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A Metafisica Realista de Sao Tomas de Aq PDF
A Metafisica Realista de Sao Tomas de Aq PDF
CURSO DE FILOSOFIA
CURITIBA
2013
HENRIQUE DA SILVA DEZIDÉRIO
CURITIBA
2013
Dedico este trabalho a Jesus, Rei e
Senhor, Santíssimo Sacramento do altar,
a quem seja dada a honra e a glória pelos
séculos dos séculos. Ele, e somente Ele,
é a razão de ser do tema deste trabalho.
Agradeço à minha família: meus pais, Vicente e Terezinha, e meus irmãos, Felipe e
Isabela, que sempre estiveram do meu lado, tanto nos bons quanto nos maus
momentos.
Agradeço ao meu orientador, Ir. Irineu Letenski, e aos professores que me ajudaram
fornecendo textos de referência e tirando as principais dúvidas quanto ao tema deste
trabalho: Monsenhor Diniz Mikosz, Padre Gilberto Aurélio Bordini e Prof.ª Teresinha
Teixeira Colleone.
Agradeço a todos que fizeram parte da minha vida nesses três anos de Filosofia. Meus
formadores, Padre Chemin e Padre Régis e meu diretor espiritual, Padre Antônio
Luciano. Também a todos os meus colegas, que sempre partilharam comigo alegrias
e tristezas, em especial os colegas de turma: André, Danilo, Deivid, Leandro e Kerolim.
Meu agradecimento especial ao Padre Mario Renato Barão Filho, bem como a todos
os paroquianos de Nossa Senhora da Visitação. Foi seu apoio, sua ajuda e suas
orações, principalmente nos momentos de maior dificuldade, alguns dos principais
fatores que me permitiram terminar esta etapa filosófica da formação.
Porque é nele que temos a vida, o
movimento e o ser. (At 17, 28)
Esta monografia tem como objetivo geral o estudo da metafísica realista de São
Tomás de Aquino, especialmente o ato de ser (actus essendi). Primeiramente, define-
se metafísica realista como interpretação da realidade absoluta do ser e também são
estudadas as contribuições de filósofos anteriores a Tomás. Em seguida, faz-se o
estudo aprofundado do ato de ser, em especial no que se refere à interpretação do
ato como ser e não como substância, à distinção entre essência e existência, à relação
entre Deus e os entes finitos e ao processo de explicitação do ser, em especial às
propriedades transcendentais, à analogia, ao ato, à potência, à causalidade, aos graus
de perfeição e à finalidade. Por fim, estuda-se o tomismo na modernidade, incluindo
o abandono da metafísica do ato de ser pelos seguidores de Tomás na Idade Média,
a opção da Igreja Católica pela filosofia de Tomás depois da encíclica Aeterni Patris
de Leão XIII e a redescoberta da metafísica do ato de ser pelos filósofos tomistas do
século XX, buscando-se estabelecer um diálogo da metafísica realista com a filosofia
moderna.
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2 A METAFÍSICA REALISTA .................................................................................. 10
2.1 O REALISMO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO .................................................... 10
2.2 ANTECEDENTES DA METAFÍSICA TOMISTA ................................................. 12
2.2.1 Parmênides: o ser como princípio de todas as coisas .................................... 12
2.2.2 Platão: a alteridade e a participação ............................................................... 14
2.2.3 Aristóteles: a metafísica do ato ....................................................................... 15
2.2.4 Al-Fārābī e Avicena: a distinção real entre essência e existência ................... 16
3 O ATO DE SER..................................................................................................... 18
3.1 O CAMINHO DE SÃO TOMÁS .......................................................................... 18
3.2 O ATO COMO SER ............................................................................................ 21
3.3 ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA................................................................................ 23
3.4 DEUS E OS ENTES FINITOS ............................................................................ 26
3.5 A EXPLICITAÇÃO ONTOLÓGICA DO SER ...................................................... 30
3.5.1 Processo de explicitação do ser ...................................................................... 30
3.5.2 Propriedades transcendentais do ser .............................................................. 31
3.6 A EXPLICITAÇÃO ÔNTICA DO SER ................................................................. 34
3.6.1 Analogia .......................................................................................................... 34
3.6.2 Substância e acidente ..................................................................................... 36
3.6.3 Ato e potência: a causalidade ......................................................................... 38
3.6.4 Graus de perfeição .......................................................................................... 39
3.7 FINALIDADE ...................................................................................................... 40
4 O TOMISMO NA MODERNIDADE ....................................................................... 43
4.1 APÓS TOMÁS DE AQUINO............................................................................... 43
4.2 A OPÇÃO DA IGREJA CATÓLICA PELA METAFÍSICA REALISTA ................. 46
4.3 O TOMISMO NO SÉCULO XX........................................................................... 47
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 50
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 52
APÊNDICE – CITAÇÕES DIFERENTES DAS NORMAS ........................................ 54
8
1 INTRODUÇÃO
1 Optou-se, neste trabalho, a usar a nomenclatura “São Tomás” e não “Santo Tomás”. Isso para
obedecer à regra de nomes de santos que diz que o santo é nomeado “Santo...” se seu nome iniciar
com vogal e “São...” se o nome iniciar com consoante. O ano de seu nascimento é incerto.
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2 A METAFÍSICA REALISTA
concepções, é visto como simples conceito, submisso à essência das coisas. Tomás,
contudo, defende que o ser é real e que é o que tem primazia sobre tudo na filosofia.
Segundo Gilson (1962, pp. 52-53):
Tomás, no entanto, vai defender que o ser “designa um ato” (C.G. I, XXII, 4)2 e
é “a actualidade de tôda forma ou natureza” (S. Th. I, III, IV)3. Há, na Suma Teológica
(I, IV, I, 3r)4, um resumo esclarecedor da definição tomista sobre isso: “O ser em si é
mais perfeito de todos por actualizar a todos; pois, nenhum ser é actual senão
enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que actualiza todos os outros e, mesmo,
as próprias formas”.
Essa concepção de ser indica que, para Tomás, o ser não é um detalhe nas
coisas ou um acidente ou, muito menos, um simples nome como Gilson exemplificou
acima, mas é real. E, mais do que real, é a realidade em si. É, acabou-se de ver, a
atualidade de todas as coisas, ou seja, o ato de tudo o que é. Adiante ficará clara a
definição do Aquinate5 a respeito do ato.
Pode-se compreender então no que consiste a metafísica realista de São
Tomás. Não é o simples realismo metafísico que Ferrater Mora definiu, apesar de
estar contido nele. Tampouco é, não obstante esteja intimamente relacionado, o
realismo em relação aos universais, visto que o ser não é um universal ou um gênero
porque “nada lhe é estranho ou extrínseco, nada se lhe pode ajuntar de fora, nada
pode se dar de separado e de independente dele” (MOLINARO, 2002, p. 57).
Este realismo é, como já se constatou, relacionado ao ser: o ser é real, ou
melhor, é a maior realidade existente. Em poucas palavras, a metafísica de Tomás é
chamada realista porque compreende o ser como sendo real. A metafísica que
2 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 60. Quando houver citações diferentes das normas, as citações
segundo as normas serão disponibilizadas em notas de rodapé. Cf. apêndice.
3 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 26
4 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 34
5 No decorrer do trabalho, para evitar repetições ao se referir a São Tomás de Aquino, serão usados
alguns dos nomes como ele ficou conhecido: Aquinate, Doutor Angélico, etc.
12
compreende o ser como nome, a que Gilson se referiu, será chamada, com os termos
do mesmo autor, de metafísica essencialista, ou essencialismo, porque, ao se
conceber o ser como um simples nome, ele se reduz “à realidade da sua essência”
(GILSON, 1962, p. 53).
Doravante, ao se referir à metafísica realista, entenda-se o realismo de Tomás.
Vale notar que não há realismo tão absoluto como o tomista no que diz respeito à sua
concepção de ser, mas houve antecedentes históricos, que serão estudados agora
para compreender melhor as raízes desta metafísica.
elementos). Anaximandro, contudo, percebeu que o princípio não poderia ser uma
determinação porque tornar-se-ia apenas uma coisa entre tantas e propôs o mesmo
como uma indeterminação (ἄπειρoν – ápeiron), que nega toda determinação,
compreendendo a todas sem reduzir-se a nenhuma. Heráclito, em seguida, vai propor
como princípio o devir, ou seja, o processo de geração e corrupção das coisas, já que
a indeterminação não poderia explicar esse processo, mas sendo o devir o princípio,
seria o que permaneceria enquanto faria com que as coisas se gerassem e se
corrompessem. O devir seria o uno, imutável e eterno em meio às demais coisas
(MOLINARO, 2002).
Nesse contexto que surge a filosofia de Parmênides. O devir, de fato, pode ser
explicado como princípio eterno e imutável de todas as coisas, mas não explicaria o
fato do próprio devir existir. O devir exerce sua função enquanto é e, por isso, o
princípio precisa ser aquilo pelo qual o devir é. O princípio, então, não é o devir, mas
o ser (MOLINARO, 2002, p. 22).
É esclarecedora a explicação de Reale e Antiseri (2007a, p. 51, grifos do autor)
neste ponto:
Esta constituição do outro implica dois tipos de relação: primeiro com o ser e o
não-ser absolutos e segundo com os outros entes. A estrutura da relação que o outro
implica com o ser absoluto e com o absoluto não-ser é vista, como já se afirmou, na
figura metafísica de participação, contributo de Platão que se configura de vários
modos (MOLINARO, 2002, p. 29):
a) Participação como tal (µέθεξις – metessi), um “ter parte em”, tomar
parte do ser (partem capere);
b) Imitação ou mimesi (µίµησις), donde resulta a semelhança;
c) Comunhão ou koinonia (χoινωνία), que surge entre o que participa e
aquilo do que participa;
d) Presença ou parusía (παρoυσία): pela presença do ser os entes são
(presença, presentificação, apresentação do ser).
Pois do que existe em potência nasce o que existe em ato pela ação de um
ser existente em ato, p. ex. o homem do homem, o músico pelo músico; há
sempre um primeiro motor, que já existe em ato. [...] tudo quanto é produzido
o é de alguma coisa e por alguma coisa, e é da mesma espécie desta
(Metafísica IX, 8).
Tomás sempre teve sua própria noção de ser. [...] Ela foi preparada com
certeza pela Metafísica de Avicena, e, através desta, pela de Alfarabi.
Sustentavam êstes dois filósofos a tese de que a existência é um
complemento da substância que, por não estar incluso na sua essência, lhe
sobrevém, por assim dizer, como um acidente. Sòmente Deus não recebe a
existência como complemento de sua essência. Deus não tem sua própria
existência, êle é sua própria existência.
Basta saber por ora que a distinção real entre os termos já foi concebida pelos filósofos
árabes.
Como consideração final deste capítulo, afirma-se que a filosofia tomista foi
original, como se verá mais tarde. Contudo, é útil perceber as influências que Tomás
recebeu dos filósofos anteriores para poder compreender melhor sua filosofia. De
Parmênides, Tomás definiu que o ser é o princípio de todas as coisas, mas deixou de
lado a univocidade. De Platão, Tomás herdou o conceito de participação, adaptando-
o à metafísica do ato. De Aristóteles, Tomás continuou a metafísica do ato, contudo
definiu como o ato de todas as coisas não a substância, mas o ser. De Avicena, Tomás
retomou a distinção real entre essência e existência, desconsiderando a interpretação
de Maimônides de existência como um acidente da essência. O fundamento da
metafísica de Tomás derivou-se dessas influências, mas com uma originalidade
própria ligada à sua concepção de ato de ser.
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3 O ATO DE SER
Causa universalíssima de tudo o que existe, tanto para santo Tomás como
para Parmênides, é o ser, não a água, o ar, o fogo, o bem, ou a substância.
O ser é a causa universal de todas as coisas, porque é o receptáculo de toda
perfeição e a fonte última de toda realidade.
Não se pode falar em filosofia tomista, portanto, sem se referir ao ato de ser. A
metafísica do ato de ser traspassa toda a filosofia tomista, de modo que tudo o que
São Tomás definiu em sua filosofia está ligado ao ato de ser.
Dionísio Areopagita e a sua chamada teologia “apofática”, que afirmava que a melhor
maneira de falar de Deus era “negando-lhe todo atributo, à medida que ele é superior
a todos” (REALE; ANTISERI, 2007a, p. 421). Aqui o Doutor Angélico vai afirmar:
(Ipsum Esse Subsistens), enquanto a palavra “ser” com letra minúscula designa o ser transcendental,
determinado pela essência nos entes finitos.
13 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 60.
21
Assim como para Parmênides, o ser para São Tomás é a causa universalíssima
de tudo o que existe, porque é o receptáculo de toda perfeição e a fonte última de toda
a realidade. Não é simples presença nem perfeição mínima nem uma barca que
abrange todo o universo, o que o Aquinate chamou de ens commune, conceito donde
parte a sua investigação metafísica e que é vago, indeterminado e que não preenche
as coisas da perfeição que possuem. Adentrando no conceito superficial de ser, o
esse commune, Tomás chegou a descobrir e explicar o conceito profundo de ser, de
onde o conceito superficial recebe substância e valor (MONDIN, 2010, p. 219-220).
Ao se falar de Deus ou dos entes finitos, emprega-se sempre a palavra ato. Ser
é o “ato de todos os atos”. No senso comum, ato significa ação, operação, mas isso
seria apenas um ato “segundo”. Antes desse tipo de ato há outros atos dos quais os
segundos decorrem, os “atos primeiros”, que só podem ser conhecidos a partir de
seus efeitos, ou seja, as operações, os “atos segundos”. Podemos dizer que a alma
humana, por exemplo, além de ser uma forma, é também um ato primeiro. Chamando
ser ou “esse” a um ato, diz-se que é um “ato primeiro”, ou seja, um princípio que se
conhece sua existência com certeza pelo efeito que causa. Ao contrário das ciências
empíricas e da filosofia da natureza, a metafísica, que tem como objeto próprio a
22
consideração do ser enquanto ser, leva sua investigação além das operações
realizadas pelas substâncias (ciências empíricas) e dos atos primeiros, das formas,
causas dessas operações (filosofia da natureza) para chegar, começando e
terminando, na investigação do ser (GILSON, 1962).
É esclarecedora a explicação de Lauand (1993, p. 31, grifo do autor) a respeito
do ato de ser:
E o que significa ser? Ser é, antes de mais nada, atividade, ato. Todas as
coisas, todos os entes, são antes de mais nada, “aqueles que exercem o ato
de ser” [...]. Mas justamente por constituir a primeira atividade, a mais
fundamental – e “a mais maravilhosa”, dirá Gilson [...] –, o ser escapa a
qualquer definição: “O ato de ser não pode ser definido”.
Já foi citado no primeiro capítulo o que seria o ser para São Tomás: o ser
“designa um ato” (C.G. I, XXII, 4)14 e é “a actualidade de tôda forma ou natureza” (S.
Th. I, III, IV)15, “O ser em si é [o] mais perfeito de todos por actualizar a todos; pois,
nenhum ser é actual senão enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que actualiza
todos os outros e, mesmo, as próprias formas”. (S. Th. I, IV, I, 3r)16. Considerado
absolutamente, “é infinito, porque infinitas coisas podem participar dele de diversos
modos” (C.G. I, XLIII, 6)17. Mondin (2010, p. 221-222) resume:
Ato, tende-se a reduzir a noção de ser à noção de ato, que parece mais elevada. Este
é um perigo que se deve evitar: imaginar que o ato é uma noção mais elevada que o
ser. Deve-se, portanto, destacar que não há noção mais ampla e fundamental que a
noção de ser. O primeiro princípio é ser, e não ato. Não se reduz a noção de ser à
noção de ato, mas a noção de ato à noção de ser. Que é ato? Ato é ser. Ser Puro Ato
é ser Puro Ser, é ser o próprio Deus. Ato é redutível a Deus e não Deus a ato (GILSON,
1962).
Em todos os entes finitos há sempre um grau de potência, já que, sempre
finitos, algo lhes limita a atualidade. Potência é a aptidão a vir-a-ser e se mede pela
distância que separa aquilo que o ente é daquilo que ele pode vir a ser: a composição
de ato e potência é simplesmente a composição de um ente tomado em nível mais
baixo de atualidade com uma perfeição que pode elevá-lo a mais alto nível de
atualidade. Como quer que se considere a realidade, a inteligência nunca sai da noção
de ser (GILSON, 1962, p. 47).
Em poucas palavras, o ser é o que há de mais perfeito em todos os entes, o
que coloca todos em ato. O ato de ser, portanto, não é uma operação ou faculdade
operativa, mas algo de fixo e estável no ser finito, é o que de mais perfeito há no ente
finito. A potência é uma aptidão a vir-a-ser, algo que pode elevar a perfeição do ente.
que em Deus não há nenhum tipo de composição. No artigo VII, ele faz a conclusão
da simplicidade de Deus: não há nem composição de matéria e forma, de potência e
ato e de essência e existência.
Para chegar à simplicidade de Deus, a última composição eliminada foi a de
essência e existência. Por conseguinte, a primeira composição encontrada nas
criaturas é a composição de essência e existência. Com exceção de Deus, todo ser
se compõe pelo menos “daquilo que” ele é, isto é, sua essência, e do ato existencial
em virtude do que ele é, ou seja, do seu ato de ser. À questão “qual é, no tomismo, o
sentido da célebre composição de essência e existência?” a resposta direta é: isso
significa que, como Deus é o seu próprio Ato de Ser, nenhum outro ente pode ser o
seu próprio ato de ser (GILSON, 1962).
A existência ou ato de ser, como se viu, é a energia metafísica que faz um ente
finito existir. A distinção real entre essência e existência é defendida por Tomás da
seguinte forma:
Ora, toda essência ou quididade pode ser inteligida sem que algo seja
inteligido do seu ser. Posso, de fato, inteligir o que é o homem ou a fênix e,
no entanto, ignorar se tem ser na natureza das coisas. Portanto, é claro que
o ser é outro em relação à essência ou quididade (E.E. IV, 52)18.
então, seria a essência. O ato de ser, a atualidade pura e a perfeição máxima do ente,
seria a existência.
A causa da finitude nos entes é a essência ou, em outras palavras, o que faz
um ente ser finito é aquilo que se acrescenta ao seu ato de ser. Em todos os entes,
com exceção de Deus, o ato de ser é limitado, determinado e restringido pela sua
essência. Portanto, o ente finito pode ser concebido como um ente cujo ato existencial
é limitado pela própria essência que ele possui. O efeito primordial da essência é
restringir o ato de ser às dimensões determinadas pela definição daquilo que a
essência é. Isso quer dizer que a essência de um ente finito, fazendo-o ser aquilo que
ele é, impede-o de ser o próprio Deus ou, em outras palavras, a essência de um ente
finito restringe o ato de ser, impedindo-o de ser o Puro Ato de Ser. Como
consequência, com exceção de Deus, todos os entes têm a essência distinta da
existência e nada há de mais perfeito que o próprio ato pelo qual eles são. O ato de
ser é o ato de todos os atos, a perfeição de todas as perfeições (GILSON, 1962).
Há muita resistência neste pensamento, mas ele é inseparável da metafísica
realista. Como Deus é o Puro Ato de Ser, toda participação na perfeição da natureza
divina é, antes de mais nada, uma participação daquele ato supremo. Nota-se aqui
que a essência não aperfeiçoa o ato de ser, antes o “desaperfeiçoa”. Esta é uma
filosofia difícil de entender por se apoiar em uma noção extremamente simples, mas
principalmente porque entende que a quididade, a essência, objeto próprio da
inteligência humana, é algo negativo. Mas é possível compreender que essa
negatividade acontece em relação ao Puro Ato de Ser, Deus. Como são as essências
participações do ser cada uma, há nelas uma perfeição também, apesar de haver a
imperfeição de ser apenas uma parte do ser. Há graus de perfeição nos entes, como
se verá adiante: é melhor ser pedra que ser nada, melhor ser planta que pedra, ser
animal que planta, ser homem que animal irracional, ser anjo que homem e
infinitamente melhor ser o Puro Ato de Ser. É sempre bom para um ente finito ser o
que ele é, se bem que em comparação com o Puro Ser, é uma imperfeição para
qualquer essência ser somente isto ou aquilo (GILSON, 1962).
26
composição do ente finito: ela é o próprio sujeito que recebe o ato em virtude do qual
determinado ser existe. Sem a essência, não haveria o ente finito.
O ato de ser, por sua vez, não é uma operação ou faculdade operativa, mas
algo de fixo e estável no ser finito. O ato de ser de um indivíduo não é o mesmo de
outro. Ele não se identifica com o ser que ele atualiza, devendo haver a essência para
recebê-lo, porque, se não houver sujeito, ele mesmo não poderá existir. O ato de ser
dos entes finitos não é subsistente em si, como o Puro Ato de Ser. O que torna as
coisas diferentes não é o fato de serem, mas de serem o que são. Em outras palavras,
ainda que cada coisa tenha o seu ato de ser individual, este não a faz diferente das
outras coisas, mas sim as essências ou naturezas que a fazem adquirir o ser por
modos diferentes. Isso não quer dizer que a essência tem primazia sobre o ato de ser,
mas apenas que a determinação é importante na constituição do ente finito (GILSON,
1962).
Na filosofia tomista, o ato de ser é o que há de mais íntimo em todas as coisas
e, para que algo tenha ser, é necessário que Deus esteja sempre atuando sobre o
ente. Vale a pena fixar aqui este ponto: para Tomás, o que há de mais íntimo e
profundo em qualquer coisa é seu ato de ser, ou seja, o ato pelo qual a coisa é. Esse
é o tomismo, no sentido filosófico da palavra.
Partindo-se das criaturas para chegar a Deus, Gilson (1962, p. 69) levanta
algumas perguntas. Por que existe o mundo criado? Por que, se existe o Primeiro
Motor, a Causa não causada ou o Ser necessário, existiriam os movidos, as causas
causadas ou os seres contingentes? Usando os termos da filosofia tomista, pode-se
perguntar: se existe o Ato Puro de Ser, por que existiriam os entes finitos?
A resposta é que convém por natureza a qualquer ato comunicar-se tanto
quanto possível, e a natureza divina é puramente ato. Deus, porque é o Puro Ato de
Ser, tende naturalmente a agir, a operar e a comunicar-se por meio da criação. Se
tudo age desde que está em ato, a natureza criadora divina é facilmente compreendida
através da noção de Puro Ato de Ser. É conveniente que um Deus que é Puro Ato
deva agir (GILSON, 1962, p. 75).
Como ser criado é receber o ser, apenas as substâncias são propriamente
criadas, já que somente elas possuem por si mesmas um ato de ser. A substância
toda é criada de uma só vez. O primeiro ponto, contudo, é o ser: o ato pelo qual o ente
é. A primeira das criaturas é o ser. Ser é o princípio formal com respeito a tudo aquilo
que há em alguma coisa (GILSON, 1962).
28
Dado que o ato de ser é o efeito próprio de Deus e a mais íntima e profunda
realidade das criaturas, conclui-se que Deus opera intimamente em todas as coisas.
Gilson (1962, p. 81) afirma:
Deus está presente em todas as coisas não como parte de sua essência nem
como acidente, mas como um agente está presente naquilo que age. Deus não causa
seres finitos somente no momento da criação, mas enquanto a criatura existe, deve
ser mantida no ser. Enquanto uma coisa tem ser, Deus está presente nela. Essa é
uma presença de Deus por sua essência, como causa eficiente. É a doutrina tomista
da cooperação imediata de Deus com as criaturas. Para negar isso, só negando o
tomismo, ou seja, negando que o ato de ser é mais íntimo à criatura que sua essência.
Esse é o lugar central da noção de esse na concepção tomista da relação das criaturas
com Deus.
A relação de Deus e das criaturas é uma relação de participação, derivado do
latim partem capere21, conceito fundamental para entender a analogia do ser, que será
estudada mais adiante. Já se falou no primeiro capítulo de participação na concepção
platônica de metessi, mimesi, koinonia e parusía. Esse conceito se desenvolveu no
neoplatonismo e, através de Santo Agostinho, atingiu sua formulação clássica em São
Tomás de Aquino, que o sintetizou na doutrina aristotélica do ato e da potência e,
englobando nele a noção de causalidade eficiente e exemplar, elevou-o à expressão
essencial da relação criacional (MOLINARO, 2000, p. 104).
Há dois aspectos de que se deve falar da participação: o primeiro se refere à
relação de criação, de derivação e de dependência do ente relativamente ao Puro Ato
Quando se observa de perto esta análise do ser, pela distinção real do par
essência-existência, assinala-se uma transformação profunda da ontologia
de Aristóteles por S. Tomás. E como o mostrou Gilson na sua obra sôbre
L’être et l’essence, isso dá à metafísica do Doutor angélico uma significação
bastante original que nem sempre foi bem percebida, mesmo em sua Escola.
A tendência mais constante dos filósofos, a história o prova, foi sempre a de
considerar o ser mais como uma natureza, como uma essência. [...] Ora, se
retornarmos a S. Tomás, veremos [...] que a existência é ato, ou como a
perfeição última do ser e que o próprio Deus é o Ipsum esse subsistens. O
ser é, pois, para êle, e tanto em Deus como nas criaturas, existência por
excelência. [...] Em sentido bastante diferente, e é preciso sublinhá-lo, do que
toma a palavra em certas filosofias contemporâneas, a metafísica de S.
Tomás pode ser considerada existencialista. E, a êste título, em face dos
antigos racionalismos, escolásticos ou modernos, apresenta-se como um
pensamento notàvelmente original.
a existência determinada pela essência e como algo mais perfeito que ela, o que não
foi considerado pelos filósofos posteriores, tanto escolásticos como modernos.
e daí vem que todo ente conserva o seu ser na medida em que conserva a
unidade. (S. Th. I, XI, I)22
Isso quer dizer que a indivisão é necessária a um ente para ele se manter no
ser. Molinaro (2002, p. 76) explica que a unidade, como indivisão, significa negação
da negação do ser e da oposição do ser. A oposição máxima e absoluta do ser é a
negação do ser, o não-ser, que se opõe contraditoriamente à afirmação do ser. A
unidade, portanto, exprime a oposição contraditória do ser à própria negação; em
outras palavras, o ser exclui, torna impossível o não-ser como sua negação. O ser é
o puro afirmativo, é impossível que haja oposição ao ser e o ser é também identidade,
isto é, não é outra coisa que o ser. Vale a pena relembrar que essa propriedade, assim
como toda propriedade transcendental do ser, está no plano do ser e não da
determinação, ou seja, da essência, relembrando da distinção real entre essência e
existência e que a determinação do ser não é todo o ser. No plano do ser (ontológico)
encontramos a unidade, no plano da determinação do ser (ôntico), a multiplicidade.
Quando se fala da unidade do ser, fala-se que não há realidade que não seja
tal para o ser, que não seja ser. Ao se falar no ser como verdade e bondade, faz-se
uma separação entre ser e espírito (alma, intelecção). O espírito também se separa
em inteligência e vontade e ambas são os modos com os quais o espírito supera a
separação e estabelece a sua identificação com o ser. A verdade seria, então, a
presença do ser na inteligência enquanto a bondade seria a presença da vontade no
ser. O ser se conforma à inteligência no processo da verdade, formando como um
semicírculo, e a vontade se conforma ao ser no processo da bondade, formando outro
semicírculo e fechando o ciclo. Onde termina a interiorização do ser por parte da
inteligência começa a realização da vontade no ser (MOLINARO, 2002, p. 80).
Ao se afirmar que o ser é verum (verdadeiro), afirma-se, portanto, que ele é
inteligível, racional. É conhecível na medida em que “é”, na medida em que está em
ato. É verdadeiro porque participa do ser, segundo Tomás: “A verdade está nas
cousas e no intelecto [...]. Mas, a verdade existente nas cousas converte-se
substancialmente com o ser; a que, porém, existe no intelecto converte-se com o ser”
(S. Th. I, XVI, III, 1r)23.
Isso quer dizer, como a verdade é propriedade transcendental do ser, que toda
a verdade é ser e que todo o ser é verdade. Pode-se falar da verdade lógica, ou seja,
vai dizer que a beleza exige três condições: a integridade, a proporção e o esplendor
ou claridade. A integridade corresponde à unidade, já que ambas são indivisão,
perfeição, plenitude. A proporção corresponde à bondade, que é proporção do ser
consigo mesmo, o ser em posse de si mesmo. O esplendor ou claridade corresponde
à verdade, já que é a manifestação do ser, a luminosidade do ser manifesto, o
esplendor da aparição do ser. Portanto, da harmonia entre unidade, verdade e
bondade, conclui-se que o ser possui também a propriedade transcendental da
beleza.
3.6.1 Analogia
Como Deus é um, único, e as criaturas são múltiplas, é necessário que haja um
meio termo entre a unidade e a multiplicidade e que acabe com a ambiguidade entre
elas: a analogia.
O atributo de analogia do ser vem determinar a metafísica de Tomás de forma
a corrigir eventuais erros na interpretação da filosofia tomista. Gardeil (1967, p. 35)
Não é esse o valor dos termos na doutrina de São Tomás de Aquino. Como já
se viu, Tomás deu à sua filosofia um novo significado ao estabelecer a distinção real
entre essência e existência e afirmar que a existência, o ato de ser, é o que há de
mais íntimo e perfeito em um ente. Com isso, fica impossível isolar a existência real
para poder reduzir a metafísica a uma consideração de essência. Gilson (1962, p. 54)
conclui com isso que no “tomismo autêntico não existe a ‘essência real’ separada do
ato de ser que faz dela uma realidade”. Por isso, a palavra “substância” recebe um
novo significado na doutrina tomista.
A sua noção de ser leva o Aquinate a refundir a definição comumente aceita de
substância. Em vez de dizer que a substância é um ser que é por si próprio, concluindo
que “ser” (ens) seja apenas um gênero e não a existência atual, Tomás prefere dizer
que a substância é aquilo a cuja natureza convém ser por si próprio. Inversamente, a
nova definição de “acidente” seria aquilo a cuja natureza convém existir em e por outro
ser (GILSON, 1962, p. 55). Nas palavras do Doutor Angélico:
Na Suma Teológica:
O nome de substância não significa sòmente o que subsiste por si, porque o
ser em si mesmo não é género, como demonstrámos. Mas, significa a
essência, à qual convém existir dêsse modo, i. é, por si mesmo, sem que isso,
porém, lhe constitua a essência própria (S. Th. I, III, V, 1r)29.
Ou seja, para Tomás, substância não pode ser simplesmente um ens per se e
acidente um ens per alio porque o ser não pode ser simplesmente um conceito, como
diz a metafísica essencialista. Substância é uma essência que é de tal natureza que,
aperfeiçoada pelo ato de ser, existirá em virtude de seu próprio ser. O acidente, ao
contrário, nunca tem existência própria, sua natureza é tal que ele não pode subsistir
por um ato próprio de ser (GILSON, 1962, p. 56).
30 Este trabalho, ao se referir a “homem”, refere-se ao “ser humano” em geral, traduzindo-se do termo
grego anthropos (ἄνθρωπος) ou latino homo e não do grego andrós (ἀνδρóς) ou latino vir, que
significam “varão, ser humano do sexo masculino”.
39
ser”, ou seja, muda a essência de algo que já tem existência, enquanto Deus faz existir
tanto o “ser” como o “tal ser”, isto é, a essência e a existência. Nas palavras de Tomás:
Tôdas as causas criadas têm de comum aquêle efeito que é ser (esse), muito
embora cada qual tenha seus efeitos próprios, pelos quais esta se distingue
daquela. Por exemplo, o calor faz existir o que é quente e o construtor, a casa.
Assim, essas causas têm isso de comum que causam o ser, mas diferem
enquanto o fogo causa o fogo e o construtor, o edifício. Deve, pois, haver uma
causa superior a tôdas as causas em virtude da qual tôdas causam o ser, e
cujo efeito próprio seja o ser (De Potentia VII, 2)31.
Seres criados não criam, mesmo quando produzem o ser, mas sua causalidade
eficiente é imagem da causalidade criadora de Deus. Os seres criados, então,
comunicam algo de sua própria atualidade. Gilson (1962, p. 92) ensina que causar é,
para uma causa, comunicar algo do seu próprio ato de ser ao ser do efeito. Surge uma
mudança de nomenclatura: o devir não seria mais a passagem da potência ao ato
mas, segundo Molinaro (2002, p. 141), é atuação – ação da causa – da potência por
obra da causa: o ato de ser da causa atua a potência do ente deveniente. Em resumo,
para Tomás de Aquino, causar é comunicar o próprio ato de ser. Apenas Deus cria a
essência e a existência. As criaturas, em virtude da participação no Puro Ato de Ser,
agem como causas eficientes, atuando seres em potência.
Assim sendo, quanto mais uma coisa está próxima de Deus, tanto mais
perfeita ela é. Por isso, não pode haver diferença nas formas, senão enquanto
uma é mais perfeita do que a outra, razão por que Aristóteles [Metafísica VIII,
3, segundo o tradutor] assemelha as definições pelas quais são significadas
as naturezas das coisas e as formas, aos números, nos quais as espécies
variam pela adição ou subtração da unidade, para que assim se venha saber
que a diversidade das formas exige graus diversos de perfeição. E isto
claramente aparece a quem for observar a natureza das coisas. Verificará,
com efeito, se o fizer atentamente, que a diversidade das coisas se dá
gradativamente. Assim, encontrará as plantas em grau superior às coisas
inanimadas; sobre as plantas, os animais irracionais; sobre estes, as criaturas
intelectuais. [...] Evidencia-se, pois, que a diversidade das coisas exige que
todas não sejam iguais, mas que nelas exista uma graduação (C.G. III, XCVII,
2)32.
3.7 FINALIDADE
Gilson (1962, p. 93) explica que “Todo ato tende, por natureza a comunicar-se.
Noutras palavras, ser em ato inclui uma tendência a agir. É o significado da fórmula
tomista: ser é tender (esse est tendere)”. O agir, portanto, está intrinsecamente unido
ao que está em ato e, consequentemente, ao ser.
Por isso, Molinaro (2002, p. 148) vai definir o agir como uma propriedade
transcendental do ser, como a unidade, a verdade e a bondade. “É precisamente
aquele transcendental que explicita, exprime e clarifica o ser como síntese da verdade
e da bondade”. Seria a atualidade do ser que por um lado é intelecção e por outro é
volição. A ação explicita, exprime e clarifica o ser como a atualidade, no qual se
explicita, exprime e clarifica o ser enquanto verdade e enquanto bondade. O ser é
ação como atualidade da verdade e da bondade.
Assim, compreende-se a noção de finalidade (do grego télos – τέλoς e do latim
finis). “Há um fim último, a que tudo se ordena: o summum bonum, que é Deus.”
(HIRSCHBERGER, 1959, p. 142). Como tudo se ordena a Ele, onde se encontra a
atualidade de todo o real e de todas as formas, nota-se proximidade e distância,
inferioridade e superioridade em relação a esse fim supremo, donde novamente se
deduz o conceito de graus de perfeição do ser, agora relacionado com o fim último.
“Temos assim diante dos olhos uma completa teleologia do ser e do devir”
(HIRSCHBERGER, 1959, p. 142).
Uma vez que o ser é ação, ele é também intenção e execução e, por isso, é fim
em si, de si e, por isso mesmo, fim absoluto. Afinal, “não é possível um fim do ser que
não seja o próprio ser, já que além do ser ou de outra coisa que não seja o ser, há só
o nada, isto é, não há nada” (MOLINARO, 2000, p. 64). Assim pode-se compreender
a finalidade transcendental do ser, no plano ontológico.
No plano ôntico, Jolivet (1965, p. 313) afirma que as noções de causalidade
estão ligadas à de finalidade. De fato, Tomás de Aquino vai dizer que tudo opera em
vista de um fim:
“Todo agente age por um fim (omne agens agit propter finem)” (MOLINARO,
2002, p. 147). Para Jolivet (1965, p. 313), isso é evidente por si e se demonstra pelo
absurdo: se um agente não estivesse determinado a produzir um efeito definido, não
produziria nem uma coisa nem outra.
O fim é anterior ao ato. Molinaro (2002, p. 146) defende que a causa eficiente
é tal, enquanto, e só enquanto, tem ou é a anterioridade do ato no qual termina e no
qual se realiza a operação do causar, é anteriormente ao efeito. Essa anterioridade é
o fim, a intenção da causa eficiente, sua finalidade essencial.
Jolivet (1965, p. 317) classifica os fins em fim da obra (finis operis), que é o fim
objetivo, da ação em si, por exemplo, o ato de dar esmola com o fim objetivo de ajudar
o mendigo; e fim do agente (finis operantis), que é subjetivo e reside na intenção, por
exemplo, a pessoa dar esmola querendo com isso chamar a atenção para sua
generosidade. Quando o finis operantis não coincide com o finis operis, a obra não
tem mais razão de fim, torna-se simples meio. Nas palavras de Molinaro (2000, p. 64),
o fim da ação ou operação é a atualidade como “união de intenção e execução”.
Nesta união de intenção e execução obtém-se o fim de todos os atos: o bem,
ou seja, o ser34. O ato de ser de um ente finito não é só aquilo por força do qual o ente
é e exercita o seu ser, isto é, a sua atualidade e a sua intenção; mas é também aquilo
em vista do qual o ente é e, desde o princípio, exercita o seu ser, isto é, sua atuação
e sua execução (MOLINARO, 2002, p. 147).
Molinaro (2002, p. 151) vai concluir que essa finalidade intencional e executiva
do ente do ser e para o ser é a expressão da intrínseca finalidade transcendental do
ser, aquela pela qual ser e ação são transcendentalmente conversíveis. Em outras
palavras, se um ente possui seu ato de ser como o que tem de mais íntimo e perfeito,
sua ação vai sempre se direcionar a essa perfeição, naturalmente. O ser inteligível,
como objeto da vontade, acaba se tornando o fim de toda ação causal.
34 Não é intenção deste trabalho discorrer das consequências dessa definição na filosofia moral, ou
seja, na ética. Contudo, vale a pena notar que daí pode-se obter uma explicação metafísica da
existência da lei natural, que é aquela lei já inscrita em cada homem. Isso acontece porque o ser é a
finalidade de todos os atos: toda ação busca o ser, e essa busca já está presente nos entes finitos,
inclusive no ser humano. A lei natural seria, então, expressão dessa busca pelo ser.
43
4 O TOMISMO NA MODERNIDADE
Por fim, convém falar sobre a metafísica realista de São Tomás de Aquino na
modernidade, em especial no século XX, onde muitos pensadores a estudaram.
A metafísica realista foi simplesmente deixada de lado após Tomás e somente
nos séculos XIX e XX ela foi estudada da maneira devida. Também não houve filósofo
moderno que levasse em conta a filosofia do ato de ser. Ao ensinar a definição tomista
de ser, como foi estudado no tópico sobre o ato como ser, Mondin (2010, p. 222)
afirma: “Trata-se de um conceito novo, totalmente desconhecido dos filósofos gregos
e não levado em conta pelos filósofos modernos”.
Deve-se lembrar, também, que a filosofia de Tomás de Aquino é até hoje
considerada pela Igreja Católica35 como o patrimônio filosófico perenemente válido.
Ou seja, para a Igreja Católica, não é a mudança dos tempos que alterará a validade
da metafísica realista.
Este capítulo se dividirá em três partes: primeiro será trabalhado o pensamento
filosófico logo após Tomás de Aquino, onde se verá, através dos estudos de Étienne
Gilson, que mesmo os filósofos que se diziam tomistas na realidade deixaram de lado
no estudo de suas filosofias a metafísica realista. Em seguida, será abordada a
escolha da Igreja Católica pela metafísica realista de Tomás de Aquino para, por fim,
estudar brevemente o tomismo no século XX.
Já no tempo de Tomás, sua filosofia acabou por ser aceita por seus
contemporâneos. O Aquinate começou a ensinar muito jovem, conforme explica
Torrell (1999, p. 43): “Tomás contava então com 27 anos e, segundo os estatutos da
Universidade, deveria contar com 29 para assumir canonicamente esse cargo [de
professor].” e muito cedo já ganhou fama de mestre por onde ensinou.
Após sua morte, a obra de Tomás tornou-se referência entre os dominicanos,
ordem religiosa à qual pertencia. Muitos se diziam seus seguidores, admiravam sua
filosofia. Gilson (1995, p. 672) vai confirmar dizendo que “A despeito das resistências
que encontrou, a doutrina de santo Tomás logo lhe conquistou numerosos discípulos,
35 Este trabalho, ao se referir a “Igreja Católica”, designa a Igreja Católica Apostólica Romana.
44
Gilson (1962, p. 64-65) em seguida vai se perguntar por que ou antes, como
podem os seguidores professos de uma doutrina recusar o primeiro princípio dessa
doutrina? Citando o dominicano Luiz Bañez, que viveu no fim do século XVI, ele
percebe que, na distinção real de essência e existência uma pergunta surge: se a
essência recebe a existência atual, ela antes já não deveria possuir essa existência?
A resposta a essa pergunta é de índole profundamente filosófica: a distinção de
essência e existência não é a de dois seres, mas tem lugar no ser, como se estudou
no tópico sobre Deus e os entes finitos. Para se unir em composição com uma
essência distinta dele, o ato de ser nada deve acrescentar a si próprio, mas, ao
contrário, perde algo de sua atualidade infinita. Contudo, essa indagação não havia
sido respondida e os estudiosos de Tomás preferiram seguir outro caminho.
Como já se viu no segundo capítulo, essa filosofia é difícil de entender porque
entende que a quididade, a essência, objeto próprio da inteligência humana, é algo
negativo. Gilson (1962, p. 65) concorda que isso é “bastante sem sabor para um
intelecto, como o nosso, que se alimenta da quididade”.
45
Gilson (1962, p. 65, grifo nosso) quer defender a metafísica realista não porque
é a doutrina de São Tomás, mas porque é a doutrina que é. “Manter, sob seu nome
[Tomás de Aquino], uma doutrina diferente da sua, não o prejudica, mas nos prejudica.
Rouba-nos a mais alta das verdades filosóficas”.
Para evitar, portanto, confundir a metafísica realista com outra, Gilson (1962,
p. 65-66) vai enumerar as duas variedades de pseudotomismo36 citadas por Bañez
como sendo as principais. A primeira consiste em considerar a existência como um
acidente da essência, o que foi algumas vezes atribuído a Tomás de Aquino. Contudo,
o pseudotomismo mais difundido é o segundo que reduz “a existência à substância,
considerando que ser, é ser uma coisa” (GILSON, 1962, p. 65). Bañez vai atribuir esse
pseudotomismo a Caietano, Capreolus e Suarez. Tornou-se muito difundido,
especialmente pela obra de Caietano, que se apresentou como legítima expressão da
doutrina de Tomás de Aquino. Até mesmo na ordem dominicana, Caietano foi
considerado como o “Comentador” das obras de Tomás (GILSON, 1962, p. 66).
36 Neologismo cunhado por Étienne Gilson que se refere às correntes de pensamento que dizem seguir
a doutrina de São Tomás de Aquino, mas não a seguem de fato.
37 Este texto destinado a estudantes do Ensino Médio exemplifica essa afirmação: “A partir do século
mais fecunda síntese da escolástica, por isso mesmo conhecida como filosofia aristotélico-tomista.”
(ARANHA; MARTINS, 2009, p. 162).
38 Apesar do conteúdo pouco filosófico deste tópico, ele se mostra necessário para a compreensão do
Precisamente por este motivo é que santo Tomás foi sempre proposto pela
Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer
teologia. Nesse contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu
Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da
morte do Doutor Angélico: “Sem dúvida, santo Tomás possuiu, no máximo
grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os
novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a
contaminação do cristianismo pela filosofia profana, mas tão pouco [sic]
defende a rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do
pensamento cristão como um pioneiro no novo caminho da filosofia e da
cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução que ele
deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a
genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade
do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela
tendência antinatural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem
faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural” (FR 43)43.
Isto é, Mondin reconheceu que foi a colaboração dos neotomistas que permitiu
que a filosofia de Tomás não ficasse conhecida na história como mera repetição de
Aristóteles, mas com a originalidade que lhe foi dada pelo Aquinate. De fato, o trabalho
dos neotomistas foi o de redescobrir a filosofia tomista como “filosofia do ser, e não
do simples parecer” (FR 44)44. Grandes nomes, como Étienne Gilson, Jacques
Maritain, Cornélio Fabro, o cardeal Desiré Mercier, Francisco Olgiati, Amato Masnovo,
Umberto Padovani, etc. fizeram a grande defesa do tomismo, afirmando que é válido
para os dias atuais (REALE; ANTISERI, 2007b).
A defesa dos neotomistas está em torno da chamada philosophia perennis,
termo em latim cunhado por Leibniz que significa “filosofia perene”, isto é, a filosofia
que não muda com o tempo. Segundo Hirschberger (1968, p. 131), essa posição
procura o que há de permanente no espírito ocidental e o encontra na filosofia
platônico-aristotélica, de um lado e, de outro, no patrimônio espiritual do Cristianismo.
Assim, com esse ponto de partida, tenta-se esclarecer a situação do homem moderno
no entendimento de si mesmo e do mundo. Não se trata de um historicismo arcaico,
“de museu”, mas pretende-se, numa contínua compreensão de todas as posições
filosóficas importantes, dar uma resposta sistemático-realista às questões suscitadas
pelo homem que filosofa.
É esclarecedora a visão de Maritain (2005, p. 11-12, grifos do autor) com
relação ao tomismo como philosophia perennis:
O tomismo não é somente algo histórico. [...] Ele responde aos problemas
modernos, na ordem especulativa e na ordem prática, tem uma virtude
formativa e libertadora do ponto de vista das aspirações e inquietudes do
tempo presente. Assim, o que esperamos dele é, na ordem especulativa, a
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Optou-se, neste trabalho, por fazer algumas citações diferentes das que as
normas da ABNT exigem. Isso porque, em algumas obras, a classificação clássica
parece ser mais útil para quem vier a consultá-las posteriormente. Pode-se citar como
exemplo as obras de São Tomás de Aquino e Aristóteles, os documentos da Igreja ou
a Sagrada Escritura. Aqui será explicado brevemente como são feitas neste trabalho
estas citações.
As obras de São Tomás de Aquino, em especial a Summa Contra Gentiles
(Suma Contra os Gentios) e a Summa Theologiae (Suma Teológica), são divididas da
seguinte forma (NASCIMENTO, 2011, p. 63-68):
a) A parte, sendo que a Suma Contra os Gentios tem quatro partes
(chamadas de livros), designadas por número romano – I, II, III, IV – e a
Suma Teológica tem três, sendo que a segunda parte é dividida em
outras duas, e que também classificamos por número romano – I, I-II, II-
II, III. As partes da Suma Teológica têm nomes, que são,
respectivamente: prima pars, prima secundae, secunda secundae e
tertia pars.
b) A questão, na Suma Teológica, também enumerada por números
romanos, relacionada a um tema específico, subdividindo a parte. Na
Suma Contra os Gentios está enumerado depois do livro o capítulo.
c) O artigo, que são pequenos textos que subdividem as questões ou
capítulos. As obras citadas de São Tomás de Aquino são praticamente
artigos unidos em questões ou capítulos e em partes ou livros. Na Suma
Teológica, eles estão indicados em números romanos e na Suma Contra
os Gentios são usados números arábicos.
d) Os artigos da Suma Teológica estão divididos no problema exposto, os
argumentos que defendem uma posição contrária à que se quer chegar,
uma citação em contrário a esses argumentos e a resposta de Tomás
ao tema. Depois de dada a resposta, Tomás responde então aos
argumentos contrários colocados no início do artigo. Se a citação for feita
da resposta de Tomás, citar-se-á apenas a parte, a questão e o artigo,
separados por vírgula. Se a citação for feita da resposta a algum
55