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LIVRE ESCOLHA (LIVRE-ARBÍTRIO)1

Em um sentido é porque nossas vontades estão livres que estamos num estado de
incapacidade moral. A matéria espinhosa da livre opção está ligada à maneira como nossa
vontade funciona. Em seu debate com Pelágio, Agostinho insistiu que o homem decaído
retém uma vontade livre (liberium arbitrium). Ele insistiu, no entanto, que pelo pecado
original o homem perde a liberdade (libertas) que desfrutava antes da queda. Na superfície
parece que Agostinho está fazendo brincadeiras de palavras. Como uma pessoa pode ter
uma vontade livre e não ter liberdade? Isso deve ser uma distinção sem uma diferença. A
distinção, no entanto, é tanto real como importante. O homem ainda tem a capacidade de
fazer escolhas e, neste sentido, ele está livre. Mas lhe falta a capacidade de exercer o que
a Escritura chama de "liberdade régia", a liberdade para obediência espiritual.
Calvino assumiu uma posição parecida com a de Agostinho: "Esta liberdade é
compatível com sermos depravados, servos do pecado, incapazes de fazer nada senão
pecar. Neste aspecto, então, o homem é dito ter livre-arbítrio, não porque tenha uma
escolha livre de bem e mal, mas porque age voluntariamente, e não por compulsão. Isto é
perfeitamente verdade: mas por que um assunto tão pequeno foi dignificado com tão
orgulhoso título? Uma liberdade admirável! Que o homem não é forçado a ser servo do
pecado, enquanto que é, no entanto, ethelodoulos (um escravo voluntário), sua vontade
sendo atada com as amarras do pecado".2
Embora Calvino afirmasse que somos capazes de escolher o que queremos, ele via
o termo livre escolha um tanto grandioso para o assunto. "Por que deveria tão pequeno
assunto", ele perguntou, "ter sido dignificado com tão ufano título?" O título é mesmo
enraizado em orgulho humano. Gostamos de pensar que temos mais poder moral do que
temos. Pensamos que nossa vontade não é nem um pouco afetada por pecado original.
Este é o ponto cardeal do humanismo. A óptica humanista e pagã de livre-arbítrio é que a
vontade age a partir de uma postura de indiferença. Por indiferença queremos dizer que a
vontade não está inclinada nem ao bem nem ao mal, mas existe em um estado de
neutralidade moral. A mente do homem decaído não tem nenhum preconcebido, nenhuma
predisposição ao mal. Essa visão de livre-arbítrio está num percurso de colisão com a visão
bíblica de pecado.

1Extraído de: SPROUL, Robert Charles. O Que É Teologia Reformada: seus fundamentos e pontos
principais de sua soteriologia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 112 - 115.
2Calvino, Institutes of the Christian Religion, 1.228-29 (2.2.6,7).
Jonathan Edwards definiu a vontade como "a mente escolhendo". Edwards não
negou que há uma distinção significativa entre a mente e a vontade. São faculdades
distintas. Embora a mente e a vontade possam ser distinguidas entre si, elas não podem
ser separadas uma da outra. Ações morais envolvem escolhas racionais. Uma escolha sem
a mente não é uma escolha moral. Plantas podem inclinar suas raízes em direção à água
por uma série de causas físicas. Mas nós não julgamos esse movimento em termos de
virtude ou vício. Essas ações são involuntárias. Nós também participamos em ações
involuntárias. Nós não decidimos quanto a ter nossos corações bombeando o sangue pelo
sistema circulatório. Esta é uma ação involuntária. O cérebro pode estar envolvido nesse
processo de um ponto superior fisiológico, mas não de um ponto de vantagem de decisão
consciente.
Quando Edwards falou da vontade como sendo "a mente escolhendo", ele quis dizer
que fazemos escolhas de acordo com o que calculamos ser preferível em termos das
opções diante de nós. Edwards concluiu que sempre escolhemos de acordo com a
inclinação que é mais forte no momento. Este é um discernimento crucial em se desvendar
a mente. Significa que toda escolha que fazemos tem uma causa antecedente. Nossas
opções não são "espontâneas", surgindo do nada. Há uma razão para cada escolha que
fazemos. Num senso estreito cada escolha que fazemos é determinada.
Dizer que nossas escolhas são "determinadas" soa muito como determinismo.
Determinismo, entretanto, quer dizer que nossas escolhas são controladas por forças
externas. Isso resulta em alguma forma de coerção, que cancela a livre escolha. O que
Edwards tinha em mente é algo diferente. Nossas escolhas são determinadas no sentido
que elas têm uma causa. Essa causa é a inclinação de nossa vontade. Isso é
autodeterminação, que é a própria essência da livre escolha. Se eu determino o que
escolho, isso não é determinismo, mas sim uma espécie de determinismo. Quando temos
forte sentimento sobre fazer algo, podemos exclamar: "Estou determinado a fazer isso". E
isso se refere a um desejo forte ou inclinação forte da vontade para mover em certa direção.
Quando Edwards diz que sempre escolhemos de acordo com nossa inclinação mais
forte no momento, ele quer dizer não só que podemos escolher o que mais queremos no
momento, mas que precisamos escolhê-lo. De fato, é exatamente assim que fazemos
escolhas. Tente se lembrar de uma escolha que você já fez que não estava de acordo com
sua inclinação mais forte na hora. Às vezes ficamos confusos sobre isso porque somos
assaltados por uma ampla variedade de inclinações, e elas mudam de intensidade de um
tempo a outro. Por exemplo, depois que terminamos uma refeição pesada, é fácil decidir
entrar num regime. Com estômagos cheios decidimos reduzir o consumo calórico. Depois
de algumas horas, porém, ficamos com fome de novo e o desejo por alimento se intensifica.
Quando chegamos a ponto de querer comer torta mais do que queremos perder peso,
talvez queiramos escolher a torta mais que o regime. Todas as coisas sendo iguais, talvez
queiramos perder o excesso de peso. Temos um desejo real de ser esbeltos. Mas esse
desejo ou inclinação surge contra nosso desejo por prazeres culinários. O problema é que
todas as coisas não continuam iguais.
Outro exemplo pode ser visto num esquete de Jack Benny, na TV. Benny foi
confrontado por um ladrão, que lhe disse: "Seu dinheiro ou sua vida".
Benny ficou parado, mudo, com uma expressão contemplativa no rosto.
Ficando impaciente, o ladrão disse: "Bem, qual é, seu dinheiro ou sua vida?"
"Eu estou pensando", Benny respondeu. "Estou pensando."
Esse caso enfatiza que nem sempre as coisas são iguais quando fazemos escolhas.
O ladrão reduz as opções da vítima a duas: dinheiro ou vida. Todas as coisas sendo iguais,
a vítima não tem nenhum desejo de doar seu dinheiro ao ladrão. Uma vez feita a ameaça
de morte, no entanto, os níveis de desejo mudam. A vítima tem um desejo maior de
continuar a viver do que de guardar sua carteira, então entrega seu dinheiro. É claro que
há um elemento de coerção nesse cenário, mas a coerção não é absoluta. É extrema, mas
não final. A escolha ainda está lá, de pagar ou morrer. Uma pessoa pode ter sentimentos
tão fortes contra o roubo que prefira morrer. Ela pode gritar: "Dê-me liberdade ou dê-me a
morte", mas sabe que mesmo que morra como mártir à sua causa, o ladrão ainda vai levar
seu dinheiro.
O ponto dessa ilustração é que escolhemos de acordo com nossa inclinação mais
forte naquele momento. Devemos entender isso à medida que procuramos crescer em
nossa obediência a Deus. Toda vez que peco, faço isso porque no momento prefiro o
pecado à obediência. Posso ter um desejo real em meu coração de ser obediente, mas
esse desejo entra em conflito com meus desejos pecaminosos. Esse é o dilema expresso
pelo apóstolo Paulo:

Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que
prefiro, e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é
boa. Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim.
Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o
querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que
prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.
- Romanos 7.15-19
Paulo está descrevendo o conflito que enfrentamos entre inclinações rivais, umas
para o bem e outras para o mal. "O bem que quero fazer", ele diz, "Eu não faço". Isto não
é contrário ao ponto de vista de Edwards que escolhemos de acordo com a inclinação mais
forte. Cristãos têm mesmo um desejo ou vontade de fazer o bem. Mas nem sempre fazemos
esse bem. Às vezes cedemos ao nosso desejo de mal. Não fazemos o que desejamos fazer
porque não queremos fazer o bem com suficiente intensidade ou força. Todo o processo
de santificação envolve essa luta. Paulo a compara com guerra, uma batalha titânica entre
o espírito e a carne.
A luta entre o espírito e a carne é a luta da pessoa regenerada. O homem não-
regenerado, natural, não tem tal luta. Ele está escravizado ao pecado, atuando conforme a
carne, vivendo conforme a carne e escolhendo conforme a carne. Ele escolhe de acordo
com a inclinação que é dominante no momento, e essa inclinação nunca é um desejo de
honrar a Deus a partir de um amor natural por ele. Os desejos dos não-regenerados são
maus continuamente. Essa é a escravidão ou morte espiritual com a qual a doutrina do
pecado original está preocupada.3

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Caso esse artigo tenha te interessado, procure ler o livro todo ou ao menos o capítulo 6 que fala sobre A Corrupção
Radical da Humanidade.

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