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Vendendo Psicodélico por Lebre

uma crítica ao dito uso religioso de substâncias alucinógenas


Por Eduardo Pinheiro

Neste texto procurarei descrever as falácias mais comuns na teoria de


que drogas alucinógenas proporcionam experiências genuinamente
religiosas. A princípio há dois pontos principais a serem completamente
elucidados, o primeiro é a própria definição do que seja uma experiência
religiosa, ou do que mereceria o título de religioso ou transcendente, e o
segundo é o abuso da justificativa antropológica e histórica desse uso.

É preciso aqui estabelecer que o escopo deste texto lida especificamente


com um tipo de obstáculo comum no caminho espiritual. Ele surge em
muitas tradições religiosas, independentemente de usarem ou não
alucinógenos. Chamo este obstáculo de "materialismo espiritual". Isto se
refere ao problema básico de enganar-se chamando de transcendência
algo que é apenas mais um jogo condicionado por regras arbitrárias.
Estas regras em geral são baseadas em emoções conflitantes e na
operação de padrões de hábito baseados numa percepção parcial, uma
interpretação delusiva (1) dos fenômenos.

Aponto ainda que uma crítica ao abuso de outras drogas, estimulantes


ou narcóticos, seria muito mais simples do que este combate ao
sofisticado engano de atribuir valor de conhecimento espiritual aos ditos
"estados alterados da consciência". O objetivo deste texto é focar
apenas o engano mais sutil, que é a falácia de espiritualizar o consumo
de alucinógenos. O grosseiro abuso recreativo ou dependência, mais
associados a outros tipos de drogas que não os alucinógenos, não serão
abordados aqui, muito embora estes sejam problemas muito mais
generalizados e freqüentemente também criticados sem habilidade.
Estes se manifestam amplamente através de substâncias facilmente
encontráveis e apoiadas pela publicidade e pela lei, como o açúcar, a
cafeína, o tabaco e o álcool. Ousaria dizer que a televisão e o
entretenimento industrializado também se enquadram neste segundo
tipo de abuso - de forma ainda mais comum e ampla - e ainda menos
habilmente criticada.

Basicamente com isso quero dizer que não usarei os pouco efetivos, e
até certo ponto realmente tolos, argumentos de saúde pública ou de
moralidade tradicional. Estes seriam facilmente atacáveis pelos
defensores do uso religioso de certas plantas, e embora possam fazer
sentido no abuso pouco pretensioso daqueles que não tentam se
justificar com uma busca religiosa, ainda assim geralmente são
claramente pouco efetivos mesmo nesses casos mais simples.
Todavia não esteja particularmente relacionada ao materialismo
espiritual, também será feita uma crítica à busca pelo simples deleite
sensorial. Ou seja, embora seja uma forma apenas materialista de
materialismo, o hedonismo dos que buscam as experiências psicodélicas
em geral acredita-se espiritual, portanto isso também será focado.
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1 A delusão se caracteriza por uma visão que naturalmente nos cega a
outras visões, é diferente de "ilusão", no sentido em que não postula
algo em relação a uma realidade ou irrealidade, mas sim um processo
de percepção limitada e que, portanto produz significado limitado.
Quando observamos uma pintura e vemos uma paisagem, esquecemos
que ela é papel e tinta, quando percebemos essas duas coisas,
esquecemos que ela é luz que nos chega aos olhos, e quando pensamos
nisso, provavelmente já esquecemos a paisagem. Delusão é que produz
a paisagem, o papel e a tinta e a luz que nos chega aos olhos, bem
como incontáveis outras percepções. Quando estamos fascinados por
uma, ignoramos todas as outras.

Crítica Embasada no Reconhecimento da Liberdade Inerente

Devemos procurar entender que o desejo por uma "alteração" em


princípio, por si só, independente de drogas ou quaisquer outros
mecanismos, é uma forma de afirmar-se que estávamos "errados", ou
que de alguma forma o estado anterior é menos desejável que o estado
posterior. O próprio uso da palavra: "estados" também indica que
estamos trabalhando com elementos parciais da natureza humana, e
enquanto falamos de transcendência, ela não pode estar limitada a um
nicho de um tipo qualquer de operação mental que tem um início, um
meio e um fim. Se houver uma transcendência que "altere", isso
significa que ela ainda refere-se a um padrão em oposição a outro
padrão, ou seja, estamos chamando de "transcendente" aquilo que está
sob condições. Se há condições, não há transcendência. Assim definimos
o que é "transcendente".

Muitas vezes podemos utilizar levianamente a palavra "religião" para


nos referirmos a manifestações culturais que eventualmente já podem
até ter perdido o verdadeiro significado de seus próprios objetivos. É
óbvio que estas manifestações também envelhecem e caducam. Mas na
verdade a palavra refere-se antes a isto que chamamos de
transcendência, ao que nos comunica com este absoluto inatacável por
fenômenos transitórios, mas que ainda assim é fonte de todos eles. A
palavra "transcendência" refere-se exatamente àquilo que é imutável,
indestrutível, indescritível, e que, por esse mesmo motivo, além de
quaisquer condições particulares. Religião é aquilo que revela essa
transcendência.

Nesse sentido a própria noção de um "aprendizado" ou de uma


"revelação" também se refere sempre aos aspectos mundanos, e é claro
que isto não está confinado à experiência com alucinógenos, mas é um
engano comum a muitas tradições religiosas. De fato poderíamos
acreditar que, se há entendimento desse processo todo, não há
problema em utilizar-se - temporariamente, e a guisa de introdução
para gerar familiaridade - da noção de um aprendizado ou da idéia de
que é preciso uma mudança ou alteração para haver religiosidade.

Por exemplo, de forma a tornar-se popular ou digerível, uma religião


que de fato possui o entendimento de que não há um "aprendizado da
transcendência", pode utilizar-se, por algum tempo, da idéia de um
aprendizado como forma de auxiliar aqueles que anseiam por alguma
espécie de alteração, para aos poucos demonstrar a liberdade que
sempre existiu e que naturalmente jaz além de qualquer alteração ou
aprendizado.

Porém, no caso específico dos alucinógenos, em geral não há esta


clareza nos discursos dos consumidores. O consumo geralmente se
justifica num aprendizado ou na ingenuidade de que algum tipo de
conhecimento transcendental possa ser obtido de um procedimento
particular, como a ingestão de uma planta ou pílula.

As pessoas escolhem este procedimento particular como forma de


"aprendizado" por duas razões interligadas. A primeira poderíamos
chamar de "paranóia do livre-pensador", que é a suposição de que um
conhecimento qualquer que seja ou tenha sido perseguido ou velado,
exatamente por ter sido tratado dessa forma, deva ter um conteúdo
mais eficaz ou genuíno. A segunda é o fato histórico e antropológico de
certas pessoas e culturas terem feito uso desses métodos. Assim surge
a idéia banal, porém de grande apelo estético, de que o conhecimento
que foi perseguido, mas utilizado por certos grupos e indivíduos, é muito
especial e dotado de poder espiritual.

Crítica Embasada na Repetição de Padrões

Todos nós estamos operando também segundo um processo cultural,


podemos ler sobre outras culturas e outros momentos históricos, e
podemos vir a acreditar que neste ou naquele processo algumas
pessoas encontraram uma "solução" para o "enigma" da realidade.
Acima tentei demonstrar que acreditar na existência de um enigma a ser
solucionado é como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Aquela
busca talvez faça muito sentido para ele, mas evidentemente o rabo vai
fugir o tempo todo. Como poderia ser diferente se é parte de seu corpo?

Eventualmente o argumento acima pode ser difícil, as pessoas só se


sentem seguras quando justificadas por uma neurose qualquer. Isto se
torna evidente porque o sofrimento e a confusão só surgem por
exercício da liberdade. Do ponto de vista da liberdade não há nada de
errado com todo este processo.

Pode parecer uma imagem metafórica extrema, mas os seres que


escolhem uma busca de estados alterados são seres que de fato
anseiam a liberdade de ficarem presos dentro de uma cela, um conjunto
particular de experiências. Realmente não podemos negar que isto é
uma liberdade, embora conhecendo uma pessoa assim talvez digamos
"que sujeito tolo, fica a vida inteira dentro daquele cubículo escuro!"
Eventualmente a pessoa que está dentro do cubículo acha que a pessoa
que está fora só pode estar enganada de alguma forma, pois o que faz
sentido dentro do exercício de liberdade daquela pessoa é ficar preso
dentro de padrões que ela reconhece, obviamente, como interessantes.

Aprisionada em seus padrões de hábito ela olha para aquele cubículo


com muito fascínio: a parede mofada mostra incontáveis configurações
irregulares, que surgem com singular beleza e cores saturadas. É
apenas uma parede, só mofo, mas parece que o significado último da
realidade está nessa experiência estética. Pouco depois algo mais nos
atrai o interesse, e vamos saltando de deleite sensorial em deleite
sensorial, até que esse deleite sensorial se banaliza. O caleidoscópio é
um brinquedo interessante, mas eventualmente nos entediamos com
ele. Dessa forma perdemos tempo, e pode ser que ainda surja a idéia de
que há algo mais a conhecer, e com isso surge a necessidade de
experimentar uma outra planta ou um outro ambiente. O processo de
repetição pode se dar assim, dessa forma simples, mas em geral está
ancorado em todo tipo de justificativas e planejamentos.

Pode ser também que rapidamente caiamos na experiência infernal dos


alucinógenos, onde o caos e a fragmentação realmente retiram qualquer
possibilidade de paz, e o "significado da realidade", tão buscado, acaba
surgindo como algo muito deprimente. Allen Ginsberg conta que estava
numa situação como esta, devido ao consumo de LSD. O sentido
convencional das coisas havia sido quebrado, o que pode parecer
interessante, mas o que ficou em seu lugar foi uma sensação de
desorientação e opressão contínua. Ele foi consultar com um grande
mestre espiritual na Índia, e este lhe disse "se parece bonito ou feio,
não interessa, não se apegue a isto". Claramente o problema dele não
era nem a experiência estética prazerosa do início, nem a confusão e
fragmentação do final, mas sim a própria ansiedade básica na busca de
uma alteração, ou seja, o materialismo espiritual.

Nesse sentido, muito embora culturas e personalidades históricas


tenham se utilizado de alucinógenos numa busca espiritual, ao que
parece muitos experimentos estavam vinculados a um equívoco com
relação à espiritualidade. Aldous Huxley aponta em seu livro "Portas da
Percepção" que a mescalina poderia ser um substituto eficaz para
produzir o mesmo tipo de experiências "religiosas" que provocariam o
jejum e a ascese em geral, inclusive causas naturais como delírios
provocados por febres. Ele argumenta que as pessoas no passado,
dadas a rezar com fervor imbuídas de grande fé, muito mais sujeitas a
comida estragada e em pouca quantidade, infecções mal curadas, e
mesmo alguma prática de ascese, eram muito mais sujeitas a visões,
comunicação com anjos, etc, do que o homem moderno.

Huxley peca ao reduzir a experiência religiosa a um subproduto da


biologia. Sem falar que foca aspectos bem pouco saudáveis. Nesse
raciocínio, em que precisaríamos passar fome, fazer autoflagelo ou
sofrer de febre para obter uma experiência religiosa, realmente parece
muito mais sensato utilizar-se de substâncias fisicamente inócuas como
o LSD. Mas o fato é que, sem negar o valor da espiritualidade de muitos
dos santos do passado que passaram por agonias semelhantes,
nenhuma dessas coisas garante uma experiência espiritual genuína. Há
incontáveis praticantes de ascese que estão apenas praticando
materialismo espiritual, bem como incontáveis pessoas que estão
apenas delirando conteúdo de novelas, sem nenhum anjo. E mesmo que
os anjos apareçam, ninguém garante que são uma experiência
realmente religiosa.

Aos olhos da ciência poderia parecer que a experiência religiosa e a


alucinação estão num mesmo patamar, mas essa associação só surge
de um mal-entendido quanto a natureza da religião, que busca
transcender os parâmetros delusivos ou temporários da realidade, e que
por sua vez, curiosamente, são o próprio objeto de estudo da ciência(2),
mas que de fato nada tem a ver com alucinações ou visões no sentido
científico dos termos.

Nesse sentido é importante salientar que Huxley entendia o valor da


experiência religiosa, mas o confundiu com seu fator coadjuvante, o
aspecto biológico que justifica uma explicação científica. Deveríamos
enfatizar que a saúde sim que parece um estado propício à experiência
religiosa genuína. Uma boa postura corporal, respiração sem solavancos
que permita uma fala harmoniosamente articulada e emoções lúcidas no
lidar com as outras pessoas, bem como uma sanidade básica é que de
fato parecem ótimos coadjuvantes a uma espiritualidade verdadeira. Os
excessos da ascese ou do hedonismo se enquadram em ansiedades ou
indolências, materialismo espiritual ou simples materialismo mundano.

Repito que encontramos estes erros em tradições que se utilizam ou não


de alucinógenos, e mesmo afirmaria que encontramos muitas pessoas
presas a estes estados, sem nunca lidar com alucinógenos, e que
afirmam participar de alguma tradição religiosa genuína, e que
provavelmente ostentam algum status dentro dessas tradições. São
erros realmente comuns no trato com o transcendente, o curioso é que
não fossem esses erros, a religião talvez não fosse necessária, e talvez
sem ela não houvessem esses erros. A religião realmente deveria ser
vista como um remédio, e num sentido mais amplo, deveria curar tanto
o "problema inicial" quanto os problemas causados por ela mesma.

Quanto a povos do passado ou nichos culturais do presente, evidente


que isso não justifica nada, pois por todo o lado povos e culturas
cometem erros, sem falar em indivíduos. O fato de algum povo ou
cultura endossar alguma prática não indica que ela seja benéfica. Com
base nesse tipo de idéia poderíamos argumentar que o assassinato ritual
praticado pelos povos pré-colombianos justificasse práticas similares nas
cidades de hoje, o que seria absurdo.

Dessa forma fica claro que repetir métodos e padrões de hábito


individuais, de outras pessoas ou de outras culturas não garante uma
experiência espiritual genuína.

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2 Nesse sentido a religião não é um objeto que possa ser estudado com
o método científico, pela própria definição dos termos. Elas ramos
complementares, e quando uma começa a estudar a outra esta
imediatamente deveria trocar para o nome oposto. Mas este estudo
sairia do assunto em foco.

Crítica Embasada na Estética

Este é outro argumento comum daqueles que defendem o uso religioso


de substâncias, ou seja, há um constante orgulho pelo reconhecimento
de uma realidade "mais ampla" que é velada aos outros. Isto também é
materialismo espiritual, e de fato o que parece "mais amplo", é apenas
uma sala um pouco maior. Em muitos casos acaba sendo ainda mais
apertada, mas evidentemente que há um certo orgulho em se enfurnar
nesse tipo de experiência.

O reconhecimento da verdadeira natureza dos fenômenos não envolve


qualquer tipo de artificialidade, porque este reconhecimento é, enfim, a
própria fonte das artificialidades: não há como o olho ver a si mesmo
diretamente. Não há salas maiores e menores nesse reconhecimento, e
transitar entre uma sala ("estado") e outra não é liberdade por si só, a
liberdade está em reconhecer aquilo que está na base do surgimento de
todas as "salas", mas que não está preso a nenhuma delas, não busca
nenhuma delas em especial - simplesmente exerce a liberdade no que
quer que surja.

Nenhum padrão convencional ou anticonvencional de existência ou estilo


de vida é por si só liberdade. A pessoa que se utiliza desses métodos
muitas vezes deseja ser diferente de alguma forma. Aqui lembramos do
filme, onde alguém diz a uma multidão "Vocês todos são diferentes!" e
uma figura isolada no mar de pessoas levanta o braço e diz "Eu não!".
Ou seja, é basicamente o "papo-cabeça" ordinário, se todos tentam ser
diferentes, estão apenas todos sendo iguais.

Se nos parece que uma outra cultura ou indivíduo encontrou métodos


sofisticados de lidar com a realidade, e desejamos nos vincular a estes
métodos, estamos apenas repetindo padrões, não estamos sendo
verdadeiramente criativos. Algumas vezes um determinado povo
indígena pode nos parecer muito sábio e muito injustiçado. É dito
primitivo, mas nós sabemos que na verdade eles conhecem ou
conheciam aspectos muito sutis da realidade e métodos muito efetivos
de vivenciar estes aspectos. Então estudamos botânica étnica talvez, ou
rapidamente chegamos a conclusão de que a violenta sociedade
industrial não sabe de nada, e que menospreza e transformam em vilões
estes que são os verdadeiros especialistas da mente humana.

De fato não temos motivo nenhum para defender e atacar o que quer
que seja, porque nenhuma dessas polaridades vai produzir liberdade.
Vamos estar constantemente em busca de um paraíso perdido, e nesta
busca permaneceremos em constante atrito com o ambiente ao nosso
redor.

Isso na verdade é algo muito difícil de relatar, porque realmente há


povos injustiçados, e a nossa cultura global professa valores dos mais
absurdos e têm alterado o ambiente de forma incontrolável em grande
escala. Mas reitero que não temos motivo nenhum para defender ou
atacar o que quer que seja, não há culpados e inocentes num processo
global - nossos descendentes iriam culpar a quem? Os cadáveres do
passado?

Todos conhecem os abusos da religião organizada, e existem tradições


que não têm clareza sobre o processo do materialismo espiritual em
nenhum ponto de suas doutrinas. De fato poderíamos criticar certas
tradições e práticas com base nesse exato equívoco aprisionador: a
crença de que a "redenção" ou "iluminação" está presa a um processo
causal e atribuída a um ponto em especial dentro de uma linha
temporal. Isso por si só mostraria que o objetivo dessas tradições é
apenas falsamente religioso, apenas materialismo espiritual. Porém é
interessante salientar que o objetivo da religião pode se desviar, mas
que é originalmente algo realmente importante e essencial, e que
produz de fato nos seres humanos o sentido de liberdade e significado
últimos. "O abuso não pode ser argumento contra o uso devido", às
vezes dizem com relação aos alucinógenos - seria melhor antes dizer
com relação a religião, mesmo a organizada e decadente.

A religião e a arte surgiram juntas, e se separaram com o culto ao


indivíduo dos últimos séculos. Nada há de errado com a essência de
qualquer uma das duas, mas ambas contém armadilhas, e talvez seja
essencial entender esses aspectos. Em especial a arte denuncia a
delusão de uma forma inequívoca, enquanto que a religião provê os
meios para que a liberdade seja exercida em meio a ela. Tudo que se
desvia disso talvez não seja muito interessante.

Alucinógenos São Tolos

Uma experiência produzida por alucinógenos pode ser indescritível, mas


certamente que não é imutável ou indestrutível. Qualquer fenômeno por
si só, e nenhum em especial, é naturalmente indescritível em sua
totalidade, embora possa durar apenas um piscar de olhos. Não há nada
de especial numa alucinação, ela é apenas uma super-delusão.

Os envolvidos numa busca de conhecimento estão apenas confessando


que não o possuíam em primeiro lugar, isto por si só é uma espécie de
falha em nossa auto-estima. Um conhecimento que pode ser obtido
pode ser perdido: podemos esquecer, podemos mudar de idéia. O
conhecimento transcendente sempre esteve presente, e não há uma
"revelação" no sentido dual da palavra. A revelação é o reconhecimento
de que ele sempre esteve presente - o "problema" é que este
reconhecimento sim é algo que ainda pode ser perdido. Apenas o
conhecimento transcendental não pode ser perdido, e na verdade do
ponto de vista dele, mesmo a impressão de perda ou reconhecimento,
com uma determinada duração ou intermitente, não pode ser
considerada justificativa para nossas ações, ou fonte de nossos
significados. Isto é o mais importante.

A experiência completa em si é o nosso refúgio, o eixo pelo qual


estabelecemos nossas ações e estabelecemos nossos significados - se
nos baseamos naquilo que é instável, os resultados serão instáveis e
intermitentes entre o bom e o ruim, os significados serão fragmentados,
caóticos. É apenas questão de saber onde colocar a confiança.

Os envolvidos numa busca de deleite sensorial estão apenas


confessando a feiúra de sua percepção convencional. De fato a beleza é
um valor verdadeiramente transcendente por si só, e tampouco exige
qualquer alteração.

É muito importante não desviar da realidade definitiva que está além


dos conceitos, além de qualquer condição ou particularidade, além de
qualquer "alteração" ou "estado". Além mesmo da limitação de uma
consciência, e por isso mesmo, livre para se manifestar como
consciência, sem perder nenhuma de suas qualidades de liberdade em
nenhum momento do passado, do presente ou do futuro.

Esta liberdade funciona dessa forma independentemente de qualquer


mecanismo que se use para se relacionar com ela, e, portanto é muito
importante não dar prioridade a estes mecanismos. De fato, em geral
são os próprios mecanismos de todo o tipo, tentativas, esforços,
planejamentos, buscas, estudos minuciosos, que nos fascinam
momentaneamente e depois se provam amargos. Isto é assim
simplesmente porque estivemos jogando xadrez ou procurando alguma
nova pedra filosofal a noite toda, e esquecemos a bela mulher na cama
ou de lavar os pratos. Nos descobrimos exaustos em nossas
maquinações mesquinhas e descansamos o corpo em nosso túmulo de
estupidez, com baratas na pia e um amor insatisfeito. Seria preferível
apenas viver ou ainda precisamos encontrar uma fórmula ou algum
insight para viver?

Esta é a falácia básica de acreditar uma solução final baseada em uma


substância particular, ou mais amplamente, numa revelação particular.
Simplificando, é a apenas a estupidez de um bêbado procurando a
chave de uma porta que já está aberta.

Todos nós, operando segundo um processo biológico, já estamos


operando uma "viagem" particular. Podemos acreditar que introduzindo
novas substâncias no cérebro ou alterando as que ali existem
chegaremos a uma "realidade" melhor ou mais iluminada do que a que
vivemos normalmente. Com ou sem drogas podemos passar muito
tempo "viajando" para inúmeras realidades, todas condicionadas, mas
enfim, estamos apenas exercendo a liberdade que já estava ali - porém
tropeçando em uma certa ansiedade. O lugar ao qual aspiramos sempre
esteve conosco, não é necessário dar um só passo.

Embora não haja nada de intrinsecamente errado com essa viagem,


eventualmente podemos vir a acreditar que somos capazes de encontrar
algum significado último confinado em alguma destas experiências, ou a
quimera de uma "terra prometida", uma realidade definitiva. Mas
enquanto ofuscados por esta miragem, esquecemos do significado
natural, independente de experiências e jamais confinado, livre, que
está, e sempre esteve, sob nosso próprio nariz.

Eventualmente pode vir a parecer interessante sobrepor delusões, até


mesmo construir uma super-delusão, já que a delusão
convencionalmente nos parece a fonte do significado. Não percebemos
que ela é a fonte da ansiedade e da confusão! Isso é assim mesmo que
consideremos que a delusão é uma manifestação de liberdade, e que
uma super-delusão seja uma manifestação de superliberdade. De fato,
em sua raiz, são isto mesmo, mas a diferenciação entre graus de
complexidade já é, por si só, uma outra camada de delusão operando.
No fundo não há real necessidade de nenhuma manipulação de qualquer
tipo.

Assim podemos esclarecer o mito do gênese, onde a serpente tenta Eva


a comer o fruto (segundo autores psicodélicos, o próprio "soma", ou o
cogumelo Amanita Muscaria). Este é o fruto do conhecimento, da
discriminação, e dele surge o bem e o mal. Usando ou não drogas,
temos nos alimentado desse fruto. Então precisamos reconhecê-lo como
tal e usufruir dele, estando livres dele. Para isto nenhum apetrecho,
substância ou ensinamento adicional são necessários. Ou seja, se
tentamos obter isto através de uma experiência qualquer, estamos
novamente ansiosamente tentando alcançar uma liberdade que já está
completa, e só vamos perder tempo e nos desgastar nessa busca.

Isso prosseguirá indefinidamente, a não ser que o reconhecimento brote


da natureza espontaneamente livre e abandonemos quaisquer
ansiedades e jogos para alcançarmos instantaneamente a "versão
definitiva" da realidade, que nunca, sob hipótese alguma, poderia ter
deixado de ser, nem por um instante, a própria versão definitiva da
realidade.
Possamos todos usufruir de uma mente livre de alterações, natural.

...
Aos 13 anos li "Portas da Percepção", ansiei pela experiência psicodélica
até os 20 anos, quando experimentei LSD e algumas plantas. Não tive
experiências muito assustadoras, bad-trips, mas logo percebi a
futilidade de experimentos desse tipo e seu potencial perigo. Cheguei
sim a ficar um pouco mais desorientado do que o usual.

Que todos os seres possam transcender o eternalismo, que os leva a


acreditar que nada pode dar errado e que as coisas são irrevogáveis, e o
niilismo, que mata as boas iniciativas e que diz que tudo é ilusão. Que
também transcendam o cinismo, que os afasta daquilo que é puro e
íntegro, e que enfim ajam sem apego, aversão ou indiferença para com
todos os seres e fenômenos. Que encontrem o eixo do absoluto e que se
refugiem em suas bênçãos, levando rapidamente todos os seres a este
reconhecimento. Dedico os méritos da produção desse texto aos seres
que penetram nas mais difíceis circunstâncias para ajudar outros que lá
estão aprisionados em grande sofrimento. Homenagem à brilhante
corporificação de intensa ira que doma os seres de todas as formas
necessárias!

Eduardo Pinheiro, Porto Alegre 1.9.2000.

...
As seguintes perguntas foram formuladas devido a divulgação do texto
em listas de discussão na internet.

PERGUNTA: Não acho que o objetivo da religião seja sempre a


transcendência. Isso ocorre mais nas religiões orientais como o budismo
e hinduísmo. Nas ocidentais acho que o objetivo seja a ligação com um
arquétipo.

RESPOSTA: Bem, as pessoas podem usar outros critérios para definir


religião ou transcendência, o que eu estabeleci parece estar de acordo
com a maioria das religiões. Existe a noção de que a transcendência é
um lugar diferente daqui, um céu, por exemplo, mas mesmo no
cristianismo, essa idéia já não é tratada de forma tão literal. No caso em
que haveria uma terra prometida ou algum estado de transcendência
que não incluísse tudo isso que conhecemos como "mundano", esta já
não seria uma transcendência verdadeira. Então acredito que a noção
judaico/cristã de Deus, na sua teologia mais sutil, é transcendente no
sentido que estabeleci.
Na verdade há arquétipos transcendentes e arquétipos de um tipo mais
mundano, e vemos religiões tanto ocidentais quanto orientais utilizando
ambos, com objetivos igualmente tanto mundanos quanto
transcendentes.

PERGUNTA: A palavra religião não vem do religare que é voltar-se a


unir, como isso se explicaria de acordo com a definição do texto?

RESPOSTA: Já vi outras etimologias para essa palavra, mas mesmo


tomando em consideração o religare, certamente que reconhecemos o
que já está conosco, e esse é o sentido de integração" (em inglês talvez
soe melhor, "wholeness"), ou de reconhecimento do que não pode ter
sido perdido em nenhum instante.

PERGUNTA: Quanto ao trecho: "Devemos procurar entender que o


desejo por uma 'alteração' em princípio, por si só, independente de
drogas ou quaisquer outros mecanismos, é uma forma de afirmar-se
que estávamos errados, ou que de alguma forma o estado anterior é
menos desejável que o estado posterior". Isso significa que não posso
me inclinar para ambos estados? Ou que os dois não possam estar
"certos"?

RESPOSTA: Se há um estado em relação a um outro, é porque não há


transcendência. De fato a transcendência compreende também a
multiplicidade de estados, mas está num substrato além de
singularidade e de pluralidade, portanto se há uma ânsia de buscar um
estado em detrimento do outro, isso configura aprisionamento. Por
outro lado, se de fato percebemos um em detrimento do outro, mesmo
que haja "indiferença" com relação aos valores expostos, isso já
configura alguma confusão. E de fato exige algum iniciativa em você
procurar e tomar drogas, essa iniciativa vem de onde? Então de fato se
tomaria drogas por nenhum objetivo em particular? Nem prazer nem
espiritualidade? Seria apenas um "acidente"? Não creio que essa
pergunta seja mais do que retórica vazia sem relação com a realidade.

PERGUNTA: A transcendência não pode estar associada à alteração? Os


estados alterados não nos guiam até ela? Ela pode ser imutável,
indestrutível, indescritível, mas nós não somos. Sendo apenas humanos,
nossa comunicação com o estado transcendental não seria afetada por
condições particulares?

RESPOSTA: Se estamos focados na condição humana em particular não


há liberdade verdadeira, embora este "cubículo escuro" que é nosso
corpo e nossa vida cotidiana possam em verdade ser utilizados
espiritualmente. A experiência do cubículo (um corpo humano ou
psicodélico, qualquer experiência particular) como afirmei, também é
uma manifestação de liberdade. Mas em muitos casos essa liberdade
não é reconhecida, e isso pode se tornar a origem dos problemas, ou do
"Problema". É um tanto raro uma pessoa não chegar ao fim da vida de
certa forma amargurada com a existência, e há muitas pessoas
deprimidas em outras condições. Portanto se o absoluto não é
reconhecido, não há mínima chance de estar-se livre. E a ironia é que
ele permeia tudo - o que aprisiona os seres a um sofrimento delusivo, é
que eles se fixam em particularidades delusivas. Exatamente por isso
ser feito em geral de forma "inconsciente" ou baseadas em padrões e
hábitos, é que dizemos que está aprisionado. O ponto aqui seria com
relação aos ditos "estados alterados", que são apenas uma forma
biológica de buscarmos o reconhecimento da transcendência. Também
centrei minha argumentação no fato da pessoa escolher trilhar este tipo
de busca espiritual em detrimento de outra. Esta escolha certamente é
baseada em parâmetros delusivos.

Portanto as condições particulares afetam o ser humano aprisionado.


Portanto as drogas podem ser utilizadas com fins mundanos, como
qualquer psiquiatra sabe, mas não se prestam a fins transcendentes,
exatamente porque nenhuma condição particular afeta o ser humano
naturalmente livre desde o princípio sem princípio.

PERGUNTA: Concordo que as alucinações não sejam transcendentes,


mas não há algo, além disso, na experiência psicodélica que leve a
transcendência?

RESPOSTA: Os estados particulares produzidos por um agente causal


estão dentro da causalidade, e, portanto não são transcendentes, visto
que a transcendência está além da causalidade, embora a contenha.
Então qualquer prática espiritual que vise um resultado, não é
transcendente mesmo que o resultado visado seja a transcendência. Por
exemplo, podemos falar também da meditação. Diz-se que há centenas
de estados equivocados em meditação, e de fato poderíamos escrever
um texto como esse criticando a prática de meditação, utilizada por
várias religiões orientais, e mesmo algumas ocidentais. Esse "algo a
mais" da experiência psicodélica é, no máximo, um desses estados
equivocados produzidos pela meditação. Chega-se a essa conclusão
verificando que um agente causal produz resultados, e a transcendência
está além de causas e resultados. Se você obter um estado "novo", e
disser "agora sim é o real", este estado "novo" será certamente
delusivo. A transcendência é "retroativa", a pessoa pensaria algo como
"sim, sempre foi assim", e fica óbvio que ela não esteve sob influência
de drogas o tempo todo.

PERGUNTA: Acredito que na experiência psicodélica haja algo mais do


que meras alucinações. Esse "algo mais" não poderia ser uma ampliação
da percepção?

RESPOSTAL: Essa pergunta é semelhante a anterior. Tentei passar em


meu texto a idéia de alucinógenos como algo redutor, não amplificador,
porque de fato se consideramos que estamos buscando uma experiência
qualquer, isso é uma redução, não uma ampliação. Temos a idéia de
Huxley, por exemplo, de que quando o cérebro se intoxica de mescalina
ou "moksha", ele deixaria de operar pelas "portas usuais", e está aberto
a uma "porta infinita". Essa é uma idéia estranha, para dizer o mínimo.
Então tiramos os olhos e ouvidos, os outros três sentidos, e percebemos
mais? Talvez não seja exatamente assim, não precisamos embaralhar a
biologia do cérebro para ter acesso a mente que opera além da biologia.

Outro exemplo mais claro, quando algumas pessoas usam alucinógenos


pode surgir um efeito que não lembro o nome, mas é a confusão dos
sentidos: ou seja, parece que vemos sons ou ouvimos imagens, etc. O
que há de transcendente nisso?

Pode parecer que é uma miríade de novas descobertas, mas isso


justamente é o caleidoscópio de que estava falando. Ele não é só uma
metáfora para simples imagens super-coloridas que se veja com drogas,
é enfim uma metáfora para todas as idéias que surgem em padrões
"geométricos". A pessoa olha para uma flor (como no livro de Huxley) e
passa horas percebendo detalhes inacreditáveis, e fala de experiência
religiosa. Ela acredita que essa experiência seja religiosa. Então
dizermos que temos uma dita "ampliação da percepção" (da qual eu
duvido por si só) caracteriza uma experiência religiosa, isso não parece
correto. Todas essas descobertas dos psicodélicos são apenas novas
camadas de delusão. A pessoa pensa que está livre dos padrões
habituais, mas criou padrões piores: não habituais! O melhor é não se
guiar por padrões, habituais ou não usuais, tanto faz.

PERGUNTA: Ao invés de transcendência, não seria melhor descrever a


busca dos que usam psicodélicos como "ver o mundo de uma nova
maneira", provocando mudanças espirituais?

RESPOSTA: Essa pergunta é semelhante as duas anteriores.


Curiosamente usei as metáforas de cores saturadas e paredes mofadas
para representar qualquer "nova" maneira de ver o mundo. Tentei
explicar no texto, mas sem usar essas exatas palavras, que novas
maneiras de ver o mundo não são liberdade: nem as novas nem as
antigas. Buscar qualquer processo seja jejum ou alucinógenos com a
motivação equivocada (ou seja, obter algo que já temos naturalmente)
só leva a sofrimento.

Em termos de psicodélicos não existe literatura mais sofisticada do que


o próprio "Portas da Percepção", e não há idéia mais original e bem
executada do que o "Psychedelic Experience" do Tim Leary. A crítica do
meu texto baseou-se nestes livros, portanto lida com o aspecto mais
sofisticado focado pela comunidade dos psicodélicos.

"Mudança espiritual" não é algo a ser buscado, visto que se o estado


completo não estivesse presente desde o tempo sem princípio, não
haveria espiritualidade verdadeira. Nesse sentido, quando alcançamos a
visão pura das coisas, olhamos para nosso passado e tudo o que
fizemos sempre foi liberdade - porém, se operamos através de
fascinação e delusão, os sofrimentos correspondentes surgirão, e nos
arrependeremos fortemente de certas ações do passado, sem conseguir
evitar as conseqüentes complicações no futuro. A liberdade só é obtida
por um "salto quântico", uma ação não-causal - e, portanto nada pode
provocá-la (o que a tornaria causal). Todas as conquistas obtidas
através de causas se corroem e finalmente se desagregam. Um exemplo
claro é ingerir algo para obter algo, seja o que for, mudança, visão,
paraíso perdido, transcendência, prazer - se há um jogo com a
realidade, esse é um jogo que não vai ser sempre ganho. Porém, se por
uma ação não-causal penetramos numa região além dos jogos - tanto
dos convencionais quando dos anticonvencionais, tanto dos "antigos"
quanto dos "novos", tanto dos da "sociedade" quando dos do
"indivíduo", de todos eles enfim -, enfim reconhecemos a liberdade.

De fato, da mesma forma que uma droga não pode produzir liberdade,
um texto também não pode fazê-lo - repito: a liberdade não pode ser
produto de uma ação causal, basta reconhecê-la. Esse "basta
reconhecê-la" é o máximo que se pode obter com palavras
convencionais, mas se a pessoa lê e não reconhece, isso não é surpresa.
Mas é bom que se perceba que não é através de drogas,
especificamente, que vamos obtê-la, e esse é o objetivo do texto.

Por outro lado seria realmente ótimo que antes deste próximo ponto
final ela viesse a reconhecê-la, inequívoca. Isso pode ter acontecido, e
os pontos finais ainda assim continuam surgindo.
PERGUNTA: Quem garante que a percepção que tens hoje (e a tua visão
lúcida da realidade) não foi acelerada pelo uso transformador e
consciente das drogas?

RESPOSTA: Minha percepção é lúcida? Com que parâmetro se mede


isso?

Realmente confesso que tive poucos problemas com drogas porque meu
uso era apenas materialismo espiritual, não chegou a tornar-se um
hábito e um apego a um estado mental específico (para o qual uso a
metáfora de um cubículo com paredes mofadas). Esse é um problema
comum, e um bocado grave, de grande parte das pessoas que utilizam
quaisquer drogas, inclusive os "religiosos" alucinógenos. Muitas delas
padecem do apego ao estado mental, que é ainda pior do que qualquer
dependência química, pois eventualmente mesmo sem a droga ficamos
sempre voltando e voltando ao mesmo cubículo com paredes mofadas.
O materialismo espiritual por outro lado é o começo e o fim do caminho
espiritual. De certa forma ele é o próprio caminho espiritual - quando o
materialismo espiritual acaba, não há mais caminho espiritual, apenas
liberdade.

Sempre me considerei muito esperto, e achava muito esperto utilizar


alucinógenos. Hoje eu tenho bons motivos para não considerar isso
muito esperto. A esperteza é sempre a mesma, mas eu não uso mais
alucinógenos. Às vezes eu olho para pessoas que estão fazendo as
mesmas coisas que eu fazia e penso "mas que tola essa pessoa, o que
falta para ela alcançar essa grande lucidez que eu tenho agora?" Mas
isso também não é propriamente correto, a pessoa acha que é muito
esperta ao criar um cubículo mofado para si, e de certa forma temos
que respeitar a liberdade da pessoa em criar este cubículo, devemos
respeitar essa "esperteza". A única coisa que me faz criticar esta
"liberdade" específica é a lucidez que sempre tive, a mesma lucidez que
tornou os alucinógenos algo interessante, agora tem argumentos para
torná-los desinteressantes, e o que interessa é a liberdade, não os
interesses e desinteresses. Então exerço a liberdade de criticá-los.

Não há um aspecto "transformador" da experiência que possa ser


apontado. Continuamente podemos apontar delusões que chamamos de
transformações, mas não conseguiríamos apontar suas causas, pois elas
surgem do estado natural, e não precisam realmente de catalisadores.
Percebemos catalisadores devido a novas camadas de delusão.

Quanto a ânsia por uma transformação, isso obviamente se enquadra no


termo "materialismo espiritual". Também o uso "consciente" é algo
completamente subjetivo, e geralmente está ligado ao simples orgulho:
"os outros usam inconseqüentemente, mas eu conheço do assunto e sei
o que estou fazendo". Todas as pessoas se acham muito espertas
realmente.

Para concluir, também já fui fã do palhaço Bozo, e acho que ele me


ajudou imensamente - ainda mais do que qualquer droga - a acelerar
minha "grande lucidez". Infelizmente, hoje não sou mais fã do palhaço.
Por outro lado, no momento, não vou exercer a liberdade de criticar o
Bozo, esse incomensurável catalisador de experiências de
"transformação" e "crescimento"...

Além do que, realmente, ninguém garante que minha visão fosse lúcida
em qualquer momento, nem agora. Não há quaisquer garantias.
Particularmente não fico espreitando minha própria lucidez ou esperteza
para ver se as apanho em erros e acertos. Seria um cachorro correndo
atrás do próprio rabo.

PERGUNTA: No seu caso pessoal o que tu descobristes com os


alucinógenos?

RESPOSTA: Descobri que não precisava tê-los utilizado. Esse foi o


grande insight que eles me deram.

PERGUNTA: Talvez não tenhas feito experiências realmente sérias e


eficazes com psicodélicos, talvez não os conheça a fundo e não saiba o
que eles podem ou não proporcionar.

RESPOSTA: Eu acreditava estar fazendo experiências seríssimas, mas


não sei qual seria o padrão de seriedade das diversas pessoas. Por
exemplo, particularmente considero muito mais sério o trabalho de um
Ken Kesey do que o de um Terence McKenna, e aliás, considerava o
aspecto "pouco sério" das drogas mais uma das coisas que me
interessavam nelas. Acredito que parâmetros se "seriedade" configurem
apenas materialismo espiritual, seja do que estivermos falando, drogas
ou liturgias.

Por outro lado a lógica desse texto não exigiria que eu sequer tivesse
experimentado drogas, pois sendo a transcendência algo não-causal,
não pode ser obtida de forma particular por fontes externas ou por
alterações na biologia do cérebro. O simples fato de tratarmos de uma
"obtenção" já seria problemático. Mas acredito que o fato de que eu
realmente as experimentei e estudei, num âmbito que considero "sério"
o suficiente, possa ajudar na minha argumentação.

PERGUNTA: Que plantas utilizastes?

RESPOSTA: Todas que pude obter pelo correio e mais algumas. Estudei
todos os manuais de etnobotânica disponíveis e conversei com
especialistas. Não acho apropriado citar o nome das plantas. Usei
sintéticos como o LSD também.

PERGUNTA: Carlos Castañeda diz que as drogas lidam com a "primeira


atenção" que é nossa curiosidade mais básica, se ele não tivesse
despertado para a primeira atenção, jamais teria se interessado em
desenvolver a segunda e a terceira. As drogas não ajudariam de alguma
forma nesse sentido?

RESPOSTA: Quando falamos em "níveis de atenção" isso por si só já


caracteriza materialismo espiritual. Carlos Castañeda pode falar muitas
coisas interessantes, mas temos que despi-lo de fascinação e ver o que
ele produz nas pessoas. Ele próprio talvez tenha se beneficiado de seu
relacionamento com Don Juan, de qualquer forma é uma coisa que só
ele pode saber. Mas mesmo que ele tenha se beneficiado, pode ser que
seus leitores em geral não encontrem esse benefício. Ele pode até ter
valor e pode fazer sentido, mas certamente que esse sentido e valor não
são absolutos, e o fato de nos identificarmos ou buscarmos nos
relacionar com o caminho dele já indica uma tendência particular da
nossa parte. Devemos observar essa tendência ao invés de acreditar
cegamente que o caminho dele produz bons frutos.

Porque preferimos ele ao Osho ou o Papa João Paulo II? Isso é algo
importante de analisar. Se desconfiamos do Papa ou do Osho, devemos
desconfiar do Castañeda também. E a confiança só surge na medida do
benefício, ou seja, observamos o que eles dizem, continuamos
praticando o que é bom, e abandonamos o que não parece tão
interessante. É também importante perceber que realmente há mestres
equivocados e pessoas confusas que se passam por sábias - às vezes as
pessoas não consideram este fato simples. Pode ser que o Castañeda
seja um mestre legítimo e benéfico, eu lhe daria no mínimo o benefício
da dúvida. Particularmente li todos os seus livros, por um curto tempo
me encantei, depois me desiludi. Ao que parece, conhecer alguém como
Don Juan poderia ser muito interessante, mas ler sobre isso e tentar
praticar por conta, pessoalmente não me foi muito produtivo. Talvez
para outras pessoas seja de maior benefício. É uma possibilidade.
Por outro lado, facilmente vejo tudo como uma fraude.

Enfim, as drogas podem em alguns casos ajudar, da mesma forma que


perder um filho num acidente de trânsito ou tomar um café no bar da
esquina, podem, sob certas circunstâncias, ajudar. Não é o fenômeno
que determina o benefício, mas sim a liberdade. Se há liberdade, comer
uma azeitona é benéfico, se não há liberdade, comer a mesmíssima
azeitona não é benéfico - pode ser trágico. Pessoas que estão com
doenças terminais e um prazo determinado para morrer geralmente
desenvolvem rapidamente uma espiritualidade, ou caem em extrema
confusão e depressão. Da mesma forma com as drogas. Porém ninguém
provocaria um câncer para aprender espiritualidade, mas eventualmente
para algumas pessoas, por razões as mais estranhas, acaba parecendo
interessante ingerir certas plantas que provocam caos no processo
cerebral para atingir o mesmo fim. É a mesma situação em ambos os
casos.

PERGUNTA: A capacidade das drogas ajudarem não dependeria de


algum nível de energia ou de capacidade espiritual já preexistente?

RESPOSTA: É possível que uma pessoa tenda a ter menos problemas


causados por drogas do que outra. Mas é impossível medir ou criar
parâmetros para estabelecer quem sofrerá e quem não sofrerá. Da
mesma forma é impossível saber quem se beneficiará de comer uma
azeitona, ter um câncer fatal, ou tomar LSD - podemos até acreditar em
alguma tendência, gerar uma porcentagem, mas nenhum resultado
desse tipo pode ser definido.

De fato, talvez devemos ser mais humildes. Creio que uma pessoa
iluminada possa aparentemente infringir regras morais como matar e
roubar, mas estar de fato praticando uma ação iluminada. Acho isso
possível. Porém, não acho nem um pouco interessante jogar roleta
russa com as conseqüências de nossos atos. Mesmo que tenhamos uma
compreensão suprema, ainda assim devemos manter um low profile em
nossas ações - não é necessário cometer atos que os outros não
entendem como interessantes só para exibir algum tipo de provável
capacidade. Além do que é possível contar nos dedos pessoas com esse
reconhecimento da natureza da realidade, e há muitos que se enganam
achando que estão nesse patamar, e que simplesmente geram
experiências de grande confusão e sofrimento para si e para os outros.

Creio que Osho, por exemplo, seguia esse ponto de vista, o de que
devíamos jogar uma certa roleta russa. Dizia que uma pessoa com
habilidade meditativa poderia experimentar LSD que isso seria
enriquecedor. Não sei se ele disse dessa forma, mas colocado assim é
algo realmente perigoso. Acreditar que pessoas com "qualidades
especiais" se beneficiariam de alucinógenos é materialismo espiritual ao
quadrado. É impossível criar parâmetros, internos ou externos para
determinar quais são essas qualidades e quem as possui. Portanto é
impossível alguém saber para si mesmo ou para outro quem se
beneficiará da experiência de uma doença terminal ou de uma
experiência psicodélica.

PERGUNTA: Algumas pessoas são tão down-to-earth que a simples


perspectiva de perceberem "algo além", através das drogas, pode fazê-
las pensar que isso aqui não é tudo. Isso não seria uma boa coisa?

RESPOSTA: A pergunta é similar a anterior, num caso achamos que uma


pessoa dotada de poucas qualidades pode ser ajudada, em outro que
uma pessoa com qualidades especiais poderia ser ajudada. Da mesma
forma, em perguntas anteriores, me colocaram na posição tanto de
quem obteve algo das drogas como de quem não obteve nada, e ambos
eram fonte de crítica a minha argumentação. Dessa forma é fácil
perceber os padrões delusivos por traz da identidade de quem quer se
justificar na utilização de drogas.

De fato não há como estabelecer parâmetros com relação a quem pode


ser ajudado ou prejudicado. Da mesma forma qualquer evento
particular, um acidente de automóvel, retirar um ciso, ganhar na loteria,
podem enviar uma pessoa tanto para o inferno quanto para o céu,
dependendo de set and setting (condições e ambiente), como Tim Leary
gostava de dizer. Você pode achar que retirar um ciso raramente vai
levar uma pessoa a uma experiência de céu, e eu posso dizer que
raramente um alucinógeno vai produzir uma experiência religiosa
verdadeira. Seria materialismo espiritual planejar as coisas para
encontrar resultados melhores ou piores, ou ficar fazendo um ranking de
resultados. Além do que creio ser impossível determinar o set and
setting ideal. O próprio planejamento e a ânsia por uma alteração já
guardam sementes de problemas posteriores, já que por si só se
caracterizam como materialismo espiritual.

PERGUNTA: As ditas "drogas sociais" como a maconha podem mostrar


perspectivas novas a sujeitos de personalidade esquizóide, que nunca se
relacionam, podem "mostrar" a eles o que seria sociabilidade, algo que
nunca imaginariam sem elas. A cocaína pode fazer uma Amélia
subserviente aprender a ousar, etc... O que diria dessas afirmações?
RESPOSTA: Fogem um pouco do escopo do texto, porque aqui estou
lidando com espiritualidade. Ousar e socializar podem ser coisas boas
segundo alguns parâmetros, mas não há nenhum aspecto transcendente
nisto. Seria um nível terapêutico, uma forma de lidar com problemas
mundanos de uma forma mundana. Por outro lado, não concordaria com
nenhuma das duas afirmações, porque os efeitos colaterais ao nível de
físico e psíquico provavelmente são maiores do que os ditos benefícios.
De fato acredito que mesmo no nível psiquiátrico, ainda há um
entendimento muito rudimentar da mente humana. Ainda assim é muito
melhor procurar ser tratado por pessoas e substâncias regulamentados
por algum conjunto de parâmetros, por mais rudimentar que seja, do
que por drogas de rua. Isso me parece evidente.

Mas realmente isso foge do escopo desse texto. Algumas pessoas


acreditam que usando alucinógenos poderiam ficar mais inteligentes ou
mais criativas. Outras pessoas acreditam que podem ficar mais
inteligentes e criativas lendo livros de auto-ajuda. Pessoalmente acho as
duas coisas extremamente tolas, diria até patéticas. Mas recomendo
ainda que a pessoa examine porque ela procura drogas ao invés de
livros de auto-ajuda, o que determina sua escolha?

PERGUNTA: Talvez a pessoa escolha a droga ao invés do Bozo ou do


insight que um tatu-bola, por exemplo, possa proporcionar porque elas
são mais atraentes. Parece que é algo que mobiliza a energia das
pessoas, como uma paixão.

RESPOSTA: Esse é o argumento central do texto, se estamos dominados


pelas experiências que são atraentes, que liberdade temos? O problema
não está na atração ou na repulsão, mas está no fato de que os
parâmetros que nos atraem ou causam repulsão por alguma coisa não
estão claros, nós somos presas, em geral não há liberdade em
experimentar o que é aparentemente atraente. Temos todo tipo de
motivação estética, mas estas são realidades produzidas artificialmente.
É como publicidade, que é toda uma arte para produzir esse tipo de
aprisionamento. Achamos que tendo um certo espírito crítico, não
estamos aprisionados pela publicidade - não saímos por aí comprando
produtos por causa dela. É o que acreditamos, mas de fato todos somos
dominados por uma tendência cultural basal, que nos leva a valorizar as
coisas mais estranhas.

Voltando ao caso particular dos alucinógenos, eu entendo boa parte da


motivação dita religiosa que leva a eles. Para mim seria difícil lidar com
pessoas que usam cocaína, por exemplo, sempre considerei a cocaína
uma coisa realmente tola, nunca fui atraído por ela. Achava que era
coisa de indivíduos presos a um jogo de poder e brilho, enquanto que os
alucinógenos eu considerava muito criativos, coisa de gente mais
esperta. Tinha imenso desprezo pela cocaína, chegava a dizer que era
"coisa de freudiano". Ou seja tinha também uma orientação de valor
com relação ao psicanalista de Viena. Mas são todos argumentos
baseados num aprisionamento, não numa liberdade. Como eu conheço o
aprisionamento estético/religioso dos alucinógenos, creio que posso
estabelecer uma crítica bem embasada.

PERGUNTA: Mas os símbolos valorizados pela cultura mudam o tempo


todo, porque fazer as pessoas valorizarem tatu-bolas?

RESPOSTA: Não creio que devam ser valorizados, minha ironia não foi
entendida. Os únicos valores dignos são aqueles que apontam o
transcendente, como ícones religiosos. Mesmo esses, em alguns
casos,contém perigos de aprisionamento, nesse caso deveríamos ver se
o benefício é maior do que o malefício. Eventualmente também não há
porque desvalorizar tatu-bolas, Bozo ou mesmo alucinógenos - esse
texto se dirige a consertar um exagero, uma foco exagerado em
alucinógenos. Certamente que se eu achar pessoas que têm um culto ao
Bozo, eu talvez escreva um texto desmistificando o Bozo. Porque no
Bozo em si não há transcendência, é um engano estético.

PERGUNTA: Você condena ou acha errado quem utiliza alucinógenos


como diversão?

RESPOSTA: Novamente foge do escopo do texto, mas na verdade não


podemos condenar ninguém por exercer uma liberdade, mesmo que
essa liberdade seja a de ficar preso a um estado particular. Por outro
lado eu não andaria num parque de diversões cujos brinquedos não são
completamente seguros, e devido a instabilidade das dosagens e da
qualidade e procedência duvidosa das substâncias, e da variedade de
conteúdos da mente humana, existem muitos perigos virtuais e reais.

Pouca gente considera o fato das drogas serem proibidas um fator por si
só psicologicamente daninho durante o uso. As pessoas podem achar
que as drogas deveriam ser legalizadas, e podem ter boas razões para
isto, mas o mero fato de estarem infringindo a lei e lidando com
contraventores já é um certo motivo de instabilidade durante a
experiência, especialmente em se tratando de psicodélicos. Isso faz
parte das neuroses da identidade de um usuário de drogas, juntamente
com o fato da família e a sociedade olharem para eles com olhos
assustados e simultaneamente ameaçadores. Acho muito difícil ter uma
"boa viagem" se consideramos todos esses aspectos. Os prazeres
efêmeros são apenas prazeres efêmeros, e se a pessoa eventualmente
escapar de um poço de grande sofrimento, ela rapidamente se entedia
deles. Por isso eu não condeno, mas acho errado no sentido de ser
perigoso (o que pode ser mais um motivo de diversão para alguns,
enfim) e vão, realmente fútil.

PERGUNTA: Não seria uma questão de fé, se acreditamos que eles


levam a transcendência isso não ajudaria?

RESPOSTA: Não podemos desenvolver uma fé ignorante, sem espírito


crítico. Além disso, certamente que se temos fé no tatu-bola, ele vai ter
mais poder em nos ajudar a reconhecer a transcendência. Em todos os
casos, se houver real liberdade, "escolheremos" o objeto de fé mais
digno.

PERGUNTA: O que você acha do livro "The Psychedelic Experience" de


Timothy Leary, que é uma versão do "Livro Tibetano dos Mortos" para
uma experiência psicodélica?

RESPOSTA: Traduzi este livro para uso próprio na época em que


utilizava alucinógenos. Essa resposta faz parte do meu argumento
anterior, em que disse que uma doença terminal é o mesmo que uma
experiência psicodélica. Se dissermos a um tibetano que podemos
provocar uma experiência de bardo da morte (período intermediário
entre um renascimento e outro) de forma relativamente "segura", ele
ainda assim ficaria extremamente perplexo. Em primeiro lugar, se é
seguro, se sabemos que retornaremos ao nosso corpo e a algo de nossa
experiência anterior, a experiência não tem utilidade para o aprendizado
da hora da morte, onde o verdadeiro bardo irá surgir, e em determinado
ponto entenderemos que não vamos ter mais o nosso corpo nem os
objetos, pessoas e situações cotidianas a que estamos acostumados.
Podemos em lugar de tomar "pílulas de aprendizado" simplesmente
imaginar como será nossa morte que é um exercício mais simples e
mais efetivo.

Não é interessante ficar produzindo simulações de experiências do bardo


- ninguém quer experimentar o bardo antes da hora. Se desenvolvemos
boas qualidades, a nossa experiência do bardo vai ser enriquecedora ou
produzir a liberação, isso é natural, não precisamos testar. Se por outro
lado não temos essas qualidades, o bardo simulado vai ser tão
problemático quanto o bardo real, e isso talvez só produza traumas. O
bardo real nós temos que enfrentar, não há a menor necessidade de um
bardo simulado.
Há entre os praticantes tibetanos pessoas que passaram por
experiências em que quase morreram e que relataram suas experiências
de bardo. Isso parece ser o mais forte argumento que encontrei até hoje
para o uso de alucinógenos, porque teoricamente o bardo simulado pela
droga poderia produzir relatos semelhantes. Mas não há conteúdo
espiritual genuíno nos relatos de experiências psicodélicas, basta ler na
Internet os inúmeros relatos ou mesmo o livro "High Priest" de Timothy
Leary. Em geral apenas fica-se vendendo o caleidoscópio como algo
muito interessante, ou falando da experiência religiosa como algo
condicionado. Apenas por uma experiência ser indescritível isso não
significa que ela seja transcendente. Ela transcende as palavras, mas
não transcende experiências particulares. Então é muito enganoso,
porque podemos usar todas as palavras do jargão espiritual para falar
de uma experiência que é de fato, condicionada. Eu não li nenhum
relato que me convencesse como algo benéfico para quem o lesse, mas
certamente que essa é uma interpretação minha.

De qualquer forma, a cultura tibetana também pode apresentar defeitos,


como qualquer outra, e eventualmente se não estamos ligados a religião
tibetana, talvez não faça sentido escolher algumas idéias, praticar
apenas estas e deixar as outras para os tibetanos. E mesmo sem
considerar isto, reitero a diferença entre de um bardo de fato e um
"bardo simulado".

De fato a palavra "bardo" tem um sentido muito mais amplo, pois há


seis experiências de bardo. A vida cotidiana é um dos bardos, o sono
profundo outro, e o estado de sonho ainda outro. Há três outros bardos
relacionados à experiência da morte. Podemos reconhecer a liberdade
inerente em qualquer um deles, se desenvolvemos boas qualidades
como a compaixão pelo sofrimento dos outros seres sencientes.

Quanto a Timothy Leary, era uma pessoa de bom coração. Não era tão
lunático como Terence Mckenna, por exemplo. Leary era apenas um
cientista. Não entendia a religião de fato. Tinha claros limites de
materialismo espiritual, definidos pela sua preocupação com a
preservação de seu corpo e a busca de algum tipo de imortalidade física.
Ele era uma pessoa que teve mais de 5.000 experiências com LSD e
ainda assim não entendia, sequer intelectualmente, o que era a
"ausência de um eu", ou a imortalidade como independente de uma
existência particular - embora tratasse desses assuntos, não tinha real
entendimento deles.

PERGUNTA: No culto a Dionísio devemos procurar o desregramento dos


sentidos, isto seria também materialismo espiritual?
RESPOSTA: Essa é uma pergunta realmente interessante, e devemos
examinar o sentido de falar em ordem e caos. Os sentidos são
naturalmente desregrados, por um processo delusivo associamos a eles
algum tipo de ordem, ou vice-versa. Então se queremos desregrar os
sentidos tomando alguma medida, estamos novamente presos a um
parâmetro do que seja ordem e desordem, e acreditando que andamos
muito ordenados, e que portanto precisamos de alguma festa ou ocasião
especial - ou vice-versa, precisando de alguma disciplina ou algo desse
tipo. De fato festas não são um problema, mas a liberdade de Dionísio é
violenta, não é algo realmente com que podemos lidar tranqüilamente. É
como ligar 100.000 volts num barbeador elétrico - sua mente estoura e
permanece estourada. Então deve haver liberdade além da mera
intensidade, embora intensidade em si não seja problema. Devemos
lembrar que o álcool faz parte do ritual cristão, bem como de outras
tradições, embora seu abuso cause vários problemas sociais - nesse
sentido não devemos guardar um puritanismo com relação a ele, ele faz
parte de quase todas as culturas humanas, e nem sempre como um
problema. Por outro lado introduzir elementos culturais alienígenas,
como alucinógenos, num contexto completamente diferente de onde
eram utilizados, e em meio a uma cultura que é em geral hostil a eles,
tende a produzir mais confusão do que qualquer outra coisa.

PERGUNTA: E quanto a tolerância religiosa? Digo, se há uma


determinada tribo indígena que usa alucinógenos como parte de sua
cultura religiosa, deveríamos interferir, procurar alterar seus
procedimentos, enfim lidar com eles como se não tivessem autonomia
ou capacidade de entender melhor do que nós, agentes externos, o que
estão fazendo?

RESPOSTA: Essa é uma ótima pergunta. De fato foi um excesso de


tolerância religiosa que em primeiro lugar me levou a usar drogas. Eu
acreditava que se haviam religiões que as utilizavam, era provável que
fosse uma coisa interessante. Quanto a isso gostaria de repetir alguns
pontos que toquei no texto, como o fato de, guiados por padrões
mentais não muito claros, preferirmos aquilo que é velado, perseguido,
proibido ou que tenha algum apelo estético que nos interesse de alguma
forma. Não estamos livres nesse processo, porque inconscientemente
escolhemos as coisas com base em delusões particulares. Então por
exemplo, podemos achar que porque um índio no meio da Amazônia,
num contexto cultural completamente diferente, usa o DMT das plantas,
nós também temos o direito - provavelmente grande ânsia de provar
esse direito -, além da necessidade de saciar uma certa curiosidade
através do mesmo uso. De fato eu não poderia argumentar com uma
cultura alienígena a mim, e não poderia julgar erros ou acertos com
base no meu próprio substrato cultural - mas talvez possa argumentar
com a pessoa que tenta se infiltrar numa cultura alienígena e que
escolhe um ou dois aspectos isolados, como que para usar como
brinquedos. Esse texto é mais direcionado para estes últimos do que
para aqueles que estão imersos numa cultura que eu não poderia
entender do meu ponto de vista urbano.

O mesmo se dá com os anos sessenta. Pessoalmente eu via um certo


glamour na Califórnia psicodélica, quase que sentia a brisa e a liberdade
baby-boomer que supostamente os jovens experimentavam. Eu tinha
nostalgia por algo que não passei, e que talvez nem tenha sido dessa
forma que imaginei. Enfim, me parecia algo tão interessante, eu queria
ter esse tipo de coisa na Porto Alegre dos anos 90... Mas a grande
maioria das pessoas à minha volta estava preocupada com outras
coisas, até não digo que fossem "melhores", mas eu realmente estava
alienado do processo ao meu redor. Queria um outro processo delusivo
mais charmoso do que o processo delusivo usual, mas enfim ambos são
delusões, não há porque ficar escolhendo.

Então basicamente temos que entender que escolhemos adentrar por


uma realidade-túnel (uma paisagem delusiva) particular, e que isso
assim por si só não é liberdade. Liberdade está em se ancorar no
processo que produz todas as realidades-túnel, sem fixar em nenhuma
delas. Existem milhares de religiões no mundo, porque resolvemos
estudar aquelas que usam alucinógenos?

Por exemplo, há culturas onde retiram o clitóris da mulher. Porque não


fazemos uma campanha para declarar legal a retirada do clitóris de
todas as mulheres? Bem, normalmente achamos que isso é um absurdo
- pouca gente vai desenvolver a idéia oposta. Mas algumas pessoas vão,
talvez elas escrevam livros em que "provam" que a retirada do clitóris
das mulheres dá acesso a benefícios secretos, talvez eventualmente até
mesmo tentem provar que produz alguma experiência transcendental. O
mesmo poderíamos dizer de assassinato ritual, ou circuncisão. De fato
poderíamos afirmar que o conhecimento transcendental do judaísmo
está em como eles tratam o pênis... podemos tentar arrazoar de todas
as formas mais absurdas, mas na verdade estamos sempre apenas
tentando justificar nossa escolha por uma realidade-túnel particular,
uma delusão.

Enfim, gostaria de reiterar a tolerância religiosa verdadeira.


Pessoalmente considero a retirada de clitóris das mulheres algo muito
desaconselhável, e também não sou muito partidário da circuncisão.
Não acho que matar pessoas, ou mesmo animais, em rituais religiosos
seja interessante. Tampouco a utilização de alucinógenos naturais ou
inventados pelo homem em contexto religioso me parece justificável (e
explicar isto é o objetivo desse texto). Mas de fato não estou coagindo
ninguém com força armada, estou apenas expondo meu ponto de vista.
Se algum judeu se sentiu agredido com a comparação da milenar
prática da circuncisão com algum outro dos tópicos, essa pessoa pode
me escrever, talvez eu coloque um adendo neste texto. Eu não sou
circuncisado, não sou judeu, portanto não tenho autoridade para falar
desse assunto. Mas usei psicodélico, e se tirei conclusões disso, e se a
partir dessas conclusões eu puder beneficiar alguém de alguma forma,
ótimo. Não vou permanecer esquivo ao falar do assunto. Se alguma
seita que utiliza alucinógenos se sente ofendida, que me escreva, talvez
eu coloque um adendo nesse texto. Talvez eu mude de idéia, enfim, é
uma liberdade que todos temos.

Não acho a proibição algo benéfico, é uma violência em primeiro lugar, e


em geral não tem adiantado, pelo menos com relação às drogas.
Acredito que exista a "tentação do fruto proibido", e que a violência do
tráfico e o dinheiro gasto no combate a ele sejam uns problemas ainda
maiores do que as drogas em si. Isso faz sentido para mim. Mas
também não defendo a legalização. Não tenho bola de cristal para
descobrir o que é pior, ou melhor, e não acredito nos meus
instrumentos de inferência da realidade nesse sentido.

Mas mesmo contando com todos estes aspectos, acredito que em alguns
casos seja necessário intervir nos procedimentos religiosos de outras
pessoas, quando eles se tornam, segundo algum parâmetro, não muito
interessantes. Sei que estes parâmetros geralmente são viciados e
regulados pelas doutrinas científicas e religiosas mais poderosas, mas é
melhor algum parâmetro do que nenhum parâmetro. Ao nível
institucional esse parâmetro nunca vai ser perfeito, mas ao nível pessoal
os parâmetros são muito importantes. É exatamente para isto que
temos um cérebro que trabalha com conceitos, para nos protegermos
daquilo que prejudica e buscarmos aquilo que é benéfico.

Não acho que deveríamos manter tolerância religiosa para uma seita
que cometesse assassinatos rituais, eu mandaria a polícia atrás deles se
soubesse de suas atividades. Apenas isto.

Embora os conceitos possam ser limitados, nós ainda assim fazemos uso
daquilo que é limitado. Uma chave de fenda pode não servir como
colher, mas serve para apertar parafusos. Devemos sempre buscar uma
liberdade que esteja intrinsecamente unida à lucidez. Não precisamos
quebrar um copo para provar que temos a liberdade de largá-lo no
chão.

PERGUNTA: Quando criticas as drogas, não criticas apenas seu uso, mas
a identidade relacionada a elas. Essa identidade não foi a própria contra-
cultura que revolucionou a estética e abriu a mente da sociedade para
uma cultura mais global?

RESPOSTA: As identidades são as verdadeiras fontes dos problemas.


Todas as ansiedades vem da tentativa da sustentação de uma
identidade, e todas as raivas e aversões surgem da tentativa de defesa
dessa identidade. Uma identidade é um conjunto de agregados, e está
fadada a desaparecer num dado momento. A identidade é o
processo delusivo por excelência. Eventualmente, se a liberdade do
processo delusivo for reconhecida, podemos manifestar identidades,
mas nesse caso não surgem as ansiedades e as tentativas de defesa.

Então realmente não há dilema. A liberdade da transcendência está


além de uma identidade particular, e isso é exatamente o que eu quis
dizer com o "vocês são todos diferentes" - "eu não".

Claro que a contra-cultura nos parece um processo benéfico, e nem


teríamos como culpar os artistas e pensadores do passado por terem
usado essa ou aquela substância, mas de fato não sabemos realmente o
que levou a quê, e nem todos os processos que ocorreram no passado
foram benéficos. Da mesma forma que com os indivíduos uma droga ou
uma doença terminal podem promover felizes circunstâncias, uma
cultura pode ser "beneficiada" por intoxicação coletiva ou um desastre
natural - os parâmetros de benefício e malefício são estabelecidos por
historiadores e baseados em novos parâmetros delusivos. E certamente
o que pode ter sido bom antes hoje fica mais complicado, basta ver que
toda nossa sociedade urbana, imersa em poluição sonora, visual e
química, é em geral bastante avessa ao olhar vidrado de um drogado, e
esse pode se sentir ameaçado - completamente diferente de alguém
numa praia da Califórnia em 1967, rodeado por uma comunidade de
pessoas ligadas ao mesmo estilo de vida. Esse é um exemplo típico.

PERGUNTA: Este texto não exporia apenas uma outra versão particular
do assunto, ligada ao autor? Não seria apenas uma visão pessoal?

RESPOSTA: Certamente que é apenas isto. As pessoas as vezes


acreditam que seja possível escrever uma versão definitiva dos fatos,
mas não creio que isso seja possível. De qualquer forma, o objetivo
deste texto é muito claro, e naturalmente que a pessoa tem liberdade
de não concordar com ele. Só aconselho que ela procure fazer isso
cuidadosamente, da mesmo forma como deveria ter cuidado em aceitar
os ensinamentos de Carlos Castañeda ou do Papa João Paulo II, por
exemplo. O mesmo cuidado é necessário.

PERGUNTA: O texto parece formular frases conexas mas chegar a


conclusões nonsense, esse texto possui lógica ou é simples propaganda?

RESPOSTA: Eu não negaria a lógica do texto, mas em geral acho que as


pessoas não estão familiarizadas com esse tipo de argumentação, por
isso surge a idéia de que é nonsense. A única coisa que posso dizer é
que o texto não foi produzido com um simples intuito moral subjacente,
procurando destituir o valor dos psicodélicos através de uma verborragia
sem fundamento. Segundo minha obviamente tendenciosa opinião, o
texto possui tanto lógica quando objetivos claros.

PERGUNTA: A pessoa presa não poderia ser aquela que acha que a
outra está presa dentro de um cubículo?

RESPOSTA: As duas podem estar. A que escreve pode escrever por


delusão, e a que lê pode tirar conclusões delusivas. Penso que embora
esse texto tenha grande mérito, não são todos que são capazes de
entendê-lo, e isso vê-se pelas perguntas que surgiram. Num sentido de
separação entre sujeito e objeto, poderíamos dizer que é culpa do
escritor, que escreveu mal ou que está divulgando idéias errôneas, ou
do leitor, que não tem capacidade ou boa-vontade suficiente para
absorver o texto. Mas um sentido de separação ainda é pobre, de fato o
erro não está aqui ou ali, mas sim na interdependência entre os fatores.

Até agora, umas duas semanas depois que escrevi o texto, recebi
apenas uma crítica quanto a ele, vinda de um fórum sobre psicodélicos -
ou seja, do cerne do problema. Se eu pensasse que com este texto
ajudaria a todos a abandonarem as drogas, isso seria infantil.

Em primeiro lugar os aspectos delusivos que levam uma pessoa a


experimentar drogas são muito variados, e eu só pude falar a partir da
minha experiência pessoal, que tem um escopo certamente limitado de
ajuda - além do que uso uma linguagem e estrutura de argumentação
limitada a um grupo seleto. Mas fico feliz porque o texto foi muito bem
recebido, e como a crítica do tal fórum mostrou certos venenos mentais
como confusão (que se espera de quem usa alucinógenos) e
agressividade (que se espera de quem acredita estar sendo atacado),
me parece que mesmo nesse âmbito provocou o resultado esperado.
PERGUNTA: O que recomendarias a uma pessoa que esteja tendo
problemas reais com drogas?

RESPOSTA: É interessante procurar ajuda externa. Mesmo que a coisa


não esteja ainda grave, mas é melhor que não chegue a ficar grave. Na
verdade as pessoas em geral estão muito perdidas com ou sem drogas,
em geral as drogas só intensificam uma confusão básica que já estava
lá. Nesse sentido acredito que sem a criação valores religiosos genuínos
essa confusão até pode ser atenuada, mas não chega a ser resolvida.
Acho que em psiquiatria principalmente, existe um jargão de patologia
que é talvez danoso, e quase nunca se resolve os problemas, porque se
trata de uma maneira apenas química de lidar com o ser humano. Ela
pode ajudar, mas tem limites, porque de fato a mente opera além do
cérebro. Por isso recomendo a busca de valores espirituais.

A psicanálise pode ser interessante, dependendo do psicanalista - é


importante encontrar alguém que tenha realmente qualidades
compassivas mais do que erudição.

Uma coisa mais fácil do que tudo isso é basicamente tentar pensar mais
nos outros do que em si próprio. Tirar o foco dos próprios problemas
alivia imensamente. Essa é uma prática realmente transcendente - vai
além de nossa identidade (qualquer identidade tem hang- ups,
neuroses, obstáculos, etc.) Se mantemos estável essa atitude ampla de
se colocar no lugar dos outros e perceber seus problemas, em pouco
tempo se cria um espaço amplo para os fenômenos dançarem
livremente. Mas em princípio é bom procurar uma ajuda externa.

"Deus nos deu um vinho escuro tão potente que, ao bebê-lo, partimos dos três
mundos.
Deus colocou na forma de haxixe um poder que libera o provador da
autoconsciência.
Deus fez o sono de forma que apaga todos os pensamentos.
Deus fez Majnun amar tanto a Layla que até seu cachorro lhe dava ciúmes.
Há milhares de vinhos que podem entorpecer nossas mentes.
Não pense que todos os êxtases são o mesmo!
Jesus estava perdido de amor por Deus.
Seu asno, bêbado de centeio.
Bebe da presença dos santos, não dessas outras jarras.
Cada objeto, cada ser, é uma jarra cheia de deleite.
Seja um enólogo, experimente cautelosamente.
Qualquer vinho te deixará alto.
Julgue como um rei, escolhe o mais puro deles, escolhe os que não são
adulterados pelo medo, ou pelas urgências 'do que é preciso'.
Bebe o vinho que te movimenta como um camelo que foi desamarrado, e apenas
trota por aí".

Jelaluddin Rumi

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