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Curso de Férias

INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA

Aurecir Martins de Melo Junior

Rio de janeiro
2015
Sumário
Introdução ................................................................................................................................................................................. 1
i. O ponto de partida ............................................................................................... 2
ii. O objeto ............................................................................................................ 2
iii. O lugar ............................................................................................................. 3
iv. As dificuldades atuais ............................................................................................ 4
v. Jesus histórico e o Cristo da fé ................................................................................. 5
vi. Três fases cristológicas .......................................................................................... 6

1 - Cristologia do Novo Testamento ............................................................................................................................................. 8


1.1. Sinóticos e Atos ................................................................................................... 8
1.2. Paulo ................................................................................................................ 9
1.3. João................................................................................................................. 10

2 - Cristologia dos séculos II – IV ............................................................................................................................................... 13


2.1. As primeiras respostas: Adocionismo, modalismo, subordinacionismo .............................. 13
2.1.1. Adocionismo..................................................................................................... 13
2.1.2. Modalismo ...................................................................................................... 13
2.1.3. Subordinacionismo ............................................................................................. 14
2.1.4. Resposta católica: Concílio de Nicéia ......................................................................... 14
2.1.5. São Justino: O Logos em pessoa e os logos dos homens ....................................................... 14
2.2. Três modelos de Cristologia deficiente e três grandes teólogos ....................................... 15
2.2.1. Ebionismo ....................................................................................................... 15
2.2.2. Marcionismo .................................................................................................... 15
2.2.3. Docetismo-agnosticismo ........................................................................................ 16
2.2.4. Irineu: a unidade de Deus ..................................................................................... 16
2.2.5. Tertuliano: as duas naturezas ................................................................................. 17
2.2.6. Orígenes ......................................................................................................... 17
2.3. Cristologia no século IV ........................................................................................ 18
2.3.1. Ario: relação de Cristo com Deus .............................................................................. 18
2.3.2. A cristologia de Nicéia: Cristo ὁμοούσιος ................................................................. 19
2.3.3. O debate posterior a Niceia e a distinção entre natureza e pessoa .......................................... 20
2.3.4. O apolinarismo e a alma de cristo ............................................................................. 20

4 - Cristologia dos séculos V – VII .............................................................................................................................................. 21


3.1. As grandes tradições cristológicas ............................................................................ 21
3.1.1. A Tradição Alexandrina........................................................................................ 21
3.1.2. A Tradição Antioquena ........................................................................................ 21
3.1.3. A Tradição Latina .............................................................................................. 21
3.2. A Crise Nestoriana .............................................................................................. 22
3.2.1. A correspondência entre S. Cirilo e Nestório.................................................................. 22
3.2.2. A segunda carta de Cirilo a Nestório.......................................................................... 22
3.2.3. A resposta de Nestório .......................................................................................... 23
3.2.4. A terceira carta de Cirilo a Nestório .......................................................................... 23
3.3. O concílio de Éfeso ............................................................................................. 24
3.4. A doutrina de São Cirilo ....................................................................................... 24
3.5. O símbolo da união do ano 433 .............................................................................. 24
3.6. O Monofisismo .................................................................................................. 25
3.6.1. O monofisismo e o Concílio de Calcedônia ................................................................... 25
3.6.2. O monofisismo de Êutiques .................................................................................... 25
3.6.3. O “Tomus ad Flavianum” ...................................................................................... 26
3.7. O Concílio de Calcedônia ..................................................................................... 26
3.7.1. A questão dos três capítulos e o II Concílio de Constantinopla (553) ...................................... 27
3.8. O monotelismo e o III Concílio de Constantinopla ...................................................... 28
3.8.1. A dualidade de operações em Cristo ........................................................................... 28
3.8.2. Vontade divina e vontade humana em Cristo ................................................................. 28
3.8.3. A distinção entre “Voluntas ut Ratio” e “Voluntas ut Natura” .............................................. 29

5 - Cristologia especulativa ....................................................................................................................................................... 29


4.1. As operações teândricas ........................................................................................ 29
4.2. A única filiação de Jesus ao Pai................................................................................ 30
4.3. Relação de adoração dos homens com Cristo .............................................................. 31
4.4. Comunicação de idiomas e linguagem humana sobre o mistério de Cristo .......................... 31
4.5. A União Hipostática............................................................................................. 32
4.5.1. O modo da união ............................................................................................... 32
4.5.2. As “três opiniões” sobre o modo de união ...................................................................... 32
4.5.3. União substancial, união acidental e união hipostática..................................................... 33
4.5.4. Conceito de união hipostática ................................................................................. 33
4.5.5. Os conceitos de união e assunção .............................................................................. 34
4.5.6. A união hipostática, dom sobrenatural ....................................................................... 34
4.5.7. Indissolubilidade da união hipostática........................................................................ 34
4.6. A unidade ontológica da pessoa: o Ser de Cristo .......................................................... 34
4.6.1. Natureza e pessoa na cristologia .............................................................................. 34
4.6.2. Diversas definições de pessoa ................................................................................... 35
4.6.3. As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa ........................................................ 35
4.6.4. Ser e Pessoa em Cristo .......................................................................................... 35
4.7. A unidade psicológica da pessoa: o eu de Cristo .......................................................... 36
4.7.1. A teoria do “assumptus homo” ................................................................................. 36
4.7.2. As teorias em torno ao eu de Cristo ............................................................................ 36
4.7.3. O único eu de Cristo ............................................................................................ 36
4.8. O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidência na Cristologia ....................................... 36
4.8.1. Anton Günther .................................................................................................. 37
4.8.2. Antonio Rosmini ................................................................................................ 37
4.8.3. Dificuldades no uso da noção de pessoa na teologia ......................................................... 38
4.8.4. O intento cristológico de Karl Rahner ........................................................................ 39
4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” ........................................................................... 40
4.9. A Santidade de Cristo ........................................................................................... 40
4.9.1. A santidade de Jesus Cristo..................................................................................... 40
4.9.2. A graça da união ............................................................................................... 40
4.9.3. A graça habitual, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo .......................................... 41
4.9.4. A graça capital ................................................................................................. 41
4.9.5. A plenitude da graça em Cristo ................................................................................ 41
4.9.6. A impecabilidade de Cristo e sua liberdade ................................................................... 42
4.9.7. As tentações de Cristo .......................................................................................... 42
4.10. A ciência de Cristo .............................................................................................. 43
4.10.1. A ciência divina e a ciência humana de Cristo ............................................................... 43
4.10.2. A visão imediata de deus ....................................................................................... 43
4.10.3. Jesus, viator e comprehensor ................................................................................... 43
4.10.4. Ciência infusa................................................................................................... 44
4.10.5. A ciência adquirida............................................................................................. 44
4.10.6. Jesus e a fé ...................................................................................................... 45
4.10.7. A infalibilidade de Jesus ....................................................................................... 45
4.10.8. A consciência de Jesus .......................................................................................... 46

Bibliografia .............................................................................................................................................................................. 47
Introdução
“E vós, quem dizeis que eu sou?”1 A partir desta indagação de Jesus aos seus discípulos, frente a
qual Pedro faz sua profissão de fé e revela que Jesus é o cumprimento da esperança messiânica e o
Filho do Deus vivo 2, iniciamos nosso estudo de Cristologia.
No mundo hoje, muitas são as “verdades” ditas sobre Jesus. A quem o identifique como o
Libertador, um revolucionário, um espírito elevado, um profeta da mensagem de Deus, dentre
tantas outras definições que podemos encontrar. Em nosso estudo buscaremos encontrar
fundamentos sólidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele é.
Toda especulação teológica é auxiliada por distintas ciências, por exemplo, a exegese, a
história, a filosofia, as ciências sociais, etc. 3 A partir de então, esboça alguns saberes fundamentais
sobre Jesus, sua existência, pessoa, missão, interpretação da Igreja ao longo dos séculos, presença
atual na consciência dos homens, repercussão na história posterior e sua capacidade de engendrar
esperança e salvação. Deste modo, compreende-se que a Cristologia dogmática (ou sistemática),
que supõe a fé como Dom de Deus e luz para a inteligência e potência para a vontade, é
acompanhada por de outras três formas de cristologia: a histórica, a fundamental e a filosófica.
Resumidamente:
 Cristologia histórica: estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geográfico,
cultural, religioso e social;
 Cristologia fundamental: indaga os signos (sinais) que acompanham a existência de
Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelação de Deus;
 Cristologia filosófica: mostra que dimensões do ser, do homem e da história se
esclarecem à luz de Jesus, enquanto universal concreto.4
 Cristologia dogmática: pressupõe a revelação como ação de Deus na história de
Israel com seu ápice na pessoa de Cristo, a fé é o princípio do conhecimento.
Assim, a ação do teólogo deve contar com a revelação divina (Sagrada Escritura), com os
órgãos de transmissão eclesial (liturgia, sentido da fé nos crentes, tradição conciliar, autoridade
episcopal, magistério), com os princípios objetivos da existência cristã (Espírito Santo, sucessores
dos apóstolos), e com os subjetivos (carismas comunitários e dons teologais). Oferecendo desta
forma, inteligência e razão externa da própria fé.5

1
Mc 8,29a
2
Cf. Mt 16,16; Mc 8,29; Lc 9,20
3
Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relação entre a fé e a razão: “A razão, privada do contributo
da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior
evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela
frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição.
Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e
radicalidade do ser”. JOÃO PAULO II. Carta encíclica Fides et ratio. São Paulo: Paulus, 2001, p.68.
4
CARDEDAL. Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, p. XIX.
5
Ibidem.
“Cristologia” significa literalmente “doutrina ou discurso acerca de (Jesus, o)
Cristo. Christos corresponde à tradução para o grego do termo hebraico mashiah
(o Ungido [de Deus]). Originalmente, portanto, Christus (forma latinizada) não
é um cognome da figura histórica de Jesus de Nazaré, mas uma confissão dela.
(...) O título “Cristo” representa, de modo vicário e sucinto, todas as predições do
portador da salvação com as quais se tentou, tanto no passado como no presente,
expressar quem é Jesus é e o que ele significa para nós.6
Em suma, a Cristologia é o tratado teológico que dá conta e razão à confissão de fé de Pedro
e de toda a Igreja – “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus” 7– mediante a narração dos fatos de sua vida
particular e da proposição de sua verdade universal. Jesus é, então, compreendido não só como uma
origem histórica de uma nova relação com Deus, Ele é o objeto a que se dirige a fé do cristianismo.

i. O PONTO DE PARTIDA
O ponto de partida e de referência da cristologia é a história pessoal de Cristo.
Compreende-se aqui história pessoal como o conjunto de mensagens, ações e acolhimento da
vontade do Pai e, de certo modo, a decisão dos homens por Ele. A história pessoal tem uma face
exterior e outra interior, de modo que, para se conhecer uma se faz necessário conhecer a outra e
vice e versa.
Portanto, a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciência. Isto é, os fatos históricos
visíveis nos colocam frente a uma realidade invisível eterna. Pois, assim como em todos os homens
a consciência se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus também
por suas obras.

Jesus Cristo, portanto, Verbo feito carne, enviado “como homem aos homens”, “profere as
palavras de Deus” (Jo. 3,34) e consuma a obra salvífica que o Pai lhe confiou (cfr. Jo.
5,36; 17,4). Eis por que Ele, ao qual quem vê vê também o Pai (cfr. Jo. 14,9), pela
plena presença e manifestação de Si mesmo por palavras e obras, sinais e milagres, e
especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos, enviado finalmente
o Espírito de verdade, aperfeiçoa e completa a revelação e a confirma com o testemunho
divino que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos
ressuscitar para a vida eterna. 8
Deste modo, há duas formas de conhecimento de Cristo. Uma que o vê pela hermenêutica
histórica, que O vê como um judeu que está na origem do cristianismo, e outra teológica, que o vê
a partir se sua revelação sobrenatural acolhida pela fé. Na verdade esta é a forma de conhece-lo
definitivamente, tanto na pessoa humana como divina. Assim, partindo da história de Cristo a
cristologia tende a chegar na consciência de Cristo.

ii. O OBJETO
De modo sucinto e claro, quase óbvio, o objeto da cristologia é a pessoa de Cristo. Porém
é preciso evidenciar que não se trata de uma visão unilateral sobre a pessoa de Cristo. Conhecer a
Cristo supõe conhecer sua origem, sua relação com Deus e seu desígnio de salvação dos homens.

6
KESSELER, Hans. Cristologia. In SCHNEIDER, Theodor (Org), Manual de dogmática. v. I, ed. 4. Petrópolis:
Vozes, 2012, p.219.
7
Cf. Mt, 16,16; Jo20,31; 1Jo 2,22; At 9,22
8
DV,4

2
Como vimos, a confissão cristológica põe Cristo em relação com Deus como Filho eterno 9.
Insere em nossa compreensão de Cristo a realidade trinitária, a qual funda a possibilidade da criação
e o sentido da encarnação. Em consequência disto, a cristologia há de considerar a relação de Cristo
com Deus na Trindade (θεολογία) e sua ação no tempo para a salvação dos homens (οἰκονομία).
Deste modo, a cristologia tem que ser exposta como conjugação em Cristo do ser de Deus
(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία), pois se esquecida qualquer uma destas realidades
reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal. 10
A profissão de fé da Igreja em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, une intimamente a
pessoa e a missão de Jesus. Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas, subdividindo a
cristologia em duas partes. A primeira é a Cristologia propriamente dita, ou seja, a que se refere à
pessoa de Cristo – Verbo divino encarnado, à sua constituição ou identidade ontológica, sua
Encarnação, união hipostática e propriedades. A segunda é denominada Soteriologia que estuda a
sua obra de salvação, consumada no sacrifício da cruz. Não obstante, não se pode fazer uma
separação entre estas duas partes, pois Jesus em sua humanidade criada e concreta é a antecipação
dos planos de Deus para a humanidade e início da nova humanidade. 11 Assim, pela Cristologia se
chega à Soteriologia, mas também pela Soteriologia se chega à Cristologia.
À luz disto, conclui-se que o objeto da Cristologia é a pessoa de Cristo enquanto constituída
nestas três realidades: na relação com o Pai e com o Espírito; sua missão salvífica para os homens; e
sua situação no mundo no tempo e lugar. 12

iii. O LUGAR
A especulação teológica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na
história. Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelação, compreendemos a
centralidade da cristologia na teologia.

O conteúdo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvação do homem se nos
manifesta por meio dessa revelação em Cristo que é ao mesmo tempo mediador e plenitude
de toda a revelação. 13
Já definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto
verbo encarnado e enquanto sua missão redentora. Em consequência, podemos afirmar que a
Cristologia é o tema central e o ponto crucial da teologia cristã, sendo então uma chave para todos
os outros temas da teologia. 14 Isto é, no início e no centro da é cristã não se encontra um livro ou
uma ideia abstrata, mas sim uma pessoa viva. De fato, desde a era mais remota do cristianismo se
professa Jesus como Senhor, que venceu a morte, ressuscitou e se faz presente por seu Espírito. 15
Toda a especulação teológica, então, se faz à luz do dado revelado, o Verbo que se fez carne. Ele

9
Cf. Mt 16,16; Mc 8,29; Lc 9,20
10
CARDEDAL. Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, p. 7
11
Cf. 1Cor 15,45-49
12
CARDEDAL. Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, p. 8
13
DV 2
14
KESSELER, Hans. Cristologia. In SCHNEIDER, Theodor (Org), Manual de dogmática. v. I, ed. 4. Petrópolis:
Vozes, 2012, p.219
15
Cf. Rm 10,9; Fl 2,11

3
falou as palavras de Deus16, mostrou-nos a face de Deus17. Assim sendo, Cristo se torna a chave
hermenêutica para a Teologia.

iv. AS DIFICULDADES ATUAIS


O anúncio da Boa Nova de Jesus, encontrou dificuldades desde a era apostólica. É comum,
por exemplo, encontrar nos textos do Novo Testamento o combate às doutrinas que deturpavam o
anúncio e a compreensão de Jesus.18 A comunidade cristã, preocupada em salvaguardar o depósito
da fé recebido da pregação e vida de Jesus, reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou. Deste
modo, foi se estruturando a tradição cristã.
Porém, na modernidade, com o desenvolvimento do método histórico crítico, estes textos
passaram a ser contestados em seu valor histórico. O pensamento que surge a partir de então terá
como consequência a separação do Jesus-histórico e do Cristo-da-fé.
Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades. A primeira é relativa à dificuldade
que a razão encontra para saltar dos fatos à verdade de fé. “As verdades históricas, como contingentes que
são, não podem servir de prova às verdades da razão como necessárias que são”.19 Transpor esta dificuldade
está na capacidade de observar no homem a abertura à transcendência e à história simultaneamente.
Logo, a revelação de Deus não é concluída diretamente da história, mas pelos sinais que Deus
mesmo oferece ao homem dentro da história.
Um segundo nível dessas dificuldades, está relacionado às definições cristológicas dos
primeiros concílios com os testemunhos primitivos da fé, que anuncia a salvação como
acontecimento e descrevem a Cristo em sua função soteriológica sem que fazer afirmações sobre
seu ser, sobre o do homem e o de Deus. Exige-se o transpasso de categorias, de uma cultura de
memória, relato e parábola a outra cultura da física e da metafísica. Tarefa esta que a Igreja tem se
dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias.
O terceiro problema é a constituição pessoal e comunitária da fé em detrimento da
constituição sacramental e institucional da Igreja. Isto é, o discurso sobre Jesus tende ao
subjetivismo, no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercê do homem. Nesta linha de
pensamento podemos perceber que a cristologia é construída no privilégio de alguns autores ou
textos em vez de outros, como também de alguns concílios frente a outros, absolutização de um
título e o rechaçamento de outros. Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor, o
soberano de Deus e Cristo, e estes como seus servos. A Igreja é o lugar próprio da cristologia, é
uma comunidade aberta, nascida da vocação divina e da liberdade humana. Rebater esta dificuldade
significa compreender e conjugar a lugar necessário e os limites do indivíduo na Igreja com a
autoridade dos sucessores dos apóstolos.
A consequência desta última dificuldade são as relações entre a unidade de fé em Cristo e o
pluralismo de cristologias, ou a forma de expor o fundamento e o conteúdo da fé nele, começando
pelo Novo Testamento e seguindo na História da Igreja. Dentro deste problema aparece a questão
da unidade e diversidade em Deus, de sua manifestação multíplice no mundo e de sua autorrevelação

16
Cf. Jo 3,34
17
Cf. Jo 14,10
18
Cf. 1 Tm 6,3; Gl 1,6s; 2Pe 2,1-3; 1Jo4,1-3; 2Ts 2,9-12
19
LESSING, apud CARDEDAL. Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, p. 27

4
em Cristo, ou qual a relação deste com as religiões do mundo.
Três tem sido as respostas:20
 Exclusivismo: Barth, Kraemer e o protestantismo radical – salvação só há em Cristo;
 Inclusivismo: Lubac, Rahner e a maioria dos teólogos católicos – há salvação para
todo homem que vive na verdade e ama a justiça, mas a salvação só encontra sua
plenitude em Cristo;
 Pluralismo salvífico: Hick, Knitter e a chamada teoria pluralista das religiões – cada
religião é salvífica no seu lugar e no seu tempo, Jesus é uma expressão de um Cristo
universal que tem muitos nomes.21

v. JESUS HISTÓRICO E O CRISTO DA FÉ


O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos, o que chamaremos de
métodos. Se pode começar a falar de Cristo a partir dos dias de João Batista até o dia em que ele foi
elevado aos céus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje. Mas
também pode seguir o caminho inverso, partindo do encontro pessoal que a fé torna possível hoje,
e regressar à história de Cristo na busca de sua origem e fundamento. Este duplo cominho já pode
ser percebido na teologia do Novo Testamento, uma ascendente e outra descendente.
 Ascendente: parte do Jesus humano para, a partir das suas atividades humanas,
revelar a sua Pessoa divina. É comum nos primeiros capítulos dos Atos dos
Apóstolos, nos Sinóticos, e em outras passagens neotestamentárias em que Ele vem
apresentado como profeta, servo obediente de Yahweh, servo que se submeteu à
morte e foi manifestado como Senhor, ressuscitado por Deus.
Risco: ater-se somente a estes textos infere no erro hermenêutico, o qual reduz
Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus, um ser divinizado
por uma ação de Deus que transmutou seu ser de homem.
 Descendente: parte da divindade de Jesus, que o vê como Logos encarnado plantando
sua tenda no meio de nós.23 É típica em João, e nas últimas cartas do Corpus
Paulinum. Jesus é sempre comparado à Sabedoria dos textos Sapiências do Antigo
Testamento.
Risco: da mesma forma como a teologia ascendente o acento único neste método
gera o erro do monofisismo ou docetismo. Isto é, Cristo seria um ser eterno que,
sem deixar sua natureza divina, assumiria uma natureza humana como um
invólucro sem consistência própria.
Deste modo, acentuamos que o estudo da Cristologia, mesmo que partindo de um método
específico, não se pode deixar de considerar o outro. O estudo cristológico deve ser feito a partir

20
CARDEDAL. Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, pp. 29-30
21
Estas respostas parecem relacionar-se diretamente à questão da salvação dos que não pertencem visivelmente à Igreja.
Não é um assunto do qual se trate diretamente este curso, porém a nível de compreensão recomenda-se a leitura dos
documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes. (Cf. LG 16; GS 22)
22
Cf. At1,22
23
Cf. Jo 1,1-14

5
da conexão dessas duas perspectivas.
Outro fator que implica na forma de fazer cristologia é a influência do pensamento científico
posterior ao Renascimento. Mesmo que a ciência teológica pertença a uma esfera de especulação
distinta da ciência empírica, esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e
contemporâneo. Em consequência disto, o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da
compreensão da inteligência humana. O referencial teocêntrico cedeu lugar, desta forma, ao
antropocentrismo. Por outro lado, a Teologia sofreu também o influxo do subjetivismo de kantiano.
Deste modo, Cristo é o protótipo ético da norma moral que, a priori, o ser humano conhece em sua
mente como lei de razão universal. Desse modo, o Jesus da história é reduzido a um modelo moral.
Assim, tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma ótica
prevalentemente histórica, empírica, segundo o critério do cientificamente palpável.
A partir de então, na pesquisa bíblica foram inseridas dúvidas sobre a veracidade histórica
dos evangelhos. Destaca, então, a divergência entre o que chamavam de “o Jesus pré-pascal” e “o
Cristo pós-pascal”. Esta dúvida consiste, resumidamente, na acusação de ter a comunidade cristã
primitiva do século I construído uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que
suscitasse a fé nas pessoas, por meio da pregação.

vi. TRÊS FASES CRISTOLÓGICAS24


Racionalismo
Jesus é considerado apenas como um homem formativo, ou um visionário fracassado, mas
não como o Filho de Deus. Afirma ser impossível chegar a verdadeira figura histórica de Jesus de
Nazaré a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus.
Principais representantes: Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), H. E. Gottlob Paulus
(1761-1851), D. F. Strauss (1808-1874), f. C. Baur (1792-1860).
Fideísmo
O desenvolvimento do Método da História das Formas apontava a negação dos evangelhos
como relatos biográficos de Jesus, ou narrações sobre Ele. Os evangelhos são considerados apenas
um conjunto de peças individuais, de finalidade sobretudo catequética e de confissão da fé. Este
dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeístas. Porém, diferente dos
racionalistas, os Fideístas acreditavam interessar somente a fé no Cristo pós-pascal, única
possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos. Desta forma, não interessava o acesso ao Jesus-
histórico, mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-fé.
Principais representantes: Martin Kähler e Rudolf Bultmann.
Fase pós- bultmanniana
Esta fase caracteriza-se pela busca de equilíbrio e pela volta ao Jesus-histórico. O método
que é usado nesta fase é o Método da História da Redação. Detendo-se ao texto final demonstra que
os evangelistas ainda que tenham recebido, colecionado e compilado as unidades literárias, são na
verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literários dos Evangelhos. A volta do

24
SANTOS. Júlio Cesar Rocha dos. Cristologia. Rio de Janeiro: ISTARJ, 2015. Apostila.

6
Jesus histórico fundamenta-se na dependência que demostra ter o Cristo do kérygma no Jesus
histórico.
Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos não falsificaram as palavras e atos de
Jesus. Eles, na verdade, possuem um caráter de testemunho do Jesus histórico: eles explicitam uma
fé germinal dos discípulos, ainda antes da glorificação na Páscoa. Consideram também o caráter da
inspiração bíblica.
Por fim, firmam alguns critérios de historicidade dos Evangelhos:25
 Múltipla atestação: os dados são atestados em vários textos do Novo Testamento;
 Descontinuidade: nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados não se
enquadram nas concepções judaicas de seu tempo, nem com as concepções de um
Cristo glorioso, ou as da Igreja primitiva;
 Conformidade: o Jesus dos Evangelhos é uma personagem que se adequa aos usos,
costumes, língua, de um palestinense;
 O estilo de Jesus: Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe
é própria;
 Coerência dos relatos: a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas
de detalhes de um mesmo acontecimento.
Principais representantes: Joachim Jeremias, E. Käsemann, O. Culmann, e ainda os
exegetas católicos em geral.

25
A Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, reproduzindo os elementos essenciais da Instrução
da Comissão Bíblica sobre a verdade histórica dos Evangelhos, de 21/04/1964, bem como atenta aos resultados das
pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histórico, assim se pronunciou, em síntese, nos
seus números 11, 12 e 19.

7
-1-
Cristologia do Novo Testamento

1.1. Sinóticos e Atos

Quando tratamos dos métodos da Cristologia – ascendente e descendente – dissemos que a


Cristologia ascendente é comum nos sinóticos e nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos.
Deste modo, veremos que estes relatos partem das ações terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo
glorioso. Apresentam uma cristologia bastante primitiva, com um material querigmático antigo
com centralidade na Paixão-Morte-Ressurreição de Jesus, muitos hebraísmos26 e biblicismos27.
Assim, o Ato dos Apóstolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus.
Partindo de sua humanidade a compreensão sobre Jesus se alarga para sua messianidade. Contudo,
apesar de já apontar para uma messianidade, a cristologia dos Atos dos Apóstolos não apresenta uma
confissão da divindade de Jesus.
Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas características:
Humanidade:
a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes: At 2,22-23;
b) discurso de Pedro a Cornélio e a seus companheiros: At 10,38;
c) semelhança com Moisés: At 3,22 e At7,20s;
Messianidade:
a) Jesus é chamado de Cristo - At 2,36; 3,18; 5,42; 9,22
e) Jesus é chamado de “o Justo” - At 3,14
f) Jesus é Chamado de “pedra angular” - At 4,11
A compreensão messiânica do momento, ainda estava muito ligada a um rei que viesse e
restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos. Aparentemente, morte de Jesus na cruz teria
desfeito essa esperança, e Jesus não seria o Messias enviado. Porém, o texto dos Atos testemunha o
contrário. Jesus é, então, identificado não só como messias, mas como Filho de Deus. Não há uma
distinção entre os títulos “Filho de Deus” e “Messias”. Isto é, a concepção de um Messias-rei, se
associa a noção mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta à direita de Deus. Mesmo que ele
tenha sofrido a humilhação da morte de Cruz, foi ressuscitado por Deus Pai, a ele foi concedido
poder e glória28.
Outro título dado a Jesus é o de “Servo de YHWH”29. Jesus é apresentado como o
cumprimento das promessas neotestamentárias30. O Servo Tal Servo é, todavia, o ungido de Deus 31,

26
Modos de falar típicos da língua hebraica, tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia, ao invés de “Ele ressuscitou”
(At 10,40)
27
Jesus é apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento.
28
Esta característica é afirmada pela cristofania no relato da ascensão do Senhor (At 1,9-11)
29
At 8,26-40
30
Is 52,13 – 53,12
31
At 4,27

8
pelo qual Deus abençoa, realiza curas, sinais e prodígios 32.
Também é chamado Senhor (κύριος), este nome é usado pelos judeus para referir-se a
YHWH, revelando, assim, um forte aspecto religioso. Isto aproxima Jesus de Deus, de modo a
conferir ao nome de Jesus os mesmos méritos do nome de YHWH: quem o invocar será salvo 33.
Outros títulos são atribuídos a Jesus relevando essa proximidade com Deus: “Príncipe da vida34”,
Príncipe e Salvador. 35
Em suma, o cume da revelação de Jesus está em sua Páscoa, isto é, o homem Jesus e suas
ações passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreição.

1.2. Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente, Paulo retoma vários títulos de Jesus, já


existentes na tradição primitiva, tais como: Profeta; Filho de Davi 36; Filho do Homem; Rei, etc.
Acrescenta também outros títulos, tais como: Imagem de Deus (Cl 1,15); Bem-Amado (Ef 1,6);
Sabedoria de Deus (1 Cor 1,24); Segundo Adão (1 Cor 15,45); o título κύριος, já presente no Atos
dos Apóstolos e na comunidade cristã palestinense antiga, parece ser o preferido por Paulo,
geralmente associado à invocação Maran atha37. É comum encontrar nos textos paulinos conceitos
da tradição primitiva – morte expiatória38, o título Filho de Deus, tanto no sentido messiânico,
como no sentido próprio 39. A inserção da Tradição primitiva pode ser percebida nos textos que se
referem ao culto (confissões de fé e ações de graças), como também nos hinos. Neste sentido
podemos citar os textos de Rm 10,9, confissão de fé em Jesus como Senhor e possuidor da salvação;
1 Cor 11,25, a instituição da Eucaristia em; o hino litúrgico de Fl 2,6-11, entre outros. Ainda em
passagens que relacionam Cristo com a criação (1 Cor 8,6; Cl 1,15).
Dois temas que parecem central na cristologia paulina é o anúncio do juízo de Cristo e a
exaltação de seu reinado. Estes temas de primeiro momento parecem muito próximos, com uma
variação sem grande importância. No entanto, revela na pregação paulina dois traços de tradição,
uma primitiva e uma posterior.

Há, pois, uma tradição cristã na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o
salvador dos últimos dias (At 3.20 e cf. 1 Ts 1.10) designado e já entronizado por sua
ressurreição, e que deve descer do céu para o julgamento. Nesta tradição, a ressurreição
está relacionada com o juízo; ela foi, da parte de Deus, a designação do juiz
escatológico.40

As confissões de fé posteriores endossaram a expressão “Cristo está assentado à direita de


Deus”, que, paralelamente à fórmula “Jesus é Senhor”, reconhece o reinado atual de Cristo.
É sem dúvida muito antiga; contudo, seus traços no Livro dos Atos são relativamente

32
At 3,13.26; 4,30;
33
At 2,21
34
At 3,15
35
At 5,31
36
Cf. 2 Sm 7
37
O Senhor vem (1 Cor 16,22)
38
1 Cor 15,3; Rm 6,1-4
39
Rm 1,3s
40
Cerfaux, Lucien. Cristo na teologia de Paulo. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p25.

9
apagados (At 2.34; 7.55: visão de Estêvão). Paulo emprega-a várias vezes: Rm 8.34; Cl
3.1; Ef 1.2041
No discurso paulino não se pode colher evidentemente características do Jesus-histórico,
mas sim do Jesus Mestre, protótipo dos filhos de Deus, regra de solução para a vida da Igreja e seus
problemas. No entanto, podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relação de Paulo
com o Jesus da história:
 Jesus é identificado como o crucificado, como Jesus de Nazaré; 42
 Refere-se à condição humana de Cristo, à mansidão e bondade de Jesus, ao
ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divórcio;43
Sobre o título de Cristo, Paulo tende a usá-lo unido ao nome de Jesus. O sentido deste
termo diferencia-se ao que é comum no meio judaico. Paulo trata Jesus como o Messias em senso
teológico. Por exemplo: Rm 9,5 – Cristo é Deus bendito pelos séculos; 2 Cor 5,10 – Cristo é Juiz;
Ef 5,23 – o Cristo é o Cabeça da Igreja;
O título de κύριος é frequente no Antigo Testamento, significando o rei, representante de
Deus na Terra. Aplicado a Cristo e associado aos demais títulos, adquire uma amplitude muito
maior, profundamente religioso44. Este título é associado também a YHWH45. Além disso equivale
à afirmação da divindade de Jesus, alguns atributos próprios de YHWH são transferidos para Jesus,
como por exemplo Senhor da Glória. A LXX traduziu YHWH por κύριος.
Outros títulos que Paulo usa relativos à Jesus são: “Filho de Deus”, em sentido próprio, por
vezes como sinônimo de Messias46; “Imagem do Deus Invisível”, “Primogênito de toda criatura” 47;
Jesus é Senhor da criação.48

1.3. João

O evangelho de São João apresenta uma cristologia mais desenvolvida49. Jesus é identificado
fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo, como podemos identificar no início do
livro do Apocalipse50. É um profeta por excelência51, é aquele do qual Moisés havia escrito na lei 52,
nos lábios de Jesus são postas as palavras que se referiam a Moisés 53. Ele é o Moisés da Nova
Aliança54. Ele não fala por si, mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu 55, ele resume
a antiga Lei na Lei do amor:

41
Ibidem, p27.
42
Cf. Rm 1,3-4; 2 Cor 1,23-24
43
Cf. 2 Cor 8,9; Fl 2,7; 2 Cor 10,1; Rm 12,19-20; 1 Cor, 7,10-11
44
Cf. Rm 14,9; 2 Cor 4,5; 1 Cor 8,5s; 12,3
45
Cf. Rm 10,9-13 em paralelo com Jl 3,5; 1 Cor 2,16;
46
Cf. Rm 8,3; Gl 4,4; 1 Cor 15,47; 2 Cor 8,9; Fl 2,6-11
47
Cf. Cl 1,15
48
Cf. Rm 11,36; 1 Cor 8,6; Cl 1,15-17; Hb 1,1s
49
BÍBLIA DE JERUZALÉM, p1834 (nota introdutória aos textos joaninos)
50
Ap 1,1a
51
Jo 6,14; 7,40.52
52
Jo 1,45; 5,46; cf. Dt 18,15.18
53
Jo 12,48-50; 8,28-29; 7,16b-17
54
Jo 1,17; 9,24-34
55
Jo 7,16-18; 14,10.24; 17,8; 3,34

10
“Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-
vos também uns aos outros”56
A Cristologia joanina é marca de uma cristologia descendente, parte da divindade de Jesus,
no sentido de acentuar a preexistência do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade, a sua
Encarnação ao assumir a natureza humana, o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreição, depois de
viver como homem. Isto é, trata a cristologia a partir do kérygma, do que foi dito sobre o Senhor. 57

O Logos, mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e
é o mediador da criação, assume a carne (1,14). Ele tem um nome, Jesus de Nazaré, e
uma história, a que vai ser contada no evangelho. 58
O prólogo do Evangelho é a chave hermenêutica para o relato da vida terrestre de Jesus.
Nele, São João, anuncia a vinda de Deus entre os seus, isto é, todos os seres humanos.

1. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν
junto de Deus e o Verbo era Deus. θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.
2. Ele estava no princípio junto de Deus. οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.
3. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ
ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν
4. Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν
ἀνθρώπων·
5. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία
compreenderam αὐτὸ οὐ κατέλαβεν.
59

É a partir desta concepção que São João desenvolve sua teologia, na qual concebe um Deus
que se faz próximo à sua criação por amor. Assim, toda a história de Jesus deve ser lida na
perspectiva dessa afirmação.
Se o prólogo apresenta uma cristologia da encarnação, o corpo do evangelho desenvolve
uma cristologia do enviado. Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicação da
primeira. Neste sentido, na qualidade de enviado do Pai, Cristo o representa no mundo, não di
palavras suas, mas a do Pai60; não efetua as suas obras, mas as do Pai61; não faz a sua vontade, mas a
do Pai62. Seguindo a Lógica joanina Cristo é verdadeiro Deus na medida que é seu enviado, ao
mesmo tempo que é um com ele e diferente dele.63
Destaquemos então três momentos do envio:
1. A preexistência e a encarnação;
2. Cumprimento da missão, a missão é antes de tudo cumprida na realização dos milagres,

56
Jo 13,34s
57
SANTOS. Júlio Cesar Rocha dos. Cristologia. Rio de Janeiro: ISTARJ, 2015. Apostila.
58
ZUMSTEIN, Jean. O evangelho segundo João. In: MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura
e teologia. São Paulo: Loyola, 2012, p. 462.
59
Jo 1,
60
Jo 3,34; 14,10; 17,8.14
61
Jo 4,34; 5,17.19ss.30.36; 8,28; 14,10; 17,24.34
62
Jo4,34;5,30;6,38;10,25.37
63
ZUMSTEIN, Jean. O evangelho segundo João. In: MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura
e teologia. São Paulo: Loyola, 2012, p. 463

11
estes são sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregação;

3. O retorno, o retorno se dá na cruz, lugar da elevação e da glorificação 64.


A intenção cristológica de João é vinculada a soteriologia. A confissão do enviado do Pai na
pessoa do homem Jesus dá acesso à vida eterna. 65

Cristo não é uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo2,22; 5,1.15), e precisamente por
isso sua morte se reveste de uma significação decisiva. Ele é o lugar onde se manifesta a
salvação. A aparição de formulas expiatórias sublinha esse aspecto (1Jo 1,7; 2,2; 4,10;
5,6)66

64
Jo 12,32
65
Cf. Jo,30-31
66
ZUMSTEIN, Jean. O evangelho segundo João. In: MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura
e teologia. São Paulo: Loyola, 2012, p. 484

12
-2-
Cristologia dos séculos II – IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia


posterior. Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus, sua
messianidade, sua filiação divina, seu senhorio, sua função criadora na origem do mundo, a
preexistência em Deus, a parusia para julgar o mundo e a função recapituladora da obra salvífica.
A compreensão da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnação) se fazem
unidas. Ambas são objeto da reflexão teológica durante os primeiros séculos, encontrando sua
resposta definitiva no Concílio de Nicéia, que define a verdadeira divindade de Cristo, e no concílio
de Constantinopla, que define a igualdade do Espírito Santo com o Pai e o Filho.
A história da salvação foi compreendida como desígnio do Pai, realizado em um momento
do tempo pelo Filho, universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espírito. Daí surgem
dois problemas chave: Qual é a relação de Jesus, confessado verbo e Filho, com Deus, tal como era
compreendido pelo monoteísmo? Qual a relação do Verbo eterno com a carne?

2.1. As primeiras respostas: Adocionismo, modalismo, subordinacionismo

A Igreja herdou do judaísmo uma fé monoteísta. A confissão de fé nas três pessoas nunca
caracterizou um triteísmo, mas uma compreensão monoteísta de Deus, que se realiza sua divindade
em comunicação e autodoação como Pai, Filho e Espírito Santo. Surge a seguinte questão: Qual o
sentido e conteúdo dessa divindade de Cristo: é uma divindade metafórica ou em sentido próprio?
Em resposta a esta questão surgiram quatro soluções adocionismo, modalismo, subordinacionismo.

2.1.1. Adocionismo

O adocionismo está unido aos nomes de Teódoto, o Curtidor (excomungado a 190 em


Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia). Para eles Jesus não é
Deus por natureza, mas um homem sobre o qual desceu o Espírito Santo ou o Verbo, e que Deus
aceitou/adotou como Filho. Destaca-se sua personalidade e modelo moral, que o valeram de Deus
poder para fazer milagres, e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevação e dignidade
divina.

2.1.2. Modalismo

Se situa no polo oposto. Doutrina pregada por Práxeas, Noeto e Sabelio. Frente a dualidade
que supõe o adocionismo destacam a unidade divina como princípio supremo (μοναρχία); e frente
à redução a exemplaridade moral ou heroísmo com o que outros explicam a transcendência e a
novidade de Cristo, eles afirmam sua divindade. Só há um princípio divino e os nomes de Pai, Filho
e Espírito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a nós ou
os papeis que assumiram ao longo da história. Por isso, dado que Deus se encarnou no seio de Maria,
padeceu e morreu por nós, se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens. A isto chamamos de

A partir desde capítulo, no qual nos ateremos a cristologia dogmática, usaremos como texto base CARDEDAL.
67

Olegário González de. Cristologia. Madri: BAC, 2001, em forma de resumo.

13
patripacionismo. Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade
negava a verdadeira realidade e diferença entre pai, Filho e Espírito. Assim, pode-se dizer também
que a ação única de Deus se deu em três aspectos temporais e transitórios: Pai – criação; Filho –
encarnação e redenção; Espírito – santificação. Três nomes para um único e mesmo sujeito divino.

2.1.3. Subordinacionismo

É próximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo, mas seu ponto de partida e interesse
são distintos. Essa teoria nasce em conexão com as afirmações gregas de um demiurgo que serve
como realidade intermediária entre o Deus absoluto e o mundo material. Sua função é portanto
mediadora entre Deus e o mundo: salvar a transcendência de Deus em relação com o cosmo e com
a história. Entre o adocionismo e o modalismo, os defensores desta interpretação compreendem o
Verbo como a primeira criação de Deus, o agente do Pai em uma criação que pode ser pensada
como eterna, e portanto, nesse sentido o verbo seria eterno, mas em todo caso diferente de Deus
em sua natureza e infinitamente superior às criaturas. É considerado como um Deus de segunda
ordem, um segundo Deus intermediário entre a realidade criadora e a criada.

2.1.4. Resposta católica: Concílio de Nicéia

Foi o Concílio de Nicéia, que situa o verbo ao lado de Deus, compreendendo sua origem
como geração eterna e não criação temporal, e sua natureza igual à do Pai, diferenciada somente
por provir dele e estar voltado a ele, como um Filho procede sem semelhança, vive em relação e
existe sempre desde o Pai. A consubstancialidade do Filho, definida em Nicéia, e a do Espírito,
definida em Constantinopla de maneira equivalente, são o ponto final da compreensão trinitária de
Deus, preparada pelos grandes teólogos capadócios (São Basílio, São Gregório de Nazianzo, São
Gregório de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essência ou natureza e da trindade de
pessoas.

2.1.5. São Justino: O Logos em pessoa e os logos dos homens

São Justino, o filósofo mártir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas, oferece
uma nova perspectiva cristológica. Defende que a filosofia encontra sua consumação na revelação
de Cristo. Por isso nunca abandonou o manto filosófico e viveu sua conversão ao cristianismo como
a radical maneira de acender à verdade que sempre havia buscado. O ponto de comunicação entre
a filosofia e o cristianismo se constrói mediante o conceito de Logos. Cristo é o Logos
transcendente, cuja comunicação começa na criação e culmina na encarnação.
O termo λόγος remete a fontes diversas: a literatura sapiencial judia assimilada pelo
prólogo de São João, identificando Logos-sabedoria-Cristo, e as especulações helenísticas tanto de
procedência platônica quanto estóica. Esta categoria cumpre, desta maneira, duas funções:
estabelece uma conexão entre a divindade inacessível e o mundo, e confere uma estrutura inteligível
a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo.
O Logos, manifestado e encarnado em Cristo, se converte assim em um princípio de
intelecção de toda a realidade e de toda a história anterior, enquanto tronco de incardinação de toda
as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens. O Logos semeado

14
(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo. Por isso, ele é o
eixo de toda realidade, o princípio de toda a inteligibilidade, o dinamismo inerente a toda busca de
verdade e de justiça, o recapitulador de tudo. Quem viveu conforme o princípio racional próprio
(logos, consciência diríamos hoje) são cristãos em antecipação, mártires com Cristo.

Nós temos recebido o ensinamento de que Cristo é o primogénito de Deus, e anteriormente


indicamos que ele é o Verbo do qual todo gênero humano participa. E assim, os que
viveram conforme o Verbo, são cristãos mesmo que tenham sido tidos por ateus, como
sucedeu entre os gregos com Socrates, Heráclito e outros semelhantes. 68
Justino situa a geração do Verbo como um processão de amor no interior de Deus. É difícil,
entretanto, precisar se se trata de uma geração no sentido da teologia posterior ou de uma criação
na função do cosmos e, portanto, subordinacionismo.

No que tange à relação com o Pai, Justino afirma que o Cristo-Logos é anterior às
criaturas, coexistente com o Pai, mas ao mesmo tempo gerado quando no princípio criou
e ordenou todas as coisas por meio dele. Parece haver aqui, portanto, a afirmação de dois
estágios distintos do Logos: um, enquanto imanente ao Pai, o Logos é criador com o Pai,
coexistente e coeterno com Ele, mas ainda uma potência intelectiva em Deus; outro, a
partir do momento em que o mundo é criado, quando então é gerado, emanado do Pai,
em vista da criação e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus) 69.

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός), São


Justino mostra pela primeira vez a significação universal de Cristo, e dessa forma faz o Cristianismo
herdeiro da história anterior e iluminador da posterior. Tal universalismo do cristianismo se realiza
ao mostrar que Cristo é o tronco do qual as ramas de toda verdade, justiça e esperança recebem a
seiva.

2.2. Três modelos de Cristologia deficiente e três grandes teólogos

2.2.1. Ebionismo

No século II encontramos um sistema cristológico que reduz Cristo às possibilidades e


limites do a Lei de Moisés e a esperança judaica permitiam. Cristo não transcendia o Antigo
Testamento. Isto é rechaçam o nascimento virginal de Jesus, considerando que nasceu de Maria e
José como os demais homens, e que por conseguinte é um homem.
Há de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua fé monoteísta
com a fé em Jesus como Deus. Deste modo, aceitaram a mensagem profética, mas negaram a
transcendência divina de sua pessoa. Cristo é então concebido como nudus homo, mero homem,
expressões que se repetiram até o final da patrística.

2.2.2. Marcionismo

Marcião postula a radical separação e contraposição de Cristo em ralação a Deus, a história


e moral apresentadas no Antigo Testamento. Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no
Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo. O Deus do Antigo testamento é um Deus

68
I Apol. 46,2-3
69
SANTOS. Júlio Cesar Rocha dos. Cristologia. Rio de Janeiro: ISTARJ, 2015. Apostila

15
mau, violento e não é conciliável com o Deus misericordioso, o Deus bom e Pai de Jesus Cristo.
Descarta, então, todo o Antigo Testamento e elege do Novo só aqueles livros que na linha
de São Paulo destacam a misericórdia e a ação redentora, descartando as afirmações que, segundo
ele, mantêm traços judaicos. Forçando a Igreja a estipular o cânon das Escrituras que é expressão
autêntica e normativa da revelação de Cristo.

2.2.3. Docetismo-agnosticismo

É a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho: o helenismo. Sua
ideia de transcendência absoluta de Deus e o carecer da categoria de criação, só permite pensar a
relação de Deus com o mundo em categorias de aparição. Podem pensar uma epifania do divino,
mas nunca uma encarnação de Deus.70
Já no Novo testamento encontramos esta repulsa da união entre o Filho de Deus e o homem
Jesus. Partindo do pressuposto que a matéria é má, a carne alheia a Deus e o mundo não é vontade
originária de Deus Criador, mas resultado de uma degradação. Isto levou a duas consequências
cristológicas graves: por um lado distinguir dois Cristos, um transcendente e pertencente ao mundo
superior (o Verbo) e outro visível y passivo, que é sua envoltura exterior (o homem Jesus). Por
outro lado levou atribuir a Cristo formas não carnais de corporeidade. Consequência disso é o
esvaziamento do sentido da paixão e morte de Jesus.

2.2.4. Irineu: a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princípios fundamentais de uma cristologia historicamente situada


e soteriologicamente válida. Há um só Deus que estabeleceu, com coerência interna e integrando o
tempo de maturação do homem, um plano de salvação que abarca o Antigo e o Novo Testamento.
Não há duas economias de salvação contrapostas como afirma os marcionitas. Não há dois deuses
diversos, nem dois Cristos, um Logos celeste transcendente e impassível, e um homem Jesus
terreno e deste mundo. A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu.
Unidade de Deus, unidade de Cristo, unidade do homem e unidade do plano salvífico como
divinização. Dividir a Deus ou dividir a Cristo é a morte do cristianismo e o fim da salvação. Cristo
é um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός), antecipando a fórmula de calcedônia.
Cristo é o que encabeça esse plano divino e por isso o que o sintetiza, o esclarece aparecendo
na história e o recapitula consumando-o.

Há pois, um só Deus Pai, como temos visto, e um só Jesus Cristo nosso Senhor, que abarcou
toda a ordem da salvação e o recapitulou todo em si. Este “todo” inclui o homem, criação
de Deus. Também o homem foi recapitulado, por tanto, ao fazer-se visível o Invisível,
compreensível o Inefável, passível o Impassível, ao fazer-se homem a Palavra. O resumiu
tudo em si, para que, assim como a Palavra é soberana no celeste e espiritual, reine
igualmente no visível e corpóreo, assumindo a preeminência e constituindo-se em cabeça
da Igreja e atraindo para si no momento preciso 71
Irineu vê uma conexão profunda a encarnação e a redenção: só Deus pode resgatar e
divinizar o homem. Aqui aparece um princípio guia de toda a cristologia patrística. A salvação não
70
Cf. At 14,11
71
Adv. Haer. III 16,6

16
é um resultado de uma ação externa, nem de um decreto divino, nem de uma conquista do próprio
homem, mas da ascensão de Deus ao homem para que, participando Ele em nossa carne mortal, nós
possamos participar em sua vida imortal. Deus é o agente e o conteúdo da salvação humana.

2.2.5. Tertuliano: as duas naturezas

Tertuliano inicia uma série de relações entre os dois estados ou dimensões de Cristo, as
categorias de substância, pessoa, unidade. É o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis, o
primeiro que emprega o vocábulo persona e o primeiro que elabora a fórmula dogmática uma só
substância em três pessoas.
Tertuliano tem a intenção de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento
pagão. Desta maneira, demonstra que Cristo não é uma alternativa à unidade divina, que por
conseguinte não é um diteísmo, e qual é o sentido da encarnação. Defende, deste modo, a unidade
divina com a encarnação frente ao monarquismo.
Oferece fórmulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo,
afirmando sua dupla realidade como Deus et homo. Para assinalar isto emprega frequentemente a
fórmula Spiritus et caro. Este binômio é usado para explicar a constituição específica de Cristo, uma
maneira de nomear as duas substâncias e um duplo estado. Junto a esta afirmação afirma também a
consistência e permanência de ambas propriedades em um único sujeito. A distinção de sua operação
é a prova dessa permanência.

Vemos um duplo “estado” (=natureza), não confuso mas unido em uma só Pessoa, o Deus
e homem Jesus (...) e a tal ponto a propriedade de cada uma das substâncias foi salva, que
tanto a realidade espiritual (i.e, a natureza divina) agiu nele, isto é, as perfeições morais,
as obras, os sinais, quanto a carne executou suas ações.72
Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupação antidoceta e com ela a insistência na carne
como âmbito da salvação humana. Uma salvação oferecida desde fora não seria uma salvação do homem, já
que, o que se necessita é refazer o plano originário desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original, desde dentro seu
âmbito de influência, que é a carne (σάρξ). Sem a encarnação não teríamos a segurança de que nosso estado
não é uma degradação metafísica, um mal originário ou o resultado de uma queda primordial. A encarnação
outorga dignidade metafísica e confiança histórica à criação.

2.2.6. Orígenes

Orígenes em sua obra De principiis nos oferece os critérios para elaborar a cristologia. Sua
doutrina sobre o Logos supõe um avanço sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes.
Uma afirma claramente a divindade, ainda que na outra chame a Cristo “segundo Deus” 73,
reservando ao Pai a designação de αὐτόθεος, ἁπλοός, ἀγαθός, ser e bondade original. O Filho é

72
Videmus duplicem statum, non confusum sed coniunctum in una Persona, Deum et hominem Iesum (...) et adeo salva est utriusque
proprietas substantiae, ut spiritus res suas egerit in illo, id est virtutes et opera et signa, et caro passiones suas functa est.:Tert., adv.
prax. 27, 11.
73
Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus não entendemos outra coisa que
uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razão (λόγος) que compreende em si toda qualquer razão
do que sucede segunda natureza e, principalmente, para o bem do universo. E esta razão, ou logos, afirmamos ter-se
unido ou identificado, em medida superior a todas as almas, com a alma de Jesus, o único que pode alcançar de maneira
perfeita a participação do Logos em si, da Sabedoria em si e de Justiça em si. (Contra Celso 5,39)

17
a imagem desta bondade e inferior ao Pai. Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo.
Muito contribuiu para a compreensão da processão do Logos no seio da Trindade, por meio
do conceito de “geração eterna”. Assim, explica em seu Tratado De Principiis
(...) é ímpio e proibido comparar com a geração dos homens e animais a geração do Filho Unigênito
por Deus Pai que lhe dá o ser. É necessário que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus,
ao qual nada pode ser comparado nem na realidade, nem na imaginação ou pensamento, para que se
possa entender como Deus não gerado se torna o Pai do Filho único. Essa geração eterna e perpétua
é como a radiação que vem da luz. De fato, não é por uma adoção espiritual que o Filho de Deus se
torna extrínseco, mas ele o é por natureza.74
Orígenes tem o mérito de ter estabelecido com toda a claridade a existência de uma alma
humana em Cristo. A alma de Jesus é para ele um dado patente da Escritura 75, e por sua vez é uma
exigência da reflexão teológica. Por tanto, a alma é a condição de possibilidade da encarnação. Ela
estabelece a conjunção entre as outras duas realidades: o Verbo e o corpo.
Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro, não como tradicionalmente se pensa,
uma humanidade completa em si, que é suscitada pelo espírito com sua humanidade, mas em forma
sucessiva e separada. Sua compreensão de alma de Cristo está marcada pela ideia da preexistência
das almas, sendo a sua da mesma natureza que as demais almas. A diferença das outras, ela
permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectível. A união da alma com o
Verbo é uma união transformadora, de tal forma que tudo o que sente, faz e entende, é Deus e a
ele permanece imutavelmente unida.
Orígenes antecipou também outras muitas perspectivas cristológicas enquanto enriqueceu
o vocabulário com palavras como physis, hypóstasis, ousía, homoúsios, theánthrôpos. Nele encontramos
já a explicação das epinoíai, os múltiplos nomes de Cristo, que descrevem seu ser, sem que nenhum
o esgote. Antecipa também a teoria da communicatio idiomatum (comunicação das propriedades). Ele
mesmo e único Verbo, Filho de Deus, é o homem Jesus; por isso de Deus enquanto encarnado se
podem predicar atributos humanos, e do homem, enquanto unido pessoalmente ao Verbo, se pode
predicar atributos divinos.

2.3. Cristologia no século IV

2.3.1. Ario: relação de Cristo com Deus

Com Ário, chegamos à formulação extrema do subordinacionismo. Também com ele,


chegamos a um reducionismo cristológico, pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes
da alma.
O Concílio de Niceia não centrou sua reflexão nessa segunda questão, mas na primeira,
concentrando-se na filiação divina de Jesus diante da negação ariana.
Afirmar que o Pai é fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existência de uma
ordem dentro de Deus. Por isso, existe prioridade do Pai, precisamente enquanto é fonte da
divindade do Filho e do Espírito Santo. Neste sentido, cabe dizer que o Pai é maior, pois dEle

74
Oríg., princ. 1,2,4.
75
Mt 26,38; Jo 10,17; 12,27; 13,21

18
procedem as outras duas Pessoas. De fato, chamamos o Pai a primeira Pessoa; o Filho, a segunda e
o Espírito, a terceira.
Esta ordem interna da Trindade, que deriva da ordem da procedência, não pode significar
nem prioridade temporal, nem subordinação no terreno ontológico. O Filho é igual ao Pai em tudo,
pois é Deus de Deus.
Segundo Ário, o Verbo é “poiema”, uma “coisa” feita, uma criatura. Para afirmar isto, ele
se apoiava na Escritura (Jo 14, 28) ou na aplicação ao Logos dos textos do AT, concernentes à
Sabedoria (Sb 24, 14; Eclo).
“Deus nem sempre foi Pai; mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde
se fez Pai. Nem sempre o Filho existiu; porque tendo sido feitas todas as coisas do nada, e sendo
todas as criaturas e obras, também o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele não existia;
nem existia antes de ser feito, mas que também teve princípio ao ser criado.”
Por isso, para ele não se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado, mas que foi
feito: uma criatura. Mais ainda, o Verbo está subordinado à criação, pois segundo Ário, foi feito
pelo Pai em vista da criação do mundo.
Ário segue, de forma incorreta, o esquema “Logos-sarx”. Segundo ele, o Verbo se uniria
diretamente à carne de Cristo, fazendo as vezes da alma. O Verbo teria sofrido em sua mesma
natureza divina as humilhações e as dores da paixão, o que seria incompatível com a imutabilidade
e impassibilidade próprias de Deus. Em consequência, impunha-se a afirmação de que o Verbo não
possui uma autêntica natureza divina, mas que é uma criatura, já que um verdadeiro Deus não
poderia suportar semelhante humilhação.
Ário combina um subordinacionismo adocionista – Jesus seria filho adotivo de Deus – com
uma cristologia. Ele afirma que o Verbo é uma produção “ad extra” do Pai. Para ele, é impossível
dizer que o Filho seja gerado da mesma substância do Pai. O Filho, confessado na profissão batismal
como igual ao Pai, se converteu, na teoria ariana, em mediador criado da criação, em um ser
pertencente a uma esfera intermediária, como se fosse um sol criado que iluminasse todo o
universo.

2.3.2. A cristologia de Nicéia: Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Concílio é o Símbolo, no qual se professa explicitamente a fé na


perfeita divindade do Verbo, ou seja, na sua consubstancialidade com o Pai. O Filho não é algo feito
pelo Pai, mas uma comunicação do próprio ser do Pai por modo de geração: o Filho é gerado pelo
Pai.
O que ocorre não é uma geração por graça, mas uma geração por natureza. Precisamente
porque o Pai entrega ao Filho sua própria substância ao gerá-lO, por isso é necessário dizer que o
Filho tem a mesma substância do Pai.
O ponto central do Símbolo é o “homousios”. Com isso, a consequência é que um grupo
defende a fé de Niceia e reconhece a aceitação do “homousios”; outro grupo despreza a denominação
e se chama “anomeos” (que desprezam absolutamente a igualdade da substância) e outro grupo se
denomina “homeousianos”, os quais desprezam a igualdade de substância, porém aceitam a

19
semelhança.

2.3.3. O debate posterior a Niceia e a distinção entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmação do NT da filiação
divina de Jesus. Havia protegido a fé trinitária tanto do subordinacionismo como do modalismo.
A figura de destaque desse período é S. Atanásio. O centro da sua teologia é a afirmação de
que o Verbo se fez homem em ordem à divinização do homem. Ele considera o arianismo
principalmente como um perigo para a soteriologia cristã. De fato, nossa salvação consiste em
participar da vida divina por meio do espírito de adoção que recebemos ao sermos incorporados a
Cristo.
“Se fez homem para que nós fossemos deificados; se revelou a si mesmo mediante um
corpo, a fim de que pudéssemos conhecer ao Pai invisível; levou consigo a ignomínia do homem
para que nós herdássemos a imortalidade.”
Atanásio está desenvolvendo a teologia da mediação do Logos baseada no fato de que une
em si mesmo o humano e o divino. O Verbo nos salva, porque sendo Deus, tomou sobre si
realmente o homem.
Para Atanásio, “ousía” e “hypóstasis” seguem sendo praticamente sinônimos, enquanto que
não ele utiliza o termo “prósopon” para designar com ele o que, em latim, se entende como
“persona”.
Já os Capadócios entendem por “ousía” a natureza, que é comum a todos os seres de uma
mesma espécie, enquanto que “hypóstasis” entendem estas mesmas qualidades concretas numa
existência individual.
A fé cristã confessa, de fato, que, na Trindade, há uma natureza e três Pessoas, enquanto
que, em Jesus, confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas. Na Trindade, há uma só
substância e três hipostásis; em Cristo, há duas substâncias e uma só pessoa.

2.3.4. O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinário luta contra Ário no terreno trinitário e, sem dúvida, se aproxima dele no terreno
cristológico. Defende a perfeita divindade do Verbo, mas afirma que o Verbo se une com a
humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma.
Em Jesus, há um corpo, alma animal e o Verbo, o qual desempenharia as mesmas funções
que o “nous”, ou seja, a alma superior.
O problema de fundo de Apolinário é duplo: um de ordem metafísico e outro, de ordem
antropológica. Primeiro: é impossível que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-
se num só ser. Já o problema de ordem antropológica, está direcionado com a questão da liberdade
humana e sua falibilidade.

20
-3-
Cristologia dos séculos V – VII

3.1. As grandes tradições cristológicas

3.1.1. A Tradição Alexandrina

A tradição alexandrina é mais antiga que a antioquena. Ela destaca seu interesse na
especulação metafísica, e, por preferência dada ao pensamento platônico e a interpretação alegórica
da S.E.
Na Cristologia, a tradição alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma
cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx. Esta cristologia põe a unidade de Cristo
precisamente no fato de que é o Verbo quem tomou sobre si a carne. A pessoa do Verbo resulta,
assim, no centro de unidade das duas naturezas e responsável pelos atos da natureza humana.
Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da união. O
monotelismo e o monofisismo foram suas expressões extremas e sua tentação mais frequente.

3.1.2. A Tradição Antioquena

A tradição cristológica antioquena 77 é mais recente. Seu começo pode situar nos fins do
século IV, precisamente na reação de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo.
A tradição antioquena segue o esquema Lógos-ánthropos, sublinhando a humanidade de
Cristo como humanidade completa e centro de operações. Antes de tudo, importa sublinhar a
distinção entre ambas as naturezas. Por isso, a tradição preocupa-se em deixar salva a transcendência
divina e, em consequência, se esforça por evitar que se possa conceber a união de ambas as naturezas
como uma mescla entre o humano e o divino.
Daí sua reserva ante o título de Theotókos e sua tendência a considerar a encarnação como
uma inabitação do Verbo no homem Jesus. Não é que se despreocupe da unidade de Cristo. É que
a coloca em segundo plano, já que o que lhe preocupa é manter, antes de tudo, a distinção entre as
duas naturezas completas.

3.1.3. A Tradição Latina

A tradição cristológica latina remonta também a tempos anteriores a Niceia. Funde suas
raízes em Tertuliano e encontra sua expressão mais genial em Agostinho. Também ela aplica à
cristologia, desde um primeiro momento, à distinção tertuliana entre substância e pessoa.
Junto à forte defesa da humanidade e da carne de Cristo, tão firme em Tertuliano, insiste

76
“A primeira tem um sentido vivíssimo da missão do Verbo na encarnação, do seu envolvimento na história da salvação: o seu acento básico reside
em afirmar a verdade da economia, isto é, da vinda do Filho na história. Isto leva a enfatizar, no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensão
divina, sem dedicar excessiva atenção à inteireza do “humano”; falar-se-á do logos que assume uma carne humana. Vendo o mistério de Cristo segundo
o chamado esquema Logos-sarx, mas definitivamente, sem precisar ulteriormente a consistência desta carne” (Serenthà, 1986, p. 230)
77
Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida física e psicológica do homem, capaz em particular de decisões humanas
distintas do querer divino. Com isto, não se pretendia pôr em dúvida ou diminuir a união íntima entre o Verbo e o homem; queria-se simplesmente
sublinhar a humanidade plena e real de Cristo. Ele é dotado de corpo e de alma, não só de sarx”. (Serenthà, 1986, p. 231).

21
na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito.
A tradição latina é profundamente antiariana. Possivelmente seu traço mais “original”
consista precisamente em sua tendência ao equilíbrio: sublinha a distinção entre as duas naturezas,
porém acentua ao mesmo tempo a comunicação de idiomas.

3.2. A Crise Nestoriana

A formação de Nestório 78 foi dada pela escola de Antioquia. Na luta contra os arianos e
apolinaristas ele esforçou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a
natureza humana e a divina. Por isso, desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as
paixões da natureza humana, por exemplo, o nascimento e a morte. Esses padecimentos somente
se podem aplicar ao Verbo, em forma indireta, a saber: as paixões do homem Jesus, o qual está
unido ao Verbo.
Nestório utiliza uma linguagem em que dá a entender que, em Cristo, há dois sujeitos: o
sujeito divino e o sujeito humano, unidos entre si por um vínculo moral, porém não fisicamente.
Em consequência, despreza que se possa dar à Virgem o título de Theotókos. Para ele, ela seria
apenas Christotókos, Mãe de Cristo, o qual está unido ao Verbo. Assim acontece, para ele, porque
as ações e padecimentos de Cristo não são propriamente ações e padecimentos do Verbo. Ele fala
da Virgem como anthropotókos e não theotókos. Para Nestório, não se pode aceitar que Deus seja
sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus.

3.2.1. A correspondência entre S. Cirilo e Nestório

A carta de Cirilo aos monges está centrada na maternidade divina e somente


incidentalmente alude à unidade de Cristo.
A resposta de Nestório a esta carta é também quase toda ela cristológica, explicando sua
posição em torno da comunicação de idiomas: o Verbo não é passível e, portanto, tampouco é
suscetível de uma segunda geração.
O Concílio de Éfeso não elabora uma nova fórmula dogmática. Os Padres conciliares se
limitaram a ler duas cartas: a segunda carta de Cirilo a Nestório, aprovada solenemente e que,
portanto, passa a ser a doutrina oficial do Concílio, e a resposta de Nestório a esta carta, que é
condenada.

3.2.2. A segunda carta de Cirilo a Nestório

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos 79 que correspondem tanto à divindade como

78
Nestório, expressão extrema da cristologia antioquena, teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita “divisão” em Cristo, afirmando a
presença de duas “pessoas” no único Senhor Jesus Cristo, pessoas unidas entre si somente através de uma relação de tipo moral; não se pode fazer do
Filho de Deus como tal o centro de atribuição real das propriedades da natureza humana, a chamada heresia dos dois filhos. Sobretudo, não se pode
dizer que Maria é a Mãe de Deus: Ela é propriamente Mãe de Jesus, ainda que este não possa ser separado do tipo particular de totalidade, que é
justamente o Cristo. Assim, dir-se-á que Maria não é theotókos, mas somente Christotókos". (Serenthà, 1986, p. 253)
79
“Não dizemos, de fato, que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne, mas também não que foi transformada em um hom em completo,
composto de alma e corpo; antes, porém, que Verbo uniu segundo a hipóstase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem,
de modo inefável e incompreensível, e foi chamado filho do homem, não só segundo a vontade ou beneplácito, nem tampouco como assumindo
somente a pessoa; e que são diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade, mas um só o Cristo e Filho que resulta de ambas; não porque

22
à humanidade de Jesus: o mesmo que é gerado de Deus, nasce de mulher, morre e ressuscita.
O “descer” do Verbo teve lugar sem que houvesse mutação em sua natureza. A encarnação
não é, pois, uma metamorfose do divino no humano, se não uma inefável e inexpressável união
entre o divino e o humano, uma união tão íntima e física que permite apropriar ao Verbo os
acontecimentos da vida de Jesus.
Cirilo despreza que essa união possa entender como uma simples inabitação ou conjunção
do humano e o divino e, por outra parte, despreza também que se possa entender, em forma
apolinarista, como se o divino absorvesse o humano.

3.2.3. A resposta de Nestório

Nestório recrimina Cirilo que, ao ler Niceia, entendeu que o Verbo, ao encarnar-se, fez-se
passível em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse). Ele estima que, caso se diga que o Verbo
nasce de Maria está-se dizendo que nasce dela em sua divindade.
Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu, segundo a hipóstasis, uma
natureza humana completa. Nestório 80 baseia seu desprezo da posição ciriliana no fato de que o
Verbo, por ser Deus, é imutável.
Nestório quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e, em
consequência, tem que atribuir à natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo.
A Tradição aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixão, destacando, isso
sim, que sentiu esse temor em sua natureza humana. Porém, é o Verbo que sentiu o temor.
Nestório, ao contrário, nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza
humana. Em consequência tem que negar que a encarnação tenha sido real.

3.2.4. A terceira carta de Cirilo a Nestório

O Papa Celestino, ao receber a correspondência de Cirilo, reuniu um Sínodo romano, que


condenou Nestório e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhão.
Cirilo escreve a carta que é acompanhada de doze anatematismos. Nela, ele fala da união
de ambas as naturezas não somente como de uma união segundo a hipóstasis, mas também segundo
a natureza. Nessas condenações, Cirilo se refere à união de naturezas em Cristo como união segundo
a hipóstasis, uma união física, e insiste em que Cristo é Deus e homem.
Para um alexandrino, como Cirilo, fisis e hipóstasis designam um indivíduo concreto, a
pessoa independente e subsistente. Para Cirilo, não há mais que uma hipóstasis ou fisis em Cristo,
ou seja, um indivíduo concreto. Os antioquenos, ao contrário, identificam fisis com substância
concreta e existente. Por isso, os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave
monofisista.

a diferença das naturezas tivesse sido cancelada pela união, mas, ao contrário, porque a divindade e a humanidade, mediante seu inefável e arcano
encontro na unidade, formaram para nós um só Senhor e Cristo e Filho” (Denzinger 2007, p.96)
80
Mas em contraste com Nestório, Cirilo insistia que há uma união verdadeira, substancial entre as duas naturezas em Cristo. E rejeitava a ideia de
união moral ou devocional. Um de seus anátemas contra Nestório é o seguinte: “Aquele que não confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir
hipostaticamente com a carne, para formar, com a carne, um Cristo, Deus e homem, seja amaldiçoado” Se não foi o próprio Deus que apareceu na
vida terrena de Cristo, de modo que o próprio Deus assim sofreu e morreu, ele não pode ser nosso Salvador. O ponto de vista de Nestório tornou
impossível a verdadeira divindade de Cristo, e, dessa maneira, também a salvação por meio dele. (Hagglund.1995,p.81)

23
3.3. O concílio de Éfeso

O Concílio se reúne em Éfeso no ano 431. O Concílio se inicia sem a presença dos legados
pontifícios e de alguns antioquenos.
A sessão contra Nestório começou com a leitura do Símbolo de Niceia e prosseguiu com a
leitura da segunda carta de Cirilo a Nestório. Por votação, aceitou-se esta carta como conforme a
fé de Niceia, dando-lhe a autoridade do Concílio.
Os orientais que ainda não tinham chegado, assim que chegaram, reuniram-se num concílio
oposto, condenaram e depuseram a Cirilo. Redigiram uma profissão de fé moderada e de grande
valor na qual se proclama S. Maria como Theotókos: será esse texto a base para a Ata de união de
433.
Os legados pontifícios chegaram ao começo de julho e se uniram às sessões seguintes. Leram
e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo; confirmaram a deposição de Nestório, o qual ainda não
havia se retratado. O Concílio não pretende elaborar uma fórmula nova. Os bispos apenas tentaram
manter-se fieis à tradição recebida e evitar que a fé proclamada em Niceia fosse mal compreendida.

3.4. A doutrina de São Cirilo

Cirilo se caracteriza, sobretudo, por desprezar decididamente o dualismo, ou seja, a


separação das naturezas em Cristo. Neste, não somente não há dois filhos, mas é um, ao qual se
atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos. O grande defensor da unidade de
Cristo centra sua argumentação no fato de que o Verbo se fez carne.
Nos primeiros escritos, Cirilo segue muito de perto a doutrina cristológica de Atanásio e
sua aplicação do esquema Logos-sarx. Cirilo se nega a descrever a encarnação no sentido de que o
Verbo tenha assumido um homem, se não no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne
animada de uma alma vivente. Dessa união, resultou um só Cristo, um só Filho.
Para dar realismo a essa união, Cirilo utiliza expressões mais fortes: união verdadeira, união
segundo a hipóstasis, união segundo a natureza, união física. Cirilo defende a realidade da união
entre ambas as naturezas. Trata-se de uma união física que vai mais além da união de vontades e é a
única que justifica uma plena comunicação de idiomas.
Todas as expressões que se usam nos evangelhos devem atribuir-se à única pessoa, à única
hipóstasis encarnada do Verbo. Unem-se duas naturezas, porém depois da união não há divisão nas
naturezas. Há uma só natureza – fisis – do Filho, porque Ele é um, ainda que se tenha feito homem
e carne.

3.5. O símbolo da união do ano 433

O Concílio de Éfeso terminou um pouco confuso. A condenação e deposição de Nestório


por parte do Concílio seguiu a condenação e deposição de Cirilo por parte dos orientais.
O texto da união recolhe o ensinamento de Éfeso sobre a unidade de Cristo, porém, ao
mesmo tempo, sublinha a distinção entre ambas as naturezas. Afirma-se sem rodeios a maternidade
divina e para designar a união se utiliza o termo “henósis”, que é o de S. Cirilo e o de Éfeso, enquanto

24
que se evita o de “synapheia” que é o que utiliza Nestório.
Mais tarde, o concílio de Calcedônia aceitará solenemente a carta de S. Cirilo a João de
Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade. Encerrava-se, assim, uma controvérsia, proclamando
a fé comum da Igreja na encarnação do Verbo e na maternidade divina de Maria.

3.6. O Monofisismo

A fórmula de união de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a união (hénosis)
existente entre as duas naturezas como a razão em que se sustenta esta unidade. A partir daqui, a
atenção haveria de centrar-se na consideração de como é essa união que produz essa unidade em
Cristo.
De fato, ainda que o Concílio de Éfeso e a fórmula de união houvessem afirmado com força
a unicidade da pessoa de Cristo, essa claridade não era suficiente para manter nem a paz religiosa
nem a unanimidade na doutrina.
Em Éfeso se insistiu em que a união entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipóstasis.
As expressões união hipostática ou união segundo a hipóstasis são utilizadas aqui para significar que,
em Cristo, a natureza humana e a natureza divina estão unidas na Pessoa do Verbo.
Trata-se da união mais íntima que pode dar-se entre o divino e o humano: o Verbo toma
sobre si a carne com uma união tão estreita que os “acta et passa Christi” são em realidade atos/feitos
e paixões do Verbo.
Encontramo-nos diante da reação contra o monofisismo, ou seja, contra a afirmação de que,
em Cristo, depois da união, não há mais que uma só natureza: mono-fysis.

3.6.1. O monofisismo e o Concílio de Calcedônia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se.


Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana, ao ser assumida pelo Verbo,
resultou absorvida pela natureza divina; outro pensa a união entre o humano e o divino em Cristo
como se da união das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana
exclusiva em Cristo.

3.6.2. O monofisismo de Êutiques

O monofisismo que o Concílio de Calcedônia tem diante de si é o de Êutiques. Seu


monofisismo é, num primeiro momento, o que afirma que Cristo é uma Pessoa de duas naturezas,
porém que, pela união que há entre ambas, já não subsiste “in duobus naturis”, mas em uma só
natureza.
A natureza humana estaria absorvida na divina, havendo, assim, uma só natureza depois da
união, tendo como consequência que a carne de Cristo já não é consubstancial à nossa, se não que
foi transformada em algo distinto.
A afirmação de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina herética ou uma
doutrina compatível com a fé, ainda que imperfeitamente expressa. O que vai depender do uso do

25
termo “physis”, pois S. Cirilo, em Antioquia, dava ao termo uma conotação diversa.
Cirilo designava com este termo o sujeito concreto, enquanto que os antioquenos
designavam diretamente a natureza.

3.6.3. O “Tomus ad Flavianum”

A Carta de S. Leão a Flaviano é uma síntese da cristologia latina na qual se equilibram as


afirmações das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo. O documento utiliza o vocábulo
duofisita: ele reforça a existência de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo
o que lhe é próprio; sem dúvida, o esquema utilizado para abordar a encarnação pode dizer que é o
esquema Logos-sarx.
Depois de qualificar Êutiques de imprudente e incapaz, o Papa inicia sua argumentação,
sublinhando o duplo nascimento de Cristo, graças ao qual há uma dupla consubstancialidade: com
o Pai e conosco. Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito.
Depois de citar Jo 1, 14 , o Papa insiste em que a mediação de Cristo se baseia precisamente
nesta dupla consubstancialidade. E assim, tal como convinha a nosso remédio: um só e mesmo
mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus pode, por uma parte, morrer e, por
outra, não morrer. Assim, pois, Aquele que é Deus verdadeiro nasceu na natureza íntegra e perfeita
de um homem verdadeiro.
A um duplo nascimento segue uma dupla natureza. Estas naturezas, unidas num único
sujeito, permanecem íntegras e perfeitas depois da união.
O Papa não apenas insiste que, em Cristo, há uma só pessoa e duas naturezas, mas ensina
também que estas naturezas unidas sem mescla, nem confusão, conservam suas próprias faculdades
e operações próprias. Porém, ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe é próprio, sempre
em comunhão com a outra, dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e único sujeito:
o Verbo.

3.7. O Concílio de Calcedônia

Finalmente, no ano 451, teve lugar em Calcedônia um verdadeiro concílio ecumênico que
definiu solenemente o dogma da união hipostática, no qual os Padres não quiseram acrescentar nada
à doutrina conciliar anterior, mas somente quiseram oferecer uma explicação autêntica desta
doutrina. O documento final pode ser dividido em três partes: um longo preâmbulo, uma exposição
dos erros que o Concílio tem presente e a definição da fé propriamente dita.
A definição conciliar propriamente dita se centra na confissão “um só Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo”, perfeito Deus e perfeito homem. É uma afirmação que se repete de diversas formas
buscando deixar claro que confessamos um só Cristo em duas naturezas, que se encontram unidas
sem confusão, sem mutação, sem divisão, sem separação, de forma que constituem uma só pessoa,
pois Cristo não está dividido.
Na definição, observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leão: da unidade de Cristo se
passa à dualidade, para voltar novamente à unidade. De fato, defende-se a unidade de Cristo, já
proclamada em Éfeso e se insiste em que, sem diminuir esta unidade, a duplicidade das naturezas

26
segue existindo depois da união.
Cristo é um, porém, a partir de Calcedônia, já não se pode falar de uma única natureza. A
linguagem cristológica entrou por novos caminhos. Depois de Calcedônia, fez-se universal na
teologia trinitária, uma terminologia que cunhará definitivamente a expressão do dogma: uma
substância, três hipóstasis. Em Calcedônia, chega-se a uma linguagem que terá uma aceitação
universal: uma hipóstasis em duas naturezas.
O Concílio não tenta dizer como é a união, mas como não se deve concebê-la. A união das
naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudança, nem mescla. Esta união tem lugar no
terreno físico, de forma que não se pode concebê-la como uma mera justaposição de naturezas, nem
como uma união moral. Cristo não está dividido, nem as naturezas estão separadas nele, mas
confluem até a unidade pessoal.
S. Leão define que cada natureza atua sempre em comunhão com a outra. A distinção de
naturezas se encontra emoldurada, pois, na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza
humana. O Concílio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito – o Verbo – é Deus e homem.
A união hipostática se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas. Depois da união, cada
natureza segue conservando suas próprias características no ser e no operar, sem que se confundam
entre si.

3.7.1. A questão dos três capítulos e o II Concílio de Constantinopla (553)

A recepção do Concílio de Calcedônia não foi pacífica. A situação que se seguiu à assembleia
pode esquematizar-se assim:
O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristológico do Concílio e o Oriente se
dividiu em três grandes correntes: a) a monofisista, na qual se incluem não somente os eutiquianos,
mas numerosos seguidores de S. Cirilo, cuja linguagem se tornou arcaica, e podem considerar -se
como somente verbalmente monofisistas; b) a nestoriana, que vai perdendo importância; c) a
calcedoniana, que vai assentando-se pouco a pouco.
Uma das tentativas de aproximação com os monofisistas foi a questão dos três capítulos
defendida pelo imperador Justiniano (527-565). Trata-se da condenação póstuma dos três mais
destacados autores antioquenos: Teodoro de Mopsuestia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa.
É convocado o Concílio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitação dos quatro
primeiros concílios ecumênicos anteriores e insistiu também na unidade de Cristo e na comunicação
de idiomas.
O Concílio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedônia: a insistência
de Calcedônia em torno das duas naturezas não significa que ambas as naturezas tenham de
considerar-se em planos iguais, mas que a natureza humana há de considerar-se como certamente
distinta da natureza divina, porém recebendo seu ser pessoal do Verbo.
Por esta razão, o Verbo é o sujeito último das ações de Cristo, ou com maior precisão, o
Verbo encarnado. O fato de que Cristo tenha uma natureza humana não significa que tenha uma
hipóstasis humana, pois sua natureza humana está sustentada na hipóstasis do Verbo.
Essa perfeita natureza humana não tem seu último fundamento em uma pessoa humana,

27
nem carece de personalidade, se não que está sustentada no ser pela Pessoa do Verbo. A natureza
humana de Cristo, igual à nossa em todas as suas propriedades naturais é, sem dúvida, a natureza
humana do filho de Deus.

3.8. O monotelismo e o III Concílio de Constantinopla

O II Concílio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Concílio de Calcedônia, o


que mostra como seu ensinamento podia integrar as posições alexandrina e antioquena.
A questão, sem dúvida, se concentra agora numa nova perspectiva: a unidade e a distinção
de operações em Cristo. Encontramo-nos, pois, diante da controvérsia com o monoenergismo e
com o monotelismo que defendem que em Cristo há uma só operação (enérgeia) ou uma só vontade
(thélema) .

3.8.1. A dualidade de operações em Cristo

A controvérsia começa com o monoenergismo. Os monofisistas, ao identificarem as


naturezas em Cristo depois da união, identificavam as vontades e as operações.
Ao substantivo “enérgeia” se lhe acrescenta o adjetivo hipostática – uma só operação
hipostática – e a fórmula de entendimento parecia ideal, já que se transladava a questão ao sujeito
da operação, que é único: a Pessoa do Verbo.
No ano 633, Ciro (Patriarca de Alexandria) propõe um “Pacto de união” com os
monofisistas baseado na seguinte fórmula: “O único e mesmo Cristo e Filho opera o que é divino e
o que é humano por uma só atividade teândrica”.
Ciro enfoca a questão desde a unicidade do operante e, desde aqui, fala de uma só atividade
teândrica, ou seja, uma só “enérgeia” divino-humana.
No “Tomus ad Flavianum”, o Papa S. Leão havia insistido em que ambas as naturezas – a
divina e a humana – atuam sempre com uma admirável comunhão entre si. A questão da atividade
há que referi-la primariamente à natureza através da qual opera o sujeito e não ao sujeito mesmo.
Há duas naturezas em Cristo, porém um único sujeito que opera. Segue-se, portanto, que
há uma só operação, pois, dada a união hipostática, em Cristo se dá, de fato, uma única realidade
divino-humana.

3.8.2. Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo, passou-se à questão do monotelismo. Surge a


afirmação condenada pelo III Concílio de Constantinopla: confessamos uma só vontade do Senhor
Jesus. Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressão: uma só vontade.
Efetivamente, a oração no Horto manifesta, antes de tudo, o acordo da vontade de Cristo
com a vontade do Pai. Este acordo não poderia existir, se não existisse autêntica vontade.
S. Máximo é, sem dúvida, o grande lutador contra o monotelismo. Neste ambiente
teológico, tem lugar o Concílio de Latrão, no ano 649. O grande teólogo do Concílio foi S.
Máximo. Com formulações muito próximas a S. Máximo, o Concílio insiste em que o mesmo e

28
único Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente através delas. O Concílio toca também no
tema da operação teândrica. Esta clarificação adquire seu máximo expoente na definição do III
Concílio de Constantinopla, no ano 681.
Há duas naturezas perfeitas em Cristo. O III Concílio de Constantinopla pontua que estas
duas naturezas estão vivas e operantes, de forma que atuam intimamente unidas, porém sem
confusão.
O ser e o atuar de Cristo hão de entender-se, pois, como um acordo perfeito entre as duas
naturezas, também no que concerne à sua operação. Ambas as ações são naturais enquanto que
correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo.
Daí a precisão em torno à operação teândrica que não pode conceber-se como uma só ação,
mas como uma harmônica união entre as duas ações naturais que correspondem a suas naturezas.

3.8.3. A distinção entre “Voluntas ut Ratio” e “Voluntas ut Natura”

Desta perspectiva contempla-se a oração do Senhor no horto: “não se faça a minha vontade,
mas a tua.” (Mt 26, 39). Trata-se não de uma simples resistência da carne a morrer, como queria o
Patriarca de Constantinopla, Sérgio, se não uma autêntica resistência da vontade humana do Senhor
ao sofrimento e à morte, resistência que é vencida livremente pela mesma vontade, com o mérito
que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediência infinitas.
Esta realidade levará a teologia posterior à distinção entre voluntas ut natura (vontade
enquanto sua inclinação natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege, dirigida pela
razão).
No Senhor, a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam às vezes da vontade divina,
porém estavam inteiramente submetidas a ela, enquanto voluntas ut natura. 81 Por outro lado, sem
dúvida, com sua voluntas ut ratio, Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto
quando diz: “não se faça o que eu quero, mas como tu queres.”
Em Cristo, não se deu, portanto, nenhuma contrariedade de vontades. Somente há
contrariedade de vontades, quando há oposição sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo.
Em Cristo, não sucedeu isto, porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo
à natureza humana, enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razão
superior: a salvação dos homens.

-4-
Cristologia especulativa

4.1. As operações teândricas

A expressão operação teândrica teve relativa importância na controvérsia monotelista.


Trata-se de entender que não há uma única operação resultante da confusão do divino e do humano,

81
Não há dúvida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria, como se vê pela petição:
“Meu Pai, se é possível afasta de mim este cálice.” (Mt 26, 39)

29
ou seja, como se constituíssem um tipo “intermédio” de operação entre o humano e o divino.
Porém, como todas as ações de Jesus são ações da Pessoa divina, também suas operações
humanas podem e devem dizer-se ações de Deus: neste sentido, e só neste sentido, as ações de
Cristo podem chamar-se ações divino-humanas.
Existe, pois, um significado correto da expressão “operação divino-humanas” (teândricas)
de Jesus Cristo: todas suas ações humanas, enquanto que ações da Pessoa divina, podem chamar-se
teândricas. 82
Existe também outro uso da expressão “operação teândrica”. No operar de Cristo, há ações
exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que são comuns às três Pessoas
divinas), e ações humanas. Estas, como são realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza
humana, podem chamar-se ações teândricas, pois são ações humanas do Verbo.
Alguns autores reservam esta expressão para as ações humanas de Jesus que são instrumento
de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana. Em
qualquer caso, ao considerar as ações humanas de Jesus de Nazaré, é importante ter sempre em
conta que cada um dos gestos humanos é gesto de Deus.

4.2. A única filiação de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiação ao Pai, já que a


relação de paternidade e filiação é uma relação da pessoa e não da natureza.
O adocionismo de Elipando e Félix é uma heresia de curta duração e consistente em afirmar
que Cristo, enquanto Deus, é Filho natural do Pai e que, enquanto homem e cabeça dos homens, é
seu filho adotivo, de forma que, nossa união com Ele nos faz participar de sua filiação adotiva.
Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitário, ou seja,
daquele subordinacionismo que considerava que o Filho é filho, porque foi adotado como tal pelo
Pai.
Não duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade é Deus, mas não utilizaram bem a
comunicação de idiomas e, por esta razão, dizem que Cristo, enquanto homem, não é filho natural
de Deus, mas adotivo.
Segundo os adocionistas, a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo
Pai, ao ser assumida pelo Verbo na encarnação. Em consequência, o filho de Maria, assumido pelo
Verbo, não seria filho natural de Deus, se não somente filho adotivo.
O pensamento subjacente remete a uma concepção da encarnação como se consistisse na
união de dois sujeitos capazes de relações pessoais distintas.
Para Félix, não é a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza,
se não um hipotético sujeito.

82
Conf. Suma, III, q. 19, ad 1

30
4.3. Relação de adoração dos homens com Cristo

A adoração, ou culto de latria, é o ato de render a máxima honra e reverência a Deus, em


razão de sua infinita perfeição e transcendência com relação às criaturas. A adoração é, por isto,
diversa da simples veneração, ou culto de dulia, devida aos santos e é também diversa do culto de
hiperdulia ou máxima veneração devida a Santa Maria.
Nestório afirmou uma dupla honra devida a Jesus: a adoração propriamente dita que teria
que render a Cristo-Deus e a veneração correspondente a Cristo-homem.
É importante notar que a definição do II Concílio de Constantinopla, ao ratificar a unidade
de adoração devida a Jesus, o faz excluindo tanto uma dupla adoração (nestorianismo), como uma
falsa concepção (monofisismo) do porquê desta única adoração.
A adoração é devida à Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence: divindade e humanidade.
A humanidade de Cristo é assim adorada enquanto que é a humanidade de Deus, pois sua carne foi
feita corpo de Deus. 83

4.4. Comunicação de idiomas e linguagem humana sobre o mistério de Cristo

Entre as diversas considerações que poderíamos fazer sobre a linguagem cristológica, há


uma de particular importância que é consequência imediata da união hipostática: a comunicação de
idiomas, ou seja, a aplicação das propriedades divinas e humanas à única Pessoa de Cristo.
Este modo de falar foi utilizado desde o início dos escritos do NT. Este oferece expressões
típicas da comunicação de idiomas: At 3, 15; Jo 3, 13; At 20, 28; Rm 8, 32; 1 Cor 2, 8; 1 Jo 3, 16.
A comunicação de idiomas não pode fazer-se arbitrariamente, se não somente de modo que
respeite a verdade da encarnação. Podemos afirmar que Deus morreu, mas não que a divindade
morreu; como também podemos dizer que este homem é Deus, mas não podemos falar que “a
humanidade de Cristo é Deus”.
A teologia, refletindo sobre esta linguagem cristológica, estabeleceu regras concretas para
a comunicação de idiomas.
As principais recolhidas por S. Tomás são:84
a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposições afirmativas, não negativas
e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades.
b) Os nomes abstratos de uma natureza não podem predicar-se dos nomes abstratos
de outra natureza e de suas propriedades.
c) Os nomes concretos – de uma natureza e de suas propriedades – ordinariamente
não podem predicar-se das coisas abstratas.
d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da
natureza humana por real identidade, ainda que a expressão não seja gramaticalmente correta.
e) Os nomes abstratos da natureza humana não se podem predicar dos concretos da

83
Assim entende-se o culto a títulos específicos, como ao Sagrado Coração de Jesus
84
Conf. Suma, III, q. 16

31
natureza divina.
f) Os adjetivos da natureza divina não podem predicar-se de nomes concretos da
natureza humana, ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes
concretos da natureza divina.
g) As proposições que expressam o fim ou o começo do ser, aplicadas a Cristo, sejam
empregadas com muita cautela.
h) Mais importante do que aprender as regras particulares, é considerar, sempre, ao
falar sobre o mistério de Cristo, a realidade da união hipostática.

4.5. A União Hipostática

4.5.1. O modo da união

A afirmação de que Jesus é Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita
divindade, sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas. Trata-se de unidade que está
mais além da mera intencionalidade e que há de entender-se em sentido físico.
A teologia dos séculos posteriores e, especialmente, a teologia escolástica, realizou um
grande esforço por aperfeiçoar como há de entender-se esta união hipostática, ou segundo a
hipóstasis.

4.5.2. As “três opiniões” sobre o modo de união

Pedro Lombardo sintetiza, em seus Quatro Livros das Sentenças, as três opiniões sobre o
modo da união hipostática mais divulgadas em sua época.
A primeira opinião é denominada a teoria do “homo assumptus”. Seu autor mais conhecido
é Hugo de S. Vitor.
Ao encarnar-se, o Verbo teria assumido um “sujeito” já subsistente em si mesmo, composto
de alma e corpo: ao assumi-lo, o Verbo se teria feito homem, e este sujeito, ao ser assumido pelo
Verbo, teria começado a subsistir na pessoa do Verbo, sem que por ele houvesse mescla nas
naturezas.
Esta opinião põe em Cristo duas hipóstasis ou supostos, que é o mesmo que por duas
pessoas.
A segundo opinião pertence a Gilberto Porretano. É chamada “a teoria da subsistência”.
Pedro Lombardo a descreve assim: a pessoa do Verbo, antes da encarnação, era simples,
porém, na encarnação, se fez composta. Não é que, com a encarnação, tenha recebido alguma
mudança, mas que, como antes era somente a pessoa do Verbo, com a encarnação, fez-se a pessoa
do homem, não porque sejam duas pessoas, mas porque a mesma é pessoa de Deus e pessoa do
homem.
A pessoa que era simples e que existia em uma só natureza, agora, subsiste em duas. Ela se
torna composta por subsistir em duas naturezas. Em consequência, a humanidade de Jesus subsiste
em virtude da subsistência do Verbo.

32
Essa é opinião que S. Tomás seguirá, entendendo que nela se expressa a fé da Igreja (Suma,
q. 2, a.6).
A terceira opinião apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do “habitus”.
O núcleo desta opinião tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo, pela união
hipostática, resulta composta. A união hipostática seria um “habitus”: ela será entendida como a
união existente entre o homem e o seu vestido
S. Tomás a desprezará, porque a natureza humana consiste na união de alma e de corpo e,
portanto, se o Verbo houvesse assumido ambos separados, não haveria assumido uma verdadeira
natureza humana. Além disso, essa união seria acidental (Nota 9, p. 257; Suma, q. 2, a. 6 in c).

4.5.3. União substancial, união acidental e união hipostática

Entende-se por união a reunião das partes no conjunto do todo que constituem. A união
considerada em si mesma pode ser física ou moral. Ao longo dos séculos, insistiu-se que a união
entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo é uma união física.
A união física, por sua vez, pode ser substancial ou acidental, segundo a união que dela
surge: acidental ou substancial.
Posto que o conceito de união substancial é contraposto ao de união acidental, a união
hipostática se pode situar ao lado da união substancial. Trata-se de uma união pessoal única.
Entende-se por união pessoal aquela união da qual resulta uma pessoa. As duas naturezas
completas se unem numa única pessoa.

4.5.4. Conceito de união hipostática

Pela união hipostática, a natureza humana de Jesus, que é perfeita, está unida à pessoa do
Verbo, de forma que não constitui uma pessoa humana - não existe em virtude de seu próprio ato
de ser, mas existe em virtude do ser divino do Verbo.
O Verbo é homem, precisamente porque subsiste na sua natureza humana, comunicando-
lhe seu próprio modo pessoal de existir na Trindade.
A união hipostática é, pois, uma união inteiramente singular que não tem equivalente no
âmbito de nossa experiência: humanidade e divindade permanecem em Cristo como substâncias
distintas, porém constituem uma só pessoa.
As ações de Cristo, o nascer e o morrer são ações do Verbo. Trata-se, pois, de uma união
real, já que é real o fato de que a natureza humana pertence, com toda verdade, à pessoa do Verbo,
ainda que esta união não modifique nem a natureza humana, nem a natureza divina na qual
eternamente subsiste o Verbo.
Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito características humanas e
características divinas, para manter íntegros esses dados, é necessário concluirmos que ambas as
naturezas não estão unidas em nível de naturezas, mas em nível de sujeito (Suma, q. 2, a.4).

33
4.5.5. Os conceitos de união e assunção85

A união hipostática é consequência de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza


humana.
O termo assunção refere-se à encarnação in fieri, o Verbo, sujeito ativo da encarnação,
toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua. O termo se encontra no terreno da ação, enquanto
que o termo união se refere à relação que mantêm entre si a natureza divina e a natureza humana,
como consequência desta assunção.
A assunção é o fundamento ou a razão de que esta natureza se encontra relacionada com
relação de unidade com a Pessoa do Verbo e, em consequência, com sua natureza divina.

4.5.6. A união hipostática, dom sobrenatural

A união hipostática é a maior das uniões que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada.
Esta união entre o Verbo e sua natureza humana é, antes de tudo, comunicação que a ela faz o Verbo
de si mesmo; é, pois, um dom sobrenatural feito a essa natureza. Daí que a união hipostática seja
chamada com toda propriedade de “graça de união”.

4.5.7. Indissolubilidade da união hipostática

Pertence à fé que a união hipostática começou no mesmo instante em que foi concebida a
humanidade de Jesus, e também que esta união nunca se interrompeu e nunca cessará.
Não houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus não estivesse unida
hipostaticamente ao Verbo.
Jesus não teve uma existência própria antes de ser a humanidade de Deus. Sua natureza
humana não foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida; se não que foi criada na
mesma assunção. A união hipostática não se interrompeu, nem sequer na Paixão e morte de Jesus:
At 3, 15; 1 Cor 2, 8.86

4.6. A unidade ontológica da pessoa: o Ser de Cristo

4.6.1. Natureza e pessoa na cristologia

A distinção entre natureza e pessoa foi de suma importância para expor a doutrina
cristológica nos primeiros séculos.
O Concílio de Niceia utilizou a distinção para desprezar a doutrina ariana de que o Filho é
“de outra hypóstasis ou de outra ousía” que o Pai.
Os Padres Capadócios tiveram um papel de primeira ordem na clarificação dos termos:
entenderam ousía como aquilo que é comum aos indivíduos da mesma espécie; hypóstasis a ousía
completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam.
No âmbito latino, Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85
Suma, q. 2, a. 8 in c
86
Suma, q. 50, aa. 2 e 3.

34
contra os modalistas. Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustância, três personae
na Trindade, e de duas substantia e uma hypóstasis em Cristo.

4.6.2. Diversas definições de pessoa

Boécio (525): substância individual de natureza racional. Substancialidade, individualidade


e racionalidade aparecem unidas. Na definição de Boécio, substância individual indica a raiz da
própria individualidade, enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicação
pessoal.
Ricardo de S. Vitor (1173): Deus é uma substância individual de natureza racional e, sem
dúvida, não pode dizer dela que seja uma só pessoa. A Pessoa divina é definida como existência
incomunicável da natureza divina.
Para ele, a pessoa designa o modo de existir imprescindível para que possa dar-se o amor:
um modo de existir que, ao mesmo tempo, distingue e une. O conceito “pessoa” estaria mais
relacionado à incomunicabilidade do que a substância.
A pessoa não é formalmente algo, mas alguém que possui uma natureza dotada de razão.
S. Tomás (1274): pessoa é o subsistente de natureza racional. Ele substitui o termo
substância de Boécio por subsistência. Ele dirige sua definição para o sujeito que é o suporte da
natureza, enquanto subsiste como distinto e incomunicável.

Em Deus, as Pessoas se constituem pela relação subsistente. A Pessoa do Verbo – que é


relação subsistente – se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu próprio
modo de existir na Trindade (Suma I, q. 29, a. 3).
Na doutrina Trinitária, o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinção dos Três
dentro da unidade da Trindade; na cristologia, se utiliza para designar a unidade existente entre as
duas naturezas do Verbo encarnado.

4.6.3. As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa, a subsistência. A natureza humana de Cristo é


completa, mas não é pessoa, pois a subsistência é a da Pessoa do Verbo. A questão que fica é sobre
a concepção de subsistência e sua relação com a natureza.
Partindo de Éfeso e Calcedônia, os autores vão tomar a ideia de pessoa como sujeito de
atribuição das ações. O termo ou estará direcionado para a substância ou para o esse, mantendo
sempre a ideia de que o Verbo é o sujeito das ações de sua natureza humana.

4.6.4. Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana, a não ser que se dê um caso
de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa. S. Tomás fala de um só ser
em Cristo (Suma, q. 17, a.3). A Pessoa do Verbo é a que faz existir a natureza humana de Jesus
(CIC 470), sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela.

35
Quando se fala da união hipostática, não se está falando da Encarnação do Ser divino, se não
da Encarnação somente da Pessoa do Filho de Deus, o qual comunica a sua humanidade aquilo que,
no seio da Trindade, lhe distingue das outras Pessoas, como Filho e Verbo.

4.7. A unidade psicológica da pessoa: o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligências em Cristo, pareceria que nEle


devem dar-se dois eu (um divino e outro humano), já que há duas autoconsciências (uma divina e
outra humana). Porém, ao mesmo tempo, e na medida em que o Eu é expressão da Pessoa, pareceria
que, em Jesus, deva dar-se um único Eu, já que é uma só Pessoa.

4.7.1. A teoria do “assumptus homo”

Entre as mais conhecidas tentativas de explicação teológica da psicologia de Jesus, está a de


Déodat de Basly (+1937). Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de
Cristo, Déodat mencionou que, em Cristo, se dão dois Eu: um divino (que, segundo ele, seria
comum às três Pessoas divinas) e outro, humano.
Déodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indivíduo humano distinto do
Verbo, ainda que unido a Ele ontologicamente, de tal modo que, ainda que forme uma só pessoa
com o Verbo, a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autônomo, com a mesma
autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112, p. 288).

4.7.2. As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que, em Jesus, assim como há duas inteligências, há também dois Eu:
um divino e outro humano. Sem dúvida, o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciência
da sua humanidade) não é expressão de uma pessoa humana, mas o eu humano da Pessoa divina.
Recentemente, Jean Galot esclaresceu que, em Jesus, há um único Eu: há uma unidade
psicológica da Pessoa de Cristo em correspondência à sua unidade ontológica.

4.7.3. O único eu de Cristo

No NT, há numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu, e o faz de tal maneira
que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17, 5).
A mesma expressão “Eu sou”, utilizada por Jesus, indica seu único Eu divino. Assim, Paulo
VI, ao abordar o dogma cristológico definido pelos primeiros Concílios, explica que, em Jesus, há
uma só Pessoa, um só Eu, vivente e operante em dupla natureza: divina e humana.
O que parece cada vez mais certo, ao lermos os evangelhos, é que Cristo tem um só Eu e
que da unidade ontológica de sua Pessoa se segue também sua unidade psicológica.

4.8. O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidência na Cristologia

Na modernidade87 com a questão subjetivista trazida por Descartes, começa a surgir uma

87
Wojtwla, lembra que, na filosofia moderna, a partir de Descartes, instaura-se uma divisão do ser humano em corpo, substância pensante. Os dois
elementos se relacionam de forma paralela, desaparecendo a noção de todo único. A consciência, por sua vez, neste contexto antropológico passa,

36
nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa.
Se, anteriormente, definia-se a pessoa desde o objetivo – a substância, o ato de ser –, a
partir de Descartes, se tentará defini-la desde a subjetividade: desde a autoconsciência do próprio
eu, desde a capacidade de relação com um tu, ou desde a abertura à transcendência.
Pode-se dizer que, com Descartes, começa a abrir-se caminho para esse novo conceito de
pessoa baseado não na relação com a autonomia do ser do próprio sujeito, mas na relação com seu
pensamento, com sua autoconsciência: a convicção de que o homem somente tem garantia de ser
ele mesmo, se se pensa a si mesmo: Cogito, ergo sum. O eu consiste na autoconsciência, ou seja,
na sua subjetividade. 88 Portanto, para Descartes, a pessoa se identifica com o eu pensante, com o
eu consciente.
Dada sua antropologia dual, Descartes coloca a essência da pessoa na alma enquanto ser
pensante, inextenso e contradistinto do corpo, que é substância extensa. A racionalidade e,
portanto, a autoconsciência e a abertura, sempre, formaram parte da definição clássica de pessoa.
A qualidade de imagem e semelhança de Deus outorga à pessoa humana uma dimensão misteriosa e
inefável. Precisamente em seu caráter de imagem de Deus radica seu caráter de pessoa. A pessoa é
um indivíduo dotado de comunicação e de autotranscendência, fazendo insistência na chamada do
infinito tão específica e irrenunciável para o coração do homem.

4.8.1. Anton Günther

O primeiro a tentar incorporar esta noção de pessoa à cristologia foi Anton Günther
(+1836) que entendeu a pessoa como consciência de si. 89
Ele divide todo o real em substância extensa e inextensa, matéria e espírito, entendendo
esta divisão como a estrutura fundamental da realidade. O problema cristológico surgiu
imediatamente.
De fato, se o que constitui a pessoa é sua autoconsciência e em Cristo existem duas
inteligências – humana e divina – será necessário por nEle tantas pessoas como inteligências com as
quais se percebe a si mesmo; ou, ao invés, caso se parta do princípio de que é uma só pessoa, terá
que por nEle um só ato de entender.

4.8.2. Antonio Rosmini

Escreve Rosmini:

gradualmente, a ser entendida como um sujeito autônomo da ação. A pessoa é identificada, quase completamente, com a consciência. A consciência
é objeto da experiência exterior do homem. O corpo, por sua vez, acompanhando os demais corpos naturais, submete-se à observação, da experiência
interior” (SILVA, Paulo Cézar. A ética personalista de Karol Wojtyla, p. 24
88
cf. SALES, Benes Alencar. Herança Medieval da Antropologia Cartesiana – Revista Veritas, Setembro de 2002, p. 321-322.
89
“La peronalidad – escrebe Günther - ¿es otra cosa que conciencia de sí mismo? ¿Y no es acaso esta consciencia la forma esencial del espíritu? ¿Y
puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial, es decir, encerrando en un envoltorio corporal un espíritu dimidiado
por carecer de forma?” (A. GÜNTHER, Vorschule zur spekulativen Theologie, t. II, Viena 1822, 260). “En cada persona, es necesario distinguir
esencia y forma. La primera es el ser en sí mismo, sustancia-principio; la segunda es el pensamiento de este ser, cuando ella tiene el
ser mismo por contenido. He aquí por qué la consciencia de sí es aquello por lo que el ser se retoma a sí mismo, se convierte en sujeto
espiritual o yo” (ibíd., 296). Cfr. A. MICHAEL, “Hypostase”, cit., col. 431-432.

37
Tomai qualquer objeto que vos agrade e, com a abstração, retirai dele as suas qualidades
próprias, as mais comuns: aquilo que vos restará como a última qualidade de todas será a
existência, e, por meio dela, ainda podereis pensar alguma coisa, um ente (...).90
Para Rosmini, a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa, isto é, a ideia do ser
só pode ser inata!
Tanto em Günther como em Rosmini, encontramos um notável esforço para falar da união
hipostática desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia. Ambos
propugnaram um conceito de pessoa em dependência de seus atos espirituais, sem darem o
suficiente relevo ao fato de que estes atos não são o constitutivo da pessoa humana, mas dimanam
da pessoa já constituída.
Com isso, a união em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma união
no plano da ação, mas não no nível do ser. E isso não era suficiente para manter em toda sua
integridade a afirmação de que Jesus é o Filho de Deus.

4.8.3. Dificuldades no uso da noção de pessoa na teologia

A história da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinção do


conceito de substância constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a fé trinitária
como a fé cristológica.
O conceito de pessoa serviu, primeiro, para designar o que há de distinto no único Deus:
três pessoas. Utilizou-se, depois, para designar o que há de único em Cristo: uma pessoa.
No âmbito trinitário, a pessoa se define como relatio subsistens, ou seja, o acento recai
diretamente sobre a relação e não sobre a subsistência.
Na cristologia, o acento recai sobre a subsistência, mas sobre a racionalidade: na união
hipostática, o Verbo comunica à sua natureza humana seu próprio modo pessoal de existir na
Trindade.
No século XX, as principais críticas ao uso de pessoa, sobretudo no âmbito da teologia
trinitária, vieram de dois conhecidos teólogos: Karl Barth e Karl Rahner.
Barth não pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus, porém propõe
restringi-lo à essência divina, para afirmar com este conceito que Deus é único, porém não é o
espírito absoluto, mas uma pessoa, um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo, dotado de
pensamento e vontade própria.
As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estão em dependência,
ademais, de sua afirmação de que personalidade e finitude são inseparáveis; estão também em
relação com seu conhecido desprezo pela analogia.
Também Rahner experimenta graves dúvidas sobre a oportunidade de utilizar o termo
pessoa na teologia trinitária. Suas razões provêm, fundamentalmente, do significado que lhe outorga
a filosofia moderna, significado bem diverso, segundo ele, do que recebeu na época patrística. 91

90
REALE, G. e ANTISERE, D. História da Filosofia, vol. 3, p. 280.
91
Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona, ¿ cómo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a sí mismos y se autodonan
en las relaciones trinitarias? K. Barth propone substituir la expresión tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise), fórmula

38
Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos três da Trindade
(distintas formas de subsistência), que nos saem ao encontro na história da salvação.

4.8.4. O intento cristológico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforço por incorporar à cristologia o conceito de


autoconsciência como o nuclear da noção de pessoa para considerar daqui a união hipostática.
Sua ênfase é fruto da sua filosofia transcendental. Sua afirmação é clara de que Jesus de
Nazaré é o Filho de Deus. 92
A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem é
compreendido como o ente que, no exercício do seu intelecto, se caracteriza por uma tendência ao
infinito, que transborda os dados meramente categoriais.
A pessoa humana, segundo ele, consiste na abertura apriórica da consciência humana ao ser
em geral, abertura que, no fundo, é uma abertura ao infinito, ou seja, a Deus.
Em Cristo, posto que há dois centros de consciência, há dois sujeitos: o humano e o divino.
Apesar de não dizer haver em Jesus dois sujeitos, o pensamento acaba dando margem à
defesa de dois “eu(s)” em Jesus: um “eu” divino e outro humano.
A subjetividade humana de Jesus é distinta da do Verbo e, ao mesmo tempo, precisamente
porque n’Ele, em Jesus, se dá uma abertura total ao infinito – ou seja, a Deus – esta subjetividade
pode receber a total autodoação de Deus. 93
Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa,
Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciência, que parece inspirada na
definição plotiniana de Deus: Jesus tem consciência daquilo que é, e é aquilo do que tem
consciência.
O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e
em uma obediência da qual deriva toda sua realidade humana. Com isso, parece que Rahner
somente pode conseguir a unidade no plano da ação. Quando se põem dois sujeitos um frente ao
outro, a união entre ambos será simplesmente a união de ação, de relação de amor, não se podendo
dizer, então, que Jesus é Deus. Seu pensamento acaba se tornando ambíguo.
No caso da união hipostática, há que acrescentar que, segundo a fé da Igreja, é o Verbo que
toma sobre si – assume – a natureza humana, sem que seja a obediência humana aquilo de que deriva
toda a realidade humana de Jesus e, muito menos, sem que essa abertura do humano ao divino seja
a razão da união hipostática.

que, o acerca peligrosamente a Sabelio, o no es más que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el término persona.
La advertencia es de K. Rahner en su trabajo “El Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvación”,
en J. FEINER-M. LÖHRER, Mysterium salutis II, cit., 328-329. Barth rechazó enérgicamente que su fórmula pudiese entenderse en
sentido modalista (OCÁRIZ, Fernando, MATEO-SECO, Lucas e RIESTRA, José. El mistério de Jesucristo, p. 301).
92
Como observa J. Galot, aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentúa la
subjetividad mucho más que en la época precedente, sin embargo, este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de
persona utilizado antes de Descartes: también allí se utiliza el concepto de persona para “subrayar la originalidad y la riqu eza íntima
de la persona, las características que la diferencian de todas las demás, confiriéndole un rostro único” (J. GALOT, Cristo contestato,
p. 195)
93
K. RAHNER – W. THÜSING, Cristología. Estudio teológico e exegético, cit., 67.

39
4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas”

Estas dificuldades estão na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia
à margem, ou melhor, contra a definição de Calcedônia. Por isso, recebem esse nome. Trata-se de
elaborar uma cristologia sem aceitar a distinção entre natureza e pessoa tal como é proposto pelo
Concílio. Entre os autores mais conhecidos estão Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx.
Segundo Schooonenberg, Calcedônia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao
negar que Ele é uma pessoa humana, pois, para ele, o fundamental seria dizer que Jesus de Nazaré
é uma pessoa humana. Por isso, ele propõe uma pessoa humana em duas naturezas, invertendo
Calcedônia.
Ao contrário, Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tão de Deus que
poderíamos dizer que nEle se dá uma identificação hipostática. Está-se referindo a uma identificação
entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais. Assim, Jesus seria um ser humano em quem
tem lugar a revelação suprema de Deus. 94

4.9. A Santidade de Cristo

A santidade é uma palavra que designa a perfeição de Deus, sua Majestade, sua Bondade
infinita e sua transcendência. Por esse motivo, todas as suas obras são santas; disso resulta que aquele
que entra em relação especial com Deus recebe a denominação de santo.
A santidade é uma graça, um dom que eleva a pessoa até o nível de comunicação com Deus.
Esta comunicação tem lugar de forma suprema em Cristo. Sua humanidade não só está unida a Deus,
senão que é a humanidade de Deus. Por isso, Ele é santo de um modo supremo e único.
Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo, estamos a nos referir, como é óbvio, à santidade
do Verbo, essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espírito Santo.
Podemos nos perguntar até que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo
se comunica à humanidade de Jesus e que consequências comporta.

4.9.1. A santidade de Jesus Cristo

A Bíblia refere-se expressamente à santidade de Jesus Cristo a partir de algumas


perspectivas: a estreita relação existente entre Jesus e o Espírito Santo; a existência mesma de Jesus
ser fruto da ação do Espírito, portanto, sua santidade se faz derivar desta atuação do Espírito Santo.
Jesus é santo também em sua humanidade pela ação plena do Espírito com seus frutos e com seus
dons. Esta santidade é, de fato, paradigma e fonte de santidade dos demais homens.

4.9.2. A graça da união

Pela encarnação, a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior união com a
divindade, com a pessoa do Verbo. Pode ser chamada de graça da união . 95 Trata-se de um dom

94
cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Mysterium Filii Dei, n.3
95
A graça da união é o próprio existir pessoal que é dado gratuitamente por Deus à natureza humana na pessoa do
Verbo, que é o termo da assunção. (Santo Tomás de Aquino, STh III, q, 6, a, 6 in c.)

40
infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana.
Podemos usar a expressão santidade substancial para expressar esta santidade, pois a
natureza humana está unida ao Verbo substancialmente. A pessoa do Verbo é impecável. Não se
compreende, pois, como para fazer a esta natureza humana tão santa que seja impecável não bastaria
sua união pessoal a esta natureza, senão que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um
dom acidental, como é a graça habitual.
A graça da união por si só dá a Cristo a impecabilidade. Esta união tão forte exclui todo o
pecado, pois essa graça se dá em Cristo por meio da união hipostática. 96

4.9.3. A graça habitual, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo

Devemos dizer que Cristo é verdadeiro Deus, segundo a pessoa e natureza divinas. Como,
porém, na unidade da pessoa, permanece a distinção de naturezas, logo, a alma de Cristo não é
divina por sua essência, mas por participação - o que se dá pela graça. 97
Cristo é santo substancial e formalmente pela graça da união. Em Cristo, a graça habitual
segue a graça da união, isso quer dizer que a divinização de sua natureza humana se dá
fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo.
Para que pudéssemos falar da graça habitual em Cristo era preciso levar em consideração as
virtudes infusas e os dons do Espírito Santo. Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente à
sua condição de Filho de Deus e de sua missão de Redentor.
A santidade moral de Jesus se deve à ação do Espírito sobre Ele. Podemos dizer também
que Ele possui todas as graças.
Cristo é mais que um profeta porque nEle o dom da profecia não tinha nenhuma
imperfeição, obscuridade ou limitação. Por isso, Ele pode anunciar aos demais homens realidades
que escapavam a seu conhecimento. 98

4.9.4. A graça capital

Cristo por ser o novo Adão se relaciona com os redimidos de forma semelhante à videira
com os ramos. Só poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele. Cristo exerce a missão de novo
Adão e de Cabeça da Igreja. Jesus é a causa instrumental de toda a nossa santificação, porque Ele é
a fonte e a causa de todo bem feito a nós, homens.99

4.9.5. A plenitude da graça em Cristo

Por conta da união hipostática e da capitalidade de Jesus sobre o gênero humano, podemos

96
Esta é a razão porque Santo Tomás nunca chama a graça habitual de Cristo de graça santificante, pois a santificação
deriva para Cristo da graça da união. A observação é de R. Garrigou-Lagrange, De Cristo Salvatore, Marietti, Roma,
1946, 182
97
Cfr. Santo Tomás de Aquino, STh III, q, 7, a, 1, ad, 1.
98
Santo Tomás de Aquino, STh III, q, 7, a, 8, in c. e ad 2
99
A alma de Cristo – explica Tomás de Aquino – possuiu a graça em toda a sua plenitude. Esta eminência de sua graça
é a que o capacita para comunicar sua graça aos demais; no qual consiste precisamente a graça capital. Portanto, a graça
pessoal, que justifica a alma de Cristo, é a mesma graça que LHE pertence como cabeça da Igreja e princípio justificador
dos demais; entre ambas somente existe uma distinção de razão (Santo Tomás de Aquino, STh III, q, 8, a, 5, in c.).

41
dizer que Ele teve a plenitude da graça desde o primeiro momento de sua concepção, porque é o
Filho natural de Deus e o novo Adão.
Enquanto homem, Cristo cresceu em graça durante sua vida terrena. Para confirmarmos
isso, podemos recorrer ao texto de Lc 2, 52: “Jesus crescia em idade, sabedoria e graça diante de
Deus e diante dos homens”.
Muitos teólogos atuais procuram falar de crescimento em graça em Cristo, sem deixar de
levar em consideração a plenitude de graça que Ele sempre teve.

4.9.6. A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo é fruto da união hipostática, da santidade substancial e da


infinitude de graça habitual, ou seja, sua incapacidade de pecar.
Jesus não poderia pecar, porque é contrário à natureza divina qualquer sombra de pecado.
É absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana, porque se isso acontecesse seria a
pessoa do Verbo quem pecaria. Jesus é o sacerdote santo igual a nós em tudo, exceto no pecado.
Ele oferece sacrifícios por toda a humanidade e não por si mesmo, já que foi concebido, nasceu e
morreu sem o pecado. 100
Daí surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade.
Temos que levar em conta que o pecado não é constitutivo da natureza humana, mas sim que ele
foi introduzido contra a natureza.
Os evangelhos relatam que Jesus foi livre, pois, de outra forma, Ele não poderia ter
obedecido aos desígnios de Deus Pai. Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediência de
Cristo podemos constatar na oração que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras, onde Ele manifesta
o seu sentimento de repulsa à dor e à morte. Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir,
plenamente com sua vontade humana, fortificada pela oração, à vontade do Pai.

4.9.7. As tentações de Cristo

Cristo essencialmente era impecável em virtude da união hipostática, logo podemos afirmar
que, em Cristo, não havia a fomes peccati, ou seja, a desordem interna introduzida no homem pelo
pecado original. Por esse motivo, Cristo não experimentou a tentação ab intrínseco, ou seja, desde
dentro.
Dizer que Cristo não padeceu a desordem da concupiscência não significa dizer que Ele não
teve sensibilidade, muito pelo contrário, podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregações
e em suas parábolas. Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada.
No entanto, a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo demônio no deserto
depois do batismo e essa tentação foi externa, o que não significa que não tenha sido real ou
autêntica.
As três tentações de Cristo estão ligadas ao tipo de messianismo que o judaísmo esperava.

100
Conc. XI de Toledo, ano 675 (DH 539). As mesmas palavras se encontram no Concílio de Florência, Decr. pro
Jacobitis (DH 1347).

42
Jesus mostra que o seu messianismo não buscava proveito próprio e que Ele veio para cumprir a
vontade do Pai. Isso tudo está ligado à luta de Jesus contra o mal, que Ele venceu com perseverança,
dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal.

4.10. A ciência de Cristo

4.10.1. A ciência divina e a ciência humana de Cristo

Pertence à fé que Cristo possui uma dupla inteligência: uma inteligência divina e uma
inteligência humana.
Enquanto Deus, o Verbo possui a ciência divina, que é infinita e incomunicável à
humanidade assumida; enquanto homem, tem os conhecimentos que são possíveis à natureza
humana: visão beatífica, ciência infusa e ciência adquirida. A existência de um conhecimento
humano em Cristo é patente em todo NT (Lc 2, 52).101
Apolinário, com temor em relação à liberdade humana de Cristo, acabou negando que
Cristo tivesse alma intelectual. Pertence à fé da Igreja que existe em Cristo uma inteligência
humana, correspondente à alma racional que possui, e que essa inteligência não está despojada da
atividade que lhe é própria. 102 Dada sua dignidade divina, Cristo deve ter toda ciência e em todos
os modos possíveis a inteligência humana.

4.10.2. A visão imediata de deus

Os teólogos, quase unanimemente, afirmaram que Cristo, durante sua vida terrena, gozava
da visão imediata de Deus. Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporânea. (Jo 8,
38; 3, 11; 6, 46; 8, 55; 3, 32; Mt 11, 27.) Até S. Agostinho não menciona explicitamente esse tipo
de visão em Cristo.
Da Idade Média até o Vaticano II, era unânime entre os teólogos a afirmação da ciência de
visão em Cristo. 103 A plenitude da santidade e a graça existentes em Cristo parecem também exigir
a visão imediata de Deus.J. Galot é um dos teólogos que nega a ciência de visão em Cristo, pois,
para ele, este tipo de visão não é atestado nem na Escritura, nem nos Padres/Tradição. Cristo
deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer.

4.10.3. Jesus, viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visão imediata de Deus leva a admitir também que Ele, durante sua
vida terrena é, ao mesmo tempo, viator e comprehensor, isto é, estava ao mesmo tempo em estado
de caminhante e em estado de fim, ou seja, havia chegado ao fim de seu destino humano.104
Admitir a ciência de visão em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu
conhecimento adquirido. S. Tomás afirmou repetidamente que, em Cristo, coexistem o estado de

101
GS 22
102
DH 151.
103
Suma, q. 9, a.2
104
Suma, q. 50, a. 6.

43
caminhante e de comprehensor.105
A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total, claro e certo, como
é o conhecimento intuitivo e imediato de Deus, com um conhecimento que progride pouco a pouco
e que não é total, nem goza da claridade da ciência de visão, como é a ciência adquirida, parece
solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos.
Enquanto que o conhecimento natural se adquire através dos sentidos por imagens ou
espécies, a ciência de visão é, sem imagens ou espécies, por comunicação imediata da Divindade, a
alma, fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo próprio do
conhecimento humano.

4.10.4. Ciência infusa

Designa-se por ciência infusa aquele conhecimento que não se adquire diretamente pelo
trabalho da razão, mas que é infundido diretamente por Deus na inteligência humana. A partir da
Idade Média, a maior parte dos teólogos pensa que Cristo gozou de ciência infusa.
A SE não proporciona textos nos quais fique clara a existência da ciência infusa em Cristo.
106

É necessário também recordar que, em Cristo, repousa em plenitude o Espírito Santo com
seus dons (Is 11, 1ss). Não há porque negar a existência, em Cristo, da ciência infusa e de autênticos
carismas.

4.10.5. A ciência adquirida

Por ciência adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas
próprias forças, mediante seus sentidos (Lc 2, 52).
Com o passar dos tempos, negar que Cristo tivesse autêntica ciência adquirida implicava
negar consequências importantes da verdade da encarnação. De fato, negar a existência em Cristo
de uma ciência adquirida é negar n’Ele a forma normal através da qual os homens adquirem seus
conhecimentos, que é através dos sentidos.107
Alguns textos do NT, segundo Orígenes, revelam que Cristo pergunta não para saber algo,
mas para ensinar perguntando (Mt 8, 26; 9, 4). Já em outros textos, parece que Ele pergunta como
quem não sabe, mas em alguns a pergunta parece pedagógica (Jo 6, 5) ou parece que Ele deseja
conhecer algo (Mc 6, 38; 11, 13; Lc 8, 30).
Não parece lógico, pois, negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida
terrena, ou seja, tenha adquirido novos conhecimentos através de sua experiência.
Alguns teólogos, entre eles, S. Tomás, ensinaram que a ciência adquirida de Cristo abarca
tudo aquilo que possa ser conhecido pela ação do entendimento agente.
A ciência adquirida do Salvador teve sempre a perfeição conveniente a sua idade, a seu

105
Suma, q. 7, a. 8 (c).
106
Jo 1, 14; Hb 10, 5ss; Jo 1, 47ss; 4, 17s
107
Suma, q. 9, a. 4 (c); q. 12, a. 2, a. 3.

44
tempo, aos lugares onde vivia e em proporção com as pessoas com quem conversava e com os
desígnios de sabedoria a que se propunha para a glória de Deus e salvação do mundo.

4.10.6. Jesus e a fé

Ao pensar que Cristo possuía já na terra a visão imediata de Deus, a teologia comumente
negou a existência n’Ele da virtude da fé, precisamente por coerência com as características
essenciais da fé e da visão imediata de Deus.
Aqueles que defendem que Cristo teve visão imediata de Deus e, ao mesmo tempo, definem
a fé como conhecimento do que não se vê afirmam que em Cristo não houve fé, se não visão. 108
Outros autores, mesmo aceitando a ciência de visão em Cristo, gostam de falar também de
fé em Cristo, como fidelidade, sendo num sentido menos próprio. Também afirmam a fé aqueles
que negam a ciência de visão. Mesmo que ratifiquemos que Cristo não tenha tido a fé, teve o seu
mérito.

4.10.7. A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14, 6). Por isso, Ele é o único Mestre
(Mt 23, 10).
Somente depois da crítica iniciada por Reimarus (1694-1768), começa-se a introduzir em
setores do pensamento católico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto à
natureza do seu messianismo.
Desde uma perspectiva cristológica, há que dizer que a existência de um erro em Cristo,
sobretudo no que concerne a sua missão e seus ensinamentos, implicaria que não seja Deus.
A maior parte dos teólogos afirma como pertencente à fé não somente que Cristo não se
equivocou, mas que era infalível, posto que a união hipostática fazia metafisicamente impossível que
errasse. Contudo, fica a questão se houve ignorância.
Alguns textos do NT parecem indicar uma ignorância de Jesus sobre determinadas coisas
(Mt 24, 36; Mc 5, 8; Mt 26, 39; Lc 7, 9).
Com relação ao texto de Mt 24, 36, alguns Padres o entendem diretamente como uma
ignorância de Cristo sobre o dia do juízo.
Apesar de notáveis testemunhos a favor da ignorância de Jesus, são numerosos os Padres
que se inclinam a defender em Cristo, enquanto homem, o conhecimento do dia do juízo.
S. Agostinho, por exemplo, negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do
mundo. A Escolástica seguirá sua interpretação com poucas variantes: Cristo disse que ignorava o
dia do juízo, não porque de fato o ignorasse, mas porque nem queria, nem podia revelá-lo.109
Nem o erro nem a ignorância podem dar-se em Cristo, pois iriam contra a dignidade de sua
Pessoa e contra a mesma Providência divina, ao não dotarem a natureza humana de Cristo do
conveniente para desempenhar sua missão de Mestre. NEle se dá o desconhecimento de algo que

108
Suma, q. 7, a. 3 (c)
109
Suma, q. 10, a. 2, ad. 1.

45
não se tem que saber.
O Magistério da Igreja desprezou em diversas ocasiões as teses dos que admitiam ignorância
em Jesus, inclusive sobre o dia do juízo.

4.10.8. A consciência de Jesus

A teologia contemporânea sintetiza desta forma o conjunto de questões relativas a estas


duas perguntas: Jesus sabia que era Deus? Jesus conhecia qual era sua missão?
A contestação tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas: Jesus sabia que era Deus e
conhecia sua missão e não se equivocou sobre sua dimensão kenótica.
“A consciência que Jesus tinha de si mesmo e de sua missão” (CTI, 1985)
O documento mencionado apresenta quatro proposições que abarcam os aspectos mais
destacados da questão:
– Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciência de
sua relação filial com o Pai e, em consequência, de ser ele mesmo Deus, e, apoiado nesta
consciência, atuou com autoridade divina.
– Jesus conhecia sua missão, aceitava-a e ofereceu sua vida por todos.
– Jesus quis fundar a Igreja
– A consciência que Jesus tem de sua missão lhe permite entregar sua vida em favor de cada
homem, de forma que, com S. Paulo, todos podemos dizer que Ele morreu por nós.

46
Bibliografia

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DENZINGER. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Trad.
Peter Hunermann. São Paulo: Paulinas, Edições Loyola
HAGGLUND, História da Teologia. Bengt. Mario L. Rehfeldt. Porto Alegre: Editora
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KESSELER, Hans. Cristologia. In SCHNEIDER, Theodor (Org), Manual de dogmática. v. I,
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MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola,
2012
SERENTHÁ, Mário. Jesus Cristo ontem, hoje e sempre. São Paulo: Editora salesiana Dom
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