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Basicamente com isso quero dizer que não usarei os pouco efetivos, e
até certo ponto realmente tolos, argumentos de saúde pública ou de
moralidade tradicional. Estes seriam facilmente atacáveis pelos
defensores do uso religioso de certas plantas, e embora possam fazer
sentido no abuso pouco pretensioso daqueles que não tentam se
justificar com uma busca religiosa, ainda assim geralmente são
claramente pouco efetivos mesmo nesses casos mais simples.
Todavia não esteja particularmente relacionada ao materialismo
espiritual, também será feita uma crítica à busca pelo simples deleite
sensorial. Ou seja, embora seja uma forma apenas materialista de
materialismo, o hedonismo dos que buscam as experiências psicodélicas
em geral acredita-se espiritual, portanto isso também será focado.
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1 A delusão se caracteriza por uma visão que naturalmente nos cega a
outras visões, é diferente de "ilusão", no sentido em que não postula
algo em relação a uma realidade ou irrealidade, mas sim um processo
de percepção limitada e que, portanto produz significado limitado.
Quando observamos uma pintura e vemos uma paisagem, esquecemos
que ela é papel e tinta, quando percebemos essas duas coisas,
esquecemos que ela é luz que nos chega aos olhos, e quando pensamos
nisso, provavelmente já esquecemos a paisagem. Delusão é que produz
a paisagem, o papel e a tinta e a luz que nos chega aos olhos, bem
como incontáveis outras percepções. Quando estamos fascinados por
uma, ignoramos todas as outras.
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2 Nesse sentido a religião não é um objeto que possa ser estudado com
o método científico, pela própria definição dos termos. Elas ramos
complementares, e quando uma começa a estudar a outra esta
imediatamente deveria trocar para o nome oposto. Mas este estudo
sairia do assunto em foco.
De fato não temos motivo nenhum para defender e atacar o que quer
que seja, porque nenhuma dessas polaridades vai produzir liberdade.
Vamos estar constantemente em busca de um paraíso perdido, e nesta
busca permaneceremos em constante atrito com o ambiente ao nosso
redor.
...
Aos 13 anos li "Portas da Percepção", ansiei pela experiência psicodélica
até os 20 anos, quando experimentei LSD e algumas plantas. Não tive
experiências muito assustadoras, bad-trips, mas logo percebi a
futilidade de experimentos desse tipo e seu potencial perigo. Cheguei
sim a ficar um pouco mais desorientado do que o usual.
...
As seguintes perguntas foram formuladas devido a divulgação do texto
em listas de discussão na internet.
De fato, da mesma forma que uma droga não pode produzir liberdade,
um texto também não pode fazê-lo - repito: a liberdade não pode ser
produto de uma ação causal, basta reconhecê-la. Esse "basta
reconhecê-la" é o máximo que se pode obter com palavras
convencionais, mas se a pessoa lê e não reconhece, isso não é surpresa.
Mas é bom que se perceba que não é através de drogas,
especificamente, que vamos obtê-la, e esse é o objetivo do texto.
Por outro lado seria realmente ótimo que antes deste próximo ponto
final ela viesse a reconhecê-la, inequívoca. Isso pode ter acontecido, e
os pontos finais ainda assim continuam surgindo.
PERGUNTA: Quem garante que a percepção que tens hoje (e a tua visão
lúcida da realidade) não foi acelerada pelo uso transformador e
consciente das drogas?
Realmente confesso que tive poucos problemas com drogas porque meu
uso era apenas materialismo espiritual, não chegou a tornar-se um
hábito e um apego a um estado mental específico (para o qual uso a
metáfora de um cubículo com paredes mofadas). Esse é um problema
comum, e um bocado grave, de grande parte das pessoas que utilizam
quaisquer drogas, inclusive os "religiosos" alucinógenos. Muitas delas
padecem do apego ao estado mental, que é ainda pior do que qualquer
dependência química, pois eventualmente mesmo sem a droga ficamos
sempre voltando e voltando ao mesmo cubículo com paredes mofadas.
O materialismo espiritual por outro lado é o começo e o fim do caminho
espiritual. De certa forma ele é o próprio caminho espiritual - quando o
materialismo espiritual acaba, não há mais caminho espiritual, apenas
liberdade.
Além do que, realmente, ninguém garante que minha visão fosse lúcida
em qualquer momento, nem agora. Não há quaisquer garantias.
Particularmente não fico espreitando minha própria lucidez ou esperteza
para ver se as apanho em erros e acertos. Seria um cachorro correndo
atrás do próprio rabo.
Por outro lado a lógica desse texto não exigiria que eu sequer tivesse
experimentado drogas, pois sendo a transcendência algo não-causal,
não pode ser obtida de forma particular por fontes externas ou por
alterações na biologia do cérebro. O simples fato de tratarmos de uma
"obtenção" já seria problemático. Mas acredito que o fato de que eu
realmente as experimentei e estudei, num âmbito que considero "sério"
o suficiente, possa ajudar na minha argumentação.
RESPOSTA: Todas que pude obter pelo correio e mais algumas. Estudei
todos os manuais de etnobotânica disponíveis e conversei com
especialistas. Não acho apropriado citar o nome das plantas. Usei
sintéticos como o LSD também.
Porque preferimos ele ao Osho ou o Papa João Paulo II? Isso é algo
importante de analisar. Se desconfiamos do Papa ou do Osho, devemos
desconfiar do Castañeda também. E a confiança só surge na medida do
benefício, ou seja, observamos o que eles dizem, continuamos
praticando o que é bom, e abandonamos o que não parece tão
interessante. É também importante perceber que realmente há mestres
equivocados e pessoas confusas que se passam por sábias - às vezes as
pessoas não consideram este fato simples. Pode ser que o Castañeda
seja um mestre legítimo e benéfico, eu lhe daria no mínimo o benefício
da dúvida. Particularmente li todos os seus livros, por um curto tempo
me encantei, depois me desiludi. Ao que parece, conhecer alguém como
Don Juan poderia ser muito interessante, mas ler sobre isso e tentar
praticar por conta, pessoalmente não me foi muito produtivo. Talvez
para outras pessoas seja de maior benefício. É uma possibilidade.
Por outro lado, facilmente vejo tudo como uma fraude.
De fato, talvez devemos ser mais humildes. Creio que uma pessoa
iluminada possa aparentemente infringir regras morais como matar e
roubar, mas estar de fato praticando uma ação iluminada. Acho isso
possível. Porém, não acho nem um pouco interessante jogar roleta
russa com as conseqüências de nossos atos. Mesmo que tenhamos uma
compreensão suprema, ainda assim devemos manter um low profile em
nossas ações - não é necessário cometer atos que os outros não
entendem como interessantes só para exibir algum tipo de provável
capacidade. Além do que é possível contar nos dedos pessoas com esse
reconhecimento da natureza da realidade, e há muitos que se enganam
achando que estão nesse patamar, e que simplesmente geram
experiências de grande confusão e sofrimento para si e para os outros.
Creio que Osho, por exemplo, seguia esse ponto de vista, o de que
devíamos jogar uma certa roleta russa. Dizia que uma pessoa com
habilidade meditativa poderia experimentar LSD que isso seria
enriquecedor. Não sei se ele disse dessa forma, mas colocado assim é
algo realmente perigoso. Acreditar que pessoas com "qualidades
especiais" se beneficiariam de alucinógenos é materialismo espiritual ao
quadrado. É impossível criar parâmetros, internos ou externos para
determinar quais são essas qualidades e quem as possui. Portanto é
impossível alguém saber para si mesmo ou para outro quem se
beneficiará da experiência de uma doença terminal ou de uma
experiência psicodélica.
RESPOSTA: Não creio que devam ser valorizados, minha ironia não foi
entendida. Os únicos valores dignos são aqueles que apontam o
transcendente, como ícones religiosos. Mesmo esses, em alguns
casos,contém perigos de aprisionamento, nesse caso deveríamos ver se
o benefício é maior do que o malefício. Eventualmente também não há
porque desvalorizar tatu-bolas, Bozo ou mesmo alucinógenos - esse
texto se dirige a consertar um exagero, uma foco exagerado em
alucinógenos. Certamente que se eu achar pessoas que têm um culto ao
Bozo, eu talvez escreva um texto desmistificando o Bozo. Porque no
Bozo em si não há transcendência, é um engano estético.
Pouca gente considera o fato das drogas serem proibidas um fator por si
só psicologicamente daninho durante o uso. As pessoas podem achar
que as drogas deveriam ser legalizadas, e podem ter boas razões para
isto, mas o mero fato de estarem infringindo a lei e lidando com
contraventores já é um certo motivo de instabilidade durante a
experiência, especialmente em se tratando de psicodélicos. Isso faz
parte das neuroses da identidade de um usuário de drogas, juntamente
com o fato da família e a sociedade olharem para eles com olhos
assustados e simultaneamente ameaçadores. Acho muito difícil ter uma
"boa viagem" se consideramos todos esses aspectos. Os prazeres
efêmeros são apenas prazeres efêmeros, e se a pessoa eventualmente
escapar de um poço de grande sofrimento, ela rapidamente se entedia
deles. Por isso eu não condeno, mas acho errado no sentido de ser
perigoso (o que pode ser mais um motivo de diversão para alguns,
enfim) e vão, realmente fútil.
Quanto a Timothy Leary, era uma pessoa de bom coração. Não era tão
lunático como Terence Mckenna, por exemplo. Leary era apenas um
cientista. Não entendia a religião de fato. Tinha claros limites de
materialismo espiritual, definidos pela sua preocupação com a
preservação de seu corpo e a busca de algum tipo de imortalidade física.
Ele era uma pessoa que teve mais de 5.000 experiências com LSD e
ainda assim não entendia, sequer intelectualmente, o que era a
"ausência de um eu", ou a imortalidade como independente de uma
existência particular - embora tratasse desses assuntos, não tinha real
entendimento deles.
Mas mesmo contando com todos estes aspectos, acredito que em alguns
casos seja necessário intervir nos procedimentos religiosos de outras
pessoas, quando eles se tornam, segundo algum parâmetro, não muito
interessantes. Sei que estes parâmetros geralmente são viciados e
regulados pelas doutrinas científicas e religiosas mais poderosas, mas é
melhor algum parâmetro do que nenhum parâmetro. Ao nível
institucional esse parâmetro nunca vai ser perfeito, mas ao nível pessoal
os parâmetros são muito importantes. É exatamente para isto que
temos um cérebro que trabalha com conceitos, para nos protegermos
daquilo que prejudica e buscarmos aquilo que é benéfico.
Não acho que deveríamos manter tolerância religiosa para uma seita
que cometesse assassinatos rituais, eu mandaria a polícia atrás deles se
soubesse de suas atividades. Apenas isto.
Embora os conceitos possam ser limitados, nós ainda assim fazemos uso
daquilo que é limitado. Uma chave de fenda pode não servir como
colher, mas serve para apertar parafusos. Devemos sempre buscar uma
liberdade que esteja intrinsecamente unida à lucidez. Não precisamos
quebrar um copo para provar que temos a liberdade de largá-lo no
chão.
PERGUNTA: Quando criticas as drogas, não criticas apenas seu uso, mas
a identidade relacionada a elas. Essa identidade não foi a própria contra-
cultura que revolucionou a estética e abriu a mente da sociedade para
uma cultura mais global?
PERGUNTA: Este texto não exporia apenas uma outra versão particular
do assunto, ligada ao autor? Não seria apenas uma visão pessoal?
PERGUNTA: A pessoa presa não poderia ser aquela que acha que a
outra está presa dentro de um cubículo?
Até agora, umas duas semanas depois que escrevi o texto, recebi
apenas uma crítica quanto a ele, vinda de um fórum sobre psicodélicos -
ou seja, do cerne do problema. Se eu pensasse que com este texto
ajudaria a todos a abandonarem as drogas, isso seria infantil.
Uma coisa mais fácil do que tudo isso é basicamente tentar pensar mais
nos outros do que em si próprio. Tirar o foco dos próprios problemas
alivia imensamente. Essa é uma prática realmente transcendente - vai
além de nossa identidade (qualquer identidade tem hang- ups,
neuroses, obstáculos, etc.) Se mantemos estável essa atitude ampla de
se colocar no lugar dos outros e perceber seus problemas, em pouco
tempo se cria um espaço amplo para os fenômenos dançarem
livremente. Mas em princípio é bom procurar uma ajuda externa.
"Deus nos deu um vinho escuro tão potente que, ao bebê-lo, partimos dos três
mundos.
Deus colocou na forma de haxixe um poder que libera o provador da
autoconsciência.
Deus fez o sono de forma que apaga todos os pensamentos.
Deus fez Majnun amar tanto a Layla que até seu cachorro lhe dava ciúmes.
Há milhares de vinhos que podem entorpecer nossas mentes.
Não pense que todos os êxtases são o mesmo!
Jesus estava perdido de amor por Deus.
Seu asno, bêbado de centeio.
Bebe da presença dos santos, não dessas outras jarras.
Cada objeto, cada ser, é uma jarra cheia de deleite.
Seja um enólogo, experimente cautelosamente.
Qualquer vinho te deixará alto.
Julgue como um rei, escolhe o mais puro deles, escolhe os que não são
adulterados pelo medo, ou pelas urgências 'do que é preciso'.
Bebe o vinho que te movimenta como um camelo que foi desamarrado, e apenas
trota por aí".
Jelaluddin Rumi