
cos t a s , con t r a o gr a d il, n a en t r a d a d a es t a çã o d o m et r ô.
Ou vi qu a n d o r es p ir ou fu n d o n o m om en t o em qu e b a t eu
a espinha no duro cano de ferro.
“Pegu ei s u a ca b eça e em p u r r ei-a p a r a t r á s , con t r a
o ca n o, em d ir eçã o a os d egr a u s n egr os qu e leva va m à
es t a çã o d o m et r ô. E u es t a va t en t a n d o en t er r a r a s u n h a s
n os s eu s olh os , on d e t in h a cer t eza d e qu e ir ia fer i-la . De
r ep en t e, ela en t er r ou os d en tes n a m in h a m ã o. S en t i a
ca r n e r a s ga r -s e, qu a n d o a r r a n qu ei a m ã o d e s u a b oca ,
gritando de dor.
“Qu a n d o m e a fa s t ei, a lgu ém m e a ga r r ou e a m u l-
t id ã o m e s ep a r ou d ela . O h om em qu e m e a ga r r a r a fez-
m e d a r m eia volt a e m e a t ir ou n a r u a , on d e t r op ecei e
ca í. A m u lt id ã o a in d a es t a va a glom er a d a em t or n o d a
ou t r a m u lh er . At r a ves s ei a r u a d ep r es s a , e con tinuei
correndo pela calçada, do outro lado.
“Nã o olh ei p a r a t r á s , m a s cor r i p a r a m eu a p a r t a -
mento. Ali lavei a mão e pedi à vizinha para me fazer um
cu r a t ivo. Na qu ela n oit e volt ei p a r a a r u a ... Nu n ca m a is
vi aquela mulher.
“Eu não sentia mais nenhuma obrigação para com
J oh n n y. Des cob r i qu e p od ia con s egu ir “picadas” com
m u it os ou t r os h om en s , ca d a u m d os qu a is fica ria
con t en t e s e eu t r a b a lh a s s e p a r a ele. Is t o t or n ou -s e u m
lon go p es a d elo. Pa s s ei a viver com u m h om em a p ós
ou t r o. Tod os er a m vicia d os em en t or p ecen t es . E u ven d ia
meu corpo; eles roubavam.
“Com ecei a t r a b a lh a r em s ocied a d e com a lgu m a s
d a s ou t r a s m u lh er es . Nós a lu gá va m os u m qu a r t o p a r a a
n oit e. S a ía m os p a r a a r u a e es p er á va m os . Algu n s
h om en s er a m fr egu es es r egu la r es , m a s n a m a ior p a r te
er a m in t eir a m en t e es t r a n h os . Negr os , it a lia n os ,
or ien t a is , p or t o-r iqu en h os , b r a n cos ... o d in h eir o d eles
tinha uma só cor.
“E r a o in fer n o: qu a n d o con s egu ia d or m ir d u r a n te
o d ia , a cor d a va gr it a n d o, a t er r or iza d a com s on h os
t er r íveis . E s t a va a p r is ion a d a em m eu p r óp r io cor p o, e
er a a m in h a p r óp r ia ca r cer eir a . Nã o h a via fu ga d a quele
temor, daquela imundície, e do horror daquele pecado.
“Os h om en s d a s r u a s n ã o er a m os ú n icos qu e m e
d a va m p r ob lem a s . E u t a m b ém es t a va em con s t a n t e
dificuldades com a polícia. Fui presa onze vezes, durante
os oit o a n os d o m eu vício. A s en t en ça m a is com p r id a foi
d e s eis m es es . Fu i p r es a a p r op ós it o d e t u d o: r ou b o em
loja s , vício d e en t or p ecen t es , fu r t o d e p equ en a s
quantias, vagabundagem, e também, prostituição.
“E u od ia va ca d eia . Da p r im eir a vez, ch or ei m u it o.
Prometi a mim mesma que nunca mais faria algo que me
leva s s e a s er p r es a d e n ovo. Ma s qu a t r o m es es d ep ois ,
estava de volta. Voltei dez vezes.
“Os p olicia is es t a va m con s t a n t em en t e m e a s s ed i-
a n d o. Um gu a r d a vin h a d e d ois em d ois d ia s , qu a n d o eu
es t a va n a r u a , p r ocu r a n d o fa zer com qu e m e en tregasse
a ele. Mas eu sabia que não lucraria nem um tostão com
aquilo, por isso nunca cedi.
“Ma s a h er oín a es t a va m e d es t r u in d o. Lem b r o-me
d a p r im eir a vez em qu e t om ei u m a d os e exa ger a d a . E u
a in d a es t a va t r a b a lh a n d o, e volt a r a p a r a a ca s a d e
m in h a m ã e. Ab a n d on a r a J oh n n y. Ma m ã e es tava
t r a b a lh a n d o em u m a fá b r ica , e eu em u m es cr it ór io. E u
d is s e a m a m ã e qu e p r ecis a va d e a lgu m a s r ou p a s n ova s
p a r a t r a b a lh a r , e im p lor ei t a n t o qu e levei a a fa zer u m
empréstimo no banco.
“Ch egu ei ced o d o s er viço, n a qu ela t a r d e, e t ir ei o
d in h eir o d a es cr iva n in h a . Des ci p a r a o Ha r lem , on d e
m or a va o t r a fica n t e, com p r ei a h er oín a e coloqu ei-a
d en t r o d o s ou t ien . An d ei m a is u n s d ois qu a r t eir ões , e
ch egu ei a u m p or ã o on d e vivia m a lgu n s vicia d os , m eu s
con h ecid os . E u es t a va d es es p er a d a , t r êm u la . E s quentei
a d r oga em u m a t a m p in h a d e ga r r a fa , en ch i a a gu lh a , e
mergulhei-a n a veia . Per ceb i logo qu e a lgu m a cois a
es t a va er r a d a . Fiqu ei t on t a e d es m a iei. Pos s o lem b r a r -
m e d e qu e a lgu ém m e t ocou , t en t a n d o fa zer -m e fica r d e
p é. Pen s o qu e eles fica r a m com m ed o qu a n d o n ã o r ea gi.
Algu ém r a s gou m eu s ou t ien , r ou b ou o r es t o d e H, e
d ep ois jogou -m e p a r a for a d o p or ã o, d eixa n d o-m e ca íd a
na calçada.
“Qu a n d o a cor d ei, es t a va n o Hos p it a l Bellevu e. A
p olícia m e en con t r a r a , leva n d o-m e p a r a o h os p it a l. E u
for a r ou b a d a . Tod o o d in h eir o d es a p a r ecer a . Tr ês
gu a r d a s r od ea va m m in h a ca m a , t od os fa zen d o p er -
gu n t a s a o m es m o t em p o. Dis s e-lh es qu e es t iver a b e-
b en d o, e qu e a lgu ém p u s er a a lgo n a m in h a b eb id a . Ma s
eles s a b ia m . Fizer a m o m éd ico m a r ca r “DE” n a m in h a
fich a , in d ica n d o “d os e exa ger a d a ”. Foi a p r im eir a d e
uma série de três.
“A última quase me matou.
“E s t iver a b eb en d o n o qu a r t o. A com b in a çã o d e
vin h o b a r a t o e d e d os e exa ger a d a d e h er oín a , fez-me
desmaiar.
“Fiqu ei in con s cien t e n a ca m a , e o ciga r r o ca iu em
m eu ca b elo. Pos s o lem b r a r a s en s a çã o es t r a n h a qu e
t ive. S on h ei qu e a m ã o d e Deu s es t en d eu -s e e s a cudiu-
m e ... e con t in u ou a s a cu d ir -m e... Lem b r o-m e qu e d is s e:
“Te m a n ca , Deu s , m e d eixa s ozin h a . Pá r a d e m e
sacudir.” Ma s a s s a cu d id ela s n ã o p a r a r a m . E eu
acordei.
“E u s a b ia qu e a lgu m a cois a es t a va er r a d a , p or ém
n ã o p er ceb i n a d a . S en t i o od or d e a lgo p od r e — u m
ch eir o d e ca r n e qu eim a d a . Ten t ei leva n t a r -m e, m a s ca í
n o s oa lh o. Ra s t eja n d o a t é o es p elh o, con s egu i levantar-
m e e olh ei. O r os t o qu e vi n ã o er a o m eu . E u es t a va
careca. Todo o cabelo fora queimado. Meu rosto era uma
m a s s a d e b olh a s e ca r n e cr es t a d a . Min h a s or elh a s
t in h a m s id o qu a s e com p let a m en t e qu eim a d a s , e d ela s
s u b ia u m a es p ir a l d e fu m a ça , com o qu e d e u m a t or r a d a
qu eim a d a . As d u a s m ã os es t a va m qu eim a d a s e
em p ola d a s , p or t er t en t a d o a p a ga r o fogo com ela s ,
inconscientemente.
“Com ecei a gr it a r . Um h om em qu e m or a va d o
ou t r o la d o d o cor r ed or , ou viu m eu s gr it os h is t ér icos , e
s a b en d o qu e eu er a vicia d a em d r oga s , veio e com eçou a
esmurrar a porta.
“Ca m b a leei a t é a p or t a e a ga r r ei o t r in co, p r o-
cu r a n d o a b r i-la , m a s a ca r n e d a s p a lm a s d e m in h a s
mãos grudou no metal, quando tentei virar a maça-neta.
A ca r n e d e m in h a s m ã os d es p r en d eu -s e, e n ã o p u d e
abrir.
“Nã o s ei com o, ele con s egu iu a b r ir a p or t a p elo
la d o d e for a . Qu er ia leva r -m e p a r a o h os p it a l, m a s eu
r ecu s ei. Ca í s em for ça s n a ca m a , e p ed i qu e m e leva s s e
a o a p a r t a m en t o d e m in h a a m iga , In ez. E le m e levou , e
eu passei a noite lá.
“As qu eim a d u r a s , p or ém , er a m d e s egu n d o e
t er ceir o gr a u , e a d or t or n ou -s e in s u p or t á vel. E u t in h a
m ed o d o h os p it a l. J á es t iver a lá a n t er ior m en t e. Com o
estava “fisgada”, s a b ia qu e s e fos s e p a r a o h os p it a l, t er ia
d e d eixa r o vício, “n a m a r r a ”. E u a ch a va qu e n ã o
agüentaria, e estava com medo de morrer.
“Ma s , n o d ia s egu in t e, In ez for çou -m e a ir p a r a o
h os p it a l. E la n ã o t eve d e in s is t ir m u it o. E u s a b ia qu e
m or r er ia , s e n ã o fos s e. Piqu ei lá u m m ês e m eio, a t é a s
queimaduras sararem.
“Qu a n d o s a í d o h os p it a l, volt ei p a r a a s r u a s .
Tomei a m in h a p r im eir a “picada” qu a r en t a e cin co
m in u t os d ep ois d e t er s a íd o d o h os p it a l e n a qu ela n oit e
eu es t a va d e volt a a o t r ot t oir . S ó qu e a gor a t u d o es t a va
m a is d ifícil, d evid o à s cica t r izes e qu eimaduras.
Ninguém me queria. Minhas roupas estavam cobertas de
qu eim a d u r a s d e ciga r r o e m a n ch a s d e ca fé. Meu cor p o
vivia s u jo e ch eir a va m a l. Algu m a s vezes eu a n d a va p ela
rua vomitando. O vício estava me pondo louca.
“Um r a p a z es p a n h ol ch a m a d o Ren é cos t u m a va
con ver s a r com igo n a s r u a s . E le for a t r a fica n te, m a s
est eve n o Cen t r o Des a fio J ovem , e a b a n d on a r a o vício.
Tor n a r a s e cr en t e, e d u r a n t e os ú lt im os m es es vin h a
in s is t in d o com igo p a r a qu e eu vies s e a qu i e t a m b ém
abandonasse a droga.
“Cer t a n oit e fr ia d e m a r ço, eu es t a va p r ecis a n d o
d es es p er a d a m en t e d e u m a “picada”. Des ci p ela r u a
ca m b a lea n d o, vir ei a es qu in a p r óxim a a o n .° 4 1 6 d a Av.
Clinton, e caí sem forças na escadaria.
“Má r io es t a va n a p or t a r ia n a qu ela n oit e. E le
ch a m ou Glór ia . E la m e leva n t ou s u a vem en t e, e eu m e
a p oiei n ela . E n t r a m os p ela p or t a la t er a l, a o la d o d a
mesa e passamos para a capela.
“Ajoelhe-s e, Ma r ia ”, d is s e ela , “ajoelhe-s e e or e.”
E u m e s en t ia en t or p ecid a , e ju lgu ei es t a r m or r en d o.
Pen s ei: s e é n eces s á r io is t o p a r a p er m a n ecer viva , vou
fazê-lo. Ajoelh ei-m e n o ch ã o, a t r á s d e u m d os b a n cos ,
m a s a n t es qu e p u d es s e cu r va r a ca b eça , com ecei a
vom it a r . Vom it ei em m in h a b lu s a e n o ch ã o. Com ecei a
ch or a r e a t r em er , e ca í a m on t oa d a n o ch ã o, com a s
duas mãos à minha frente, sobre meu próprio vômito.
“Leva n t ei os olh os . As ou t r a s m oça s qu e es t a vam
n a ca p ela m e r od ea r a m . Recon h eci a lgu m a s qu e eu
fica r a con h ecen d o n a ca d eia , m a s es t a va m d ifer en t es .
Pa r ecia m a n jos flu t u a n d o n o a r en t r e a s ca d eir a s e
m es a s , d es cen d o va ga r os a m en t e s ob r e m im . E s t a va m
s or r in d o. Ha via u m b r ilh o em s u a s fa ces . S eu s olh os
refu lgia m , n ã o d evid o à m a con h a ou H, m a s d evid o a
uma luz interior que resplandecia sobre mim.
“Sentia-m e em p ou co t on t a , e p a r ecia qu e m in h a
cabeça girava como um pião.
“Glór ia a li es t a va , a o m eu la d o; p er ceb i qu e ela
es t a va a joelh a d a n o m eu vôm it o. Vir ei a ca b eça e t en t ei
chorar, mas só consegui vomitar.
“As m oça s r eu n ir a m -s e a o m eu r ed or , e ou vi-as
or a r . Glór ia leva n t ou -s e e s en t i s u a s m ã os s ob r e m in h a
ca b eça . Um p od er elet r iza n t e, es p ir it u a l, a t r a ves s ou -me
o cor p o, qu a s e er gu en d o-m e d o s olo, flu in d o d e s u a s
mãos delicadas para o meu corpo queimado.
“Ou vi m ú s ica . Algu m a s m oça s es t a va m ca n t a n do.
Estremeci e vomitei de novo.
“Por fa vor , s er á qu e p os s o ir p a r a a ca m a ?” ga -
guejei.
“S en t i m ã os for t es s ob m eu s b r a ços , qu a n d o u m a
d a s m oça s m e leva n t ou e qu a s e m e ca r r egou es ca d a
a cim a . Ou vi o r u íd o d e á gu a cor r en t e, e s en t i qu e
es t a va m t ir a n d o m in h a r ou p a . E u es t a va d oen t e d em a is
p a r a m e im p or t a r . Pen s ei qu e ia m m e a foga r . Pen s ei
qu e t a lvez fos s em u m gr u p o d e lu n á t icos e p r et en d ia m
matar-me. Mas eu não estava ligando.
“E la s m e coloca r a m ca r in h os a m en t e s ob o ch u -
veir o, e m e la va r a m . Foi a p r im eir a vez em vá r ios m es es
qu e t om ei u m b a n h o in t eir o, e va leu a p en a . Aju d a r a m a
enxugar-m e, ves t ir a m u m a com b in a çã o, e d ep ois ,
levaram-m e p a r a u m a ca m a em u m gr a n d e qu a r t o ch eio
de outras camas.
“Dê-me um cigarro”, pedi a uma das moças.
“Nós n ã o fu m a m os a qu i, Ma r ia . Ma s t om e u m a
b a la . Pr ove. Pen s o qu e a ju d a r á você”, d is s e Glór ia . E la s
s e r eveza r a m , m a s s a gea n d o m in h a s cos t a s . Ca d a vez
qu e eu p ed ia u m ciga r r o, Glór ia p u n h a ou t r a b a la em
minha boca.
“Fica r a m a o m eu la d o d u r a n t e d ois d ia s e d u a s
n oit es . À n oit e, eu a cor d a va t r em en d o e via Glór ia a li, a o
la d o d e m in h a ca m a , len d o a Bíb lia ou or a n d o em voz
alta. Não fiquei sozinha nem um instante.
“Foi n a t er ceir a n oit e qu e Glór ia m e con vid ou :
“Ma r ia , qu er o qu e você d es ça p a r a o cu lt o n a ca p ela.”
E u es t a va fr a ca . Mu it o fr a ca . Ma s d es ci p a r a a ca p ela , e
sentei-me bem atrás.
“Naquela noite você pregou. Foi nessa noite que eu
en t r ei n es t e es cr it ór io, a joelh ei-m e a qu i e a b r i m eu
coração para o Senhor.”
Ma r ia p a r ou d e fa la r . S u a ca b eça cu r va r a -s e p a r a
a fr en t e e t in h a os olh os p r ega d os n a Bíb lia qu e es t a va
sobre a minha escrivaninha.
“Maria”, m u r m u r ei s u a vem en t e, “o S en h or ou viu
seu clamor?”
E la olh ou p a r a m im : “S im , Nick y. Nu n ca d u videi
d is t o. Ma s qu a n d o a n eces s id a d e d a d r oga s e t or n a for t e
d em a is , t en h o von t a d e d e ced er .” Um a lá gr im a cor r eu -
lhe pela face. “Con t in u e or a n d o p or m im . Com a a ju d a
de Deus, vou vencer agora.”

Capítulo 16

C O M C R I S T O N O H A R LE M

DAVI VIAJ AVA A MAIOR p a r t e d o t em p o, r ecr u -


t a n d o ob r eir os p a r a t r a b a lh a r d u r a n t e o ver ã o, e
leva n t a n d o d in h eir o p a r a o Cen t r o. À m ed id a qu e o
t em p o p a s s a va , ele t in h a ca d a vez m en os con t a t o
p es s oa l com os vicia d os , e d es cob r iu qu e es t a va fa zendo
o p a p el d e a d m in is t r a d or — p a p el es s e qu e n ã o qu er ia
assumir, mas que lhe fora imposto pelas circunstâncias.
A m a ior p a r t e d o n os s o t r a b a lh o er a feit o a t r a vés
d os cu lt os a o a r livr e, e d e en con t r os ca s u a is n a r u a .
Qu a s e t od a s a s t a r d es a r m á va m os n os s a p la t a for m a e
n os s o s er viço d e a lt o-fa la n t es em a lgu m b a ir r o p ob r e d a
cidade.
Cer t a t a r d e, Má r io e eu leva m os u m p equ en o
gr u p o em n os s a Kom b i, a t é o cor a çã o d o Ha r lem
E s p a n h ol. Dis t r ib u ía m os folh et os , p r ocu r a n d o r eu nir
u m a m u lt id ã o p a r a u m cu lt o a o a r livr e, m a s es t á va m os
tendo pouco êxito.
Mário me disse: “Vou buscar gente.”
“Hoje n ã o d á ”, r es p on d i. “Nin gu ém es t á in t e-
r es s a d o. Ach o qu e é m elh or d es a r m a r t u d o e ir p a r a
casa.”
“Não”, d is s e Má r io, “n ós va m os con s egu ir gen t e
para ouvir. Você e os outros podem começar a colocar os
alto-falantes nos lugares. Em menos de uma hora vamos
ter o maior culto ao ar livre.”
“Ra p a z, com o é qu e você p en s a qu e va i r ea liza r
u m cu lt o, s em gen t e? Hoje eles n ã o es t ã o m es m o
interessados.”
“Não se preocupe. Deixe que eu resolvo isto”, disse
Mário.
Rin d o t im id a m en t e, ele s a iu cor r en d o r u a a b a ixo e
virou a esquina.
Com eça m os a m on t a r o equ ip a m en t o. E r a uma
ver d a d eir a a ven t u r a d e fé. E u m e s en t ia com o Noé,
con s t r u in d o a a r ca n o a lt o d a m on t a n h a s eca . Ma s
con t in u a m os a t r a b a lh a r , es p er a n d o qu e Deu s p r o-
videnciasse a chuva.
E ele p r ovid en ciou . Qu in ze m in u t os d ep ois h a -
vía m os t er m in a d o, e eu es t a va d e volt a à es qu in a .
d is t r ib u in d o folh et os , qu a n d o vi u m en or m e gr u p o d e
r a p a zes cor r en d o p ela r u a , n a m in h a d ir eçã o. E s t a va m
a git a n d o p or r et es e t a cos d e b eis eb ol, e gr it a va m com
t od a s a s for ça s . Vir ei m e e ia volt a r p a r a a p la t a for m a ,
quando vi novo grupo de rapazes vindo de outra direção,
gr it a n d o e a git a n d o p or retes. “Pr ecis o ca ir for a d a qu i”,
pensei, “esses rapazes vão ter um “quebra-pau.” Mas era
tarde demais! Fui rodeado pela turma que gritava e dava
cotoveladas. Fiquei esperando pela briga.
De r ep en t e, vi Má r io cor r en d o p or u m a t r a ves s a
qu e h a via n o m eio d o qu a r t eir ã o, gr it a n d o a p len os
pulmões: “E i t u r m a , o ch efe d a t er r ível qu a d r ilh a d os
Mau-Ma u s , d e Br ook lin , va i fa la r d en t r o d e qu in ze
m in u t os . Ven h a m ou vi-lo. Ven h a m ou vir o gr a n d e Nick y
Cr u z, o s u jeit o m a is p er igos o d e Br ook lin . Ven h a m
preparados. Ele é um matador, e ainda é perigoso.”
Os r a p a zes d er r a m a va m -s e d os a p a r t a m en t os ,
d es cen d o p ela s es ca d a s d e em er gên cia , e cor r en d o em
m in h a d ir eçã o. E n xa m ea va m a o m eu r ed or , e gr it a va m :
“On d e es t á o Nick y? Qu er o vê-lo. On d e es t á o ch efe d os
Mau-Maus?”
Má r io ch egou , com u m s or r is o qu e ia a t é a s
orelhas. “Você viu ? E u d is s e qu e con s egu ir ia u m a
multidão.”
Olh a m os a o n os s o r ed or . E le h a via r eu n id o u m a
turba de tamanho respeitável. Devia haver uns trezentos
rapazes rodeando-nos, no meio da rua.
Ba la n cei a ca b eça . “S ó es p er o qu e n ã o s eja m os
todos mortos. Puxa, esses rapazes parecem terríveis .”
Má r io a in d a es t a va r in d o, ofega n t e, p or ca u s a d a
corrida. “Va m os , p r ega d or , s u a con gr ega çã o es t á
esperando.”
O s u or es cor r ia -lh e p elo r os t o, m a s ele t r ep ou a t é
a p la t a for m a , a ga r r ou o m icr ofon e e leva n t ou a m ã o,
p ed in d o s ilên cio. Os r a p a zes ou vir a m -n o fa la r , à
s em elh a n ça d e u m ca m elô d e feir a , “enrolando” o
auditório antes de apresentar o show.
“S en h or es e s en h or a s . Hoje é u m gr a n d e d ia . O
chefe da terrível e famosa quadrilha Mau-Mau vai falar a
vocês ... O h om em m a is p er igos o d e Nova Yor k . E le é
t em id o t a n t o p or m oços com o p or velh os . S ó qu e a gor a
n ã o é m a is o ch efe. É ex-ch efe. E s t a t a r d e va i con t a r -
lh es p or qu e n ã o es t á m a is n a ga n g, e p or qu e es t á
a s s ocia d o a J es u s . Ap r es en t o a vocês NICKY CRUZ, o
primeiro e único, ex-chefe dos Mau-Maus.”
E s t a va gr it a n d o qu a n d o t er m in ou . Pu lei p a r a a
plataforma, ficando por trás do microfone. Os garotos na
m u lt id ã o com eça r a m a gr it a r e b a t er p a lm a s . Fiqu ei d e
p é n a p la t a for m a , s or r in d o e a cen a n d o com a m ã o,
en qu a n t o eles a p la u d ia m . Mu it os d eles m e con h ecia m
ou h a via m lid o a m eu r es p eit o n os jor n a is . Cer ca d e
d u zen t os a d u lt os t inham-s e r eu n id o p or t r á s d a
m u lt id ã o d e a d oles cen t es . Dois ca r r os d a p olícia
pararam, um de cada lado do povo.
Leva n t ei os b r a ços . Os gr it os , a s s ob ios e a p la u sos
diminuíram. Em um instante a turba estava silenciosa.
Senti-m e for t em en t e u n gid o p elo E s p ír it o S a n t o,
qu a n d o com ecei a p r ega r . As p a la vr a s s a ír a m livr e-
m en t e, s em d ificu ld a d e. “E u er a o ch efe d os Ma u -Maus.
E s t ou p er ceb en d o qu e vocês já ou vir a m fa la r d e m im .”
Ou t r a vez a m u lt id ã o ir r om p eu em a p la u sos
es p on t â n eos . Leva n t ei os b r a ços , e p ed i s ilên cio. “Quero
contar-lh es p or qu e s ou ex-ch efe d os Ma u -Ma u s . S ou ex-
ch efe p or qu e J es u s t r a n s for m ou m eu cor a çã o! Um d ia ,
em u m a r eu n iã o d e r u a exa t a m en t e igu a l a es t a , ou vi
u m p r ega d or fa la r d e a lgu ém qu e p od ia t r a n s for m a r
minha vid a . E le m e d is s e qu e J es u s m e a m a va . E u n ã o
s a b ia qu em er a J es u s , e s a b ia qu e n in gu ém m e a m a va .
Ma s Da vi Wilk er s on d is s e qu e J es u s m e a m a va . Agor a a
m in h a vid a es t á m u d a d a . E u m e en t r egu ei a Deu s , e ele
m e d eu u m a n ova vid a . E u er a igu a l a vocês : vivia cor-
r en d o p ela s r u a s . Dor m ia n os t elh a d os . Fu i exp u ls o d a
escola por causa de briga. A polícia estava atrás de mim,
e fu i p r es o m u it a s vezes , e m u it a s vezes d or m i n a
ca d eia . E u es t a va com m ed o. Ma s , en t ã o, J es u s
t r a n s for m ou m in h a vid a . E le m e d eu u m a lvo p a r a o
qu a l eu a gor a vivo. E le m e d eu es p er a n ça . E le m e d eu
u m n ovo ob jet ivo n a vid a . E u n ã o fu m o m a is m a con h a ,
n em b r igo, n em m a t o. Nã o fico m a is a cor d a d o d e n oit e,
com m ed o. Nã o t en h o m a is p es a d elos . Agor a a s p es s oa s
con ver s a m com igo qu a n d o eu p a s s o. A p olícia m e
r es p eit a . E s t ou ca s a d o, e t en h o u m a filh in h a . Por ém , o
qu e é m a is im p or t a n t e d e t u d o, s ou feliz e n ã o vivo m a is
fugindo de tudo e de todos.”
A m u lt id ã o es t a va s ilen cios a e a t en t a . Ter m in ei a
m en s a gem e fiz u m a p elo p a r a os qu e qu er ia m a ceit a r a
Cristo.
Vin t e e d ois a t en d er a m a o a p elo, e a joelh a r a m -se
defronte à multidão, enquanto eu orava.
Ter m in ei a or a çã o, e leva n t ei os olh os . Os p oliciais
t in h a m s a íd o d os ca r r os , e es t a va m d e p é, com os
qu ep es n a m ã o, e a s ca b eça s cu r va d a s . Vir ei o r os t o
para o céu. O sol brilhava no Harlem...
O Ha r lem E s p a n h ol t or n ou -s e n os s o lu ga r p r e-
d ilet o p a r a cu lt os a o a r livr e. Pa r ecia qu e a li ér a m os
ca p a zes d e a t r a ir m u lt id ões m a ior es , e a n eces s id a d e d o
eva n gelh o er a m a is a p a r en t e d o qu e em qu a lqu er ou t r o
lu ga r em qu e h a vía m os p r ega d o. E u n ã o m e ca n s a va d e
lem b r a r à n os s a equ ip e qu e “on d e a b u n d ou o p eca d o,
superabundou a graça”.
Glór ia t eve d ificu ld a d es em a ceit a r o Ha r lem
E s p a n h ol. E la n ã o con s egu ia a cos t u m a r -s e com o
ch eir o. Pr ocu r a va n ã o a gir d e for m a a n t ip á t ica , m a s
a lgu m a s d a s feir a s livr es er a m qu a s e d em a is p a r a o s eu
es t ôm a go. At é p a r a m im , er a d ifícil a cos t u mar-m e com
a s m os ca s qu e en xa m ea va m s ob r e a ca r n e, a s fr u t a s e
vegetais.
Além d is to, h a via o ch eir o d os vicia d os . Pa r eciam
d es p r en d er u m m a u ch eir o. E qu a n d o a gr u pados,
p r in cip a lm en t e s ob o ca lor d o ver ã o, er a qu a s e
insuportável ficar perto deles.
Ap r en d em os m u it o d u r a n t e a qu eles p r im eir os
m es es d e p r ega çã o n a s r u a s . Ap r en d em os qu e a s
p es s oa s qu e t in h a m m a is êxit o er a m a s qu e h a via m
s a íd o d a s r u a s , e p od ia m a p r es en t a r u m t es t em u n h o d e
p r im eir a m ã o a r es p eit o d o p od er t r a n s for m a d or d e
J es u s Cr is t o. E u n ã o t in h a ta n t o êxit o, a o p r ega r p a r a
vicia d os em en t or p ecen t es qu a n t o os qu e t in h a m s id o
vicia d os . Des cob r im os qu e es s es er a m n os s os m elh or es
pregadores. S eu s t es t em u n h os , h on es t os e m in u cios os ,
ca u s a va m u m im p a ct o t r em en d o n os ou t r os vicia d os .
Com eça m os a levá -los con os co s em p r e qu e ía m os p r ega r
nas ruas. Contudo, isto também trouxe problemas.
Mu it a s vezes , d u r a n t e os cu lt os d e p r ega çã o n a s
r u a s , os vicia d os qu e s e a glom er a va m p r ocu r a va m
t en t a r e p r ovoca r n os s os a u xilia r es . Acen d ia m u m
“pacau” em fr en t e d eles , e d elib er a d a m en t e s op r a va m a
fu m a ça em s eu s r os t os . Ch egu ei a ver u m h om em t ir a r
u m a a gu lh a e u m p a cot e d e h er oín a , e a git á -los n a ca r a
d e u m d e n os s os ob r eir os qu e s e livr a r a d a s d r oga s ,
dizendo: “Ei, menino, não sente falta disto? Rapaz, isto é
qu e é vid a . Pr ecis a exp erimentar.” A t en t a çã o er a qu a s e
ir r es is t ível, m a s a qu ela s vid a s es t a va m p r ot egid a s
pelo escudo da força de Deus.
Des cob r i qu e Ma r ia , p a r t icu la r m en t e, n ã o t in h a
a ca n h a m en t o d e leva n t a r -s e d ia n t e d e u m gr u p o d os
s eu s a n t igos colega s , p r os t it u t a s e vicia d os , e d a r
t es t em u n h o d a gr a ça d e Deu s . O s eu t es t em u n h o
s im p les levou , vá r ia s vezes , os ou vin t es a t é à s lá grimas,
qu a n d o fa la va d e u m Deu s qu e é u m a m igo ín t im o e
p es s oa l. Um Deu s qu e, n a p es s oa d o s eu filh o J es u s
Cr is t o, p a lm ilh ou a s d u r a s es t r a d a s d a Pa les t in a ,
t oca n d o n os p eca d os d o p ovo e lib er t a n d o-o d eles . A
m a ior p a r t e d a qu ela gen t e ja m a is s ou b er a d a exis t ên cia
d e u m Deu s a s s im . O Deu s d e qu em ou via m fa la r , s e é
que conheciam algum, era um juiz severo que abomina o
p eca d o e fu s t iga a s p es s oa s , coloca n d o-a s n a lin h a ,
com o u m p olicia l. Ou , t a lvez, id en t ifica va m Deu s com a s
igr eja s fr ia s e for m a is qu e t iver a m op or t u n id a d e d e
observar.
Cer t o d ia , u m ex-m em b r o d e qu a d r ilh a , u m jovem
d e cor qu e for a vicia d o em h er oín a , es t a va d a n d o
t es t em u n h o a r es p eit o d a s u a in fâ n cia . Con t ou qu e for a
ob r iga d o a fu gir d e ca s a a os t r eze a n os , p or qu e o
a p a r t a m en t o er a m u it o a p er t a d o. Fa lou d os d iversos
h om en s qu e viver a m com s u a m ã e. Con t ou com o
d or m ir a n os t elh a d os e n o m et r ô. Afir m ou qu e p r ecis a r a
s u r r u p ia r com id a , m en d iga r e r ou b a r . E le n ã o t in h a
ca s a d e es p écie a lgu m a , e u s a va os t elh a d os ou r u ela s
com o la t r in a . E s t a va viven d o com o u m a n im a l selvagem,
na selva das ruas.
E n qu a n t o fa la va , u m a velh a s en h or a , n a ext r e-
m id a d e d a m u lt id ã o, com eçou a ch or a r . S eu ch or o
tornou-s e qu a s e h is t ér ico, e eu r od eei o p ovo p a r a
ch ega r a t é ela . Qu a n d o con s egu iu d om in a r -s e, ela m e
d is s e qu e a qu ele r a p a z p od er ia s er s eu filh o. E la t iver a
cin co filh os qu e h a via m a b a n d on a d o o la r , e vivia m
exa t a m en t e con for m e a d es cr içã o d ele, n a s r u a s d a
cid a d e. O s eu s en t im en t o d e cu lp a er a m a ior d o qu e
p od ia s u p or t a r . Reu n im o-n os a o s eu r ed or , e or a m os a
s eu fa vor . E la levou a ca b eça p a r a t r á s e olh ou p a r a
os céu s , p ed in d o qu e Deu s a p er d oa s s e e p r ot eges s e
s eu s filh os , on d e qu er qu e eles es t ives s em . A p ob r e
m u lh er en con t r ou p a z ju n t o a Deu s n a qu ela t a r d e, m a s
o d a n o ca u s a d o a os filh os já es t a va feit o. E m m ilh a r es
d e ou t r os ca s os , ocor r ia o m es m o. S en t ía m os com o s e
estivés s em os p r ocu r a n d o es va zia r o ocea n o com u m a
colh er d e ch á . Nã o ob s t a n t e, s a b ía m os qu e Deu s n ã o
es p er a va qu e ga n h á s s em os o m u n d o — a p en a s qu e
testificássemos e fôssemos fiéis. E esse era o nosso alvo.
Na qu in t a -feir a , t a r d e d a n oit e, p r ep a r a m os u m
cu lt o a o a r livr e n a es qu in a d e u m a es cola , n o Ha r lem
E s p a n h ol. O ver ã o es t a va qu en t e, e u m a gr a n d e
m u lt id ã o r eu n iu -s e p a r a ou vir os a legr es cor in h os em
es p a n h ol, e a m ú s ica eva n gélica d e r it m o a celer a d o qu e
fluía de nossos alto-falantes.
A m u lt id ã o es t a va in qu iet a e n er vos a . Qu a n d o a
m ú s ica ch egou a u m r it m o m a is a celer a d o, a lgu n s d e
n os s os r a p a zes e m oça s coloca r a m -s e d efr on t e a o
m icr ofon e e com eça r a m a ca n t a r , b a t er p a lm a s , e
m a r ca r o r it m o. A u m la d o, t od a via , eu n ot ei u m a
p er t u r b a çã o. Um gr u p o d e “pequenos” es t a va d a n çando
a o s om d a m ú s ica . E r a m cer ca d e cin co ou s eis
“pequenos”, gin ga n d o em p len a r u a , b a m b olea n d o a s
ca d eir a s e s a p a t ea n d o. Algu m a s p es s oa s t iver a m s u a
a t en çã o d es via d a p a r a eles e com eça r a m a a p la udi-los,
r in d o e b a t en d o p a lm a s com eles , a com p a n h a n d o o
r it m o. Deixei o lu ga r on d e es t a va , e r od eei o p ovo, em
d ir eçã o a o gr u p o. “E i, m en in os , p or qu e vocês es t ã o
dançando aqui? Aqui é território de Jesus!”
Um d eles d is s e: “Aqu ele h om em lá p a gou p a r a n ós
d a n ça r m os . Veja , ele n os d eu d ez cen t a vos .” Ap on t a r a m
p a r a u m m oço m a gr o, d e cer ca d e vin t e e oit o a n os d e
idade, que estava na extremidade da multidão. Dirigi-me
a ele p a r a con ver s a r . E le viu qu e eu m e a p r oxim a va e
começou a saracotear, no ritmo da música.
Pr ocu r ei fa la r com ele, m a s con t in u ou d a n ça n d o,
s a p a t ea n d o, e s a cu d in d o a s ca d eir a s , d izen d o: “Meu
chapa, isso é música pra frente, cha-cha-cha.”
Gir a va em t or n o d e s i m es m o, e b a t ia com a s
m ã os n os qu a d r is . Ca n t a va s a cu d in d o a s ca d eir a s e a
cabeça com o u m lou co: “Bi-b op , ch a -cha-ch a ... d u m -di-
dum-dum... dança, meu chapa, dança.”
Fin a lm en t e con s egu i s u a a t en çã o: “E i, ca r a , qu er o
perguntar-lhe uma coisa.”
E le con t in u ou d a m es m a for m a , d a n ça n d o n o
r it m o d a m ú s ica : “S im , p a izin h o, o qu e é qu e você qu er ?
O qu e é qu e você qu er ?... Bi-b op , d i-dum-d u m ... o qu e é
que você quer?”
E u d is s e: “Você d eu d in h eir o à qu eles ga r ot os p a r a
qu e eles d a n ça s s em e a t r a p a lh a s s em n os s a r eu n iã o?”
Minha paciência estava começando a acabar.
Gir a n d o a in d a , r es p on d eu : “É is s o m es m o, m eu
ch a p a ; você es t á fa la n d o com o ca r a cer t o. S ou o
h om em ... d a -da-di-da...” Da va es t a los com a lín gu a e
s a p a t ea va , leva n t a n d o os p és à s u a fr en t e, en quanto
girava.
Pen s ei qu e ele es t ives s e lou co. “Por qu ê?” gr it ei-
lhe. “O que há de errado com você, afinal?”
“Por qu e n ã o gos t a m os d e vocês . Nã o gos t a m os d e
cr en t es . Nã o. Nã o. Nã o. Nã o gos t a m os d e cr en t es . Da -
da-dum-di-dum.”
Per d i a ca lm a . “Pois b em , s eu ”, d is s e, cer r a n d o os
p u n h os e a va n ça n d o p a r a ele, “va m os con t in u a r es t e
cu lt o, e você va i ca la r a b oca , ou en t ã o eu vou lh e d a r
uma surra, e você vai ficar quieto a força.”
E le viu qu e eu fa la va s ér io, m a s s eu or gu lh o n ã o
lh e p er m it ia a ca b a r com a b r in ca d eir a im ed ia tamente.
Pôs a m ã o n a b oca fin gin d o s u r p r es a , e a r r ega lou os
olhos, fingindo terror. Mas parou de dançar e calou-se.
Volt ei a o m icr ofon e e p r egu ei n a qu ela t a r d e a
r es p eit o d a s m in h a s exp er iên cia s d e a d oles cen t e em
Nova Yor k . Tes t ifiqu ei a r es p eit o d a s u jeir a , d a p ob r eza ,
d a ver gon h a e d o p eca d o qu e exis t ir a m em m in h a vid a .
E m s egu id a , p r egu ei s ob r e a cu lp a d os p a is qu e
p er m it em qu e s eu s filh os cr es ça m em t a l p eca d o.
Roguei-lhes que dessem um bom exemplo para os filhos.
E n qu a n t o eu fa la va , a lgu n s t ir a r a m o ch a p éu .
E s t e é u m d os m elh or es s in a is d e r ever ên cia e r es peito.
Not ei lá gr im a s n os olh os d e m u it a s p es s oa s , e vi a lgu n s
len ços a p a r ecer em . Per ceb i qu e o E s p ír it o e o p od er d e
Cr is t o es t a va m op er a n d o d e m a n eir a es p ecia l, m a s n ã o
p r evi o im p a ct o qu e ele p r od u zir ia a lgu n s m om en t os
depois.
E n qu a n t o p r ega va , n ot ei u m velh o, cla r a m en t e
em b r ia ga d o, ch or a n d o n o m eio d e t od o a qu ele p ovo.
Um a m ocin h a , qu e es t a va n a fr en t e, es con d eu a fa ce
n a s m ã os e a joelh ou -s e n a r u a , com os joelh os n u s
s ob r e o p a vim en t o d u r o e s u jo. Um a d e n os s a s
a u xilia r es d eixou o gr u p o e a joelh ou -s e a o la d o d a
m en in a , or a n d o com ela . Qu a n t o a m im , con t in u ei a
pregar.
E r a evid en t e qu e o p od er d o E s p ír it o d e Deu s
es t a va n a qu ela r eu n iã o. Qu a n d o t er m in ei a p r ega çã o e
fiz o a p elo, n ot ei u m vicia d o em n a r cót icos , n a
ext r em id a d e d a m u lt id ã o, em gr a n d e a gon ia es p ir it u a l .
E le en fiou a m ã o n o b ols o d a ca m is a , t ir ou vá r ios
pacotinhos, e atirou-os na rua, aos seus pés. Começou a
gr it a r , s a p a t ea n d o n os p equ en os en velop es b r a n cos .
“Maldito, pó imundo. Você arruinou a minha vida. Levou
m in h a es p os a em b or a . Ma t ou m eu s filh os . Ma n d ou
m inha alma para o inferno. Maldito! Maldito!”
Ca iu d e joelh os n o ch ã o, ch or a n d o e b a la n çando-
s e p a r a a fr en t e e p a r a t r á s , com o r os t o n a s m ã os . Um
d e n os s os ob r eir os cor r eu p a r a o la d o d ele. Dois d os
n os s os ex-vicia d os r od ea r a m -n o, u m com a m ã o s ob r e a
sua ca b eça , e o ou t r o a joelh a d o, t od os or a n d o em voz
alta enquanto ele gritava pedindo perdão.
Oit o ou n ove vicia d os em en t or p ecen t es vier a m à
fr en t e e a joelh a r a m -s e n a r u a , d ia n t e d o m icr ofon e. Fu i
de um para o outro impondo as mãos em suas cabeças e
orand o p or eles , com p let a m en t e es qu ecid o d o b a r u lh o
d o t r â n s it o in t en s o e d os olh a r es d os t r a n s eu n t es
curiosos.
Depois do culto, demos uma palavra em particular
a cada um dos que haviam aceitado a Cristo, e falamos a
r es p eit o d o Cen t r o. Nós os con vid a m os p a r a m or a r
con os co, en qu a n t o s e livr a va m d o vício. S em p r e h a via
a lgu n s qu e s e d is p u n h a m a n os s egu ir im ed ia t a m en t e.
Ou t r os h es it a va m e r ecu s a va m -s e. Ou t r os a p a r ecia m
d en t r o d e u m a s em a n a ou m a is , e p ed ia m p a r a s er em
admitidos.
Qu a n d o a m u lt id ã o s e d is s olveu , r eu n im os n os s o
equ ip a m en t o e com eça m os a gu a r d á -lo n a Kom b i. Um
d os m en in os qu e es t iver a d a n ça n d o n a r u a , com eçou a
p u xa r a m a n ga d o m eu p a let ó. Per gu n t ei-lh e o qu e
qu er ia , e ele d is s e qu e o “dançador” qu er ia fa la r com igo.
Perguntei-lh e on d e es t a va o h om em , e ele a p on t ou p a r a
um beco escuro, do outro lado da rua.
A n oit e já ca ír a , e eu n ã o s en t ia von t a d e d e en t r a r
n u m b eco es cu r o on d e s e es con d ia u m lou co. Dis s e a o
ga r ot o p a r a a vis a r a o h om em qu e eu t er ia p r a zer em
conversar com ele — ali, debaixo das luzes da rua.
O ga r ot o s a iu cor r en d o, e volt ou d en t r o d e in s -
t a n t es . J á h a vía m os qu a s e t er m in a d o d e d es m on t a r
n os s o equ ip a m en t o. E le b a la n çou a ca b eça e d is s e qu e o
h om em p r ecis a va con ver s a r com igo, m a s es t a va m u it o
envergonhado para encontrar-me no claro.
Com ecei a d izer a o ga r ot o: “Na d a feit o”, m a s ,
r ep en t in a m en t e, lem b r ei-m e de Da vi Wilk er s on
procurando-m e n o p or ã o on d e eu for a es con d er -me,
depois do primeiro culto ao ar livre. Lembrei-me de como
ele en t r ou s em m ed o e d is s e: “Nick y, J es u s a m a você”.
Aquela cor a gem e com p a ixã o m e leva r a m a a ceit a r a
Cristo como meu salvador.
As s im , olh a n d o p a r a o céu es cu r o, d is s e a o S e-
n h or qu e, s e ele qu er ia qu e eu fos s e con ver s a r com
aquele “dançador” s elva gem , fa r ia a s u a von t a d e. Ma s ia
no seu Espírito, e não em minha pr óp r ia for ça e p od er , e
es t a va es p er a n d o qu e ele fos s e a d ia n t e d e m im —
principalmente por ser naquela ruela escura.
At r a ves s ei a r u a e p a r ei n a en t r a d a d o b eco. E r a
com o a en t r a d a d e u m t ú m u lo. Mu r m u r ei u m a or a çã o:
“S en h or , es p er o qu e t en h a s en t r a d o a qu i a n t es d e m im ”,
e en t r ei. Ap a lp a n d o a s p a r ed es d e a lven a r ia , m er gu lh ei
na escuridão.
Ou vi en t ã o o s om a m or t ecid o d e a lgu ém s olu -
ça n d o. Ava n cei, e n a p en u m b r a p u d e ver o h om em
a ga ch a d o n o m eio d e a lgu m a s la t a s d e lixo m a l-
ch eir os a s . Tin h a a ca b eça en t r e a s p er n a s e o s eu cor p o
er a s a cu d id o p or s olu ços con vu ls ivos . Ap r oximei-m e e
ajoelhei-m e a s eu la d o. O ch eir o r a n ços o d a s la t a s d e
lixo er a in s u p or t á vel. Ma s h a via a li u m s er h u m a n o em
d es es p er o, e o d es ejo d e a ju d á -lo foi m a ior d o qu e a
podridão reinante no beco.
“Ajude-me. Por favor, ajude me”, soluçava ele. “Li
a s eu r es p eit o n o jor n a l. Ou vi fa la r qu e você s e
con ver t eu e foi p a r a a E s cola Bíb lica . Por fa vor , a ju d e-
me.”
Nã o p od ia cr er qu e a qu ele er a o m es m o h om em
qu e a p en a s a lgu n s m in u t os a n t es es t a va d a n ça n d o e
ca n t a n d o n a r u a , p r ocu r a n d o a t r a p a lh a r n os s a r eu n iã o.
“S er á qu e Deu s m e p er d oa ? Diga -m e, s er á qu e eu m e
d is t a n ciei d em a is d ele? S er á qu e ele m e p er d oa ? Por
favor, ajude-me.”
Disse-lh e qu e Deu s o p er d oa r ia . E u s a b ia . E le
h a via m e p er d oa d o. Fiz a lgu m a s p er gu n t a s a r es p eit o d e
s u a vid a . Con t ou -m e s u a h is tór ia , en qu a n t o p er m a n ecia
ajoelhado ali, em meio à sujeira do beco.
Há m u it o t em p o a t r á s , ele s en t ir a qu e Deu s o
estava chamando para o ministério. Deixara o emprego e
s e m a t r icu la r a em u m a es cola b íb lica p a r a es t u d a r ,
p r ep a r a n d o s e p a r a o s er viço d o S en h or . Volt a n d o a
Nova Yor k , p or ém , en con t r ou u m a m u lh er qu e o
s ed u ziu , a fa s t a n d o-o d e s u a es p os a . E s t a , com s eu s
d ois filh os , im p lor ou -lh e qu e n ã o os a b a n d on a s s e.
Lembrou-lh e os vot os feit os a Deu s , e os vot os d o
ca s a m en t o, m a s ele es t a va p os s es s o d e u m d em ôn io:
d eixou a es p os a e foi m or a r com a ou t r a m u lh er . Dois
m es es d ep ois es t a o d eixou d izen d o qu e es t a va ca n s a d a
d ele e qu e s u a com p a n h ia já n ã o lh e a gr a d a va . Ficou
d es es p er a d o, e ca iu n o vício, fu m a n d o m a con h a e
tomando “bolinhas”. Per gu n t ei-lh e qu e tip o d e
com p r im id o es t a va t om a n d o, e r es p on d eu qu e er a m
“bombitas”, n em b ies , t u in a l e s econ a l (b a r b it ú r icos ).
S en t ia qu e es t a va fica n d o lou co. “E u es t a va t en t a n d o
a fa s t a r você”, gem eu ele. “Foi p or is t o qu e a gi d a qu ela
for m a n o m eio d a r u a . E s t a va com m ed o. Med o d e Deu s
e m ed o d e en fr en t á -lo. Qu er o volt a r p a r a Deu s . Qu er o
volt a r p a r a m in h a es p os a e m eu s filh os , m a s n ã o s ei
com o. Você p od e or a r p or m im ?” Leva n t ou a ca b eça , e vi
seus olhos cheios de angústia e culpa, pedindo ajuda.
Ajudei-o a leva n t a r -s e e s a ím os d o b eco, a t r a -
ves s a m os a r u a e en t r a m os n a Kom b i. É r a m os s eis . E le
sentou-s e n o b a n co d o m eio, com a ca b eça en costada
n a s cos t a s d o b a n co à s u a fr en t e. Com eça m os a or a r
por ele, todos em voz alta. Ele também começou a orar.
De r ep en t e, p er ceb i qu e es t a va cit a n d o ver s ícu los d a
Bíblia. Do fundo da sua memória, e do seu treinamento
n o In s t it u t o Bíb lico, es t a va m -s e d er r a m a n d o a s p a la vr a s
d o S a lm o 5 1 — o s a lm o qu e o Rei Da vi p r on u n ciou
d ep ois d e t er com et id o a d u lt ér io com Ba t e-Seba,
en via n d o o m a r id o d ela p a r a a fr en t e d e b a t a lh a .
J a m a is s en t ir a o p od er d e Deu s t ã o p r óxim o d e m im ,
com o qu a n d o a qu ele ex-m in is t r o, qu e s e t in h a t or n a d o
s er vo d e S a t a n á s , r eceb eu o E s p ír it o d e Cr is t o e r ep et iu
chor a n d o a s u a con fis s ã o, p ed in d o p er d ã o n a s p a la vr a s
das Santas Escrituras:
“Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua
benignidade; e, segundo a multidão das tuas
m is ericórd ia s , a p a ga a s m in h a s tra n s gressões .
Lava-m e com p le ta m en te d a m in h a iniqüidade, e purifica-
me do meu pecado.
Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu
p ecad o e s tá s e m p re d ia n te d e m im .
Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal
perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo
no teu falar, e puro no teu julgar.
Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha
mãe.
Eis que te comprazes na verdade no íntimo, e no recôndito
me fazes conhecer a sabedoria.
Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei
mais alvo que a neve.
Faze-m e ou v ir jú b ilo e alegria , p ara qu e e xu lte m os os s os
que esmagaste.
Esconde o teu rosto dos meus pecados, e apaga todas as
minhas iniqüidades.
Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova dentro de
m im u m e s p írito in a b alá v el.
Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu
Santo Espírito.
Re s titu i-m e a a legria d a tu a s a lv açã o, e s u s te n ta -me com
u m e s p írito volu n tá rio.
Então ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e
os pecadores se converterão a ti.
Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha
salvação, e a minha língua exaltará a tua justiça.”

E le t er m in ou a or a çã o. A Kom b i es t a va em
s ilên cio. E n t ã o Glór ia leva n t ou a voz — b ela , s u a ve —
terminando as palavras do salmo:

“Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito


qu eb ran ta d o; cora çã o com p u n gid o e con trito n ã o o
desprezarás, ó Deus.”

Levantamo-n os t od os . E le en xu gou o r os t o com o


len ço, e a s s oou o n a r iz. Nós ou t r os t a m b ém es t á vamos
fungando e limpando os olhos.
Virou-se então para mim: “Dei meu último centavo
p a r a a qu eles m en in os m a lu cos d a n ça r em n a r u a . S er á
qu e você p od e m e d a r vin t e cen t a vos p a r a eu telefon a r
para minha esposa e pegar o metrô? Vou para casa.”
Tín h a m os es t a b elecid o a p r a xe d e n u n ca d a r d i-
n h eir o a vicia d os em n a r cót icos ou b êb ed os . S a b ía mos
qu e qu a s e s em exceçã o, o d in h eir o s er ia ga s t o em
en t or p ecen t es ou b eb id a . Ma s a qu ela er a u m a exceçã o.
E n fiei a m ã o n o b ols o e t ir ei o m eu ú lt im o d óla r . E le
p egou a n ot a , e a t ir ou -s e a o m eu p es coço, com o r os t o
a in d a m olh a d o d e lá gr im a s . Dep ois , a p r oxim ou -s e d e
cada um dos outros e também abraçou-os.
“Terão notícias minhas”, disse ele, “eu voltarei.”
E volt ou m es m o. Dois d ia s d ep ois . Levou s u a
es p os a e os d ois filh os a o Cen t r o, p a r a qu e os co-
n h ecês s em os . S u a fis ion om ia es t a va r a d ia n t e; t in h a u m
b r ilh o qu e ja m a is p od er ia s er p r od u zid o p or d r oga s ou
comprimidos. Era a luz do Senhor.

Capítulo 17

N O V A LE D A S S O M B R A S

É QUAS E IMPOS S ÍVE L coloca r qu a r en t a vicia d os


em t óxicos d eb a ixo d o m es m o t et o, e n ã o t er p r oblemas
— p r in cip a lm en t e s e s u p er vis ion a d os p or p es s oa l
inexperiente. A ú n ica cois a qu e im p ed ia a or ga n iza çã o
d o Cen t r o Des a fio J ovem d e exp lod ir er a o E s p ír it o
S a n t o. E s t á va m os s en t a d os n u m b a r r il d e p ólvor a , e
qu a lqu er u m d e n ós p od ia a cen d er o p a vio n a m en t e d e
a lgu m p s icop a t a , e fa zer -n os ir t od os p elos a r es , ca in d o
n o es qu ecim en t o. A ú n ica es p er a n ça er a con s er va r -nos
tão perto de Deus quanto possível.
A m a ior ia d a qu eles h om en s e m u lh er es er a p erita
n a a r t e d e en ga n a r , t or n a n d o-s e a s s im d ifícil d is t in gu ir
qu em er a a u t ên t ico e qu em er a fa ls o. Ga n h a va m a vid a
con t a n d o m en t ir a s . Nós con fiá va m os n a qu ela s p es s oa s
tanto quanto podíamos.
E u er a in t r a n s igen t e qu a n t o à d is cip lin a , e logo
d es cob r i qu e a m a ior p a r t e d eles n ã o s e r es s en t ia s e
fôs s em os ju s t os e r a zoá veis . De fa t o a p oia va m -s e n a
disciplina, porque lhes dava uma base firme de operação
— u m s ólid o s en t im en t o d e p a r t icip a çã o. Con t u d o, eu
sabia que nem todos tinham este sentimento.
Da vi con cor d a va com a m in h a filos ofia . Por ém a
d es a gr a d á vel r es p on s a b ilid a d e d e p r ecis a r r ep r een d er a
t od a h or a os d elin qü en t es com eçou a p es a r d em a is
s ob r e os m eu s om b r os . Mu it a s vezes p r ecis a va s a ir d a
ca m a , n o m eio d a n oit e, p a r a r es olver u m a qu er ela , ou
a t é m es m o, a lgu m a s vezes , p a r a m a n d a r a lgu ém
embora, por ter quebrado as regras.
Gr a n d e p a r t e d a s d ecis ões m a is im p or t a n t es ca b ia
a m im , e p r ecis á va m os a u m en t a r o n os s o qu a d r o d e
cola b or a d or es , a m a ior ia d os qu a is a ca b a va d e s a ir d a
u n iver s id a d e. Com ecei a s en t ir p r ofu n d a m en t e m in h a
fa lt a d e p r ep a r o, e a p er ceb er a m in h a p r óp r ia
in s egu r a n ça . E u p ou co ou n a d a s a b ia a r es p eit o d e
processos a d m in is t r a t ivos , e a in d a m en os a r es p eit o d os
a s p ect os p s icológicos d a s r ela ções p es s oa is n eces s á r ia s
p a r a m a n t er a com u n ica çã o, e p a r a m e r ela cion a r com
os ou t r os m em b r os d a equ ip e. Pod ia p er ceb er in veja d a
p a r t e d e a lgu n s d os qu e t r a b a lh a va m s ob m in h a
d ir eçã o, e com ecei a n ot a r u m es t r em ecim en t o gr a d u a l
em nossas relações.
Qu a n d o Da vi p a s s a va p elo Cen t r o, eu t en t a va
exp lica r qu e t in h a p r ob lem a s gr a n d es d em a is p a r a m im ,
m a s ele s em p r e m e d izia : “Você s a b er á r es olvê-los,
Nicky. Tenho grande confiança na sua capacidade.”
Os problemas, porém, continuaram a acumular-se
com o n u ven s n egr a s n o h or izon t e, a n t es d e u m a
tempestade.
No ou t on o, fu i com Da vi a t é Pit t s b u r g, p a r a fa la r
n a cr u za d a d e Ka t h r yn Ku h lm a n . O m in is t ér io d a S r t a .
Ku h lm a n é u m d os m a is a b en çoa d os p elo E s p ír it o em
t od o o m u n d o. S u a ob r a , a t r a vés d a Fu n d a çã o Ka t h r yn
Kuhlman, alcança todas as partes do globo Ela visitara o
Cen t r o Des a fio J ovem , d em on s t r a n d o u m in t er es s e
es p ecia l p elo m eu t r a b a lh o. E u lh e h a via m os t r a d o a
cid a d e e a s fa vela s . “Agrad eço a Deu s p or t er t ir a d o você
d es t es cor t iços ”, d is s e-m e ela . “S e u m d ia t iver u m p r o-
blema grande demais para resolver, pode me telefonar .”
Pen s ei qu e d evia t en t a r fa la r com ela , en qu a n t o
es t ives s e em Pit t s b u r g, p or qu e m eu cor a çã o es t a va ca d a
vez m a is p es a d o. Con t u d o, fu i leva d o p ela gr a n d ios id a d e
d o p r ogr a m a . Na qu ela n oit e, fa la n d o a t r a vés d o m eu
a m igo J eff Mor a les , qu e m e a com p a n h a r a com o
in t ér p r et e, d ei m eu t es t em u n h o p er a n t e m ilh a r es d e
p es s oa s , n o gr a n d e a u d it ór io. Dep ois d o cu lt o, ja n t a m os
em u m p equ en o r es t a u r a n t e, m a s , a t é en t ã o, n ã o t iver a
oportunidade de falar a sós com a Srta. Kuhlman. Deixei
a s s im Pit t s b u r g, a in d a m a is fr u s t r a d o com m in h a
incapacidade de resolver meus problemas pessoais.
E m ja n eir o d e 1 9 6 4 , o t r a b a lh o h a via cr es cid o
muito e já não podíamos conservar as mulheres alojadas
n o t er ceir o a n d a r d o ca s a r ã o d a Av. Clin t on , 4 1 6 .
Fizem os n egocia ções p a r a a r r a n ja r u m a ca s a d o ou t r o
la d o d a r u a , p a r a a com od a r a s m u lh er es . E u já
p er ceb er a a lgu m a s con s p ir a ções , lid er a d a s p or a lguns
vicia d os qu e m e vir a ob r iga d o a d is cip lin a r . Além d is t o,
t ín h a m os r eceb id o vá r ia s lés b ica s n o Cen t r o, qu e
es t a va m ca u s a n d o gr a n d es p r ob lem a s . E u t em ia
con s t a n t em en t e qu e qu a lqu er d ela s t en t a s s e s ed u zir
a lgu m a d a s es t u d a n t es in exp er ien t es qu e n os a ju d a va m
como conselheiras.
Cu id a r d e vicia d os er a com o t en t a r a p a ga r u m in -
cên d io n a flor es t a com u m a t oa lh a d e b a n h o m olh a da.
Ca d a vez qu e eu con s egu ia con t r ola r u m p equ en o
p r ob lem a , ou t r o m a ior s u r gia . Per ceb i qu e es t a va m e
d eixa n d o en volver p es s oa lm en t e, e qu a n d o u m vicia do
em n a r cót icos volt ou p a r a o m u n d o, t om ei a qu ilo com o
fracasso pessoal.
Glór ia a d ver t iu -m e s ob r e o er r o d e leva r t od o o
p es o s ozin h o, m a s a r es p on s a b ilid a d e p es a va gr a n d e-
mente em meus ombros.
Foi n es s a ép oca qu e Qu et t a ch egou a o Cen t r o.
Fazia o p a p el d e “homem” e for a cer t a vez “casada” com
outra moça.
Ves t ia r ou p a s d e h om em , ca lça s , ca m is a , s a p a tos
e a t é s u a r ou p a d e b a ixo er a m a s cu lin a . Tin h a p ou co
m a is d e t r in t a a n os , er a d on a d e u m a b on it a p ele e com
ca b elos m u it os n egr os cor t a d os com o d e h om em . E r a
uma ga r ot a m a gr a , es b elt a e a t r a en t e, com
personalidade marcante.
Qu et t a er a u m a d a s m a ior es t r a fica n tes d e n a r -
cót ico d a cid a d e. Du r a n t e a n os d ir igir a u m a “ga ler ia d e
picadas” n o s eu a p a r t a m en t o. Hom en s e m u lh er es ia m
a li, n ã o s ó p a r a com p r a r h er oín a , m a s t a m b ém p a r a
p a r t icip a r d e or gia s s exu a is . E la for n ecia t u d o o qu e er a
n eces s á r io: a gu lh a s , r ecip ien t es p a r a fer ver a d r oga ,
h er oín a , com p r im id os , e para os s exualmente
d ep r a va d os : h om en s e m u lh er es . E r a u m a s it u a çã o
confusa.
Qu a n d o a p olícia d eu u m a b a t id a n o a p a r t a m en to
d e Qu et t a , p r en d eu d oze p es s oa s , in clu s ive a lgu mas
p r os t it u t a s p r ofis s ion a is , e d es cob r iu d ez “apetrechos”
(colh er es , a gu lh a s , e con t a -got a s ). Os p oliciais
d em olir a m lit er a lm en t e o a p a r t a m en t o, a r r a n ca n d o o
r eb oco d a s p a r ed es , leva n t a n d o a s t á b u a s d o a s s oa lh o,
et c., a t é d es cob r ir o s eu es con d er ijo d e d r oga s , qu e va lia
milhares de dólares.
Qu et t a veio p a r a o Cen t r o, en qu a n t o es t a va em
lib er d a d e con d icion a l. E xp liqu ei-lh e a s r egr a s , e d is se-
lh e qu e d evia ves t ir r ou p a s d e m u lh er e d eixa r o ca b elo
cr es cer . Além d is t o, n u n ca p od er ia fica r a s ós com
qu a lqu er das ou t r a s ex-vicia d a s , a não s er
a com p a n h a d a d e u m a d e n os s a s a u xilia r es . E la es tava
d em a s ia d o d oen t e p a r a d is cor d a r , e p a r ecia es t a r a legr e
por ter se livrado das grades. Em menos de uma semana
a ceit ou a Cr is t o, e a p r es en t ou t od a s a s evid ên cia s
externas de uma verdadeira conversão.
Con t u d o, logo ch egu ei à con clu s ã o d e qu e m es mo
a con ver s ã o p od e s er fin gid a . E m b or a u s á s s em os Qu et t a
p a r a t es t ifica r em m u it os t r a b a lh os a o a r livr e, eu s en t ia
que havia algo de falso nela.
Du a s s em a n a s m a is t a r d e, u m a d a s con s elh eir a s
veio p r ocu r a r -m e logo d e m a n h ã . E s t a va b r a n ca como
um lençol, e tremendo como vara verde.
“O que foi, Diane? Entre e sente-se.”
Dia n e er a a m a is n ova d e n os s a equ ip e, u m a ga -
r ot a p r ovin cia n a d e Neb r a s k a , qu e a ca b a r a d e d ip lomar-
se na Escola Bíblica.
“Nã o s ei com o con t a r -lh e, Nick y”, d is s e ela . “É
sobre Quetta e Lilly.”
Lilly er a u m a vicia d a qu e vier a p a r a o Cen t r o
h a via a p en a s u m a s em a n a . E s t a va fr eqü en t a n d o os
cu lt os , m a s a in d a n ã o s e en t r ega r a a o S en h or . S en t i os
lábios secos. “O que houve com elas?” perguntei.
Diane enrubesceu e baixou a cabeça.
“E s t a va m ju n t a s n a cozin h a , on t em , p or volt a d e
meia-noite. Aproximei-me delas e, Nicky, elas estavam ...
estavam...” S u a voz em b a r gou -s e, d evid o à ver gon h a e
a o a ca n h a m en t o. “Nã o fu i ca p a z d e d or m ir a n oit e t od a .
O que podemos fazer?”
Levantei-m e d a ca d eir a e com ecei a a n d a r , m e-
dindo o escritório a passos.
“Volt e a o p r éd io e d iga -lh es qu e qu er o vê-la s n o
m eu es cr it ór io im ed ia t a m en t e”, d ecid i. “E s t e lu ga r é
d ed ica d o a o S en h or . Nã o p od em os a d m it ir qu e cois a s
assim aconteçam aqui.”
Dia n e s a iu , e eu m e s en t ei n ova m en t e, com a
ca b eça en t r e a s m ã os , or a n d o d es es p er a d a m en t e, p e-
d in d o s a b ed or ia . E m qu e p on t o eu fa lh a r a ? Havíamos
p er m it id o qu e Qu et t a t es t ifica s s e em n om e d o Cen t r o.
Os jor n a is t in h a m p u b lica d o s u a h is t ór ia e d a d o m u it a
p u b licid a d e. E la fa la r a a t é em igr eja s , a r es p eit o d a
transformação ocorrida em sua vida.
Esperei mais de uma hora, e depois saí, para ver o
que estava acontecendo. Encontrei Diane na escada.
“E la s s a ír a m . As d u a s . Fica r a m com m ed o, e
disseram que iam embora. Não pudemos impedi-las.”
Virei-m e e en t r ei va ga r os a m en t e n o Cen t r o. S en tia
a d er r ot a p es s oa lm en t e — for a u m golp e d u r o. Du r a n t e
t r ês d ia s Glór ia or ou e con ver s ou com igo, en qu a n t o eu
m e s en t ia com p let a m en t e d es ilu d id o com a m in h a
a p a r en t e in ca p a cid a d e d e a lca n ça r a qu ela s vicia d a s com
a verdadeira mensagem de transformação.
“Nicky, o próprio Jesus teve fracasso entre os seus
seguidores”, d is s e ela . “Lembre-s e d e t od os os qu e t êm
s id o fiéis , e qu e t êm t id o êxit o. Lem b r e-s e d e S on n y, qu e
es t á n o In s t it u t o Bíb lico, es t u d a n d o p a r a s er p a s t or .
Pense em Maria, e na maravilhosa transformação de sua
vid a . Lem b r e s e d o qu e Deu s fez p or você. E s qu eceu -se
d a s u a p r óp r ia exp er iên cia d e s a lva çã o? Com o é qu e
p od e d u vid a r d e Deu s e fica r d es a n im a d o com es s es
fracassos isolados?”
Glór ia t in h a r a zã o, m a s eu m e s en t ia in ca p a z d e
livrar-m e d a qu ele d es â n im o. A m ed id a qu e o ver ã o
a va n ça va , a s en s a çã o d e cu lp a s e a volu m a va . J u lga va-
m e u m com p let o fr a ca s s o. Nã o h a via com u n ica çã o en t r e
m im e a m a ior ia d os ou t r os m em b r os d a equ ip e. Da vi
a in d a a cr ed it a va em m im . m a s eu p er ceb ia , a gu d a e
dolorosamente, as constantes falhas do Centro. A tensão
cr es cia . Glór ia con t in u ou t en t a n d o t ir a r -m e d a qu ela
a t it u d e d er r ot is t a , m a s t u d o o qu e eu fa zia er a
inteiramente negativo.
O ú n ico p on t o a lt o foi a ch ega d a d e J im m y Ba ez.
E le viver a “fisgado” p elos n a r cót icos d u r a n t e oit o a n os .
E n t r ou n o Cen t r o p ed in d o r em éd ios , p en s a n d o qu e er a
um hospital.
“Nã o t em ou t r o r em éd io a qu i a n ã o s er J es u s ”,
disse-lhe.
Pensou que eu estivesse louco.
“Pu xa , p en s ei qu e is t o fos s e u m a clín ica . Vocês
s ã o u m a ca m b a d a d e b ir u t a s .” Olh ou a o s eu r ed or ,
desesperadamente, procurando sair do meu escritório.
“S ente-s e, J im m y. Qu er o con ver s a r com você.
Cristo pode transformá-lo.”
“Nin gu ém p od e m e t r a n s for m a r ”, r es m u n gou . “Já
tentei, mas não consigo.”
Levantei-m e e a p r oxim ei-m e d ele. Coloca n d o a s
m ã os s ob r e s u a ca b eça , com ecei a or a r . S en t i qu e ele
es t r em ecia , e d e r ep en t e ca iu d e joelh os , cla m a n d o a
Deu s . Da qu ela n oit e em d ia n t e n u n ca m a is s en t iu
necessidade de outra “picada” de heroína.
“Veja”, ob s er vou Glór ia , qu a n d o lh e fa lei d a con -
ver s ã o d e J im m y, “Deu s es t á m os t r a n d o qu e a in d a p od e
ajudá-lo. Com o é qu e você p od e con t in u a r d u vidando
d ele? Por qu e n ã o p en s a r p os it iva m en t e? Há vá r ios
m es es qu e você n ã o s a i p a r a os cu lt os n ot u r n os a o a r
livr e. Pon h a -s e a t r a b a lh a r p a r a Deu s , e s en t ir á a
orientação do Espírito Santo, como sentia antes.”
Aceit ei o con s elh o, e con cor d ei em d ir igir os cu ltos
a o a r livr e n a ú lt im a s em a n a d e a gos t o. Na p r imeira
n oit e, a r m a m os n os s a p la t a for m a em Br ook lin , e
com ecei a p r ega r . E r a u m a n oit e qu en t e e a b a fa d a , m a s
a va s t a m u lt id ã o es t a va a t en t a . Pr egu ei com t od a s a s
for ça s , e s en t i qu e m e s a ír a b em . Qu a n d o m e
aproximava do fim, fiz um apelo.
De r ep en t e, leva n t ei os olh os e, n a ext r em id a d e d a
multidão eu o vi. Seu rosto era inconfundível. Era Israel.
Tod os a qu eles a n os , eu or a r a , p r ocu r a r a , in qu ir ir a ... e,
de repente, ali estava ele, um rosto na multidão.
Meu cor a çã o p u lou . Ta lvez Deu s o t ives s e m a n -
d a d o d e volt a . S en t i o velh o fogo d er r a m a r s e em m eu
cor a çã o, en qu a n t o fa zia o a p elo. Pa r ecia qu e p r es t a va
b a s t a n t e a t en çã o, es t ica n d o o p es coço p a r a ou vir a s
minhas palavras. O órgão portátil começou a tocar, e um
trio feminino começou a cantar. Vi Israel virar-se para se
afastar.
Pu lei d a p la t a for m a e, à s cot ovela d a s , a b r i ca -
m in h o fu r ios a m en t e en t r e a m u lt id ã o, t en t a n d o a lcançá-
lo a n t es qu e ele d es a p a r eces s e. “Is r a el! Is r a el!” gr it ei-lhe.
“Espere! Espere!”
Ele parou e virou-se. Não nos víamos há seis anos.
Tin h a ga n h a d o cor p o e a m a d u r ecid o. Ma s o s eu r os t o
h a r m on ios o t in h a a a p a r ên cia d e m á r m or e cin zela d o, e
os seus olhos estavam fundos e tristes.
Abracei-o com for ça , e p r ocu r ei a r r a s t á -lo d e volta
para a reunião. Ele resistiu e permaneceu imóvel.
“Israel”, gr it ei, t r a n s b or d a n d o d e a legr ia , “é você
mesmo?” Dei u m p a s s o a t r á s , a ga r r ei os s eu s om bros,
olhando para ele. “Por onde tem andado? Onde você está
m or a n d o? O qu e es t á fa zen d o? Con t e-m e t u d o. Por qu e
n ã o m e t elefon ou ? Ten h o p r ocu r a d o você em t od os os
ca n t os d e Nova Yor k . Hoje é o m elh or d ia d a m in h a
vida.”
Seus olhos estavam distantes e frios; sua maneira,
es t r a n h a e r et r a íd a . “Pr ecis o ir , Nick y. Tive m u it o p r a zer
em ver você de novo.”
“Pr ecis a ir ? Fa z s eis a n os qu e n ã o n os vem os .
Ten h o or a d o t od os os d ia s p or você. Você va i p a r a ca s a
comigo.” Com ecei a p u xá -lo, m a s ele s a cu d iu a ca b eça e
r et ir ou o b r a ço. Pu d e s en t ir os m ú s cu los for t es
enrijecendo sob a sua pele.
“Ou t r o d ia , Nick y. Hoje n ã o.” Tir ou m in h a m ã o d o
seu ombro, e começou a afastar-se.
“E i, es p er e u m m in u t o. O qu e é qu e h á com você?
Você é o meu melhor amigo. Não pode ir embora assim.”
Virou-s e e qu a s e m e con gelou com u m olh a r gé-
lido daqueles olhos inflexíveis, cinzentos como o aço.
“Ma is t a r d e, Nick y”, d is s e ele en t r e os d en t es .
Virou-s e a b r u p t a m en t e e d es ceu r u a a b a ixo, p a r a a
escuridão.
Piqu ei im óvel p ela s u r p r es a , e ch a m ei-o d es es p e-
radamente. Mas ele nem se virou. Continuou andando, e
retornou à penumbra de onde viera.
Volt ei a lqu eb r a d o p a r a o Cen t r o. Ar r a s t ei-m e es -
ca d a a cim a , a t é o t er ceir o a n d a r , e fech ei a p or t a a t r á s
d e m im , em u m d os qu a r t os d o s ót ã o. “Senhor”, gr it ei
com voz a gon ia d a , “o qu e é qu e eu fiz? Is r a el es t á
p er d id o, e a cu lp a é m in h a . Per d oa -me.” Ca í n o ch ã o e
p a s s ei m u it os m in u t os ch or a n d o in con t r ola velm en t e.
Da va s ocos d es es p er a d os n a p a r ed e. Nã o r eceb i
r es p os t a . Du r a n t e d u a s h or a s fiqu ei n o s ót ã o a b a fa d o,
exaurindo-me física, emocional e espiritualmente.
E u s a b ia qu e ir ia d eixa r o Cen t r o. S en t ia qu e o
m eu m in is t ér io es ta va t er m in a d o. E u er a u m fr a casso
em t u d o o qu e t en t a va fa zer . Tu d o em qu e eu t oca va ,
t er m in a va m a l. Qu et t a . Lilly. Agor a , Is r a el. Nã o
a d ia n t a va fica r lu t a n d o con t r a os p r ob lem a s cr es cen t es
qu e n ã o p od ia ven cer . Nã o a d ia n t a va con t in u a r n o
m in is t ér io. E u es t a va a r r a s a d o. Der r ot a d o. Fu lm in a d o.
Pus-m e d e p é e fiqu ei olh a n d o p ela ja n elin h a d o s ót ã o,
p a r a o céu es cu r o. “S en h or , es t ou d er r ot a d o. E u er r ei.
Ten h o con fia d o em m im m es m o, e n ã o em t i. S e é es t a a
r a zã o p ela qu a l t u p er m it is t e qu e is t o a con t eces s e, es t ou
disposto a confessar o meu terrível pecado. Humilha-me.
Mata-m e, s e n eces s á r io. Tod a via , Deu s qu er id o, n ã o m e
lances no lixo.”
Sacudia-m e em s olu ços . E n cos t ei-m e à p or ta ,
olh a n d o p a r a o qu a r t o. S ilên cio. E u n ã o s a b ia s e ele m e
ou vir a ou n ã o. Ma s n a qu ele m om en t o, p ou ca d ifer en ça
fazia. Eu já fizera tudo o que sabia.
Des ci d e n ovo a s es ca d a s , e fu i p a r a o m eu a p a r -
t a m en t o. Glór ia já tin h a p os t o o n en ê n a ca m a , e es tava
a r r u m a n d o a cozin h a . Fech ei a p or t a e en ca minhei-me
p a r a a ca d eir a . An t es qu e eu p u d es s e s en t a r , ela es t a va
à m in h a fr en t e. S eu s b r a ços r od ea ram-m e a cin t u r a , e
ela m e a t r a iu p a r a s i. Nã o s a b ia n a d a d o qu e a con t ecer a
n a r u a ou n o s ót ã o, m a s p or qu e s om os u m a s ó ca r n e,
ela p ôd e p er ceb er qu e eu for a fer id o, e es t a va a o m eu
la d o p a r a s u s t en t a r o m eu es p ír it o a b a t id o, e m e d a r
forças na hora da necessidade.
Apertei-a con t r a m im , e es con d i o r os t o n o s eu
ombro, enquanto as lágrimas começavam a cair de novo.
Du r a n t e m u it o t em p o fica m os a li, a b r a ça d os u m a o
outro, m eu cor p o s a cu d id o p elos s olu ços . Por fim o
ch or o p a s s ou , e leva n t ei-lh e o r os t o com a m b a s a s
m ã os , olh a n d o p r ofu n d a m en t e n os s eu s olh os . E s t a va m
ch eios d e lá gr im a s , com o fon t es p r ofu n d a s , jor r a n d o
á gu a , d a t er r a p u r a . Ma s , n ã o ch or a va . E la es t a va
sorr in d o, em b or a fr a ca m en t e. E o a m or qu e flu ía d o s eu
cor a çã o t r a n s b or d a va d os s eu s olh os , en qu a n t o a s
lá gr im a s got eja va m e cor r ia m em p equ en os r ega t os p ela
face bronzeada.
Ap er t ei o s eu r os t o com a s m ã os . E la es t a va lin da.
Ma is lin d a d o qu e n u n ca . Glór ia s or r iu , e en t ã o os s eu s
lá b ios s e a b r ir a m , qu a n d o ela s e a con ch egou a m im em
u m b eijo s u a ve e d em or a d o. Pu d e s en t ir o s a l d a s
m in h a s p r óp r ia s lá gr im a s , e a qu en t u r a ú m id a d a s u a
boca contra a minha.
“Pr on t o, Glór ia , t er m in ou . Vou em b or a . Pod e s er
que eu tenha ficado orgulhoso. Talvez tenha pecado. Não
s ei, m a s s ei qu e o E s p ír it o a fa s t ou -s e d e m im . E s t ou
com o S a n s ã o. a o s a ir p a r a gu er r ea r os filis t eu s , s em o
p od er d e Deu s . S ou u m fr a ca s s o. Ar r u ín o t od a s a s
coisas em que toco.”
“O qu e é, Nick y?” S u a voz er a m a cia e s u a ve. “O
que aconteceu?”
“Vi Is r a el h oje. Pela p r im eir a vez d ep ois d e s eis
a n os , vi o m eu m elh or a m igo. E le m e d eu a s cos t a s . A
cu lp a d ele s er o qu e é, ca b e a m im . Se eu n ã o o t ives s e
d eixa d o s ozin h o n a cid a d e, h á s eis a n os a t r á s , ele
es t a r ia t r a b a lh a n d o h oje a o m eu la d o. E m vez d is s o,
p a s s ou cin co a n os n a p r is ã o, e es t á p er d id o. Deu s n ã o
se importa mais.”
“Nick y, is t o é qu a s e u m a b la s fêm ia ”, d is s e Glór ia , com
voz a in d a s u a ve. “Você n ã o p od e cu lp a r -s e p elo qu e
a con t eceu a Is r a el. Na qu ela m a n h ã em qu e s a iu d a
cid a d e, n ã o p a s s a va d e u m ga r ot o a m ed r on t a d o. Nã o foi
s u a a cu lp a d e n ã o t er en con t r a d o Is r a el. E s t á er r a d o a o
culpar-s e a s i p r óp r io. Com o t em cor a gem d e d izer qu e
Deu s n ã o s e im p or t a m a is ? E le s e im p or t a . E le s e
importou o suficiente para salvá-lo."
"Você n ã o com p r een d e" d is s e eu , m oven d o a ca -
b eça . "Des d e qu e Da vi m e con t ou qu e Is r a el volt ou p a r a
a qu a d r ilh a , cu lp ei-m e a m im m es m o. Ten h o ca r r ega d o
o p es o d a cu lp a em m eu cor a çã o. E s t a n oit e eu o vi, e
ele vir ou -m e a s cos t a s . Nem qu is fa la r com igo. S e você
tivesse visto a dureza do seu semblante!"
"Ma s , Nick y, você n ã o p od e d es is t ir a gor a , ju s -
tamente quando Deus está começando a operar..."
"Am a n h ã vou m e d em it ir ", in t er r om p i. "Meu lu gar
n ã o é a qu i. Meu lu ga r n ã o é n o m in is t ér io. Nã o s ou
suficien t em en t e b om . S e eu fica r , t od o o Cen t r o Des a fio
J ovem va i s er d es t r u íd o. S ou com o J on a s . Pod e s er qu e
a in d a es t eja fu gin d o d e Deu s , e n ã o s a ib a d is s o. E les
p r ecis a m la n ça r -m e a o m a r , p a r a qu e u m p eixe m e
com a . S e n ã o s e livr a r em d e m im , o b a r co in t eir o va i
afundar."
"Nick y, qu e con ver s a lou ca ! S a t a n á s é qu em es t á
fa zen d o você fica r a s s im ", d is s e Glór ia , qu a s e ch orando.
Afastei-me dela.
"Tem r a zã o, S a t a n á s es t á em m im . Ma s eu vou
renunciar."
"Nicky, pelo menos fale com Davi primeiro."
"J á t en t ei, cen t en a s d e vezes . Ma s ele s em p r e es t á
ocu p a d o d em a is . Ach a qu e eu p os s o r es olver t u d o
s ozin h o, m a s es t á er r a d o. Nã o a gü en t o m a is . S ou
in ca p a z, e já é t em p o d e a d m it i-lo. S ou u m fr a ca s s o ...
um fracasso."
Dep ois qu e fom os d eit a r , Glór ia p a s s ou o b r a ço
em torno da minha cabeça e acariciou meu pescoço.
"Nick y, a n t es d e r en u n cia r você m e p r om et e u m a
cois a ? Você t elefon a p a r a Ka t h r yn Ku h lm a n e con versa
com ela?"
Acen ei qu e s im , com a ca b eça . Meu t r a ves s eir o
es t a va m olh a d o d e lá gr im a s , e ou vi Glór ia m u r m u rar:
"Nicky, Deus vai tomar conta de nós."
E n t er r ei a ca b eça n o t r a ves s eir o, p ed in d o a Deu s
qu e n ã o m e p er m it is s e ver o s ol d es p on t a r ou t r o d ia , em
minha vida.
Na qu eles d ia s d e t r eva s e in d ecis ã o, s ó u m a es -
t r ela b r ilh a n t e s u r giu , n a for m a d a qu ela s en h or a
majestos a , qu e p a r ecia t r a n s p ir a r a p r óp r ia p r es en ça d o
E s p ír it o S a n t o. S ó o fa t o d e con ver s a r com a S r t a .
Ku h lm a n , p elo t elefon e, n o d ia s egu in t e, p a r ece qu e
a ju d ou . E la in s is t iu p a r a qu e eu fos s e a Pit t s b u r g, com
a s d es p es a s p a ga s p or ela , a n t es d e t om a r u m a d ecisão
final.
Na t a r d e s egu in t e, t om ei o a viã o p a r a Pit t s b u r g.
Fiqu ei s u r p r es o qu a n d o ela n ã o p r ocu r ou for ça r -m e a
ficar no Centro. Em vez disso, declarou:
"Ta lvez Deu s es t eja d ir igin d o você p a r a u m m i-
n is t ér io d ifer en t e, Nick y. Pod e s er qu e ele o es t eja
leva n d o p elo va le d a s s om b r a s , a fim d e qu e p os s a s a ir
ao sol, do outro lado. Tão somente, conserve os olhos em
J es u s . Nã o fiqu e a m a r gu r a d o n em d es a n im a d o. Deu s
p ôs a m ã o s ob r e você, e n ã o va i a b a n doná-lo a gor a .
Lembre-s e, Nick y, qu a n d o p a s s a m os p elo va le d a
sombra, ele está conosco."
Or a m os e ela p ed iu qu e, s e fos s e d a von t a d e d e
Deu s qu e eu d eixa s s e o Cen t r o Des a fio J ovem , qu e ele
con s er va s s e a qu ela n u vem d e d es â n im o a o m eu r edor.
S e qu is es s e qu e eu p er m a n eces s e, d is s ip a s s e a n u vem ,
para que eu me sentisse disposto a ficar em Nova York.
Volt ei à cid a d e n a m a n h ã s egu in t e, gr a t o p ela
a m iza d e e con fia n ça d a qu ela s en h or a cr is t ã , gen t il e
dinâmica.
Na qu ela n oit e, d ep ois qu e o n en ê d or m iu , s en t ei à m es a
d a cozin h a e con ver s ei ou t r a vez com Glór ia . E u qu er ia
m es m o s a ir . Com eça r ía m os t u d o d e n ovo, t a lvez n a
Ca lifór n ia . Glór ia d is s e qu e m e s egu ir ia on d e qu er qu e
eu fos s e. O s eu gr a n d e a m or e s u a con fia n ça d a va m -me
n ova s for ça s . An t es d e ir p a r a a ca m a , p egu ei u m
p ed a ço d e p a p el e u m a ca n et a , e es cr evi m eu p ed id o d e
demissão.
Foi u m fim d e s em a n a h or r ível. Na s egu n d a -feira
ced o, qu a n d o Da vi ch egou a o Cen t r o, es t en d i-lh e m eu
pedido de demissão, e esperei enquanto ele lia.
Ele baixou a cabeça.
“Fu i eu qu em fa lh ei com você, Nick y?” p er gu n t ou
s u a vem en t e. “S er á qu e eu es t a va t ã o ocu p a d o qu e n ã o
fiqu ei a qu i o t em p o s u ficien t e, qu a n d o você p r ecis ou d e
mim? Venha ao meu escritório; vamos conversar .”
Segui-o s ilen cios a m en t e p elo s a gu ã o, e en t r a m os
n o es cr it ór io. E le fech ou a p or t a , e en ca r ou -m e com u m
semblante profundamente aflito.
“Nick y, n ã o s ei o qu e es t á p or t r á s d e t u d o is t o.
Ma s s ei qu e, em gr a n d e p a r t e, s ou cu lp a d o. Tod os os
d ia s t en h o m e r ep r een d id o p or n ã o p a s s a r m a is t em p o
com você. Vivo cor r en d o, leva n t a n d o d in h eir o p a r a o
Centro. Não tenho tido tempo nem para a minha família.
S in t o em m eu s om b r os o p es a d o fa r d o d a
r es p on s a b ilid a d e. E n t ã o, a n t es d e con ver s a r m os , qu er o
pedir-lh e qu e m e p er d oe p or t er fa lh a d o com você. Você
me perdoa, Nicky?”
Ba ixei a ca b eça , e m en eei-a s ilen cios a m en t e. Da vi
suspirou fundo, e caiu na cadeira.
“Vamos conversar, Nicky.”
“É tarde demais para conversar, Davi. Várias vezes
procurei falar-lhe. Sinto que é isto que eu devo fazer.”
“Ma s , p or qu e, Nick y? O qu e ca u s ou es t a d ecisão
repentina?”
“Nã o é r ep en t in a , Da vi. E s tá s en d o p r ep a r a d a h á
muito tempo.” Aí, então, abri o coração diante dele.
“Nicky”, disse Davi, com os olhos penetrantes fixos
em m im , “t od os n ós p a s s a m os p or es s es p er íod os d e
d ep r es s ã o. E u já d ecep cion ei a lgu m a s p es s oa s , e já
fiqu ei d ecep cion a d o com ou t r a s . Pen s ei em d es is t ir
vá r ia s vezes . Fr eqü en t em en t e, t en h o m e s en t id o com o
Elias, debaixo de um zimbro, gritando:
“Ba s t a ; t om a a gor a , S en h or , a m in h a a lm a .”
Contud o, Nick y, você en t r ou em lu ga r es on d e os a n jos
tem er ia m a n d a r . Nã o con s igo im a gin á -lo fu gin d o d es tas
pequenas derrotas.”
“E la s n ã o s ã o p equ en a s p a r a m im , Da vi. J á r e-
solvi. Desculpe.”
No d ia s egu in t e, Glór ia e Alicia em b a r ca r a m d e
a viã o p a r a Oa k la n d , e d ois d ia s d ep ois voei a t é Hou s t on ,
p a r a cu m p r ir o m eu ú lt im o com p r om is s o, p r egando
n a qu ela cid a d e. E s t á va m os em a gos t o d e 1 9 6 4 . E u
p a s s a r a d ois a n os e n ove m es es n o Cen t r o Desafio
Jovem.
E m Hou s t on , fiqu ei m eio en ver gon h a d o d e con tar
qu e s a ír a d o Cen t r o. A m in h a p r ega çã o, p or ém , foi fr ia e
in efica z. E s t a va a n s ios o p a r a s egu ir p a r a a Ca lifór n ia e
encontrar-me com Glória.
E n qu a n t o voa va a t r a vés d o p a ís , a p er ceb i-m e d e
qu e n ã o es t a va m a is via ja n d o p or con t a d o m in is t ério.
Ha vía m os econ om iza d o m u it o p ou co, e a s p a s s a gen s d e
a viã o e d es p es a s d e m u d a n ça ir ia m d eixa r -n os s em
dinheiro. Fiquei assustado. Inseguro. Com medo.
Lembrei-m e d a s vezes em qu e p es s oa s t in h a m
t en t a d o coloca r d in h eir o em m in h a s m ã os , qu a n d o
p r ega r a em con cen t r a ções e con fer ên cia s . E u a gr a decia,
e m a n d a va qu e fizes s em u m ch equ e em n om e d o Cen t r o
Des a fio J ovem . Na d a qu er ia p a r a m im . Tod a a minha
vid a for a d ed ica d a a o Cen t r o. Pa r ecia ir ôn ico qu e a t é
m es m o em Hou s t on eu t in h a con t in u a d o a d izer , a os
qu e qu er ia m con t r ib u ir , qu e fizes s em os ch equ es em
n om e d o Cen t r o Des a fio J ovem , s a b en d o qu e eu m a l
tinha dinheiro para viver, nos dias seguintes.
Glór ia foi en con t r a r -s e com igo n o a er op or t o. E la
a lu ga r a u m a p a r t a m en t o p equ en o. E s t á va m os “qu e-
b r a d os ” e d ep r im id os . E u d er a a Deu s qu a s e s eis a n os
d a m in h a vid a , e s en t ia qu e ele m e volt a r a a s cos t a s .
Pr et en d ia d es is t ir , d eixa r o m in is t ér io, e começa r d a
es t a ca zer o, em a lgu m a ou t r a a t ivid a d e. O s ol
m er gu lh ou n o Ocea n o Pa cífico, e t od o m eu m u n do
afundou na escuridão.
Nã o s a b ia p a r a on d e m e volt a r . Per ceb i qu e es tava
m e a fa s t a n d o d e t u d o. Nã o qu er ia ir à igr eja com Glór ia ,
p r efer in d o fica r s en t a d o em ca s a , olh a n d o p a r a a s
p a r ed es . Glór ia t en t ou or a r com igo, m a s eu m e s en t ia
d es a n im a d o e a fa s t a va -a d e m im , d izen d o qu e ela p od ia
orar, mas, quanto a mim, sentia-me vazio.
Den t r o d e a lgu m a s s em a n a s , es p a lh ou -s e a n ot í-
cia d e m in h a volt a à Ca lifór n ia . Com eça r a m a ch egar
con vit es p a r a fa la r n a s igr eja s . Logo m e ca n s ei d e d izer
“n ã o” e d e in ven t a r d es cu lp a s . Fin a lm en t e, d is s e a
Glór ia p a r a n ã o a t en d er m a is in t er u r b a n os , e n ã o
responder às cartas.
Nos s a s itu a çã o fin a n ceir a er a , p or ém , d es es p er a -
d or a . Ha vía m os ga s t a d o t od a s a s econ om ia s , e Glór ia
não conseguira achar emprego.
Com o ú lt im o r ecu r s o, a ceit ei u m con vit e p a r a
p r ega r em u m a cr u za d a p a r a joven s . E s t a va es p ir i-
tualmente frio. Pela primeira vez na vida, subi ao púlpito
sem orar. Sentado na plataforma, admirei minha própria
d u r eza e fr ieza . Fiqu ei ch oca d o com a m in h a a t it u d e
m er cen á r ia . Nã o ob s t a n t e, es t a va d es es p er a d o. S e Deu s
m e d eixa r a ca ir , com o eu s en t ia qu e ele o fizer a , em
Nova Yor k , en t ã o n ã o m e s en t ia ob r iga d o a b u s ca r a s u a
b ên çã o p a r a p r ega r . S e m e p a ga s s em , eu a ceit a r ia . E r a
simplesmente isso.
O S en h or , t od a via , n ã o con s id er a va a s cois a s a s -
s im t ã o s im p les . E le t in h a p la n os m u it o m a is eleva dos
p a r a m im , m a is d o qu e a p en a s r eceb er u m ch equ e com o
p a ga m en t o p ela p r ega çã o. Pr ega r Cr is t o é cois a s a gr a d a
— e ele p r om et eu : “Min h a p a la vr a ... n ã o volt a r á p a r a
mim vazia.”
Qu a n d o fiz o a p elo, a lgo a con t eceu . Pr im eir o, u m
jovem s a iu d o m eio d a m u lt id ã o e a p r oxim ou -se,
ajoelhando-s e d ia n t e d o a lta r . Dep ois , ou t r o veio d o
ca n t o m a is a fa s t a d o d o a u d it ór io. Ou t r os a in d a vier a m à
fr en t e, e os cor r ed or es fica r a m ch eios d e jovens
dirigindo-s e a o a lt a r , a joelh a n d o-s e d efr on t e d o gr a d il e
en t r ega n d o s u a s vid a s a Cr is t o. Tã o gr a n d e er a o
n ú m er o d e joven s a li n a fr en t e, qu e m u it os p r ecis a r a m
fica r d e p é, a t r á s d os qu e s e a joelh a r a m d ia n t e d o gr a d il
s u p er lot a d o. No fu n d o d a igr eja , vi gen t e ca in d o d e
joelh os e cla m a n d o a Deu s . Ou t r os con t in u a va m s e
a p r es en t a n d o. Nu n ca es t iver a em u m cu lt o em qu e o
E s p ír it o d e Deu s ca ís s e s ob r e a con gr ega çã o com t a n t o
poder.
O S en h or p r ocu r a va d izer -m e a lgo, n ã o b a ixin h o,
s u s s u r r a n d o, m a s com voz t r oveja n t e. Dizia -m e qu e
ainda estava no seu trono, relembrando-me que, embora
eu o decepcionasse, ele não me decepcionava. Estava me
d izen d o, em t er m os in con fu n d íveis , qu e n ã o t er m in a r a
s u a ob r a em m in h a vid a ... e qu e a in d a qu er ia u s a r -me,
embora eu não estivesse disposto a ser usado.
S en t i os joelh os t r em er em , e t en t ei s egu r a r -m e n o
p ú lp it o. De r ep en t e, m eu s olh os en ch er a m -s e d e
lá gr im a s e eu , o p r ega d or d a n oit e, ca í p a r a a fr en t e, d e
joelh os d ia n t e d o gr a d il. Ali, com o cor a çã o ch eio d e
a r r ep en d im en t o, d er r a m ei a a lm a p er a n t e o m eu Deu s ,
numa nova dedicação a ele.
Dep ois d o cu lt o, Glór ia e eu en t r a m os n o ca r r o
qu e es t a va es t a cion a d o n o p á t io d a igr eja . Ha vía m os
p la n eja d o s a ir p a r a la n ch a r e d ep ois d a r u m p a s s eio d e
carro. Em vez disso, concordamos em ir para casa.
Qu a n d o en t r a m os , ca í d e joelh os . Glór ia a joelhou-
s e a o m eu la d o, e n ós d ois ch or a m os e cla m a m os a
Deu s . E eu s a b ia . S a b ia qu e h a via m a is a in d a . S a b ia
qu e t od a s a s cois a s coop er a m p a r a o b em d a qu eles qu e
a m a m a Deu s . Ab r i os olh os , e a t r a vés d a s lá gr im a s , vi
qu e ele es t a va a o m eu la d o. Pod ia s en t ir a s u a p r es en ça .
Qu a s e p od ia ou vir a s p a la vr a s : S im , “a in d a qu e eu a n d e
pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum,
p or qu e t u es t á s com igo: a tu a va r a e o t eu ca ja d o m e
consolam...” Salmo 23.
Ha vía m os a t r a ves s a d o o va le d a s om b r a d a m or >
t e, m a s a s u a gr a ça n os gu ia r a , e a gor a a lu z d o s ol já
cor oa va o p ico d a s m on t a n h a s d is t a n t es , a n u n cia n d o o
alvorecer de um novo dia.

Capítulo 18

NO T E R R IT ÓR IO D E
J E S US

A GRANDE OPORTUNIDADE s u r giu p ou co a n t es


d o Na t a l, qu a n d o r eceb i u m con vit e d e u m gr u p o d e
leigos con h ecid o com o “Fu ll Gos p el Bu s in es s Men 's
Fellows h ip In t er n a t ion a l”. Foi a t r a vés d es s e gr u p o d e
com er cia n t es d ed ica d os qu e com eça r a m a ch ega r
convites para falar em ginásios e universidades. Durante
1 9 6 5 es t ive n a m a ior ia d a s cid a d es m a is im p or t a n t es d o
p a ís . Min h a s con cen t r a ções e cr u za d a s , em s u a m a ior
pa rte p a t r ocin a d a s p or igr eja s de tod a s as
d en om in a ções , es t a va m ob t en d o m a r a vilh os o êxit o, e eu
falei a multidões de mais de dez mil pessoas.
Agr a d ecia d ia r ia m en t e a Deu s p or s u a b on d a d e.
Por ém , a in d a es t a va im p a cien t e e t in h a u m p r ofu n d o
anseio no coração. Não parecia encontrar a solução para
o p r ob lem a , e p or is s o t or n a va-m e ca d a d ia m a is
impaciente.
Foi en t ã o qu e fiqu ei con h ecen d o Da n iel Ma la chuk,
u m n egocia n t e ext r over t id o, d e eleva d a es t a t u r a , qu e
vivia em Nova J er s ey, e qu e, s em o s a b er , t r ou xe à t on a
o meu problema. Casualmente ele mencionou certa noite
qu e s a b ia qu e o m eu d es ejo or igin a l for a t r a b a lh a r com
os “p equ en os ”. Nã o r es p on d i à s u a ob s er va çã o, m a s
suas palavras ficaram gravadas em minha mente.
Recor d ei m in h a p r óp r ia in fâ n cia . S e t ã o s om en te
a lgu ém t ives s e s e p r eocu p a d o em m e leva r a Cr is to
quando criança, talvez...
Con ver s ei a es s e r es p eit o com Glór ia . Deu s es t a va
u s a n d o o m eu t es t em u n h o em gr a n d es cr u za d a s , m a s
ca d a vez qu e eu lia n os jor n a is u m a r t igo s ob r e cr ia n ça s
p r es a s p or t er em ch eir a d o cola ou t er em fu mado
m a con h a , m eu cor a çã o d oía . Con t in u á va m os or a n d o
p a r a qu e Deu s n os m os t r a s s e o ca m in h o p a r a n os
aproximarmos dessas crianças.
Pou cos m es es d ep ois , Da n iel a ju d ou a p r ep a r a r
u m a cr u za d a d e qu a t r o d ia s em S ea t t le. Du r a n t e t odo
esse tempo, eu estivera falando através do intérprete Jeff
Morales. J eff m u d a r a -s e p a r a a Ca lifór n ia , a fim d e
via ja r com igo p a r a a s gr a n d es con cen t r a ções on d e a s
p es s oa s t in h a m d ificu ld a d e em en t en d er m eu s ot a qu e.
Por ém , cer ca d e m eia h or a a n t es d e d eixa r o a er op or t o,
ele t elefon ou : “Nick y, es t ou d e ca m a , com p n eu m on ia . O
m éd ico n ã o m e d eixou ir . Você t er á qu e s e vir a r
sozinho.”
De p é n a p la t a for m a , d ia n t e d e u m a b a t er ia d e
m icr ofon es e d e câ m a r a s d e TV, exa m in ei a en or m e
m u lt id ã o. S er á qu e eles s er ia m ca p a zes d e en t en d er -me,
a p es a r d o s ot a qu e p or t o-r iqu en h o? S er á qu e r ir ia m d o
meu inglês arrevesado? Nervosamente, limpei a garganta
e a b r i a b oca p a r a fa la r . As p a la vr a s n ã o s a ír a m — s ó
u m m u r m ú r io en r ola d o. Lim p ei a ga r ga n t a ou t r a vez, e
saiu uma coisa que parecia com “uuuggghhhllkfg”.
A m u lt id ã o m exeu -s e n er vos a , m a s p olidamente.
Nã o a d ia n t a va . E u já t in h a m e h a b it u a d o à a ju d a d e
J eff. Cu r vei a ca b eça e p ed i p od er : “S en h or a m a d o, s e
p od es d a r -m e u m a lín gu a d es con h ecid a p a r a lou va r o
t eu n om e, con fio em qu e p od es d a r -m e u m a lín gu a
conhecida para falar de ti a estes jovens.”
Leva n t ei a ca b eça e com ecei a fa la r . As p a la vr a s
vier a m p er feit a s , e flu ír a m d e m in h a b oca com p od er
s ob r en a t u r a l. J eff for a s u b s t it u íd o p or J es u s e, d es de
a qu ele m om en t o, t ive a cer t eza d e qu e s em p r e qu e
estivesse falando dele, não precisaria mais de intérprete.
Dep ois d o ú lt im o cu lt o, Da n iel foi a o m eu qu a r to,
no hotel.
“Nick y, a s b ên çã os d e Deu s es t ã o s e d er r a m a n d o
d e m a n eir a m a r a vilh os a . Um a ofer t a d e a m or d e t r ês m il
dólares foi levantada para você usar em seu ministério.”
“Daniel, não posso aceitar esse dinheiro.”
“Nick y”, d is s e Da n iel, en qu a n t o s e coloca va à von -
t a d e, es p a r r a m a n d o-s e n o s ofá e t ir a n d o o s a p a t o, “o
d in h eir o n ã o é p a r a você. É p a r a Deu s op er a r a t r a vés d a
sua pessoa.”
“E p os s o u s á -lo d e qu a lqu er for m a qu e s in t a qu e
Deus quer?” perguntei.
“Isso mesmo”, disse Daniel.
“E n t ã o vou u s á -lo p a r a os “p equ en os ”. Qu er o co-
meçar um centro para ministrar a eles.”
“Ma r a vilh os o”, exp lod iu Da n iel, s en t a n d o n o s ofá.
“Dê-lhe o nome de “Esforço para a Juventude.”
E o n om e foi “E s for ço p a r a a J u ven t u d e”. Volt ei à
Ca lifór n ia com os t r ês m il d óla r es , r es olvid o a a b r ir u m
Cen t r o on d e p u d es s e t ir a r os p equ en os d a s r u a s , e
ganhá-los para Cristo.
E s t a b elecem os o n os s o Cen tr o em Fr es n o, n a Av.
N. Br oa d wa y, 2 2 1 . Requ er em os o a lva r á oficia l d o
E s t a d o d a Ca lifór n ia , e p en d u r ei u m a p la ca n a p or t a d a
frente: “Esforço para a Juventude, Nicky Cruz, Diretor.”
Logo em s egu id a , com ecei a va s cu lh a r a s r u a s . No
p r im eir o d ia , en con t r ei u m ga r ot o d e on ze a n os
d or m in d o n o vã o d e u m a p or t a . S en t ei-m e a o s eu la d o e
perguntei como se chamava.
E le m e exa m in ou com o ca n t o d os olh os , e fin a l-
mente disse: “Rubem; por que quer saber?”
“Nã o s ei”, r es p on d i n a m es m a lin gu a gem er r a d a
qu e ele u s a r a . “Você m e p a r eceu t ã o s im p á t ico qu e qu is
conversar com você.”
E s p on t a n ea m en t e ele m e con t ou qu e o p a i er a
vicia d o em t óxicos . E le m es m o t in h a ch eir a d o cola n o
d ia a n t er ior . Deixa r a a es cola n o s ext o a n o. E s cu t ei s u a
h is t ór ia , e d ep ois con t ei-lh e qu e eu es t a va a b r in d o u m
Cen t r o p a r a ga r ot os com o ele, e p er gu n tei-lh e s e
gostaria de ir morar comigo.
“Você quer mesmo que eu vá?”
“Cla r o”, r es p on d i, “m a s t em os d e fa la r p r im eir o
com seu pai.”
“Com os d ia b os ”, r es p on d eu o ga r ot o, “o m eu ve-
lh o va i p u la r d e a legr ia p or s e livr a r d e m im . O ú n ico
que vai se importar é o comissário de menores.”
O com is s á r io ficou s a t is feito com a n ot ícia , e
Rubem mudou-se para o Centro naquela mesma noite.
Pou ca s s em a n a s d ep ois , r ecolh em os m a is d ois
m en in os . For a m t od os m a t r icu la d os n a es cola , e fa -
zía m os es t u d os b íb licos d iá r ios n o Cen t r o. A p r in cípio,
Ru b em n os d eu m u it o t r a b a lh o, m a s n o fim d a s egu n d a
s em a n a a ceit ou a Cr is t o d u r a n t e u m es t u d o b íb lico. Na
t a r d e s egu in t e, a o volt a r d a es cola , d ir igiu-se
d ir et a m en t e p a r a o s eu qu a r t o e com eçou a es t u d a r .
Glór ia p is cou p a r a m im . “Qu e ou t r a evid ên cia você quer,
d e qu e a s u a con ver s ã o foi s in cer a ?” d is s e ela . E u n ã o
p r ecis a va de n en h u m a ou t r a . S en t i-m e b em ,
interiormente. A inquietude estava desaparecendo .
À m ed id a qu e os d ia s s e p a s s a va m , com eça m os a
r eceb er t elefon em a s d e m ã es a flit a s , qu e d izia m qu e os
filhos estavam completamente impossíveis, e pediam que
os r ecolh ês s em os . E m qu es t ã o d e s em a n a s , n os s a s
a com od a ções es t a va m lot a d a s , e a in d a con t in u á va m os
r eceb en d o t elefon em a s . Glór ia e eu p a s s a m os m u it o
tempo em oração, pedindo a Deus que nos guiasse.
Cer t a m a n h ã , d ep ois d e a p en a s a lgu m a s h or a s d e
s on o, o t elefon e t ocou . Ca m b a leei a t é o a p a r elh o. E r a
Da n iel S m it h , m em b r o a t ivo d a s ocied a d e “Fu ll Gos pel
Business Men's” de Fresno:
“Nick y, Deu s es t á n os d ir igin d o p or u m m is t erioso
ca m in h o. Vá r ia s p es s oa s d e n os s o gr u p o t êm or a d o em
fa vor d a ob r a qu e você es t á r ea liza n d o. Deu s colocou n o
m eu cor a çã o o d es ejo d e a ju d á -lo a for m a r u m a J u n t a
d e Dir et or es . Fa lei com E a r l Dr a p er , con t a d or , com o
Rev. Pa u lo E va n s , e com H. J . Keen er , ger en t e d e u m a
es t a çã o d e TV loca l. E s t a m os d is p os t os a t r a b a lh a r com
você, se nos aceitar.”
E r a ou t r a r es p os t a d e or a çã o, o fa t o d a qu ele p e-
qu en o gr u p o d e n egocia n t es e p r ofis s ion a is lib er a is s e
coloca r em à d is p os içã o d o Cen t r o, p a r a a ju d a r n a
direção.
Ma is t a r d e, n a qu ele m es m o m ês , Da vi Ca r t er ju n -
tou-s e à n os s a equ ip e, p a r a t r a b a lh a r com os m en inos.
E u con h ecer a Da vi, u m r a p a z d e cor , a lt o, qu ieto,
qu a n d o er a ch efe d e u m a qu a d r ilh a em Nova Yor k . For a
p a r a o In s t it u t o Bíb lico d ep ois d a s u a con ver s ã o, e com o
n ã o t in h a la ços d e fa m ília , p od ia p a s s a r m u it a s h or a s
a con s elh a n d o p es s oa lm en t e os m en in os fa m in t os d e
a m or . Ha via t a m b ém d u a s m oça s m exica n a s : Fr a n ces
Ra m ír ez e An gie S ed illos , qu e s e ju n ta r a m a n ós p a r a
p r om over o con t a t o com a s m en in a s , e a ju d a r n o
trabalho da secretaria.
O último membro da equipe era uma pessoa muito
es p ecia l p a r a m im . Tr a t a va -s e d e J im m y Ba ez. J im m y
a ca b a r a d e d ip lom a r -s e n a E s cola Bíb lica , e d es p os a r a
u m a jovem ca lm a , d e voz s u a ve. E le vir ia p a r a t r a b a lh a r
com o n os s o s u p er vis or , m a s p a r a m im , er a m u it o m a is
d o qu e is s o. E le er a u m a p r ova viva d o p od er
t r a n s for m a d or d e J es u s Cr is t o. E r a d ifícil im a gin a r qu e
a qu ele jovem d e a p a r ên cia cu lt a , r os t o s im p á t ico e
ócu los d e a r os es cu r os , fos s e o m es m o ga r ot o fr a n zin o,
p á lid o, qu e fica r a a ga ch a d o h or a s a fio n o Cen t r o
Desafio Jovem, tremendo devido à privação de heroína, e
suplicando que lhe dessem drogas.
Com o cor a çã o ch eio d e fé em Deu s , e a s m ã os
ocu p a d a s com os “p equ en os ”, con t in u a m os a va n ça n do.
Deu s es t a va a b en çoa n d o, e eu p en s a va já t er r eceb id o o
m á xim o em s u r p r es a s m a r a vilh os a s . Con t u d o, p a r a os
qu e a m a m a Deu s , n ã o h á lim it e p a r a a s s u r p r es a s d o
amanhã.
Na qu ele ou t on o, Da n iel Ma la ch u k es ca lou m e p a -
r a u m a s ér ie d e p a les t r a s em Nova Yor k . Dep ois d e m e
a p a n h a r n o a er op or t o, en t r a m os n o s eu ca r r o e fom os
p a r a a cid a d e, p a s s a n d o p or qu ilôm et r os e m a is
qu ilôm et r os d e a p a r t a m en t os , t ip o cor tiço. Recos t ei-me
n o b a n co, a o la d o d ele, e fiqu ei ob s er va n d o os velh os
p r éd ios p a s s a r em velozm en t e. Algo m e t oca va o cor a çã o.
E u n ã o fa zia m a is p a r t e d o gu et o, m a s ele a in d a er a
uma parte de mim. Comecei a pensar nos velhos amigos,
e n os m em b r os d a qu a d r ilh a — p r in cip a lm en t e em
Is r a el. “J es u s ”, or ei, “p or fa vor , d ê-m e ou t r a
op or t u n id a d e d e d a r m eu t es t em u n h o em p r es en ça
dele.”
Dep ois d a r eu n iã o, n a qu ela n oit e, Da n iel foi co-
m igo p a r a o qu a r t o d o h ot el on d e eu ia p a s s a r a n oit e. O
telefone estava tocando quando entramos.
Atendi, e houve um longo silêncio do outro lado da
lin h a , a n t es qu e eu ou vis s e u m a voz fr a ca , m a s b em
conhecida dizer: “Nicky, sou eu, Israel.”
“Is r a el!” gr it ei. “Glór ia a Deu s ! Min h a or a çã o foi
respondida. Onde você está?”
“E s t ou em ca s a , Nick y, n o Br on x. Aca b ei d e ler n o
jor n a l qu e você es t a va n a cid a d e, e t elefon ei p a r a o s eu
ir m ã o, Fr a n k . E le d is s e qu e eu p od er ia en con trá-lo n o
hotel.”
Com ecei a d izer a lgo, m a s ele m e in t er r om p eu :
“Nick y, eu -eu-eu es t a va p en s a n d o s e p od er ia vê-lo en -
qu a n t o es t á n a cid a d e. S ó p a r a con ver s a r a r es p eit o d os
velhos tempos.”
Qu a s e n ã o p od ia cr er n os m eu ou vid os . Vir ei-me
para Daniel: “Israel. Ele quer me ver.”
“Convide-o p a r a s e en con t r a r con os co n o h ot el,
a m a n h ã à n oit e, p a r a ja n t a r ”, d is s e Da n iel. O en con tro
lon ga m en t e es p er a d o foi m a r ca d o p a r a a s s eis h or a s d a
tarde seguinte.
Or ei p or ele a n oit e in t eir a , p ed in d o a Deu s p a r a
m e d a r a s p a la vr a s cer t a s , a fim d e ga n h a r o s eu co-
ração para Cristo.
Da n iel e eu fica m os m ed in d o o s a gu ã o d o h ot el
com n os s os p a s s os , d a s cin co e t r in t a à s s et e h or a s d a
noite. Ele não apareceu. O coração subiu-me à garganta,
en qu a n t o eu m e lem b r a va d a qu ela m a n h ã , n ove a n os
a n t es , qu a n d o n os t ín h a m os d es en con t r a d o d a p r im eir a
vez.
De r ep en t e, eu o vi. S u a s feições h a r m on ios a s ,
olh os p r ofu n d os , ca b elo on d u la d o. Na d a m u d a r a . Nã o
p u d e fa la r , p ois a s lá gr im a s vier a m -m e a os olh os .
“Nick y”, d is s e ele com voz es t r a n gu la d a , “n em p os s o
cr er .” Rep en t in a m en t e, com eça m os a r ir e fa la r a o
m es m o t em p o, com p let a m en t e es qu ecid os d o t r â n s it o
intenso ao nosso redor.
Pa s s a d o a lgu m t em p o, Is r a el s e a fa s t ou e d is s e:
“Nicky, quero que você conheça minha esposa, Rosa.” Ao
s eu la d o es t a va u m a jovem p or t o-r iqu en h a , b a ixin h a e
simpática, com u m s or r is o qu e t om a va con t a d e t od o
o s eu b on it o r os t o. Cu r vei-m e p a r a a p er t a r -lh e a
m ã o, p or ém ela m e a ga r r ou p elo p es coço e b eijou -me
r es olu t a m en t e n a fa ce. “E s t á a legr e d e con h ecer você”,
p is cou , fa la n d o u m in glês a r r eves a d o. “Ten h o vivido
p er t o d e você t od o es t e t em p o. Is r a el fa la m u it o d e você
estes três anos.”
Fom os a t é o s a lã o Ha y Ma r k et Room p a r a ja n tar.
Israel e Rosa ficaram para trás, e pude perceber que algo
os p r eocu p a va . “E i, Is r a el, qu a l é o p r ob lem a ? Da n iel va i
pagar a conta. Vamos!”
Is r a el olh ou p a r a m im em b a r a ça d o, e fin a lm en t e
m e p u xou d e la d o. “Nick y, n ã o p os s o en t r a r a í. É ch iqu e
demais. Não sei o que fazer.”
Rodeei-lh e os om b r os com o b r a ço. “E u t a m b ém
n ã o s ei o qu e fa zer ”, r es p on d i. “Olh e, p eça o t r oço m a is
caro que encontrar na lista e deixe o “dono do ouro” aqui
pagar”, sorri, apontando para Daniel.
Dep ois d o ja n t a r , t om a m os o eleva d or p a r a o
meu apartamento, no décimo - quarto andar. Israel
estava descontraído, e parecia o mesmo velho
Is r a el, qu a n d o n os fa lou d a s u a ca s a , n o gu et o
“Nã o é u m lu ga r m u it o a gr a d á vel p a r a s e viver ”, d is se
ele. “Pr ecis a m os gu a r d a r os p r a t os n a gela d eir a , p or
ca u s a d a s b a r a t a s . Ma s p od er ia s er p ior . No a n dar
t ér r eo, os r a t os vêm d os es got os e m or d em a s cr ia n ça s
en qu a n t o d or m em . É com o se es t ivés s em os
a cor r en t a d os a li”, d is s e. “Nã o p od em os livr a r -n os . É u m
lu ga r p és s im o p a r a cr ia r os filh os . Na s em a n a p a s s a d a ,
t r ês m en in a s d o m eu ed ifício, t od a s d e cer ca d e n ove
a n os , for a m es t u p r a d a s em u m a viela , n os fu n d os d o
p r éd io. Nã o t em os cor a gem d e d eixa r a s cr ia n ça s s a ír em
à rua, e eu estou doente de preocupação . Quero sair de
lá. Mas...”
A s u a voz fa lh ou , e ele leva n tou -s e d a ca d eir a , foi
a t é a ja n ela , e olh ou p a r a for a , em d ir eçã o à t or re
r elu zen t e d o ed ifício “E m p ir e S t a t e”. “Ma s a gen t e
p r ecis a viver em a lgu m lu ga r , e em qu a lqu er ou t r o lu ga r
o a lu gu el é a lt o d em a is . Qu em s a b e n o a n o qu e vem ...
t a lvez n o a n o qu e vem n os m u d em os p a r a u m lu ga r
melhor. Até que eu não me saí tão mal. Comecei lavando
p r a t os , e p r os p er ei. Agor a s ou con t ín u o em u m ed ifício
na Wall Street.”
“Ma s d ep ois qu e você con s egu ir m u d a r , o qu e
acontecerá?” interrompi.
“O que foi que você disse?” perguntou.
Per ceb i qu e ch ega r a a h or a d e m e a p r ofu n d a r n o
passado. “Israel, conte-me o que foi que saiu errado.”
Ele voltou para o sofá onde Rosa estava, sentou-se
n er vos a m en t e a o s eu la d o. “Nã o m e in com od o d e fa la r
n is s o a gor a . Ach o m es m o qu e p r ecis o fa la r . Nu n ca
con t ei, n em p a r a Ros a . Você s e lem b r a d a qu ela m a n h ã ,
d ep ois qu e s a iu d o h os p it a l, qu a n d o você e a qu ele
homem iam encontrar comigo?”
Acenei que sim. A recordação era dolorosa.
“E s p er ei t r ês h or a s . Fiqu ei com o lou co. E u fiquei
d a n a d o com os cr en t es , e n a qu ela n oit e volt ei p a r a a
quadrilha.”
“Israel, sinto muito. Nós procuramos você...”
“Nã o im p or t a . Fa z m u it o t em p o. Ta lvez a s coisas
fos s em d ifer en t es s e eu t ives s e id o com vocês . Qu em
sabe?”
Fez u m a p a u s a , e d ep ois com eçou d e n ovo. “De-
p ois , a r r a n ja m os u m a en cr en ca com os An gels d a Ru a
S u l. Aqu ele ca r a en t r ou em n os s o t er r it ór io e d is s em os
qu e n ã o qu er ía m os n en h u m “b ich o d e p é” p or a li. Qu is
b a n ca r o en gr a ça d in h o, e b a t em os n ele. Cor r eu , e cin co
dos nossos foram atrás dele até os domínios da Rua Sul,
e o a ga r r a m os n a Ar ca d a . Nós o p u xa m os p a r a for a , e
com eça m os a lu t a r com ele. A cois a d e qu e m e lem b r o a
seguir, é que um dos nossos tinha um revólver na mão e
com eçou a d a r t ir os . Pa co p ôs -s e a s egu r a r a b a r r iga e
d izer b r in ca n d o: “Oh , p egu ei u m t ir o! p egu ei u m t ir o!”
Todos os rapazes riam.”
“E n t ã o, o “b ich o-do-p é” ca iu n o ch ã o. E s t a va
m es m o fer id o. E s t a va m or t o. E u vi o b u r a co d a b a la n a
sua cabeça.”
Is r a el fez u m a p a u s a . O ú n ico s om qu e s e ou via
era o do trânsito, atenuado pela distância, lá embaixo.
“Fu gim os . E u e m a is t r ês fom os a ga r r a d os . Os
ou t r os s e s a fa r a m . O ca r a qu e p u xou o ga t ilh o t omou
vinte anos. O resto, de cinco a vinte anos.”
E le p a r ou d e fa la r , e b a ixou a ca b eça : “For a m
cinco anos de inferno.”
Recu p er a n d o a s er en id a d e, p r os s egu iu : “Tive d e
fazer um “acordo” para sair da prisão.”
“O qu e é u m “a cor d o?” in t er r om p eu Da n iel. “A
J u n t a d e Livr a m en t o Con d icion a l d is s e qu e eu s er ia
s olt o, s e p u d es s e p r ova r -lh es qu e t in h a u m em p r ego m e
es p er a n d o. E les m e d is s er a m qu e eu t er ia d e volt a r p a r a
m eu a n t igo la r . E u n ã o qu er ia volt a r p a r a o Br ook lin .
Qu er ia com eça r a vid a d e n ovo, m a s d is s er a m qu e eu
t in h a d e volt a r p a r a ca s a . As s im , eu fiz u m “a cor d o”
a t r a vés d e u m vicia d o qu e es t a va lá d en t r o com igo. E le
con h ecia u m h om em qu e t in h a u m a fá b r ica d e r ou p a s
n o Br ook lin , e d is s e à m in h a m ã e qu e, s e ela lh e
p a ga s s e cin qü en t a d óla r es , ele m e p r om et er ia u m
em p r ego. E la d eu a o h om em o d in h eir o, e ele es cr eveu
u m a ca r t a d izen d o qu e eu t in h a u m em p r ego n a s u a
fábrica, quando saísse da prisão. Foi a única maneira de
a r r a n ja r em p r ego. Ra p a z, qu em é qu e va i qu er er u m ex-
preso como empregado?”
“Ma s você con s egu iu o em p r ego?” p er gu n t ou Da -
niel.
“Na d a ” d is s e Is r a el, “eu d is s e a vocês qu e er a u m
“a cor d o”. Nã o h a via em p r ego n en h u m . E r a s ó u m jeit o
para eu sair da cadeia.”
“S a í, en t ã o, e fu i a u m a a gên cia d e em p r egos , e
m en t i s ob r e o m eu p a s s a d o. Você p en s a qu e eles m e
t er ia m con t r a t a d o, s e eu con t a s s e qu e s a ír a d a ca d eia
n o d ia a n t er ior ? Ar r a n jei u m em p r ego d e la va d or d e
p r a t os , e d ep ois u m a d ú zia d e ou t r os em p r egos . Des de
en t ã o, t en h o m en t id o. A gen t e p r ecis a m en t ir p a r a
con s egu ir u m em p r ego. S e m eu p a t r ã o s ou b es s e qu e eu
sou um ex-preso, ele me mandaria embora, apesar de eu
es t a r for a d a ca d eia h á qu a t r o a n os , e s er u m b om
empregado. Portanto, eu minto. Todo mundo faz isso.”
“O oficia l d e ju s t iça r es p on s á vel p or você d u r a n te
s eu livr a m en t o con d icion a l, a ju d ou -o?” p er gu n t ou
Daniel.
“S im ele foi o ú n ico s u jeit o qu e r ea lm en t e t en tou.
Ma s o qu e é qu e p od er ia fa zer ? E le t in h a m a is d e cem
r a p a zes com o eu p a r a a ju d a r . Nã o, a r es p on sabilidade
era minha, e consegui tudo sozinho.”
O qu a r t o ficou em s ilên cio. Du r a n t e t od o o t em po
Rosa es t iver a s en t a d a , qu iet a , a o la d o d e Is r a el. E la n ã o
conhecia essa parte da vida de seu marido.
Depois eu falei: “Israel, você se lembra daquela vez
em qu e es t á va m os p r ocu r a n d o os Ph a n t om Lor d s , e
caímos em uma emboscada?”
“Lembro.”
“Você s a lvou a m in h a vid a n a qu ela n oit e, Is r a el.
E s t a n oit e eu qu er o r et r ib u ir a qu ele fa vor . Qu er o d izer -
lhe algo que salvará sua vida.”
Ros a es t en d eu a m ã o e p a s s ou o b r a ço p elo d ele.
Ambos viraram-se e me olharam com ar de expectativa.

“Is r a el, você é o m eu m elh or a m igo. Você p od e


n ot a r qu e h ou ve u m a t r a n s for m a çã o n a m in h a vid a . O
velh o Nick y m or r eu . A p es s oa qu e você vê a gor a n ã o é
r ea lm en t e o Nick y, é J es u s Cr is t o viven d o em m im .
Você s e lem b r a d a qu ela n oit e, n a Ar en a S t . Nich ola s ,
qu a n d o d em os n os s o cor a çã o a o S en h or ?” Is r a el fez qu e
s im , b a ixa n d o os olh os p a r a o ch ã o. “Deu s en t r ou n o
s eu cor a çã o n a qu ela n oit e, Is r a el. E u s ei d is s o. Deu s fez
u m a cor d o com você e a in d a m a n t ém a s u a p a r t e d o
a cor d o. E le n ã o s e es qu eceu d e você, Is r a el. Você t em
fu gid o t od os es t es a n os , m a s a m ã o d ele a in d a es t á
sobre você.”
Pegu ei a Bíb lia : “No Velh o Tes t a m en t o t em a
história de um homem chamado Jacó. Ele também fugiu
d e Deu s . E n t ã o, u m a n oit e, exa t a m en t e com o es t a , ele
t eve u m a lu t a com u m a n jo. O a n jo ven ceu , e J a có
rendeu-s e a Deu s . Na qu ela n oit e Deu s m u d ou o s eu
nome. Não era mais Jacó — mas Israel. E Israel significa
“aquele que anda com Deus.”
Fech ei a Bíb lia e fiz u m a p a u s a , a n t es d e con t i-
n u a r . Os olh os d e Is r a el es t a va m m olh a d os , e Ros a
a p er t a va o s eu b r a ço. “Du r a n t e t od os es t es a n os , t enho
fica d o a cor d a d o d u r a n t e a n oit e, m u it a s vezes , or a n d o
p or você — p en s a n d o com o s er ia m a r a vilh os o s e
estivesse trabalhando ao meu lado — não como fazíamos
a n t es , m a s n a ob r a d e Deu s . Is r a el, es t a n oit e eu qu er o
qu e você p a s s e a a n d a r com Deu s . Qu er o qu e en t r e n o
território de Jesus.”
Is r a el olh ou -m e com os olh os r a s os d e á gu a .
Virou-s e e olh ou p a r a Ros a . E la es t a va con fu s a , e fa lou -
lh e em es p a n h ol. E u es t iver a fa la n d o em in glês , e vi qu e
Ros a n ã o com p r een d er a t u d o o qu e d is s er a . E la
perguntou-lhe o qu e eu qu er ia . Is r a el exp licou qu e eu
qu er ia qu e eles d es s em o cor a çã o p a r a Cr is t o. E le fa lou
r a p id a m en t e em es p a n h ol, con t a n d o-lh e d o s eu d es ejo
d e volt a r p a r a Deu s — com o ou t r or a J a có t eve von t a d e
de voltar ao lar, e perguntou-lhe se ela iria com ele.
E la s or r iu , e os s eu s olh os b r ilh a r a m , en qu a n t o
acenava que sim.
“Glór ia a Deu s !” gr it ei. “Ajoelh em -s e a o la d o d es te
sofá, enquanto oro.”
Is r a el e Ros a a joelh a r a m -s e a o la d o d o s ofá . Da -
n iel es cor r egou d a ca d eir a e a joelh ou -s e, d o ou t r o la d o
da sala. Coloquei as mãos sobre suas cabeças, e comecei
a or a r , p r im eir o em in glês , d ep ois em es panhol,
os cila n d o en t r e a s d u a s lín gu a s . S en t i o E s p ír it o d e
Deu s flu in d o a t r a vés d e m eu cor a çã o, m eu s b r a ços , e
m eu s d ed os , e a lca n ça n d o a s s u a s vid a s . Or ei, p ed in d o
a Deu s p a r a p er d oá -los e a b en çoá -los e r eceb ê-los n a
plenitude do seu reino.
Foi u m a or a çã o lon ga . Qu a n d o t er m in ei, ou vi Is -
r a el com eça r a or a r . Tem er os a m en t e a p r in cíp io, e
d ep ois com in t en s id a d e, ele cla m ou : “S en h or , p er d oa -
me. Perdoa-me. Perdoa-me.” Então a sua oração mudou,
e eu p u d e s en t ir n ova s for ça s a t u a n d o em s eu cor p o,
quando começou a dizer: “Senhor, muito obrigado.”
Ros a u n iu -s e à s u a or a çã o: “Ob r iga d o, S en h or ,
muito obrigado.”
Da n iel p ôs Is r a el e Ros a em u m t á xi, e p a gou a
cor r id a a t é o s eu a p a r t a m en t o n o Br on x. “Nick y” d is s e
ele lim p a n d o os olh os , en qu a n t o s e a fa s t a va m , “es t a foi
a m elh or n oit e d a m in h a vid a , e s in t o qu e Deu s va i
m a n d a r Is r a el p a r a a Ca lifór n ia p a r a t r a b a lh a r com
você.”
Con cor d ei. Pod e s er qu e s im . Deu s t em s em p r e
uma forma de cuidar de tudo.

Ep ílo go

Em uma tarde no fim da primavera, Nicky e Glória


descansavam nos degraus da frente do Centro, na Av. N.
Br oa d wa y, 2 2 1 , ob s er va n d o Ra lp h ie e Ka r l cor t a n d o a
gr a m a , en qu a n t o a n oit e s e a p r oxim a va . E s t a va qu a s e
n a h or a d o cu lt o a o a r livr e n o gu et o. No qu in t a l,
podiam-s e ou vir os s on s a legr es d e Da vi Ca r t er e J im m y
Ba ez r in d o p a r a Allen , J oly e Kir k , qu e joga va m b olin h a .
O ja n t a r t er m in a r a , e lá d en t r o Fr a n ces e An gie
s u p er vis ion a va m os ou t r os m en in os qu e t om a va m o
b a n h o d iá r io. Alicia e a p equ en a La u r a , a gor a com u m
a n o e qu a t r o m es es , b r in ca va m a legr em en t e n a gr a m a
recém cortada.
Glór ia es t a va s en t a d a em u m d egr a u m a is b a ixo,
olh a n d o com a fet o e p en s a t iva m en t e p a r a o s eu m a rido,
encostado numa coluna do balaustre com os olhos semi-
s er r a d os , com o s e es t ives s e p er d id o n o m u n d o d os
sonhos. Ela inclinou-se e colocou a mão no joelho dele.
“Qu er id o, o qu e h á ? E m qu e es t á p en s a n d o?” “O
qu e foi?” p er gu n t ou ele d is t r a íd o, r elu t a n d o em d eixa r
seus pensamentos.
“Qu a l o s eu s on h o a gor a ? Ain d a es t á fu gin d o? J á
t em os o Cen t r o p a r a os “p equ en os ”. Is r a el e Ros a es tão
m or a n d o em Fr es n o e s er vin d o a o S en h or . S on n y es t á
p a s t or ea n d o u m a gr a n d e igr eja em Los An geles . J im m y
es t á t r a b a lh a n d o com você e Ma r ia es t á s er vin d o a Deu s
em Nova Yor k . Na s em a n a qu e vem você va i p a r a a
S u écia e Din a m a r ca , p a r a p r ega r . Por qu e a in d a es t á
sonhando? O que mais poderia pedir a Deus?”
Nick y en d ir eit ou -s e e olh ou b em n o fu n d o d os
olh os in qu ir id or es d a com p a n h eir a . S u a voz t in h a u m
t om d is t a n t e, qu a n d o d is s e: “Nã o é o qu e eu p eço a
Deu s , qu er id a , m a s o qu e ele p ed e a m im . Com n os s o
trabalho estamos só arranhando a superfície.”
Hou ve u m a lon ga p a u s a . S ó os r u íd os d a s a t ivi-
d a d es a legr es s oa va m em t or n o d a ca s a . “Ma s , Nicky”,
d is s e Glór ia , m a n t en d o os olh os fixos n ele, “n ã o é t a r efa
s ó p a r a você. É a t a r efa d e t od os os cr is tãos — em t od a
parte.”
“S ei d is t o”, r es p on d eu Nick y. “Fico p en s a n d o em
t od a s a qu ela s en or m es igr eja s , n o cen t r o d a cid a d e, qu e
fica m va zia s d u r a n t e a s em a n a . Nã o s er ia m a r a vilhoso
s e a qu ela s s a la s d e a u la in ú t eis p u d es s em s er
t r a n s for m a d a s em d or m it ór ios p a r a s er ch eios d e
cen t en a s d e cr ia n ça s e a d oles cen t es d os gu et os , qu e
n u n ca s ou b er a m o qu e é a m or ? Ca d a igr eja p od er ia
tornar-se um Centro, dirigido por voluntários...”
“Nick y”, in t er r om p eu Glór ia , a p er t a n d o-lh e o joe-
lh o. “Você é u m s on h a d or . Você a ch a qu e os m em bros
d a qu ela s igr eja s vã o t r a n s for m a r os s eu s b elos p r éd ios
em d or m it ór ios p a r a cr ia n ça s p er d id a s e s em la r ? E les
qu er em p r es t a r a ju d a , m a s d es eja m qu e ou t r a s p es s oa s
o fa ça m em s eu lu ga r . Fica m ir r it a d os qu a n d o u m
b êb ed o p er t u r b a o s eu cu lt o. Im a gin e o qu e d ir ia m , s e
fos s em à igr eja cer t a m a n h ã d e d om in go, e
en con t r a s s em s eu “s a n t u á r io” p r ofa n a d o com ca m a s ,
ca t r es , e u m b a n d o d e ex-vicia d os em n a r cót icos e
ch eir a d or es d e cola n os s a gu ões d o t em p lo? Nã o, Nick y,
você é u m s on h a d or . E s s a gen t e n ã o qu er s u ja r a s
m ã os . Nã o d es eja m ver s eu s t a p et es s u jos com o p ó d e
pés descalços.”
Nicky balançou a cabeça. “Você tem razão, é claro.
Fico s em p r e im a gin a n d o o qu e J es u s fa r ia . S er á qu e ele
sujaria as mãos?”
E le p a r ou e olh ou p a r a a s m on t a n h a s d is t a n t es ,
r eflet in d o: “Você s e lem b r a d a via gem qu e fizem os n o
a n o p a s s a d o a Pon t a Lom a , n a b a ía d e S a n Diego?
Lembra-s e d a qu ele en or m e fa r ol? Du r a n t e m u it os a n os
ele t em or ien t a d o os n a vios qu e en t r a m n o p or t o, m a s
a gor a os tem p os m u d a r a m . Li n a s em a n a p a s s a d a qu e a
fu m a ça d a s fá b r ica s é t ã o es p es s a qu e eles p r ecis a m
con s t r u ir u m n ovo fa r ol b em p er t o d a á gu a , p a r a qu e a
luz possa passar por baixo das nuvens de fumaça.”
Glória ouvia atentamente.
“É is t o qu e es t á a con t ecen d o h oje em d ia . A igr eja
a in d a con t in u a com a s u a lu z b r ilh a n d o, b em a lt o.
Tod a via , p ou ca s p es s oa s con s egu em vê-la , p or qu e os
tempos mudaram, e há muita fumaça. Faz-se necessário
qu e u m a n ova lu z b r ilh e p er t o d o ch ã o — b em em b a ixo,
on d e o p ovo es t á . Nã o é s u ficien t e s er o gu a r d a d o fa r ol:
eu p r ecis o t a m b ém s er o p or t a d or d a lu z. Nã o, eu n ã o
estou fugindo mais. Só quero estar onde há ação.”
“Eu sei”, disse Glória, refletindo profunda alegria e
com p r een s ã o em s u a voz. “É is t o o qu e eu d es ejo p a ra
você. Ma s você t em d e p r os s egu ir s ozin h o. Você s a b e
disso, não sabe?”
“S ozin h o, n ã o”, d is s e Nick y, a b a ixa n d o-s e, e co-
loca n d o a s m ã os s ob r e a s d ela . “E s t a r ei a n d a n d o n o
território de Jesus.”
As r is a d a s d os ga r ot os n o qu in t a l t or n a r a m -se
m a is a lt a s ; eles t er m in a r a m o jogo e en t r a r a m . Ka r l e
Ralphie tinham pegado suas Bíblias, e estavam sentados
no meio-fio, defronte da casa.
Nick y b a ixou a ca b eça , e olh ou p a r a Glór ia . “Hoje
d e m a n h ã r eceb i u m t elefon em a d e u m a s en h or a d e
Pa s a d en a .” Pa r ou , es p er a n d o u m a r ea çã o. Glór ia
es p er ou qu e ele con t in u a s s e. “O filh o d e d oze a n os foi
a p a n h a d o p ela p olícia , p or qu e es t a va ven d en d o
m a con h a . O m a r id o d ela qu er qu e ele vá p a r a a ca deia.”
Nick y fez u m a p a u s a . “Ma s n ã o t em os lu ga r p a r a ele,
nem dinheiro para sustentá-lo.”
S ilên cio. Nick y ob s er va va u m p a r d a lzin h o qu e
p u la va n a gr a m a . S eu s olh os en ch er a m -s e d e lá gr imas,
en qu a n t o p en s a va n a cr ia n ça d es con h ecid a ... u m a en t r e
m ilh a r es d e ou t r a s ... fa m in ta s d e a m or ... d is p os t a a
en fr en t a r a ca d eia , s ó p a r a ch a m a r a a t en çã o d e
a lgu ém ... p r ocu r a n d o a lgu m a cois a r ea l... p r ocu r a n d o
Jesus, mesmo sem o saber...
Glór ia in t er r om p eu s eu s p en s a m en t os . “Nick y”,
d is s e ela s u a vem en t e, s eu s d ed os en t r ela ça d os com os
dele, “o que é que você vai fazer?”
Nick y s or r iu e olh ou -a n os olh os , d izen d o: Fa r ei o
que Jesus quer que eu faça. Vou me interessar.”
“Oh Nick y, Nick y...” d is s e Glór ia , en qu a n t o en -
la ça va s u a s p er n a s com os b r a ços . “E u o a m o! S em pre
há lugar para mais um. E Deus vai suprir o que faltar.”
J im m y t ir ou a Kom b i d a ga r a ge. Os m en in os su-
b ir a m n ela , p a r a ir a o cu lt o a o a r livr e n o gu et o. Nick y
p ôs Glór ia d e p é: “Va m os ! Dep r es s a ! E s t á n a h or a d e
realizar a obra de Jesus.”
E u es t a va p a r a com eça r a gr a va çã o d e u m p r o-
gr a m a n o es t ú d io d e r á d io, a o la d o d o m eu es cr it ório,
qu a n d o Nick y Cr u z en t r ou . Olh a n d o à s u a volt a , p a r a
assegurar-s e d e qu e n in gu ém m a is s e a ch a va a li, fech ou
a p or t a e ficou à m in h a fr en t e s ilen cios a m en t e, com os
om b r os cu r va d os , a s m ã os en fia d a s b em fu n d o n os
b ols os d a ca lça . S u a fa ce qu a s e n ã o t in h a exp r es s ã o,
em b or a , qu a n d o eu a es t u d ei, p er ceb es s e s in a is d e qu e
lutava para controlar suas emoções.
“Tom e”, d is s e ele la con ica m en t e, t ir a n d o va ga r o-
s a m en t e a s m ã os d os b ols os . Por a lgu n s in s t a n t es , eu
não sabia se devia ficar calma ou alarmada!
E n t ã o, s ob r e a m es a d ia n t e d e m im , Nick y com e-
çou a coloca r a m a is es t r a n h a coleçã o d e ob jet os qu e eu
já vir a . E le os id en t ifica va à m ed id a qu e os coloca va n a
m es a : u m a ga r r u ch a feit a em ca s a , u m p a r d e s oqu eir a s
qu e m e p a r ecer a m h or r íveis , u m p u n h a l d e ca b o d e
os s o, d u a s b olin h a s d e ch u m b o en gen h osamente
a m a r r a d a s n a p on t a d e u m ch icot e d e cou r o, e “os
apetrechos” — uma agulha hipodérmica, um conta-gotas
e u m a t a m p in h a d e cer veja p a r a fer ver a d r oga — a s
fer r a m en t a s in d is p en s á veis de um vicia d o em
psicotrópicos.
“Esta é a minha entrega final”, disse Nicky, com os
olhos brilhantes de decisão. Olhou para a mesa, tocando
ca d a u m d os ob jet os com a p on t a d os d ed os , com o n u m
a d eu s . “E u vivi p or eles . Min h a vid a d ep en d eu d eles .
Ma s a gor a m in h a n eces s id a d e ces s ou . E u os en t r ego a
ele.”
Ele os t er ia lit er a lm en t e coloca d o n a s m ã os d e
J es u s , fer id a s p elos cr a vos , s e is s o fos s e p os s ível.
Entregou-os a m im , com o a u m a es p écie d e d ep os itária.
Agora era minha vez de ficar emocionada.
Ain d a con s er vo a qu ela b iza r r a coleçã o. De vez em
qu a n d o eu a t om o en t r e a s m ã os p a r a r ecor d a r -m e d o
que foi Nicky Cruz... e do Deus cuja misericórdia e graça
fez dele o que ele é hoje em dia.

Kathryn Kuhlman
Pittsburg, Pensilvânia

***
Nicky Cruz

Notas da digitalizadora:

A história de David Wilkerson e Nicky foi também


contada no cinema, no filme A Cruz e o Punhal,
disponível em vídeo:
www.minasdeleitura.com.br/videosvhs/038.php

Leia mais sobre Kathryn Kuhlman, no livro Bom Dia


Espírito Santo, de Benny Hinn, também disponível no
PDL (Projeto de Democratização da Leitura):
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/portal.php
This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.
The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.
This page will not be added after purchasing Win2PDF.

Você também pode gostar