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O conceito de imaginário:

reflexões acerca de sua


utilização pela História
The Concept of Imaginary: Reflection
on its Use by History

Márcia Janete Espig

Resumo
O presente artigo elabora uma reflexão teórica em torno do conceito de imaginário, destacando sua
importância analítica para os estudos históricos atuais. Demonstrando a abrangência do conceito, que se
difunde por diferentes áreas do conhecimento, bem sua notória polissemia, iremos centralizar nossa aná-
lise sobre a potencialidade do mesmo para a área da História.
Palavras-chave: imaginário, representação, teoria da história.

Abstract
The article reflects about the concept of imaginary, showing its analytic importance to present
historical studies. Demonstrating the wide-ranging concept along many areas of knowledge, as its notorious
polysemy, we will center on the potentiality of the mentioned concept to the History.
Key words: imaginary, representation, history theory.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS si só, novidade, vem sofrendo re-significações


recentemente, no sentido de abarcar uma gama
A problemática do imaginário destaca-se bastante extensa de questões e problemas cada
hoje como uma tendência estimulante de deba- vez mais necessários ao debate acadêmico. Mu-
tes para a historiografia contemporânea. Con- tações na própria forma de conceber o trabalho
ceito polissêmico, pode-se dizer que sua dis- historiográfico, e também na concepção de ci-
cussão realiza, de certa forma, a tão desejada ência e do racional, vêm impulsionando os es-
interdisciplinaridade, visto que se estende por tudos nos quais este termo ganha lugar central.
áreas diversas das ciências humanas, tais como Tal não ocorre por acaso: hoje, o historiador
a sociologia, antropologia, psicologia e, é claro, encontra-se mais sensível a temáticas que se
a história. aproximem do simbólico. Neste sentido, obser-
Embora o termo imaginário não seja, por vamos um significativo aumento dos estudos

Márcia Janete Espig é Mestre em História/UFRGS; Doutoranda em História/UFRGS; Professora do Curso de História da ULBRA; Professora do Depar-
tamento de História e Geografia da UCS.

Endereço para correspondência: Fone: 3330-8791; e-mail: mespig@cpovo.net )

Canoas n. 9 nov. 2003 a jun. 2004 p. 49-56


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na área de história cultural, verificando-se a ceito de mentalidades assentava-se justamente
abertura de novos campos para o historiador. sobre o quê “não é” mentalidades (ARIÈS, 1990),
Estudando ritos, símbolos, práticas, apropria- se era possível defini-lo como o “não sei o quê
ções, leituras, representações, enfim, uma gran- da história” (LE GOFF, 1988), hoje este tipo de
de variedade de fenômenos referentes à subje- indefinição não é mais aceito pela comunidade
tividade do agente histórico, a história cultural de historiadores. O conceito de mentalidades,
atual (também chamada de Nova História Cul- que realmente apresentava muitos problemas
tural) distingue-se da história cultural dita “tra- metodológicos, foi ultrapassado definitivamen-
dicional” justamente pela tentativa em ultra- te. A meu ver não foi simplesmente substituído
passar antigos preconceitos e pela expansão do pelo conceito de imaginário. Embora este te-
próprio conceito de cultura. Peter Burke desta- nha resolvido vários dos dilemas teóricos ex-
ca a importância da história cultural atual (que pressos por aquele, aproveitando-se para isto
denomina “antropológica”) tornar-se “polifô- das críticas feitas anteriormente, sua constru-
nica”, mostrando diferentes pontos de vista, ção elevou-se bem acima do conceito de menta-
diferentes línguas. Como proposta, coloca o lidades, trazendo questionamentos renovados
modelo do encontro, ou seja, destaca a impor- que, como já foi dito, souberam aproveitar-se
tância de que a história estude os encontros e das reflexões feitas por diferentes áreas do co-
interações entre diferentes culturas, evitando nhecimento. De forma inteligente, alguns au-
um discurso homogeneizante. Estes estudos se tores alcançaram também a superação de certos
situariam nas fronteiras culturais, tema comple- dilemas trazidos pelo conceito de ideologia, tri-
xo e envolvente para muitos historiadores butário por sua vez da tradição teórica marxis-
(BURKE, 2000). ta. Entretanto, a reflexão sobre as relações entre
Inexiste, porém, um consenso sobre as os três conceitos citados acima não me interes-
origens da história cultural recente. Lynn Hunt sará aqui, visto que dela já me ocupei anterior-
acredita que esta represente uma “quarta fase” mente (ESPIG, 1998). Centralizarei minha aná-
da escola dos Annales, tese que não se encontra lise no conceito de imaginário e sua virtualida-
sedimentada no meio acadêmico (HUNT, 1992, de analítica.
p. 9). A dificuldade de tal aceitação deve-se, se-
gundo acredito, à existência de uma vertente
marxista (ou neo-marxista) que também enqua-
dra seus estudos junto a história cultural. Sem O CONCEITO DE IMAGINÁRIO
conseguir encaixá-la em um modelo claro e
único, alguns autores irão acusar esta vertente Muitos são os autores que vêm se preocu-
historiográfica de “caótica”, destacando o que pando com o debate sobre imaginário. A neces-
chamam de ausência de paradigmas (VAINFAS, sidade de dotar o termo de um conceito claro e
1997, p. 149/150). Ronaldo Vainfas chega ao pon- operacional levou os historiadores a apropria-
to de afirmar que a história cultural é um “refú- rem-se das pesquisas e reflexões de outras dis-
gio” para a antiga história das mentalidades, ciplinas, tais como a filosofia e a antropologia.
cujo declínio, nos anos 80, deveria-se justamen- Entretanto, como veremos, as preocupações dis-
te à indigência teórica. Rejeitando o conceito tintas entre estas áreas do conhecimento vêm
de mentalidades, a história cultural continua- criando diferenças na forma de conceber o ima-
ria no mesmo campo de estudos (o mental) e ginário. Os estudos filosóficos acerca do tema
seria “(...) um outro nome para aquilo que, nos demonstram uma forte tendência analítica, ten-
anos 70, era chamado de história das mentali- dendo por vezes para o abstrato; as reflexões
dades” (1997, p. 148). antropológicas tendem a cristalizar-se em tor-
Não há dúvidas de que a história cul- no de temporalidades sincrônicas, enquanto a
tural e, em seu interior, o conceito de imaginá- história preocupa-se com a diacronia. No en-
rio, possui relações com os estudos elaborados tanto, o historiador encontra-se aberto às con-
pela dita história das mentalidades. Entretan- tribuições destas disciplinas, desenvolvendo
to, existe um grande esforço no sentido de ul- ainda questões metodológicas referentes ao uso
trapassar teoricamente aquela escola. Se o con- do conceito. Ao referir-se a situações concretas

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e em processo de mudança ou transformação, a A resposta encontrada por Sahlins para
história buscará um refinamento operacional resolver a antinomia estrutura/evento é com-
deste conceito, refinamento este que acorrerá partilhada por sociólogos como Anthony Gid-
através do contato com o empírico. dens e Pierre Bourdieu e pelo historiador E.P.
O historiador romeno Lucian Boia acre- Thompson, que insiste na capacidade do sujei-
dita que são os filósofos e antropólogos que têm to histórico “fazer-se” a si mesmo, apesar das
evidenciado teoricamente as estruturas do ima- coerções estruturais (BIERSACK, 1992, p. 120).
ginário, permanecendo os historiadores atrela- Trata-se de uma solução clássica que será, de
dos a tais descobertas. Segundo ele, os historia- certa forma, retomada e reforçada por Boia.
dores sequer tentariam se reconhecer nas re- Boia reconhece que a história do imagi-
gras do jogo estabelecido por outros, desistin- nário é uma história estrutural, entretanto pro-
do de construir uma teoria histórica específica fundamente dinâmica ao mesmo tempo. Entre
(BOIA, 1998, p. 7). Mesmo reconhecendo o va- ambos os termos, acredita o autor, não existe
lor das obras de historiadores tais como Geor- uma contradição, mas sim uma complementa-
ges Duby, Jacques Le Goff e Jean Delumeau, ridade. A proposta de Boia para a história do
Boia considera que “Il existe des imaginaires imaginário, portanto, será de convergência en-
historiques plutôt qu’une véritable histoire de tre os modelos antropológico e histórico, visto
l’imaginaire”. (1998, p. 07)1 que o imaginário, apesar de possuir continui-
Na verdade, Boia analisa a existência de dades ao longo do tempo, também se mostra
uma marcante diferenciação entre os trabalhos mutável – e cada época conferirá transforma-
de antropólogos e historiadores. Enquanto os ções a uma base que é comum.
primeiros se deteriam, sobretudo, sobre as for- Uma preocupação semelhante pode ser
mas cristalizadas de imaginário, produzidas pe- encontrada no trabalho do também historiador
las constantes do espírito humano, em uma abor- Bronislaw Baczko. A busca de uma solução para
dagem eminentemente estrutural, os segundos o dilema entre conservação e mudança (dilema
preocupar-se-iam com as transformações, ou a este que se coloca como um dos problemas mais
“historicidade” do conceito. Trata-se de um de- sérios do conceito de mentalidades), receberá
bate bastante antigo das ciências humanas, rea- uma proposta metodológica interessante por
tualizado pelo autor ao discutir o conceito de parte de Baczko. Segundo ele, em alguns mo-
imaginário e que se refere à existência de uma mentos históricos, irá acontecer o que denomi-
pretensa dicotomia entre mudança e permanên- na um “tempo quente” na produção de imagi-
cia, entre estruturas e transformação. nários – ou seja, durante um momento de con-
Vários autores já se preocuparam com flito social (ou “comoção de estruturas”) a ima-
esta questão, chegando a conclusões aproxima- ginação poderá sofrer um ímpeto particular,
das. O antropólogo Marshall Sahlins critica a ocorrendo uma produção acelerada de signifi-
existência de dicotomias a partir das quais mui- cações para os acontecimentos (1991, p. 39). Re-
tas vezes se pensa a cultura e a história, tais como fere Baczko:
estrutura/evento, estático/dinâmico, estrutura/
superestrutura. Para solucionar tais dilemas, A própria dinâmica da revolução, a transformação
este autor defende o conceito de “estrutura da das estruturas políticas e sociais, bem como dos
conjuntura”, que busca articular a historicida- modos de pensar e dos sistemas de valores, e ainda
de às permanências: os conflitos políticos e sociais marcados pela pre-
sença das massas, em especial as multidões revolu-
O que quero dizer com estrutura da conjuntura é a cionárias – todos estes fatores estimulam a produ-
realização prática das categorias culturais em um ção acelerada dos sentidos que se procura atribuir à
contexto histórico específico, assim como se expres- precipitação de acontecimentos cujos efeitos mui-
sa nas ações motivadas dos agentes históricos tas vezes surpreendem os atores políticos e sociais
(SAHLINS, 1990, p.15). (BACZKO, 1985, 320).

Esta proposta, bastante interessante, já


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“Existem antes imaginários históricos do que uma verdadeira história do
imaginário” (tradução aproximada). que intenta resolver o problema teórico aci-

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ma destacado, surge no momento em que o mais discutidos pelos autores, como veremos
autor elabora seu estudo de caso acerca da a seguir.
Revolução Francesa. Entretanto, Baczko não Antes, porém, é necessário que relacio-
elabora uma reflexão mais sofisticada sobre as nemos o conceito de representação, visto que
relações entre a comoção de estruturas e os este será a base da reflexão proposta por Ba-
eventos, nem esclarece o quão “quente” deve czko sobre o imaginário social. Este tema foi
ser o tempo para que a produção de imaginá- insistentemente discutido pelo historiador
rios sofra um acréscimo. A própria denomi- francês Roger Chartier, que reconhece em seu
nação “tempo quente”, destinado às crises re- campo analítico três modalidades de relação
volucionárias, não é suficientemente esclare- com o mundo social: o trabalho de produção
cida. Acredito, porém, que se trata de uma de sentidos múltiplos para o real, visto que a
pista muito útil ao historiador, auxiliando-o realidade é construída de maneira diversa pe-
em sua difícil tarefa de articular temporalida- los diferentes grupos sociais; as práticas que
des diversas e explicar as mutações ocorridas visam estabelecer uma identidade própria no
no imaginário social. mundo; e finalmente as formas institucionais
De grande importância é a discussão so- mediante as quais umas pessoas representam
bre o próprio conceito de imaginário, dotado a outras (CHARTIER, 1990, 23). A representa-
de notória polissemia. A ampla variedade de ção tanto poderá dar a ver algo ausente, como
autores e de áreas do conhecimento envolvidas poderá exibir uma presença, como apresenta-
neste debate já mostra, por si só, algumas das ção de algo ou alguém (CHARTIER, 1990, 20).
dificuldades inerentes a este trabalho. Obser- Em ambos os casos, colocará “algo no lugar
ve-se, neste sentido, a aprofundada discussão de”, ou seja, simulará uma presença – não uma
elaborada por Sandra Pesavento, em um artigo simples presença, mas uma presença dotada
que resgata e analisa a contribuição de alguns de significado simbólico. Neste sentido, Car-
dos mais importantes autores que se detiveram lo Ginzburg observou que
sobre a problemática do imaginário. Relacio-
nando esta temática à chamada “crise de para- Por um lado, a “representação” faz as vezes da reali-
digmas”, que marca a inflexão do mecanicismo dade representada e, portanto, evoca a ausência;
cientificista, a autora destaca que por outro, torna visível a realidade representada e,
portanto, sugere a presença. Mas a contraposição
O imaginário é, pois, representação, evocação, si- poderia ser facilmente invertida: no primeiro caso,
mulação, sentido e significado, jogo de espelhos a representação é presente, ainda que como sucedâ-
onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estra- neo; no segundo, ela acaba remetendo, por con-
nha composição onde a metade visível evoca qual- traste, à realidade ausente que pretende representar
quer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui- (GINZBURG, 2001, p. 85).
lo como objeto de estudo é desvendar um segredo,
é buscar um significado oculto, encontrar a chave Será o conjunto de representações, segun-
para desfazer a representação do ser e parecer do Baczko, que distinguirá o termo imaginário.
(PESAVENTO, 1995, p. 24). O qualificativo social, empregado por este au-
tor, remeterá o conceito ao conjunto da popu-
Sobre este “jogo de espelhos” estabeleci- lação, ou pelo menos a um grupo específico no
do pelo imaginário, observemos o conceito tra- interior de determinada população.
zido por Baczko. Para este autor, o termo evoca Não há como desvincular a problemáti-
um conjunto de representações coletivas e ca do imaginário da discussão acerca de sua
idéias imagens formuladas socialmente. Entre- relação com o real. Esta foi um constante pon-
tanto, não devemos supor que o imaginário to de discórdia com o pensamento científico
marque uma distinção com relação ao real, pois ou materialista, que tradicionalmente consi-
aquele possui uma realidade específica e um derou o imaginário como algo ilusório, ou
impacto variável sobre as mentalidades e com- mesmo como um engodo (BACZKO, 1991, p.
portamentos (BACZKO, 1991, p. 08). A relação 12/13; PESAVENTO, 1995, p. 11). No centro
real-imaginário será, de fato, um dos tópicos desta concepção, imaginário significava um

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real construído de maneira deformada; cabe- os sociais só são “irreais” quando, precisamente, co-
ria ao pensamento científico justamente a ope- locados entre aspas (BACZKO, 1985, p. 298).
ração desmistificadora que separaria o quimé-
rico do verdadeiro. Desta forma, a própria realidade é vista
Entretanto, o avanço dos estudos e a di- como tendo sido instituída pelo imaginário.
fusão das reflexões sobre esta temática tem es- Entretanto, este não pode ser considerado ape-
tabelecido novos parâmetros de debate. Atu- nas como conservador da realidade social, já
almente esta problemática é alvo de uma dis- que pode contribuir igualmente para a altera-
cussão muito mais sofisticada, que questiona ção de uma ordem vigente. Tânia Navarro
inclusive a pretensa dicotomia (tão cara aos Swain considera que o imaginário possui uma
cientificistas) entre real e imaginário. Sobre “atividade criadora circular” em relação ao real
este assunto, Cornelius Castoriadis destaca a – pois o cria ao mesmo tempo em que é criado.
inextricável ligação entre imaginário e real, Conclui a autora que
considerando que mesmo as categorias racio-
nais são mantidas, nas mais diversas socieda- Encontramos, desta forma, o imaginário e o real
des, por significações que são imaginárias. não como opostos, mas como dimensões formado-
Afirma ainda que ras do social, em um processo atualizador imbrica-
do; imaginário e real não se distinguem, senão arbi-
O “real” da natureza não pode ser captado fora de trariamente (SWAIN, 1994, 56).
um quadro conceitual, de princípios de organiza-
ção do dado sensível, e estes nunca são – mesmo As colocações da autora aproximam-se de
em nossa sociedade – simplesmente equivalentes, considerações enunciadas por Boia, quando este
sem excessos, sem faltas, ao quadro de categorias afirma que
construído pelos lógicos (aliás eternamente reto-
cado). Quanto ao “real” do mundo humano, não L’imaginaire se mêle à la réalité extérieure et se con-
é somente enquanto objeto possível de conheci- fronte avec elle; il y trouve dês points d’appui ou,
mento, é de maneira imanente, no seu ser em si e par contre, um millieu hostile; il peut être confirmé
para si, que ele é categorizado pela estruturação ou répudié. Il agit sur le monde et le monde agit sur lui.
social e o imaginário que este significa; relações Mais, dans son essence, il constitue une réalité
entre indivíduos e grupos, comportamento, mo- indépendante, disposant de ses propres structures
tivações, não são somente incompreensíveis para nós, et de sa propre dynamique (BOIA, 1998, p. 16).3
são impossíveis em si mesmos fora deste imaginário
(CASTORIADIS, 1982, p. 193). 2 Neste sentido, observamos portanto
uma relação íntima e circular entre o real e o
Opinião semelhante será expressa por imaginário, sendo praticamente impossível
Baczko. Este autor sublinha o fato de que, con- estabelecer com segurança os limites entre
temporaneamente, a problemática do imagi- ambos. A criação e re-criação entre real e ima-
nário afasta-se cada vez mais de suas signifi- ginário é contínua, criativa e imprevisível.
cações tradicionais – ou seja, como ilusório Não por acaso, Bazcko sublinha o fato de que
ou quimérico – alçando-se ao status de temá- a possibilidade de manipulação de imaginá-
tica relevante e mesmo fundamental do co- rios é muito restrita, visto que esta só funcio-
nhecimento histórico. Segundo o historiador nará quando repousar em uma identidade de
polonês imaginação – ou seja, quando fizer sentido
para a comunidade a qual se dirige (BACZKO,
O imaginário social é cada vez menos considerado 1991, p. 45).
como uma espécie de ornamento de uma vida ma-
terial considerada como a única “real”. Em
contrapartida, as ciências humanas tendem cada
3
“O imaginário se mistura à realidade exterior e se confronta com ela; ele
encontra pontos de apoio ou, ao contrário, um meio hostil; pode ser con-
vez mais a considerar que os sistemas de imaginári- firmado ou repudiado. Ele age sobre o mundo e o mundo age sobre ele. Mas, em
sua essência, ele constitui uma realidade independente, dispondo de suas
próprias estruturas e de sua própria dinâmica” (tradução aproximada.
2
Grifos do autor. Grifos meus).

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Parece-me que no centro deste debate los agentes históricos pode trazer um maior
encontra-se outro problema muito caro às ci- refinamento à análise e mesmo uma maior
ências humanas: a relação entre subjetivida- honestidade intelectual.
de e objetividade na construção do conheci- Ao estabelecer uma “identidade” para
mento. uma sociedade, bem como códigos de compor-
Embora durante longa data os pesqui- tamento coletivamente aceitos, o imaginário
sadores tenham desejado ardorosamente uma assume uma realidade específica, não podendo
pretensa “objetividade” na construção dos mais ser percebido tão somente como um tipo
mais diversos saberes, hoje já se admite o pa- de “adorno” de relações econômicas, políticas,
pel da subjetividade – e, junto a este, do ima- etc., como se estas fossem as únicas “reais” (BA-
ginário e das representações – na produção CZKO, 1991, p. 14). Embora refira-se ao real, o
do conhecimento sobre uma sociedade. Seja imaginário social não será mero reflexo deste,
como agentes históricos, produtores de do- mas sim representações elaboradas sobre este
cumentação no passado, ou como historiado- real a partir de materiais tomados de aspectos
res, que reconstroem um passado com base simbólicos existentes em determinada socieda-
nestas fontes, selecionando o tema, a forma de ou grupo. As lutas e conflitos estabelecidos
narrativa, o eixo de análise, etc, a subjetivida- em torno destes bens simbólicos comprovam,
de surge com grande força no fazer historio- segundo Baczko, seu caráter imaginário mas não
gráfico. O sonho positivista há muito já se ilusório. O exercício do poder passa pelo ima-
desfez, visto que esperava uma história obje- ginário coletivo, e é por ele reforçado e multi-
tiva; da mesma forma, desintegrou-se uma plicado através da conjugação das relações de
certa quimera marxista, que desejava explicar sentido e pela apropriação de símbolos. (BA-
o mundo encaixando-o em uma teoria revela- CZKO, 1991, p. 16).
dora do real. Ambas as posturas desprezavam Os imaginários sociais proporcionam a
a criação imaginária do mundo. um grupo a designação de uma identidade e
Atualmente, tanto as fontes documen- de uma representação sobre si próprio, auxili-
tais como as obras produzidas por historia- ando ainda na distribuição de papéis e fun-
dores são reconhecidas como representações ções sociais, expressão de crenças comuns e
sobre o passado. Influenciadas por sua épo- modelos. Neste sentido, o imaginário pode
ca, por seu contexto e mesmo pela experiên- possuir a virtualidade de criar uma “ordem
cia daqueles que as construíram, relatam uma social” - daí sua importância como dispositivo
“verdade” ou falam sobre um “real” que exis- de controle da vida coletiva e de exercício do
te além de suas descrições, porém ao qual só poder. (BACZKO, 1991, p. 28). Sendo assim, a
teremos acesso através de suas narrativas. legitimidade do poder será conferida através
Neste sentido, nosso conhecimento está res- de relações de sentido, descartando-se o uso
trito a fragmentos de um real passado. O re- tão somente de relações de força. Seja através
conhecimento desta situação, segundo me do direito divino, ou de leis constitucionais, a
parece, não demonstra uma “derrota” da pers- legitimidade do poder será conferida a partir
pectiva científica ou uma demonstração da da crença dos dominados de que tal domina-
incapacidade de produzirmos histórias váli- ção é justa, boa ou legal.
das sobre nosso passado. Mas marca uma in- O sucesso da dominação simbólica depen-
flexão fundamental, visto que recoloca a pró- derá, portanto, do controle dos circuitos de pro-
pria noção de ciência e de cientificidade em dução e difusão dos imaginários sociais pelos
novos termos. Hoje, uma boa obra de história poderes constituídos. Devemos observar, porém,
não é aquela em que o autor conseguiu livrar- que o êxito na manipulação de imaginários será
se de sua subjetividade ao construir sua nar- restrita, sendo eficaz apenas quando se basear
rativa (mesmo porque tal seria impossível), naquilo que Baczko denomina “identidade de
mas sim aquela na qual o autor soube perce- imaginação” - ou seja, quando possuir a capaci-
ber e usar a seu favor a inevitável subjetivida- dade de fazer sentido para um determinado gru-
de de sua escrita. E quanto às fontes, percebê- po social (BACZKO, 1991, p. 45). Caso esta iden-
las enquanto representações construídas pe- tidade falhe, a linguagem e o imaginário tende-

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rão a desaparecer ou a reduzir-se a funções me- História Cultural. São Paulo: Martins Fon-
ramente decorativas, que não terão eficácia como tes, 1992. p. 97-130.
canalizadores de ações sociais. BOIA, Lucian. Por une histoire de l’ imaginaire.
Paris: Les Belles Letres, 1998. p. 7-56.
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio
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um constante desafio ao trabalho do historia- ra, 1982.
dor. Independentemente da vertente teórica que CHARTIER, Roger. A história cultural - entre
escolher, ver-se-á frente a um campo analítico práticas e representações. São Paulo: Difel,
particular, que proporcionará instrumentos de 1990.
análise variados ao seu objeto de estudo. _____ . A história hoje : dúvidas, desafios, pro-
Não será diferente com os conceitos postas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
oriundos da Nova História Cultural, entre os vol. 7, no13, 1994.
quais se inclui o conceito de imaginário, do qual ESPIG, Márcia Janete. Ideologia, mentalidades
vim me ocupando. Este conceito possui peculi- e imaginário : cruzamentos e aproximações
aridades muito interessantes ao trabalho do his- teóricas. Porto Alegre : Revista Anos 90, n.
toriador, contando ainda com a colaboração te- 10, 1998, p. 151 - 167.
órica de diferentes áreas do conhecimento, tais FALCON, Francisco. História Cultural: uma
como antropologia e filosofia. Porém, como ten- nova visão sobre a sociedade e a cultura.
tei demonstrar, o historiador deverá aproximar Rio de Janeiro: Campus, 2002.
esta temática das preocupações que são própri- FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para
as a sua disciplina, quais sejam, a idéia de mu- o Trabalho Científico. Porto Alegre: [s.ed.],
dança, de processo e mesmo o refinamento con- 2003.
ceitual através do contato com as fontes empíri- GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais:
cas. Neste sentido, caberá ao historiador um morfologia e história. São Paulo: Compa-
constante trabalho de reflexão teórica, pois o nhia das Letras, 1989.
conceito de imaginário, segundo acredito, me- _____. Representação: a idéia, a palavra, a coi-
rece ainda atenção profunda por parte deste sa. In: GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira:
profissional, a fim de sofrer um apuramento nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
gradual, tornando-se ainda mais útil à ciência Companhia das Letras, 2001. p. 85-103.
histórica. GUAZELLI, César; PETERSEN, Sílvia et all.
Questões de teoria e metodologia da História.
Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2000.
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São Paulo : Martins Fontes, 1990. p. 153- ria ambígua. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
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