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François Châtelet

Professor de Filosofia, Universidade de Paris VIII

Evelyne Pisier-Kouchner
Professora de Direito Público e de Ciência Política, Universidade de Paris I

AS CONCEPÇÕES POLÍTICAS
DO SÉCULO XX

História do Pensamento Político


Tradução de
Carlos Nelson Coutinho e
Leandro Konder

ZAHAR EDITORES Rio de Janeiro


Título original:
Les conceptions politiques du XXe siècle
Tradução autorizada da primeira edição francesa
publicada em 1981 por PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE
de Paris, França.
Copyright © Presses Universitaires de France, 1981
Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constituviolação do
copyright. (Le5.988)
Capa: Érico

1983
Direitos para a língua portuguesa adquiridos por ZAHAR EDITORES S.A.
Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta versão
Impresso no Brasil
ÍNDICE
Apresentação ..................................................................................... 9
................................................................................................... 21
1/ Nietzsche contra o Estado ................................................................ 21
2/ Freud contra a Moral ........................................................................ .35
3/ A racionalidade científica contra a Razão ......................................... 49
4/ A Arte contra o peso das Coisas ........................................... 60
Indicações bibliográficas ............................................................................ 72
Capitulo I. O Estado-Gerente ............................................................... 75
1/ O HUMANISMO ............................................................... 83
1. O humanismo cristão ................................................................ 85
2. O humanismo republicano ........................................................... 95
3. O humanismo socialista ............................................................... 101
4. Humanismo e pacifismo ............................................................... 105
5. Humanismo c direitos do homem ........................................... 106
2/ O PLURALISMO POLÍTICO ............................................................. 112
1. O governo da sociedade é necessário ....................................... 112
2. O governo é necessariamente separado da sociedade ............ 124
3/ O REFORMISMO ........................................................................... 143
1. A prevenção do risco social ..................................................... 147
2. Os novos parceiros ........................................................................ 157
3. Sobre o “fim das ideologias” ..................................................... 164
Bibliografia selecionada ................................................................... 182
Capítulo II’. O Estado-Partido .................................................................... 187
1/ A CRÍTICA DO ESTADO (BURGUÊS) ........................................ 198
1. Um sistema de exploração econômica ..................................... 199
a) A crise do capitalismo ............................................................ 200
b) O capitalismo monopolista de Estado ................................... 209
2. Um sistema de dominação política........................................212
a) A questão das supra-eslruluras................................................213
b) As formas políticas ..............................................................218
2/ A GÊNESE DO ESTADO (SOCIALISTA)........................228
1. A extinção do Estado ......................................................232
a) A atualidade da revolução ...............................................233
b) A teoria da organização ..................................................240
c) A ditadura do proletariado ..............................................249
2. O fortalecimento do Estado ...........................................254
a) O socialismo num só país ............................................255
b) A desestalinizaçâo e suas ilusões.......................................265
c) Dissidência ..................................................................272
Bibliografia Selecionada .....................................286

Capítulo III: O Estado-Nação .............................291


1/ OS IMPERIALISMOS .................................293
1. O expansionismo nacional ............................301
a) O colonialismo imperial ..................................301
b) O nacional-socialismo, o fascismo.....................313
2. O social-internacionalismo ..............................328
a) A superestimaçâo da questão social..................330
b) A superestimaçâo da questão política....................338
3. O novo imperialismo, ........................................349

2/ A NAÇÃO ESTADO .......................................365


1. A identidade ....................................................369
a) A identidade perdida, a alienação.....................370
b) As solidariedades ampliadas ...........................372
c) A identidade para uso nacional.........................375
d) A identidade em ato .........................................377
2. A luta armada .................................................379
a) A violência como necessidade .......................379
b) As formas da luta armada .............................384
3. O povo ............................................................391
a) O primado da ideologia ....................................392
b) Populismo e ditadura ......................................400
4. A religião ............................................................................... 408
a) O judaísmo ............................................................................ 411
b) O Islã .................................................................................... 419;
Bibliografia selecionada .............................................................. 439
Capítulo IV: O Estado-Cientisla ................................................... 445

1/ SABER/PODER: A GÊNESE DO ESTADO-CIENTISTA .......... 448 .


1. A ciência e a indústria ............................................................... 451
2. A sociedade e suas ciências sociais .............................................. 460
2/ POLÍTICA DA RAZÃO .................................................................... 464
1. Saber absoluto e política: o justo e o eficiente ........................ 464
2. A razão jurídica ......................................................................... 478
3/ A SOCIOLOGIA DO POLÍTICO .................................................... 487
1. Do nominalismo ao elitismo ...................................................... 489
2. Ciência e ética política ................................................................ 498
3. Conhecimento e governo ............................................................ 508
4/ A CIÊNCIA DO POLÍTICO .............................................................. 518.
1. A era dos “managers” ................................................................. 520'
2. A gestão das condutas ............................................................... 525-
3. A racionalidade em questão ....................................................... 536-
Bibliografia selecionada .................................................................. 554
Capítulo V: O Estado em Questão ........................................................... 559
1/ A QUESTÃO DO TOTALITARISMO ........................................... 564
1. Retóricas totalitárias .................................................................... 566
2. Impasses polêmicos.............................................................................. 575
a) Guerra fria em torno de um conceito: o totalitarismo
como assimilação de nazismo e stalinismo ........................................... 576
b) O compromisso: o totalitarismo como acidente superado 580
3. Pesquisas críticas .......................................................................... 586
a) A banalidade do mal ............................................................ 586
b) A contra-revolução burocrática ........................................... 590
c) A miséria da Razão .............................................................. 593
2/ A QUESTÃO DA HISTÓRIA ........................................................... 604
1. Práxis e sabedoria ..................................................................... 605
2. Dialética ou liberdade? ............................................................... 612
3. O sujeito: contingência c necessidade ....................................... 619
4. A dissolução da história .............................................................. 633
5. A história 6 insuperável? .............................................................. 640
3/ A QUESTÃO DO PODER ................................................................. 653

4/ A QUESTÃO DO ESTADO ............................................................... 706


1. A ilusão da necessidade ............................................................. 708
2. Servidão e liberdade: a dupla lógica ......................................... 733
Bibliografia Selecionada ....................................................................... 761
Índice Analítico ...................................................................................... 766

Da revolução às revoltas ........................................................... 654


O poder como exercício, o saber como regulamentação:
Michel Foucault .......................................................................... 672
As megamáquinas do poder: Gilles Deleuze e Félix Guattari........... 683
Do esquecimento do Estado à dissolução do poder .......................... 695

4/ A QUESTÃO DO ESTADO ............................................................... 706


1. A ilusão da necessidade ............................................................. 708
2. Servidão e liberdade: a dupla lógica ......................................... 733
Bibliografia Selecionada .................................................................. 761
Índice Analítico ................................................................................ 766
Apresentação
A presente obra — que, em si, forma um todo — faz parte de um conjunto que tem como objeto
a descrição e análise das expressões mais importantes do pensamento político na área cultural
mediterrâneo-europeia. O conjunto será composto por três partes: uma consagrada ao estudo das
noções fundadoras e dos princípios que se situam historicamente na origem desse pensamento,
desde as fontes greco-romanas e judaicas até sua reativação teórica e sua aplicação prática
durante o chamado período medieval; uma segunda tratando da reflexão política que se costuma
agora chamar de /‘clássica” (desde o Renascimento até o fim do século XIX); e a presente, que
trata do século XX.
Portanto, trata-se certamente de uma História do Pensamento Político, no sentido de que é
adotado aqui— muito amplamente — ura quadro cronológico; de que são registradas, quando
constatáveis, as influências e as filiações; de que se registram também evoluções, devidas tanto
à lógica das noções quanto à obrigação imposta a pensadores e a políticos de adotar ou
transformar essas noções em função das circunstâncias históricas. Entretanto, essa história não
se apresenta na forma habitual dos manuais. Existem, aliás, excelentes manuais *. O que
propomos aqui uma reflexão geral sobre o conjunto d, destinada a fornecer ao leitor não
resumos analíticos, mas sim um material temático, que visa a despertar o espírito crítico, e não
tanto a possibilitar uma repetição. Fosse a tomada de posição pedagógica dos autores.
Nesse espírito, a presente obra manifesta uma grande desconfiança diante da dupla ilusão de
continuidade e de necessidade a que esse tipo de exposição frequentemente conduz. Por
apresentar sucessões de doutrinas, de teorias e de configurações de ideias, utilizando os mesmos
termos para designar realidades diferentes, a exposição parece indicar que é a mesma sociedade
que evolui - para o bem e para o mal -, e que cada momento estudado é uma etapa do processo
que deve levar à situação atual, considerada como uma culminação. Por exemplo: o emprego da
palavra Estado aplicada a todo poder político central, desde a polis grega ao Estado
contemporâneo, passando pelo imperium romanum e pela realeza medieval, sugere que a
“essência Estado” explicita cada vez melhor (ou cada vez pior) suas virtualidades, ou que ela se
expressa em manifestações que se completam reciprocamente; na verdade, porem, não é de
modo algum evidente que se trate da mesma forma política. Tentamos aqui resistir a esse
pressuposto, hoje corrente, de que haja uma evolução (ou uma regressão) geral da humanidade
e, por conseguinte, de que exista um metro único capaz de medir os benefícios e os malefícios
desse ou daquele regime.
Do mesmo modo, a fim de evitarmos o risco de introduzir sub-repticiamente no seio da
sucessão temporal uma unidade de significação — um sentido —, de pôr por baixo da história
unia filosofia da história, e, ao mesmo tempo, de afastar o perigo inverso, o de desenvolver,
segundo a ordem abstrata da cronologia, uma nomenclatura que faça aparecer cada pensador (ou
cada político que pensou sobre sua ação) como um fabricante de ideias, tomando de algum
modo à situação histórica que lhe é dada como pretexto para expressar suas preferências c seus
princípios, adotamos o critério de assumir como unidades temáticas — cm cada período e em
cada campo historicamente delimitados — as concepções políticos.
A concepção política, tal como é aqui entendida essa expressão, tem evidentemente a ver com
uma noção utilizada pelas teorias do conhecimento alemãs, a de Weltanschauung —
percepção/concepção do mundo, de um mundo —, e com o termo anglo-saxão visión — visão
que opera uma síntese empírica de dados múltiplos. Ela difere da ideologia de que falam os
sociólogos pelo fato de referir-se a tomadas de posição refletidas (ou que se pretendem tais),
expressas em textos mais ou menos sistemáticos, mais ou menos coerentes, de vocação
descritiva (“teórica”, “científica”) e/ou prescritivas Programáticas”); a análise ideológica, ao
contrário, refere-se às representações coletivas em sua compacticidade, desde seus conteúdos
ideais claros até seus aspectos inconscientes. O material (ou o objeto) da investigação sobre as
ideologias continua a ser, classicamente, a consciência (e o inconsciente) em suas diversas
expressões enquanto o do estudo das concepções políticas é, sobretudo — e não apenas — o
corpus de escritos e de discursos elaborados para legitimar e organizar a ordem política num
dado contexto.
Todavia, esse estudo não poderia ser confundido com a análise das teorias. A teoria — em sua
acepção estrita — supõe uma definição precisa do objeto a que se aplica; e implica uma
demonstração que pretende ser rigorosa e se apoiar numa crítica minuciosa dos “dados”: toda
teoria — do mesmo modo como toda ideia é ideia de “algo” — é teoria de... A noção de
concepção política implica uma maior generalidade e um menor rigor: dela fazem parte não
tanto a definição de objetos como a de objetivos e de desafios, a determinação de elementos
estratégicos e táticos, a construção de processos de legitimação que recorrem a uma
argumentação que retira seus temas de fontes diversas. A riqueza e o interesse de uma
concepção política — se não mesmo sua eficácia — decorrem tanto de sua coerência interna
quanto de sua capacidade de integrar à própria dinâmica, à própria força operativa, pesquisas
teóricas (“científicas”), referências pertinentes ao passado próximo ou distante, uma leitura da
situação presente e das perspectivas futuras. Nesse sentido, uma concepção política é sempre,
muito ou pouco, indireta: ou diretamente, uma concepção do mundo, da sociedade dos homens,
da história, do real e do imaginário, cuja especificidade é colocar no centro de sua investigação
o problema do político. As concepções políticas mais positivistas, mais pragmatistas, que
pretendem se ocupar apenas dos fatos e dos efeitos, do mesmo modo como as demonstrações
mais abstratas (ou os sonhos aparentemente mais etéreos), não podem deixar de se apoiar numa
visão do real — de resto, não necessariamente homogênea — que as anima e comanda
parcialmente. Reconhecer o que pertence a esse horizonte cultural (“filosófico” no sentido mais
amplo da palavra, ou seja, religioso, artístico, ético, prático), o que decorre da elaboração
teórica, o que resulta da vontade de estabelecer um certo tipo de poder e de utilizar esse ou
aquele meio para alcançá-lo (desde as técnicas políticas até as retóricas moralizantes): essa é
uma das tarefas que esta história do pensamento político se coloca.
Nessa mesma ótica, a análise se empenha — com o objetivo de precisar a configuração e o
conteúdo das concepções que se enfrentam num campo histórico dado — em descobrir certas
espécies de “lugares comuns” em torno dos quais se produzem as principais confrontações.
Revela-se assim que a questão do Estado é decisiva no século XX, tanto para a chamada
concepção liberal quanto para a chamada concepção socialista tanto para os pensadores e
políticos das nações industrializadas quanto para os seus congêneres das chamadas nações “em
desenvolvimento”, tanto para os defensores da racionalidade clássica quanto para os do intelecto
calculador e do pragmatismo político. No interior de uma concepção que defende fins éticos e
políticos semelhantes, assim como um “método” aparentemente idêntico na análise das atuais
correlações de força, distinguem-se — quanto aos meios a adotar e, provavelmente, quanto à
leitura do presente e, talvez, quanto aos próprios fins — pontos de vista que conflitam entre si, e
que são como as espécies reais de um mesmo gênero nominal.
Em segundo lugar, o que diferencia uma concepção política de uma teoria ou de uma simples
configuração de ideias não é apenas sua dinâmica, mas também sua relação (existente ou
projetada) com as forças sócio-políticas. Embora seja preciso afastar de uma vez por todas o
pretenso método marxista que atribui às ideias (c mais genericamente, ao conhecimento) o
estatuto de uma superestrutura que reflete ou exprime a infra-estrutura, constituída pelas
relações sociais econômicas — e afastá-lo não apenas porque se baseia numa teoria da
causalidade que, por ser dialética, não deixa por isso de ser ininteligível, mas também porque é
inoperante, na medida em que pretende explicar precisamente o conteúdo de uma obra política
relacionando-o aos interesses, até mesmo à vontade desta classe, desta camada ou deste grupo
social —, continua a ser verdade o fato de que uma concepção política não poderia ser
compreendida sem referência à natureza particular dos problemas que pretende resolver e, de
imediato, à maneira pela qual apreende essa particularidade.
Por ser política, uma concepção global ou singular pretende provocar efeitos, direta ou
indiretamente, a curto ou a longo prazo. Ela quer ser causa de transformações sociais efetivas e,
para isso, visa a convencer ou a persuadir, através de sua argumentação, forças políticas a
empreenderem a realização das perspectivas que ela abre. Quer busque arrastar o Príncipe, os
Melhores, o Povo, a Nação, o Proletariado ou a Humanidade, ela declara colocar-se cm um
ponto de vista tal que o empreendimento proposto será, no final das contas, benéfico a todos os
membros da coletividade. Inteiramente tributária, por um lado, do contexto cultural e político, e,
por outro, graças à sua vontade de intervenção, inteiramente imersa nas lutas políticas nacionais
e internacionais e nos conflitos sociais, ela é inteiramente autônoma, inventada, contingente, já
que se empenha em fazer conhecer o que atualmente é conhecido de modo diferente: e isso com
o objetivo de transformar o real e de instituir um mundo.
Quer um pensador político (ou um político que pensa sobre sua ação) declare agir em nome de
Deus, da Razão, da Natureza Humana ou da Classe, ou quer ele declare ser o mensageiro da
Ordem, da Liberdade, do Progresso ou das Forças Produtivas, sua concepção não tem outro
fundamento além dela mesma; e o que é preciso compreender e avaliar nela é sua força de
inteligibilidade e sua capacidade de produzir efeitos. A análise desse segundo aspecto — que é
distinto do primeiro: quantas doutrinas aberrantes e que desconfiam do estudo objetivo da
realidade foram vitoriosas! — é uma outra tarefa desta história da reflexão política. Certamente,
não entra em suas atribuições explicar a razão por que essa concepção “triunfou” e aquela
“fracassou”, nem em que circunstâncias, ou por quanto tempo, ou sofrendo quais modificações.
Mas pretendemos preparar o terreno para esse tipo de explicação, que pertence à rica e
complexa história das lutas políticas, esclarecendo a relação existente entre a lógica da
concepção, os combates sócio-políticos em cujo seio ela se insere, os efeitos (ou a ausência de
efeitos) com que ela se defronta e as inflexões que sofre. A ideia — o texto, o discurso — só
atua na medida em que homens, exercendo seu poder material, apropriam-se dela e a tomam
como princípio de suas ações; a questão refere-se menos à ideologia do que a desejos, vontades,
correlações de força, poder e coerção. Assim, a noção de concepção política, em seu duplo
estatuto de conjunto coordenado de conhecimentos e de princípio de transformação, permite
compreender de que modo o trabalho de reflexão, nascido de problemáticas que lhe são atuais,
intervém como elemento diretor no exercício dos poderes e na prática das rebeliões.
No que se refere mais precisamente às modalidades de exposição do presente volume, a
principal questão foi da seleção que devia ser realizada entre a considerável massa de obras, de
autores, de pomos de vista, de concepções políticas fornecida pelo século XX. Constatando que
nenhum critério de seleção podia ser considerado satisfatório e que, mais cedo ou mais tarde, a
arbitrariedade e a insuficiência do critério adotado se manifestariam, resolvemos inverter a
questão e indagar não que pensadores e que textos deveriam ser apresentados, mas _que temas
se haviam imposto como essenciais à reflexão e à ação política de nosso tempo. Ora, tornou-se
evidente que tais temas, em sua grande generalidade, tomaram como referência primordial o
Estado e as crises cada vez mais violentas que abalaram essa forma histórica de organização das
sociedades que se afirmou no curso do século passado. Das duas guerras mundiais às lutas dos
povos colonizados para conquistar sua independência e se organizar como potências, passando
pelos esforços feitos no sentido de administrar pacificamente os antagonismos internacionais;
dos problemas internos de governo colocados às coletividades frequentemente pletóricas,
envolvidas pelo frenesi do desenvolvimento industrial, às questões levantadas pelos conflitos
declarados ou latentes opondo ricos e pobres, possuidores e explorados, senhores das decisões e
condenados à obediência, passando pela extensão constante da responsabilidade pública à qual
— volens nolens — a autoridade oficial tem de dar uma resposta: é sempre o Estado enquanto
forma obrigatória da existência social e poder central que apela à sua potência — o Estado
enquanto expressão, diz-se, da modernidade, razão em ato, vetor do progresso —, é sempre o
Estado que se põe como o objeto de debates cuja violência é tanto maior na medida em que são
atravessados pelos confrontos de forças que o querem conquistar.
Essa decisão metodológica de assumir o problema do Estado como centro da exposição das
concepções políticas contemporâneas não significa absolutamente que entremos nos debates
simplificadores que designam o poder estatal ora como panaceia, ora como o Mal absoluto; nem
que nos atenhamos a essa evidencia não menos simplificadora de que existe hoje uma “entidade
Estado” que mantém, em todos os países, com pequenas diferenças de detalhe, os mesmos tipos
de relação com o que não é Estado: com os indivíduos, as classes, a sociedade, etc. Ela resulta
de uma constatação: de Nietzsche a Léo Strauss, a Eric Weil e a Jurgen Habermas, de Max
Weber e de Pareto a David Easton e a Rudolf Bahro, de Lênin e dos republicanos radicais da II
República a Mao Tsé-tung e a N’Krumah, dos anarco sindicalistas dos anos 1900 aos comités
operários de Budapeste em 1956, de Praga em 1968, de Gdansk em 1980, a questão decisiva
sobre a existência social é a questão referente à definição, à natureza, à difusão, aos direitos e
deveres, à perenidade desse local onde se exerce um poder global sobre uma coletividade
historicamente dada, local que — desde o século XV—Jean Bodin chamava de “Estado em
poder soberano”. Quanto a saber se é mesmo essa a questão decisiva, não cabe a presente obra
responder. O que ela pode fazer é tentar compreender como a força quase material do poder que
se apoia na potência do Estado, já exorbitante, se decuplica graças à fascinação que exerce.
A perspectiva adotada permite — qualquer que seja ela — fazer uma escolha no interior da
imensa biblioteca de textos e de obras, uma escolha cuja inelutável arbitrariedade será pelo
menos corrigida pela lógica que a preside. Cada uma das grandes concepções examinadas nos
cinco capítulos deste livro, bem como as variantes e as evoluções que sofreram no curso de suas
lutas pelo “reconhecimento” e pela legitimação, é estudada em função dos textos “canônicos”
que as instituíram e dinamizaram, bem como dos textos que, subscrevendo os mesmos
princípios, abriram contra eles polêmicas que envolveram os objetivos ou a estratégia. A história
factual está evidentemente presente como pano de fundo, já que esses textos constroem suas
argumentações a partir dos dados políticos e das vitórias e das derrotas das ações empreendidas.
Ao mesmo tempo, esse ritmo que expõe e que opõe doutrinas, pontos de vista, demonstrações,
retóricas, envolvidos em combates a favor ou contra o poder, é pontuado pela referência a
estudos que pretendem se colocar “a distância”, ser “objetivos” ou “teóricos”, ligados à história
das ideias, da sociologia, da ciência política, da filosofia. Encontram-se assim articulados os
diversos níveis — diversos quanto ao estilo, às proposições, às finalidades — que constituem as
concepções políticas, no seio das quais passa também, surdamente, como uma rajada ou um
ruído profundo, a força insistente dos que não têm a palavra e não escrevem.
No que se refere às análises teóricas e aos estudos que pretendem se distanciar da experiência
política, o leitor que conheça a vocação universitária da coleção onde é publicada esta História2
não se surpreenderá ao ver citados, antes de mais nada, textos de autores de língua francesa e,
quando for o caso de textos estrangeiros, os que forem acessíveis em francês. Não parece que
esse privilegio prejudique a lógica do conjunto da exposição feita aqui; pois, c preciso repeti-lo,
o objetivo desta última não é esboçar um panorama ou detalhar uma nomenclatura, mas fazer
conhecer os sistemas de ideias que estiveram na origem das grandes ações que fizeram nosso
tempo, que lhe forneceram um programa e que lhe serviram de justificação: e isso com a
finalidade de conhecer melhor os debates que atravessam hoje a reflexão política e que sacodem
tão fortemente nossas sociedades. Desse ângulo, as diferenças na técnica da argumentação, na
utilização da experiência e na tradição cultural entre as literaturas políticas anglo-saxônica,
germânica e francesa revelam-se menos significativas do que, por exemplo, a comunidade de
pontos de vista dos partidários da democracia representativa quando comparados com seus
adversários.
Foi mesma preocupação “pedagógica” de clareza que levou a apresentar, no final de cada
capítulo, apenas uma breve bibliografia selecionada. As notas de referência, apresentadas
também no final de cada capítulo, indicam ao leitor os autores e textos nos quais nos apoiamos
para expor esse ou aquele aspecto da concepção examinada, de tal modo que ele possa
prosseguir e aprofundar a pesquisa sobre o ponto que o interesse. A bibliografia, por sua vez,
indica os textos principais considerados como constitutivos (“fundadores” ou “canônicos”) dos
temas tratados e as principais obras de reflexão (consideradas em função de sua pertinência ou
de sua exemplaridade) consagradas aos mesmos. Portanto, seu objetivo — que não c indicar o
que, no melhor dos casos, dada a natureza da publicação, poderia ser apenas um esboço sumário
da literatura política do e sobre o pensamento liberal, do e sobre os marxismos do século XX,
do e sobre os movimentos nacionalistas contemporâneos, etc. — é, com uma ambição menor,
fornecer os elementos de base para uma biblioteca capaz de levar a uma melhor compreensão do
significado dos principais conflitos desta época.
Resta precisar o plano adotado. O dado histórico impõe o ponto de partida. No início do século
XX — que começa pouco antes da Primeira Guerra Mundial —, é sob as modalidades liberais,
tais como John Locke e Adam Smith definiram seus princípios e tais como os regimes de
democracia representativa os afirmaram (ou confundiram) na prática jurídica e governamental,
que o Estado Nação existe nos países mais fortes e mais ricos. São elas que impõem o modelo,
que definem o campo da atividade política, quer se trate das lutas pelo poder, do funcionamento
das instituições e dos objetivos a atingir ou das reivindicações e das contestações de fundo
provenientes de forças externas à realidade estatal. O traço que primariamente se destaca é a
concepção da potencia soberana como gerente da coletividade territorial da qual ela é potencia.
O primeiro capítulo, portanto, estuda as reflexões essenciais que marcam a problemática do
Estado que se costuma chamar, em linguagem clássica, de liberal, e, no vocabulário marxista,
de burguês, no curso das sete ou oito últimas décadas. Deve-se crer que esse avatar
contemporâneo não tem somente valor de modelo como produto histórico: essa problemática
política que atravessa o ESTADO GERENTE e que, sem cessar, mantém sua dinâmica, no
momento mesmo em que ameaça rompê-la, é feita de tensões, das quais as outras concepções do
Estado que se impuseram no século XX aparecem como resoluções, mas resoluções
desreguladas e desmesuradas. Quaisquer que sejam o idealismo e o universalismo dos princípios
a que recorre o pensamento liberal (e que seus políticos têm de respeitar, pelo menos de modo
parcial ou formal), a ideia da gerência é — enquanto tal — plena de surpreendentes disjunções.
O gerente, decerto, não é proprietário do poder, mas o exerce; é, de fato e de direito, separado da
coletividade que o designou, e, de acordo com as velhas fórmulas, é responsável pelo “bem-
estar, força e glória” dessa coletividade.
O fato de que o detentor do poder, em circunstâncias excepcionais —em decorrência de uma
rebelião popular, de um golpe de Estado ou de uma revolução palaciana —, crie relações de
força tais que lhe seja possível se prevalecer de “sua” responsabilidade para se impor como
gerente perpetuo (para impor o contra-senso de um gerente perpétuo, seria mais justo dizer); o
fato de que ele institucionalize a separação entre o Estado e a sociedade, constituindo o primeiro
como partido onipotente, capaz de regular burocraticamente a existência social, e a segunda
como massa atomizada reduzida à obediência; o fato de que ele se empenhe no sentido de
dissolver a relação empírica com a realidade, substituindo-a pelas fantasmagorias de uma crença
oficial: quando tais fatos acontecem, eis-nos diante do ESTADO-PARTIDO, o Estado que foi
concebido e praticado por Stalin a partir de uma leitura (discutível) de Lenin e que domina nos
chamados países do Leste e em um certo número de países do Terceiro Mundo. O fenômeno é
estudado no capítulo II. A forma do Estado, nesse caso, é decalcada da forma do Estado liberal:
a URSS é formalmente um Estado de Direito. . com a diferença, porém, de que a legalidade
socialista, completada pelos dispositivos regulamentares do Partido e dá polícia, anula os
dispositivos jurídicos que poderiam garantir a liberdade dos cidadãos. A forma Estado permite,
suporta essa monstruosidade.
O Estado-Gerente, avatar do Estado clássico, vale-se do humanismo e apoia de bom grado os
“direitos do homem”. Todavia, ele “não poderia esquecer que tem de gerir os interesses, até
mesmo as paixões, da nação ou da coletividade territorial cuja potência encarna. Os países do
Hemisfério Norte não faltaram a esse dever, ao desenvolverem uma política imperial em grande
estilo, que seus pensadores se empenharam em legitimar, mostrando precisamente que a
exportação da autoridade “branca” é também a da civilização e do progresso, tal como o prova a
obra dos missionários e dos administradores. O terceiro capítulo, o ESTADONAÇÃO, examina
em sua primeira parte o alcance dessas justificações, assim como a exacerbação do estatismo
nacionalista na Europa, manifestada nos empreendimentos fascistas de um “Estado total” na
Itália (visando à fusão entre o Estado e a sociedade) e nacional-socialista na Alemanha, o qual,
em nome da geopolítica e de uma teoria da desigualdade das raças, conduziu aos mais amplos e
odiosos genocídios da história; ele estuda também as concepções subjacentes às formas atuais
do imperialismo, em particular as praticadas pelas duas superpotências. A segunda parte desse
mesmo capítulo analisa a resposta histórica que os teóricos e os políticos dos chamados povos
do Hemisfério Sul, em luta por sua independência nacional, opõem a essa invasão: sendo
obrigados, pela correlação de forças internacional, a só poderem existir internacionalmente
integrando-se às “potências”, ou seja, adotando o modelo “branco” do Estado, o problema que
eles enfrentam é o de forjar — nos próprios combates — as mediações capazes de reconstituir
as identidades nacionais, gravemente atingidas, com frequência, pela colonização, assim como
desenvolver suas forças singulares no quadro universal que lhes é imposto
Essa constante presença do Estado — que o liberalismo clássico tentava conjurar, mas sem
acreditar muito no êxito de seu esforço —, presença que se traduz, entre outras coisas, na
confusão entre Estado e poder governamental, remete porém a um outro aspecto, ainda mais
profundo, da ordem política contemporânea. Quer se pretenda simplesmente gerente, quer se
considere depositário da Historia ou mandatário da Classe ou do Povo, o Estado tem de ser
eficiente. Ora, o movimento de civilização que nasceu na Europa Ocidental e central nos
séculos XVI-XVII, ao mesmo tempo que a nova visão do mundo articulada em tomo da
revolução física de Copérnico e de Galileu, produziu — afirmando-se e conquistando
progressivamente as sociedades — uma atividade específica: a ciência como conhecimento
experimental e como técnica de. apropriação realista e de transformação da natureza, que cedo
se impôs como o tipo por excelência de empreendimento eficiente. Seu uso sistemático e sua
adoção pelas 'autoridades que têm a missão de decidir aparecem, no século XX, como o meio de
realizar tanto o projeto político racional que atravessou o pensamento especulativo desde Platão
e dos estoicos até Tomás de Aquino e Hegel, quanto à ideia de uma conduta governamental bem
adaptada aos dados empíricos, graças a um exato conhecimento dessa conduta. O capítulo IV —
o ESTADO-CIENTISTA — trata das concepções que, sob diferentes aspectos e nos diferentes
regimes políticos existentes, consideram que o exercício do poder e a organização das
sociedades ligam-se doravante à atividade científica, quer se trate da institucionalização e do
controle pelo Estado do trabalho científico, quer se trate da utilização dos conhecimentos e das
técnicas na gestão da existência social ou da eliminação progressiva do político qualificado no
caso como “ideológico”, em beneficio de organismos tecnocráticos de decisão. O Estado-
Cientista sabe? Com efeito, cada vez mais prazerosamente, ele afirma que sabe e se vale dessa
afirmação para ordenar o real e, desse modo, fundamentar materialmente a sua autoridade.
É a partir do Estado-Cientista — o qual, geograficamente, não está situado em nenhum lugar,
mas que “trabalha” no interior de todos os poderes do Estado, qualquer que seja o seu regime —
que se radicalizou o pensamento político atual. Na verdade, o temor que ele sente diante de uma
autoridade governamental cujo “fundamento” científico tornaria tão segura de si; cujo domínio
do jogo social lhe daria uma tão grande capacidade de exibir, quando solicitada, o consenso que
atesta sua legitimidade; que disporia de meios de intervenção tão fortes e tão extensos e de
agentes de execução tão submissos e tão competentes que teria a constante possibilidade de
estender seu domínio sistemático e tentacular sobre a sociedade que está sob sua
responsabilidade, de abolir a seu bel-prazer o destino do público e do privado e, como o Deus da
Teologia, de modelar o mundo à sua imagem, retirando da coletividade até mesmo a veleidade
de imaginar outra coisa: esse temor foi agravado pela experiência histórica dos últimos
cinquenta anos. Aquele pensamento viu nascerem e se afirmarem poderes totalitários que
desenvolveram, no horror e no delírio, a lógica da submissão, utilizando-se certamente da força
bruta, mas servindo-se também e sobretudo da violência estatal, valendo-se de técnicas
científicas para a manipulação das massas e para o extermínio dos opositores, também essas
inspiradas na ciência.
O quinto e último capítulo, portanto, coloca a questão do Estado enquanto forma política no
quadro da qual foram exercidas e se exercem dominações implacáveis e onde se inscreve hoje a
ameaça de um condicionamento oficial e científico da existência social. O ESTADO EM
QUESTÃO investiga, em seguida, as diversas leituras do fenômeno totalitário, próprio de nosso
século; o aso que se fez do sentido da história para tentar tornar inteligível a dialética dos
conflitos contemporâneos; as pesquisas atuais que, aquém das descrições sociológicas e
politicistas, esforçam-se por demonstrar o mecanismo e por descobrir a origem da potência do
poder; e, finalmente, os debates atuais consagrados ao enigma da potência do Estado.
Uma tal reflexão não poderia ter uma conclusão. Ela tem, entretanto, uma espécie de introdução:
a fim de sublinhar a perspectiva de conjunto que adota — considerar as ideias, as concepções
políticas, não como formando um campo independente, mas como imanentes ao movimento do
pensamento em face dos conflitos que atravessam as sociedades —, resolvemos, tomando a
liberdade de apresentar brevemente na PRELIMINARES os pontos de vista espantosamente
antecipadores de homens de pensamento e de artistas que compreenderam, em seus domínios
específicos, que a questão política, o problema do Estado referem-se de modo direto —
particularmente hoje — a todas as atividades.
Quem, sob o pretexto de uma desconfiança tão resoluta quanto legítima cm face do Estado,
considerar que é ainda um modo de ceder ao seu fascínio colocá-lo em questão, esse se expõe a
ser duramente chamado à ordem. . . Nenhuma recusa cancela o problema.
A fim de permitir ao leitor orientar-se numa matéria tão densa e complexa, o sumário que figura
no início do volume é desdobrado no final do livro, através de a) um quadro das matérias, que
segue a ordem da exposição; e b) de um índice dos temas, que agrupa as referências às
concepções, às doutrinas e aos principais autores. Desse modo, com facilidade, o leitor poderá
constatar que as concepções fascista e nacional-socialista, por exemplo, são tratadas
principalmente nos capítulos II(na rubrica consagrada ao nacionalismo e ao imperialismo
europeus) e V (na análise do totalitarismo); ou que a questão contemporânea da democracia é
abordada nos capítulos (O Estado-Gerente) e V (a respeito dos debates atuais sobre a potência
do Estado).

NOTAS:
1. Cf. Jean Touchard et aí Histoire des idées politiques, 2 vol Paris, PUF, 1959, col. “Thémis” (6.a cd 1978);
Jean-Jacques Chevallier, Histoire de la pensée politique, 2 vol. publicados, Paris, Payot, 1979; e George H.
Sabine, A history of political theory (1937), Hindsale, Illinois, Dryden Press, 4.a ed revised by Thomas Laudon
Thorson, 1973.
2. Os autores referem à coleção “Thémis”, da Presses Universitaires de France
Preliminares

Estas apresentam concepções que não pertencem ao domínio que habitualmente se designa com
a expressão “política”. Portanto, se elas são brevemente analisadas, não é enquanto intervêm
diretamente no ordenamento dos poderes ou na organização das sociedades; não figuram aqui
nem como construções políticas teóricas nem como discursos relativos à gestão. Obras de
cultura, a característica que lhes é comum é apresentarem uma visão inesperada da realidade,
fora da tradição, subversiva (no sentido próprio da expressão): uma visão que, precisamente,
subverte os hábitos mentais e os “lugares comuns” a partir dos quais foram edificados poderes e
instituições e se explicitaram os discursos de legitimação. Trata-se, essencialmente, de
Nietzsche e de Freud, por um lado, e, por outro, da crise das ciências e, de maneira mais alusiva,
dos abalos artísticos que assinalaram a passagem do século XIX para o XX. Sobre Nietzsche e
Freud, o leitor não deve esperar nenhuma análise dialética; a referência às ciências e às artes não
tem a menor pretensão de ser uma exposição epistemológica ou estética. Busca-se apenas
mostrar aqui que as concepções políticas — quer sejam doutrinárias, teóricas ou programáticas
— estão inseridas no contexto não apenas de uma história social com que elas se defrontam,
mas ainda de uma dinâmica da cultura, da qual as invenções da filosofia, da pesquisa científica
e da arte são ao mesmo tempo expressão e motor.
1 / Nietzsche contra o Estado
“Em algum lugar há ainda povos e rebanhos, mas não entre nós, meus irmãos: aqui há Estados.
Estado? O que é isso? Pois bem! Agora abri-me vossos ouvidos, pois agora vos direi minha
palavra sobre a morte dos povos. Estado chama-se o mais frio de todos os monstros frios.
Friamente, também, ele mente; e essa mentira rasteja de sua boca: ‘Eu, o Estado, sou o povo’. É
mentira! Criadores foram os que criaram os povos e suspenderam uma crença e um amor sobre
eles: assim serviam à vida. Aniquiladores são os que armam ciladas para muitos e as chamam de
Estado: suspendem uma espada c cem apetites sobre eles. Onde ainda há povo, alo povo não
entende o Estado c o odeia como um mau-olhado e um pecado contra os costumes e as leis” 2.
Assim, para Nietzsche, o que se apresenta como guardião dos povos — que pretende assegurar,
sob sua tutela e graças à fortaleza das leis, a fusão de todos no seio da nação — é o Leviatã. Mas
ele é um monstro, não um Deus: e um monstro mentiroso e usurpador. Ele é apenas o que
proclama ser: nisso consiste sua soberania. Seu funcionamento é frio, o de uma máquina, a
máquina dos poderes. Sua função é clara: oprimir os povos e destruir a vida. Sua prática se
reduz a uma cega dominação. Ora, não se trata de parar nessa constatação e denunciar esse
triunfo das forças regressivas X É preciso tornar evidente o processo através do qual um tal
escândalo se impôs, a ponto de parecer normal tanto aos que dele se aproveitam quanto aos que
sofrem e morrem por sua causa.
Nietzsche, portanto, liga-se em primeiro lugar a uma “genealogia”, que é como que a antítese
das filosofias da história — e da mais bem-sucedida delas, a de Hegel — e que revela os
“momentos”, os acasalamentos que permitiram a essas forças se comporem para tomar a
dianteira sobre a potência da vida e da criatividade. A investigação genealógica é como uma
pesquisa sobre o abastardamento político. Somente então é que se pode retornar à denúncia
empírica dos traços característicos do Estado contemporâneo, de seus componentes reais, e
revelar a natureza perniciosa dos nacionalismos, da democracia, do socialismo, dos tipos e das
técnicas de governo.
O primeiro momento que marca fortemente o Crepúsculo dos ídolos é o da astúcia socrática,
que inverte o sentido do helenismo. O helenismo, em seu período dito arcaico, guerreava
corajosamente, atravessado pelos clamores profundos de Dioniso e das iluminações apolíneas.
Sócrates, nascido do “populacho”, irá denunciar como ilusório e perigoso esse povo de deuses e
de heróis. Mas nem por isso reconhecerá a nova civilização democrática, que se alimenta do
mais ou menos e toma como critério o peso da maioria. Depois de ter ridicularizado os
sentimentos nobres, ele ironiza os necessitados que acreditam nas virtudes formadoras das
técnicas materiais ou políticas. A ironia que ele pratica, desse modo, leva diretamente à
desvalorização da vida sob todas as suas formas: é essa, segundo A gaia ciência4, a significação
da última frase de Sócrates: “Oh, Críton, eu devo um galo a Esculápio”. “Essa ridícula e terrível
‘última palavra’ significa, para quem sabe entendê-la, Oh, Críton, a vida é uma doença! É
Possível? Um homem como ele. . . era um pessimista”.
Platão irá se fazer administrador desse gênero de pessimismo. Mais precisamente: ele o utiliza,
não certamente para edificar uma nova alegria, ou seja, para superá-lo efetivamente, mas para
construir a triste serenidade filosófica, patamar do que será doravante chamado de Saber e
Razão. Nos diálogos destrutivos, ele substituo diálogo didático pela ironia da contestação, o
ensinamento pela contestação. Ora, essa mudança de tom, de estilo, implica graves
consequências.
Sócrates constatava as contradições, as lacunas, a ineficiência da opinião comum; Platão, ao
contrário, busca suas causas e suas razões. E, a partir disso, o que ele ensina é, antes de mais
nada, que o mundo sensível —por sua natureza incoerente e lacunosa, pelo fato de ser arrastado
pelo fluxo incessante do devir — não poderia de nenhum modo ser objeto de um saber qualquer,
a não ser de modo aproximativo e sempre provisório; ele ensina, ao mesmo tempo, que a
percepção — graças à qual experimentamos esse mundo e desfrutamos dele — é enganadora,
particularmente na medida em que suscita as paixões, multiplica as necessidades e exalta os
“maus” impulsos. Em suma, tudo o que se refere ao corpo, prazeres e desejos, 6 condenado
como pernicioso, como causa de erros na conduta individual, de desordens na política. Mais em
suma ainda: como causa da imoralidade e da infelicidade.
É a isso que o homem se vê reduzido se não aceitar a única hipótese que pode assegurar sua
“salvação” pessoal e a satisfação que é possível obter neste mundo. Essa hipótese é apresentada
pelo autor de A República como sendo necessária; é justificada com todos os meios, desde a
análise teórica até o mito, passando pela alegoria. Ela consiste simplesmente nisto: esse “baixo”
mundo não é o verdadeiro mundo; é apenas uma cópia, deformada, e que não cessa de se
desfazer. O verdadeiro mundo só pode ser a própria Verdade (que é também o Verdadeiro, o
Belo, o Bem e o Uno) imutável, transparente, constituída de Ideias sistematicamente articuladas,
perceptível unicamente por quem, através de duras provas materiais e espirituais, venceu seu
corpo e as solicitações dele.
Se descrevemos aqui esquematicamente esse núcleo da doutrina platônica, não é apenas para
analisar suas implicações políticas explícitas; é também porque ele constitui o pano de fundo
conceituai, a ordem dos princípios que irá doravante governar o funcionamento da racionalidade
ocidental até Nietzsche, inclusive até nossos dias. Contradita, refutada por múltiplas outras
doutrinas, essas terminam por se situar finalmente, no mais das vezes, no terreno platônico.
Essa concepção da Verdade continuará dominante na maioria dos , casos, ainda que algumas
atenuações tenham sido feitas; e, mesmo quando recusada, ela continua a ser uma referência
constante (até e inclusive nas ciências experimentais e nas chamadas teorias materialistas,
empiristas ou positivistas). Com efeito, salvo algumas exceções, como Spinoza, as rupturas
decisivas só surgem, precisamente, com Marx (ainda que não de modo completo) e com
Nietzsche.
De qualquer modo, essa lição filosófica que conclui pela existência das Essências eternas,
contrapartida teórica da negação do corpo e dos valores sensíveis, possui uma consequência
política exemplar. Platão recusa todos os regimes existentes em seu tempo; a razão da
imoralidade dos mesmos, de seu caráter maligno, reside no fato de que os governos que deles
resultam estão, por assim dizer, infestados de corporeidade e, por isso, seus discursos e seus atos
tornaram-se obtusos. Trata-se assim, para ele, a fim de garantir a independência e a
sobrevivência da Cidade, a autarquia dela, de libertar a alma dos dirigentes do peso da
materialidade, de livrá-los de qualquer paixão, a fim de que possam “ver” a Ideia da Cidade
justa, decidir o emprego de práticas corretas, comandar com consciência os guerreiros e exigir
dos que têm a missão de alimentar os corpos a mais estrita obediência. O necessário é que “o
filósofo seja rei ou o rei seja filósofo”.
Instaura-se assim, tanto contra a tradição do guerreiro aristocrata que descende de heróis quanto
contra a cultura do retórico democrata, filho da palavra, uma nova ordem fundada sobre uma
estrita bipartição: os dominantes, selecionados em função do seu Saber, que detêm todos os
poderes; e os outros, os dominados, cuja única função é permanecer no lugar que lhes foi
indicado e obedecer. Uns e outros são devotados à Cidade, que é sua salvaguarda “cá embaixo”
e que lhes dita o comportamento que permitirá um destino melhor no “além”. Eis aqui, pela
primeira vez em nossa cultura, o Estado: “o mais frio dos monstros frios”. Como o demonstra
Hegel, a Calípolis platônica é a Verdade da Cidade grega; porém, ainda mais profundamente, ela
esboça — em seu tempo — a estrutura do poder tecnoburocrático, que é, por sua vez, a Verdade
do Estado tecnoburocrático em seu funcionamento.
Nietzsche — em Humano, demasiado humano (1876-1879), em A gaia ciência (1882), em Para
além do hem e do mal (18851886), em A genealogia da moral (1887) — analisa as forças que
constituem c mantêm o Estado. E isso porque, neste mundo, não é possível suprimir
sistematicamente os corpos vivos dos homens, em suas exultações e sofrimentos materiais,
fontes de “desordem” aos olhos da Razão: è preciso substituí-lo. E essa a função do Leviatã:
colocar as individualidades corporais em seu lugar hierarquicamente determinado, de tal modo
que tais individualidades — expressões do tumulto imanente à vida — tornem-se inatuantes
(obedecer não é agir, mas somente efetuar segundo a norma): (comandam os que não são mais
do que almas; executam os que tiveram aniquilada toda força inventiva,;»
Portanto, qual é, em última análise, o objetivo de tais dispositivos? Reduzir a vida a seu
exercício biológico mínimo; destruir os prazeres c os sofrimentos intensos em proveito da
segurança e do bem-estar médio; privilegiar a mitologia da Razão — em nome da prudência —
em detrimento da potência passional; educar os músculos para que aprendam a se dominar ou a
só efetuar gestos predeterminados. . . E qual é a paixão oculta que anima o platonismo? O medo,
o medo da vida, que é excessivo B.
É assim que Platão propõe substituir a vivacidade dos corpos singulares pelo corpo mecânico do
“monstro frio”. A ordem da Verdade, desta verdade, começa. . . e ela conduz ao Estado
moderno.
O segundo momento sobre o qual Nietzsche insiste começa com a história da nação judaica e a
pregação de Cristo. De acordo, nisso, com São Paulo, o autor de O Anticristo (1888) aceita uma
espécie de relação ambígua de continuidade e de descontinuidade entre o helenismo e o
cristianismo. Tal relação se caracteriza pelo fato de que aparecem então noções novas que vão
pesar sobre o pensamento europeu: em particular a do Eu concebido como interioridade, a do
pecado e a da separação entre domínio político e domínio moral. Nem por isso deixa de ser
verdade que o cristianismo continua a operação anunciada por Platão (e, inclusive, reforça-a
graças precisamente às noções supracitadas) de desvalorização do carnal.
O problema tem início, no povo judeu, quando a casta dos sacerdotes passa a predominar sobre
a dos guerreiros: “Os juízos de valor da aristocracia guerreira são fundados numa poderosa
saúde corporal, uma saúde florescente, sem esquecer o que é necessário à manutenção desse
vigor transbordante: a guerra, a aventura, a caça, a dança, os jogos e o exercício físico, e, em
geral, tudo o que implica uma atividade livre, robusta e alegre. O modo de apreciação da alta
classe sacerdotal apoia-se em outras condições primeiras: pior para ela quando se trata da
guerra. Os padres, como todos sabem, são os inimigos mais malvados. E por quê? Porque são os
mais incapazes. A impotência faz crescer neles um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e
venenoso. Os grandes vingativos, na historia, foram sempre padres...”
A palavra de Cristo — e sua história contada pelos evangelistas — “só pode ser compreendida a
partir do solo que a alimentou”. O cristianismo “não é uma reação contra o instinto judeu, mas a
própria coerência de sua progressão, o próximo passo de sua temível lógica”7. Contra o
particularismo e o egoísmo da casta sacerdotal, ele busca uma aliança mais ampla: “Os instintos
dos servos, dos oprimidos passam a primeiro plano: são as camadas mais baixas que buscam sua
salvação no cristianismo”8. Por isso, a recusa do corpo — que permanecia teórica no
platonismo e que conseguira dar forma ao real — irá doravante invadir a própria existência:
“[...] para se ocupar, para remediar o tédio, pratica-se a casuística do pecado, a autocrítica, a
inquisição da consciência; [. . . ] o afeto diante de um poderoso chamado ‘Deus’ é
constantemente encontrado (através da oração); [...] o que há de mais elevado aparece como
inacessível, um presente, uma ‘graça’ [. . . ]. Cristão é um certo sentimento de crueldade para
consigo mesmo e para com os outros, o ódio contra os que pensam diferentemente: a vontade de
perseguir. Em primeiro plano, têm-se imagens lúgubres feitas para emocionar [...]. Cristão é a
animosidade mortal contra os senhores da terra [...]. Cristão é o ódio contra o espirito, contra o
orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem', cristão é o ódio contra os sentidos, contra a
alegria dos sentidos, contra a alegria [... ]”9.
É essa a pretensa “boa nova”; ou, pelo menos, o que ela se tornou sob os cuidados dos bons
apóstolos, da nova casta sacerdotal e de seu chefe de fila, Paulo, sob os cuidados da Igreja. Essa
domina a Europa, submete os bárbaros através de urna conquista adocicada, leva-os a entrarem
em decadência. Afasta os povos de si mesmos e de sua orgulhosa despreocupação. Sob os traços
do amor ao próximo, da humildade, da caridade, da fraternidade das criaturas de Deus — todos
produtos do ódio instintivo contra a realidade10 —, ela faz crer na ideia da pseudo-igualdade
das pessoas e de seus direitos. O que ela igualiza, na verdade, é a mediocridade; o que ela
transforma em hábito é a cotidianidade laboriosa. A noção de pecado original, de culpa, do
resgate necessário, da feiura do mundo: tudo isso mantém a inelutabilidade da obediência, mas
a transforma em obrigação. O cristianismo interioriza a submissão.
Ora, “a resolução cristã de considerar o mundo como feio e mau tornou o mundo feio e mau”11.
É essa a eficiência de tal mentira. Pois trata-se, na verdade, de urna mentira institucionalizada:
“Chamo de mentira: não querer ver algo que se vê, não querer ver uma coisa tal como ela é
vista; é indiferente se a mentira tem lugar diante de testemunhas ou sem testemunhas”12. O
crepúsculo dos ídolos estuda os “grandes erros” sobre os quais repousa a moral. Desses erros, os
dois mais conhecidos consistem no fato de que a moral pressupõe causas imaginarias?) assim, a
moral “explica” que as dores físicas, ou morais, “dependem de ações irrefletidas que têm
consequências desagradáveis (as paixões e os sentidos considerados como causas, como
culpados; as calamidades psicológicas transformadas em punições ‘merecidas’, com a ajuda de
outras calamidades)”; ela “explica” os sentimentos gerais agradáveis: “[Estes] resultam da
confiança cm Deus [.. .] do sentimento de boas ações (o que se chama de ‘consciência
tranquila’, um estado psicológico que se assemelha, a ponto de por vezes se confundir, com uma
boa digestão .). Na realidade, todas essas pretensas explicações são consequências de estados de
prazer e de desprazer, transcritos numa espécie de linguagem errada: tem-se condições de ter
esperança porque o sentimento fisiológico dominante é novamente forte e abundante; tem-se
confiança em Deus porque o sentimento da plenitude e da força vos proporciona repouso”13.
O segundo “erro”, o segundo “esforço teológico” de pior fama que existe — no sentido de
tornar a humanidade “responsável” ao modo dos teólogos ou seja, de tornar a , humanidade
dependente dos teólogos14 —, foi invenção da ideia do “livre arbítrio”. Essa tem por função
impor a noção de responsabilidade. Ora, “sempre que procuram responsabilidades, é geralmente
o instinto de punir e de julgar que está em ação. Retira-se o devir de sua inocência quando se
relaciona um estado de coisas qualquer à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade: a
doutrina da vontade foi inventada principalmente com a finalidade de punir, ou seja, com a
intenção de considerar culpado [...]. Os homens foram considerados como ‘livres’ para
poderem ser julgados e punidos — para poderem ser culpados...”15.
. Poder-se-ia pensar — como o fez Hegel — que essa descrição só tem valor para o cristianismo
romano e que a Reforma reencontrou, indo além da Igreja, algo do Cristo. Para não falar do fato
de que isso não alteraria essencialmente nada, cabe lembrar que Lutero não fez mais do que
reconstituir com maior habilidade as forças do ressentimento: “Lutero viu a corrupção do
papado, mas era justamente o contrário que deveria ser apontado: a velha corrupção, o pecado
original, o cristianismo não mais ocupava a sede papal! E sim a vida! E sim o triunfo da vida! O
grande ‘sim’ dito a tudo o que é elevado, belo, temerário! [...]. E Lutero reconstituiu a Igreja: ele
a invadiu. .. O Renascimento: um evento insignificante, uma grande coisa para nadal”16.
Em suma, a “30 de setembro de 1888 do falso calendário”, Nietzsche declara guerra de vida ou
morte contra o vicio —• o vicio é o cristianismo — e edita o artigo primeiro: “É vicio toda
espécie de contra natureza. A espécie de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a contra
natureza. Contra o padre, não se tem razões a opor: tem-se a casa de correção”17. E declarar
essa guerra é minar um dos fundamentos mais sólidos do Estado atual, tanto autoritário quanto
“democrático”, já que “o interesse do governo tutelar e o interesse da religião vão de braços
dados, de modo que. — se esse último começa a perecer — também o fundamento do Estado
será abalado”18. ' ' .
O objetivo declarado do cristianismo — em seu desejo de melhor submeter as “almas” — é
tornar a humanidade “melhor”; nisso consiste sua chamada tarefa moral. Ora, “a domesticação
do animal humano, assim como a criação de uma espécie de homens determinados, é um
‘melhoramento’: esses termos zoológicos, por si só, expressam realidades. Mas são realidades
sobre as quais o ‘melhorador’ típico, o padre, não sabe efetivamente nada: sobre as quais ele não
quer saber nada. . . Chamar de “melhoramento a domesticação de um animal é, para nossos
ouvidos, quase uma piada... O animal é enfraquecido, tornado menos perigoso. [...] faz-se dele
um animal doente. Não ocorre outra coisa com o homem cativo que o padre tornou ‘melhor’”
Ora, em nossa época, como observa Nietzsche (e em virtude da coalizão a que acabamos de nos
referir), o Estado tomou o lugar da Igreja. Sob o termo cultura — cuja difusão é monopolizada
pelo Estado, em particular através do sistema de ensino —, ele assume, sob aspectos
“modernos”, “laicos”, essa missão de domesticação sistemática. A Terceira consideração
intempestiva estuda os poderes que, desse modo, abusam da cultura e a reduzem à servidão. “O
primeiro desses poderes é o egoísmo das classes comerciais, que precisam da ajuda da cultura e
desejam ajudá-la em troca, mas que, naturalmente, também lhe prescrevem fins e limites”20.
Assim, “o objetivo das instituições modernas de cultura deve ser o de levar cada pessoa — na
medida em que sua natureza lhe permita — a reproduzir o tipo ‘corrente’, a prepará-lo para
extrair de seu nível próprio de conhecimento e de saber o máximo possível de felicidade e de
lucro [...]. O indivíduo deve aprender, com a ajuda dessa cultura geral, a se conhecer em seu
justo valor, a fim de saber o que pode exigir da vida; e, por fim. afirma-se que existe uma
aliança natural e necessária entre a ‘inteligência’ e a ‘propriedade’, ' a riqueza e a cultura, e
mesmo que essa aliança é uma necessidade moral”21. “O segundo poder [...] é o egoísmo do
Estado' Em todos os países onde se fala atualmente das ‘tarefas culturais do Estado’, vemos que
se pede à cultura que libere as forças espirituais de uma geração, na medida em que elas possam
servir às instituições estabelecidas e lhes serem úteis [...]. Essa liberação [serve], ao contrário,
para forjar cadeias”22. Finalmente, “a cultura encontra protetores entre todos os que têm
consciência de sua feiura e de seu tédio e que querem se iludir por meio do que se chama de ‘a
beleza da forma' [...]. Eles pedem a seus artistas que os arranjem e os apresentem como iguarias
apimentadas e temperadas; eles se inundam com todos os perfumes do Oriente e do Ocidente
[...]. Há perfumes para todos os gostos, odores suaves e nauseabundos, formas refinadas ou
grosseiras e rústicas, arte grega ou chinesa, tragédia ou pequenas porcarias domésticas”23.
Assim, a arte serve à abjeção atual, inclusive sob a forma — aparentemente imoral — da Arte
pela Arte. Não basta afirmar: é melhor não ter objetivo do que ter um objetivo moral. É preciso
perguntar o que é afirmado em e pela arte: “O instinto do artista dirige-se para a arte, ou, ao
contrário, no sentido da arte, dirige-se para a vida, para um desejo de sobrevivência. A arte é o
grande estimulante da vida”21.
Entretanto, o desenvolvimento da arte, de uma certa arte — e, mais geralmente, de uma cultura
servil —, encontra em nosso tempo outros instrumentos de domesticação. Há também o sentido
histórico — c, também aqui, um certo sentido histórico. A Segunda consideração intempestiva
analisa “a utilidade e os inconvenientes da arte para a vida”25. Nietzsche argumenta — ora de
modo feroz, ora de modo minucioso — contra a mania histórica que invadiu o século XIX.
Decerto, não é o conhecimento do passado que ele ataca: como tal, esse conhecimento pode ser
um estimulante para o homem ativo, que saberá descobrir nele, se não sempre modelos, .pelo
menos “genealogias” que lhe permitirão não somente captar a origem da miséria
contemporânea, mas ainda dirigir eficientemente suas armas contra o inimigo atual e derrotá-lo.
O que ele denuncia é, em seu conjunto e em algumas formas que ela assume, a investigação que
opera uma separação entre o devir e os homens, entre a vida e os instintos que a animam; é o
fato de que, quer se apresente como erudita, descritiva ou como filosofia da história (à maneira
de Hegel ou à maneira de Spencer), essa investigação considera o passado como morto, como
algo concluído ou inteiramente acabado. Aparentemente, o que governa uma tal mentalidade são
os fatos. Não é evidente que o passado é passado? A realidade é que essa concepção
corresponde ao instinto de difamação da vida, do que é atual e forte. Mata-se o passado porque
se considera que o presente está morto.
O Segundo eixo, ainda mais importante e sobretudo mais poderoso e presente em suas
consequências materiais, é a ciência experimental e seus corolários técnicos. Sabe-se hoje como
c estreita a relação que une, nas próprias instituições, o Estado e a Ciência. Embora ele tenha
tratado apenas da ciência do seu tempo, fortemente marcada pelo positivismo e ainda
razoavelmente ignorante de seus poderes sócio-políticos, Nietzsche pressentiu que ela era a
nova Deusa e que faria uma aliança com o Leviatã. Ela não fornece, do modo mais diretamente
evidente, mais organizado, mais amplo, mais repressivo também e mais eficaz, os meios de
submeter os povos? Não proporciona — aqui por fragmentos — e não promete — para amanhã
— o fim dos males que pesam sobre a humanidade, algo que os padres deixam para o além?
Não garante uma forma de segurança ao afirmar que seus progressos indefinidos vão permitir
uma racionalização da existência, que consiste, ao mesmo tempo, numa “boa” administração e
numa redução do trabalho, numa extensão quantitativa e qualitativa das necessidades, numa
satisfação maior dessas últimas, numa regulamentação geral das sociedades? Não anuncia,
finalmente, tanto no domínio coletivo quanto no individual, o “êxito” conjunto dos programas
platônico e cristão?
Tratando dessa ciência conquistadora, Nietzsche pergunta também o que ela pretende e qual o
seu funcionamento. Ora, sobre isso, é fácil constatar quo, por mais grandiosos que sejam seus
projetos de conhecimento e de transformação da natureza, seus efeitos políticos e sociais são
deletérios. Embora Nietzsche não insista sobre suas terríveis possibilidades de destruição,
destaca — antes de mais nada — a constituição de uma “elite” científica que cada vez mais se
distancia dos povos e da realidade viva20. Em seguida, ele sublinha o fato de que o suposto
bem-estar cotidiano a ser trazido pelo progresso é constituído de mediocridades, de falsas
novidades, de sobrevivências artificiais: “Que dizer? O fim último da ciência seria o de
proporcionar ao homem o máximo prazer possível e de lhe evitar todo o desprazer? Mas como
seria isso, se prazer e desprazer formam um só núcleo, de modo que quem deseja ter o máximo
de prazer possível deve sofrer pelo menos uma quantidade semelhante de desprazer? Se quem
deseja ‘chegar ao céu’ deve se preparar para ‘ser triste até a morte’? E as coisas talvez sejam
assim!”27
Há algo mais grave: o desenvolvimento das ciências experimentais, além de contribuir para
tornar ainda mais frio o “monstro frio”, engendra uma nova piedade, que c uma outra mentira.
Com efeito, mentirosa é essa pretensão à positividade, que devia sacudir as imaginações
religiosas e as construções do saber metafísico. Em sua realidade social, a ciência não faz mais
do que dar sequência a esse tipo de crenças. É o que se diz em A gaia ciência, no texto
intitulado “Em que medida nós também somos ainda devotos”: “Na ciência, as convicções não
têm nenhum direito de cidadania, como se diz com bons fundamentos: somente quando elas se
resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório, de um
ensaio experimental, de uma ficção regulativa, é que pode lhes ser concedido o ingresso e até
mesmo um certo valor no interior do domínio do conhecimento [...]. Só resta perguntar se, para
essa disciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção; e, aliás, tão imperiosa e
incondicional que sacrifica a si mesma todas as outras convicções. Ora, também a ciência se
funda em uma crença; não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’. A questão de saber se é
preciso verdade não só já tem de estar de antemão respondida afirmativamente, mas afirmada
em tal grau que nela alcança expressão esta proposição, esta crença, esta convicção: ‘Nada é
mais necessário do que a verdade [...]. Esta incondicionada vontade de verdade: o que é ela?”28
O que é ela? O que ela esconde? Nietzsche formula aqui os princípios críticos da ideologia da
ciência, 1 essa “ideologia” que recusa, sob o pretexto do progresso, da marcha para a frente,
colocar o problema do querer que a governa. Pois, em última instância, afirma O Anticristo20,
“o progresso é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa [...]. Não existe uma lei
segundo a qual o desenvolvimento seria forçosamente elevação, crescimento, fortalecimento”.
Talvez resida nisso o essencial do questionamento nietzschiano. O que, há três séculos, é
apresentado como um crescimento dos conhecimentos e dos poderes — quantitativo, à maneira
de Condorcet (e da tecnocracia economicista) ou qualitativo, à maneira de Comte e de Spencer
(e da tecnocracia social), ou ainda como conquista necessária, mas dramática, à maneira de
Hegel — é, do ponto de vista da vontade, do ponto de vista da vida, decadência. São sucessivas
vitórias obtidas pelas forças reativas sobre as forças ativas, pelos cristãos sobro os pagãos, pelos
padres sobre os povos, pelos escribas da ciência sobre os artistas criadores, pelos funcionários
sobre os produtores.
Por sua natureza, as forças ativas são descontínuas, sem filiação, sem história: elas existem
apenas por sua presença. Por sua natureza, também, as forças reativas se instalam na
continuidade: do platonismo ao cristianismo, do cristianismo à ciência positiva, dessa ciência ao
fortalecimento do Estado-Nação, a consequência é clara. É dessa degenerescência que se
escreve a história, chamando-a de história da humanidade. É à luz dela que se devem
compreender “os juízos políticos” de Nietzsche sobre as doutrinas de seu tempo, que tão
frequentemente chocaram pela sua brutalidade.
Desse modo, são ridicularizados os nacionalismos, quaisquer que sejam, tanto os que se
prevalecem de seu poder atual como os que apelam para o próprio passado. As nações — que,
sob a égide dos Estados, mataram a coragem dos povos — não são mais do que um aglomerado
arrogante de mediocridades. A atividade política se reduz a um conjunto de manipulações:
qualquer que seja o objetivo que finge perseguir, ela se contenta em gerir o que existe. Quanto
às doutrinas em que se apoia, são insignificantes: “Toda filosofia que crê afastar ou mesmo
resolver, com a ajuda de um evento político o problema da existência é uma caricatura ou um
sucedâneo de filosofia. Como poderia uma inovação política ser suficiente para, de uma vez por
todas, tomar felizes os homens da terra?”30
Quer o monstro estatal pretenda adotar uma aura liberal, quer se “democratize”, ele cai sempre
em contradição: “Uma leque determina ser a maioria que, em última instância, decide sobre o
bem de todos não pode ser edificada sobre uma base conquistada precisamente por essa lei; é
preciso, necessariamente, uma base mais ampla e essa base é a unanimidade de todos os
sufrágios [...]. Por isso, a contradição de uma pequena minoria já basta para torná-la
impraticável”31. E, se ele apelar (como o faz frequentemente hoje) para a opinião pública,
confessa que seu verdadeiro material é a incultura e o egoísmo: “[...] Vamos repetir mais uma
vez: opiniões públicas, preguiças privadas”32. Sabe-se que “o cristianismo é um
desnaturamento da moral do rebanho [...]. A democratização é uma forma natural dessa moral,
uma forma menos mentirosa”33. Autoritário ou liberal-democrático, o Estado não muda
absolutamente de natureza: a de administrador das massas envilecidas por um poder que nivela
e embrutece.
O remédio socialista, segundo Nietzsche, não altera em nada o problema: “O socialismo é o
fantástico irmão mais moço do despotismo [...], cuja herança pretende recolher; seus esforços,
portanto, são — no sentido mais profundo — reacionários. Pois ele deseja uma tal plenitude de
potência do Estado que o despotismo por si só jamais possuiu; ele supera mesmo tudo o que nos
mostra o passado, já que trabalha no sentido de aniquilar formalmente o individuo”34.
Poderíamos prosseguir, ao longo das páginas, a lista dessas denuncias abertas e claras. Essas
últimas, com frequência, serviram como justificação para as interpretações fascistas, nacional-
socialistas, bem como para os individualismos estatizantes e desabusados. Aristocratismo,
niilismo de Nietzsche? Gilles Deleuze mostrou corretamente, por exemplo, que aquilo que
Nietzsche odiava com mais vigor c a própria raiz do nazismo: o ressentimento dos escravos, o
ódio contra a vida™. E é também absurdo fazer do autor de Zaratustra um doutrinário!
Niilismo? Certamente. Mas trata-se de uma constatação. A civilização atual — quer se trate da
administração da sociedade, da organização do trabalho ou da ordem da cultura — tem como
tema a aniquilação de todas as forças criadoras; o nivelamento dos homens em torno de um
mesmo modelo; a instalação de uma liberdade puramente formal, que consiste apenas em
aparência de liberdade, em escolher entre desejos e objetos intercambiáveis. O platonismo é um
niilismo teórico (pois o que é a essência que não faz parte deste mundo, se não um nada?38). O
cristianismo, denegrindo a vida, prepara a abolição das diferenças. O Estado-Nação realiza
progressivamente esses dois programas conjuntos: o que ele destrói é a vontade, o que ele
prescreve é o deserto superpovoado da indústria...
Aristocratismo? Sim. Mas aqueles a quem Nietzsche se dirige não são os resíduos da classe dos
nobres, nem os funcionários encarregados de conduzir os exércitos, nem os detentores da nova
cultura, nem menos ainda os que possuem o poder do dinheiro. Esses são apenas os medíocres
que “tiveram êxito”. Humano, demasiado humano mostra claramente que o aristocrata é,
segundo a etimologia, o melhor no que se refere à vontade e à vida, o que atua para além do
bem e do mal, valores enviltecedores.
Nietzsche não tem esperança em novos tempos: no momento mesmo em que os quer, adivinha e
decifra os seus sinais: “Nós, ‘espíritos livres’, ao anúncio de que ‘o velho deus morreu’,
sentimo-nos como que tocados pelos raios de uma nova aurora: nosso coração, diante desse
anúncio, transborda de reconhecimento, de espanto, de pressentimento, de expectativa — eis o
horizonte novamente desimpedido [. . . ]”37. E a morte de Deus requer uma outra: “[...] cedo
irromperá com ainda maior energia o grito de combate: [ . . . ] o menos de Estado possível’'''
A natureza das afirmações nietzschianas, o falo constantemente afirmado de que as forças ativas
são, por definição, descontínuas, sem filiação e sem história, excluem a possibilidade de que se
possa jamais constituir uma doutrina, um campo, até mesmo uma orientação dita
“nietzschianismo”. Todavia, visto que o que está inscrito no que as Considerações
intempestivas chamam de cultura tende à dogmática e à didática, essa infelicidade deveria
acontecer. A contrafação começa com a publicação, aos cuidados da própria irmã de Nietzsche,
da obra póstuma intitulada Vontade de potência, na qual a seleção e a classificação dos textos
induzem à imagem de um pensador reacionário, nacionalista alemão e apóstolo das mais varonis
virtudes exaltadas pelo nacional-socialismo. Ao lado, contudo, dessa notória contrafação,
quantas foram as interpretações abusivas e as traições de menor importância! Do literato tomado
pela mania de grandeza e de heroísmo ao aventureiro político obcecado por fantasmas de
violência, passando pelos que creem que o desprezo basta para criar um aristocrata, os furores
nietzschianos forneceram fórmulas que — separadas de seu contexto e desligadas do
movimento de conjunto do pensamento que as engendra — alimentam as cabeças duras e os
retóricos do apocalipse.
Essas aproximações não têm nenhuma importância. Mais sintomática é uma atitude como a de
Oswald Spengler, o qual — da leitura de Nietzsche — extrai uma filosofia da história que se
atualiza como teoria da decadência e da regeneração. Publicado dois anos depois do fim da
Primeira Guerra Mundial, A decadência do Ocidente retoma a distinção feita por W. Dilthey
entre os fatos naturais, analisáveis pela explicação, e os fatos humanos, que requerem ser
compreendidos, ou seja, que neles se introduzam o significado e a interioridade; e, por
conseguinte, a distinção entre a civilização (que se refere ao conjunto dos elementos materiais
constitutivos de uma sociedade) e a cultura (que é uma entidade viva, que cresce e morre como
um organismo). Munido dessas noções, que deixam pleno espaço à interpretação mais livre, o
pensador define “essências” culturais: o apolinismo mediterrâneo, que floresceu outrora na
Grécia e em Roma, e cuja decadência se confirma com o declínio, na época moderna, da
Espanha e da França; o espírito “mágico” dos árabes; a cultura fáustica da Alemanha, que se
anuncia com a Renascença e a Reforma. O meio de que dispõe uma cultura para reagir à
decadência é, por um lado, desconfiar da civilização (a qual, por exemplo, dominou a França
com a Revolução de 1789 e desencadeou seu enfraquecimento); e, por outro, conservar-se pura
de qualquer contaminação. Como se vê, estão postas todas as peças que podem servir à
fabricação de uma retórica da grandeza germânica. Do questionamento fundamental de todos os
valores em torno dos quais se articularam os nacionalismos do século XIX e suas consequências
imperialistas ou coletivistas, essa metafísica da história infere uma apologia desses mesmos
valores, no que eles têm de mais monstruosamente limitado.
Convém também exercer uma atenta crítica diante das tentativas — hoje frequentes — de
reencontrar a potência profética de Nietzsche. O texto nietzschiano não tem equivalente em
nosso século.

2 / Freud contra a Moral


As questões que Sigmund Freud coloca à realidade contemporânea, desde os primeiros anos
deste século, provêm de uma perspectiva inteiramente diversa; mas conduzem a um abalo
igualmente profundo. Como as que Nietzsche levanta, as questões freudianas contribuem para
desmascarar os sistemas.de ideias sobre os quais se apoiam os poderes do Estado-Nação, assim
como seus mitos auxiliares; por sua precisão, sua veemência, sua originalidade, elas preparam
para uma melhor compreensão do crescente “mal-estar” que invade nossas sociedades; e, sem
que se trate jamais diretamente de política, fornecem princípios de explicação para
comportamentos coletivos inesperados.
Facilmente se compreenderá a razão por que não evocaremos aqui, por assim dizer, a
psicanálise como doutrina e como terapia: por que evitaremos também entrar nos conflitos e nas
rupturas que, com Freud ainda vivo, atravessam a doutrina; por que, finalmente, iremos nos
abster de discutir a validade desse ou daquele conceito elaborado por Freud, como, por
exemplo, o Édipo (voltando porém à questão nos últimos capítulos, quando essa discussão
desembocar em juízos políticos). Assim, o que iremos reter aqui o feixe de ideias,
pacientemente montado e constantemente remanejado por Freud, que evidenciam a fragilidade,
a caducidade, a cegueira dos “grandes” princípios de que se valem os políticos e os intelectuais
que expressam as concepções desses políticos, quer sejam gerentes da ordem estabelecida, quer
militem em favor de reformas ou mesmo visem à revolução. Examinaremos, em primeiro lugar,
corno as análises freudianas põem abaixo os “valores” herdados do período clássico e do século
XIX burguês, entre os quais o Eu, a consciência, a vontade livre, a harmonia social, o ideal da
sociedade transparente c feliz, que constituem os pilares do nosso catecismo. E, para precisar o
alcance político dessa critica radical, citaremos — em segundo lugar — algumas das páginas
mais fortes de um texto que Freud, com seu habitual pudor, chama de O mal-estar na
civilização e que é, na verdade, a dolorosa constatação de um fracasso.
O que é preciso sublinhar, logo de início, é a concepção singular que tem Freud da atividade
científica. Essa concepção opera um remanejamento profundo da natureza e dos objetivos das
chamadas ciências humanas. Tais ciências, representadas essencialmente nessa época pela
psicologia e pela sociologia, pretenderam decalcar seus métodos e seus objetivos dos que
tiveram tanto sucesso nas ciências da natureza; como essas, aquelas tenderam, por um lado, a
atingir um conhecimento objetivo montando dispositivos experimentais (ou seus equivalentes),
e, por outro, a construir técnicas de aplicação. Elas trataram a realidade social e a realidade
psíquica como coisas, cognoscíveis e — portanto — transformáveis. Ora, como iremos tratar
mais precisamente em seguida40, a segunda exigência levou-as a fazer corresponder ao critério
teórico verdade/erro um critério que incidia no terreno da aplicação: normal/patológico. Elas
foram obrigadas a dar como suposta a validade desse último critério. Ora, a especificidade do
projeto de Freud consiste em se situar imediatamente no nível do chamado patológico, cm tomar
conto objeto habitual — “normal” — certas doenças nervosas, as que não apresentam causas
fisiológicas detectáveis. Trata-se decerto de tratá-las como “doenças”, de descrevê-las, de traçar
sua etiologia e de tentar curá-las. Mas, logo em seguida, o fato empiricamente reconhecido no
trabalho médico — de que cada neurose é singular, tanto em suas manifestações como em sua
produção, de que são neuróticos tanto uma paralisia resistente quanto um sonho ou um lapso
inscritos na cotidianidade — esse fato apaga pouco a pouco as linhas de demarcação entre o
normal e o patológico. Decerto, o ideal da cura — que é sem dúvida uma redução à norma —
permanece. Todavia, será que é a mesma coisa estar “curado” segundo Freud, ou seja,
eventualmente viver com a própria neurose, e estar “curado” segundo Durkheim, ou seja,
modelar as próprias representações individuais sobre as representações coletivas?
É nesse sentido que a psicanálise freudiana — deixemos de lado, vamos repeti-lo, o que ela
pode ter se tornado hoje como instituição e instrumento de normalização — rompe, ao mesmo
tempo, com as perspectivas reducionistas (ou, pelo menos, reguladoras) da psiquiatria, da
psicologia e da sociologia positivistas. A ideia de saber, com um objeto empiricamente
delimitado (a doença mental, o individual, a sociedade) e formado por um conjunto articulado
de conhecimentos verificáveis empiricamente (ou comparativamente), capaz de permitir a
dominação (por meio da transformação) da natureza psíquica e humana, essa ideia se desfaz. Se,
mais tarde, ela reapareceu na própria psicanálise, pode-se constatar, porém, que duas tendências
da investigação de Freud testemunham essa desconfiança profunda em face do sistema
cartesiano revisto e corrigido por Comte e Spencer. Em primeiro lugar, o pessimismo: por mais
imbuído que esteja de ciência, de rigor, de exatidão, o autor de O mal-estar na civilização não
crê de modo algum que possa existir um dia controle e posse da natureza, domínio da
materialidade e serena organização dos homens; da ciência a que Freud se devota, ele espera
apenas — graças à inteligibilidade que ela traz c ao tipo original de relações que ela propõe —
uma denúncia das tolices, dos conformismos, das brutalidades que tornaram a vida
contemporânea massiva, triste e pesada. Em segundo lugar, a insatisfação pessoal: jamais Freud
coloca um ponto final em sua “doutrina”; dos Estudos sobre a histeria (1895) a Moisés e o
monoteísmo (1938), temos apenas remanejamentos, dúvidas, questões postas e respostas
abertas. E o conjunto resta pontuado por sinais de interrogação, que nenhum enunciado decisivo
aparece para abolir. . .
Essas interrogações, de resto, não significam absolutamente que a pesquisa não se apoie em
algumas certezas fundamentais. Mas trata-se, precisamente, de ‘certezas polêmicas) Com efeito,
é a concepção que o homem construiu de si mesmo, desde a idade clássica, que é destruída em
seus fundamentos. E a inquietação de Freud, ele mesmo de formação fortemente clássica, diante
dos resultados impostos por suas pesquisas, a desconfiança que ele demonstra no início, o
orgulho angustiado que termina por invadido — “eles não sabem que nós trazemos a peste”,
teria dito diante da acolhida calorosa que o público lhe dava quando de sua chegada aos Estados
Unidos —, tudo isso não pode ser explicado de outro modo. Essa concepção repousa, para
simplificarmos as coisas, numa equação: essência do homem = personalidade = consciência —
ego = eu = vontade livre. Pelo menos desde Descartes, é algo estabelecido — não apenas para o
pensamento metafísico, mas também para a reflexão sobre a ciência e a arte, para as teorias
políticas e morais — que a personalidade assim concebida é a fonte do conhecimento, a origem
da obra, o juiz da intenção e da ação. A materialidade, quer se apresente sob os aspectos do
corpo individual, da natureza, da máquina social, do corpo político, aparece como material,
como meio ou aglomerado dessa personalidade, a qual, se quer ser digna de sua essência, deve
se tornar consciência cada vez mais clara, ego sempre mais eu, vontade cada vez mais livre.
É com tal concepção que trabalham as instituições que emanam do poder: o ensino, sobretudo
quando se torna um problema do Estado no século XIX e tem por missão formar os quadros da
nação; a legislação e seus aparelhos, que prendem e castigam os rebeldes; a medicina “social”
(tornada psiquiatria), que põe os desviantes no isolamento; a política, que afirma defender a
coletividade e garantir a segurança “das pessoas e de seus bens” etc. Essas técnicas de controle e
de normalização encontraram sua legitimação e seu programa nas ideias filosóficas e políticas,
que foram apropriadas no século passado pelos práticos do governo, caricaturadas, a fim de
servirem de apoio à ordem burguesa. Quando Freud faz suas primeiras descobertas, é essa a
ordem que reina; talvez o que Robert Castel chama hoje de psicanalismo — a psicanálise
institucionalizada e instituidora de novos poderes no poder — resulte de uma certa
contaminação da doutrina pelo modelo estatal.
Qualquer que tenha sido, essa destruição da concepção tradicional do ego operada por Freud
desfecha um golpe mortal na imagem que a civilização tenta apresentar de si mesma; e os que se
ocuparam de minar os fundamentos da moral viram as coisas de modo correto. O ego não é
dado como essa unidade que tem de se constituir, pela auto-reflexão, como consciência clara e,
portanto, como vontade livre. A análise revela que a consciência é apenas um elemento da
individualidade; e que o fato de que nela se manifestem percepções e sentimentos não significa
absolutamente que ela seja seu elemento constituinte principal. Ao contrário do que supõe a
psicologia — a única diferença, sob esse aspecto, entre espiritualismo e materialismo é que o
primeiro considera o “sentido interno” como uma entidade autônoma, enquanto o segundo se
esforça por deduzi-lo ou induzi-lo de fenômenos observáveis, quer se trate dos processos
fisiológicos ou do comportamento —, o ego consciente é apenas um “lugar fronteiriço”, uma
instância adaptativa, inibidora e defensora, dependente de duas instâncias bem mais poderosas.
Esse “lugar fronteiriço” pode também ser considerado como uma resultante de duas forças que
o limitam, tanto cm sua forma como em seu conteúdo. Uma dessas forças é o Inconsciente, que
Freud chama também de ld. Na verdade, o ld é o constituinte primordial da individualidade, do
“ego”. Ele retira sua energia da própria força biológica, da exigência material das necessidades.
Mas, enquanto a psicologia está acostumada a introduzir uma relação simples entre necessidade,
tendência e desejo, considerando a passagem de um para o outro como uma elevação para a
consciência plena e para a espiritualidade, o estudo analítico mostra como essa energia se
apresenta como conjunto de pulsões', e como tais pulsões se realizam “no” inconsciente de cada
indivíduo enquanto traços mnésicos, sob a forma de “representantes” significativos de
experiências determinadas e reprimidas pela censura que — no campo do ego consciente — é
exercida por uma outra força que 6 o Superego.
Assim, na narração do sonho que é feita pelo Ego consciente, no lapso ou na omissão que ele se
esforça por decodificar, o que aparece é uma representação deformada desse “representante”
que remete a uma experiência pulsional decisiva. Ademais, Freud insiste no fato de que o
inconsciente é autônomo, que ele funciona conforme uma lógica que não é de modo algum a
dos encadeamentos racionais; que ele ignora as regras da sucessão temporal, por exemplo; que
ele fala, a seu modo, operando deslocamentos e condensações que contradizem o princípio de
identidade. Ao mesmo tempo, o que a tradição tem o hábito de colocar sob a categoria do
imaginário, desde os sonhos até os atos irrefletidos, desde os esquecimentos costumeiros até as
mais surpreendentes manifestações de “loucura”, torna-se objeto de um conhecimento
específico e não pode mais ser considerado nem como psiquismo normal empobrecido, nem
como pura e simples incoerência.
Vê-se facilmente o que o moralismo da pessoa privada ou pública, elemento das teorias
normativas do século XIX burguês, tem a replicar a uma tal concepção. E isso em medida tanto
maior quanto Freud explica o que é essa famosa instância moral que, há séculos, serve de
fundamento aos aparelhos legais que decidem sobre quem é criminoso ou quem é louco, e que
justificam vigilância e punição. Essa instância é o Superego. Também ele é um resultado: é o
produto da estrutura familiar. Essa última instaura proibições: a criança as interioriza; não
podendo contorná-las realmente, não apenas ela reprime a pulsão, mas instala ainda uma espécie
de tribunal pessoal que, por identificação com os pais, tem por função exercer uma vigilância
constante, fabricar ideais, favorecer a aceitação das coerções, além de desenvolver a
culpabilidade.
A descoberta freudiana do indivíduo como realidade complexa e radicalmente conflitual abre
caminhos insuspeitados. Iremos estudar as consequências que dela extraiu W. Reich a respeito
das condutas coletivas, quando se dispôs a explicar essa “aberração” que foi o fascismo e o
nacional-socialismo, aberração de que conhecemos várias réplicas a partir de então. Mas não
para aí a transgressão freudiana dos tabus que cercam a civilização contemporânea. Ela se
manifesta, em particular, na elaboração da teoria das pulsões. O trabalho analítico leva Freud a
reconhecer um conjunto de fatos que, também nesse caso, contradizem os princípios morais. A
tradição — quando se pretende lúcida — não poderia desconhecer a potência das necessidades,
das tensões corporais que reclamam uma descarga; tampouco pode ignorar o fato de que essas
necessidades são pontuadas, na consciência, pelos desejos. Todavia, como que para preparar um
bom terreno onde poderá se exercer a vontade reguladora e dominadora, a tradição compreende
as necessidades — e, mais geralmente, as tendências — como um sistema estreitamento ligado
ao estatuto de animalidade normal do homem. Esses impulsos internos são ligados aos
diferentes funcionamentos dos órgãos: são, embora mais complicados, algo similar aos instintos
dos animais. Além do mais, essa tradição pressupõe a existência — em virtude, antes de mais
nada, de uma conivência natural — de uma correspondência entre as necessidades e as
tendências, por um lado, e, por outro, os objetos de satisfação apresentados pela realidade.
Ora, ao introduzir a noção de pulsão e de “representante” da pulsão, Freud subverte essa bela
harmonia. /A pulsão situa-se na transição do somático ao psíquico; pertence ao primeiro por sua
energia, e ao segundo por seu estatuto. Enquanto fenômeno somático, a pulsão emana do corpo
inteiro e não desse ou daquele órgão. Assim, toda individualidade corporal produz uma pulsão
radical, a pulsão sexual, que Freud designa com o nome de libido, a fim de deixar bem claro que
ela não é nem redutível ao instinto de reprodução dos animais, nem à genitalidade adulta dos
humanos. Essa pulsão — que existe desde a infância — incide, segundo as etapas do
desenvolvimento, cm certas zonas do corpo. Mas o que marca para cada um o destino de “sua”
libido é a história libidinal com que se depara e os “representantes” que nela se constituem. A
libido tem sempre um “objeto”; ela se fixa; mas a natureza desse objeto não é de modo algum
predeterminada (como é o caso do objeto do instinto). . .
Em suma: tal como Sade e Fourier o haviam por vezes admiravelmente compreendido, toda
sexualidade é normal; e, se alguém ousa indicar perversões, é sempre apenas em referência aos
códigos inteiramente relativos de uma dada sociedade. Desse modo, dá-se um último golpe na
ideia de ordem e harmonia, herdada da teologia, retomada pelas ciências da natureza,
administrada pelas teorias políticas: uma ideia que, em última instância, é pressuposta até
mesmo por muitas doutrinas revolucionárias, como as de J.-J. Rousseau, de Marx ou de
Bakunin. Também aqui, o trabalho de Freud encontra-se com as intuições nietzschianas: o
discurso (ou o sistema de conhecimentos) que admite como evidência ou como postulado
implícito uma tal ideia não pode deixar de querer que ela seja respeitada, isto é, de desejar o
poder que irá impô-la.
Freud sublinha o fato de que o conflito que atravessa de alto a baixo, por assim dizer, a
personalidade, opondo os impulsos do Id, os ideais do Superego e os esforços adaptativos do
“Ego consciente”, complica-se por causa do caráter também conflitual das próprias pulsões.
Com efeito, se à libido resta o constituinte dinâmico fundamental, dela derivam — para logo
contrariá-la — as pulsões do Ego, que visam à conservação, à sobrevivência desse último, que
tendem a “economizar” a energia desencadeada da sexualidade. Como teremos oportunidade de
ver, ao examinar o texto de O mal-estar na civilização, não é possível supor que desse outro
conflito deva resultar, como se tratasse de um par de forças em mecânica, um equilíbrio.
Pulsões sexuais e pulsões do Ego (que se expressam também em pulsões de agressão) — ou, se
se prefere, Eros e Tanatos — coexistem na contradição violenta.) Com efeito, a busca veemente
da atividade que deve permitir a satisfação da libido, a procura do “objeto”, é — ao mesmo
tempo e indissoluvelmente — a busca desse estado de “nirvana”, de ataraxia, de indiferença,
que é como o equivalente vital da morte.
No início, está a libido; e, no fundo, está a morte) (não como fim, como castigo, mas como
momento da vida). Freud desenvolve uma ideia análoga em Para além do princípio do prazer
(1919). A locução preposicional que figura nesse título deve ser tomada ao pé da letra: não se
poderia explicar a complexidade das condutas, dos sentimentos contraditórios, das “doenças
mentais”, sem reconhecer que há algo “para além” da “vontade” de prazer, que há um princípio
de realidade, uma exigência de adaptação que se impõe precisamente ao “Ego consciente”, que
o torna tributário do chamado mundo exterior, que aumenta sua fragilidade e reforça suas
angústias. Essa dualidade entre princípio de prazer e princípio de realidade — fundadora da
teoria freudiana da civilização — leva-nos a pensar em outras teorias da civilização, emanadas
de preocupações bem diversas, mas também dualistas e realistas, e do mesmo modo, como é o
caso das teorias de Thomas Hobbes e de J.-J. Rousseau. Essa última, por exemplo, atribui à
natureza humana a liberdade definida como uso, sem reserva e sem limite, do poder; mas ela
acrescenta que, ao mesmo tempo, o homem tende a sobreviver, que busca seu bem-estar e faz o
que é preciso para atingir tal objetivo. Entre as duas exigências, há contradição; mas isso não
quer dizer que haja relação dialética (de destruição de uma pela outra; ou de superação de uma e
da outra por um terceiro termo sintético). Nisso reside, precisamente, a “quadratura do círculo”
que o contrato social representa. A liberdade resta fundamental, e a sobrevivência, necessária:
elas se implicam mutuamente, sem que se possa esperar que desse par de forças possa nascer
uma resultante. Assim, o pacto social conserva ambas, graças a essa “criação contínua” que é a
vontade geral onipresente.
J.-J. Rousseau, pelo menos em O contrato social, faz uma aposta: a de que a vontade geral
soberana seja capaz de se exercer. Freud é menos otimista. Quanto mais ele considera a
civilização, tanto mais se convence do mal-estar que ela provoca, cuja fonte — entre outras — é
o fato de que o princípio de realidade e o princípio de prazer fortalecem-se reciprocamente no
momento mesmo em que entram na mais vívida oposição; tanto mais se convence de que o
tumultuoso Eros encontra obstáculos cada vez mais rudes, de que o deus mudo Tanatos estende
seu império, e de que o desenvolvimento do bem-estar e da abundância, prometido pela
indústria, não deixa de modo algum prever a possibilidade de uma mudança, qualquer que seja,
nesse estatuto e nesse processo.
Para captar corretamente a importância dessa descrição, é preciso seguir de modo mais preciso
as análises contidas em O mal-estar na civilização, que Freud finge considerar uma obra de
entretenimento 43. Antes de mais nada, ele retorna a um texto de dois anos antes, O futuro de
uma ilusão, ou seja, à crítica da religião. O novo texto, mesmo conservando seu poder de
denúncia, tem uma função mais ampla: a de precisar algumas das categorias fundamentais que
irão permitir, mais tarde, a elaboração da teoria da civilização, da qual Totem e Tabu — escrito
quinze anos antes — constitui o primeiro elo. Assim, são reafirmadas a onipotência do princípio
de prazer (“senhor absoluto”44), a emergência do princípio de realidade (“que deve dominar
toda a evolução ulterior” 4B) e, sobretudo, a ideia da persistência no psiquismo do conjunto dos
traços mnésicos: “Nada na vida psíquica pode se perder, nada do que se formou desaparece,
tudo é conservado de um modo qualquer e pode reaparecer em certas circunstâncias favoráveis,
como, por exemplo, no curso de uma regressão suficientemente forte”
se essa hipótese (evidentemente não verificável) parece exagerada, deve-se pelo menos “admitir
que o passado pode se perpetuar na alma, que ele não é necessariamente sujeito à destruição”47.
A onipotência do princípio de prazer pode ser geralmente enunciada de modo banal: diz-se
correntemente — e é justo dizê-lo, embora não se saiba bem do que se está falando — que o
homem busca a felicidade. Ora, a verdade é que nada é dado para que essa busca seja satisfeita:
“É simplesmente o princípio de prazer que determina a vida, que governa desde a origem as
operações do aparelho psíquico. Não há dúvidas possíveis quanto à sua utilidade; e, apesar
disso, o universo inteiro [. . . ] busca questionar o seu programa [...]. Seríamos tentados a dizer
que não entrou de nenhum modo nos planos da ‘Criação’ que o homem fosse feliz”48. Com
efeito, a felicidade — “no sentido mais estrito” — é “a satisfação súbita de necessidades que
atingiram uma alta tensão; e, por sua natureza ela só é possível episodicamente” 40. Sendo
assim, o que os homens experimentam mais correntemente é o sofrimento: o que nos vem da
decadência do próprio corpo, o que resulta das agressões externas, o que “provém de nossas
relações com os outros seres humanos” B0.
Sendo assim, é bastante normal que, na ausência dessa felicidade intensa, as diversas sabedorias
tenham pregado como fim a alcançar a diminuição do sofrimento, chamando de felicidade
precisamente esse estado; que diversas técnicas tenham sido elaboradas para chegar a esse
estado. O eremita que foge de todas as relações humanas; a pessoa que se vale de drogas
químicas para “acabar com as preocupações”; a que desenvolve em si mesma, nas instâncias
superiores do psiquismo, procedimentos para matar suas pulsões, e que aceita diminuir suas
possibilidades de gozo para não ter de sofrer com sua não-satisfação; a que, valendo-se da
flexibilidade do aparelho, substituo objeto “real” de suas pulsões por objetos derivados que não
entram em contradição com a realidade natural ou social, e que o “sublima”, por exemplo, na
criação artística ou na atividade laboriosa; o que se atira no delírio, o que se torna louco, como
se diz; o que se entrega aos sentimentos e às práticas religiosas: todas essas pessoas são os
produtos e as vítimas dessa situação conflitiva, dessa guerra constante que se desencadeia entre
a libido e a pretensa ordem do mundo. E Freud não deixa de assinalar que, de todas as técnicas
enumeradas acima, as menos “irrazoáveis” não são as que habitualmente se crê: será que “a
fuga na doença nervosa, que promete pelo menos satisfações substitutivas”, não é melhor do
que “a religião”, que “prejudica esse jogo de adaptação e de seleção ao impor uniformemente a
todos suas próprias vias para chegar à felicidade e à imunidade contra o sofrimento”? 01.
Em tudo isso, que papel cabe à civilização? A idade clássica •— de Descartes aos
enciclopedistas — apresenta-a de bom grado como um remédio: a dominação da natureza
anunciada pelos progressos científicos, a implantação de sociedades mais justas, a difusão das
Luzes prometem um aumento do bem-estar geral. Forçoso nos é reconhecer hoje que a
realização parcial desse programa culmina num “deplorável fracasso>2. Isso não se deve ao falo
de que o empreendimento ainda não acabou: já agora, “podemos desconfiar que [.. . ] se oculta
aqualguma lede natureza invencível e que se trata [...] de nossa constituição psíquica”53. Pois c
incontestável que as instituições criadas pelo homem constituem uma fonte de sofrimento, e
que, na verdade, as coisas só fazem se agravar. Já a vitória do cristianismo (que depreciava a
vida terrestre) sobre o paganismo (que a exaltava), já o fascínio dos europeus do século
XVII“pela vida simples e feliz, pobre em necessidades, dos selvagens” 54, traíam a surda
inquietação diante do desenvolvimento da civilização. Hoje, descobriu-se “que o homem torna-
se neurótico porque não pode suportar o grau de renúncia exigido pela sociedade em nome de
seu ideal cultural;1e conclui-se que abolir ou diminuir notavelmente essas exigências
significaria um retorno a possibilidades de felicidade”55. É como se o triunfo de Prometeu,
domador do fogo e de seus poderes, só se realizasse ao preço da perda das mais profundas
alegrias do corpo.
De imediato, o catálogo das conquistas devidas ao saber científico e, mais geralmente, à
extensão da racionalidade torna-se irrisório, já. que cada uma dessas conquistas — fonte
aparente de satisfação — encontra sua outra face no aparecimento de um sofrimento mais
pesado: “Que nos importa [...] uma longa vida, se nos impõe tantas dores, se é tão pobre em
alegrias e tão rica em sofrimentos que saudamos a morte como uma feliz libertação?”56. Assim,
quanto mais a civilização se desenvolve, tanto mais aparece como um processo que se desenrola
“acima” da humanidade: “Esse processo, podemos caracterizá-lo por meio das modificações
que provoca nos elementos fundamentais bem conhecidos que são as pulsões humanas, pulsões
cuja satisfação constitui, entretanto, a grande tarefa econômica de nossa vida. [Esse processo]
repousa no princípio da renúncia a [essas] pulsões e [. . . ] postula precisamente a não-satisfação
das mesmas (repressão, remoção ou outro mecanismo qualquer)”57.
A esse nível da investigação, Freud se contenta em fazer essa constatação e em pôr o problema
— “encontrar um equilíbrio apropriado, ou seja, de natureza a garantir a felicidade de todos,
entre as reivindicações do indivíduo e as exigências culturais da coletividade” 58 —,
sublinhando sua dificuldade: “Não é fácil imaginar o que é possível fazer para recusar a
satisfação de uma pulsão. Isso não ocorre sem riscos: pois se essa recusa não se dá de maneira
econômica, vai-se na direção de grandes desordens” 59. O prosseguimento da investigação,
porém, vaipermitir um aprofundamento decisivo; e, retornando à hipótese formulada em Totem
e tabu sobre as origens da civilização totêmica (o assassinato do papelos, irmãos que se
associam para suportar o evento e constituir o primeiro codigo “jurídico”), Freud coloca a
primeira civilização sob os auspícios de Anangkê — a necessidade — e de Eros — o desejo. É
preciso trabalhar — sofrer — para garantir a sobrevivência; e a potência do desejo exige “que
não sejam privados nem o homem da mulher, seu objeto sexual, nem a mulher dessa parte de si
mesma que é o filho” 60. Ora, os dois princípios não tardam a entrar em conflito: o
desenvolvimento da civilização, com efeito, exige uma parte cada vez mais importante da
energia psíquica: “Como o ser humano não dispõe de uma quantidade ilimitada de energia
psíquica, não pode realizar suas tarefas se não através de uma distribuição adequada de sua
libido. A parte que é destinada a objetivos culturais, é subtraída, sobretudo, às mulheres e à vida
sexual”61.
Além dos tabus que incidem sobre as relações eróticas, “a estrutura econômica da sociedade
exerce [... ] sua influência sobre a parte da liberdade sexual que pode subsistir. [...] Ela adota, ao
fazer isso, um comportamento idêntico ao de uma tribo ou de uma classe de população que
explora e saqueia uma outra depois de a ter subjugado. O temor da insurreição dos oprimidos
incita às mais fortes medidas de precaução!, Nossa civilização europeia ocidental [.. . ] atingiu
[...] um ponto culminante nessa evolução”62: ela impõe à sexualidade genital a escolha de um
objeto limitado ao sexo) oposto, proíbe como perversas as satisfações extragenitais,'] restringe!
ainda a liberdade através das regras da legitimidade e da monogamia. No limite, confessa Freud,
só os débeis podem se acomodar com tais limitações, o que significa dizer que — sendo um tal
programa irrealizável —a hipocrisia é necessária! Qualquer que seja, “a vida sexual do ser
civilizado é [. .. ] gravemente lesada; por vezes, ela dá a impressão de uma função em estado
involutivo, como parece ser o caso, enquanto órgãos, de nossos dentes e de nossos cabelos” 3.
Assim, o projeto de Eros — reunir todos os seres que pertencem à mesma coletividade, e
inclusive todos os seres humanos, em um mesmo “amor” — volta-se contra ele próprio. O
destino da civilização mostra muito bem que “o homem não é um ser bondoso, com o coração
sedento de amor, do qual se diz que se defende quando é atacado; mas, ao contrário, um ser a
cujos dados pulsionais deve ser atribuída uma boa dose de agressividade. Para ele, por
conseguinte, o próximo não é somente um auxiliar e um objeto sexual possíveis, mas também
um objeto de tentação [...]. O homem é [... ] tentado a satisfazer suas necessidades de agressão,
a explorar o trabalho do outro sem meios-termos, a utilizá-lo sexualmente sem seu
consentimento, a se apropriar de seus bens, a humilhá-lo, a lhe causar sofrimentos, a martirizá-
lo e matá-lo”. Assim, a civilização tem de domar não apenas a libido individual, mas também a
agressividade “natural”.
Sobre essa última, Freud precisa que a sugestão dos comunistas — segundo a qual “o homem
[. .. ] não quer senão o bem do seu próximo, mas a instituição da propriedade privada viciou sua
natureza”, e para a qual “quando a propriedade privada for abolida [...], desaparecerão a
maldade e a hostilidade que reinam entre os homens” 65 — é uma concepção interessante, mas
ilusória: “Abolindo a propriedade privada, certamente se privará a agressividade humana e o
prazer que ela proporciona de um dos seus instrumentos; e sem dúvida de um instrumento
poderoso, mas não o mais poderoso. Em troca, nada teria sido alterado nas diferenças de poder e
de influência das quais a agressividade abusa, nem tampouco na natureza dessa agressividade. [.
. . ] O direito individual aos bens materiais seria abolido, mas subsistiria o privilégio sexual [...].
Poder-se-ia, ademais, abolir esse último privilégio, tornando a vida sexual inteiramente livre,
com a supressão portanto da família [...]; e, nesse caso, nada deixaria prever os novos caminhos
que a humanidade iria encontrar para o seu desenvolvimento. De qualquer modo, é preciso
prever o seguinte: qualquer que fosse o caminho escolhido, o traço indestrutível da natureza
humana o acompanharia sempre” 6.
Na sétima das Novas conferências sobre a psicanálise, ele aprofunda o mesmo tema. Depois de
emitir dúvidas sobre os postulados deterministas e economicistas que ele atribui ao
materialismo histórico, Freud constata que o marxismo praticado pelo bolchevismo russo não se
contentou em liberar a atuação da causalidade dos fatores econômicos: empreendeu a
transformação revolucionária da natureza humana. Por causa disso — e porque essa é uma
tarefa irrealizável —ele “assumiu características de uma concepção do mundo: a energia, a
coerência, o exclusivismo e também uma estranha semelhança com o que ele combate. Embora
deva sua origem e sua realização à ciência, embora tenha sido edificado sobre ela e segundo sua
técnica, lançou uma proibição de pensar tão inexorável quanto, em seu tempo, o foi promulgada
pela religião”67. “Banindo imperdoavelmente todos os sistemas idealistas e todas as ilusões, ele
mesmo criou novas quimeras que não são nem menos duvidosas nem menos indemonstráveis do
que as antigas [...]. Assim como a religião, o bolchevismo fornece a seus crentes — para aliviá-
los de seus sofrimentos, de suas privações atuais — a promessa de um além melhor, onde
nenhuma necessidade restará sem satisfação” 8. À objeção de que estamos apenas diante de uma
promessa, “ele responderá que é impossível agir hoje de outro modo, é impossível tratar
diferentemente homens pesadamente condicionados pelo passado, é impossível evitar os rigores
da educação, a proibição de pensar, o emprego da força, até mesmo da repressão sangrenta” 00.
Sem dúvida, conclui essa sétima Conferência, “na mesma época em que grandes nações
declaram esperar sua salvação apenas de sua fidelidade à fé cristã, a subversão que se produziu
na Rússia aparece — malgrado seus episódios penosos — como o presságio de um futuro
melhor [...]. Entretanto, o futuro [. . .] talvez mostre que a tentativa foi prematura, que uma
transformação radical da ordem estabelecida tem poucas possibilidades de êxito enquanto não
forem feitas novas descobertas que ampliem nosso poder sobre as forças naturais [...]. [Quando
isso ocorrer], talvez seja possível remanejar a organização social, suprimir a miséria material
das massas, respeitando ao mesmo tempo as exigências culturais do indivíduo”70. Essa
profissão de fé positivista, para não dizer mesmo cientificista, mal esconde o pessimismo radical
/de Freud: “A natureza humana dificilmente se dobra a qualquer espécie de comunidade
social”71.
Na verdade, como sublinha O mal-estar na civilização, essa última é um jogo de enganos: “O
homem civilizado troca uma parte de felicidade possível por uma parte de segurança” 72. Os
últimos capítulos desse texto estudam os mecanismos que facilitam essa má troca. Eles
recordam, em particular, os resultados já adquiridos em Para além do princípio de prazer: “Ao
lado do instinto que tende a conservar a substância viva e a agregá-la em unidades cada vez
maiores, deve existir um outro que lhe é oposto, tendente a dissolver essas unidades e a
reconduzi-las ao seu estado mais primitivo, ou seja, ao estado anorgânico. Portanto,
independentemente da pulsão erótica, existiria uma pulsão de morte”73. Essa última constitua
raiz mesma da agressividade que se opõe à força dessa espécie de Eros generalizado que, para
além das exigências de sobrevivência, impeliria os homens a se unirem por um laço libidinal: a
“pulsão agressiva é a descendente e a representação principal do instinto de morte”; é nela que
“a civilização [ . . . ] encontra seu mais temívelobstáculo”74. Assim, se recordarmos as
primeiras páginas do texto, perceberemos que a realização da civilização, ou seja, da
organização social estável, serena, transparente, asseguradora do bem-estar e da segurança de
seus membros — valor que o Estado-Nação se atribui como objetivo primordial, quer seja
liberal ou socialista —, choca-se com dois obstáculos. Em primeiro lugar, como acabamos de
ver, com a agressividade;1 mas também, em segundo, com outro obstáculo situado, de certo
modo, aquém da agressividade: com o fato de que a libido que conciliaria todos os homens só
pode ser construída em detrimento da pulsão libidinal individual, que tem de ser inibida,
deslocada, sublimada ou convertida em neurose.
Ao mecanismo inibidor da pulsão erótica, que começa com a repressão da sexualidade infantil,
corresponde um mecanismo igualmente sutil, que visa a “inibir a agressão, [a] tornar inofensivo
esse adversário e talvez eliminá-lo” 75. “A agressão é [. . . ] interiorizada, mas também — na
verdade — remetida ao próprio ponto de onde partiu: em outras palavras, é voltada contra o
próprio Ego. Lá, ela será retomada por outra parte desse Ego, a qual — enquanto Superego —
irá se colocar em oposição à outra parte. Então, na qualidade de ‘consciência moral’, ela
manifestará diante do Ego a mesma agressividade rigorosa que o Ego gostaria de satisfazer
contra indivíduos exteriores” 76. Isso se chama também de “sentimento de culpa”? manifesta-se
sob a forma de “necessidade de punição”. Examinando a questão mais de perto (e tomando em
consideração os estudos de Totem e tabu), o sentimento de culpa tem duas fontes: uma, externa,
que resulta da angustia em face da autoridade que, segundo Freud, é exercida pelo pai, e que
obriga a renunciar à satisfação das pulsões, quaisquer que sejam elas; uma outra, interna, é a
angústia diante do Superego, que se torna angústia moral. Quanto ao assassinato do pai(se
quisermos conservar essa hipótese), ele não resolve nada: se liberta da coação externa, se
satisfaz a pulsão agressiva, se permite o estabelecimento do código pelos irmãos associados,
engendra o remorso por causa “da ambivalência de sentimentos inteiramente primitiva diante do
pai: os filhos o odeiam, mas também o amam”77. Desse modo, o Superego transforma-se numa
espécie de legatário que conserva e detém o dever de punir os que cometeram o crime e todos os
que poderiam querer cometê-lo. É essa a significação “do direito e da moral”! \Ú0
A lição dessas diversas reflexões, fundadas ao mesmo tempo no trabalho analítico e no destino
dos povos, é clara: o êxito da civilização, que pretende o pleno florescimento dos indivíduos,
das coletividades, da humanidade, só pode ser conseguido ao preço da remoção das pulsões.
Ora, “quando uma pulsão [. . .] sucumbe diante da remoção, seus elementos libidinais se
transformam em sintomas e seus elementos agressivos em sentimentos de culpa” 7P. Isso
significa que a civilização leva a uma escolha entre neurose e culpabilidade (ou uma
combinação delas). Freud enxerga “uma certa solução, supondo certamente que o processo de
civilização é irremediável. Essa “solução”, ao que parece, apoia-se em dois desejos: "que o
agravamento constante do sentimento de culpa atinja “um nível tão elevado que o indivíduo
encontre dificuldade em suportá-lo” 70; e que o atual crescimento das pulsões de morte,
auxiliadas pelos progressos técnicos, apele à “outra das duas ‘potências celestes’, o Eros eterno,
[para que ele] tente um esforço no sentido de se afirmar na luta que trava contra seu adversário
não menos imortal” 80.
Em última instância, é também a uma condenação que, após Nietzsche, Freud chega;
não a uma condenação dessa ou daquela forma de poder, não desse ou daquele
sistema de ideias, não dessa ou daquela vontade. O que ele põe em evidência é o
extraordinário desconhecimento de si que está no âmago do novo Leviatã. Nietzsche
fez o processo da dialética que reduz as oposições efetivas a contradições lógicas,
quebrando, em nome da Razão, as forças da invenção. Freud denuncia as ilusões da
positividade que — sob os auspícios da Verdade limitada aos simples legados e do
Bem entendido como bem-estar — esquece, em sua ânsia de dominação a
profundidade e a complexidade do real.)

3 / A Racionalidade Científica contra a Razão


São também as simplificações excessivas da dialética e a falência da positividade o que é
sublinhado pelas transformações das ciências formais e das ciências da natureza. Como veremos
nos capítulos seguintes, o pensamento político do primeiro terço deste século — quer se queira
gestionário ou teórico — aceita de bom grado não apenas a ideia do progresso (cumulativo ou
dialético), dominante no século XIX, mas também a concepção da atividade científica que foi
formulada pela filosofia positivista. Ora, através de uma série de crises, que atingiram
inicialmente as matemáticas e depois a física e a química (e, por conseguinte, a biologia), os
cientistas descobriram que suas práticas não correspondem de nenhum modo aos esquemas
metodológicos, à história imanente, às modalidades de raciocínio que a leitura positivista lhes
atribui. Produz-se assim, a partir disso, uma defasagem cujos efeitos deveremos seguir até nas
chamadas ciências humanas, que se pretendem regentes ou, pelo menos, auxiliares da política.
Sabe-se que, na origem da interpretação positivista, encontra-se um certo número de
descobertas científicas, como, por exemplo, as leis da termodinâmica de Carnot (1824): essas
leis, justificadas pela verificação experimental, consistem em enunciados que não deixam lugar
para nenhum pressuposto relativo à natureza do calor; além disso, elas têm a vantagem de
permitir .amplas previsões empíricas e de definir assim técnicas seguras. Auguste Comte
deduziu a lição de que a nova ciência, finalmente consciente de sua essência, afastou
definitivamente a hipótese metafísica que pesava sobre ela, mesmo depois da “revolução”
galilaica-cartesiana, e de que urna nova era começava, na qual os dentistas não mais
dissertariam indefinidamente sobre as essências, mas se contentariam em relacionar os
fenómenos entre si por meio de leis simples, expressas (se possível) matematicamente, a fim de
prever com toda segurança e de levar a cabo o projeto humano de dominação da natureza.
No mesmo momento, na Inglaterra, alguns pensadores — que se acreditavam continuadores do
projeto crítico de John Locke e de David Hume — forneciam provas análogas. J. S. Mill, por
exemplo, esboça o catálogo dos métodos que o cientista tem de seguir se deseja livrar-se das
ilusões metafísicas, e ater-se apenas à constatação factual. Á referência apenas à experiência, o
critério da previsão, a articulação da ciência de laboratório com técnicas em uso nas
manufaturas consagram assim a autonomia do campo científico, que pode doravante desprezar
todas as exigências filosóficas de fundamentação. Deus é uma questão de moral, as entidades
dos metafísicos não passam de ilusões: o homem, observador e experimentador, é doravante
livre para organizar a natureza física e a realidade social em função de leis comprovadas, e para
fazê-lo em favor de sua maior; utilidades.
Desse modo, o positivismo — que tomará o bastão do evolucionismo filosófico, depois de se
terem imposto as hipóteses de Darwin — constrói uma nova filosofia da história Depois da
filosofia cristã, que faz com que o destino da Cidade dos homens dependa em última instancia
do destino triunfante da Cidade de Deus; depois da filosofia iluminista, que concebe o devir
como progresso das riquezas e da moralidade graças ao desenvolvimento das luzes e das obras;
depois da grandiosa dramaturgia elaborada por Hegel, esboça-se a ideia de uma evolução por
etapas, inteiramente centrada nas modificações ocorridas na explicação da realidade pelo
homem.
Num primeiro momento ele recorria aos deuses; mais tarde, inventou princípios abstratos aos
quais atribuía a inteligibilidade. Num e noutro caso, buscava causas: e não deixava de encontrá-
las. Hoje — na era positiva —, ele compreendeu que a busca da causa é votada ao fracasso e
proporciona uma falsa inteligibilidade A questão “por t quê?” perde sentido: basta saber
“como”.)
Nessa perspectiva, torna-se possível não apenas captar a ordem ao mesmo tempo lógica e
cronológica da emergência das disciplinas científicas, mas também conferir . estatuto de ciência,
a uma atividade política que seja finalmente eficiente, ou seja, que assegure a ordem e o
progresso. Com efeito, a classificação das ciências — que é também sua história — revela uma
lacuna que o pensamento positivo é agora capaz de preencher. Quando renunciamos às
“explicações” religiosas ou metafísicas que especulam sobre a natureza do Ser ou de Deus,
tornamo-nos capazes de tratar cientificamente esse objeto que ó a sociedade/) Coroamento do
edifício, a estática e a dinâmica sociais, procedendo por meio da observação, determinam as leis
que governam a vida política e, a partir disso, podem promover as técnicas apropriadas ao bom
governo.
Pouco importa aqui que Auguste Comte, fundador da sociologia, e o filósofo britânico Herbert
Spencer tenham militado ambos em favor do fortalecimento da ordem existente, ou seja, em
favor da; y hegemonia mundial da civilização industrial; e isso em nome da novidade. O que
interessa é ver quê o conjunto das concepções positivistas desfrutou de um crédito tal que os
cientistas as aceitaram naturalmente como modelos. Ora, é precisamente esse mesmo modelo
que a prática desses mesmos cientistas e os resultados por eles obtidos desmentiram. Ao mesmo
tempo, são rejeitados como não mais operatórios princípios até então tomados como evidências
e que, bem além do positivismo, constituem os pilares da “concepção moderna do mundo”
(desde a época clássica). Alguns exemplos nos irão permitir compreender a amplitude dessas
transformações, que põem em questão não somente o estatuto da ciência, mas também uma
doutrina corrente da natureza, da qual se extraem — implícita ou explicitamente — preceitos
morais e políticos.
Tomemos um primeiro exemplo retirado da matemática. Desde Euclides, geómetras e físicos
(esses a partir da revolução galileana) concebem a geometria como tendo seu objeto no
conhecimento do espaço (e isso quaisquer que possam ser as divergências quanto às relações
entre esse espaço conhecido e o espaço percebido). A “Estética transcendental” da Crítica da
razão pura (1781) de Kant chegou mesmo a dar um fundamento filosófico ao fato de que tal
conhecimento elabora enunciados necessários, ou seja, enunciados que não podem ser diferentes
do que o que são. Ora, eis que os geómetras, em seu trabalho, demonstram — procedendo
exatamente como o fez Euclides, respeitando as mesmas regras formais — que é possível
construir, sem se deparar com a menor contradição, outros espaços que não o de Euclides, sobre
o qual Galileu e Newton se apoiaram para construir a física; que esses espaços são igualmente
necessários e que seus enunciados são diferentes. Sendo assim, o que significa, em tal registro, a
necessidade? E uma questão puramente interna e muda todas as vezes que decidimos mudar a
regra do jogo? Trata-se, assim, de um jogo? De um puro formalismo? O que resta da
“aplicabilidade” das matemáticas? O que se quer dizer quando se apresenta a geometria (ou a
aritmética) como expressão da mais alta racionalidade? Que valor ontológico pode ter urna tal
racionalidade?
A crise que atinge então as matemáticas é, em primeiro lugar, uma crise interna; ela se agrava
ainda mais quando a reflexão propriamente teórica do geómetra faz aparecer outras hipóteses
iniciais — outros enunciados — que propõem espaços ainda mais inesperados, os quais,
conservando todo o seu rigor, desafiam as fantasias mais insensatamente abstratas. Mas a crise
tem um alcance maior. Antes de mais nada, destrói uma ideia muito solidamente enraizada: a da
evidência) Com efeito, o próprio dos axiomas de Euclides é que eles parecem evidentes, mesmo
a quem não é geómetra. Com a construção das geometrias não euclidianas, concretiza-se a
ruptura entre a elaboração conceituai, que produz uma linguagem, e a realidade percebida. Os
“a priori” do realismo — a ideia é sempre, de algum modo, um reflexo do real — ou do
idealismo — o real é sempre uma cópia mais ou menos imperfeita da ideia -— são afastados
como não pertinentes. A relação entre o empírico (o vivido) e o conceitua(o científico) não é
dessa ordem. Trata-se de níveis diferentes: lá, do dado (resultado de construções esquecidas);
aqui, das regras de construção rigorosamente definidas e conhecidas.
Em segundo lugar, a coexistência no seio de um mesmo edifício
— a geometria — de uma mesma atividade racional formal e de espaços múltiplos e diferentes
levanta dúvidas sobre uma implicação fundamental, até agora tida como obrigatória, entre a
Razão e a Unidade. O trabalho racional pode produzir uma pluralidade de objetos; não é
absolutamente necessário que esses se articulem segundo relações de integração ou de
hierarquia simples. Decerto, é possível construir um dicionário cie correspondências entre os
termos das geometrias de! Euclides, de Riemann e de Lobatchevski. Mas estamos em face,
nesse caso, de relações extrínsecas. Além do mais, a partir dessas descobertas, outros tipos de
espaço foram elaborados, de tal modo que se deve admitir a possibilidade de um
desenvolvimento indefinido da geometria. Desse modo, entra em colapso este tema comum a
todo o racionalismo clássico, do qual Kant fora o teórico mais radical: a matemática como
sistema formal não é um universo fechado e transparente, uma linguagem suprema e finita da
Razão em ato. É o lugar de um trabalho onde, incessantemente, podem aparecer novidades que
mantêm com o que já foi adquirido relações de inteligibilidade, mas que possuem sua
originalidade.
Dessa crise, é preciso deduzir, finalmente, que a famosa fórmula de Galileu — “a natureza
escreve em linguagem matemática” — é menos uma solução do que um indicador de problemas
complexos, que não são apenas de ordem técnica, como, por exemplo, o da adequação entre os
dados da experimentação c os enunciados quantitativos. Se existem vários espaços, vários tipos
de número, a qual dentre eles irá recorrer o físico? Será uma escolha arbitrária e motivada pela
comodidade? Não haverá conivências entre as construções abstratas e os “níveis de realidade”
que se quer esclarecer? Essas interrogações, pressentidas por Leibniz, recolocam sob outra
forma a velha questão das relações entre a matemática e o real, e, mais geralmente, a questão do
estatuto da linguagem das ciências.
Nessa mesma perspectiva, pode-se evocar — sempre a título de exemplo — uma outra crise: a
que foi introduzida pela descoberta da teoria da relatividade. Qualquer que tenha sido o destino
dessa teoria no interior da própria física, e por mais aberrantes que tenham sido algumas
especulações filosóficas que ela provocou, a teoria da relatividade abalou profundamente não
apenas a serenidade da mecânica clássica, mas também — de modo mais amplo — a concepção
que se tinha da ciência, uma concepção que se valia ,de Descartes, de Kant ou de Auguste
Comte O cientista, como se supõe, 6 aquele que sabe se separar de seu. ponto, de ..vista
empírico, o situar-se num lugar abstrato de onde é possível “ver” a própria coisa; é quem
elabora os métodos graças aos quais entende o objeto em toda sua objetividade; é quem observa,
experimenta, mensura de tal modo que, descontando-se todas as limitações impostas pelos
aparelhos que utiliza, nenhuma dúvida possa surgir quanto à validade universal dos resultados
que obtém; em suma, é quem é capaz de conhecer o real tal como ele é.
Essa visão simples se baseia, por sua vez, em hipóteses simples: a de que existe uma natureza
unificada, um espaço único, leis de/ " causalidade que constituem, ao mesmo tempo, uma ordem
das razões; a de que o espírito humano mantém uma espécie de cumplicidade com a realidade,
que lhe permite “produzir” a inteligibilidade. Essas diversas hipóteses podem ser resumidas na
seguinte fórmula: é sempre possível operar medições corretas. Ora, baseando-se na experiência
fracassada de Michelson e Morley, Einstein deduziu esta lição: a de que medir é uma questão
difícil, e que essa operação, aparentemente fácil, coloca problemas que questionam a totalidade
da física..; A mecânica clássica!— obnubilada pelo princípio da simplicidade — esqueceu-se de
levar em conta fatores determinantes: entre outros, a velocidade do objeto observado, a do
sujeito . que observa e as posições respectivas de um e de outro.
Essas considerações têm consequências embaraçosas: traduzindo-as em linguagem vulgar,
levam a admitir que o espaço, o tempo, a massa não são invariantes, mas se transformam em
função das condições da medição; e que, se os teóricos clássicos puderam considerá-los como
imutáveis, foi porque só consideraram os corpos em ¡velocidade média. Assim, o grande
trabalho de reunificação da realidade física, realizado com sucesso por Galileu e completado por
Newton, está superado. A depender do nível de real a que visemos, temos de admitir físicas
cujos enunciados são diferentes. Ã pluralidade dos espaços formais, responde (mas sem por isso
se corresponderam) uma espécie de “pluralidade dos mundos”, fundada sobre exigências
impostas pela realização do experimento.
Sendo assim, q, ciência não pode mais ser considerada como um catálogo, racionalizado dos
diversos resultados obtidos graças a uma observação atenta e a uma experimentação meticulosa.
O ritmo que J. S. Mil propôs como modelo à atividade científica — e que foi subscrito pelo
positivismo: do fato ao fato através da ideia (ou ainda: da observação à hipótese e, dessa, à
verificação experimental) — não pode ser aceito. A elaboração de um sistema pressupõe a
construção de uma “teoria”, que resulta — por sua vez — de uma crítica da teoria anterior.
Observemos, imediatamente, que fazem parte dessa teoria não apenas sequências conceituais,
mas também e cada vez mais elementos materiais constituídos pela aparelhagem experimental
utilizada. Dessa teoria, são deduzidos conhecimentos que vão atuar como princípios de
inteligibilidade e ser submetidos à verificação experimental, a qual resta certamente a pedra-de-
toque última. Mas a verificação só intervém tardiamente; e, quanto mais o sistema de
observação intervier no sistema observado, tanto mais a realização da verificação será delicada,
de modo que é necessário medir a ação do primeiro sistema sobre o segundo. Pode-se ver
claramente, aqui, que a verdade de um conhecimento •— embora vise a “reproduzir”
abstratamente a estrutura do objeto considerado — não é separável do contexto teórico no seio
do qual foi construída.
Pode-se observar também, desde já, que a ciência física — ao proceder dessa maneira — chega
por outros caminhos a algumas das intuições metodológicas mais interessantes formuladas por
Marx ! e Engels. Os fundadores da crítica da economia política haviam corretamente
compreendido, desde 1857, que o erro cometido por Adam Smith e David Ricardo no problema
da medida do valor de uma mercadoria não resultava de uma observação insuficiente ou viciosa.
Ao contrário: à primeira vista, a observação pode ser considerada correta; mas o que a torna
insuficiente é o pressuposto teórico no interior do qual ela foi efetuada (nesse caso, a existência
do homo oeconomicus e da ordem capitalista considerada como necessária). Para alcançar um
conhecimento que torne inteligível seu objeto, é preciso criticar essa própria teoria, seu projeto
científico e sua significação política 81.
Deve-se ressaltar, finalmente, que historiadores da ciência, à luz dessa transformação do
trabalho de pesquisa, foram capazes —
como é o caso de Gaston Bachelard, Alexandre Koyré e Georges
Canguilhem 82 — de analisar as grandes invenções de Galileu e de Newton e de interpretá-las
numa perspectiva análoga. Decerto, a acumulação de observações durante o período medieval, o
salto à frente no conhecimento do céu e da terra provocado pelos novos meios de investigação,
os progressos técnicos dos engenheiros desempenharam um grande papel. Mas, para que se
operasse a mutação decisiva que conduziu à ciência clássica, era preciso um catalisador: foi
renovação audaciosa da velha hipótese de Aristarco de Samos, segundo a qual o observador que
pode julgar objetivamente sobre o movimento dos astros não é este ser empírico que percebe a
partir da terra, mas um ser abstrato situado em um ponto no qual não mais se pode estar
empiricamente, ou seja, no sol. Em suma, uma ruptura teórica. . .
Um último exemplo vai permitir completar o quadro dessa “revolução”. Desde a fundação da
química por Lavoisier, um problema preocupava fortemente os pesquisadores, um problema que
se tornava cada vez mais agudo à medida que se iam descobrindo elementos químicos mais
numerosos: o da classificação desses elementos. As tentativas realizadas nesse domínio não
eram operatórias, na medida em que não chegavam nem a articular as diversas propriedades
desses elementos, nem levar em conta os elementos recentemente descobertos. D.I. Mendeleev,
por volta de 1870, chegou a organizar sistematicamente os elementos então conhecidos,
mediante uma classificação periódica que utilizava as propriedades químicas dos mesmos (a
valência) e suas propriedades físicas (o peso atômico); e isso era feito sob a forma de um quadro
de dupla entrada. Essa importante descoberta não foi aceita enquanto seu autor viveu, embora
muitos fatores interviessem em seu favor: cm particular, o fato de que a integração dos corpos
recém-descobertos nessa classificação podia ser feita com facilidade, como se as casas vazias
esperassem suas definições.
Ora, Mendeleev partilhava o ponto de vista positivista: recusava-se a formular qualquer hipótese
sobre a natureza do elemento em questão e conferia ao sistema proposto um valor
essencialmente utilitário, para não dizer mesmo pedagógico. E Isso a tal ponto que, quando se
decidiu acrescentar à valência e ao peso atômico uma outra determinação, o número atômico,
correspondente apenas ao lugar do elemento no quadro lido linha a linha, ele considerou que se
tratasse apenas de mais uma comodidade. Os desenvolvimentos ulteriores da química iriam, ao
mesmo tempo, confirmar de maneira esmagadora a justeza da classificação e desmentir o
preconceito filosófico que a acompanhava. Com efeito, quando se chegou a provar que o átomo
não é de modo algum a parte indivisível da matéria, que ele próprio é constituído de partes mais
sutis — um núcleo central e camadas de elétrons gravitando em torno —, percebeu-se que o
número atômico, longe de ser uma determinação extrínseca, algo como uma etiqueta,
correspondia precisamente ao número de elétrons do elemento tomado em consideração8a.
Mendeleev, limitado pela ótica dominante em seu tempo, mas impulsionado pelo rigor de suas
pesquisas, fora mais longe e mais fundo do que ele próprio imaginara. Provou-se, assim, que o
positivismo é incapaz de explicar a atividade científica. Se é justo dizer que as ciências são
conjuntos bem articulados de enunciados, isso não significa que sua função seja simplesmente a
de nomear os fenômenos e suas relações regulares, que a lei agrupe sob um mesmo enunciado
as sequências fenomênicas que se repetem e que sua ação se reduza à previsibilidade. Se não há
nenhuma razão de conjunto para que a natureza seja assim e não de outro modo, se só a prática
experimental pode decidir o que é um fato, continua a ser válida a ideia de que os
conhecimentos científicos são princípios de inteligibilidade que, em cada época determinada,
informam sobre a estrutura da realidade. Os objetos que esse conhecimento constroem, por mais
abstratos que sejam (o elemento, o átomo, o elétron), não são nem representações nem termos
cômodos, mas resultados: resultados de um duplo trabalho conjunto de dedução c de
experimentação, cuja finalidade — levando-se em conta o aparelhamento mental e material — é
o de revelar o que é esse conjunto de objetos chamado natureza, no seio do qual nós vivemos.
Em outras palavras: é legítimo falar de conhecimentos científicos verdadeiros. A descoberta de
Mendeleev mostra que, se houve uma longa época na qual o adversário mais resoluto desse tipo
de verdade foi crença religiosa ou metafísica, ocorreu desde o inicio do século passado, de
modo singular, que os Saberes constituídos, as “concepções do mundo” fechadas, as filosofias
especulativas, quer pretendessem um racionalismo exigente ou um amor implacável pelos fatos,
eram com frequência obstáculos ao livre desenvolvimento desses conhecimentos.

Desses três exemplos, parece emergir claramente que as filosofias da ciência — entendendo-se com essa
expressão tanto as que confiam na ciência quanto as reflexões sobre as ciências visando a compreendê-las
melhor do que elas mesmas o fazem — enganaram-se sobre o estatuto do desenvolvimento científico. Na
maioria das vezes, esse desenvolvimento foi entendido como acumulação. Uma vez completada a mutação
decisiva do século XVI, supunha-se que as ciências progrediriam acrescentando novos resultados aos
resultados já adquiridos, aduzindo aos terrenos conquistados terrenos complementares e outros a esses,
aperfeiçoando a linguagem, multiplicando as aplicações abstratas e técnicas; o processo se estenderia do
mesmo modo como se desenvolve a história, onde aos eventos passados se somam elementos novos e de igual
natureza, ou tal como se processa a exploração de um território. E a ideia subjacente a essa perspectiva — ideia
herdada da teologia das religiões monoteístas — é que chegaria um momento em que a acumulação seria
suficiente para que se pudesse supor que ela terminou, que a história chegou a seu fim e o território foi
conhecido. È isso para que o homem chegasse a ser o proprietário onipotente e feliz do local onde reside. ..
Ora, as crises que acabamos de evocar estabelecem que, se há um progresso dos conhecimentos,
um domínio cada vez maior da natureza, esses não consistem num amontoamento de verdades,
mas resultam de uma série de rupturas, de transformações dos sistemas conceituais e dos
materiais de investigação; estabelecem que, a partir desse fato, a ideia de um fim (ou de um
desenvolvimento suficiente) é inadmissível Cada descoberta é índice de uma nova pesquisa, que
levará a uma outra descoberta, ou exigirá uma reelaboração completa da teoria, arrastando a
investigação para novos setores. Se a ciência parar um dia, não é porque terá chegado a seu
termo (ou porque será “suficiente’’), mas porque se terá tomado uma decisão nesse sentido.
Porque se terá tomado uma decisão nesse sentido. . . Essas crises — que marcam o terceiro
tempo do século passado e a primeira década deste século — manifestam uma surda
inquietação. Essa só fez se desenvolver, especialmente depois da grande depressão dos anos
trinta e do fim da Segunda Guerra Mundial. As questões propriamente epistemológicas
referentes à natureza da racionalidade científica se multiplicam; a famosa questão das relações
de incerteza estabelecidas por Heisenberg — segundo as quais é impossível, dada a natureza
mesma do processo experimental que revela o objeto, medir exata e conjuntamente a posição e a
quantidade de movimento de um corpúsculo, e, por conseguinte, é impossível aplicar
estritamente à realidade microfísica o determinismo clássico — renova a interrogação referente
à unidade da física e à transparência da ciência. Os desenvolvimentos mais recentes da biologia
tendem a mostrar que o trabalho do investigador consiste menos em constituir campos
unificados submetidos a leis simples do que em diversificar as abordagens, em definir ângulos
de incidência singulares e em aprofundar suas capacidades de investigação, reconhecendo assim
a extraordinária diversidade da esfera do vivo e levando em conta a resistência que a realidade
opõe aos modelos que a preocupação metodológica apressadamente tentou impor. É com uma
diversidade semelhante, ao que parece, que se deparam os desenvolvimentos da astrofísica,
concomitantes ao empreendimento da conquista espacial: essa última, embora seja bastante
decepcionante no plano teórico, revela pelo menos o fato de que os espaços interplanetários,
longe de se reduzirem a alguma substância homogênea c quase vazia, são superpovoados de
objetos misteriosos c diversos, e de que neles tem lugar sopros, ventos e correntes múltiplas...
Nesse domínio epistemológico, tudo se passa como se a potência do que pode continuar a ser
chamado de a ciência tivesse aberto à sua ação domínios tão complexos que ela tem de
renunciar a pretensões unificadoras; É preciso admitir, para poder continuar a trabalhar, que a
inteligibilidade,, é plural e que o ideal cartesiano da mathesis universalis é perigoso. E isso não
porque se tenha regressado à serenidade preguiçosa do positivismo, mas porque os cientistas —
em suas práticas — percebem que não há nenhuma razão para que o real seja simples; e que,
sendo posta a exigência de racionalidade, os processos de inteligibilização são múltiplos. Ora,
às sociedades e à política, esse ensinamento permanece estranho. Com efeito, os dirigentes e os
assessores dos dirigentes continuam a se reclamar prazerosamente do pensamento científico: em
geral, eles se pretendem racionalistas — ao modo das ciências — e progressistas — ao modo e
com os instrumentos da técnica de inspiração científica. Mas é relevante constatar que eles se
mantiveram presos, no mais das vezes, seja à ciência clássica, seja à sua versão positivista.
Sendo assim, também nesse caso, como no de Nietzsche, de Freud ou de Einstein, a
consideração do estatuto atual das ciências faz ruir essas certezas pretensamente fundamentais e
profetiza a entrada em ação de uma racionalidade inteiramente diferente, em seu
funcionamento, da que guiou os séculos clássicos.
Todavia, a evolução contemporânea das ciências intervém de outra maneira; ou seja, na medida
em que a atividade científica tornou-se parte decisiva da vida social (e não somente na medida
em que, combinada à indústria, integra-se às forças produtivas, mas também e sobretudo em que
sob o aspecto da economia política, da informática e das ciências da administração c da
comunicação, torna-se um elemento constitutivo da administração da coletividade), nessa
medida, ela é afetada por modificações significativas. A institucionalização das ciências como
forças sociais, as perturbações de ordem epistemológica que disso resultam, as sujeições que
essa situação provoca constituem indicações sobre a dogmática que os poderes públicos tendem
a instaurar, valendo-se precisamente da racionalidade científica como modelo e como
instrumento. Um dos aspectos mais marcantes dessa dependência em que se encontra a ciência
reside na própria exigência de realização técnica, que emerge da obrigação da rentabilidade. O
que a ciência, ao fazer aliança com o Leviatã, ganhou em poder perdeu em liberdade. Como
estamos hoje distantes da alegre ciência que faz frequentemente pensar em Jules Verne! Existe
assim, no interior da atividade de pesquisa, uma tensão entre a ciência preocupada cm servir e a
ciência empenhada em descobrir e inventar; de certo modo, essa tensão expressa e duplica uma
oposição que atravessa nossas sociedades, a oposição entre os que temem permanentemente que
não se tenha o poder e os meios para exercê-lo e os que, ao contrário, pensam que há sempre
poder em excesso e que um dos meios de pôr fim à sua ineficiência é revelar seus mecanismos.
Nessa mesma perspectiva, não é possível deixar de evocar a “rebelião” ecológica, que contesta
o poder da ciência sublinhando a irracionalidade profunda que presidiu a realização do famoso
programa cartesiano de dominação e controle da natureza. Não será uma leviandade condenável
pressupor uma ordem global da natureza quando se trata de garantir sua apropriação
cognoscitiva, c, ao mesmo tempo, subestimar essa ordem quando a urgência da conquista impõe
a apropriação efetiva de um setor ou de uma região da natureza? Não será uma criminosa
inconsequência acreditar que é possível degradar todo um território sem pensar que, desse
modo, se afeta gravemente os que o habitam e até os homens que se pretende servir?

4 / A Arte contra o Peso das Coisas


Desde o início deste século, uma outra atividade — na elaboração de suas práticas e na
definição de seus fins — se depara com dificuldades que prefiguram as contradições das
sociedades contemporâneas e os obstáculos que terão de ser enfrentados pelos que tentam geri-
las ou pensá-las: a atividade artística. Os sucessos que ela consegue são exemplares e têm uma
significação que ultrapassa seu bom êxito formal. Essa referência à Arte pode parecer banal: não
estaremos diante de um gênero onde a novidade e a originalidade são tão necessárias que as
contradições se tornam a regra? Todavia, no domínio das artes plásticas, da música, da dança,
do teatro, da literatura, surgem problemas novos, que recebem soluções inesperadas.
Essas novidades não podem ser avaliadas corretamente se não nos referirmos às rupturas que
elas provocam em seus domínios próprios. É preciso recordar que a Arte entendida como objeto
e como fim de uma atividade específica, separada das outras atividades e concebida no mais das
vezes pelos seus praticantes como superior a essas, é um fato relativamente recente em nossa
cultura. Até o Renascimento, provavelmente, e até a época clássica, mais seguramente, não
existe uma diferença qualitativa propriamente dita entre o artista e o artesão: um e outro, tanto
na Antiguidade quanto durante o chamado período medieval, são “fabricantes” que se
distinguem por sua habilidade, por sua inventividade, ou pela natureza do material com que
trabalham. (Assim, Fídias é concebido como um dos operários que trabalham na construção da
Acrópole, com a diferença apenas de que ele trabalha com ouro ou marfim, enquanto os demais
trabalham com o mármore.) Quanto à ideia da Beleza, ela não é considerada como um princípio
à parte, dotado de um estatuto especial, sem relação com outros princípios. Os antigos gregos
não a separam absolutamente da inteligibilidade, nem tampouco da religiosidade cívica ou da
ordem política; pintores e escultores da Idade Média são, ao mesmo tempo, os arautos de Deus e
da verdadeira religião; e os artistas do Renascimento se consideram de bom grado como
“físicos” a seu modo, ou, de qualquer modo, como exploradores da realidade, da mesma
maneira como muitos escritores da idade clássica se querem moralistas.
Portanto, só muito tardiamente é que irá nascer a Arte pela Arte e surgir a categoria do artista,
servidor exclusivo e, ao mesmo tempo, senhor do Belo. Também nessa questão, Kant — quando
escreve sua Crítica da faculdade de julgar (1790) — desempenha um papel de fundador. Sabe-
se que, para ele, o juízo de gosto, que é tanto o do criador quanto o do fruídor de beleza, é
paradoxal por sua própria natureza: interessa-se por um objeto, mas é por natureza
desinteressado; quer ser aceito por todos, mas repugna a demonstração; atribui a um fim a seu
objeto — o prazer estético —, mas não seria capaz de representá-lo; considera esse prazer como
necessário, mas não saberia provar essa necessidade. O século XIX, por mais diversas que
tenham sido as correntes que o atravessaram, assimilou implicitamente essa doutrina:
Baudelaire e Flaubert, por exemplo, e para só citar os dois, são seus adeptos involuntários.
Ainda hoje, essa ideia da Beleza como “valor” específico domina de tal modo que, como o
sublinhou André Malraux, nós a transportamos de bom grado para o seio de culturas que a
ignoram ou que, pelo menos, não lhe atribuem essa singular sacralidade.
Ora, nos anos 1890-1910, no domínio da produção artística, sem que tenha havido na maior
parte dos casos a menor teorização, essa noção de Beleza independente passou a ser
questionada; anunciou-se um movimento que, também ele, irá prosseguir até nossos dias cm
todas as formas de arte. Não se trata absolutamente de um retorno ao passado: a atividade que
fabrica objetos para o prazer e para o imaginário já conquistou sua autonomia. Mas, nos
trabalhos dos mais ardentes e originais criadores, ela se atribui uma função que vai muito além
da busca da satisfação “desinteressada”. Assim como, na prática, as ciências se erguem contra a
Ciência positivista, do mesmo modo as artes, vivas entram em luta contra as Belas-Artes. A seu
modo, nas literaturas romanesca e teatral, na música, na pintura, na escultura, na arquitetura, na
poesia e logo num recém chegado , o cinema, as artes apresentam — através do imaginário que
constroem — concepções do mundo e da sociedade que são críticas da realidade presente.
Se elas se ligam a uma tradição, é certamente — conforme a sugestão de Nietzsche — à dos
“exploradores” do Renascimento, que, como Leonardo da Vinci, consideram o trabalho artístico
como uma descoberta da realidade que se opõe aos dogmas religiosos e metafísicos. A esse
respeito, uma obra como a de Cézanne propõe uma nova teoria da percepção que, pelos
resultados sensíveis que impõe, antecipa amplamente — tanto por sua força quanto por sua
riqueza — as pesquisas experimentais simplistas que serviram de fundamento à “teoria da
Forma”. De modo análogo, e para ficarmos no mesmo domínio, o cubismo torna evidente uma
concepção do vivido, das relações que o sujeito mantém com as “coisas” e com seus
semelhantes, que contesta a psicologia elaborada no curso do século XIX e, ao mesmo tempo,
destrói a base da moral corrente. A busca do “Belo” não é de nenhum modo afastada: é
reintegrada a uma corrente mais profunda, que faz explodir as representações tradicionais.
Nesse sentido, as reações de ódio provocadas pelos pintores cubistas ou pelos fauves são —
com toda evidência e motivadamente — de ordem política: se o mundo e os homens não são
absolutamente como o academicismo os representa, se não há uma categoria de “objetos”
pictóricos estritamente definidos e uma técnica bem delimitada para figurá-los, então é o
conjunto do sistema que entra em colapso, inclusive as condutas individuais e coletivas. . .
Decerto, por causa de suas relações mais diretas com essas condutas, a literatura romanesca e
teatral desempenhou um papel crítico mais importante. Todavia, antes de evocá-lo, cabe lembrar
que trabalhos aparentemente mais abstratos tiveram igualmente uma função decisiva. Conhece-
se o papel determinante ocupado hoje pela pesquisa linguística na análise dos discursos direta
ou indiretamente políticos e, de modo mais geral, na análise do que é chamado de ideologia. É
incontestável que a constituição da linguística como disciplina que visa à exatidão e ao rigor
científicos — tendo como ponto de partida o impulso dado por Ferdinand de Saussure81 e os
resultados a que chegaram Román Jacobson e a Escola de Praga 85 — está na origem dessa
orientação, fonte de retomadas frequentemente frutíferas. Ora. esse tipo de reflexão sobre a
linguagem e os mecanismos que regulam (e, por conseguinte, explicam) sua força não são de
modo algum uma operação apenas dos teóricos. Poetas e músicos inovadores foram levados a se
interrogar praticamente sobre as máquinas que punham em operação e sobre a natureza dos
efeitos que elas produziam. Foi assim que, de modo bastante diferenciado, e para nos limitarmos
a exemplos franceses, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé contribuíram fortemente, através
de suas interrogações e de suas produções, para quebrar os esquemas clássicos que afirmavam
ser a língua o reflexo do pensamento, a expressão da alma; foi assim que eles tornaram
possíveis pesquisas posteriores sobre o estatuto dessas potências que são a palavra e a escrita.
Do mesmo modo, enquanto os poetas, logo seguidos pelos romancistas, questionavam o uso da
palavra, da frase, do texto, do livro, também músicos como Schonberg esforçavam-se por
inventar uma outra sintaxe, por minar a tradição, elaborando outros modos de escrita; ao mesmo
tempo, outros músicos, como Stravinske, logo após, Bartok, pondo seus conhecimentos
clássicos a serviço das músicas populares, davam um novo vigor às linguagens musicais. Uns e
outros atacavam um domínio sacralizado pelos hábitos burgueses. . . Escândalos como os que
foram suscitados pelas primeiras representações dos “balés russos”, por exemplo, prefiguram os
escândalos produzidos — já agora com uma vontade política bem determinada — pelos
surrealistas, menos de vinte anos depois.
Como se previssem a crise mundial que iria se abater sobre os Estados Unidos, os artistas —
nesse período — aparecem como os coletores dos primeiros sintomas desses grandes abalos
cuja manifestação inicial foi guerra de 1914-1918. Enquanto sociólogos, psicólogos e teóricos
políticos analisam situações de fato que já estão superadas, romancistas, músicos, homens de
teatro — em função 1 da própria exigência de originalidade, de empreendimento radical { que
está implícita em seu trabalho criador — antecipam livremente. A crítica que fazem à sociedade
consiste, precisamente, no fato ] de que revelam aparências, evidencias, que os poderes
estabelecidos — estéticos, acadêmicos ou políticos — fazem o que podem para ocultar. Nas
duas décadas seguintes, obras como as de Proust, Joyce, Kafka, do dadaísmo e de surrealismo
“a serviço da Revolução”, irão tornar evidente esse questionamento político, que não é
absolutamente um comprometimento com a política, mas revelação feroz ou irônica da política
que está no fundo de cada conduta individual, de cada conflito supostamente psicológico, de
cada configuração familiar, de amizade ou profissional. Críticos e proféticos, os artistas
anunciam que as mudanças no Estado tanto quanto as mudanças de Estado, não bastam: e
figuram fragmentos de realidade que proclamam a necessidade de “mudar a vida”.
Pois, com muita frequência, a análise das sociedades — apoiada na celebérrima fórmula
segundo a qual essas contam “mais com os mortos do que com os vivos” — considera o
presente em função do passado e, ao mesmo tempo, tomam o futuro como o prolongamento de
um e de outro. Exaltando o imaginário, fazendo existir no presente, com a potência empírica
que se liga a seu exercício, um mundo irreal que tem todas as virtudes da realidade, a Arte
rompe a imagem da história enquanto encadeamento necessário de momentos sucessivos. O
choque que ela provoca desarticula as certezas mais solidamente estabelecidas e induz a uma
crítica que supera em radicalidade as refutações lógicas, já que ela procede não de uma opinião
oposta, mas de um olhar inteiramente diverso. O gênio de Bertolt Brecht,... apoiado numa
língua e num sentido dramático admiráveis, não consiste em refutar a guerra mediante
argumentos ou cenas de horror, mas em mostrá-la em sua cotidianidade e em refratá-la nas
formulações de urna brava mulher que, apesar de tudo, vive a guerra e não a vive com
desprazer, urna brava mulher que se chama Mãe Coragem. Essa dimensão do imaginário, que é
o próprio material das artes, constitui um tecido sutil da realidade social. Como o demonstrou
Cornelius Castoriadis86, a própria instituição da sociedade é um produto do imaginário. As
forças que mantêm unida uma totalidade social não são redutíveis às necessidades e à coação:
são forças simbólicas. O erro de todos os positivismos é opor o imaginário ao racional como a
ilusão se opõe à verdade. A própria racionalidade e um efeito dessa constituição da sociedade
por si mesma: é uma invenção social. Sendo assim, a atividade artística é, a seu modo, uma
exploração dessa força inventiva, exploração que permite denunciar, pelo seu próprio exemplo,
a força de inércia que tende a restringir a atividade política e social à manutenção e ã
reprodução da ordem existente. \
Essa força de ruptura, essa utopia realista que constitua atividade artística, teve os seus efeitos
compreendidos pelos regimes totalitários instituídos no século XX; mas eles os utilizaram tão
grosseiramente que só retiraram dos mesmos benefícios precários e superficiais. O tratamento
infligido à produção das Artes pela Itália fascista87, pela Alemanha nacional-socialista88 e pela
União Soviética stalinistaS9 — um tratamento ainda hoje encontrado nos países submetidos a
regimes políticos que impõem, em nome do Partido, da Classe, da Pátria, do Homem
Providencial ou da Verdadeira Religião, uma tirania similar — serve como uma demonstração a
contrario da significação política da obra de Arte. O projeto dos governos totalitários é pôr a
potência expressiva da obra a serviço da Causa de que eles se dizem agentes. Assim, a ordem
mussoliniana, instituindo-se como depositária da grandeza da Roma imperial, fez-se ilustrar por
meio de uma arquitetura monumental e utilitária, destinada a glorificar o espírito de conquista.
Foi cedo seguida nesse terreno pelo nazismo e pelo stalinismo, que rivalizaram no estilo
gigantesco, um estilo que permite o desdobramento de paradas “populares” militarmente
organizadas e o agrupamento de multidões reunidas para celebrar sua obediência ao Chefe.
Deve-se sublinhar o fato de que a teorização dessa atitude foi realizada pelo conselheiro mais
ouvido por Joseph Stalin em matéria cultural, AndreZhdânov00. Zhdânov retoma,
simplificando-a ainda mais, a leitura reducionista que G. Plekhânov fizera da concepção
desenvolvida por Marx e Engels sobre as relações entre as infra-estruturas econômicas e as
supra-estruturas ideológicas: assim, segundo a pretensa inversão materialista da filosofia da
historia hegeliana, essas são o reflexo daquela; cada classe secreta, nas produções coletivas, a
ideologia que convém a seus interesses; e o grau de validade desse ou daquele produto artístico
é determinado pelo lugar que ele ocupa na luta de classes. Nessa ótica, não recuando diante de
nenhum anacronismo, o dicionário soviético de Rosenthal e Iudin julga abruptamente que Platão
é ruim porque é “idea1 lista, reacionário, inimigo da democracia e da ciência”; que Aristóteles c
medíocre porque “representa as classes médias”; e que Aristófanes é excelente “porque reflete
os ideais de paz e de igualdade das classes populares”!
Essas ingenuidades não teriam, no fundo, muita importância, e não seria a primeira nem a última vez que
a história das ideias e a crítica literária cometeriam erros de avaliação monstruosos; mas o problema é que
tais juízos servem também como regras para a organização autoritária da produção artística e ideológica
atual, que eles determinam o que é lícito e o que é ilícito e desencadeiam um processo geral de vigilância,
de repressão, de censura e de servidão, que vai desde a simples admoestação à liquidação física dos
opositores, passando pelo holocausto de livros e pela cretinização 4 dos cérebros.
Desde 1923, a atividade artística na Itália se estiolou e caiu no academicismo; a Alemanha
nazista esvaziou-se de seus criadores, poetas, escritores, músicos, pintores, filósofos; na União
Soviética, após os tímidos esforços de construção da Cultura proletária, cedo obstaculizados
pela exigência política, instala-se — com o poder de Stalin — uma direção das Artes que, sob o
nome de realismo socialista, impôs aos pintores que representassem exclusivamente os grandes
homens e os elevados momentos da edificação da pátria do socialismo, aos romancistas que
exaltassem o combate heroico dos membros do partido para fazer triunfar “a linha geral” contra
as manobras imperialistas e as sobrevivências pequeno-burguesas, aos músicos que
compusessem óperas assinalando as etapas da realização do plano quinquenal. Foi por milagre
que algo restou nas criações de Dimitrí Chostakóvitch e de Mikhail Cholokhóv!
Essa censura que, na União Soviética e nas democracias populares, condena os artistas
heterodoxos ao silêncio, ao exílio ou à prisão espalha-se como uma mancha de óleo no seio dos
“partidos
irmãos”: Louis Aragón —que, quando surrealista, denunciava “Moscou, a aborrecida” —
acredita-se obrigado, n época da guerra fria, a construir um pungente afresco romanesco
intitulado Os comunistas, onde nada mais resta do encanto de Aurélien.
O realismo socialista e seus efeitos, assim como a tirania exercida pelo fascismo e pelo nazismo
contra a produção artística, mostram — se ainda houvesse necessidade de fazê-lo — que a Arte
não pode ser serva, que a arregimentação (ainda que voluntária) destrói a capacidade de
inventar. O fato de que obras originais possam nascer do fervor militante não deve gerar a ilusão
de que seja algum dia possível esboçar o programa de uma atividade artística colocada a serviço
da ordem instituída: de um tal serviço, nascerá apenas o academicismo. É essa, ao que parece, a
sorte que toca às tentativas contemporâneas que, em um contexto inteiramente diverso, tentam
colocar as artes plásticas, em particular, a serviço do consumo de massa e enquadrar os produtos
“estéticos” nas normas da produção industrial. Também, nesse caso, é preciso observar que
— se pode ocorrer que a invenção de um projeto singular corresponda a um desejo social, e
também que uma obra de arte de intensa novidade obtenha, de maneira imediata, um sucesso de
massa
— parece excluída a possibilidade de inferir disso a viabilidade de calcular as regras de
produção de obras que possuam um real poder de ruptura. O “engenheiro de almas”, caro a
Lenin, não passará jamais de um agente de propaganda ou de um encarregado de diversão.
Desse poder de ruptura, o cinema — a arte que nasceu por último — fornece um particular
testemunho. Ele substituiu o teatro e a ópera quanto aos seus efeitos sociais e políticos. Arte
popular por excelência, o cinema estabelece — por causa das condições de sua produção —
uma estreita relação com a sociedade industrial; em virtude da obrigação realista que lhe é
imposta, não pode deixar de participar na política. Não poderíamos concluir essas observações
sobre a “capacidade” política da Arte sem assinalar o tipo específico de intervenção introduzido
pelo cinema. Com efeito, a história do cinema, desde que se libertou da tutela do teatro burguês,
que lhe serviu por muito tempo de modelo, prova até que ponto a amplitude e a força de seus
meios expressivos o tornam excessivo, tanto em seus êxitos quanto em seus fracassos. Toda uma
parte da produção — que não basta qualificar de “comercial”, pois o filme militante e o
intelectual também cedem a essa tendência — é fabricada para devolver à sociedade a imagem
que ela tem de si mesma. Há um cinema-reflexo que utiliza os privilégios da dinâmica das
imagens-sons para reproduzir o real com o acréscimo de ornamentos trágicos ou cômicos,
conforme o gênero escolhido; há um cinema de pura compensação, que conserva os mitos
graças aos quais se torna suportável a insignificância do cotidiano; há o cinema de propaganda,
que exalta as virtudes de um regime (diretamente ou a contrario) ou elogia os encantos de um
determinado modo de vida, os méritos de uma instituição ou de uma profissão, etc.
Não há nenhuma razão para crer que filmes produzidos em tais condições sejam, por definição,
esteticamente fracassados. Todavia, não é de esperar que tenham ...algum interesse para a
reflexão política, a não ser como sintoma de uma ideologia, como testemunho, até mesmo como
documento revelando uma época ou uma mentalidade. Há, porém, um certo número de
produções cinematográficas — quer tratem ou não de problemas ou de situações políticas —
que possuem, tanto quanto certas obras teatrais ou romanescas, o poder de ruptura de que há
pouco falamos, com a desvantagem em relação a essas últimas de ser menos disponível
constantemente, mas com a vantagem de penetrar mais amplamente no público. Esse poder, no
que tem de específico, decorre do fato de que o cinema tem a possibilidade de dramatizar e de
mostrar — com uma intensidade realista que o real só excepcionalmente revela — situações e
ações que escapam ao imaginário comum; de fazer ver e ouvir palavras, ruídos e música; de
fazer existir dramaticamente o que jamais se ousaria imaginar pudesse ser visto e escutado. É
então que se pode evocar mais do que a aposta romanesca, do que os extraordinários desafios do
poeta, do músico ou do pintor.
Pouco importa que essa audácia tenha como terreno o histórico ou o ficcional, o fantástico ou o
vulgar. O que conta é que ela permite ver, ouvir, experimentar concretamente o abstrato:
Charles .Chaplin, a mecânica demente do Ditador-, Orson Welles, a desmesura do Cidadão
Kane; Roberto Rossellini, A Tomada do Poder por Luís XIV; Carlos Saura, o horror da tortura;
André Techiné, os esplendores e misérias da indústria D’en France; Jean-Luc Godard, a
tragicidade da vida comum. Lugar de todos os compromissos, o cinema é também o local onde
se experimenta o imaginário em ato, onde a força criadora da Sociedade desfaz a inércia das
sociedades.
Queremos repetir que essas observações não têm nenhuma finalidade demonstrativa. Visam
somente a lembrar que, por riais eficazes que possam ser os projetos dos políticos, por mais
rigorosos e sutis que se apresentem os conceitos dos teóricos, eles se desenvolvem contra o
pano de fundo de sociedades que se deixam frequentemente esmagar, mas que são também
capazes de inventar. Nietzsche, Freud, os artistas, os cientistas são testemunhos dessas
invenções.
Essas não têm conclusão. Permitem apenas induzir as seguintes observações:
— A crise que afeta surdamente os Estados-Nação, desde que eles conquistaram sua segurança e
se impuseram como estrutura e como modelo dominante e multiforme; em suas manifestações
iniciais, ela afeta menos a política do que o político; aparece então não no nível da gestão dos
negócios públicos, mas sim nas relações sociais abertas ou secretas, no imaginário da sociedade,
nas práticas cotidianas e nas atividades especializadas.
— Não é surpreendente que os primeiros pensadores da crise sejam não sociólogos ou teóricos
políticos, mas pensadores que se interrogam sobre os princípios que governam a civilização que
produziu os Estados-Nação, ou práticos que — em suas pesquisas — deparam-se com o
exercício efetivo da conquista do real.
— Seria aberrante esperar lições políticas desses pensadores e desses práticos; se Nietzsche,
Freud, os físicos e alguns artistas são citados aqui, nas “”, é precisamente porque eles mesmos e
os que prosseguem sua obra denunciadora definem um ponto de vista radical, graças ao qual os
leitores poderão tomar distância e formular um juízo crítico diante das concepções políticas que
vão ser agora analisadas.

NOTAS:
1. Esse título — precisamente em sua simplicidade um pouco agressiva — indica que não se trata aqui de
apresentar a política de Nietzsche (que, de resto, não existe). De acordo com o espírito destas páginas , temos
apenas como objetivo pôr em evidência uma intuição desse pensador que nos parece significativa de um tipo de
concepção crítica que — sob outras formas — será novamente encontrada nos capítulos seguintes. Basta dizer
que não queremos de modo algum nem exaltar o valor dessa intuição, nem entrar nas querelas de interpretação
relativas a essa ou aquela tomada de posição de um autor que, por exemplo, criticava ferozmente a religião de
Cristo e não hesitava em assinar alguns de seus textos como “o crucificado”.
2. Friedrich Nietzsche, Ainsparlait Zarathoustra (1883-1884), Paris, Mcrcure de France, 1924, p. 66 [ed.
brasileira: Assim Falou Zaratustra, São Paulo, Edições e Publicações Brasil, 1950
3. Cf. G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962.
4. Nietzsche, Le gai savoir (1881-1882), Paris, NRF, 1967, 340, reedição UGE, “10/18”, 1974, p. 329.
5. Cf por exemplo, a seguinte frase de A gaia ciência, 372: “Com cera nos ouvidos: era essa, outrora, quase a
condição preliminar ao ato de filosofar. Um autêntico filósofo não tinha mais ouvidos para a vida: na medida
em que a vida é música, ele negava a música da vida — e é uma péssima superstição de filósofos pensar que
toda música é música de sereias” (ibid p. 395).
6. Nietzsche, Généalogie de la morale (1887), Paris, Mercure de France, 1948, pp, 4243 [ed. brasileira: A
genealogia da moral, Rio de Janeiro, Simões, 1953].
7. Nietzsche, L’Antéchrist (1888), Paris, UGE, “10/18”, 1967, 21, p. 36 [ed. brasileira: O Anticristo, Rio de
Janeiro. Simões, 1953].
8. Ibid 21, p. 32.
9. Ibid.
10. Ibid 30, p. 47.
11. Nietzsche, Le gasavoir, cit 130, p. 214.
12. Nietzsche, L’Antéchrist, cit p. 92.
13. Nietzsche, Le crépuscule des idoles (1888), Paris, Mercure de France. 1952, pp. 122-123 [ed. brasileira: O
crepúsculo dos ídolos. Rio de Janeiro, Vecchi, 1934],
14. Ibid p. 123.
15. Ibid.
16. L’Antéchrist, cit p. 67.
17. Ibid p. 115.
18. Nietzsche, Humain, trop humain (1876-1880), Paris, NRF, 1968, I, 472. p. 257.
19. Le crépuscule des idoles, cit p. 127.
20. Nietzsche, Considérations intempestives (1873-1876), Paris, Aubier, 1970, III-IV, p. 101.
21. Ibid p. 103.
22. Ibid pp. 103-105.
23. Ibid p. 105.
24. Le crépuscule des idoles, cit p. 155.
25. Considérations intempestives, cit I-II, p. 197,
26. Cf. a terceira Considération intempestive, consagrada ao “caráter” dos cientistas, op. cit.. p. 115-121.
27. Le gasavoir, cit 12, p. 87
28. Ibid 344, pp. 337-338.
29. L’Antéchrist, cit,, 4, p. 11.
30. Considérations intempestives, cit III-IV, p. 63.
U. Nietzsche, Le Voyageur et son ombre (1879-1880), Paris, Le Mercure de
France, 1909, p. 379 [ed. brasileira: O viandante e sua sombra, Rio de
Janeiro, Tecnoprint, 1967],
32. Humain, trop humain, cit 482, I, p. 265.
33. Nietzsche, La volonté de puissance (fragmentos póstumos), Paris, Le
Mercure de France, 1918, p. 201 ' brasileira: Vontade de potência,7 0
Porto Alegre, Globo, 1945]. Citamos essa tradução francesa, feita a partir de uma versão lacunosa e falsificada,
para comodidade do leitor. Mas a tradução que deve ser agora utilizada 6 a estabelecida a partir das Oeuvres
Complètes de Nietzsche, editadas por Collc Montinari, tomos XII, XIIe XIV, Paris, NRF, 1976-1979.
34. Humain trop humain, cit 473, I, p. 258.
35. Cf. G. Deleuze, op. cit.
36. Cf. Le crépuscule des idoles, cit pp. 106-107.
37. Le gasavoir, cit 343, pp. 336-337.
38. Humain, trop humain, cit 473, I, p. 258.
39. Oswald Spengler, Le déclin de l'Occident (1920), Paris. Payot, 1931; NRF, 1948 [ed. brasileira parcial; A
decadência do Ocidente, Rio de Janeiro, Zahar, 1960].
40. Cf por exemplo, Émile Durkheim, mais adiante, cap. IV, pp. 460-464.
41. Robert Castel, Le psychanalysme, Paris, Maspero, 1973. [ed. brasileira: O psicanalismo, Rio de Janeiro,
Graal].
42. Mais adiante, cap. V, pp. 593-594.
43. Cf. Carta a Lou-Andréas Salomé (28 de julho de 1929), citada por E. Jones, La vie e l'oeuvre de Sigmund
Freud, Paris, PUF, 1969, tomo III, p. 505 [ed. brasileira: Vida e o!\ra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Zahar,
1975],
44. S. Freud, Malaise dans la civilisation (1929), Paris, PUF. 1971, p. 9 [ed. brasileira: Mal-Estar na
civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1973].
45. Ibid.
46. Ibid p. 11.
47. Ibid p. 15.
48. Ibid p, 60.
49. Ibid.
50. Ibid p. 21.
51. Ibid p. 31.
52. Ibid p. 33.
53. Ibid.
54. Ibid p. 34.
55. Ibid.
56. Ibid p. 36.
57. Ibid pp. 46-47.
58. Ibid p. 45.
59. Ibid p. 48.
60. Ibid p. 51.
61. Ibid p. 55.
62. Ibid.
63. Ibid p. 57.
64. Ibid pp. 64-65.
65. Ibid p. 66.
66. Ibid pp, 67-68.
67. S. Freud, Nouvelles conférences sur la psychanalise (1932), Paris. NRF, 1971, p. 238.
68. Ibid pp. 238-239.s
69. Ibid p. 239.
70. Ibid p. 240.
71. Und.
72. Malaise dans la civilisation, cit p. 69.
73. Ibid p. 73.
74. Ibid p. 77.
75. Ibid p. 79.
76. /¿/</.( p. 80.
77. /Wrf p. 90.
78. Ibid p. 99.
79. Ibid p. 91.
80. Ibid p. 98.
81. Cf sobre esse ponto, as análises de Louis Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1965 [ed. brasileira: Ein
Favor de Marx, Rio de Janeiro, Zahar,
2.a edição, 1978],
82. Para essas pesquisas, cf. as indicações bibliográficas apresentadas no fim do presente capítulo.
83. Para tudo isso, cf em particular, Gaston Bachelard, Le pluralisme cohérent de la chimie moderne, Paris,
Vrin, 1932.
84. Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale (1906-1911), Paris, Payot, 1916; rced 1960 [ed.
brasileira: Curso de lingüística geral, São Paulo, Cultrix, 1969].
85. Roman Jacobson, Essais de linguistique générale, I. Les fondements du langage, Paris, Minuit, 1963.
86. Castoriadis, L’institution imaginaire de la société, Paris, Editions du Seuil, 1975.
87. Cf. A. Hamilton, L'illusion fasciste, les intellectuels et fascisme (19191945), Paris, NRF, 1971.
88. Cf. J.-P. Faye, Langages totalitaires, Paris, Hermann, 1972.
89. Cf. J.-M. Palmier, textos de Lênin reunidos e apresentados sob o título Sur l’art et la littérature, 3 vols
Paris, UGE, “10/18”, 1976.
90. AndreZhdânov, Sur la littérature, la philosophie e la musique (1949), Paris, Ed. de la Nouvelle Critique,
1950.
INDICAÇÕES BIBLIOGRAFICAS

A extensão e a diversidade dos temas evocados nestas páginas impedem qualquer bibliografia sistemática,
ainda que seletiva. Assim, resolvemos dar aqui apenas indicações de leitura.
No que se refere a Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud, são citados apenas os textos onde se trata diretamente
de questões políticas, excluindo-se toda obra de comentário ou de crítica.
No que se refere às atividades cientificas e artísticas, escolhemos — dentre muitos livros importantes -—
alguns dos que sublinham a força de ruptura que é introduzida na cultura estabelecida pelos cientistas e artistas
da primeira metade do século XX.
F. NIETZSCHE
Friedrich Nietzsche, Considérations intempestives (1873-1876), 2 vols Paris. Aubier, 1954.
— Humain, trop humain (première partie) (1876-1878), 2 vo's.. Paris, NRF. 1968; (deuxième partie, Le
Voyageur et son ombre) (1879-1880), Paris, NRF, 1968. [Ed. brasileira da segunda parte: O viandante e sua
sombra. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1967].
— Le gasavoir (1881-1882), Paris, NRF, 1967.
— Ainsparlait Zarathoustra (1883-1884), Paris, Aubier, 1962 [cd. brasileira: Assim faiou Zaratustra, São
Paulo. Ed. e Publicações Brasil, 3.a edição, 1950].
— Par-délà le bien e le mal (1884-1885), Paris, Aubier, 1951 [cd. brasileira: Além do bem e do mal, São Paulo,
Sagitário, s.d.].
— Généalogie de la morale (1887), Paris, Mercure de France, 1948 [ed. brasileira: A genealogia da moral, Rio
de Janeiro, Simões, 1953],
— L'Antéchrist (1888), Paris, UGE, “10/18”, 1967 [cd. brasileira: O Anticristo, Rio de Janeiro, Simões, 1953].
— La volonté de puissance (póstumo), 2 vols Paris, NRF, 1947-1948 [cd. brasileira: Vontade de potência, Porto
Alegre, Globo, 1945].
S. FREUD
Sigmund Freud, Totem et tabou (1912), Paris, Payot, 1947 [cd. brasileira: Totem e tabu, Rio de Janeiro, Delta,
1959]
— Au-delà du principe de plaisir (1919), in Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1951 [ed. brasileira: Mais
além do princípio de prazer, Rio de Janeiro, Delta, 1959].
— L’avenir d’une illusion (1927), Paris, PUF, 1971 [ed. brasileira: Futuro de uma ilusão, Rio de Janeiro,
Imago, 1973].
— Malaise dans la civilisation (1929), Paris, PUF, 1971 [ed. brasileira: Mal, Estar na civilização, Rio de
Janeiro, Imago, 1973].
•— “D’une conception de l’Univers”, in Nouvelles conférences sur la psychanalyse (1932), Paris, NRF, 1936;
reeditado na coleção “Idées”.
A INVENÇÃO CIENTÍFICA
Cf. a Bibliografia selecionada do cap. IV, “O Estado-Cientista”, e, cm particular, a rubrica “Ciências”, infra,
pp. 557-58.
Pierre Duhem, La théorie physique, son objet, sa structure, Paris, Marcel Rivière, 1914.
Gaston Bachelard, Le pluralisme cohérent de la chimie moderne, Paris, Viin, 1932.
— Le nouvel esprit scientifique, Paris, PUF, 1934 [ed. brasileira: O novo espírito científico, São Paulo, Abril,
coleção “Os Pensadores”, vol. XXXVIII, 1974, pp. 247-337],
•— La philosophie du non, Paris, PUF, 1940 [ed. brasileira: A filosofia do não, São Paulo, abril, coleção “Os
Pensadores”, vol. XXXVIII, 1974, pp. 159-245],
Max Plancic, L’image du monde dans la physique moderne (1333), Paris, Denoël-Gonthier, 1963.
Alexandre Koyré, Etudes galiléennes, Paris, Hermann, 1940.
— Etudes d’histoire de la pensée scientifique, Paris, PUF, 1966.
René Blanche, La science physique et la Réalité, Paris, PUF, 1948.
I. Sciieffler, Anatomie de la science (1963), Paris, Seuil, 1965.
Michel Fichant, Michel Pêcheux, Sur l’histoire des sciences, Paris, Maspero, 1969.
Michel Fichant, “Epistémologie et sciences de la nature”, in La philosophie, obra coletiva, Paris, CEPL, 1977.
Jacques Bouveresse, “La théorie de l’observation dans la philosophie des sciences du positivisme logique”, in
Histoire de la philosophie, t. VIII: Le XXe siècle, obra coletiva, Paris, Hachette, 1973. [cd. brasileira: in
História de Filosofia, sob a direção de F. Châtelet, Rio de Janeiro, Zahar, t. 8, 1976].
Jacques Merleatj-Pontv, Leçons sur la génèse des théories physiques, Paris, Vrin, 1974.
A INVENÇÃO LITERÁRIA E ARTÍSTICA
Ernst Cassirer, La philosophie des formes symboliques (1923-1929), 3 vols Paris, Minuit, 1972.
VassilKandinsky, Du spirituel dans l’art, en particulier dans la peinture (1912). Paris, Denoël-Gonthier, 1969.
André Breton, Les manifestes du surréalisme (1924, 1929, 1942), Paris, Sagittaire, 1946.
—• Le surréalisme et la peinture, Paris, NRF, 1965.
Erwin Panosky, Essais d’iconologie (1939), Paris, NRF, 1967.
Igor Stravinsky, Poétique musicale (1942), Paris, 1946.
Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, NRF, 1945 [ed. brasileira: Fenomenologia da
percepção, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1972].
— L’oeil et l’esprit (1961), Paris NRF, 1964 [ed. brasileira: O olho e o espírito, Rio de Janeiro, Grifo, 1970].
— Le visible et l’invisible (póstumo), Paris, NRF, 1964 [ed. brasileira: O visível e o invisível, São Paulo,
Perspectiva, 1970].
R. Leibowitz, Schônberg et son école; l'etape contemporaine du langage musical, Paris, J.B. Janin, 1947.
André Malraux. Le musée imaginaire de la sculpture mondiale, /.La statuaire, Paris, NRF, 1953; //; Des bas-
relief aux grottes sacrées, id 1954; III: Le monde chrétien, id 1955; reedição na coleção “Idées”.
— I: La métamorphose des dieux, Paris, NRF, 1957; II: L’irréel, id 1974; III: L’intemporel, id 1976; IV: Le
surnaturel, id 1977.
Roland Barthes, Le degré zéro de l'écriture, Paris, Seuil, 1953 [ed. brasileira: O grau zero da escrita, São Paulo,
Cultrix, 1970],
Maurice Blanchot, L'espace littéraire, Paris, NRF, 1955.
Gisèle Brelet, “Bêla Bartok”, in Histoire de la musique, Paris, NRF, 1963, t. II, pp. 1036-1074.
Paul Klee, Théorie de Part moderne, Genève, Gonthier, 1964.
Pierre Francastel, Peinture et société, Paris, NRF, 1965.
— La figure et le lieu, Paris, NRF, 1967.
Jean Paris, L’espace et le regard, Paris, Seuil, 1966.
Pierre Kaufmann, L’expérience émotionelle de l’espace, Paris, Vrin, 1967.
— “La théorie freudienne de la culture”, in Histoire de la philosophie, t. VIII: Le XXe siècle, obra coletiva,
Paris, Hachette, 1973 [ed. brasileira: in História da Filosofia, sob a direção de François Châtelet, tomo 8: O
Século XX, Rio de Janeiro, Zahar, 1976],
Jean-François Lyotard, Discours, figures, Paris, Klincksieck, 1971.

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