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CENTRO UNIVERSITÁRIO CAMPOS DE ANDRADE

CURSO DE FILOSOFIA

HENRIQUE DA SILVA DEZIDÉRIO

A METAFÍSICA REALISTA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO: O ATO DE SER

CURITIBA
2013
HENRIQUE DA SILVA DEZIDÉRIO

A METAFÍSICA REALISTA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO: O ATO DE SER

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura em Filosofia do Centro
Universitário Campos de Andrade, como
requisito parcial à obtenção do título de
licenciado em Filosofia.

Orientador: Prof. MSc. Ir. Irineu Letenski

CURITIBA
2013
Dedico este trabalho a Jesus, Rei e
Senhor, Santíssimo Sacramento do altar,
a quem seja dada a honra e a glória pelos
séculos dos séculos. Ele, e somente Ele,
é a razão de ser do tema deste trabalho.

E a todos que buscam no pensamento


filosófico e metafísico o motivo de suas
existências de coração sincero.
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus, por ter me concedido adentrar no pensamento


filosófico. Ele, o Puro Ato de Ser, a razão de nossa existência, que, simplesmente por
amor, se entregou por nós na pessoa de Jesus e me escolheu para segui-Lo, não por
meus méritos, mas por Sua misericórdia, é aquele que guia nossos pensamentos e
os ilumina para contemplar a verdade. Igualmente agradeço à Virgem Maria que
sempre intercedeu por mim e me acompanhou nessa caminhada.

Agradeço à minha família: meus pais, Vicente e Terezinha, e meus irmãos, Felipe e
Isabela, que sempre estiveram do meu lado, tanto nos bons quanto nos maus
momentos.

Agradeço ao meu orientador, Ir. Irineu Letenski, e aos professores que me ajudaram
fornecendo textos de referência e tirando as principais dúvidas quanto ao tema deste
trabalho: Monsenhor Diniz Mikosz, Padre Gilberto Aurélio Bordini e Prof.ª Teresinha
Teixeira Colleone.

Agradeço também aos professores de filosofia, em especial os que despertaram em


mim o amor pelo pensamento filosófico e a busca pelo ser. Graças à sua ajuda, deixei
de lado o pobre pensamento analítico, cartesiano e utilitarista para abraçar a filosofia
do ser e a metafísica realista.

Agradeço a todos que fizeram parte da minha vida nesses três anos de Filosofia. Meus
formadores, Padre Chemin e Padre Régis e meu diretor espiritual, Padre Antônio
Luciano. Também a todos os meus colegas, que sempre partilharam comigo alegrias
e tristezas, em especial os colegas de turma: André, Danilo, Deivid, Leandro e Kerolim.

Meu agradecimento especial ao Padre Mario Renato Barão Filho, bem como a todos
os paroquianos de Nossa Senhora da Visitação. Foi seu apoio, sua ajuda e suas
orações, principalmente nos momentos de maior dificuldade, alguns dos principais
fatores que me permitiram terminar esta etapa filosófica da formação.
Porque é nele que temos a vida, o
movimento e o ser. (At 17, 28)

Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu


próprio íntimo e mais sublime que o ápice
do meu ser! (Confissões, III, 6)
RESUMO

Esta monografia tem como objetivo geral o estudo da metafísica realista de São
Tomás de Aquino, especialmente o ato de ser (actus essendi). Primeiramente, define-
se metafísica realista como interpretação da realidade absoluta do ser e também são
estudadas as contribuições de filósofos anteriores a Tomás. Em seguida, faz-se o
estudo aprofundado do ato de ser, em especial no que se refere à interpretação do
ato como ser e não como substância, à distinção entre essência e existência, à relação
entre Deus e os entes finitos e ao processo de explicitação do ser, em especial às
propriedades transcendentais, à analogia, ao ato, à potência, à causalidade, aos graus
de perfeição e à finalidade. Por fim, estuda-se o tomismo na modernidade, incluindo
o abandono da metafísica do ato de ser pelos seguidores de Tomás na Idade Média,
a opção da Igreja Católica pela filosofia de Tomás depois da encíclica Aeterni Patris
de Leão XIII e a redescoberta da metafísica do ato de ser pelos filósofos tomistas do
século XX, buscando-se estabelecer um diálogo da metafísica realista com a filosofia
moderna.

Palavras-chave: Tomás de Aquino; metafísica; ontologia; realismo; ato de ser.


LISTA DE ABREVIATURAS

AP Carta Encíclica Aeterni Patris (Leão XIII – 1879)


At Livro bíblico dos Atos dos Apóstolos
C.G. Summa Contra Gentiles (Suma Contra os Gentios)
E.E. Opúsculo filosófico De Ente et Essentia (O Ente e a Essência)
Ex Livro bíblico do Êxodo
FR Carta Encíclica Fides et Ratio (João Paulo II – 1998)
OT Decreto Optatam Totius (Concílio Vaticano II – 1965)
S. Th. Summa Theologiae (Suma Teológica)
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2 A METAFÍSICA REALISTA .................................................................................. 10
2.1 O REALISMO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO .................................................... 10
2.2 ANTECEDENTES DA METAFÍSICA TOMISTA ................................................. 12
2.2.1 Parmênides: o ser como princípio de todas as coisas .................................... 12
2.2.2 Platão: a alteridade e a participação ............................................................... 14
2.2.3 Aristóteles: a metafísica do ato ....................................................................... 15
2.2.4 Al-Fārābī e Avicena: a distinção real entre essência e existência ................... 16
3 O ATO DE SER..................................................................................................... 18
3.1 O CAMINHO DE SÃO TOMÁS .......................................................................... 18
3.2 O ATO COMO SER ............................................................................................ 21
3.3 ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA................................................................................ 23
3.4 DEUS E OS ENTES FINITOS ............................................................................ 26
3.5 A EXPLICITAÇÃO ONTOLÓGICA DO SER ...................................................... 30
3.5.1 Processo de explicitação do ser ...................................................................... 30
3.5.2 Propriedades transcendentais do ser .............................................................. 31
3.6 A EXPLICITAÇÃO ÔNTICA DO SER ................................................................. 34
3.6.1 Analogia .......................................................................................................... 34
3.6.2 Substância e acidente ..................................................................................... 36
3.6.3 Ato e potência: a causalidade ......................................................................... 38
3.6.4 Graus de perfeição .......................................................................................... 39
3.7 FINALIDADE ...................................................................................................... 40
4 O TOMISMO NA MODERNIDADE ....................................................................... 43
4.1 APÓS TOMÁS DE AQUINO............................................................................... 43
4.2 A OPÇÃO DA IGREJA CATÓLICA PELA METAFÍSICA REALISTA ................. 46
4.3 O TOMISMO NO SÉCULO XX........................................................................... 47
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 50
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 52
APÊNDICE – CITAÇÕES DIFERENTES DAS NORMAS ........................................ 54
8

1 INTRODUÇÃO

São Tomás de Aquino1 (1224/25-1274) é até hoje considerado como o maior


pensador da Escolástica, corrente filosófica da Idade Média. Sua filosofia foi baseada
na filosofia aristotélica mas, diferentemente de Aristóteles, Tomás mudou o enfoque
de sua metafísica da substância para o ser. O ato de todas as coisas é o ser. Para se
compreender a filosofia de Tomás de Aquino, é necessário estudar sobre o ato de ser
(actus essendi em latim). O início do estudo da filosofia de Tomás de Aquino acontece
pelo estudo do ser.
Desde o Papa Leão XIII e a sua encíclica Aeterni Patris que a Igreja Católica
declarou a metafísica realista de São Tomás de Aquino como filosofia segura para
sua doutrina. A partir de então houve uma intenção de compreender no que consistiu
essa filosofia. Mesmo na modernidade, o estudo da metafísica tomista se mostrou
importante, principalmente porque não houve nenhum filósofo que a contrariasse. A
Igreja, inclusive, propõe que essa filosofia se coloque numa posição de diálogo com a
modernidade.
O objetivo geral desta monografia é o estudo da metafísica realista de São
Tomás de Aquino, compreendendo o que se entende por ato de ser. Para tanto, ele
se desdobra em três objetivos específicos: (1) Compreender o que é metafísica
realista, distinguindo-a de metafísica essencialista e estudando os pensadores que
colaboraram para seu desenvolvimento; (2) Estudar o ato de ser, especificando-o na
distinção real entre essência e existência, na relação entre Deus e as criaturas e em
seu processo de explicitação; (3) Entender a importância do estudo do tomismo na
modernidade.
No primeiro capítulo do trabalho, será feita uma definição de metafísica realista
a partir da definição dos dicionários e do que é o ser para Tomás de Aquino. Em
seguida, serão estudadas as colaborações de alguns filósofos anteriores a Tomás no
que diz respeito à metafísica realista: Parmênides e o ser como princípio de todas as
coisas, Platão e sua definição de participação, Aristóteles e a metafísica do ato, al-
Fārābī e Avicena com a distinção real entre essência e existência.

1 Optou-se, neste trabalho, a usar a nomenclatura “São Tomás” e não “Santo Tomás”. Isso para
obedecer à regra de nomes de santos que diz que o santo é nomeado “Santo...” se seu nome iniciar
com vogal e “São...” se o nome iniciar com consoante. O ano de seu nascimento é incerto.
9

O segundo capítulo estudará de forma esquemática o ato de ser, concebido por


São Tomás de Aquino. Será visto o caminho que Tomás fez na sua definição de Deus
e que permitiu perceber a primazia do ser em sua filosofia. Em seguida, será
especificada a diferença entre Tomás e Aristóteles na metafísica do ato e como Tomás
definiu que o ato é, não a substância, mas o ser. Definir-se-á então a distinção real
entre essência e existência que se iniciou com os filósofos árabes e ganhou força na
metafísica realista de Tomás. Como consequência dessa distinção, será estudada a
relação entre Deus e os entes finitos. Por fim, far-se-á o estudo do processo de
explicitação do ser: primeiro a explicitação ontológica com as propriedades
transcendentais do ser, depois a explicitação ôntica e suas formas (analogia,
substância e acidente, ato e potência e causalidade e os graus de perfeição) para,
enfim, falar da finalidade, que é uma explicitação do ser tanto ontológica como ôntica.
O terceiro capítulo fará um pequeno estudo sobre a importância do tomismo
para a modernidade. Primeiro, com base nos estudos de Étienne Gilson, conferir-se-
á que os seguidores de Tomás prescindiram do estudo do ato de ser em suas
filosofias, reduzindo o tomismo a uma espécie de aristotelismo. Depois será
constatada a opção feita pela Igreja Católica pela metafísica realista de São Tomás
de Aquino para, finalmente, estudar-se brevemente o trabalho dos filósofos que
estudaram o tomismo no século XX, em especial no seu estudo do ato de ser, tirando
o tomismo daquela concepção errônea de “aristotelismo cristão”.
A metodologia utilizada será da pesquisa bibliográfica em obras do autor: a
Suma Teológica, a Suma Contra os Gentios e o opúsculo filosófico O Ente e a
Essência. Os principais comentadores utilizados serão Étienne Gilson, Aniceto
Molinaro, Battista Mondin, Régis Jolivet, H. D. Gardeil e o historiador da filosofia
Johannes Hirschberger, entre outros.
10

2 A METAFÍSICA REALISTA

2.1 O REALISMO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO

Realismo, para Ferrater Mora (2001), possui quatro definições. A primeira,


científica, está relacionada a ater-se aos fatos tais como são. A segunda fala da
posição tomada em relação aos universais, ou seja, a crença na existência real dos
universais e não apenas dos entes singulares. A terceira é o realismo que se
contrapõe ao idealismo, tanto na Teoria do Conhecimento quanto na metafísica e a
quarta trata do realismo em filosofia da ciência que se contrapõe ao instrumentalismo,
em relação à natureza e função das teorias científicas.
Aqui, detenha-se em primeiro lugar no realismo de acordo com a terceira
definição. Ferrater Mora (2001, p. 2472) diferencia aqui o realismo gnosiológico do
realismo metafísico:

O realismo gnosiológico às vezes se confunde com o realismo metafísico,


mas essa confusão não é necessária; com efeito, pode-se ser realista
gnosiológico e não ser realista metafísico, ou vice-versa. O realismo
gnosiológico afirma que o conhecimento é possível sem necessidade de
supor (como fazem os idealistas) que a consciência impõe à realidade – em
ordem a seu conhecimento – certos conceitos ou categorias a priori; o que
importa no conhecimento é o dado e de maneira alguma o posto (pela
consciência ou pelo sujeito). O realismo metafísico afirma que as coisas
existem fora e independentemente da consciência ou do sujeito. Como se vê,
o realismo gnosiológico se ocupa unicamente do modo de conhecer; o
metafísico, do modo de ser do real.

Tratar-se-á aqui do modo de ser do real, ou seja, do realismo metafísico. No


entanto, dentro do realismo metafísico, há ainda outras divisões existentes, ligadas ao
segundo conceito de Ferrater Mora (2001) quanto à existência dos universais,
contrária ao nominalismo. A posição de São Tomás de Aquino neste ponto é a do
realismo moderado, ou seja, aquele que acredita que o universal está fora da mente,
mas não como uma coisa entre outras e sim como res concepta, “coisa concebida”, e
está na mente, não somente na mente como um simples nome, segundo afirma o
nominalismo, mas também na mente como conceptio mentis, “concepção mental”, ou
seja, “conceito”. Embora não esteja fora da mente, o universal tem um fundamentum
in re, está fundado na coisa, na realidade, porque senão ele seria apenas mera
“imaginação”, simples “posição” de algo.
Essa definição realista dos universais, contrária ao nominalismo, influencia a
metafísica porque o ser, fundamental em toda a filosofia tomista, em muitas
11

concepções, é visto como simples conceito, submisso à essência das coisas. Tomás,
contudo, defende que o ser é real e que é o que tem primazia sobre tudo na filosofia.
Segundo Gilson (1962, pp. 52-53):

Se algum filósofo ou teólogo, ainda que se considere tomista, ensinar uma


metafísica na qual a noção de ser é concebível separadamente da noção de
existência atual, êle pode ficar certo de que, desde o primeiro momento de
sua especulação, já se separa de Tomás de Aquino. Tais filósofos existem.
E acreditam que se tomarmos o ser como um nome (ens ut nomen), êste
prescinde da existência atual. E noutras palavras, definindo o significado da
palavra ser, êsses metafísicos excluem intencionalmente tôda consideração
do ato de ser.

Tomás, no entanto, vai defender que o ser “designa um ato” (C.G. I, XXII, 4)2 e
é “a actualidade de tôda forma ou natureza” (S. Th. I, III, IV)3. Há, na Suma Teológica
(I, IV, I, 3r)4, um resumo esclarecedor da definição tomista sobre isso: “O ser em si é
mais perfeito de todos por actualizar a todos; pois, nenhum ser é actual senão
enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que actualiza todos os outros e, mesmo,
as próprias formas”.
Essa concepção de ser indica que, para Tomás, o ser não é um detalhe nas
coisas ou um acidente ou, muito menos, um simples nome como Gilson exemplificou
acima, mas é real. E, mais do que real, é a realidade em si. É, acabou-se de ver, a
atualidade de todas as coisas, ou seja, o ato de tudo o que é. Adiante ficará clara a
definição do Aquinate5 a respeito do ato.
Pode-se compreender então no que consiste a metafísica realista de São
Tomás. Não é o simples realismo metafísico que Ferrater Mora definiu, apesar de
estar contido nele. Tampouco é, não obstante esteja intimamente relacionado, o
realismo em relação aos universais, visto que o ser não é um universal ou um gênero
porque “nada lhe é estranho ou extrínseco, nada se lhe pode ajuntar de fora, nada
pode se dar de separado e de independente dele” (MOLINARO, 2002, p. 57).
Este realismo é, como já se constatou, relacionado ao ser: o ser é real, ou
melhor, é a maior realidade existente. Em poucas palavras, a metafísica de Tomás é
chamada realista porque compreende o ser como sendo real. A metafísica que

2 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 60. Quando houver citações diferentes das normas, as citações
segundo as normas serão disponibilizadas em notas de rodapé. Cf. apêndice.
3 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 26
4 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 34
5 No decorrer do trabalho, para evitar repetições ao se referir a São Tomás de Aquino, serão usados

alguns dos nomes como ele ficou conhecido: Aquinate, Doutor Angélico, etc.
12

compreende o ser como nome, a que Gilson se referiu, será chamada, com os termos
do mesmo autor, de metafísica essencialista, ou essencialismo, porque, ao se
conceber o ser como um simples nome, ele se reduz “à realidade da sua essência”
(GILSON, 1962, p. 53).
Doravante, ao se referir à metafísica realista, entenda-se o realismo de Tomás.
Vale notar que não há realismo tão absoluto como o tomista no que diz respeito à sua
concepção de ser, mas houve antecedentes históricos, que serão estudados agora
para compreender melhor as raízes desta metafísica.

2.2 ANTECEDENTES DA METAFÍSICA TOMISTA

Antes de abordar a metafísica de São Tomás de Aquino, convém falar


brevemente dos filósofos que desenvolveram os temas usados em sua filosofia.
Convém também lembrar que a filosofia tomista foi original, mas recebeu influências
de vários filósofos. Algo em comum entre esses filósofos é que cada um desenvolveu
um tema abordado por Tomás na sua metafísica; porém, com algumas modificações.
Falar-se-á primeiramente de Parmênides e o ser como princípio de todas as
coisas e depois de Platão com a sua interpretação sobre alteridade e participação. Em
seguida, serão abordados o conceito de metafísica do ato e noção de causalidade em
Aristóteles para, por fim, ver-se o início da distinção real entre essência e existência
concebida por al-Fārābī e Avicena.

2.2.1 Parmênides: o ser como princípio de todas as coisas

Todos os filósofos pré-socráticos tiveram em comum a busca pela arché


(ἀρχή), ou seja, o princípio de todas as coisas. Esse princípio, segundo Molinaro
(2002, p. 17), seria aquilo de que todas as coisas são constituídas, aquilo a partir de
que originariamente derivam, aquilo em que se resolvem em última análise e aquilo
sobre que estão e subsistem. Ele deve ser a unidade que unifica e mantém a
multiplicidade, a imutabilidade que se torna o princípio do devir e, consequentemente
à definição anterior, o eterno que não está sujeito ao tempo que o devir exige. Em
poucas palavras, portanto, o princípio deve ser o uno no múltiplo, o imutável no devir
e o eterno no tempo.
Muitos pré-socráticos (Tales, Anaxímenes, Empédocles, etc.) viam o princípio
como sendo uma determinação particular e limitada (água, ar, terra, fogo, os quatro
13

elementos). Anaximandro, contudo, percebeu que o princípio não poderia ser uma
determinação porque tornar-se-ia apenas uma coisa entre tantas e propôs o mesmo
como uma indeterminação (ἄπειρoν – ápeiron), que nega toda determinação,
compreendendo a todas sem reduzir-se a nenhuma. Heráclito, em seguida, vai propor
como princípio o devir, ou seja, o processo de geração e corrupção das coisas, já que
a indeterminação não poderia explicar esse processo, mas sendo o devir o princípio,
seria o que permaneceria enquanto faria com que as coisas se gerassem e se
corrompessem. O devir seria o uno, imutável e eterno em meio às demais coisas
(MOLINARO, 2002).
Nesse contexto que surge a filosofia de Parmênides. O devir, de fato, pode ser
explicado como princípio eterno e imutável de todas as coisas, mas não explicaria o
fato do próprio devir existir. O devir exerce sua função enquanto é e, por isso, o
princípio precisa ser aquilo pelo qual o devir é. O princípio, então, não é o devir, mas
o ser (MOLINARO, 2002, p. 22).
É esclarecedora a explicação de Reale e Antiseri (2007a, p. 51, grifos do autor)
neste ponto:

No contexto do discurso de Parmênides, “ser” e “não ser” são tomados em


seu significado integral e unívoco: o ser é o positivo puro e o não ser é o
negativo puro, um é o absoluto contraditório do outro. Mas como Parmênides
justifica esse seu grande princípio? A argumentação é muito simples: tudo
aquilo que alguém pensa e diz, é. Não se pode pensar (e, portanto, dizer)
senão pensando (e, portanto, dizendo) aquilo que é. Pensar o nada significa
não pensar absolutamente e dizer o nada significa não dizer nada. Por isso,
o nada é impensável e indizível. Assim, pensar e ser coincidem.

Entende-se, portanto, o pensamento como manifestação do ser. Isso implica


(MOLINARO, 2002, p. 22):
a) Só o ser pode exercer a função de princípio porque não é possível ir
além do ser. Ultrapassar o ser significa cair no nada, no não-ser, que
não é.
b) O ser não pode ser outra coisa senão ser. O outro diferente do ser é
o nada, essencialmente.
c) O ser, por causa disso, não pode devir (ser gerado, se corromper ou
perecer). É imperecível e eterno.
d) A lei, a lógica do ser é o princípio de não contradição: o ser é e não
pode não ser, o não-ser não é e não pode ser, é impossível que seja.
14

e) Consequentemente, o ser na sua totalidade é necessidade de ser e


permanência no ser.
Neste caso, a multiplicidade implicaria a existência do outro diverso do ser ou,
em outras palavras, dizer que o não-ser é. Da mesma forma, o devir implicaria a
passagem do ser ao não-ser e vice-versa e, portanto, a multiplicidade e o devir
estariam contrariando o ser. Parmênides não vai negar a multiplicidade e o devir
porque negá-los seria negar a experiência. Ele vai dizer, ao contrário, que não estão
contra o ser, mas também não vai solucionar este problema (MOLINARO, 2002).

2.2.2 Platão: a alteridade e a participação

Platão empenhou-se no problema acima exposto sobre Parmênides: como


pode o outro ser sem cessar de ser o outro ou o ser ser outro sem cessar de ser.
Numa palavra: o problema da alteridade ou da multiplicidade. Deve-se examinar como
aquilo que verdadeiramente é, como definiu Parmênides, ao mesmo tempo é aquilo
que multiplamente é (MOLINARO, 2002, p. 26).
Hirschberger (1957, p. 97-98) vai sintetizar da seguinte forma a colaboração
platônica, como tentativa de conciliar a filosofia de Heráclito e de Parmênides:

Se compreendemos bem o segrêdo da comunidade das Idéias (χoινωνία τῶν


γενῶν), então chegaremos a entender que não é exata a alternativa: ou
Heráclito ou os eleatas [Parmênides e seus discípulos Zenão e Melisso], ou
unidade ou multiplicidade, ou identidade ou sòmente diversidade. Mas a
simultaneidade é o verdadeiro: cada alternativa considerou um aspecto
verdadeiro do ser, pois coexistem a unidade e a multiplicidade, a identidade
e a variedade, o ser e o não-ser. E a idéia de participação é a chave
conducente a uma síntese que é como a ponte a ligar os dois extremos. Leva
em conta a identidade, sem perder a variedade de vista.

Isto é, Platão vai solucionar o aparente embate entre os pré-socráticos com a


ideia de participação. Segundo Molinaro (2002, p. 27), a solução platônica consiste
em afirmar o ser que aparece absolutamente e que se contrapõe absolutamente ao
não-ser absoluto. Mas nessa linha absoluta aparece um ser certo e determinado que
necessariamente é, mas que é aquele ser e não é outro ser certo e determinado. Por
exemplo: a árvore é, e é árvore, mas não é a pedra. Neste ponto, percebe-se a
presença da alteridade, e não da contraditoriedade. A oposição de contradição
acontece no plano absoluto: absoluto ser e absoluto não-ser. A oposição de alteridade
ou diversidade acontece no plano relativo: ser outro e não ser outro.
15

Esta constituição do outro implica dois tipos de relação: primeiro com o ser e o
não-ser absolutos e segundo com os outros entes. A estrutura da relação que o outro
implica com o ser absoluto e com o absoluto não-ser é vista, como já se afirmou, na
figura metafísica de participação, contributo de Platão que se configura de vários
modos (MOLINARO, 2002, p. 29):
a) Participação como tal (µέθεξις – metessi), um “ter parte em”, tomar
parte do ser (partem capere);
b) Imitação ou mimesi (µίµησις), donde resulta a semelhança;
c) Comunhão ou koinonia (χoινωνία), que surge entre o que participa e
aquilo do que participa;
d) Presença ou parusía (παρoυσία): pela presença do ser os entes são
(presença, presentificação, apresentação do ser).

2.2.3 Aristóteles: a metafísica do ato

Aristóteles, ao refletir sobre o devir em uma perspectiva diferente de Heráclito,


buscando, assim como Platão com a multiplicidade, uma resposta para o problema do
devir não respondido por Parmênides, desenvolveu uma metafísica do ato, que foi
fundamental para a metafísica realista de São Tomás.
Na linha de raciocínio exposta por Molinaro (2002, p. 35), Aristóteles vai
percebendo que o devir é um processo de um ente ou sobre um ente. Percebe-se,
então, que há no ente deveniente, isto é, que sofre o devir, um substrato idêntico,
estável, permanente e imutável e que sem o mesmo não se dá o devir. O devir acaba
ocorrendo numa base permanente e imóvel.
O devir seria então a passagem do substrato idêntico de um estado de privação
a um estado de forma. Por exemplo: passagem do não-branco ao branco. Esse estado
de privação não é nada, mas uma realidade: é o ser em potência, a respeito do qual
o estado de forma correlato é o ser em ato. Toda privação é privação referente àquela
forma e toda potência é potência referente àquele ato. O devir não é, portanto, uma
passagem do não-ser absoluto, mas de um certo qual não-ser, que é tal referente à
forma ou ao ato, ao qual termina (MOLINARO, 2002, p. 36).
Vale notar, contudo, que o devir, mesmo com a introdução do substrato,
continua sendo uma passagem do não-ser ao ser. A potencialidade não só não é o
ato, mas também não pode tornar-se ato por si mesma: isso seria gerar o ser a partir
16

do nada. Exige-se, então, a introdução de um quarto elemento: a causa, um princípio


que já é em ato. É a tese do primado do ato: nada passa da potência ao ato senão em
virtude de um ente em ato. Aristóteles (1969, p. 200) vai dizer:

Pois do que existe em potência nasce o que existe em ato pela ação de um
ser existente em ato, p. ex. o homem do homem, o músico pelo músico; há
sempre um primeiro motor, que já existe em ato. [...] tudo quanto é produzido
o é de alguma coisa e por alguma coisa, e é da mesma espécie desta
(Metafísica IX, 8).

Como o devir só acontece em virtude de um outro ente em ato, a causa, se


essa causa for causada por outra e essa outra por outra e assim sucessivamente,
chega-se à conclusão, para evitar-se regredir ao infinito, da necessidade de existir
uma causa primeira, um ente que é só ato, Ato Puro, Deus, isento de privações, imóvel
e imutável em sentido absoluto (MOLINARO, 2002, p. 37).

2.2.4 Al-Fārābī e Avicena: a distinção real entre essência e existência

O filósofo árabe Avicena, seguindo al-Fārābī, concebeu a distinção real entre


essência e existência, que é fundamental para compreender a noção tomista de ser.
Segundo Gilson (1962, p. 23, grifos do autor):

Tomás sempre teve sua própria noção de ser. [...] Ela foi preparada com
certeza pela Metafísica de Avicena, e, através desta, pela de Alfarabi.
Sustentavam êstes dois filósofos a tese de que a existência é um
complemento da substância que, por não estar incluso na sua essência, lhe
sobrevém, por assim dizer, como um acidente. Sòmente Deus não recebe a
existência como complemento de sua essência. Deus não tem sua própria
existência, êle é sua própria existência.

É possível compreender, segundo essa citação, que, para al-Fārābī e Avicena,


a existência seria então um acidente da essência. Iskandar (2011, p. 82, grifo nosso),
contudo, vai discordar dessa afirmação: “Há que se destacar que [...] houve uma
importante contribuição aviceniana para a época quando ele [Avicena] propôs a
distinção real entre essência e existência, negando que a existência seja um simples
acidente da essência”. Abbagnano (2012, p. 421) vai acrescentar que a redução de
existência como um simples acidente da essência foi obra do filósofo judeu Moisés
Maimônides, mas quem deu a melhor expressão a essa distinção foi Tomás de
Aquino.
Seguindo, portanto, a definição de Abbagnano, definir-se-á essência e
existência quando se iniciar o estudo da metafísica realista de São Tomás de Aquino.
17

Basta saber por ora que a distinção real entre os termos já foi concebida pelos filósofos
árabes.
Como consideração final deste capítulo, afirma-se que a filosofia tomista foi
original, como se verá mais tarde. Contudo, é útil perceber as influências que Tomás
recebeu dos filósofos anteriores para poder compreender melhor sua filosofia. De
Parmênides, Tomás definiu que o ser é o princípio de todas as coisas, mas deixou de
lado a univocidade. De Platão, Tomás herdou o conceito de participação, adaptando-
o à metafísica do ato. De Aristóteles, Tomás continuou a metafísica do ato, contudo
definiu como o ato de todas as coisas não a substância, mas o ser. De Avicena, Tomás
retomou a distinção real entre essência e existência, desconsiderando a interpretação
de Maimônides de existência como um acidente da essência. O fundamento da
metafísica de Tomás derivou-se dessas influências, mas com uma originalidade
própria ligada à sua concepção de ato de ser.
18

3 O ATO DE SER

A metafísica realista de São Tomás de Aquino se destaca por ser a metafísica


do ato de ser. O primeiro capítulo já mostrou que essa metafísica considera o ser
como sendo real, ou melhor, a maior realidade existente. Aqui compreender-se-á no
que consiste essa metafísica. Segundo Mondin (2010, p. 219):

Causa universalíssima de tudo o que existe, tanto para santo Tomás como
para Parmênides, é o ser, não a água, o ar, o fogo, o bem, ou a substância.
O ser é a causa universal de todas as coisas, porque é o receptáculo de toda
perfeição e a fonte última de toda realidade.

Não se pode falar em filosofia tomista, portanto, sem se referir ao ato de ser. A
metafísica do ato de ser traspassa toda a filosofia tomista, de modo que tudo o que
São Tomás definiu em sua filosofia está ligado ao ato de ser.

3.1 O CAMINHO DE SÃO TOMÁS

Não se sabe como Tomás chegou à apreensão de suas noções fundamentais


em Filosofia. Parece que ele sempre teve sua própria noção de ser. Houve uma
espécie de preparação por al-Fārābī, Avicena e Maimônides, como já foi visto no
capítulo anterior, mas, segundo Gilson (1962, p. 24), “a noção pròpriamente tomista
de ser aparece pela primeira vez nos trabalhos de São Tomás de Aquino”. Em vão se
procuraria também a justificação de sua noção de ser por ser uma noção primeira,
com princípios indemonstráveis.
É possível, contudo, seguir passo a passo o modo pessoal de abordar a noção
de ser de Tomás que está no âmago da sua concepção metafísica de realidade. Isso
acontece na Suma Contra os Gentios e na Suma Teológica, quando Tomás pretende
falar da essência de Deus. Na Suma Contra os Gentios, esse caminho aparece no
primeiro livro, do capítulo XIV ao XXVII, enquanto na Suma Teológica todo o caminho
está na prima pars, questão III6. Aqui se seguirá o texto da Suma Contra os Gentios,
citando quando for necessário a Suma Teológica.
Tomás seguiu o caminho de eliminar da natureza divina, sucessivamente, todos
os tipos de composição. O caminho da eliminação se fez necessário porque não se
poderia chegar à noção de Deus pela afirmação, como já havia percebido o Pseudo-

6 Quanto às divisões das obras de São Tomás de Aquino, cf. apêndice.


19

Dionísio Areopagita e a sua chamada teologia “apofática”, que afirmava que a melhor
maneira de falar de Deus era “negando-lhe todo atributo, à medida que ele é superior
a todos” (REALE; ANTISERI, 2007a, p. 421). Aqui o Doutor Angélico vai afirmar:

Como, porém, na consideração da substância divina, não podemos


apreender sua qüididade, como se fosse um gênero; nem tampouco podemos
apreender sua distinção de outras coisas por diferentes afirmativas, é
necessário apreendê-la por diferenças negativas (C.G. I, XIV, 3).7

De fato, o caminho trilhado por Tomás é o de negar a Deus toda determinação.


No capítulo XV do primeiro livro da Suma Contra os Gentios, ele definirá que Deus é
eterno, não está sujeito à temporalidade. O capítulo XVI dirá que em Deus não há
potência, que Deus é puro ato. O capítulo XVII ensinará que em Deus não há matéria
e o XVIII que não há composição. No capítulo XIX, Tomás conclui que não há nada
de violento ou estranho à natureza divina. No longo capítulo XX ele diz que Deus não
é corpo e no capítulo XXI ele vai dizer que Deus é sua essência ou quididade.
E aqui se percebe onde se encontra a noção de ser de Tomás. O caminho
trilhado na Suma Teológica é mais curto, porém também se detém na definição que
Deus é sua essência, no artigo III. Gilson (1962, p. 25) explica que alguns filósofos
cristãos como, por exemplo, Santo Agostinho, já haviam concluído isso, em especial
da definição que o próprio Deus faz de si mesmo na Sagrada Escritura, ao se dirigir a
Moisés: “Deus respondeu a Moisés: ‘EU SOU AQUELE QUE SOU’. E ajuntou: ‘Eis
como responderás aos israelitas: (Aquele que se chama) EU SOU envia-me para junto
de vós’” (Ex 3, 14).8
Tomás defende que Deus é sua essência com este exemplo: ao se definir
Sócrates, tomamos como sua essência a humanidade. Sócrates, porém, não é
humanidade, mas humanidade mais alguma coisa que o faz ser Sócrates, a chamada
matéria assinalada, ou individualizante. Nos termos tomistas, “As essências [...] são
individualizadas pela matéria assinalada deste ou daquele indivíduo” (C.G. I, XXI, 3)9.
O mesmo, contudo, não acontece com Deus: “A essência divina existe singularmente

7 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 46.


8 BÍBLIA, 2006, p. 103. Vale a pena aqui uma rápida observação: alguns filósofos poderiam dizer que
a filosofia cristã não é filosofia de fato por não conter “pureza racional”, mas estar baseada na revelação
cristã. Apesar de não concordar com essa posição, não é objetivo deste trabalho defender uma posição
contrária, mas é necessário observar que a filosofia em geral se baseia no uso da razão, não sendo,
contudo, as premissas do pensamento filosófico necessariamente racionais.
9 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 58.
20

por si mesma e em si mesma é individualizada” (C.G. I, XXI, 3)10. Explica-se, então, o


que vários filósofos já haviam dito sobre Deus ser sua essência.
O caminho de Tomás, contudo, foi novo ao passar para o capítulo XXII, ou o
artigo IV da S. Th. I, III, seguindo não o caminho da essência, mas o do ser. O Aquinate
afirma que em Deus são idênticos “ser atual” e “essência” ou, em outros termos, que,
em Deus, essência e existência são a mesma coisa. Argumenta-se que, se a essência
de Deus não fosse o seu “ser” (“esse”), que é “o nome de um ato”, Deus não seria por
sua própria essência: seria por participação ao verdadeiro “esse” graças ao qual ele
existe. Ele identifica Deus, portanto, com o ato sem o qual nenhuma essência existiria.
Logo, ao nomear Deus, definimo-lo como o Puro Ato de Ser, o Ipsum Esse
Subsistens11, ou seja, o Puro ato existencial, aquilo cuja essência toda é ser. Pode-se
exprimir o caminho de Tomás pela seguinte sequência lógica: se a filosofia toma a
existência atual como objeto de importância para a reflexão filosófica, indagar-se-á se
há algo de misterioso no fato de que exista alguma coisa em vez de nada. Se alguma
coisa é, ser é tão importante que se apresenta como a condição necessária para tudo
o mais. O que é mais importante, torna-se aquilo que Deus é. Logo, Deus é puramente
Ser12. Daí se conclui que, em Deus, a essência não é de modo algum distinta da
existência, isto é, do Puro Ato de Ser. Afirmar que Deus é somente Ser é negar-lhe
tudo o que, sendo uma determinação do ser, é uma negação do ser, de acordo com
o caminho da eliminação escolhido por Tomás. Qualquer outra afirmação a respeito
de Deus conduziria a uma ideia errada a respeito do que seja Deus (GILSON, 1962).
Aqui se nota o primado do ser para São Tomás de Aquino: o ser é a perfeição
de todas as coisas, então Deus é puramente Ser. Para Tomás, o ser é o princípio de
todas as coisas. É a partir do ser que as coisas são ou, nas palavras do Aquinate,
“toda coisa é porque tem ser.” (C.G. I, XXII, 6)13. Tomás adotou um novo conceito de
ser, e daí concluiu a sua definição de Deus: Deus é o Puro Ato de Ser e, em Deus,
aquilo que nos demais entes se denomina essência é idêntico ao Ato de Ser ou, em
outras palavras, Ato de Ser e essência, em Deus, são a mesma coisa.

10 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 58.


11 Ser por si subsistente, numa tradução literal do latim.
12 Obs.: Neste trabalho, a palavra “Ser” iniciada com maiúscula designa o Ser divino, subsistente em si

(Ipsum Esse Subsistens), enquanto a palavra “ser” com letra minúscula designa o ser transcendental,
determinado pela essência nos entes finitos.
13 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 60.
21

3.2 O ATO COMO SER

Quando se estudou a filosofia aristotélica no capítulo anterior, percebeu-se a


cooperação de Aristóteles ao falar do processo do devir como passagem do substrato
da potência ao ato pela ação da causa. Aristóteles havia concebido com isso a tese
do primado do ato, onde disse que nada fica em ato senão em virtude de um ente que
já está em ato (MOLINARO, 2002, p. 37).
A metafísica de São Tomás, segundo Molinaro (2002, p. 38), herdou da
metafísica aristotélica a tese do primado do ato: ambas são metafísicas do ato
(ἐνέργεια – enérgeia, actus). O que as diferencia uma da outra é que, para Aristóteles,
o ato é a forma, a determinação, a substância, enquanto que para Tomás, o ato é o
ser, a pura e total atualidade do ser. Em outra obra, Molinaro (2000, p. 26) vai afirmar:

Tanto sob o aspecto de enérgeia como sob o de entelécheia, ato é a palavra


e o conceito-chave da metafísica de Aristóteles, o qual não ultrapassou,
porém, a identificação do ato como forma. A ultrapassagem do ato como
forma para o ato como ser é contribuição de santo Tomás, sob inspiração
parmenideana [sic]. O sinal essencial e inegavelmente decisivo dessa
ultrapassagem é que o Ato puro aristotélico se transforma e se eleva a Ipsum
Esse Subsistens.

Assim como para Parmênides, o ser para São Tomás é a causa universalíssima
de tudo o que existe, porque é o receptáculo de toda perfeição e a fonte última de toda
a realidade. Não é simples presença nem perfeição mínima nem uma barca que
abrange todo o universo, o que o Aquinate chamou de ens commune, conceito donde
parte a sua investigação metafísica e que é vago, indeterminado e que não preenche
as coisas da perfeição que possuem. Adentrando no conceito superficial de ser, o
esse commune, Tomás chegou a descobrir e explicar o conceito profundo de ser, de
onde o conceito superficial recebe substância e valor (MONDIN, 2010, p. 219-220).
Ao se falar de Deus ou dos entes finitos, emprega-se sempre a palavra ato. Ser
é o “ato de todos os atos”. No senso comum, ato significa ação, operação, mas isso
seria apenas um ato “segundo”. Antes desse tipo de ato há outros atos dos quais os
segundos decorrem, os “atos primeiros”, que só podem ser conhecidos a partir de
seus efeitos, ou seja, as operações, os “atos segundos”. Podemos dizer que a alma
humana, por exemplo, além de ser uma forma, é também um ato primeiro. Chamando
ser ou “esse” a um ato, diz-se que é um “ato primeiro”, ou seja, um princípio que se
conhece sua existência com certeza pelo efeito que causa. Ao contrário das ciências
empíricas e da filosofia da natureza, a metafísica, que tem como objeto próprio a
22

consideração do ser enquanto ser, leva sua investigação além das operações
realizadas pelas substâncias (ciências empíricas) e dos atos primeiros, das formas,
causas dessas operações (filosofia da natureza) para chegar, começando e
terminando, na investigação do ser (GILSON, 1962).
É esclarecedora a explicação de Lauand (1993, p. 31, grifo do autor) a respeito
do ato de ser:

E o que significa ser? Ser é, antes de mais nada, atividade, ato. Todas as
coisas, todos os entes, são antes de mais nada, “aqueles que exercem o ato
de ser” [...]. Mas justamente por constituir a primeira atividade, a mais
fundamental – e “a mais maravilhosa”, dirá Gilson [...] –, o ser escapa a
qualquer definição: “O ato de ser não pode ser definido”.

Já foi citado no primeiro capítulo o que seria o ser para São Tomás: o ser
“designa um ato” (C.G. I, XXII, 4)14 e é “a actualidade de tôda forma ou natureza” (S.
Th. I, III, IV)15, “O ser em si é [o] mais perfeito de todos por actualizar a todos; pois,
nenhum ser é actual senão enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que actualiza
todos os outros e, mesmo, as próprias formas”. (S. Th. I, IV, I, 3r)16. Considerado
absolutamente, “é infinito, porque infinitas coisas podem participar dele de diversos
modos” (C.G. I, XLIII, 6)17. Mondin (2010, p. 221-222) resume:

O ser é, verdadeiramente, a atualidade de qualquer forma ou natureza, o ato


primeiro e último de qualquer ente. [...] O ser está, pois, no fundo da realidade
do ente e sustenta-a em todos os seus momentos, modalidades e formas. O
ser é, verdadeiramente, a perfeição absoluta, a raiz de todas as perfeições.
[...] enquanto nenhuma outra perfeição e nenhum outro valor são concebíveis
como efetivos, isto é, como reais, sem que participem do ser, o ser, ao
contrário, pode ser concebido mesmo que não participe de outras perfeições:
é concebível em si mesmo, ut esse ipsum subsistens. Enfim, o ser, como
afirma Tomás de Aquino, é o que há de mais íntimo e profundo nas coisas.
[...] Na trama constitutiva do ente, no seu desenvolvimento, na sua conclusão,
tudo procede do ser: o ente forma-se graças ao ser, parte do ser e retorna ao
ser. [...] Trata-se de um conceito novo, totalmente desconhecido dos filósofos
gregos e não levado em conta pelos filósofos modernos.

Em síntese, nota-se que “essas características se condensam na afirmação da


atualidade pura e absoluta do ser” (MOLINARO, 2002, p. 63).
Falando-se agora da divisão do ser em potência e ato, Tomás segue Aristóteles
ao dizer que essa divisão ocorre em qualquer tipo de composição. A mais geral de
todas as composições é a composição de ato e potência. Ao dizer que Deus é Puro

14 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 60.


15 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 26.
16 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 34.
17 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 88.
23

Ato, tende-se a reduzir a noção de ser à noção de ato, que parece mais elevada. Este
é um perigo que se deve evitar: imaginar que o ato é uma noção mais elevada que o
ser. Deve-se, portanto, destacar que não há noção mais ampla e fundamental que a
noção de ser. O primeiro princípio é ser, e não ato. Não se reduz a noção de ser à
noção de ato, mas a noção de ato à noção de ser. Que é ato? Ato é ser. Ser Puro Ato
é ser Puro Ser, é ser o próprio Deus. Ato é redutível a Deus e não Deus a ato (GILSON,
1962).
Em todos os entes finitos há sempre um grau de potência, já que, sempre
finitos, algo lhes limita a atualidade. Potência é a aptidão a vir-a-ser e se mede pela
distância que separa aquilo que o ente é daquilo que ele pode vir a ser: a composição
de ato e potência é simplesmente a composição de um ente tomado em nível mais
baixo de atualidade com uma perfeição que pode elevá-lo a mais alto nível de
atualidade. Como quer que se considere a realidade, a inteligência nunca sai da noção
de ser (GILSON, 1962, p. 47).
Em poucas palavras, o ser é o que há de mais perfeito em todos os entes, o
que coloca todos em ato. O ato de ser, portanto, não é uma operação ou faculdade
operativa, mas algo de fixo e estável no ser finito, é o que de mais perfeito há no ente
finito. A potência é uma aptidão a vir-a-ser, algo que pode elevar a perfeição do ente.

3.3 ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA

Como já foi visto no capítulo anterior, a distinção real entre essência e


existência iniciou-se com al-Fārābī e Avicena e, de acordo com Abbagnano (2012, p.
421), “quem deu à doutrina sua melhor expressão foi Tomás de Aquino”. De fato, a
distinção entre essência e existência presente na metafísica tomista é fundamental
para entender a concepção tomista de Deus.
Quando se falou do caminho de Tomás, percebeu-se que ele foi mais além no
capítulo XXII do livro I da Suma Contra os Gentios, quando, ao definir a essência de
Deus, ele concluiu que, em Deus, essência e existência são a mesma coisa: Deus é
o Puro Ato de Ser. O ato de ser é a energia metafísica que faz um ente existir, ou seja,
a própria existência do ente. Então, em Deus, a essência e a existência, ou ato de ser,
são a mesma coisa.
Na Suma Teológica, prima pars, questão III, ao fazer o mesmo caminho
descrito acima, Tomás de Aquino tem um objetivo: provar que Deus é simples, isto é,
24

que em Deus não há nenhum tipo de composição. No artigo VII, ele faz a conclusão
da simplicidade de Deus: não há nem composição de matéria e forma, de potência e
ato e de essência e existência.
Para chegar à simplicidade de Deus, a última composição eliminada foi a de
essência e existência. Por conseguinte, a primeira composição encontrada nas
criaturas é a composição de essência e existência. Com exceção de Deus, todo ser
se compõe pelo menos “daquilo que” ele é, isto é, sua essência, e do ato existencial
em virtude do que ele é, ou seja, do seu ato de ser. À questão “qual é, no tomismo, o
sentido da célebre composição de essência e existência?” a resposta direta é: isso
significa que, como Deus é o seu próprio Ato de Ser, nenhum outro ente pode ser o
seu próprio ato de ser (GILSON, 1962).
A existência ou ato de ser, como se viu, é a energia metafísica que faz um ente
finito existir. A distinção real entre essência e existência é defendida por Tomás da
seguinte forma:

Ora, toda essência ou quididade pode ser inteligida sem que algo seja
inteligido do seu ser. Posso, de fato, inteligir o que é o homem ou a fênix e,
no entanto, ignorar se tem ser na natureza das coisas. Portanto, é claro que
o ser é outro em relação à essência ou quididade (E.E. IV, 52)18.

Compreende-se, então, que a essência difere da existência porque é possível


conceber algo sem necessariamente comprovar sua existência.
Daí se conclui o que é essência: a definição da coisa. Tomás usa dois termos
iniciais para definir: quididade, ou seja, “aquilo pelo qual algo tem o ser algo” e
natureza, segundo Boécio, “aquilo que pode ser captado pelo intelecto” (E.E. I, 5)19.
Ele prefere usar, no entanto, um terceiro termo, essência, que abrange os dois
anteriores, e quer significar “que, por ela e nela, o ente tem o ser” (E.E. I, 6)20.
Aqui compreende-se o que é o ente: aquilo cujo ato é ser. A definição pode ficar
mais clara ao comparar com a definição de vivente: aquilo cujo ato é viver. Ato seria
aqui a atualidade pura, a perfeição máxima: o ser é o ato de tudo o que é em tudo o
que é, assim como o viver é o ato de tudo o que vive em tudo o que vive (MOLINARO,
2002, p. 56). “O ente não é o ser, mas uma determinação do ser, um isso ou um aquilo
do ser, o ser deste ou daquele modo” (MOLINARO, 2000, p. 8). A determinação,

18 TOMÁS DE AQUINO, 2013, p. 38-39.


19 TOMÁS DE AQUINO, 2013, p. 19-20.
20 TOMÁS DE AQUINO, 2013, p. 20.
25

então, seria a essência. O ato de ser, a atualidade pura e a perfeição máxima do ente,
seria a existência.
A causa da finitude nos entes é a essência ou, em outras palavras, o que faz
um ente ser finito é aquilo que se acrescenta ao seu ato de ser. Em todos os entes,
com exceção de Deus, o ato de ser é limitado, determinado e restringido pela sua
essência. Portanto, o ente finito pode ser concebido como um ente cujo ato existencial
é limitado pela própria essência que ele possui. O efeito primordial da essência é
restringir o ato de ser às dimensões determinadas pela definição daquilo que a
essência é. Isso quer dizer que a essência de um ente finito, fazendo-o ser aquilo que
ele é, impede-o de ser o próprio Deus ou, em outras palavras, a essência de um ente
finito restringe o ato de ser, impedindo-o de ser o Puro Ato de Ser. Como
consequência, com exceção de Deus, todos os entes têm a essência distinta da
existência e nada há de mais perfeito que o próprio ato pelo qual eles são. O ato de
ser é o ato de todos os atos, a perfeição de todas as perfeições (GILSON, 1962).
Há muita resistência neste pensamento, mas ele é inseparável da metafísica
realista. Como Deus é o Puro Ato de Ser, toda participação na perfeição da natureza
divina é, antes de mais nada, uma participação daquele ato supremo. Nota-se aqui
que a essência não aperfeiçoa o ato de ser, antes o “desaperfeiçoa”. Esta é uma
filosofia difícil de entender por se apoiar em uma noção extremamente simples, mas
principalmente porque entende que a quididade, a essência, objeto próprio da
inteligência humana, é algo negativo. Mas é possível compreender que essa
negatividade acontece em relação ao Puro Ato de Ser, Deus. Como são as essências
participações do ser cada uma, há nelas uma perfeição também, apesar de haver a
imperfeição de ser apenas uma parte do ser. Há graus de perfeição nos entes, como
se verá adiante: é melhor ser pedra que ser nada, melhor ser planta que pedra, ser
animal que planta, ser homem que animal irracional, ser anjo que homem e
infinitamente melhor ser o Puro Ato de Ser. É sempre bom para um ente finito ser o
que ele é, se bem que em comparação com o Puro Ser, é uma imperfeição para
qualquer essência ser somente isto ou aquilo (GILSON, 1962).
26

3.4 DEUS E OS ENTES FINITOS

Antes de explanar sobre o ser, precisa-se compreender o que são os entes


finitos em sua relação com o Puro Ato de Ser, Deus. Essa necessidade se mostra
para compreender o processo de explicitação do ser, que será estudado em seguida.
Primeiramente, segundo Gilson (1962), deve-se entender que, para Tomás,
“ser” e “ser infinito” são a mesma coisa, já que “infinito” é um termo negativo que quer
eliminar toda noção de finitude, o que se aplica a Deus. Como já se afirmou, em Deus,
o Ato de Ser é aquilo que, nos outros entes, chama-se essência e, nos entes finitos,
a essência é o que limita seu ato de ser, impedindo-os de ser o Puro Ato de Ser.
Como também já se afirmou, diferentemente de Deus, os entes finitos possuem
composição, pelo menos, de essência e existência, isto é, uma estrutura metafísica.
Segundo Gilson (1962), todo ato de ser põe o ente na condição de existência atual,
fora do nada, mas ao mesmo tempo, o ser não é o mesmo no Ato de Ser Subsistente
em Si, Deus, e nas substâncias que o têm distinto de sua essência. Pode-se definir o
ente finito com precisão como sendo uma essência dotada de um ato de ser,
lembrando sempre que a existência é mais perfeita que a essência.
Avicena talvez tenha chegado mais longe que Tomás ao afirmar que Deus não
tem essência. É provável que o Aquinate tenha se sentido tentado a seguir esse
raciocínio, mas nunca fez essa afirmação em suas obras, apesar também de não
condená-la. A essência de algo é a resposta à pergunta “Que é isso?”. Dizer que Deus
não tem essência é responder “Nada” à pergunta “O que é Deus?”, o que é impossível.
Essa definição até pode ser válida já que se considera essência como algo distinto do
Puro Ato de existência atual de Deus, como aquilo que limita o ato de ser. A filosofia,
contudo, precisa da linguagem para se manifestar e, por isso, parece que Tomás não
quer que se perca o contato com a realidade finita, mesmo ao se falar de Deus.
(GILSON, 1962).
Falando-se da essência, não é possível, afirma Gilson (1962, p. 52), do ponto
de vista tomista, conceber a noção de ser separadamente da noção de existência
atual, como faz a metafísica essencialista, “cuja tese decisiva é a da redutibilidade do
real à essência” (BRANDÃO, 1994, p. 45, grifo do autor). O ente finito tem causas,
que são seus elementos constitutivos: a essência e o ato de ser. Não são dois seres,
mas juntos são a composição de um mesmo ser. Não se deve resumir a metafísica a
uma consideração da essência, mas é notável a importância da essência na
27

composição do ente finito: ela é o próprio sujeito que recebe o ato em virtude do qual
determinado ser existe. Sem a essência, não haveria o ente finito.
O ato de ser, por sua vez, não é uma operação ou faculdade operativa, mas
algo de fixo e estável no ser finito. O ato de ser de um indivíduo não é o mesmo de
outro. Ele não se identifica com o ser que ele atualiza, devendo haver a essência para
recebê-lo, porque, se não houver sujeito, ele mesmo não poderá existir. O ato de ser
dos entes finitos não é subsistente em si, como o Puro Ato de Ser. O que torna as
coisas diferentes não é o fato de serem, mas de serem o que são. Em outras palavras,
ainda que cada coisa tenha o seu ato de ser individual, este não a faz diferente das
outras coisas, mas sim as essências ou naturezas que a fazem adquirir o ser por
modos diferentes. Isso não quer dizer que a essência tem primazia sobre o ato de ser,
mas apenas que a determinação é importante na constituição do ente finito (GILSON,
1962).
Na filosofia tomista, o ato de ser é o que há de mais íntimo em todas as coisas
e, para que algo tenha ser, é necessário que Deus esteja sempre atuando sobre o
ente. Vale a pena fixar aqui este ponto: para Tomás, o que há de mais íntimo e
profundo em qualquer coisa é seu ato de ser, ou seja, o ato pelo qual a coisa é. Esse
é o tomismo, no sentido filosófico da palavra.
Partindo-se das criaturas para chegar a Deus, Gilson (1962, p. 69) levanta
algumas perguntas. Por que existe o mundo criado? Por que, se existe o Primeiro
Motor, a Causa não causada ou o Ser necessário, existiriam os movidos, as causas
causadas ou os seres contingentes? Usando os termos da filosofia tomista, pode-se
perguntar: se existe o Ato Puro de Ser, por que existiriam os entes finitos?
A resposta é que convém por natureza a qualquer ato comunicar-se tanto
quanto possível, e a natureza divina é puramente ato. Deus, porque é o Puro Ato de
Ser, tende naturalmente a agir, a operar e a comunicar-se por meio da criação. Se
tudo age desde que está em ato, a natureza criadora divina é facilmente compreendida
através da noção de Puro Ato de Ser. É conveniente que um Deus que é Puro Ato
deva agir (GILSON, 1962, p. 75).
Como ser criado é receber o ser, apenas as substâncias são propriamente
criadas, já que somente elas possuem por si mesmas um ato de ser. A substância
toda é criada de uma só vez. O primeiro ponto, contudo, é o ser: o ato pelo qual o ente
é. A primeira das criaturas é o ser. Ser é o princípio formal com respeito a tudo aquilo
que há em alguma coisa (GILSON, 1962).
28

Dado que o ato de ser é o efeito próprio de Deus e a mais íntima e profunda
realidade das criaturas, conclui-se que Deus opera intimamente em todas as coisas.
Gilson (1962, p. 81) afirma:

Esta doutrina está exposta na Summa theologiae, I, 8, I, na resposta à


pergunta: “Está Deus em tôdas as coisas?” E a resposta é “sim”, porque “uma
coisa é, enquanto opera. Ora, Deus opera em tôdas as coisas. Portanto, Deus
está em tôdas as coisas”. Ao justificar sua conclusão, – Tomás invoca o
princípio de que “Deus está presente em tôdas as coisas, não, naturalmente,
como parte da essência delas, nem como um acidente, e sim como um agente
está presente naquilo em que age.” Acabamos de ver agora que “uma vez
que Deus é o seu próprio ser por essência, o ser criado deve ser Seu efeito
próprio.” E Deus não causa sêres finitos sòmente no momento de sua criação,
“mas, enquanto a criatura continua a existir tem que ser mantida no ser; assim
como a luz é produzida no ar pelo sol por quanto tempo o ar permanece
iluminado. Destarte, enquanto uma coisa tem ser, Deus está presente nela,
de acôrdo com seu modo de ser. Mas ser (esse) é o que há de mais interior
em cada coisa e o que há de mais fundamentalmente presente em tôdas as
coisas, como acima ficou demonstrado. Assim, é necessário que Deus esteja
em tôdas as coisas e da maneira mais íntima.

Deus está presente em todas as coisas não como parte de sua essência nem
como acidente, mas como um agente está presente naquilo que age. Deus não causa
seres finitos somente no momento da criação, mas enquanto a criatura existe, deve
ser mantida no ser. Enquanto uma coisa tem ser, Deus está presente nela. Essa é
uma presença de Deus por sua essência, como causa eficiente. É a doutrina tomista
da cooperação imediata de Deus com as criaturas. Para negar isso, só negando o
tomismo, ou seja, negando que o ato de ser é mais íntimo à criatura que sua essência.
Esse é o lugar central da noção de esse na concepção tomista da relação das criaturas
com Deus.
A relação de Deus e das criaturas é uma relação de participação, derivado do
latim partem capere21, conceito fundamental para entender a analogia do ser, que será
estudada mais adiante. Já se falou no primeiro capítulo de participação na concepção
platônica de metessi, mimesi, koinonia e parusía. Esse conceito se desenvolveu no
neoplatonismo e, através de Santo Agostinho, atingiu sua formulação clássica em São
Tomás de Aquino, que o sintetizou na doutrina aristotélica do ato e da potência e,
englobando nele a noção de causalidade eficiente e exemplar, elevou-o à expressão
essencial da relação criacional (MOLINARO, 2000, p. 104).
Há dois aspectos de que se deve falar da participação: o primeiro se refere à
relação de criação, de derivação e de dependência do ente relativamente ao Puro Ato

21 Tomar parte, numa tradução literal.


29

de Ser; o segundo estabelece o significado do ente por participação, pondo em ato a


referência ao Puro Ato de Ser. Deus, o Puro Ato de Ser, seria o Ser por essência,
aquilo cuja essência é Ser e o ente por participação, o ente finito, significa o ser cuja
essência ou determinação é a participação no Ser. Molinaro (2000, p. 105), depois
dessas definições, acrescenta:

Nesse segundo significado, torna-se clara a identidade entre participação e


essência ou determinação. Essa clareza exige que se elimine do conceito de
participação a representação de um ente ou de uma essência pressupostos
ao ato de participar e, portanto, tais que recebam o ato de ser do Ser por
essência. O ente enquanto ser determinado é participante no mesmo sentido
no qual é determinado: a sua participação no ser é a sua determinação ou
essência. Da mesma clareza segue-se ainda que o verbo “participar” deve
ser entendido em sentido intransitivo, equivalente a “determinar-se” do ser no
ente no tocante tanto à sua essência quanto à sua atualidade.

Então, em poucas palavras, a participação do ente finito no Ser é a sua própria


essência. Mondin (1982, p. 175) faz uma simples comparação: a participação do ente
finito no Ser não se dá como a participação das fatias num bolo. Se fosse dessa
maneira, os entes finitos e Deus teriam a mesma natureza e substância. Os entes
finitos participam do Ser como a cópia participa do modelo. É uma participação por
semelhança, não por essência. Com essa doutrina, Tomás evita o perigo do
panteísmo, sem diminuir as criaturas. O ser delas ainda permanece divino; de uma
divindade não essencial, mas imitativa.
Aqui se pode compreender a originalidade da teoria tomista de ser. Gardeil
(1967, p. 123-124) vai explicar:

Quando se observa de perto esta análise do ser, pela distinção real do par
essência-existência, assinala-se uma transformação profunda da ontologia
de Aristóteles por S. Tomás. E como o mostrou Gilson na sua obra sôbre
L’être et l’essence, isso dá à metafísica do Doutor angélico uma significação
bastante original que nem sempre foi bem percebida, mesmo em sua Escola.
A tendência mais constante dos filósofos, a história o prova, foi sempre a de
considerar o ser mais como uma natureza, como uma essência. [...] Ora, se
retornarmos a S. Tomás, veremos [...] que a existência é ato, ou como a
perfeição última do ser e que o próprio Deus é o Ipsum esse subsistens. O
ser é, pois, para êle, e tanto em Deus como nas criaturas, existência por
excelência. [...] Em sentido bastante diferente, e é preciso sublinhá-lo, do que
toma a palavra em certas filosofias contemporâneas, a metafísica de S.
Tomás pode ser considerada existencialista. E, a êste título, em face dos
antigos racionalismos, escolásticos ou modernos, apresenta-se como um
pensamento notàvelmente original.

Em outras palavras, a originalidade de Tomás consiste em afirmar a distinção


real entre essência e existência e não considerar o ser como uma essência, mas como
30

a existência determinada pela essência e como algo mais perfeito que ela, o que não
foi considerado pelos filósofos posteriores, tanto escolásticos como modernos.

3.5 A EXPLICITAÇÃO ONTOLÓGICA DO SER

3.5.1 Processo de explicitação do ser

Como a metafísica realista é o processo de explicitação do ser e sua


manifestação, é necessário explanar brevemente sobre esse processo. Para isso far-
se-á uso da explicação de Molinaro (2002, p. 69-70).
Esse processo advém segundo os elementos que o ser manifesta de si mesmo.
Estes elementos são, como já se estudou: o ser enquanto tal, no seu absoluto e
transcendentalidade e a determinação ou essência ou participação. Uma vez que a
determinação é interior ao ser, ela se apresenta necessariamente em síntese com o
ser: esta síntese de ser e determinação é o ente. Impõe-se, pois, a necessidade de
ter bem distintas a consideração do ser enquanto tal e a consideração do ente,
distinção essa que no fundo é a mesma distinção real entre essência e existência da
qual já se tratou.
Dessa distinção resulta o duplo plano, no qual advém – deve advir – a
explicitação do ser e da sua manifestação:
a) O plano da explicitação transcendental ou ontológica, que ilumina as
propriedades transcendentais do ser; estas são: o uno, o verdadeiro,
o bom e o belo;
b) O plano da explicitação categorial ou determinada ou ôntica, que
ilumina as propriedades categoriais do ente, ou seja, do ser
determinado ou participado, do ser segundo a essência, com o qual
se apresenta em síntese; estas são: a analogia, a substância e o
acidente, o ato e a potência, os graus de perfeição.
A explicitação seria então a exposição das propriedades do ser no plano
ontológico e no ôntico, obtendo-se respectivamente em cada um as propriedades
transcendentais e categoriais do ser.
31

3.5.2 Propriedades transcendentais do ser

Para falar das propriedades transcendentais do ser, é necessário primeiro


precisar o significado de transcendental no contexto tomista, principalmente para
evitar confusões com outras definições feitas por outros filósofos, como Kant e
Heidegger.
O transcendental é uma propriedade na qual se exprime a transcendentalidade
do ser. Isso significa que os transcendentais se estendem quanto e como se estende
o ser: a realidade do ser é a sua realidade. Por isso, vale para eles o caráter da
inseparabilidade e da identidade com o ser: é quanto está contido em seu caráter
transcendental. Mas, enquanto os transcendentais expressam o ser, explicitando-o,
vale para eles ao mesmo tempo o caráter da distinção do ser, justamente porque
enriquecem-no, expõem-no e assim expandem-no. Eles não designam realidades
diversas, mas a mesma realidade – o ser – na qual a luz do pensamento, acesa pelo
próprio manifestar-se do ser, distingue os momentos de tal manifestação. Nesse
sentido deve-se dizer que eles têm um fundamento real (MOLINARO, 2002, p. 73-74).
“[...] nenhum dêsses transcendentais acrescenta nada de novo ao ser, pois são
apenas aspectos do ser considerado a luzes diversas” (HIRSCHBERGER, 1959, p.
132).
Os transcendentais são: unidade, verdade e bondade (unum, verum e bonum).
Idênticos e distintos, eles são conversíveis com o próprio ser. Deve-se, de fato, afirmar
que o ser é a unidade, a verdade e a bondade; que a unidade, a verdade e a bondade
são o ser; que a unidade é a verdade e a bondade; que a bondade é a unidade e a
verdade; que a verdade é a unidade e a bondade. Em geral, nos transcendentais se
verifica a auto expressão e a autodistinção do ser mesmo: o ser se desenvolve em si
mesmo e o resultado imediato deste autodesenvolvimento é a distinção da unidade,
da verdade e da bondade na sua própria identidade. O ser, nas suas propriedades
transcendentais, mostra a sua identidade na distinção ou, o que é o mesmo, a sua
distinção na identidade (MOLINARO, 2002, p. 74).
Dizer que o ser é unum (uno) expressa sua indivisibilidade:

A unidade não acrescenta nada ao ser, mas, só a negação da divisão; pois,


ser uno não é senão ser indiviso; e daqui resulta claramente, que a unidade
é conversível no ser. Pois, todo ser ou é simples ou é composto. Aquêle é
indiviso, actual e potencialmente. Êste não recebe o ser enquanto as suas
partes estiverem divididas. Mas, só depois que elas o constituem e compõem.
Por onde, é manifesto que o ser de qualquer coisa consiste na sua indivisão;
32

e daí vem que todo ente conserva o seu ser na medida em que conserva a
unidade. (S. Th. I, XI, I)22

Isso quer dizer que a indivisão é necessária a um ente para ele se manter no
ser. Molinaro (2002, p. 76) explica que a unidade, como indivisão, significa negação
da negação do ser e da oposição do ser. A oposição máxima e absoluta do ser é a
negação do ser, o não-ser, que se opõe contraditoriamente à afirmação do ser. A
unidade, portanto, exprime a oposição contraditória do ser à própria negação; em
outras palavras, o ser exclui, torna impossível o não-ser como sua negação. O ser é
o puro afirmativo, é impossível que haja oposição ao ser e o ser é também identidade,
isto é, não é outra coisa que o ser. Vale a pena relembrar que essa propriedade, assim
como toda propriedade transcendental do ser, está no plano do ser e não da
determinação, ou seja, da essência, relembrando da distinção real entre essência e
existência e que a determinação do ser não é todo o ser. No plano do ser (ontológico)
encontramos a unidade, no plano da determinação do ser (ôntico), a multiplicidade.
Quando se fala da unidade do ser, fala-se que não há realidade que não seja
tal para o ser, que não seja ser. Ao se falar no ser como verdade e bondade, faz-se
uma separação entre ser e espírito (alma, intelecção). O espírito também se separa
em inteligência e vontade e ambas são os modos com os quais o espírito supera a
separação e estabelece a sua identificação com o ser. A verdade seria, então, a
presença do ser na inteligência enquanto a bondade seria a presença da vontade no
ser. O ser se conforma à inteligência no processo da verdade, formando como um
semicírculo, e a vontade se conforma ao ser no processo da bondade, formando outro
semicírculo e fechando o ciclo. Onde termina a interiorização do ser por parte da
inteligência começa a realização da vontade no ser (MOLINARO, 2002, p. 80).
Ao se afirmar que o ser é verum (verdadeiro), afirma-se, portanto, que ele é
inteligível, racional. É conhecível na medida em que “é”, na medida em que está em
ato. É verdadeiro porque participa do ser, segundo Tomás: “A verdade está nas
cousas e no intelecto [...]. Mas, a verdade existente nas cousas converte-se
substancialmente com o ser; a que, porém, existe no intelecto converte-se com o ser”
(S. Th. I, XVI, III, 1r)23.
Isso quer dizer, como a verdade é propriedade transcendental do ser, que toda
a verdade é ser e que todo o ser é verdade. Pode-se falar da verdade lógica, ou seja,

22 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 80.


23 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 168.
33

da própria inteligência como manifestação do ente, e se realiza o ente como


adequação24 e conformidade com ela: é a verdade na ordem do conhecimento. Mas
também aqui surge a verdade ôntica, ou seja, a inteligibilidade do ente, que exprime
a afinidade e a intimidade do ente à inteligência. Neste sentido, o ente é medida da
verdade da inteligência: é a verdade do ente, no qual se funda a verdade lógica da
inteligência, o seu conteúdo (MOLINARO, 2002, p. 83-84).
Dizer que o ser é bonum (bom) é o mesmo que dizer que ele é desejável,
amável. “O dito – o bem é o que todos os sêres desejam – não significa que cada bem
seja desejado por todos, mas, que tudo o que é desejado tem o caráter de bem” (S.
Th. I, VI, II, 2r)25, ou seja, o bem é aquilo que pode ser desejado. Tem-se aqui uma
noção de valor. Bem e ser são noções convertíveis. Assim como com a verdade, todo
o ser é bondade e toda bondade é ser.
Nesse sentido transcendental, a vontade é vontade de ser enquanto é vontade
que é o ser mesmo: o ser quer ser, o ser tem-se e se mantém inteiramente em si
mesmo. A vontade é o ser que se possui perfeitamente e permanece nessa posse. Se
a verdade exprime a necessidade do ser de ser junto de si, a bondade exprime a
permanência perfeita do ser em posse de si, a posse de si completa. De fato, o ser é
desde sempre e absolutamente o volível que é atualmente querido, o amável que é
atualmente amado, o desejável que é atualmente desejado, e assim por diante. Da
mesma forma que a verdade, existe a bondade intencional ou em exercício, que
corresponde à verdade lógica, e a bondade ôntica, que corresponde à verdade ôntica.
Enquanto a primeira designa o ente cuja determinação é a vontade, a inclinação, o
amor; a segunda designa o ente, cuja determinação é a volibilidade, a inclinabilidade,
a amabilidade. A primeira é intenção, ato da vontade, a segunda é o cumprimento da
intenção: a vontade inclina e tende para o ente, que por sua parte satisfaz e completa
tal inclinação e tal tendência (MOLINARO, 2002).
Por fim, pode-se perceber o ser como beleza ou, no plano ôntico, o belo
(pulchrum). Não é uma explicitação particular do ser ou do ente, mas a harmonia das
explicitações anteriores, da unidade, da verdade e da bondade. Molinaro (2002, p. 90-
92) conclui essa afirmação a partir da Suma Teológica I, XXXIX, VIII26, onde Tomás

24 Não é objetivo deste trabalho discorrer da definição de verdade como adequação ou


correspondência, mas apenas demonstrar o princípio ontológico da definição gnosiológica tomista da
verdade.
25 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 48.
26 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 359.
34

vai dizer que a beleza exige três condições: a integridade, a proporção e o esplendor
ou claridade. A integridade corresponde à unidade, já que ambas são indivisão,
perfeição, plenitude. A proporção corresponde à bondade, que é proporção do ser
consigo mesmo, o ser em posse de si mesmo. O esplendor ou claridade corresponde
à verdade, já que é a manifestação do ser, a luminosidade do ser manifesto, o
esplendor da aparição do ser. Portanto, da harmonia entre unidade, verdade e
bondade, conclui-se que o ser possui também a propriedade transcendental da
beleza.

3.6 A EXPLICITAÇÃO ÔNTICA DO SER

3.6.1 Analogia

Diferentemente de Deus, os entes finitos possuem composição, pelo menos,


de essência e existência, isto é, uma estrutura metafísica. Esse ser é análogo: todo
ato de ser põe o ente na condição de existência atual, fora do nada, mas ao mesmo
tempo, o ser não é o mesmo no ato de ser subsistente em si, Deus, e nas substâncias
que o têm distinto de sua essência (GILSON, 1962, p. 51).
Na Suma Contra os Gentios (II, XLV, 1)27, Tomás faz sua própria definição de
analogia, justificando nela a necessidade de multiplicidade e variedade:

Com efeito, como todo agente pretende introduzir no efeito a sua


semelhança, na medida que o efeito a possa receber, tanto mais perfeita é a
ação, quanto mais perfeito é o agente. [...] Ora, Deus é o agente perfeitíssimo.
Por isso, cabia-lhe introduzir nas coisas criadas de modo perfeitíssimo a sua
semelhança, conforme a conveniência da coisa criada. Mas a perfeita
semelhança as coisas criadas não a podem conseguir em uma só espécie de
criatura, porque, a causa excedendo o efeito, o que na causa está simples e
unificado, está em composição e multiplicado no efeito, a não ser que este se
equipare à espécie da causa. Mas isso não pode ser atribuído ao nosso caso,
porque a criatura não se pode igualar a Deus. Foi, pois, necessário ter havido
multiplicidade e variedade nas coisas criadas, para que nelas houvesse, a
seu modo, perfeita semelhança de Deus.

Como Deus é um, único, e as criaturas são múltiplas, é necessário que haja um
meio termo entre a unidade e a multiplicidade e que acabe com a ambiguidade entre
elas: a analogia.
O atributo de analogia do ser vem determinar a metafísica de Tomás de forma
a corrigir eventuais erros na interpretação da filosofia tomista. Gardeil (1967, p. 35)

27 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 241-242, grifo do autor.


35

explica que Tomás apresenta a analogia como um modo de atribuição lógica,


intermediário entre a atribuição unívoca e a atribuição equívoca. O termo unívoco se
reporta aos seus inferiores segundo uma mesma significação; o termo equívoco
convém às coisas às quais é atribuído segundo significações inteiramente diversas; o
termo análogo diz-se dos seus inferiores segundo uma significação parcialmente
diferente e parcialmente semelhante.
A situação se esclarece ao se perceber que univocismo metafísico é o mesmo
que monismo e que equivocismo metafísico é o mesmo que pluralismo.
Consequentemente, a analogia é a posição na qual a diferença ou a multiplicidade
supõe e implica a identidade ou a unidade (MOLINARO, 2000, p. 16). Os termos
univocidade, equivocidade e analogia se desdobram em três níveis: o linguístico, da
palavra e do termo; o lógico, do pensamento e do significado; o ontológico ou
metafísico, da coisa ou do ente. Molinaro (2002, p. 117) descreve esta disposição da
seguinte maneira:
a) Univocidade: um termo, um significado, uma coisa.
b) Equivocidade: um termo, muitos significados discrepantes e
desconexos, muitas coisas discrepantes e desconexas.
c) Analogia: um termo, muitos significados unificados, muitas coisas
unificadas.
O que diferencia a analogia da univocidade é a multiplicidade de significados e
de coisas e o que a diferencia da equivocidade é a unidade, ou melhor, a unificação
dos muitos significados e das muitas coisas.
Mondin define a analogia como uma espécie de semelhança que não é nem
específica, ou seja, entre seres que pertencem à mesma espécie, e nem genérica,
entre seres que pertencem ao mesmo gênero. “Se não pertencem nem ao mesmo
gênero, nem à mesma espécie, a semelhança é designada por Tomás com o termo
analogia, o qual originariamente significava simplesmente ‘semelhança’.” (MONDIN,
1982, p. 176, grifo do autor).
O conceito analógico está numa situação bastante especial, como explica
Gardeil (1967, p. 39). Num conceito unívoco, como, por exemplo, ser vivo e animal,
onde acontece semelhança de gênero, há uma unidade de significação, com conteúdo
preciso e determinado, onde a passagem aos termos inferiores, as espécies, ocorre
pela diferença específica exterior ao gênero. O conceito unívoco é uno e divisível em
potência. O mesmo não ocorre no conceito analógico: a unidade e a diversidade
36

acontecem de forma diferente. Os termos sujeitos, chamados analogados, não podem


ser excluídos do conceito, encontram-se, pois, aí representados, mas de modo
implícito e dentro de uma certa confusão. A unidade de um conceito analógico não
será abstrata como do unívoco, mas proporcional, fundada sobre a conveniência real
dos analogados entre si. O conceito analógico é um conceito uno, de uma unidade
proporcional, envolvendo implicitamente ou de modo confuso a diversidade dos
analogados. Deste conceito único e confuso, passa-se ao conhecimento distinto de
cada analogado, tornando explícito o modo que lhe corresponde, conseguindo, então
um conhecimento preciso.

3.6.2 Substância e acidente

Aristóteles determinou as categorias do ser que são a substância (ousía –


oὐσία) e os nove acidentes (symbebekós – συµβεβηκός), que vêm junto na
substância.

Pois os nossos conceitos são designações de uma essência (substância) ou


são aspectos da quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, situação,
estado, ação e paixão. As categorias por sua vez se repartem em dois
grandes grupos. De um lado está a substância: o ser existente por si mesmo
e tendo por isso uma certa independência. De outro lado estão os restantes
nove esquemas, chamados acidentes: o que pode acrescentar-se à
substância como determinação própria (HIRSCHBERGER, 1957, p. 146-
147).

Na filosofia aristotélica, substância é o que se define e se entende em


contraposição a “acidente”. A substância é uma unidade ontológica, da qual se diz que
tem o ser por si própria. Ela não toma seu ser do de outra coisa, mas “é por si própria”.
O acidente, ao contrário, não tem um ser próprio; existe apenas em outro e por outro
ser, chamado de substância. Em resumo, a definição aristotélica de substância é um
ser por si (ens per se) e de acidente é aquilo que existe por outro ou em outro (ens
per aliud ou in alio) (GILSON, 1962, p. 54).
De fato, para Aristóteles, a substância é o ponto central de sua metafísica.
Molinaro vai destacar que a equivalência metafísica posta por Aristóteles entre a
pergunta sobre o ente e a pergunta sobre a substância estabeleceu uma vez por todas
a importância central do significado de substância na filosofia: “toda filosofia se
qualifica com base na compreensão do ente, isto é, da substância e reciprocamente”
(MOLINARO, 2000, p. 119).
37

Não é esse o valor dos termos na doutrina de São Tomás de Aquino. Como já
se viu, Tomás deu à sua filosofia um novo significado ao estabelecer a distinção real
entre essência e existência e afirmar que a existência, o ato de ser, é o que há de
mais íntimo e perfeito em um ente. Com isso, fica impossível isolar a existência real
para poder reduzir a metafísica a uma consideração de essência. Gilson (1962, p. 54)
conclui com isso que no “tomismo autêntico não existe a ‘essência real’ separada do
ato de ser que faz dela uma realidade”. Por isso, a palavra “substância” recebe um
novo significado na doutrina tomista.
A sua noção de ser leva o Aquinate a refundir a definição comumente aceita de
substância. Em vez de dizer que a substância é um ser que é por si próprio, concluindo
que “ser” (ens) seja apenas um gênero e não a existência atual, Tomás prefere dizer
que a substância é aquilo a cuja natureza convém ser por si próprio. Inversamente, a
nova definição de “acidente” seria aquilo a cuja natureza convém existir em e por outro
ser (GILSON, 1962, p. 55). Nas palavras do Doutor Angélico:

Por conseguinte, é necessário que a razão formal da substância seja


entendida no sentido de que substância é a coisa que convém ser não em
outro sujeito. O termo coisa é posto em razão da qüididade, como o termo
ente, em razão do ser. Donde a razão formal da substância significar que ela
tem qüididade que convém ser não em outra coisa (C.G. I, XXV, 6)28.

Na Suma Teológica:

O nome de substância não significa sòmente o que subsiste por si, porque o
ser em si mesmo não é género, como demonstrámos. Mas, significa a
essência, à qual convém existir dêsse modo, i. é, por si mesmo, sem que isso,
porém, lhe constitua a essência própria (S. Th. I, III, V, 1r)29.

Ou seja, para Tomás, substância não pode ser simplesmente um ens per se e
acidente um ens per alio porque o ser não pode ser simplesmente um conceito, como
diz a metafísica essencialista. Substância é uma essência que é de tal natureza que,
aperfeiçoada pelo ato de ser, existirá em virtude de seu próprio ser. O acidente, ao
contrário, nunca tem existência própria, sua natureza é tal que ele não pode subsistir
por um ato próprio de ser (GILSON, 1962, p. 56).

28 TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 64, grifos do autor.


29 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 28-29.
38

3.6.3 Ato e potência: a causalidade

Já se falou no primeiro capítulo da concepção aristotélica de devir como a


passagem do substrato da potência ao ato pela ação da causa e que é necessário,
para se evitar regredir ao infinito, concluir a existência de um primeiro motor, um ato
puro, Deus. Viu-se também que Tomás de Aquino, apesar de usar dos mesmos
termos, fez a passagem da definição aristotélica de ato como forma para definir o ato
como ser, a pura e total atualidade do ser. Potência seria então aptidão a vir-a-ser,
como também já foi definido. Faltou, portanto, falar sobre a causa para Tomás. Gilson
(1962, p. 88) afirma que o Aquinate sempre aceitou a noção de causa como uma
herança grega. Causa, para ele, é aquilo de que resulta, de modo necessário, outra
coisa. A dificuldade que surge é a da resultância de outro ser a partir de um ser.
Já se explicou também que é conveniente que um ser que esteja em ato deva
agir. Isso explica filosoficamente a ação criadora de Deus, que é Puro Ato de Ser e,
por isso, seu efeito próprio é o ser. A causalidade seria então resultado da participação
dos entes finitos no Puro Ato de Ser. Pertence propriamente ao ato de ser operar e
causar efeitos semelhantes a si próprio. Em outras palavras, como as criaturas
assemelham-se ao criador (ou os efeitos à causa), elas devem imitar-lhe sendo
causas eficientes. A causalidade eficiente das criaturas é semelhança na
conformidade com a causalidade criadora de Deus. Segundo Gilson (1962, p. 93):
“Numa doutrina como a de Tomás de Aquino, na qual o ato dos atos é ser, há em cada
ser uma tendência inata para comunicar o ser, ora, ser causa do ser é ser causa
eficiente. Dêste modo, o ato pelo qual um ser é ou existe, é a raiz da eficiência causal”.
Todo agente produz seu semelhante: somente o ser pode criar seres. Criar
consiste em causar a existência atual, produzir o ato através do qual as coisas são,
produzir ser, produzir-se do nada e ser posto fora do nada, na existência atual. É
diferente da causalidade eficiente dos homens, porque só Deus causa a existência
atual, enquanto o homem30, como causa eficiente, usa de uma matéria prima já
existente. Para se obter uma mesa, por exemplo, precisa-se de madeira (GILSON,
1962, p. 78). Em linguagem mais simples, o homem modifica o que já é “ser” para “tal

30 Este trabalho, ao se referir a “homem”, refere-se ao “ser humano” em geral, traduzindo-se do termo

grego anthropos (ἄνθρωπος) ou latino homo e não do grego andrós (ἀνδρóς) ou latino vir, que
significam “varão, ser humano do sexo masculino”.
39

ser”, ou seja, muda a essência de algo que já tem existência, enquanto Deus faz existir
tanto o “ser” como o “tal ser”, isto é, a essência e a existência. Nas palavras de Tomás:

Tôdas as causas criadas têm de comum aquêle efeito que é ser (esse), muito
embora cada qual tenha seus efeitos próprios, pelos quais esta se distingue
daquela. Por exemplo, o calor faz existir o que é quente e o construtor, a casa.
Assim, essas causas têm isso de comum que causam o ser, mas diferem
enquanto o fogo causa o fogo e o construtor, o edifício. Deve, pois, haver uma
causa superior a tôdas as causas em virtude da qual tôdas causam o ser, e
cujo efeito próprio seja o ser (De Potentia VII, 2)31.

Seres criados não criam, mesmo quando produzem o ser, mas sua causalidade
eficiente é imagem da causalidade criadora de Deus. Os seres criados, então,
comunicam algo de sua própria atualidade. Gilson (1962, p. 92) ensina que causar é,
para uma causa, comunicar algo do seu próprio ato de ser ao ser do efeito. Surge uma
mudança de nomenclatura: o devir não seria mais a passagem da potência ao ato
mas, segundo Molinaro (2002, p. 141), é atuação – ação da causa – da potência por
obra da causa: o ato de ser da causa atua a potência do ente deveniente. Em resumo,
para Tomás de Aquino, causar é comunicar o próprio ato de ser. Apenas Deus cria a
essência e a existência. As criaturas, em virtude da participação no Puro Ato de Ser,
agem como causas eficientes, atuando seres em potência.

3.6.4 Graus de perfeição

Quando se falou da distinção real entre essência e existência, abordou-se


sobre os graus de perfeição do ser. Gilson (1962, p. 43) já havia determinado sobre
esses graus de perfeição: é melhor ser pedra que ser nada, melhor ser planta que
pedra, ser animal que planta, ser homem que animal irracional, ser anjo que homem
e infinitamente melhor ser o Puro Ato de Ser. É sempre bom para um ente finito ser o
que ele é, se bem que em comparação com o Puro Ser, é uma imperfeição para
qualquer essência ser somente isto ou aquilo. Isso é percebido pela variedade dos
entes.
Com isso já se deduz que, como o ato de ser, a existência, é a perfeição de
todas as perfeições e a essência, a determinação, é o que limita o ato de ser, ela limita
então a própria perfeição do ente. Quanto mais a essência limita o ato de ser, mais
imperfeito ele será. Tomás vai afirmar:

31 TOMÁS DE AQUINO apud GILSON, 1962, p. 91-92.


40

Assim sendo, quanto mais uma coisa está próxima de Deus, tanto mais
perfeita ela é. Por isso, não pode haver diferença nas formas, senão enquanto
uma é mais perfeita do que a outra, razão por que Aristóteles [Metafísica VIII,
3, segundo o tradutor] assemelha as definições pelas quais são significadas
as naturezas das coisas e as formas, aos números, nos quais as espécies
variam pela adição ou subtração da unidade, para que assim se venha saber
que a diversidade das formas exige graus diversos de perfeição. E isto
claramente aparece a quem for observar a natureza das coisas. Verificará,
com efeito, se o fizer atentamente, que a diversidade das coisas se dá
gradativamente. Assim, encontrará as plantas em grau superior às coisas
inanimadas; sobre as plantas, os animais irracionais; sobre estes, as criaturas
intelectuais. [...] Evidencia-se, pois, que a diversidade das coisas exige que
todas não sejam iguais, mas que nelas exista uma graduação (C.G. III, XCVII,
2)32.

Há uma hierarquia de essências e a nova questão é saber por que assim é.


Cada essência, para Tomás, representa uma quantidade de ato de ser participada por
uma substância especificamente definida. Cada essência especificamente definida
deve sua quididade à medida de sua participação na atualidade infinita do ser divino.
O mundo, então, é uma estrutura hierárquica dos seres. As criaturas recebem de Deus
a existência atual, seu próprio ato de ser, de acordo com seu grau de perfeição. A
medida dos respectivos atos de ser é que constitui os vários graus do ser. Neste
universo, as criaturas de grau superior exercem a causalidade eficiente sobre as de
grau inferior (GILSON, 1962, p. 99).
Segundo Hirschberger (1959, p. 133-134), “no fundo há aí uma transformação
da teoria platônica das Idéias e da dialética, do conceito de participação, e da pirâmide
das Idéias platônicas”. Pela participação e analogia, quanto menos a essência de um
ente finito limita o seu ato de ser, maior sua participação no Puro Ato de Ser e,
consequentemente, maior seu grau de perfeição.

3.7 FINALIDADE

A finalidade é uma explicitação do ser tanto no plano ontológico como no plano


ôntico. Quando se viu as propriedades transcendentais do ser, no plano ontológico,
percebeu-se, no ciclo criado pelo processo verdade-bondade, que esse ciclo origina-
se no ser e ruma para o ser. Da mesma forma, ao se falar da causalidade, no plano
ôntico, nota-se a necessidade de que uma causa, ao atuar uma potência, tenha uma
finalidade, que é o ato.

32 TOMÁS DE AQUINO, 1996, p. 562-563.


41

Gilson (1962, p. 93) explica que “Todo ato tende, por natureza a comunicar-se.
Noutras palavras, ser em ato inclui uma tendência a agir. É o significado da fórmula
tomista: ser é tender (esse est tendere)”. O agir, portanto, está intrinsecamente unido
ao que está em ato e, consequentemente, ao ser.
Por isso, Molinaro (2002, p. 148) vai definir o agir como uma propriedade
transcendental do ser, como a unidade, a verdade e a bondade. “É precisamente
aquele transcendental que explicita, exprime e clarifica o ser como síntese da verdade
e da bondade”. Seria a atualidade do ser que por um lado é intelecção e por outro é
volição. A ação explicita, exprime e clarifica o ser como a atualidade, no qual se
explicita, exprime e clarifica o ser enquanto verdade e enquanto bondade. O ser é
ação como atualidade da verdade e da bondade.
Assim, compreende-se a noção de finalidade (do grego télos – τέλoς e do latim
finis). “Há um fim último, a que tudo se ordena: o summum bonum, que é Deus.”
(HIRSCHBERGER, 1959, p. 142). Como tudo se ordena a Ele, onde se encontra a
atualidade de todo o real e de todas as formas, nota-se proximidade e distância,
inferioridade e superioridade em relação a esse fim supremo, donde novamente se
deduz o conceito de graus de perfeição do ser, agora relacionado com o fim último.
“Temos assim diante dos olhos uma completa teleologia do ser e do devir”
(HIRSCHBERGER, 1959, p. 142).
Uma vez que o ser é ação, ele é também intenção e execução e, por isso, é fim
em si, de si e, por isso mesmo, fim absoluto. Afinal, “não é possível um fim do ser que
não seja o próprio ser, já que além do ser ou de outra coisa que não seja o ser, há só
o nada, isto é, não há nada” (MOLINARO, 2000, p. 64). Assim pode-se compreender
a finalidade transcendental do ser, no plano ontológico.
No plano ôntico, Jolivet (1965, p. 313) afirma que as noções de causalidade
estão ligadas à de finalidade. De fato, Tomás de Aquino vai dizer que tudo opera em
vista de um fim:

Pois, vemos que algumas [coisas], como os corpos naturais, carecentes de


conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem
sempre ou freqüentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é
ótimo; donde resulta, que chegam ao fim (S. Th. I, II, III)33.

33 TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 20.


42

“Todo agente age por um fim (omne agens agit propter finem)” (MOLINARO,
2002, p. 147). Para Jolivet (1965, p. 313), isso é evidente por si e se demonstra pelo
absurdo: se um agente não estivesse determinado a produzir um efeito definido, não
produziria nem uma coisa nem outra.
O fim é anterior ao ato. Molinaro (2002, p. 146) defende que a causa eficiente
é tal, enquanto, e só enquanto, tem ou é a anterioridade do ato no qual termina e no
qual se realiza a operação do causar, é anteriormente ao efeito. Essa anterioridade é
o fim, a intenção da causa eficiente, sua finalidade essencial.
Jolivet (1965, p. 317) classifica os fins em fim da obra (finis operis), que é o fim
objetivo, da ação em si, por exemplo, o ato de dar esmola com o fim objetivo de ajudar
o mendigo; e fim do agente (finis operantis), que é subjetivo e reside na intenção, por
exemplo, a pessoa dar esmola querendo com isso chamar a atenção para sua
generosidade. Quando o finis operantis não coincide com o finis operis, a obra não
tem mais razão de fim, torna-se simples meio. Nas palavras de Molinaro (2000, p. 64),
o fim da ação ou operação é a atualidade como “união de intenção e execução”.
Nesta união de intenção e execução obtém-se o fim de todos os atos: o bem,
ou seja, o ser34. O ato de ser de um ente finito não é só aquilo por força do qual o ente
é e exercita o seu ser, isto é, a sua atualidade e a sua intenção; mas é também aquilo
em vista do qual o ente é e, desde o princípio, exercita o seu ser, isto é, sua atuação
e sua execução (MOLINARO, 2002, p. 147).
Molinaro (2002, p. 151) vai concluir que essa finalidade intencional e executiva
do ente do ser e para o ser é a expressão da intrínseca finalidade transcendental do
ser, aquela pela qual ser e ação são transcendentalmente conversíveis. Em outras
palavras, se um ente possui seu ato de ser como o que tem de mais íntimo e perfeito,
sua ação vai sempre se direcionar a essa perfeição, naturalmente. O ser inteligível,
como objeto da vontade, acaba se tornando o fim de toda ação causal.

34 Não é intenção deste trabalho discorrer das consequências dessa definição na filosofia moral, ou
seja, na ética. Contudo, vale a pena notar que daí pode-se obter uma explicação metafísica da
existência da lei natural, que é aquela lei já inscrita em cada homem. Isso acontece porque o ser é a
finalidade de todos os atos: toda ação busca o ser, e essa busca já está presente nos entes finitos,
inclusive no ser humano. A lei natural seria, então, expressão dessa busca pelo ser.
43

4 O TOMISMO NA MODERNIDADE

Por fim, convém falar sobre a metafísica realista de São Tomás de Aquino na
modernidade, em especial no século XX, onde muitos pensadores a estudaram.
A metafísica realista foi simplesmente deixada de lado após Tomás e somente
nos séculos XIX e XX ela foi estudada da maneira devida. Também não houve filósofo
moderno que levasse em conta a filosofia do ato de ser. Ao ensinar a definição tomista
de ser, como foi estudado no tópico sobre o ato como ser, Mondin (2010, p. 222)
afirma: “Trata-se de um conceito novo, totalmente desconhecido dos filósofos gregos
e não levado em conta pelos filósofos modernos”.
Deve-se lembrar, também, que a filosofia de Tomás de Aquino é até hoje
considerada pela Igreja Católica35 como o patrimônio filosófico perenemente válido.
Ou seja, para a Igreja Católica, não é a mudança dos tempos que alterará a validade
da metafísica realista.
Este capítulo se dividirá em três partes: primeiro será trabalhado o pensamento
filosófico logo após Tomás de Aquino, onde se verá, através dos estudos de Étienne
Gilson, que mesmo os filósofos que se diziam tomistas na realidade deixaram de lado
no estudo de suas filosofias a metafísica realista. Em seguida, será abordada a
escolha da Igreja Católica pela metafísica realista de Tomás de Aquino para, por fim,
estudar brevemente o tomismo no século XX.

4.1 APÓS TOMÁS DE AQUINO

Já no tempo de Tomás, sua filosofia acabou por ser aceita por seus
contemporâneos. O Aquinate começou a ensinar muito jovem, conforme explica
Torrell (1999, p. 43): “Tomás contava então com 27 anos e, segundo os estatutos da
Universidade, deveria contar com 29 para assumir canonicamente esse cargo [de
professor].” e muito cedo já ganhou fama de mestre por onde ensinou.
Após sua morte, a obra de Tomás tornou-se referência entre os dominicanos,
ordem religiosa à qual pertencia. Muitos se diziam seus seguidores, admiravam sua
filosofia. Gilson (1995, p. 672) vai confirmar dizendo que “A despeito das resistências
que encontrou, a doutrina de santo Tomás logo lhe conquistou numerosos discípulos,

35 Este trabalho, ao se referir a “Igreja Católica”, designa a Igreja Católica Apostólica Romana.
44

não só dentro da Ordem dominicana, como também em outros meios escolares e


religiosos”.
Essas resistências vinham principalmente dos franciscanos, que tinham muitos
filósofos pertencentes à ordem, inclusive grandes nomes como São Boaventura, Duns
Scot ou Guilherme de Ockham e que se opunham em muito à filosofia dos
dominicanos (GILSON, 1995, p. 670). Não é objetivo deste trabalho discorrer sobre a
disputa entre franciscanos e dominicanos, mas entender o processo histórico que
ocorreu dentro da própria filosofia tomista: o fenômeno que houve entre os seguidores
de Tomás, mais precisamente no que diz respeito à metafísica realista, de modo que
Gilson (1962, p. 63) vai dizer que “Já no século XIV parece ter havido um acôrdo
unânime contra ela”. O curioso foi que a filosofia tomista não foi negada pelos que se
lhe opunham, mas pelos próprios seguidores de Tomás.
Gilson (1962, p. 64) afirma:

Mais surpreendente ainda, e talvez único em tôda a história da Filosofia é o


fato de que êste princípio fundamental da doutrina de Tomás de Aquino [a
distinção real entre essência e existência e a superioridade do ato de ser]
tenha sido constante e quase sòlidamente negado por homens que faziam
profissão de seguir a sua doutrina e de defendê-la contra seus oponentes.

Gilson (1962, p. 64-65) em seguida vai se perguntar por que ou antes, como
podem os seguidores professos de uma doutrina recusar o primeiro princípio dessa
doutrina? Citando o dominicano Luiz Bañez, que viveu no fim do século XVI, ele
percebe que, na distinção real de essência e existência uma pergunta surge: se a
essência recebe a existência atual, ela antes já não deveria possuir essa existência?
A resposta a essa pergunta é de índole profundamente filosófica: a distinção de
essência e existência não é a de dois seres, mas tem lugar no ser, como se estudou
no tópico sobre Deus e os entes finitos. Para se unir em composição com uma
essência distinta dele, o ato de ser nada deve acrescentar a si próprio, mas, ao
contrário, perde algo de sua atualidade infinita. Contudo, essa indagação não havia
sido respondida e os estudiosos de Tomás preferiram seguir outro caminho.
Como já se viu no segundo capítulo, essa filosofia é difícil de entender porque
entende que a quididade, a essência, objeto próprio da inteligência humana, é algo
negativo. Gilson (1962, p. 65) concorda que isso é “bastante sem sabor para um
intelecto, como o nosso, que se alimenta da quididade”.
45

Gilson (1962, p. 65, grifo nosso) quer defender a metafísica realista não porque
é a doutrina de São Tomás, mas porque é a doutrina que é. “Manter, sob seu nome
[Tomás de Aquino], uma doutrina diferente da sua, não o prejudica, mas nos prejudica.
Rouba-nos a mais alta das verdades filosóficas”.
Para evitar, portanto, confundir a metafísica realista com outra, Gilson (1962,
p. 65-66) vai enumerar as duas variedades de pseudotomismo36 citadas por Bañez
como sendo as principais. A primeira consiste em considerar a existência como um
acidente da essência, o que foi algumas vezes atribuído a Tomás de Aquino. Contudo,
o pseudotomismo mais difundido é o segundo que reduz “a existência à substância,
considerando que ser, é ser uma coisa” (GILSON, 1962, p. 65). Bañez vai atribuir esse
pseudotomismo a Caietano, Capreolus e Suarez. Tornou-se muito difundido,
especialmente pela obra de Caietano, que se apresentou como legítima expressão da
doutrina de Tomás de Aquino. Até mesmo na ordem dominicana, Caietano foi
considerado como o “Comentador” das obras de Tomás (GILSON, 1962, p. 66).

Não é portanto de admirar que Caietano tenha substituído Tomás de Aquino


nas salas de aula. A razão principal dessa popularidade é simples: Caietano
liberta o tomismo da penosa noção do esse, ou ato de ser. Isso naturalmente,
era libertar o tomismo do tomismo. Caietano, a seu modo, é um mistério
também. Amou profundamente Tomás de Aquino. Seu comentário à Summa
é indispensável aos seus leitores adiantados. Entretanto, em última análise,
Caietano ensinou um tomismo falseado. É quase inconcebível que mestres
em teologia tenham ousado ensinar um tomismo privado de sua noção
metafísica chave. Mas foi o que aconteceu. Desde que, repetimos, a Filosofia
é livre, não atinamos com a razão por que aqueles que não concordam com
Tomás de Aquino se sentem obrigados a seguir sua doutrina. O que não
deviam fazer, é ensinar sob seu nome uma doutrina que não é sua. E isso
penso eu, é o que fêz Caietano. (GILSON, 1962, p. 66).

A maior consequência da interpretação de Caietano foi a redução da filosofia


tomista a um tipo de aristotelismo. A principal diferença entre Tomás e Aristóteles foi
sua concepção de ato, como se viu no segundo capítulo: enquanto Aristóteles definiu
o ato como sendo a forma, a substância, Tomás definiu o ato como o ser. Caietano,
reduzindo a existência à substância, fez a filosofia tomista se reduzir a um
aristotelismo cristão. Isso continua até hoje. Muitos livros de filosofia dizem que Tomás
simplesmente “cristianizou” a filosofia de Aristóteles37.

36 Neologismo cunhado por Étienne Gilson que se refere às correntes de pensamento que dizem seguir
a doutrina de São Tomás de Aquino, mas não a seguem de fato.
37 Este texto destinado a estudantes do Ensino Médio exemplifica essa afirmação: “A partir do século

XIII – no período do apogeu da escolástica –, Tomás de Aquino (1225-1274), monge dominicano,


utilizou traduções de Aristóteles feitas diretamente do grego. Sua obra principal, a Suma teológica, é a
46

4.2 A OPÇÃO DA IGREJA CATÓLICA PELA METAFÍSICA REALISTA38

O retorno da metafísica realista aconteceu no século XX, favorecido pelo


renascimento da filosofia escolástica no século XIX, com a chamada neoescolástica.
As razões que levaram a esse renascimento são citadas por Reale e Antiseri (2007b,
p. 766-767):

Os pensadores neo-escolásticos reagiram ao racionalismo de origem


iluminista, ao imanentismo idealista e ao materialismo positivista, opuseram-
se aos aspectos para eles sempre mais inquietantes do liberalismo político,
isto é, ao laicismo e à secularização, e procuraram enfrentar as correntes
culturais européias, sempre mais contrárias ao dado revelado e à teologia
cristã. O retorno da escolástica se insere num quadro de fenômenos como o
da nova valorização da Idade Média, [...] o das novas preocupações pastorais
da Igreja católica diante do eclipse do sagrado, o da defesa do próprio
conceito de autoridade, posto em crise por toda a época moderna, e o da
reivindicação do tradicional equilíbrio entre razão e fé no interior do
pensamento cristão.

Isto é, diante de filosofias que cada vez mais contrariavam a fé cristã e da


separação cada vez maior entre fé e razão, foi necessário retomar a filosofia que
concordava com o que a fé católica diz. Com isso, a Igreja quis que houvesse para
sua teologia uma filosofia sólida e fundada. O Papa Leão XIII assinou, então, no ano
de 1879, a encíclica Aeterni Patris, onde “fêz dos princípios tomistas, métodos e teses
a filosofia oficial da Igreja” (HIRSCHBERGER, 1968, p. 128).
Leão XIII assim se exprimiu:

Além disso, grande número de homens que afastando o espírito da fé,


desprezam instituições católicas e professam que seu único mestre guia é a
razão. Para os curar e trazer à graça e ao mesmo tempo à fé católica, além
do auxílio sobrenatural de Deus, nada mais vemos mais oportuno do que as
sólidas doutrinas dos Padres e dos Escolásticos, que põem à vista
inabaláveis bases da fé, sua origem divina, sua verdade certa, seus motivos
de persuasão, os benefícios que tem feito ao gênero humano, sua perfeita
harmonia com a razão, e isto com tanta força e evidência, quanta é
necessária afazer [sic] curvar os espíritos mais rebeldes e mais obstinados.
(AP 30)39.

A Igreja deseja, de fato, que “a filosofia rationalis seja ministrada aos


estudantes dos seminários eclesiásticos ad Angelici Doctoris rationem, doctrinam et

mais fecunda síntese da escolástica, por isso mesmo conhecida como filosofia aristotélico-tomista.”
(ARANHA; MARTINS, 2009, p. 162).
38 Apesar do conteúdo pouco filosófico deste tópico, ele se mostra necessário para a compreensão do

surgimento do neotomismo no século XX que será brevemente estudado adiante.


39 IGREJA CATÓLICA, 2013, p. 16.
47

principia”40 (HIRSCHBERGER, 1968, p. 128). O Concílio Vaticano II fala também da


importância de dialogar esse patrimônio filosófico perenemente válido com “os
desenvolvimentos modernos, especialmente os que exercem maior influência na
cultura do país ou se articulam com os recentes progressos da ciência” (OT 15)41. O
Papa João Paulo II afirmou que a filosofia de São Tomás “é verdadeiramente uma
filosofia do ser, e não do simples parecer” (FR 44)42, ou seja, a Igreja deve seguir uma
metafísica realista e não essencialista, podendo e devendo dialogar com o
pensamento contemporâneo:

Precisamente por este motivo é que santo Tomás foi sempre proposto pela
Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer
teologia. Nesse contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu
Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da
morte do Doutor Angélico: “Sem dúvida, santo Tomás possuiu, no máximo
grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os
novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a
contaminação do cristianismo pela filosofia profana, mas tão pouco [sic]
defende a rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do
pensamento cristão como um pioneiro no novo caminho da filosofia e da
cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução que ele
deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a
genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade
do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela
tendência antinatural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem
faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural” (FR 43)43.

Entende-se, portanto, que a Igreja incentivou seus fiéis a estudar a filosofia de


São Tomás como patrimônio seguro de pensamento para os tempos atuais, e não
como uma filosofia superada da Idade Média. Neste contexto, muitos pensadores,
incentivados pela Igreja iniciaram o estudo do tomismo que se difundiu principalmente
no século XX.

4.3 O TOMISMO NO SÉCULO XX

Com o incentivo da Igreja Católica, muitos filósofos estudaram a filosofia de


Tomás de Aquino nas “suas próprias fontes, para evitar os repensamentos dos
seguidores do Doutor Angélico” (REALE; ANTISERI, 2007b, p. 767) como Caietano.
Como a neoescolástica na realidade foi o renascimento do estudo das obras tomistas,
é comum chamá-la também de neotomismo, nome que será adotado daqui em diante.

40 Traduzindo do latim: à razão, doutrina e princípios do Doutor Angélico.


41 CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 323.
42 IGREJA CATÓLICA, 2008, p. 63.
43 IGREJA CATÓLICA, 2008, p. 61-62.
48

A colaboração da atividade dos neotomistas para a compreensão da obra do


Aquinate no que se relaciona à metafísica realista foi bem resumida por Mondin (2010,
p. 218):

Como ficou amplamente provado pela literatura tomista do século XX


(especialmente pela obra de Gilson, Fabro, Masnovo, De Finance, De
Raeymaeker, Maritain), em metafísica santo Tomás não é mero repetidor de
Aristóteles (como ensinavam Caietano e tantos outros exímios
comentadores), mas um genial inovador. Tirando o ser daquele profundo
esquecimento em que Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho e Avicena o
haviam deixado cair, Tomás de Aquino coloca-o no centro do seu poderoso
edifício metafísico: seu “discurso essencial” é todo ele um discurso centrado
no ser.

Isto é, Mondin reconheceu que foi a colaboração dos neotomistas que permitiu
que a filosofia de Tomás não ficasse conhecida na história como mera repetição de
Aristóteles, mas com a originalidade que lhe foi dada pelo Aquinate. De fato, o trabalho
dos neotomistas foi o de redescobrir a filosofia tomista como “filosofia do ser, e não
do simples parecer” (FR 44)44. Grandes nomes, como Étienne Gilson, Jacques
Maritain, Cornélio Fabro, o cardeal Desiré Mercier, Francisco Olgiati, Amato Masnovo,
Umberto Padovani, etc. fizeram a grande defesa do tomismo, afirmando que é válido
para os dias atuais (REALE; ANTISERI, 2007b).
A defesa dos neotomistas está em torno da chamada philosophia perennis,
termo em latim cunhado por Leibniz que significa “filosofia perene”, isto é, a filosofia
que não muda com o tempo. Segundo Hirschberger (1968, p. 131), essa posição
procura o que há de permanente no espírito ocidental e o encontra na filosofia
platônico-aristotélica, de um lado e, de outro, no patrimônio espiritual do Cristianismo.
Assim, com esse ponto de partida, tenta-se esclarecer a situação do homem moderno
no entendimento de si mesmo e do mundo. Não se trata de um historicismo arcaico,
“de museu”, mas pretende-se, numa contínua compreensão de todas as posições
filosóficas importantes, dar uma resposta sistemático-realista às questões suscitadas
pelo homem que filosofa.
É esclarecedora a visão de Maritain (2005, p. 11-12, grifos do autor) com
relação ao tomismo como philosophia perennis:

O tomismo não é somente algo histórico. [...] Ele responde aos problemas
modernos, na ordem especulativa e na ordem prática, tem uma virtude
formativa e libertadora do ponto de vista das aspirações e inquietudes do
tempo presente. Assim, o que esperamos dele é, na ordem especulativa, a

44 IGREJA CATÓLICA, 2008, p. 63.


49

salvação atual dos valores da inteligência; na ordem prática, a salvação atual


(na medida em que isto depender de uma filosofia) dos valores humanos. [...]
é com um tomismo vivo e não com um tomismo arqueológico que estamos
lidando. [...] É preciso que defendamos a sabedoria tradicional e a
continuidade da philosophia perennis contra os preconceitos do
individualismo moderno, já que este gosta, estima e procura o novo pelo novo
e só se interessa por uma doutrina na estreita medida em que ela representa
uma criação, a criação de uma nova concepção de mundo. É preciso que
mostremos que esta sabedoria é sempre jovem, inventiva e traz em si uma
necessidade profunda, consubstancial, de engrandecer-se e renovar-se – isto
contra os preconceitos daqueles que gostariam de fixá-la em dado estado de
seu desenvolvimento e desconhecem sua natureza essencialmente
progressiva.

Quanto à questão da metafísica realista, Gilson (1962, p. 130) vai afirmar:


“Indagávamos que noção metafísica deveria ficar-nos na memória, como contribuição
pessoal de São Tomás ao bem comum da philosophia perennis. A resposta, penso
eu, não permite dúvida. É a noção de esse, ou de actus essendi”. A noção de ato de
ser é o maior contributo de Tomás para a filosofia.
Na continuidade do pensamento dos neotomistas, a filosofia de Tomás de
Aquino deve ser estudada, inclusive na atualidade. Esse “patrimônio filosófico
perenemente válido”, como a chamou o Concílio Vaticano II, deve dialogar com a
modernidade, buscando respostas para as mais profundas indagações do homem,
sempre mantendo contato com o ser.
50

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atingiu-se, assim, o objetivo geral do trabalho: o estudo do ato de ser. Definiu-


se a metafísica realista de São Tomás de Aquino como a realidade do ser acima de
todas as outras, e estudou-se a influência de diversos filósofos anteriores a ele.
Especificou-se o estudo do ato de ser e de suas consequências: distinção entre
essência e existência, relação entre Deus e as criaturas e seu processo de
explicitação. Estudou-se, por fim, a filosofia tomista na modernidade, em especial a
opção da Igreja Católica por ela e o trabalho dos filósofos que a continuaram.
Com isso, percebe-se, portanto, a atualidade e a importância da metafísica
realista para a filosofia. Com o ato de ser, tem-se uma metafísica que busca o
fundamento de todas as coisas no ser e não nas essências. Trata-se então de
philosophia perennis, que não muda com o tempo, mas que quer, ao contrário, buscar
aquele princípio que está além do tempo, da multiplicidade e do devir.
A metafísica realista é importante não por ser a filosofia de São Tomás de
Aquino, mas por ser a filosofia que é. Seguindo a linha de pensamento de Étienne
Gilson, deixar esse pensamento de lado é deixar de lado a maior das verdades
filosóficas. Busca-se, com essa metafísica, um fundamento de tudo o que existe. Na
modernidade, o que mais se pergunta entre os filósofos é sobre a existência humana,
e essa filosofia fornece uma resposta. A resposta está no ser, no Puro Ato de Ser. Se
os entes finitos têm ser, isso se deve à sua participação e permanência no Ipsum Esse
Subsistens. No fundo, essa filosofia quer conduzir a pessoa a Deus. Ela deixa o
homem completamente dependente de Deus.
Não é estranho, portanto, que a Igreja Católica assuma essa filosofia como
segura para sua teologia. Receptora da revelação cristã, ela sabe que toda busca
humana por um sentido na vida, pelas razões da existência, é, no fundo, uma busca
de Deus. Contudo, a Igreja é a primeira a defender a importância de um diálogo desta
filosofia com a modernidade. O destaque da metafísica realista é a sua consistência
racional e o fato de que ainda não houve filosofia que a contrariasse. Por isso, esse
diálogo, longe de ser uma disputa para saber quem é o detentor da verdade, quer
buscar uma filosofia que queira, de fato, responder às questões mais íntimas do
homem.
Por isso, para futuras pesquisas filosóficas, talvez uma futura dissertação de
mestrado, buscar-se-á estabelecer este diálogo entre a metafísica realista e a
51

modernidade. Em especial com a filosofia de Martin Heidegger, que também propôs


um retorno da simples análise ôntica a uma filosofia verdadeiramente ontológica.
Heidegger quis que a filosofia saísse do estudo do ente para retornar ao estudo do
ser, o que foi também a proposta da metafísica realista. Parece ser um diálogo
promissor a ser feito para o futuro.
52

REFERÊNCIAS

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Maredsous (Bélgica). 170. ed. São Paulo: Ave Maria, 2006.
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ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Compreender al-Fārābī e Avicena. Petrópolis: Vozes,
2011.
JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia, Tomo III – Metafísica. Rio de Janeiro: Agir,
1965.
LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino, hoje. Curitiba: Champagnat, 1993.
53

MARITAIN, Jacques. Sete Lições sobre o ser e os primeiros princípios da razão


especulativa. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
MOLINARO, Aniceto. Léxico de Metafísica. São Paulo: Paulus, 2000.
______. Metafísica: Curso sistemático. São Paulo: Paulus, 2002.
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1982.
______. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2010.
NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um mestre no ofício, Tomás de Aquino.
São Paulo: Paulus, 2011.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, volume 1 – Antiguidade e
Idade Média.10. ed. São Paulo: Paulus, 2007a.
______. História da Filosofia, volume 3 – Do Romantismo até nossos dias. 8. ed.
São Paulo: Paulus, 2007b.
TOMÁS DE AQUINO, São. O Ente e a Essência. Petrópolis: Vozes, 2013.
______. Suma Contra os Gentios, volume I. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora,
1990.
______. Suma Contra os Gentios, volume II. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
______. Suma Teológica, volume I. 2. ed. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1980.
TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e obra.
São Paulo: Loyola, 1999.
54

APÊNDICE – CITAÇÕES DIFERENTES DAS NORMAS

Optou-se, neste trabalho, por fazer algumas citações diferentes das que as
normas da ABNT exigem. Isso porque, em algumas obras, a classificação clássica
parece ser mais útil para quem vier a consultá-las posteriormente. Pode-se citar como
exemplo as obras de São Tomás de Aquino e Aristóteles, os documentos da Igreja ou
a Sagrada Escritura. Aqui será explicado brevemente como são feitas neste trabalho
estas citações.
As obras de São Tomás de Aquino, em especial a Summa Contra Gentiles
(Suma Contra os Gentios) e a Summa Theologiae (Suma Teológica), são divididas da
seguinte forma (NASCIMENTO, 2011, p. 63-68):
a) A parte, sendo que a Suma Contra os Gentios tem quatro partes
(chamadas de livros), designadas por número romano – I, II, III, IV – e a
Suma Teológica tem três, sendo que a segunda parte é dividida em
outras duas, e que também classificamos por número romano – I, I-II, II-
II, III. As partes da Suma Teológica têm nomes, que são,
respectivamente: prima pars, prima secundae, secunda secundae e
tertia pars.
b) A questão, na Suma Teológica, também enumerada por números
romanos, relacionada a um tema específico, subdividindo a parte. Na
Suma Contra os Gentios está enumerado depois do livro o capítulo.
c) O artigo, que são pequenos textos que subdividem as questões ou
capítulos. As obras citadas de São Tomás de Aquino são praticamente
artigos unidos em questões ou capítulos e em partes ou livros. Na Suma
Teológica, eles estão indicados em números romanos e na Suma Contra
os Gentios são usados números arábicos.
d) Os artigos da Suma Teológica estão divididos no problema exposto, os
argumentos que defendem uma posição contrária à que se quer chegar,
uma citação em contrário a esses argumentos e a resposta de Tomás
ao tema. Depois de dada a resposta, Tomás responde então aos
argumentos contrários colocados no início do artigo. Se a citação for feita
da resposta de Tomás, citar-se-á apenas a parte, a questão e o artigo,
separados por vírgula. Se a citação for feita da resposta a algum
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argumento, além dos três itens colocados, colocar-se-á o número da


resposta em arábico seguido da letra “r” minúscula.
O opúsculo filosófico O Ente e a Essência de Tomás é dividido em capítulos e
parágrafos, onde é citado primeiro o capítulo em números romanos e o parágrafo em
número arábico.
As obras de Aristóteles estão divididas em livros e capítulos. Cada citação feita
de Aristóteles, portanto, terá o nome da obra seguida do número do livro em número
romano e do capítulo em arábico. Assim, na citação Metafísica XII, 4, cita-se a
Metafísica de Aristóteles, livro doze, capítulo quatro.
As citações bíblicas conterão a abreviatura do nome do livro da Bíblia citado
seguido do número do capítulo em arábico separado por vírgula do nome do versículo
também em arábico. Dessa forma, a citação Ex 3, 14 significa que está sendo citado
o livro do Êxodo, capítulo três, versículo catorze.
Os documentos da Igreja serão citados com a abreviatura do documento
seguida do parágrafo citado, em número arábico. Assim, FR 43 cita a encíclica Fides
et Ratio do Papa João Paulo II, parágrafo 43 e OT 15 cita o decreto Optatam Totius
do Concílio Vaticano II, parágrafo 15. Tanto as abreviaturas das obras de Tomás de
Aquino quanto dos livros bíblicos e documentos da Igreja estão compiladas na lista de
abreviaturas.

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