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Pós-Modernismo e os Ataques à História1

Post-Modernism and the Attacks against History

Artigo Alexandre de Sá Avelar1


Original
Palavras-chaves: Resumo
Original
Paper Pós-modernismo O presente artigo tem como principal objetivo apresentar e discutir alguns
impactos da filosofia pós-moderna sobre a possibilidade do conhecimento
Historiografia histórico. Para tal, considerará que o paradigma pós-moderno tornou-se um
referencial terórico-conceitual cuja relevância nao pode mais ser negada
Conhecimento pela comunidade de historiadores profissionais. Serão abordados, de forma
Histórico mais sistemática, dois aspectos fundamentais: a insuficiência de uma auto-
reflexão histórica por parte dos pós-modernos e a negação da capacidade da
Teoria da disciplina histórica de oferecer análises e sínteses de caráter globalizante.
História. Por fim, procurar-se-á defender a idéia de uma história racional, cujos
métodos e procedimentos empíricos apontam na direção da possibilidade
epistemológica de sínteses explicativas.

Abstract Key words:

The present article has as its main objective to present and discuss some Pos-modernism
impacts of post-modern Philosophy over the possibility of historical
knowledge. For it, it will consider that the post-modern paradigm has become Historiography
a theorical-conceptual referential whose relevance can not be denied by the
community of professional historiographers. Two fundamental aspects will Historical
be approached in a systematic way: the insufficiency of a historical self- Knowledge
reflection by the pos-modern ones and the denial of the capacity of historical
discipline to offer analysis and synthesis in a globalized characterization. History Theory
At last, it will try to defend the idea of a rational history, whose methods and
empiric procedures direct to the epistemological possibility of explaining
synthesis.

1. Introdução
Cadernos UniFOA

“ Narrar o passado, repensar a Entre os diversos autores da coletânea,


História”, lançado em 2000 por professores e predomina a idéia de que o fazer historiográfico
estudantes de pós-graduação em História da sofreu modificações profundas nas últimas
Universidade Estadual de Campinas, é um dos décadas, como resultado da retomada e/ou
mais importantes trabalhos já realizados no redescoberta das temáticas acima mencionadas.
Brasil a respeito dos impactos causados pelo A história não é simplesmente um amontoado
paradigma pós-moderno2 sobre os estudos de fatos passados à espera de que o historiador
históricos. De grande rigor analítico, a obra os leve até a luz e, dada sua pluralidade, não
2008 2007

se propõe a estudar várias áreas temáticas se pode furtar à reflexão sobre seus discursos
dezembro

específicas. Escrita da história, discurso, fato e representações, indagando-se, por exemplo,


e narratividade, ciência e ficção, literatura e sobre os processos incorporados e as práticas
05, abril

história, tempo e temporalidade são discutidos sociais que envolvem a construção do objeto
edição nº 06,

através das formulações de Michel Foucault, histórico, este tomado muito mais como uma
Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Roland obra do que como realidade dada.
Barthes, Hayden White, Dominick La Capra, As preocupações acima não são
entre outros. novas e estavam, em grande medida, na
1
Doutor - Ciências Humanas – UniFOA
agenda do grande movimento de renovação aqui levantadas não pretendem esgotar o
da historiografia ocidental do século XX, arsenal de respostas e análises oferecidas para 41
os Annales. Não se pode negar ainda que a as questões propostas. A vasta e significativa
produção do conhecimento histórico sempre bibliografia sobre o tema sugere a inexistência
recebeu contribuições cruciais da linguística, de um único feixe de investigações, mas uma
antropologia, psicanálise, entre outros complexa heteregoneidade de interpretações,
campos do saber, enriquecendo em muito as interesses e tensões que circundam nosso
análises disponíveis sobre os mais diversos objeto em debate. O que temos em vista
objetos e colaborando para a consolidação neste artigo é de ambição bem mais modesta.
de um status científico para a disciplina. A Cremos que as propostas do pós-modernismo
interdisciplinaridade constituia-se, assim, num no tocante à história – entendida tanto como
dos mais importantes instrumentos de escrita o desenrolar do tempo histórico quanto
da história, possibilitando uma compreensão disciplina acadêmica – podem ser entendidas
holística do social em seus diferentes níveis, a partir do que chamaremos de um “duplo
eliminando, ou ao menos afastando, o fortuito ataque”, a saber, a negação da análise
e o irracional da narrativa histórica. histórico- temporal para a compreensão do
A visão de que a reconstrução de pós-modernismo e a negação da validade
um objeto histórico deve levar em conta sua de paradgimas historiográficos totalizantes
dimensão totalizante, através da incorporação e de metanarrativas epistemológicas. A
dos saberes produzidos em outros campos recuperação do pós-modernismo como objeto
do conhecimento e se utilizando, sempre histórico dotado de uma lógica temporal
que possível, de métodos de investigação definida a partir do conjunto de transformações
cientificamente conduzidos, foi denominada ocorridas na economia capitalista dos anos
por Ciro Cardoso ( 1997 ) de “paradigma 70 e a análise crítica da desconstrução do
iluminista” e suas expressões mais racionalismo na produção do conhecimento
significativas na historiografia foram as duas histórico constituem-se nas principais linhas
primeiras gerações dos Annales e o marxismo. argumentativas utilizadas na defesa contra
Comum a essas tendências era a convicção da aqueles ataques.
possibilidade de construção de uma ciência
histórica analítica, estrutural e voltada para
a inteligibilidade da ação humana. Essas 2 O objeto histórico chamado pós-
perspectivas foram hegemônicas entre os modernismo:
historiadores até pelo menos a década de
setenta, a partir de quando passaram a sofrer Como bem destacou Ellen M.
um nítido recuo com a emergência da chamada Wood ( 1999 ), as descrições atuais do pós-
Nova História. modernismo guardam grande semelhança
Visto em conjunto, o paradigma com as tradicionais abordagens de declínio
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iluminista jamais abdicou de contribuições da civilização ocidental, sendo os trabalhos
dos demais campos do conhecimento e, sendo de Oswald Spengler e C. Wright Mills os
assim, aqueles que analisam os impactos da exemplos mais significativos. Uma diferença
crítica literária ou da lingüística sobre os estudos se faz notável, entretanto: enquanto estes
históricos não estão apontando para novidades autores procuraram dar um enfoque histórico
concretas. Então, qual a especificidade das as suas abordagens, os pós-modernistas
abordagens pós-modernas na historiografia? apresentam suas teorias com total ausência de
Que papel mais geral para a história é dado perspectiva temporal, fazendo-as surgir como
por uma concepção que privilegia o enfoque reflexos de uma certa paisagem contemporânea
edição nº 06, abril 2008

fragmentário e não-progressista da vida social? isenta de ideologias e marcada pelo declínio


Tais perguntas talvez nos levem a uma outra, da esperanças políticas de emancipação
de escopo mais largo. O que a história de uma humana. Afigura-se aqui o que entendemos
perspectiva analítica e totalizante ainda pode como o primeiro ataque do pós-modernismo
nos oferecer como caminho de investigação e em relação à história: a não consideração de
compreensão dos desafios sociais, políticos e que a afirmação e expansão entre os meios
econômicos do século XXI? acadêmicos e culturais de um certo “espírito
Desnecessário afirmar que as hipóteses pós-moderno” tem raízes concretas e de que
estas se ligam a profundas transformações de inovações significativas nas tecnologias
42 ocorridas nos padrões de acumulação de informação, com avanços decisivos na
capitalista a partir do final dos anos sessenta, eletrônica, nas redes midiáticas, na automação,
redefinindo uma lógica cultural inerente à nova no marketing, etc., Simultaneamente, o regime
realidade do capitalismo financeiro-global. de produção industrial torna-se altamente
Os anos imediatos após a II Guerra flexível e mesmo não se podendo afirmar a
foram marcados por forte expansão das existência de uma economia mundial controlada
forças produtivas capitalistas que passaram inteiramente por firmas transnacionais (
a contar com uma ação cada vez mais firme HIRST e THOMPSON, 1998 ), é inegável
dos Estados Nacionais no sentido de assegurar o fato de que ocorreu uma diversificação
sua reprodução. O que havia ficado claro das na distribuição espacial das empresas
experiências anteriores era que o simples acompanhada de reformas nas estratégias de
funcionamento das forças de mercado não produção - para muitos o fenômeno conhecido
bastava para garantir os níveis de acumulação como pós-fordismo. Paralelamente, assiste-
necessários à manuntenção da ordem interna se a uma redução cada vez mais acentuada
dos países de capitalismo avançado e tampouco do proletariado – com todas as implicações
favorecia o entendimento internacional entre políticas que o fenômeno acarreta – com
as principais potências. Tornava-se necessário, aumentos dos níveis de desindustrialização em
portanto, forjar um novo modelo no qual o diversas áreas do sistema capitalista. Novos
Estado surgisse como ente regulador básico no padrões sociais e culturais forjam-se ao calor
controle da crises, através da manutenção de das mudanças operadas na ordem econômica,
taxas de lucros compatíveis com as demandas as quais o sistema soviético parecia incapaz de
dos trabalhadores, garantia de emprego e responder.
consumo para as massas populacionais. O fim do consenso keynesiano
Situação histórica muito bem sintetizada por alargou as bases para a emergência de uma
José Luis Fiori ( 1995: 3 ) economia mundial flexível e de novas formas
de pensamento político-social. Tornava-se
Consolidada a Pax Americana, depois de 1945, claro para muitos intelectuais que a capacidade
consagra-se o grande acordo que tem, como sua de adaptação do modo de produção capitalista
pedra angular, o Estado enquanto organizador do era um sintoma de sua superioridade em
pacto corporativo entre governo, sindicatos e capital, relação ao seu adversário comunista. Tal
e, responsável, em grande medida, pelo surto de
hipótese seria confirmada pouco mais de uma
crescimento acompanhado de paz social que, nos
década depois com o desmoronamento do
anos 50 e 60, alimentou a utopia de uma sociedade
socialismo real, primeiro na Europa Oriental
estável de consumo de massas, com bem-estar e
e depois no núcleo soviético. O triunfalismo
liberdade para todos.
da economia de mercado e da democracia
política liberal confirmava a idéia de que a
Tais padrões de crescimento
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evolução da humanidade em direção a níveis


industrial e melhoria das condições sociais
cada vez maiores de progresso e realização
através de ações públicas estatais tiveram
material chegava, nesse momento, a um termo
abalo significativo com a chamada crise dos
decisivo. Esgotava-se, dessa forma, toda a
anos setenta, iniciada pela crise do petróleo,
crença no devir histórico, não sem as agruras
seguida pela retomada da hegemonia norte-
de duas guerras mundiais, uma crise sistêmica
americana ancorada na diplomacia do dólar
sem precedentes do capitalismo e a ascensão
forte e no incremento do seu poderio militar
de regimes de forte coloração totalitária, tanto
( TAVARES,1997: 29 ). Redefinem-se novos
à esquerda quanto à direita. A vitória americana
canais de crescimento do capital, e sua base
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representava, a um só tempo, a realização e a


financeira passa a estimular o processo de
liquidação do projeto iluminista. Decretava-
globalização capitalista, exigindo nova
se, dessa forma, o fim das grandes narrativas
disciplina fiscal dos Estados Nacionais,
ideológicas – marxismo e liberalismo - , o
rompendo o pacto mediador entre capital e
declínio das utopias e a era do conformismo
trabalho, com evidentes desvantagens para o
político.
segundo.
Este último ponto mereceu
Esse padrão mais flexível de
considerações importantes de autores como
acumulação financeira foi acompanhado
Alex Callinicos e Fredric Jameson. Para ) em que “ a modernização estava agora quase
o primeiro, as razões mais profundas do concluída, apagando os últimos vestígios, não 43
surgimento de uma visão pós-moderna deviam- apenas de formas sociais pré-capitalistas como
se não tanto às mudanças ocorridas no sistema de todo território natural intacto, de espaço ou
de integração do capital – não se tratava de experiência, que as sustentara ou sobrevivera
forma alguma de uma ruputra histórica -, mas a elas”. Para Jameson ( 1991 ), os últimos
à derrota política da geração radical dos anos campos pré-capitalistas tragados agora pelo
60. Com suas esperanças frustradas, muitos capitalismo tardio eram o Terceiro Mundo e o
intelectuais encontraram refúgio no mundo inconsciente.
tranquilo da expansão do consumo e dos Dentro da lógica de uma ordem
padrões capitalistas, alimentando as correntes econômica cada vez mais financeirizada e suas
pós-modernas de negação das versões transfigurações no campo das representações
progressistas e emancipadoras das grandes culturais, é importante não ignorar que os
narrativas explicativas dos nossos tempos avanços tecnológicos representaram um papel
(Citado em ANDERSON, 1999 ). de destaque. Novamente, Anderson (1999:68)
Para Jameson, a expansão do nos oferece uma interpretação lúcida a
capitalismo após a II Guerra, através da respeito:
regulação estatal das taxas de acumulação e
consolidação do Welfare State, produziu uma A unificação eletrônica da Terra, instituindo a
simultaneidade de eventos mundo afora como
imensa liberação de energias sociais, “uma
espetáculo diário, instalou uma geografia substituta
prodigiosa escapada de forças não-teorizadas:
nos recessos de cada consciência, enquanto as
as forças étnicas dos negros e das ‘minorias’ redes circundantes de capital multinacional que
ou dos movimentos que eclodiram por toda efetivamente dirigem o sistema ultrapassam a
parte no Terceiro Mundo, os regionalismos, capacidade de qualquer percepção. A ascendência
o desenvolvimento de novos e militantes do espaço sobre o tempo na constituição do pós-
moderno está assim sempre em desequilíbrio, com
portadores de surplus consciousness nos
as realidades a que responde constitutivamente
movimentos estudantis e de mulheres, bem
sobrepujando-a – induzindo, como sugere Jameson
como um sem-número de lutas de outros tipos”. numa passagem famosa, essa sensação de que só se
Essas novas forças pareciam demonstrar que pode captar com uma sardônica atualização da lição
os graus de liberdade e luta política poderiam kantiana: “o histérico sublime”.
emergir fora dos padrões de classe tratados
pelo marxismo. A crise posterior colocaria A paisagem da qual se originaram
os anos 60 como um momento possível de as formulações do pós-modernismo tem,
transição de um estágio infra-estrutural ou portanto, bases materiais bem definidas.
sistêmico do capitalismo para outro. O desafio Insere-se nas mudanças ocorridas na
social da contemporaneidade é recuperar economia mundial a partir dos anos setenta,
os impulsos libertários da década de 60, a nas inovações tecnológicas e nos refluxos dos
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partir da transformação em luta de classes movimentos políticos de massa e dos ideais
daquelas forças libertárias, unificando-as, iluministas de progresso e emancipação. A
pois, “a força unificadora é a nova vocação natureza simbiótica entre o funcionamento
de um capitalismo doravante global do qual da cultura e da economia no mundo
também se pode esperar que unifique as contemporâneo foi dessa forma sintetizada
resistências desiguais, fragmentadas ou locais, por Jameson ( 2000:14 ):
ao processo” ( JAMESON, 1991: 126 ).
Esses fenômenos relacionados Nos últimos anos tenho argumentado com insistência
nos parágrafos anteriores tiveram impactos que tal [ a atual ] conjuntura é marcada pela
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decisivos nas vidas de todos países desdiferenciação de campos, de modo que a economia
desenvolvidos do mundo capitalista e acabou por coincidir com a cultura, fazendo com

alargaram-se para as formas de consciência que tudo, inclusive a produção de mercdorias e alta
especulação financeira, se tornasse cultural, enquanto
dessas sociedades. Nesse ponto, tem-se
que a cultura tornou-se profundamente econômica,
o contato decisivo entre um regime de
igualmente orientada para a produção de mercadorias.
acumulação flexível de capital e as mutações
Portanto, não devemos nos surpreender com o fato
no espaço e nas configurações culturais. É o
de que conjecturas sobre o nosso assunto em questão
momento, segundo Perry Anderson ( 1999: 66 podem na verdade ser tomadas como afirmações
sobre o capitalismo tardio ou sobre as políticas de Retornemos à disciplina histórica.
44 globalização O pensamento histórico sofreu um amplo
processo de modernização de suas estruturas
Esse processo histórico tornou o cognitivas a partir do pressuposto básico
pós-modernismo- o “consumo da própria de que é a razão a estratégia metódica
produção de mercadorias- como processo” informadora de nossas incursões ao passado.
( JAMESON, 2000: 14 ). Recuperar as Tal perspectiva inaugura-se evidentemente
condições concretas pelas quais possamos com o Iluminismo, estende-se ao ambicioso
apreender a historicidade do pós-modernismo programa de cientifização da História com o
como objeto de análise, torna-se o primeiro historicismo do século XIX e consolida-se na
passo para “pensar o presente historicamente primeira metade do século passado com os
em uma época que já esqueceu como pensar Annales e com o marxismo. Evidentemente,
dessa maneira”( JAMESON, 2000: 12 ) são vastas as diferenças teórico-conceituais
retomando o pensamento crítico em relação às e metodológicas entre essas correntes, mas
estratégias de disseminação de novos padrões elas estavam em acordo num ponto essencial:
de dominação cultural, econômica, política e a construção do conhecimento histórico
social. é um processo racional, cientificamente
informado e com procedimentos previamente
convencionados de análise de fontes e de
3 Pós-modernismo e os impactos na formulação de explicações. Trata-se de
disciplina histórica uma entidade efetiva que se compõe no
passado, presente e futuro em uma totalidade
Ao se propor como negação das abrangente. O fio condutor está na idéia de
narrativas libertárias e progressistas, a uma lógica de desenvolvimento inerente ao
filosofia pós-moderna desferiu um grave processo histórico, o que poderíamos entender
golpe contra a história-disciplina; ela também como noção de progresso.
deve esquecer suas expectativas de explicação Esses fundamentos receberam
totalizante, duvidar de sua ambição científico- críticas sistemáticas dos pós-modernistas. Ciro
racionalista e conformar-se com a idéia de Cardoso ( 1997:15 ) utilizou-se de uma citação
que o conhecimento se reduz a processos de Keith Jenkins para situar a definição mais
hermenêuticos, nos quais inexistem critérios cabal do paradigma pós-moderno no interior
de hierarquização e, portanto, inexistem da história-disciplina:
também formas de validação criteriosa das
interpretações, sendo todas igualmente A história é um discurso mutável e problemático
válidas. – ostensivamente a respeito de um aspecto do mundo,
Entenderemos aqui, esse conjunto o passado – produzido por um grupo de trabalhadores
de pressupostos mencionados acima, como cujas mentes são de nosso tempo ( em grande
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o segundo ataque do pós-modernismo à maioria, em nossa cultura, historiadores assalariados

história, atingindo agora sua dimensão de ) e que fazem seu trabalho em modalidades
mutuamente reconhecíveis e que são posicionados
disciplina racional e explicativa da realidade
epistemológica, ideológica e praticamente; e cujos
social. Na parte anterior, sugerimos que o pós-
produtos, uma vez em circulação, estão sujeitos a
modernismo buscou erigir-se como categoria
uma série de usos e abusos logicamente infinitos mas
de pensamento, dando pouca atenção aos
que, na realidade, correspondem a uma variedade de
condicionantes materiais que conformavam bases de poder existentes em qualquer momento que
uma virada nas formas de captar os movimentos for considerado,as quais estruturam e distribuem os
culturais e artísticos pretensamente formadores significados das histórias ao longo de um espectro
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de uma era pós-moderna. Identificamos, que vai do dominante ao marginal


grosso modo, esses condicionantes aos
movimentos de financeirização capitalista, O processo de transformação da
à diluição das ordens sociais tradicionais e história em uma disciplina instucional e
à era de derrocada dos grandes movimentos cientificamente reconhecida deixou de lado
políticos que marcaram os anos 60. Isso nos os aspectos literários do discurso histórico em
possibilitou recuperar a historicidade perdida nome de corretos métodos de interpretação
do objeto chamado pós-modernismo. das fontes, de leis de causalidade e teorias de
explicação do devir humano. Isso representava – desde a mera crônica dos acontecimentos até
uma ordem do discurso visto como “um fato aquela mais social, estrutural ou quantitativa 45
social que visava a institucionalizar certas – é dependente de procedimentos próprios de
formas de indagação, de reflexão e mesmo de composição de uma narrativa. Mesmo entre
expressão; o que implica diretamente expulsar os historiadores que sempre acreditavam estar
e mesmo interditar outras” ( LIMA, 1989: 60 fazendo ciência, os elementos literários jamais
). A grande recusa era a escritura narrativa da estiveram ausentes, mas eram ou camuflados
história. A síntese de Bennati ( 2000: 82 ) é em nome da razão ou hostilizados como ficção
significativa ou irracionalismo.
Para os pós-modernos, tornava-se
Na produção do conhecimento histórico, o rigor evidente que os esquemas de análise rígidos
dos métodos de investigação e erudição, o papel do e, na maioria dos casos economicista, dos
documento como atestado de veracidade dos fatos “historiadores cientistas” davam pouca
( uma concepção estritamente jurídica da prova ), a margem para a apresentação dos elementos
depuração das fontes, a extinção da subjetividade,
de escrita literária subjacentes a todo discurso.
tudo isso parecia sufuciente para afastar a história
Assim, abrem-se para novas temáticas e
do puramente imaginativo e ficcional, assegurando
novos objetos mais suscetíveis à recepção
para ela um lugar digno no concerto das triunfantes
da literatura. Histórias da sexualidade, das
ciências sociais.
A representação dessa recusa tornou os historiadores mentalidades ou das mulheres surgem, dessa
inconscientemente cegos ao caráter retórico-po(i)ético forma, como objetos abertos à contribuição das
do seu discurso. Os modelos de escrita acadêmica formas literárias , revelando a pouca atençao
tornaram-se um cânone, uma espécie de ortodoxia que a historiografia tradicional dedicava à
da forma que impediu justamente a reflexão sobre a narrativa e às demais formas de identidade
forma, isto é, sobre os dispositivos literários que os social ou sexual.
“cientistas”, devido ao uso inevitável da linguagem A estética e a epistemologia pós-
verbal, agenciam no seu discurso e materializam no moderna tornaram frágeis as separações entre
seu texto o “real “ e o “ficcional”. A crítica inicia-se
justamente pela noção de passado. Os adeptos
A volta da narrativa ao discurso do paradigma pós-moderno não negam a
histórico constituiu-se num dos temas existência de um passado que efetivamente
preferidos entre os estudiosos, identificados existiu, mas põem dúvidas quanto a nossa
com as visões pós-modernas da história. capacidade de apreendê-lo fora da produção
Lawrence Stone relacionou esse retorno ao de um dado discurso textual. Isso porque todos
fracasso dos três modelos centrais da ciência os documentos usados pelos historiadores na
da história na primeira metade do século XX pesquisa empírica são vestígios textualizados
– o marxismo, a escola demográfica e a escola do passado. O referente real já existiu, mas hoje
estatística dos historiadores norte-americanos ele só nos é acessível pela linguagem, neste
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“cliometricianos”. Mas não apenas fatores caso, a matéria bruta de todo o conhecimento
internos ao debate historiográfico explicavam histórico.
o ressurgimento da literatura nos estudos No âmbito das reflexões encaminhadas
históricos. O declínio das expectativas de pela pós-modernidade, a figura do historiador
que as grandes narrativas pudessem gerar como indivíduo imparcial e objetivo por
movimentos concretos de emancipação, o excelência – se é que já tivemos algo próximo
decrescente compromisso ideológico dos disso alguma vez – é desconstruída. De
historiadores e a necessidade de falar a um fato, esse sujeito supostamente neutro é
público cada vez mais ampliado pela explosão também uma construção histórica, enfeixado
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consumista colocavam limites ao cientificismo numa rede de instituições, lugares de fala e


da historiografia erigida com as linhas mestras interações. Seu discurso não pode, portanto,
dos Annales e do marxismo. refletir a realidade, mas ele mesmo contribui
O reconhecimento da narrativa para instaurá-la. Segundo Paul Veyne ( 1983:
implicava aceitar que o que o historiador produz 48 ):
se assemelha a um texto literário carregado
de retórica e com pretensões de persuasão. ... os fatos não existem isoladamente, no sentido de
Em última instância, todo discurso histórico que o tecido da história é o que chamaremos uma
intriga, uma mistura muito humana e muito pouco totalizante do real – representam um claro
46 “científica”de causas materiais, de fins e de acasos; avanço de uma concepção conformista e
numa palavra, uma fatia da vida, que o historiador irracionalista do processo contemporâneo de
recorta a seu bel-prazer e onde os fatos têm as suas
transformações na base do sistema capitalista,
ligações objetivas e sua importância relativa
a partir da proeminência do discurso e da
narrativa sobre a experiência humana vivida.
Assim, o que podemos conhecer Assim, essa própria experiência é discursiva e
dos fatos do passado são as representações suas representações são múltiplas e impossíveis
textuais dadas pelos historiadores. E essas e válidas para todos os casos. Em último caso,
representações são, acima de tudo, literárias, o relativismo total nos levaria a duvidar da
nas quais não se pode obscurecer o papel própria existência efetiva de categorias como
criativo do produtor do discurso histórico. Para sistema capitalista, modo de produção, etc.
Hayden White ( 1994: 70 ), “os historiadores Contudo, o que se observa é
explicam os eventos que compõem as a relação profunda entre os postulados
suas narrativas por meios especificamente pós-modernistas e as transformações do
narrativos de codificação, isto é, descobrindo capitalismo contemporâneo em sua extensão
a estória que está encerrada nos eventos ou da mercadoria a todos os níveis da sociedade e
por trás deles e contando-a de uma maneira a todos os espaços territoriais. Proceder a essa
que um homem medianamente culto possa análise histórica na compreensão da lógica
entender”. econômica do pós-modernismo é a resposta
Uma atitude extrema apresentar-se-ia ao primeiro ataque.
como a negação da própria história, diluída assim A resposta ao segundo ataque constitui
em “histórias” produzidas por grupos sociais uma tarefa mais árdua, pois são exatamente
claramente identificados ( os historiadores nas críticas à história-disciplina que os
) com interesses próprios e inseridas numa teóricos do pós-modernismo têm logrado mais
cadeia de relações de poder. Assim, todo o êxito. É inegável o prestígio de autores como
saber produzido é necessariamente múltiplo, Hayden White, LaCapra, Paul Veyne ou os
o que escapa à razão científica. Predominam expoentes da chamada Nova História entre
as formas de representação, os “níveis de a comunidade dos historiadores. Parte desse
discursividade”, demonstrando a incapacidade sucesso tem razões concretas. Muitas de suas
de uma análise estrutural e analítica. Assim, o análises chamaram a atenção corretamente
historiador deveria voltar-se aos ensaios de para os abusos do cientificismo, alertaram os
microinterpretação, à valorização dos aspectos historiadores para a necessidade de ampliação
condicionantes das interações com seu objeto, dos seus objetos de estudo e forneceram
enfim, um conformismo com a impossibilidade valiosas interpretações sobre grupos sociais
da metanarrativa científica. até então ausentes de grande parte das análises
disponíveis. Como negligenciar o surgimento
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de novas identidades étnicas e sexuais, frutos


4 Em defesa da história: as defesas contra mesmo de experiências humanas bastante
os ataques do pós-modernismo. diversificadas no interior de um mundo
contemporâneo marcado pela indefinição e pela
Os ataques partidos do pós- incerteza? E nesse mesmo mundo, é possível
modernismo à história não podem ficar sem deixar de lado a importância da linguagem ou
respostas. O que está em jogo é uma longa dos símbolos e mesmo a narrativa e a literatura
e árdua luta de construção de um arcabouço nos discursos dos historiadores?
teórico e metodológico que trouxe a A resposta para todas as perguntas
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possibilidade de um conhecimento científico acima é evidentemente não. Reconhecer as


do todo social, através dos instrumentos da diferenças não significa corroborar a idéia de
razão. Entendemos que os dois ataques aqui que as configurações da contemporaneidade
estudados – a insistência em dissolver a não podem ser apreendidas pelos instrumentos
historicidade do pós-modernismo em meio de investigação científica e racionalista.
às formulações difusas a respeito de uma Tampouco, a história como uma análise
ruptura com o modernismo e a negação da estrutural de longa duração perdeu sua
possibilidade de entendimento histórico- validade. Como compreender um sistema
global como o capitalismo utilizando-se as que Stone, talvez sabiamente, não tenta esclarecer,
categorias fragmentadas e a-históricas do pós- não evitam a visão ampla de maneira exclusiva ou 47
modernismo? predominante. Pelo menos esta lição aprenderam
com os antropólogos. ( Citado em CARDOSO, 1988:
Os pós-modernistas alegam que
108 )
os esquemas interpretativos totalizantes
– como o marxismo – são fechados a
O que o historiador inglês
temáticas como sexualidade, feminismo ou
defende é a impossibilidade de análise de
racismo. Apresentam-se como portadores
temáticas específicas sem noção do que
de uma abordagem mais aberta e atenta aos
seja a totalidade do social, sob os riscos de
aspectos negligenciados. Contudo, negam
relativismo e desistorização do objeto em
veementemente o conhecimento histórico
estudo. Micro-análises ou monografias
científico e o uso da razão. Sendo os discursos
específicas se beneficiam das referências
produzidos através de construções literárias,
estruturais, ampliando a validade de suas
nos quais não se pode alcançar a verdade,
teorias e corrigindo desvios de método, como
por que um discurso baseado na experiência
por exemplo, a ênfase no excessivo papel
científico-racional não é válido? Aberturas em
do voluntarismo individualista, no caso da
nome de novos fechamentos.
biografia.
Uma outra contradição é visível na
Reconhecer a validade do discurso
postura pós-moderna em relação à história.
histórico estrutural como uma urgência
A narrativa era apresentada como um
em tempos de descontrução e relativismo
recurso indispensável pelo qual o historiador
epistemológico é obviamente uma posição
apresentava os resultados do seu trabalho.
política. Faremos nossas palavras finais as de
Recordemos ainda que esse sujeito do
Ciro Cardoso ( 1997: 23 )
conhecimento não pode produzir mais do
que representações estilísticas da realidade,
... é inevitável que surjam, a curto ou médio prazo,
não estando em condições de alcançá-la em
um ou mais paradigmas explicativos globais, já que
sua totalidade. O todo social cognoscível
as razões que os suscitaram no passado, os graves
é, portanto, uma ilusão cientificista. Nesse problemas sociais e mundiais sem resolver, exigirão
plano, a narrativa situa-se a priori do real, que se renovem os horizontes utópicos orientadores,
pois o constrói. Nesse sentido, a narrativa não amanhã, de lutas sociais menos parcializadas e
se sustenta, pois, isolada, não pode pretender mais coerentes do que as de hoje; as quais serão, no
erigir-se como conhecimento válido, uma vez entanto, bastante diferentes das lutas de outrem, já
que não dispõe de seus contrários. A solução que, por mais que ainda no âmbito do capitalismo, as
desse equívoco está em recuperar um dos sociedades humanas sofreram e continuam sofrendo
postulados rejeitados pelos pós-modernos: transformações de enorme alcance.
qualquer prática discursiva ou epistemológica
está inserida num conjunto de experiências
Cadernos UniFOA
reais ligadas a um todo social que só pode 5 Referências
ser analisado se preservada sua dimensão
estrutural. - ANDERSON, P. As origens da pós-
A multiplicação dos temas abordados modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
pelos pós-modernos não esgota a macro- 1999.
análise. Em polêmica com Lawrence Stone,
Eric Hobsbawm afirmava: - BENNATI, A. P. História, ciência, escritura
e política. In: GIMENES, R. A. O. e RAGO,
Nada há de novo em escolher ver o mundo através de M. (orgs). Narrar o passado, repensar a
edição nº 06, abril 2008

um microscópio e não com um telescópio. Na medida história. Campinas: UNICAMP, Instituto de


em que aceitamos que estamos estudando o mesmo Filosofia e Ciências Humanas, 2000.
cosmo, a escolha entre microcosmo e macrocosmo
depende de selecionar a técnica apropriada. É
- CARDOSO, C. F. Ensaios racionalistas.
significativo que, na atualidade, historiadores mais
Rio de Janeiro: Campus, 1988.
numerosos achem útil o microscópio; mas isto não
significa necessariamente que recusem os telescópios
____. História e paradigma rivais. In: ____ e
como coisas fora de moda. Até os historiadores
da mentalité, este termo vago e que abarca tanto,
VAINFAS, R. (orgs). Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de - TAVARES, M. C. A retomada da hegemonia
48 Janeiro: Campus, 1997. norte-americana. IN: ____ e FIORI, J. L.
(orgs). Poder e dinheiro: uma economia
- FIORI, J. L. O vôo da coruja: uma leitura não política da globalização. Petrópolis: Vozes,
liberal da crise do estado desenvolvimentista 1998.
brasileiro. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1995.
VEYNE, P. Como se escreve a história.
- HIRST, P. e THOMPSON, G. Globalização Lisboa: 70, 1983.
em questão. Petrópolis: Vozes, 1998.

- HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o


breve século XX ( 1914 – 1991 ). São Paulo: 1
Este texto foi originalmente apresentado no X Encontro
Companhia das Letras, 1995. Regional de História da ANPUH-RJ, realizado na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2002.

- JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica


2
Ao utilizar a categoria de paradigma para se referir ao
cultural do capitalismo tardio. São Paulo:
pós-modernismo, estou me valendo das formulações
Ática, 2000.
de Ciro Flamarion Cardoso, para quem há dois grandes
paradigmas de interpretação histórica, o iluminista e o
- ____. A cultura do dinheiro. Petrópolis: pós-moderno. CARDOSO, C. F. História e paradgimas
Vozes, 2001. rivais. In: ____ e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro,
- ____. Periodizando os anos 60. IN: Campus, 1997.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de org. Pós-
modernismo e política. Rio de Janeiro:
Rocco, 1991.

- LIMA, L. C. A aguarrás do tempo: estudos


sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989.

- WHITE, H. Meta-História. São Paulo:


EDUSP, 1995.

- ____. Trópicos do discurso. São Paulo,


EDUSP, 1994.

- WOOD, E. M. O que é a agenda “pós-


Cadernos UniFOA

moderna”? IN: _____ e FOSTER, J. B.


Em defesa da História: marxismo e pós-
modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
edição nº 06, abril 2008

Informação bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico
publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
AVELAR, A. S.. Pós-Modernismo e os Ataques à História. Cadernos UniFOA, Volta Redonda, ano
III, n. 6, abril. 2008. Disponível em: <http://www.unifoa.edu.br/pesquisa/caderno/edicao/06/40.pdf>

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